1) O documento analisa o romance "Ponciá Vicêncio", de Conceição Evaristo, sob a ótica do gênero Bildungsroman e das noções de memória e identidade.
2) A protagonista Ponciá carrega em si as marcas da escravidão através de lembranças herdadas, como sua semelhança com o avô Vicêncio.
3) A narrativa explora como essas memórias coletivas afetam a jornada de autoconhecimento da personagem ao longo da vida.
1) O documento analisa o romance "Ponciá Vicêncio", de Conceição Evaristo, sob a ótica do gênero Bildungsroman e das noções de memória e identidade.
2) A protagonista Ponciá carrega em si as marcas da escravidão através de lembranças herdadas, como sua semelhança com o avô Vicêncio.
3) A narrativa explora como essas memórias coletivas afetam a jornada de autoconhecimento da personagem ao longo da vida.
1) O documento analisa o romance "Ponciá Vicêncio", de Conceição Evaristo, sob a ótica do gênero Bildungsroman e das noções de memória e identidade.
2) A protagonista Ponciá carrega em si as marcas da escravidão através de lembranças herdadas, como sua semelhança com o avô Vicêncio.
3) A narrativa explora como essas memórias coletivas afetam a jornada de autoconhecimento da personagem ao longo da vida.
trava-línguas, cuja autoria ignoro, presentificamos “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo, e seu rio de recordações - partilhadas e individuais - que se (con)fundem num descontínuo temporal, numa ruptura do fluxo sucessivo dos fatos. Chamar por “Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio!” (p. 18) é o mesmo, ou o equivalente, que requerer do próprio Chronos as noções de temporalidade, de memória(s), de busca e diluição de um “eu” que se projeta no “antes-agora-depois-e-do-depois-ainda” (p.110). Publicado a princípio no ano de 2003, “Ponciá Vicêncio” configura a estréia de Conceição Evaristo, atuante já em “Cadernos negros” - projeto que integrava um grupo de escritores negros do Brasil - para o cenário da então literatura brasileira. Desde seu lançamento, a obra foi matéria de diversas pesquisas atreladas aos estudos de literatura afrodescendente; parcela considerável desses estudos, leu/analisou o romance à luz das noções de memória - individual e coletiva - e identidade. Nesse sentido, este texto investigará o(s) modo(s) pelos quais essas concepções - memória e identidade - são imbuídas por Evaristo no decorrer da narrativa e em que medida afetam as personagens. Refletindo, junto a isso, a utilização do gênero Romance de Formação ou Bildungsroman na tessitura da(s) história(s) de Ponciá Vicêncio e de seus familiares. De acordo com Aline Alves Arruda, em sua dissertação intitulada de “Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman feminino e negro” (2007), o conceito de Bildungsroman teria sido cunhado pela primeira vez na Alemanha, em torno de 1810, por um professor de Filologia Clássica e celebrado por Goethe, em “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. O gênero ou subgênero em questão (2007), caracteriza-se pelo enfoque na trajetória de uma personagem, acompanhando as adversidades pelas quais atravessa até chegar num estágio de “autoconhecimento”. Para Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão, o Bildungsroman “não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance" (Benjamin apud A rruda, p. 20), se pensarmos que a essência dele parece estar relacionada aos conflitos do homem perante ao mundo moderno Os romances de formação apresentam quase invariavelmente um personagem masculino como centro desse amadurecimento, é o caso, por exemplo, de Wilhelm Meister, protagonista do já mencionado “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe, “David Copperfield”, de Charles Dickens, ou, para citar exemplos nacionais, Sérgio, em “O Ateneu”, de Raul Pompéia e “Memórias sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade. São poucos os modelos que apresentam o percurso de autoconhecimento de uma mulher. No Brasil, para essa categoria, poderíamos pensar em Clarice Lispector em “Perto do coração selvagem”, em Rachel de Queirós e “As três Marias”, e, mais recentemente, na escritora paulista Aline Bei e “O peso do pássaro morto”; mais escassa ainda é a lista de Bildungsromans nacionais que se debruçam sobre a figura feminina pobre e negra, como o faz Conceição Evaristo em “Ponciá Vicêncio”(2003), interesse analítico deste texto. Reside aí o caráter revolucionário desta obra para produção literária brasileira de até então; apropriando-se de um gênero marcadamente masculino e branco, Evaristo, partindo do que cunhou de “Escrevivências”, delineia o itinerário de Ponciá, personagem mulher, negra e pobre, pelas heranças memorialísticas do povo afrodescendente que, num movimento de convergências e solvências, coadunam-se às suas. No desdobrar-se da narrativa, a voz narradora, enquanto testemunha invisível de todos os acontecimentos, isto é, onisciente e onipresente, desvela-nos as tramas da vida de Ponciá Vicêncio. Desde a infância quando, indo buscar barro no rio para mãe, deparava-se com o angorô e, pelo medo de se fazer real a crença de seu povo “(...) ficava horas e horas (...) esperando a cobra do ar desaparecer”(p. 13), até a maturidade, quando mulher, mira-se insistentemente no espelho chamando o próprio nome, na ânsia de encontrar a parcela dela que habita nele, mas o gesto, sempre atravessado pelo vazio de não se reconhecer no nome, era frustrado. A relação de Ponciá com os saberes herdados e, inevitavelmente, com a memória de seus ancestrais é realçada, já nos parágrafos de abertura do livro, por esse temor infantil de cruzar o arco-íris - advindo de uma crença antiga do povo africano que figurava a “cobra celeste” como um deus de natureza dual, metade homem e metade mulher . O romance elabora, sob o signo da memória, uma protagonista que, desde tenra infância, guarda em si os rastros da escravidão e dos frutos dela em vivências que, apesar de precederam seu nascimento, estão enraizadas em seu corpo e em sua memória, como é o caso do personagem Vô Vicêncio. Em “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”, ensaio que integra o livro “Lembrar escrever esquecer”(2006), Jeanne Marie Gagnebin nos fala da noção de rastro enquanto “sinal aleatório, que foi deixado sem intenção prévia” (p. 111) de significar, mas que, por outro lado, pode ser tomado como signo a partir do momento em que alguém o concebe como sinal ou marca de algo. Em “Ponciá Vicêncio”(2003), esses rastros estão por toda parte e parecem reiterar a inacabável condição de escrava mesmo estando, segundo a “Lei Áurea”, promulgada em 1888, liberta. Desde a condição de vida a que são submetidos os moradores da Vila Vicêncio, tendo que remanejar a maior parte das colheitas das terras que, teoricamente, deveriam ser suas para os patrões, até seu sobrenome que carrega a marca de ter tido um dono, visto que este pertenceu ao Coronel Vicêncio, dono de muitos escravos, inclusive, de sua família. O fato de Ponciá apresentar tantas semelhanças com o avô que pouco conviveu, uma vez que este morreu quando “era criança de colo ainda” (p. 45), é outro ponto que pode constituir um rastro à medida que não apresenta um criador que o forjou com fins determinados. Essas semelhanças da personagem com vô vicêncio ganham dimensões místicas quando tomadas, primeiro, a partir da ideia de herança - que nunca era revelada à herdeira, tanto é que em muitas divagações a personagem se questiona a respeito dela - deixada do avô para Ponciá; e, segundo, por não haver explicações claras de como a mulher passou a andar “com um dos braços escondidos às costas e tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó” (p. 16) tal qual o avô. Tanto os moradores da Vila, quando se deparam com a criança andando igual ao velho Vicêncio, quanto alguns artigos acadêmicos que se dedicaram a investigar a fonte dessa parecença entre esses dois personagens centrais, conduziram suas conclusões para ideia de “imitação”. Entretanto, há uma impossibilidade nisto: como Ponciá, pequena ainda quando o avô morre, poderia imitá-lo se o conceito mesmo desta palavra - “imitação” - pressupõe a convivência com a pessoa como critério para a reprodução de aspectos dela? Vô Vicêncio - personagem que se presentifica na narrativa através de flashbacks -, “escravo1 de uma condição de vida que se repetia” (p. 72) para si e para os seus, num ato de desespero, num ímpeto de querer encerrar todo o sofrimento gerado por essa reiteração interminável, “matou a mulher e tentou acabar com a própria vida” (p. 44), não conseguiu consumar o ato porque foi impedido, no entanto, na mutilação física a que se infligiu após ter matado a esposa acabou decepando o braço - fato que explica a razão do braço cotó. O velho Vicêncio, encapsulando em si as experiências individuais e as reminiscências de uma trajetória de dor carregada pelo povo afrodescendente, pode ser lido como símbolo da revolta, do desespero e dos danos trazidos pela escravidão. O cerne da teoria junguiana a respeito do Inconsciente individual e coletivo concentra a ideia de que, de alguma maneira, os seres humanos guardam uma memória erguida a partir de experiências individuais e outra que reserva vivências, aprendizados e anseios herdados de pessoas que os antecederam. Olhando a partir desse viés, seria possível evocar, mesmo que de longe, as parecenças que interligam Ponciá a Vô Vicêncio, apesar de não terem partilhado juntos tempo suficiente para incorporar uma as características do outro, a essa noção de memórias coletivas que podem ser comunicadas, em instâncias do inconsciente, a uma pessoa. No caso de Ponciá Vicêncio e seu avô, essa memória coletiva urge com especial força propulsora; não são apenas ecos que sopram do inconsciente, são memórias presentes, que interferem diretamente no modo como essa criança, moça e depois mulher se reconhece e/ou desconhece no mundo. Desde que partiu da roça para cidade carregando na bagagem, além da perda do avô e do pai, a vontade de fugir da escravidão que se repetia ali sob o disfarce imprimido pela Lei Áurea, Ponciá Vicêncio “(...) gastava todo tempo com o pensar, com o recordar (...)” (p. 18). Na cidade, a personagem se depara com a diluição de um sonhado futuro diferente; sozinha, Ponciá é obrigada a procurar meios de sobrevivência e de esperança de um retorno à casa em busca da mãe e do irmão, fato que, em um momento posterior, frustra ainda mais o que havia de esperança e ímpeto - de continuar querendo modificar os rumos de um destino condenado à serviência aos “patrões” - na personagem, uma vez que não os encontra quando volve à vila. Esses acontecimentos, somados ainda a um casamento infeliz e à perda sucessiva de sete filhos, engolfam Ponciá Vicêncio num profundo círculo de repetições caracterizado pelas constantes voltas ao passado, que a tiravam “do ar”, a princípio, por momentos curtos, mas ao decorrer do tempo por horas, pela insatisfação com a miséria do presente, pela culpa de ter deixado a mãe e o irmão, pela saudade do barro, do rio, e, despontado sob todas essas problemáticas, os questionamentos a respeito da própria identidade: Quem era Ponciá Vicêncio? Em alguns momentos do romance, a voz narradora transporta o leitor para algumas recordações de Ponciá em que ela, menina, “tinha o hábito de ir para a beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava seu próprio nome. Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa” (p. 18), em outro, traz a cena de Ponciá, mulher, “diante do espelho chamando por ela mesma”(p. 19) e, não obtendo resposta, pede ao esposo que não a chame mais de Ponciá Vicêncio; ao questioná-la como se reportaria a ela então, 1 No romance: “Escrava de uma condição de vida que se repetia” (´p. 72) responde-lhe “que poderia chamar de nada” (p. 19). Apropriando-se, principalmente no primeiro caso, do mito de Narciso, rapaz que, de tão belo, ao se mirar nas águas de um lago acaba se apaixonando pela própria imagem, o narrador contrapõe a este a figura de Ponciá que, mesmo encarando seu reflexo seja no lago seja no espelho, não se reconhece nem nome e nem na imagem refletida, e, ao inverso do belo jovem, não cultiva nenhuma admiração pelo que se reflete nestas superfícies. Ponciá é a antítese de Narciso. Morfologicamente, a palavra “identidade” parte do vocábulo “idêntico” que, em superfície, quer dizer “igual”. De modo geral, a noção de identidade parece sempre se atrelar à ideia de uma essência imutável, que não se afeta pelos encontros e desencontros pelos quais as pessoas são atravessadas durante a vida; mesmo as teorias mais recentes a respeito de fragmentação da identidade e/ou liquefação desta ainda mantém, de alguma maneira, essa concepção. Em vista disso, não parece possível analisar a personagem Ponciá Vicêncio através da lógica tradicional de identidade, talvez nem pela própria ideia que reside nesse conceito. O romance não sinaliza um momento específico em que Ponciá tenha chegado a alguma compreensão, mesmo que geral, de si. Quando pequena, os primeiros movimentos remontam o avô. A família e as pessoas a enxergavam como um Vô Vicêncio renascido, tudo o quanto fez daí por diante reiterou uma herança que não era só sua, mas do avô, dos pais, do irmão e de toda uma população escravizada; não há o se reconhecer nisso tudo, o saber-se “eu” com determinadas características. A personagem, enlaçada a tantas questões que se impõem em seu caminho - como, por exemplo, lidar com as várias perdas acumuladas durante a vida -, atravessa toda a trama numa busca angustiante dessa identidade, e a cada novo engolfo em seu rio de recordações, culpas e perdas, Ponciá parece solver um pouco mais a consistência desse “eu”. Outro conceito discutido em “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”, de Jeanne Marie Gagnebin, que interessa a algumas investigações dessa análise é o de trauma. Segundo Gagnebin, trauma é a “ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimento violentos, recalcados ou não na memória” (p. 110), poderíamos, a partir dessa discussão, relacionar a condição de alheamento e introspecção a que estão reféns os personagens do Vô Vicêncio e Ponciá na narrativa aos danos gerados pela escravidão, no caso daquele, e às recordações do velho Vicêncio - que, forçosamente, remontam os sofrimentos experienciados por ele e pelo povo negro escravizado - no caso de Ponciá. Ainda segundo Gagnebin (2006), esses acontecimentos reprimidos “não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma da palavra, pelo sujeito”, é o que ocorre com Vô Vicêncio quando, após ter matado a esposa e atentado contra a própria vida, passa a balbuciar falas que ninguém compreende; ficando preso a um eterno “rir e chorar” - herança também herdado por Ponciá. Quando, criança, viu a mulher alta e transparente no milharal, ou quando modelou um boneco de barro segundo a imagem do avô e tenta mostrar/falar com mãe, mas esta, pelo medo da iminência da semelhança entre a filha e o sogro, recusa o olhar e a fala; quando “quantas vezes quis ouvir, por exemplo, se o dia dele (do marido) tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa teria sido causado por algum tijolo, ou mesmo quando começaria a nova obra” (p. 57), no entanto, nunca obteve respostas; o seu homem “só falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, menos do que a precisão dela”(p. 57). Depois de tantas tentativas frustradas de conversar sobre como se sente e/ou de como as pessoas que a circundam sentem-se, Ponciá passa a se conter, também, em si; gradativamente perde a vontade e a capacidade elaborar, pela palavra, o que sente; comunica-se através de olhares, como quando retribui um olhar de ódio ao marido por tê-la golpeado nas costas com um soco, após ter chegado do trabalho e encontrá-la e em sua costumeira divagação. Nesse sentido, o barro, para Ponciá, adquire valor expressivo; por meio dele a personagem parece conseguir direcionar suas memórias, angústias e tristezas, tanto é que, quando na cidade, longe do rio e do barro, sente saudades dele, suas mãos começam a coçar como se requeressem a presença daquela massa modelável. O romance em questão rompe com o entendimento linear de tempo - passado, presente, futuro -, os fatos são narrados num fluxo de consciência que se (con)funde às recordações e devaneios de todas os personagens presentes no enredo. Esse aspecto é reforçado pela escolha estrutural de não segmentar o romance em capítulos, o que, visualmente, apesar das letras capitulares, causa a impressão de continuum, de lembranças que não se dissolvem umas das outras. Além disso, a utilização recorrente dos verbos no pretérito imperfeito do indicativo aponta, naturalmente, para as “feridas abertas” nas memórias dos personagens. Desse modo, ‘Ponciá Vicêncio”(2003) concebe a vida como “um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda (...) mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (p. 110).
Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA