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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE

JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
DISCIPLINA: FICÇÃO AFRICANA EM L.P.
DOCENTE: MARIA TERESA SALGADO
DISCENTE: FERNANDO S. CARVALHO
DRE: 114030555

Dina Salústio é uma escritora e jornalista cabo-verdiana, que apesar de ser


reconhecida por isto, não se afirma exatamente como uma escritora. Em uma
entrevista a professora Simone Caputo Gomes, disse dar mais ênfase a ideia de
porta-voz, ou mesmo contadora de histórias, que não se tratam de ficção
completamente, por estarem entrelaçadas diretamente com sua vivência e os
trabalhos que exerce na vida cotidiana de Cabo-Verde.
Nascida em 1941 em Santo Antão, Dina Salústio publicou em 1994 um livro de
contos intitulado “Mornas eram as noites'', que ganhou o Prêmio de Literatura Infantil
de Cabo Verde, e 4 anos depois em 1998 publicou seu primeiro romance “A louca
de Serrano”, sendo inclusive o primeiro romance escrito por uma mulher cabo-
verdiana. É membro-fundadora da Associação dos Escritores Cabo-verdianos,
fundou revistas como Mudjer e Ponto & Vírgula, e além de dirigir e produzir
programas de rádio, também participou de periódicos como Fragmentos, A tribuna,
Voz di Povo, A Semana, e outras. Publicou ensaios como “Insularidade na Literatura
cabo-verdiana” (1998) e poemas em coletâneas diversas.
Concomitantemente à atividade de escritora, trabalhou como educadora e
assistente social, atuando também em Portugal e Angola. Sua atuação como
educadora e assistente social deu potência a sua escrita, no sentido de que seus
textos são parte de acontecimentos presenciados no dia a dia, em histórias reais
que a atravessaram e que trazem nas contradições a necessidade de serem
contadas. Ao deixar de dar ênfase a definição de escritora parece negar a ideia de
mulher das letras e da invenção puramente fictícia para se posicionar como uma
agente da palavra que está indispensavelmente ligada ao coletivo e sua luta,
construindo sua literatura a partir desse lugar. Se alinhando assim mais à tradição
ancestral africana de contador de histórias do que a tradição do escritor ficcionista,
homem das letras ocidental. Suas obras inauguram uma nova maneira de dizer o
mundo a partir de Cabo Verde, tendo um forte destaque na questão da mulher como
sujeito complexo, narrador sensível, engajado e objeto multifacetado.

“necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres, histórias de vida que


passam por mim [...].” “Não são ficção, é cá um encontro que é
verdade, um momento só”. (SALÚSTIO apud GOMES, 2013)

“Mornas Eram as Noites” é constituído por pequenos contos de em média duas


páginas, que se destacam por sua linguagem beirando o poético e um texto próximo
ao real, se inclinando para a crônica pela sua abordagem ao cotidiano. Os contos
inserem o leitor dentro de um texto que se inicia sem contextualização, chegamos
geralmente na metade dos acontecimentos, com um narrador envolvido na história
contada ou entrelaçado nos personagens. Somos muitas vezes envolvidos em
contextos íntimos ou trágicos e os contos se configuram em recortes de
acontecimentos que geralmente têm mulheres como personagens principais, e
mesmo quando não acontece dessa maneira, sempre há marcas do narrador
feminino na forma do narrar.
Dos textos e ordem selecionados, Dina afirma que só o primeiro foi diretamente
escolhido por ela, pois queria fazer uma homenagem às mulheres que trabalhavam
duramente toda vida para criar seus filhos dentro de uma dificuldade imensa que
envolvia trabalhos fastidiosos como carregar água para o uso cotidiano, trabalhar a
terra
Nesse primeiro conto, “Liberdade adiada” somo jogados dentro de um limite, a
vontade do suicidio perante uma vida tortuosa, um ódio aos filhos que são um peso
dentro dessa vida de sofrimento, a vontade de desistir de tudo, a vontade de se unir
a água, virar lama no chão, a personagem sem forças pra continuar entra em crise
com tudo que envolve sua vida. Uma situação tão radical como depender de
carregar água para o uso cotidiano, denuncia uma situação de falta de saneamento
básico que assola tantas pessoas e atinge em cheio mulher, como sujeito central
dentro das famílias, que como tantas outras em que os homens partem em busca de
ganhar dinheiro ou de uma aventura, ficam com o peso de sustentá-la, e dar de
comer aos filhos tantos, que sem a provedora que permanece e luta por suas vidas,
ficariam sem alguém para zelar por eles, talvez até morressem. Mas a mulher
personagem desiste, desiste de desistir da vida por amor aos filhos, continua na luta
e o narrador a encontra logo depois do surto, marcando um entrelaçamento real de
personagem e narrador, um narrador que aparece com o acontecimento ainda
recente. Esse narrador frisa a realidade da história contada, tantas mulheres nessa
situação, e Dina mostra a potência da escrita que toca a realidade bruta que assola
as famílias.

“Então fiz uma compilação dos textos que tivessem uma mesma identificação em termos
de proposta de mensagem. O meu objectivo era falar da sociedade cabo-verdiana e
sobretudo dos problemas que nessa altura ainda não se falava muito como o abuso de
menores, violência doméstica, violência contra as mulheres e crianças” (SALÚSTIO apud
GOMES, 2013)

Em “Filhos és, pai serás”, a autora aborda com um certo tom cômico sua criação, a
relação com sua mãe no lugar de filha e com seu filho no lugar de mãe, a partir do
uso de provérbios em português utilizados por sua mãe como uma ferramenta de
correção. A língua portuguesa é a língua oficial em Cabo Verde, mas também a
língua do colonizador, e usá-la em um contexto informal onde se usa o crioulo, traz
um peso ao que se é falado. A autora usa o termo “sentença suprema” para salientar
o peso opressivo dessa língua invadindo o informal. “filhos és, pai serás, assim como
fizeres assim acharás”. O interessante é que o provérbio remete exatamente a ideia
de construção das relações entre pais e filhos e como se conduzem os
ensinamentos, e aqui no conto o uso do português como estratégia de chamar
atenção a gravidade do que se fala, toma nuances diferentes com a vinda da nova
geração, não que ganhe naturalidade, mas porque o riso entre mãe e filho quebra a
tensão que pairava antes entre a narradora criança e sua mãe depois das sentenças
em portugues. Esse conto traz pra dentro do livro uma temática íntima, aqui temos
um conto com uma inclinação forte para a crônica. E uma narradora que não se
descola da autora.
Em “foram as dores que o mataram” conto que circula o trauma com a repetição da
frase “eu amava-o, por que matá-lo?” traz na repetição uma negação que se
afrouxa, quanto mais e repete mais fica tensionado a autoria do assassinato. é um
contexto forte, matar quem se ama, as dores do corpo falam mais alto nesse conto,
e a narradora entrega que o marido matou-se a criar esse espaço onde se misturava
violencia e carinho, se misturava o animalesco e o humano, assim diante disso, ela
não tinha outra escolha. É possível perceber como Dina tem uma escrita que
consegue abordar a temática da mulher, da família, de forma ampla, com textos
curtos que conseguem trazer a complexidade dos problemas em que os sujeitos
estão inseridos. Isso só parece possível pela sagacidade sensível do olhar feminino.
Como no conto “Campeão de qualquer coisa” onde é abordada a necessidade
masculina de se impor, de se colocar como o melhor, numa competição que não
leva a nada. A narradora, numa brincadeira, tenta impulsionar o personagem
masculino a dizer em que ele seria campeão. Pois para ela todos os homens se
colocavam como campeões em alguma coisa. Ele desconstrói essa atitude que se
espera do masculino para dizer que já tinha superado esse impulso porque na vida
adulta, um homem precisa olhar as coisas para além da competição, para além de
ser o melhor. O conto se passa no contexto de uma festa, e um certo ar de flerte se
faz presente entre esse homem e essa mulher. Talvez por isso, a brincadeira da
narradora que faz chacota da forma de agir do homem, tratava-se de uma análise da
forma do masculino se aproximar do feminino. Ao desconstruir a lógica imposta, o
personagem masculino traz uma reflexão de como devemos nos portar perante os
outros.

O livro mostra acima de tudo a potência concentrada da escrita de Salústio. É visível


o poder de síntese presente nos contos para abordar vários temas com precisão.
sem se tornar banal, somos levados do risinho no canto da boca ao horror. Os temas
abordados são fortes demais. O aparecimento de uma escritora como Dina Salústio
foi necessário para provar, mais uma vez, que sem o olhar feminino, uma literatura
não pode se dizer madura.
Referencias:

GOMES, Simone Caputo. O conto de Dina Salústio: um marco na literatura


cabo-verdiana. Idioma, n. ju/dez. 2013, p. 52-70, 2013

SALGADO, Maria Teresa. Noites nada mornas de Dina Salústio:


a oportunidade do diálogo. Abril: Revista de Estudos de Literatura Portuguesa e
Africana - NEPA UFF, ISSN-e 1984-2090, Vol. 1, Nº. 1, 2008

SILVA, Assunção de Maria Sousa e. A poesia de Vera Duarte e Dina Salústio.


Revista África e Africanidades-Ano IV-n, v. 14, p. 15, 2011.

SALÚSTIO, Dina. CABO VERDE: ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA.


Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 13 – Maio. p. 38-42, 2011 – ISSN 1983-
2354

SALÚSTIO, Dina. Morna eram as noites. 3.ed. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.

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