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Quantas memórias o tempo tem?

Com essa apropriação vulgar de um famoso


trava-línguas, cuja autoria ignoro, presentificamos “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo,
e seu ​rio de recordações - partilhadas e individuais - que se (con)fundem num descontínuo
temporal, numa ruptura do fluxo sucessivo dos fatos. Chamar por “Ponciá Vicêncio! Ponciá
Vicêncio!” (p. 18) é o mesmo, ou o equivalente, que requerer do próprio ​Chronos as noções
de temporalidade, de memória(s), de busca e diluição de um “eu” que se projeta no
“antes-agora-depois-e-do-depois-ainda” (p.110).
Publicado a princípio no ano de 2003, “Ponciá Vicêncio” configura a estréia de
Conceição Evaristo, atuante já em “Cadernos negros” - projeto que integrava um grupo de
escritores negros do Brasil - para o cenário da então literatura brasileira. Desde seu
lançamento, a obra foi matéria de diversas pesquisas atreladas aos estudos de literatura
afrodescendente; parcela considerável desses estudos, leu/analisou o romance à luz das
noções de memória - individual e coletiva - e identidade.
Nesse sentido, este texto investigará o(s) modo(s) pelos quais essas concepções -
memória e identidade - são imbuídas por Evaristo no decorrer da narrativa e em que medida
afetam as personagens. Refletindo, junto a isso, a utilização do gênero Romance de Formação
ou ​Bildungsroman​ na tessitura da(s) história(s) de Ponciá Vicêncio e de seus familiares.
De acordo com Aline Alves Arruda, em sua dissertação intitulada de “Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman feminino e negro” (2007), o conceito de
Bildungsroman teria sido cunhado pela primeira vez na Alemanha, em torno de 1810, por um
professor de Filologia Clássica e celebrado por Goethe, em “Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister”. O gênero ou subgênero em questão (2007), caracteriza-se pelo enfoque na
trajetória de uma personagem, acompanhando as adversidades pelas quais atravessa até
chegar num estágio de “autoconhecimento”. Para Walter Benjamin, filósofo e crítico literário
alemão, o Bildungsroman “não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance"
(Benjamin apud A ​ rruda, p. 20​), ​se pensarmos que a essência dele parece estar relacionada aos
conflitos do homem perante ao mundo moderno
Os romances de formação apresentam quase invariavelmente um personagem
masculino como centro desse amadurecimento, é o caso, por exemplo, de Wilhelm Meister,
protagonista do já mencionado “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe,
“David Copperfield”, de Charles Dickens, ou, para citar exemplos nacionais, Sérgio, em “O
Ateneu”, de Raul Pompéia e “Memórias sentimentais de João Miramar”, de Oswald de
Andrade. São poucos os modelos que apresentam o percurso de autoconhecimento de uma
mulher. No Brasil, para essa categoria, poderíamos pensar em Clarice Lispector em “Perto do
coração selvagem”, em Rachel de Queirós e “As três Marias”, e, mais recentemente, na
escritora paulista Aline Bei e “O peso do pássaro morto”; mais escassa ainda é a lista de
Bildungsromans nacionais que se debruçam sobre a figura feminina pobre e negra, como o faz
Conceição Evaristo em “Ponciá Vicêncio”(2003), interesse analítico deste texto. Reside aí o
caráter revolucionário desta obra para produção literária brasileira de até então;
apropriando-se de um gênero marcadamente masculino e branco, Evaristo, partindo do que
cunhou de “Escrevivências”, delineia o itinerário de Ponciá, personagem mulher, negra e
pobre, pelas heranças memorialísticas do povo afrodescendente que, num movimento de
convergências e solvências, coadunam-se às suas.
No desdobrar-se da narrativa, a voz narradora, enquanto testemunha invisível de todos
os acontecimentos, isto é, onisciente e onipresente, desvela-nos as tramas da vida de Ponciá
Vicêncio. Desde a infância quando, indo buscar barro no rio para mãe, deparava-se com o
angorô e, pelo medo de se fazer real a crença de seu povo “(...) ficava horas e horas (...)
esperando a cobra do ar desaparecer”(p. 13), até a maturidade, quando mulher, mira-se
insistentemente no espelho chamando o próprio nome, na ânsia de encontrar a parcela dela
que habita nele, mas o gesto, sempre atravessado pelo vazio de não se reconhecer no nome,
era frustrado. A relação de Ponciá com os saberes herdados e, inevitavelmente, com a
memória de seus ancestrais é realçada, já nos parágrafos de abertura do livro, por esse temor
infantil de cruzar o arco-íris - advindo de uma crença antiga do povo africano que figurava a
“cobra celeste” como um deus de natureza dual, metade homem e metade mulher .
O romance elabora, sob o signo da memória, uma protagonista que, desde tenra
infância, guarda em si os rastros da escravidão e dos frutos dela em vivências que, apesar de
precederam seu nascimento, estão enraizadas em seu corpo e em sua memória, como é o caso
do personagem Vô Vicêncio. Em “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”, ensaio que
integra o livro “Lembrar escrever esquecer”(2006), Jeanne Marie Gagnebin nos fala da noção
de rastro enquanto “sinal aleatório, que foi deixado sem intenção prévia” (p. 111) de
significar, mas que, por outro lado, pode ser tomado como signo a partir do momento em que
alguém o concebe como sinal ou marca de algo. Em “Ponciá Vicêncio”(2003), esses rastros
estão por toda parte e parecem reiterar a inacabável condição de escrava mesmo estando,
segundo a “Lei Áurea”, promulgada em 1888, liberta. Desde a condição de vida a que são
submetidos os moradores da Vila Vicêncio, tendo que remanejar a maior parte das colheitas
das terras que, teoricamente, deveriam ser suas para os patrões, até seu sobrenome que carrega
a marca de ter tido um dono, visto que este pertenceu ao Coronel Vicêncio, dono de muitos
escravos, inclusive, de sua família.
O fato de Ponciá apresentar tantas semelhanças com o avô que pouco conviveu, uma
vez que este morreu quando “era criança de colo ainda” (p. 45), é outro ponto que pode
constituir um rastro à medida que não apresenta um criador que o forjou com fins
determinados. Essas semelhanças da personagem com vô vicêncio ganham dimensões
místicas quando tomadas, primeiro, a partir da ideia de herança - que nunca era revelada à
herdeira, tanto é que em muitas divagações a personagem se questiona a respeito dela -
deixada do avô para Ponciá; e, segundo, por não haver explicações claras de como a mulher
passou a andar “com um dos braços escondidos às costas e tinha a mãozinha fechada como se
fosse cotó” (p. 16) tal qual o avô. Tanto os moradores da Vila, quando se deparam com a
criança andando igual ao velho Vicêncio, quanto alguns artigos acadêmicos que se dedicaram
a investigar a fonte dessa parecença entre esses dois personagens centrais, conduziram suas
conclusões para ideia de “imitação”. Entretanto, há uma impossibilidade nisto: como Ponciá,
pequena ainda quando o avô morre, poderia imitá-lo se o conceito mesmo desta palavra -
“imitação” - pressupõe a convivência com a pessoa como critério para a reprodução de
aspectos dela?
Vô Vicêncio - personagem que se presentifica na narrativa através de flashbacks -,
“escravo1 de uma condição de vida que se repetia” (p. 72) para si e para os seus, num ato de
desespero, num ímpeto de querer encerrar todo o sofrimento gerado por essa reiteração
interminável, “matou a mulher e tentou acabar com a própria vida” (p. 44), não conseguiu
consumar o ato porque foi impedido, no entanto, na mutilação física a que se infligiu após ter
matado a esposa acabou decepando o braço - fato que explica a razão do braço cotó. O velho
Vicêncio, encapsulando em si as experiências individuais e as reminiscências de uma
trajetória de dor carregada pelo povo afrodescendente, pode ser lido como símbolo da revolta,
do desespero e dos danos trazidos pela escravidão.
O cerne da teoria junguiana a respeito do Inconsciente individual e coletivo concentra
a ideia de que, de alguma maneira, os seres humanos guardam uma memória erguida a partir
de experiências individuais e outra que reserva vivências, aprendizados e anseios herdados de
pessoas que os antecederam. Olhando a partir desse viés, seria possível evocar, mesmo que de
longe, as parecenças que interligam Ponciá a Vô Vicêncio, apesar de não terem partilhado
juntos tempo suficiente para incorporar uma as características do outro, a essa noção de
memórias coletivas que podem ser comunicadas, em instâncias do inconsciente, a uma pessoa.
No caso de Ponciá Vicêncio e seu avô, essa memória coletiva urge com especial força
propulsora; não são apenas ecos que sopram do inconsciente, são memórias presentes, que
interferem diretamente no modo como essa criança, moça e depois mulher se reconhece e/ou
desconhece no mundo.
Desde que partiu da roça para cidade carregando na bagagem, além da perda do avô e
do pai, a vontade de fugir da escravidão que se repetia ali sob o disfarce imprimido pela Lei
Áurea, Ponciá Vicêncio “(...) gastava todo tempo com o pensar, com o recordar (...)” (p. 18).
Na cidade, a personagem se depara com a diluição de um sonhado futuro diferente; sozinha,
Ponciá é obrigada a procurar meios de sobrevivência e de esperança de um retorno à casa em
busca da mãe e do irmão, fato que, em um momento posterior, frustra ainda mais o que havia
de esperança e ímpeto - de continuar querendo modificar os rumos de um destino condenado à
serviência aos “patrões” - na personagem, uma vez que não os encontra quando volve à vila.
Esses acontecimentos, somados ainda a um casamento infeliz e à perda sucessiva de sete
filhos, engolfam Ponciá Vicêncio num profundo círculo de repetições caracterizado pelas
constantes voltas ao passado, que a tiravam “do ar”, a princípio, por momentos curtos, mas ao
decorrer do tempo por horas, pela insatisfação com a miséria do presente, pela culpa de ter
deixado a mãe e o irmão, pela saudade do barro, do rio, e, despontado sob todas essas
problemáticas, os questionamentos a respeito da própria identidade: Quem era Ponciá
Vicêncio?
Em alguns momentos do romance, a voz narradora transporta o leitor para algumas
recordações de Ponciá em que ela, menina, “tinha o hábito de ir para a beira do rio e lá, se
mirando nas águas, gritava seu próprio nome. Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! sentia-se
como se estivesse chamando outra pessoa” (p. 18), em outro, traz a cena de Ponciá, mulher,
“diante do espelho chamando por ela mesma”(p. 19) e, não obtendo resposta, pede ao esposo
que não a chame mais de Ponciá Vicêncio; ao questioná-la como se reportaria a ela então,
1
No romance: “Escrava de uma condição de vida que se repetia” (´p. 72)
responde-lhe “que poderia chamar de nada” (p. 19). Apropriando-se, principalmente no
primeiro caso, do mito de Narciso, rapaz que, de tão belo, ao se mirar nas águas de um lago
acaba se apaixonando pela própria imagem, o narrador contrapõe a este a figura de Ponciá
que, mesmo encarando seu reflexo seja no lago seja no espelho, não se reconhece nem nome e
nem na imagem refletida, e, ao inverso do belo jovem, não cultiva nenhuma admiração pelo
que se reflete nestas superfícies. Ponciá é a antítese de Narciso.
Morfologicamente, a palavra “identidade” parte do vocábulo “idêntico” que, em
superfície, quer dizer “igual”. De modo geral, a noção de identidade parece sempre se atrelar
à ideia de uma essência imutável, que não se afeta pelos encontros e desencontros pelos quais
as pessoas são atravessadas durante a vida; mesmo as teorias mais recentes a respeito de
fragmentação da identidade e/ou liquefação desta ainda mantém, de alguma maneira, essa
concepção. Em vista disso, não parece possível analisar a personagem Ponciá Vicêncio
através da lógica tradicional de identidade, talvez nem pela própria ideia que reside nesse
conceito.
O romance não sinaliza um momento específico em que Ponciá tenha chegado a
alguma compreensão, mesmo que geral, de si. Quando pequena, os primeiros movimentos
remontam o avô. A família e as pessoas a enxergavam como um Vô Vicêncio renascido, tudo
o quanto fez daí por diante reiterou uma herança que não era só sua, mas do avô, dos pais, do
irmão e de toda uma população escravizada; não há o se reconhecer nisso tudo, o saber-se
“eu” com determinadas características. A personagem, enlaçada a tantas questões que se
impõem em seu caminho - como, por exemplo, lidar com as várias perdas acumuladas
durante a vida -, atravessa toda a trama numa busca angustiante dessa identidade, e a cada
novo engolfo em seu rio de recordações, culpas e perdas, Ponciá parece solver um pouco mais
a consistência desse “eu”.
Outro conceito discutido em “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”, de Jeanne
Marie Gagnebin, que interessa a algumas investigações dessa análise é o de ​trauma​. Segundo
Gagnebin, trauma é a “ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimento violentos,
recalcados ou não na memória” (p. 110), poderíamos, a partir dessa discussão, relacionar a
condição de alheamento e introspecção a que estão reféns os personagens do Vô Vicêncio e
Ponciá na narrativa aos danos gerados pela escravidão, no caso daquele, e às recordações do
velho Vicêncio - que, forçosamente, remontam os sofrimentos experienciados por ele e pelo
povo negro escravizado - no caso de Ponciá.
Ainda segundo Gagnebin (2006), esses acontecimentos reprimidos “não conseguem
ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma da palavra, pelo sujeito”, é o que
ocorre com Vô Vicêncio quando, após ter matado a esposa e atentado contra a própria vida,
passa a balbuciar falas que ninguém compreende; ficando preso a um eterno “rir e chorar” -
herança também herdado por Ponciá. Quando, criança, viu a mulher alta e transparente no
milharal, ou quando modelou um boneco de barro segundo a imagem do avô e tenta
mostrar/falar com mãe, mas esta, pelo medo da iminência da semelhança entre a filha e o
sogro, recusa o olhar e a fala; quando “quantas vezes quis ouvir, por exemplo, se o dia dele
(do marido) tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa teria sido
causado por algum tijolo, ou mesmo quando começaria a nova obra” (p. 57), no entanto,
nunca obteve respostas; o seu homem “só falava o necessário. Só que o necessário dele era
bem pouco, menos do que a precisão dela”(p. 57). Depois de tantas tentativas frustradas de
conversar sobre como se sente e/ou de como as pessoas que a circundam sentem-se, Ponciá
passa a se conter, também, em si; gradativamente perde a vontade e a capacidade elaborar,
pela palavra, o que sente; comunica-se através de olhares, como quando retribui um olhar de
ódio ao marido por tê-la golpeado nas costas com um soco, após ter chegado do trabalho e
encontrá-la e em sua costumeira divagação. Nesse sentido, o barro, para Ponciá, adquire valor
expressivo; por meio dele a personagem parece conseguir direcionar suas memórias, angústias
e tristezas, tanto é que, quando na cidade, longe do rio e do barro, sente saudades dele, suas
mãos começam a coçar como se requeressem a presença daquela massa modelável.
O romance em questão rompe com o entendimento linear de tempo - passado,
presente, futuro -, os fatos são narrados num fluxo de consciência que se (con)funde às
recordações e devaneios de todas os personagens presentes no enredo. Esse aspecto é
reforçado pela escolha estrutural de não segmentar o romance em capítulos, o que,
visualmente, apesar das letras capitulares, causa a impressão de ​continuum,​ de lembranças que
não se dissolvem umas das outras. Além disso, a utilização recorrente dos verbos no pretérito
imperfeito do indicativo aponta, naturalmente, para as “feridas abertas” nas memórias dos
personagens. Desse modo, ‘Ponciá Vicêncio”(2003) concebe a vida como “um tempo
misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda (...) mistura de todos e de tudo. Dos que
foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (p. 110).

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