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INTRODUCAO A VOZ SEGUNDO CALVINO arganta, torax, sentimentas, que pressiona no ar 1 vor. significa istor existe uma pessoa viva, essa voz diferente de todas as ou o Calvino. “Um rel a escuta"™ Em um de seus dltimos © geniais escritos, Italo Calvino nos presente Inserido com a extraordindria figura de “Um rei a escuta’ m uma cole em questio represent nco sentides, © rei audigao, Imével em seu trono, ele ust © ouvido para interceptar e decifrar os sons que o envolvem. Assediado pela logica de seu proprio poder, a do monarca consiste no controle actistico do reino. No palicio, que, como um grande ouvido, tem “pavilhoes, trompas, timpanos, espirais, labirintos", cada som € um indicio de fidelidade ou de conjura, Muitos € incertos sto 0s espid + interpretados: sussurros, ruidos, vibragdes, baques, lagos de silencio. H4 também, é claro, vozes humanas no palicio, Mas “cada voz que sabe ser ouvida pelo rei adquire um verniz frio, uma complacéncia 1°. Em suma, torna-se uma voz. cortes’, adulterada, falsa: ;nto por aquilo que diz, mas em sua propria materialidade sonora. O rei a escuta sabe disso, ou melhor, ouve isso. ‘Como quer a tradig&o que remonta a0 antigo tirano, o rei de Calvino é prisioneito de seu proprio sistema. A lgica é aquela obsessiva da violencia, da perseguiclo © da suspeita: sen © poder impoe uma vi ameagado por queda imi insone. A vigilincia 6, todavia, neste caso, de tipo exclusivamente auditivo, Como em um pesidelo sonoro, o ouvido real se ampli- fica numa percepgio tio agua e especializada quanto impotent. © rei nao pode fazer nada: somente escutar, interceptar sons & decifrar-Ihes 0 sentido. Reduzidas a sua materialidacle sonora - sons entre sons =, as palavras nao contam por sua valencia semiin- tica, mas apenas por sua substincia fOnica. Desinteressando-se por aquilo que elas dizem, o rei espia-thes o timbre vocal, qu 6, justamente, adulterado, falso, “frio” e “vitreo” como a morte. Afinadas com 0 instrumento de morte que € tipico do poder, as ‘gargantas da Corte, de fato, nd0 Sto mais capazes de emitir a voz vertadeira c inconfundivel da vida, isto 6,3 voz que “poe em jogo sla, a saliva, a infancia, a patina da vida vivid, as intengoes da mente, o prazer de dar uma forma propria as ondas sonora’ ma vor de mulher se entrega airapeito de uma janela apagada”, ovorre Ele entio se recobra, recorda-se finalmente da vida e reencontra um objeto para os seus antigos dese nova emocao do rei nao depende certamente da cancio, vezes ouvida, nem da mulher que nunca vira, aponta Calvino, im dessa “voz. enquanto vor, como se oferece no canto’ Isso que o atrai € “o prazer que esta voz poe na existéncka ~ existéncia como voz ~, mas esse prazer 0 conclu a imaginar 0 modo como a pessoa poderia ser diferente de qualquer outra tanto quanto € diferente a voz". O rei, em suma, descobre a unicidade de todo ser humano, assim como ela & manifestad pela unicidade da voz. Ali, descobre algo mais: porque “a voz poderia sero equivalente daquilo que a pessoa tem de ma oculto ¢ de mais verdadeiro”, uma espécie de nticleo invisivel, mas imediatamente perceptivel, da unicidade. Uma vez que essa voz provém do mundo dos vivos, o qual esti fora ct logica mortifera do poder, para o ouvido real abre-se um horizonte de percepciio cujo estatuto essencial é completamente oposto aquele ditado pelos jogos aciisticos do pakicio. Nao se trata mais de iplar sons ameacadores € decifri-los, mas sim de fruir a escuta la “vibragao de uma garganta de came’. Viva € corps ¢ irreproduzivel, sobrepujando con mples verdad sonora © estrondo inconfiivel do reino, uma mulher canta, Eo rei escuta se distrai de sua obsessiva vigilincia, Um belo dia, “quando no escuro, canto, invisivel no Extraordindrio pela invengao, como de costume, 0 conto de Calvino, refletindo sobre o tema da voz, oferece uma série de motives que fazem implicitamente tremer um dos fundamentos da filosofia. Antes da entrada em cenarda mulher que canta, trata- “se de uma voz que emerge de um fundo de sinais actisticos no ual a emissio vocal nao desempenha uma funcio especial em relaco aos outros sons e ruidos do palicio. A identificacao do rei ‘com 0 sentido da audigao, de fato, reduz.a um puro som mesmo as palavras pronunciadas pelos seres humaanos, Aqui surge justa- nente a fundamental intuio antifilos6fica de Calvino: encorajado pela falsidade constitutiva dos discursos politicos, 0 rei-ouvido, 40 conttitrio do que faz ha séculos a filosofia, concentra-se no Locdilice ignorando 0 semdntico. No ambito do reino, todavia, 0 vocilico mesmo, como artefato, € um sinal de decifracio incerta em comparagio com outros rumores do pakicio. Nao somente as palavras dos comtestos so falsas, mas também as suas vozes. Flas se coadunam com os ameagadores ruidos do sistema. Como no barulho de uma porta que se fecha, nessas vozes ha um som {rio ¢ artificial. Nao ha vida. O que significa que, pereebida pelo ‘uvido que esté no centro do poder, a voz, humana se transforma tem sinal acdstico entre outros, em ruido despersonalizado a ser captado ¢ decodlficado, A fonte humana dessa emissio sonora no revela nada de particularmente humano, mas sim se dissolve no sistema geral da actistica politica como sistema de controle do reino. Com efeito, no conto, a voz, humana, capaz, de permanecer ‘como tal sem confundir-se com os ruidos € de revelar assim aquilo ‘que 6 peculiarmente humano, vem dle um lugar que esté fora cla politica. Essa revelagao ndo tem nenhum cariter surpreendente; pelo contririo, diz. respeito a0 mais Sbvio dos aspectos daquel {que Hannah Arendt chama a condigto humana: unicidade que faz de cada um de nés um ser diferente de todos os demai “Aquela voz, certamente vem de uma pessoa tinica, inimitavel como qualquer pessoa", observa pontualmente Calvino. Tal Unicidade seria perceptivel também pelo olhar, mas ao centrar © conto no sentido da audigio e ao colocar a mulher que canta numa janela escura, 0 escritor procede conferindo privil cesfera acdistica e atraindo toda a nossa atencao para a voz. A fim dle que o ouvido demonstre 0 seu natural talento para perceber 4 unicidade de uma voz que, por si 36, € capaz de atestar a lunicidade de cada ser humano, quem a emite deve permanecer visivel, A estratégia de Calvino € precisa, A emissio fonica nao corresponde aqui a aparigao de nenhum rosto. A visto no tem ” nem mesmo o papel de antecipar ou confirmar © conceito de unicicacle captado pelo ouvido. © ouvido do rei, habituado ao efeito de despersonalizagao do sistema actistico do reino, obviamente é surpreendide pela ‘mensagem dessa voz. Como frequentemente ocorre com 0 ouvido «ta politica ~ e, por raz0es afins, da filosofia - ele se exercita bem pouco para perceber a voz do existente humano enquanto tnico. Sintomaticamente, escaps-the essa *vibracao de uma garganta de came” que repete palavras com uma vor. inimitavel. Escapa-the, cenfim, a simples verdade da autorrevelacio vocilica da existencia que pode prescindir de qualquer interferéncia do semantico. A tipica liberdade com a qual os seres humanos combinam palavras, mesmo comprovando-a, nunca é um indicio suficiente da unicidade de quem fala. A vor. de quem fala , pelo contrario, sempre diversa de todas as outras vozes, ainda que as palaveas pronunciadas fossem sempre as mesmas, como acontece just mente no caso de uma cancio. ‘Tal diversidade, como enfatiza Calvino, tem a ver com o corpo. ‘Uma vor signifi isto: existe uma pessoa viva, garganta, trax, sentimentos, que pressiona no ar essa vor. diferente de todas as ‘outras vozes. Uma voz poe em jogo a tivula, a saliva": quando a voz hu ira, existe alguém em ca unicidade nao é ser humano na r Ime € Osso que a emite, A lo homem em geral, mas de em que vive e respira. Vi nova. mente, enfatizar que essa riz copp6rea da unicidade € perceptivel também pelo sentido da visto, ou seja, é um aspecto imediata- ‘mente visivel para quem quer que olhe o rosto do outro. A audicao aqui privilegiada por Calvino, contudlo, desloca a percepcio de unicidade da superficie corporea ou, caso se queira, do rosto, 10 compo intemo; além disso, traz para a andlise o tema muito precioso cla relacao. Caracterizado por Ongios que, com galerias ido da audi¢ao tem o seu natural referente em uma voz que vem, por sua vez, de outrs galerias internas: a boca, a garganta, o emaranhado do pulmo. © jogo entre emissio vocilica e percepeao actistica envolve necessariamente os Grgdos internos: implica a correspondéncia de cavidades carnosas que aludem a0 corpo profundo, 0 m: corp6reo dos corpos. A impalpabilidade das vibragdes sonoras, ‘mesmo incolores como o ar, sai dle uma boca timid e ierompe do vermelho da carn por isso, como sugere Calvino, a voz € 0 equivalente daquilo que a pessoa tinica possui de - mais escondido € mais verdadeiro, Nao se trata, porém, de um tesouro inatingivel, cle uma esséncia inefivel e, muito menos, de uma espécie de nticleo secreto do eu, mas sim de uma vitalidace profunda do ser nico que goza «la sua autorrevelagao por meio da emissao da voz, Tal revelagdo procede justamente de dentro para fora, avangando no ar em citculos concéntricos na direco do ‘ouvido alheio. Mesmo do simples ponto de vista fisiol6gico, ea implica uma relacto. Inserido no citculo de relagoes da emissi0 vocilica que se difunde para o exterior, 6 ouvido alheio 6, de fato, capaz cle perceber todo "o prizer que essa vor poe na existencia: na existéncia como voz". “O prazer de dar uma forma propria 2s ondas sonoras” faz parte da autorrevelacao vocilica. A emissio 6 gozo vital, sopto acusticamente perceptivel, no qual 0 proprio model 0 som revelando-se como sinico, Crucialmente, no conto de Calvino, esse gozo vem do canto de uma mulher. Em certo sentido, trata-se de um lugar comum, iliés, de um esterestipo nao desprovido de tracos mis6ginos. Basta pensarmos nas varias releituras que a tradicio fez do canto feminino sedutor, carnal e primitivo, que remontariam as ‘ou melhor, a leitura misogina do mito feita sereias homéric pela tradigao. A inimitavel originalidade com vai notoriamente reler o imagindrio tradicio horizontes inesperados ao tema da mulher que canta, De Fito, to contririo do que quer a tradigao, o canto feminino nao celebra € irreproduzivel, de todo ser humano. 1 vor ouvida pelo rei seja a voz de um 86 porque 0 canto exalta a vor © a poténeia, mas, sobretudo, porque a atencio exclusiva do rei em ireclo ao puro elemento vocilico, em detrimento do semantico, contra no canto o seu Ambito natural de expresso. Como precisa 0 conto calviniano, o ouvido do rei ja ouvira varias vezes 1 eanglo — e sequet nos & dado conhecer as palavras do canto, {que aqui nao tem importincia alguma, Aquilo que atrai o rei € justamente a “voz enquanto vor, como se oferece no Tanto é assim que, conquistado pelo prazer de dar forma propria As ondas sonoras, “contagiado pelo prizer de se fazer ouvir” que fess Vor manifesta, o rei tenta entio um dueto no qual a voz feminina que o chama ¢ a sua vor de baritono que a invoca devem ser captadas “juntas na mesma intengo de escuta”, Como era de Por outro lado, qu anto € algo Gbvio. Na 1» se esperar, 0 infeliz, porém, nao sabe cantar. Se soubesse ~ diz Calvino mediante a fiecio de um discurso que 0 rei ditige a si mesmo — entdo “aquilo que ninguém sabe que voce &, ou que foi, ou que poderia ser, seria revelado naquela voz". A fonica exaltada pelo canto, a voz que pressiona o ar ¢ que faz vibrar a Gvula, tem justamente uma fungao reveladora. Melhor inda, mais que re comunica, E comunica precisamente a unicidade verdadeira, vital e perceptivel de quem a emite, Nao se trata, porém, de uma comunicagio fechada no circuito entre propria vor. e o proprio ouvido, mas de um comunicar-se da unicidade que 6, a0 mesmo tempo, uma relagdo com outra unicidade. E preciso 10 menos um dueto, um chamado © uma resposta: isto €, uma reciproca intencio de escuta, ja emiss2o vocal que revela € comunica cada um 20 outro. ana Neste caso, 0 outro é uma mulher. Ela é a fonte, o inicio eo ponto de contigio para o prazer € o desejo do canto descobertos pelo rei. Divertindo-se em encenar um dueto canoro de tipo operistico, rigorosamente heterossexual, Calvino poe A prova, centio, um dos mais célebres esterestipos da cultura ocidental ‘Os aspectos misdginos sto bem conhecidos. Segundo a tradigit, ‘© canto convém a mulher bem mais que ao homem, sobretudo porque cabe a ela representar a esfera do corpo como oposta Aquela, bem mais importante, do espirito/ Sintomaticamente, ondem simbslica patriarcal que identifica 0 masculino com o ional e o feminino com o corpéreo é a mesma que privilegia ‘0 semantico em relagio ao vocilico, Dito de outro modo, mesmo “vibracio de uma gal na esfera corporea — secundi vada as mulheres. Feminilizados por principio, tanto 0 aspecto vocilico da palavra quanto principalmente 0 canto comparecem ‘como elementos antagonists de uma esfera racional masculina centrada, por sua vez, no elemento semantico. Para dizer com uma f6rmulasa mulher canta, o homem pens} Entende-se ainda melhor, entao, porque, a0 reconduzir a politica a um sistema actstico geral, Calvino realiza um gesto verdadeiramente revolucionario. O rei a escuta, com efei ‘ocupa apenas do Ambito dos sons e despreza completamente 0 semantico. Nao hd nenhuma estratégia racional no poder do rei que ouve © polifonico “rombo de morte” produzido pelo rein € teme pela propria sorte a cada ruido, Mesmo assumindo uma mprevista forma actistica, a politica no perde as suas risticas tradicionais: sinais de morte, armadilhas, ameacas, falsi- des continuam a animar a sua l6gica. Exatamente esse legado «ha tradicao permite a Calvino, contudo, proceder no seu gesto fevolucionirio ¢ levi-lo a conelusdes ainda mais inter Ja inusitadamente privilegiaca em detriment do semantico, a fesfera actistica, no conto, se desdobra, De um lado, ha © som Cconfuso, inconfivel e mortifero do reino. De outro, hii © vocilico dlstinto, revelador e vital que vem de outro lugar, de um lugar que esti justamente fora da esfera politica. O fato de esse lu ser habitado por uma mulher resulta tanto numa homenagem & 10 quanto num clamoroso resgate. A mulher em questo nao presenta o costumeiro aspecto primitivo da esfera extrapolitica, 1s sim a genuina verdade de um vocilico que obtiga a politica confrontar-se com categorias inesperadas. © observatério da tradigao androcéntrica, que interpreta a dliferenca sexual do ponto de vista do semantico, € assim substi uido por uma perspectiva que a reinterpreta do ponto de vista do vocilico. Mediante uma justa homenagem a tradicio que vé na ‘mulher uma criatura corpérea, canora € apolitica, o revoluciondrio privilegio do fénico consente a Calvino significar de outro modo fessas qualidades estereotipicas do feminino. De fato, agora cla comparece em cer lico: a qual, longe de ser abstrata como as verdades postas vio, proclama apenas que cada ser humano € um ser waz de manifestar isso com a vor ‘© outro, e sobretudo gozando essa reciproca manifestacio. Subs- se entao de uma verdade — de resto muito firma a unicidade ncialmente, trata familiar na experi © a capacidade de relacionar-se construcao do conto de Calvino, ela pode assumir grande rele porque emerge em evidente contraste com um rumor do ‘onde os sons das coisas e as vozes dos homens tém o mesmo estatuto ontoldgico de espides sonoros, Ameacado por todo e qualquer som, o rei, de fato, es 86. Sua solidao nao possui, porém, 0 timbre romfintico de uma existéncia cestranha ao sistema ¢ rebelde & sua légica, mas esta no centro dele como sua parte ¢ funcao. Toma-se, portanto, fundamental que a vor. feminina do canto, no ato de revelar a unicidade de 4 emite, mostre ao mesmo tempo o valor relacional do silico. Destinada ao ouvido alheio, a voz implica uma escuta, Py ‘hor, uma reciprocidade de fruigao. Ultrapassando os limites seu papel exclusivamente actistico, o rei é levado a se trans- ele mesmo, em fonte sonora, Surdo, por um momento, aos barulhos do reino, ele descobre um mundo nove onde as vozes humanas se comu am, acima de tudo, uma a outra, A cena se inverte: nao se trata mais de interceptar um som decodifici-lo ¢ interpreti-lo, m: que no sina de responder a uma vor tinica a nacla além de si mesma. Nao nada de ulterior Por tris dessa voz; caso houvesse, ela seria apenas um veiculo, sonoro, um signo audive um sintoma actistico. Pelo contritio, i cla se contenta em comunicar-se ch mando irresistivelmente a0 jogo a vor do outro, Descobrindo ter um corpo, uma s6 vid para viver, e ser umat pessoa tii Jo mesmo modo que qualquer outra, 0 rei escuta Mas entao, obviamer ais rei: 6 um ser humano radicado em sua condigao ontolégica fun mental. A simples lade do voeilico faz cair as coroas sem que nem mesmo se escute © barulho da queda, NOTAS PRELIMINARES AO TEMA DA VOZ — OU A FILOSOFIA TAPA OS OUVIDOS: A phoné nao depend de maneita imediata do sentido, mas prepara ao sentido o lugar onde cle se dirt, Paul Zumthor. Intradugdo @ poesta onal Cada voz “vem certamente de uma pessoa Gnica, inimitavel como qualquer pessoa”, assegura-nos Calvino. O escrito a nossa atenglo part aquilo que poderfamos ch ‘menologia vocdlica da unicidade. Trata-se 20 mesmo tempo de ‘uma ontologia que diz respeito a singularidacle encarnada de c cexisténcia enquanto esta se m: calmente, Ontologia e fenomenologia sio apenas nomes ~ demasiadamente técnicos, bem como indulgentes a certo idioleto filos6fico — para assinalar ‘como, no registro da voz, ecoa a condigao humana da unicidade. Ja ifesta vo A vow mostra, além do mais, que tal condigao € essencialmente felucional. A simples verdade do vocilico, anunciacla pelas vozes 1 mediacao da palavra, comynica os dados clementares wisténcia: a unicidade ‘aml Aliferenga sexual e a idade, inclusive a “mudanga de vo2" qu sobretuclo nos homens, sinaliza a puberdade, Haveria, entdo,m oueos motivos para fazer da voz o tema privilegiado de uma feflexio sobre o problema da ontologia. Mas justamente aqui esti 4) surpresa: faltam, extraordinariamente, precedentes respeit para este tipo de pesquisa Na produgio literati pparega estranho, o conto de Cal ppoticos textos que estimulam a indagar a voz no que ela tem de mais proprio. A estranheza, hoje, parece ainda mais evidente Iho apenas por ser inegivel um fendmeno que esti 0 alcance de qualquer ouvido, mas principalmente ao se levar em conta ‘okivel fortuna que o tema da voz apresenta na teflexaio contem- porlinea, Um estudo sobre a voz. que deseje acolher as su dle Calvino encontra no pensamento da modernidade tardia um horizonte tesrico promissor e, 20 mesmo tempo, frustrante. Por Jim lado, nunca como no século XX, e com not fas suas ciltimas déca vor. se tornou um objeto de estucdo ‘o para tantas correntes de pensamento que a analisaram terpretativos. Por outro lado, tanto 0 € filoséfiea ocidental, por mais que ino &, com efeito, um dos n diferentes horizontes simples fato da unicidade das vozes quanto a dimensao relacional do vocilico receberam, nese amplo contexto de estudos, bem pouca atengao, Sobre o aspecto que € proprio da voz, hoje como radicao € reticente Quem quer que tenha familiaridade com o estatuto disci- pplinar da filosofia podera nutrir suspeitas fundamentadas sobr | reticéncia, Ela assinala um problema que tem a ver com a {nclinagao filos6fica para a universalidade abstrata e sem corpo, 4 qual reina 0 regime de uma palavra que niio sai de nenhuma 1a de came. Calvino ajuda a focalizar os termos clemen ‘questo. A unicidade da voz é um dado indiscutivel da mente provado pelas méquinas digitais, wa experiencia, tecnologi {que tragam seu espectro; (no é um problema) O. problem huasce justamente da obstinagao com que a filosofia nto apen: despreza esse dado, mas prima entre as demais disciplinas pelo fesforgo de torné-lo insignificante. A hist6ria dessa condenagio & 2 insignificincia € ampla e complexa. Nas paginas que se seguem, tentarei expor € reconstruir, em deta via prelimi Ihes, os seus pasos. Como 6 quadro geral © primeiro lugar € ocupado por uma constatacdo to simples nental, A tradiglo filoséfica no se limita a ignorar 1 unicidade das vozes, mas ignora qualquer modo que ela se de cada um de qu unicidade como tal, de nifeste. A singularidade inimitvel er humano, unicidade encarnada que distingue cada qu um dado supérfluo, se ogi putro, €, para os gostos universalistas da osofia no desconcertante, além de epistemo- mente improprio. Por m ke que seja, isso nao basta para liquidar a importincia temitica da voz, A vor milo pode se tornar um tema indiferente part um tipo de que se inaugura na Grécia como autoclarificagao do logos e que chega no século XX, ap6s virios ¢ coerentes desclobramentos que duram alguns milénios, a tematizacio obsessiva da linguagem. Se no logos ~ termo is desestim Moriamente multivoco que, entre seus significados, compreende também o de “linguagem” ~ a palavra 4 em jogo, esti também em jogo a vor. Para resumir em uma formula, a pakavra remete aos falantes © os falantes & stud voz Embora pliusivel, nao € est porém, a via escolhida pela filo- sofia, Em vez. desta, ela percorre outra que evita a questo com estratégias bem preci A estratégia basil dluplo gesto que separa a pakivra € os falantes para assentar a primeira no pensimento ou, se preferir, no significado ment © a palav de qi ‘mesma, na sua materialidade sonora, seria expresso, significante acistico, signo audivel. A voz € te zada, portanto, como vor. em geral, como emisszio sonora que prescinde da unicidade voedlica de quem a emite, como compo- nente fonemitica da ling) agem enquanto sistema da significacivo. lca € despersonalizaca, torna-se objeto especifico que, mesmo tomando © nome moderne de remonta pelo menos to Cratilo, de Plato. A despeito Nessa forma si de uma disciplin linguistic de sua acel cracho novecentista € de seus complexos desenvol- vimentos, pode-se de fato desenterrar 0 percurso te6rico que leva a linguistica moderna a herdar do estatuto metafisico uma desatenco programatica sobre a unicidade da voz. O que, obvia- mente, ndo depoe contra a legitimidade dos estudos linguis nem sequer diminui © seu interesse, mas testemunha, de modo exemplar, como os saberes dirigidos ao fendmeno da palavra podem ocupar-se da voz sem preocupar-se com a singularidade n outros termos, a vox ~ estudada na perspectiva is, numa perspectiva que entende a rticula- de cada vor, 4 linguagem e, ainda m Jinguagem como sistema ~ torna-se a esfera geral {goes sonoras na qual a unicidade do som é, paradoxalmente, Aquilo que ndo soa, A linguagem enquanto cédigo, a sua alma semantica que aspira ao universal, toma imperceptivel, na voz, © proprio da voz. 4 unicidade plural das vozes nao passa pelo fills metodol6gico do ouvido linguistico. Bem diferente, mas produzindo resultados anilogos, é o filtro metodolégico de outra disciplina moderna de grande sucesso dirige explicitamente seus interesses para a voz. Embort iplina se articule em miiltiplos estilos de abordagem & mobilize diferentes horizontes categoriais — como também ocorre poderiamos resumi-la sob o rotulo de estudos 1 primeiramente o mérito de com a linguis sobre a oralidade. Estes estudos ‘evidenciar um tema importante: hi um campo da palavra no qual fa soberania da linguagem se rende a soberania da voz. Trata-se fobviamente da poesia. Os poetas sempre souberam disso ~ ‘em certo sentido, ninguém o soube mais do que Platao =, mas a izacio do fendmeno, a sua transformacao em objeto de uma specifica perspectiva de pesquisa, é mesmo recente. A sua data de nascimento, nas primeiras décadas do século XX, recua 10 debate sobre a chamada questao homérica ¢, particularmente, sobre o papel da épica nas culturas orais que nao conhecem {vescritura ou utilizam-na apenas marginalmente. & a partir da feflexto sobre a diferenca entre oralidade © escritura = catego- que tiveram grande fortuna ao longo do século passido ~ se origina 0 vasto fikio de pesquisas sobre o tema da voz, specifico de estudos. Devido a indo-lhe um horizonte portincia cle Homero para a génese dessa perspectiva tesrica, 0 «i, sobretudo, na centralidade da esfera actistica para o ypenho aédico, Ea vor, com seus rmos sonoros, que organiza ‘us palavras do canto épico. O semintico, ainda nao submetido 2 leis congelantes da escritura, dobra-se a musicalidade do volo. Preferido pela épica, mas operante na poesia em geral, o ambito e revelando como o lado musical dos sons crucialmente acaba dha linguagem que solicta a area corpérea do prazer Exatamente a relagio entre prizer vocilico poesia, focali- zada nos estudos sobre as culturas ortis, eleva-se a tema central de outro tipo de abordagem te6rica, no menos importante © diversificada, que solicita a refle: ‘contemporinea a aprofundar ‘© tema da voz. Ao lado da perspectiva que indaga a oralidade, insistindo na sua contraposi¢io a escrita, surge entao uma cons- telagio de perspectivas, no mais das vezes influenciadas pela psicanalise, que valorizam ulteriormente a componente pulsional pré-semantica da esfera actistica. Capaz de organizar nao apenas © canto, mas também 0 texto poético ~ ou mesmo 0 fexio em genil ¢, logo, também a es rita ~, a voz € encarregada, neste caso, de uma fungao eversiva em relagio aos cédigos disciplinadores da linguagem. Ela comparece, portanto, ndo como um meio da ‘comunicagao € da transmissao oral, ¢ sim bem mais como registro de uma economia pulsional, ligada aos ritmos do corpo, que desestabiliza 0 registro racional sobre o qual se edifica o sistema da palavra, As duas perspectivas — de resto iredutiveis a duas escolas de pensamento definidas — nto Sto coligadas e, em muitos sentidos, resultam mesmo heterogéneas. Tanto € assim que un estuda a oralidade em contraposi¢ao & escrita, enquanto a outra privilegia a textualidade como imbito que tem na escrita o seu principal paradigma, © que as faz entrar em acordo, todavia, & uma tendéncia a ido positivo, & pot musical e sedutora da voz.que a tradicio metafisica, a partir da conhecida hostilidade de Platio em relagaoa Homero, preocupou -se constantemente em neutralizar. lado mais significative da quest fo, porém, est mais wma ver no fato de que mo € apenas essa “redescoberta’, jogada em sentido antiplaténico ou, caso se queira, antimetafisico, que coloca fem acordo as duas perspectivas aqui sumariamente indicadas, mas sim uma surpreendente indiferenca pela unicidade da voz, Também no Ambito das teorias que vo sondar a corporeidade da vor, 08 ritmos quentes da sua emissio € 0 gozo da tivula © da saliva, a pluralidade das vozes nao emerge como tema digno de nota, Ainda que ligada a pulsdes profundas e 2 vitalidade da respiraclo, ainda que carregada de valores subversivos que desestabilizam os e6dligos da linguagem, a voz permanece uma voz genética, Tanto para os estudos sobre as culturas orais quanto part os estudos sobre a vocalidade dos textos no existem vozes que, comunicando-se, comunicam a sua unicidade. Existe vor: uma voz sem divida radicada na camalidade dos corpos, mas uma voz de todos ¢ de ninguém. Em comparagio com a voz da linguistica, objeto cientifico de uma andlise fria que a indaga na perspectiva do semintico para englobi-la em um sistema coetente, trata-se, sim, de uma voz que desafia justamente a coeréncia desse sistema, A atengio a ressondncia do corpo no bre, todavia, a sensibilidade do ouvido ao antincio vocilico de ‘corpos singulares. A musicalidade da palavra ou, para dizer com Calvino, o prazer de dar forma propria as ondas sonoras, evita, ‘ais uma vez, entrar em sintonia com a escuta das vozes plurais, diversas umas das outras, de onde jorra a sinfoni Nao escapa a essa regra nem mesmo outro tipo de perspectiva que, propondo-se como novidade, em tempos mais recente: Vai tematizar diretamente a voz enquanto voz. © objeto espec fico da pesquisa € individuado, neste caso, na ordem do vocal A-expressio € do medievalista Paul Zumthor, autoridade entre faqueles que ampliam o horizonte da reflexao originado dos ‘estucos da oralidade. Zumthor nao deixa de observar, entre outras coisas, 0 quanto é “estranho que, entre todas as nossas diseiplinas institucionais, nao exista nenhuma ciéncia da voz".’ Propondo luma distincao entre oralidade e vocalidade, cle define “oralidade @ funcionamento da voz. como portadora de linguagem’,e *oca- Jidade.o conjunto das atividades ¢ dos valores dla vor. que Ihe si0 proprios, independentemente da linguagem.* O aspecto original dla vocalidade, enquanto novo objeto de estudo,cliz respeito entio ‘uma andlise da vor. que prescinde do tradicional privilégio— no sobre a oralidade e sobre a textua- desmentido pelas pesqui Jidacle ~ da sua relagdo com a linguagem. E incorporado assim um amplo e recortado horizonte de abordagens que abre novas vias de interpretacto para o fendmeno da voz, possibilitando a srvencao de campos de pesquisa miltiplos € heterogéneos. O telenco dos saberes forcados a essa intervencao compreende, entre ‘outros, a filosofia, a antropologia cultural, a historia da mtisica, 1 foniatria, psicologia, a cibernética, a etologia, bem como os testudos sobre a oralidade e sobre a comunicagao.’ E justamente 4 vor como Vor, nas suas miltiplas manifestagoes, a orientar um: Investigagao que recupera, cruza, mas também poe em crise, a ‘especificidade dos varios canones disciplinares. Crucialmente, também nessa perspectiva, a fenomenologia vocalica da unici- ducle permanece, porém, substancialmente desprezada. Mesmo on liberando-se do dominio da linguagem, a voz da vocalidade insiste em apresentar- ¢ como uma voz em gertl. Preciosos em muitos aspectos, os estuclos dedicados & vor lidade 0 sto, sobretudo, pela evidente identificagio de um né teorico fundamental: aquele que liga a voz a palavra, A voz € som, no palavra, Mas a palavra constitu o seu destino essencial. O lado fundamental de qualquer investiga sobre a ontologia da voz — sobre um qual comparecem em primeiro plano justamente a unicidade a relagdo — consiste em refletir, sem preconceitos metafisicos, sobre esse destino, O preconceito fundamental diz. respeito tendéncia a absolutizi-lo, de modo que, fora (0 insignificante. Se 0 registro da palavra se toma absoluto, talvez identificado com um sistema de linguagem do qual a voz, seria uma funcao, € inevitivel, dle fato, que a emissi0 vocilica nao enderegada 4 palavra nao seja nada além de um resto, Trata-se, pelo contrario, de um excedente originario. Em outras palavras, 0 ambito da voz € constitutivamente mais amplo que © da palavra: ele o excede. Reduzir este excedente a insensatez ~ isto é, 0 que resta quando a voz nao est intencionaca a um sentido que se quer dominio exclusive da palavra ~ 6 um dos vicios capitais do logocentrismo.\Esse vicio tra dente em falta. Mais que um destino essenc vor, desse modo, uma linha divis6r a drastica alternativa entre um papel acess6rio de vocalizagio los significados mentais ea conducdo a um reino extraverbal de emissdes insensatas, perigosamente corporeas € ainda sed toras © proximas da animalidade. Em outros termos, a tenaz do logocentrismo metatisico nega radicalmente & voz. um horizonte proprio de sentido que incida sobre o sentido mesmo de st destinagao A palavra. Compreende-se assim por que se tor crucial a perspectiva sinalizada por Zumthor que, indagando “o conjunto das atividades ¢ dos valores que sio préprios da voz, independentemente da linguagem’, recorta para a vocalidade um Ambito de reflexio autOnomo. E se compreende também por que, entre as duas grandes raizes do Ocidente, a grega e a hebraica, seja sintomaticamente a segunda aquela que iri propiciar 0 desafio que a ontologia vocilica da unicidade langa contra as reticéncias estratégicas do logocentrismo. se tome um res capaz de produzir > objetivo do livro que voces fio — que, no fund, cestao lendo ~ é ambicioso, mas simples. Em termos elementares, ele consiste em pensar a relacio entre voz. € palavra como uma relagio de unicidade que, mesmo soando principalmente na voz que ainda nao é palavra, continua a ressoar na palavra a que a voz humana é constitutivamente destinada, O comunica lico da unicidade, ainda que exclusivamente inerente ao registro do som, é também essencial a essa destinagdo. O sentido - ou, ‘querendo-se, a relacionalidade e a unicidade de cada voz. que constituem o niicleo desse sentido ~ transita da esfera actstica a palavra. Exatamente porque a palavra tem uma consisténcia sonora, falar é comunicarse na pluralidade das vozes. Dito de ‘outro modo, 0 ato de falar € relacional: isto que, nele, sempre aacima de tudo se comunica, para além dos contetidos especificos ‘que as palavras comunicam, a relacionalidade ‘© material das vozes singulares. Basta para isso que se chegue a um acordo sobre o significado do termo palavra. Devido a um processo complexo no « penha um papel nada secundirio, para o Iéxico moclemo, palavra mesmo um nome multiveco € ambiguo que frequentemente indica a ideia genérica da esfera verbal, bem lacio sonora, sempre contingente e contextual, de alguém e dirigida 20 ouvido de outro, O resultado ficagao de um fendmeno fo Sbvio quanto essencial: a palavra existe porque existem os falantes. A surdez estratégica quanto ‘to comunicar-se plural das vozes depende precisamente des ecisio, por assim dizer metodol6gica, de prescindir da mate- idade elementar dese fendmeno,|Sugerido pela metafisica e ‘apaz de obter enorme sucesso em varios Ambitos disciplinares, o ‘método consiste justamente em tematizar a palavra desprezando 4 vocalidade dos falantes. A unicidade das vozes permanece ‘ento inadvertida porque, metodologicamente, nao soa, Desvin- colada das gargantas de carne daqueles que a emitem, a palavra sofre uma desvocalizacao primaria que Ihe deixa apenas 0 som despersonalizado de uma voz em geral Para contrastar os efeitos dessa desvocalizacio, € necessiio addotar outro método; um método que se inspire mais no conto de Calvino do que nos textos da hist6ria da filosofia, Fiel & fenomenologia vocilica da unicidade, ele consiste em escutar a avn enquanto ela soa na pluralidade das vozes daqueles que, » a cada vez € dirigindo-se um ao outro, falam. Em certo sentido, segundo método funciona ento como uma inversto, ou mesmo como uma desconsiruca0, do primeiro. Sintonizando- -se com © registro fenomenoldgico da escuta, ele investiga a palavra na perspectiva dla voz em vez de fazé-lo na perspeetiva da linguagem. Entendida como algo que sai da boca de alguém, a palavra, mais do que lugar da expresso, € 0 ponto de tensio centre a unicidade da voz ¢ o sistema da linguagem. Privilegiar um ou outro polo altera radicalmente os eixos interpretativos desse «quadro te6rico. Aparentemente, trata-se de um gesto facil, de uma imples inversio de petspectiva, mas o amplo leque dos estudos contemporineos sobre a voz testemunha que a Mesmo a tematizacio dla voz. como voz ~ caso da “vocalidade” = nao garante nenhuma restituicio de sentido ao fendmeno da unicidade vocilica se nao for acompanhadla pela perspica pela paciéncia de abater-se o filtro metalisico que ha milénios bloqueia a escuta. Além de reivindicar uma independéncia da orem do vocalico ei ‘lo a linguagem, € importante proto- colar as estratégias que permitem que © polo da linguagem, ou melhor, a sua absolutizagao, neutralize a pluralidade das vozes que constituem o outro polo da palavra. Dito de outta maneira, © prdprio da vor. nao esti no puro som; est mais na unicidade relacional de uma emissio fonica que, longe de contradizé-lo, anuncia € leva a seu destino o fato especificamente humano cht palavra, Segundo Roland Barthes — cuja especulacio acabou se tomando ponto de referencia obrigatorio para as perspectivas voltadas part a vocalidade, a textualidade © a escritura ~, 0 proprio da voz. estaria por sua vez naquilo que ele chama 0 seu gra. Mais que a estera do sopro ¢ da respiracio, ela diz. respeito 2 materialidade do corpo que irrompe «la garganta, li onde se fora o metal fOnico"® A ateng cavidade oral, lugar erdtico por exceléncia. O.grdo da voz conceme, sobretudo, 10 modo como, por meio da volipia cla emissto sonora, a voz trabalha com a lingua. Interessscdo no canto como lugar primirio da tessitura fonica © musical de onde germina a lingua, Barthes mio deixa de notar que “a vor, corporeicade do falar, situa-se na articulagao do corpo e do discurso”, no ponto de seu intercdmbio’” A tarefa da voz é funcionar, entao, como tramite, ou melhor, como ramal entre corpo € palavra. Sintomaticamente, porém, no horizonte de Barthes nao se trata de uma voz em que a unicida ater relacional vém em primeiro lugar. © grdo se refere a Luma fisica da vox. entendida como “o modo como a vor esté no corpo — ou como 0 corpo esti nat vor",* mas tanto a vor quanto ‘© corpo continuam a ser propostos como categorias gerais ou, no espirito da especulagao barthesiana, como categorias de Jum gozo despersonalizante em que, juntamente com o sujeito © 0 individuo, dissolve-se a unicidade encarada (aliés, nunca ‘assumida como tema) de qualquer existente concreto. Ao situar-se {1 voz como articulacao entre corpo ¢ palavra, impede-se que ea, mesmo tendo na palavra ~ na lingua ~ 0 seu destino essencial, urregue a unicidade e a relacio como dons constitutivos desse destino, Em outras pakavras, € verdade que Barthes, so investigar © tema da voz, encoraja a andlise a focalizar um vocilico que = Jonge de ser simplesmente pura sonoridade ou, pior ainda, Jum resto ~ joga a sua poténcia na referéncia 2 palavra, Mas € jambém verdade que, a0 mesmo tempo, ele desencoraja qualquer perspectiva que individualize na unicidade e na relagio 0 sentido fundamental dessa poténcia, | Sintonizar-se com a sonoridade da palavra € enfatizar 0 goz0 corpreo, o canto da came, a pulsio ritmica da qual jorra nao | 6, de fato, suficiente para salvar a propria palavra do abraco \ montero do logocentrismoy A maquina metafisica que nega inetodologicamente 0 primado da voz sobre a palavra deve set esmontada no apenas transformando esse primado em destino fessencial, mas tendo sempre em mente que it estratégia voltada 4 neutralizar a poténcia da voz é a mesma que fez permanecer Inudito © acontecimento “a varias vozes’, diversas umas das ‘ultas, do fendmeno da palavra, Tal incapacidade de escuta Jem muitas © perniciosas consequéncias. Ela faz. com que, por ‘exemplo, as filosofias que pretendem valorizar 0 “didlogo” € a *eomunicagao” permanegam aprisionadas em um tegistro da Jingunagem que ignora o carater relacional ja acionado pela simples omunicagao das vozes umas as outras. Tematizar o primado dat ‘yor em relacao & palavra significa também abrir novas estradas pura uma perspectiva que nao somente pode focalizar uma forma primiria © radical de relagao ainda mio capturada pela ordem dy linguagem, mas que tem capacidade de determiné-la como polacdo entre unicidades. Nada mais do que isso é, de resto, 0 sentido que a esfera vocilica entrega a palavra na medida em que 4 palayra é o seu destino essencial. E se trata, obviamente, de um sentido que, por meio da palavra, transita cla ontologia & politica, aL estreitas, a ressondncias demasiadamente proximas a0 corpo feminino. “Uma implicita associacao, ainda que nebulosa, entre a figura da mae © © trabalho oral do poeta" norteia a critica platonica a Homero. 2 O DESTINO DAS SEREIAS Mas se vot tira 4 minha vor — disse a equena sereia — 0 que me nesta? Hans Christian Andersen. A peguena sereia Nascida na Grécia, a Musa passa para a tridicao ocidental ‘como fonte inspiraciora de um poetar que, mesmo confirmando © papel essencial da phoné, esmorece seus efeitos sonoros 40 atividade canora da épica: nao mais praticado em viva voz, 0 canto do poeta se torna, na civilizacao da escrita, uma espécie de metifora que enfatiza a musicalidade do verso. As Sereias cabe, no entanto, um destino diferente. Figuras monstruosas que duplicam em muitos aspectos a fungao da Musa, na Odisseia elas narram cantando, A exemplo do que ocorre com a deusa invocada pelos poetss, © canto das Sereias & um relato que diz muitas € belas coi eventos troianos € sobre 0 mundo dos herdis. Também em sua ‘arraco canora, tal como acontece com a Musa, a vocalidade, ‘mesmo estando em primeiro plano, nao anula a palavra, Porém, por izes que no sera dificil investigar, historia do imaginatio ocidental decide nao levar isso em conta, Na tradicao que vai dos latinos aos nossos dias, as Sereias tendem a encarar 0 apelo letal de uma pura voz harmoniosa, potente e irresistivel, que confina com o grito animal. Metade mulheres, metade animais, clas representam um vocilico que ainda nao se “elevou’ a esfera humanizadora da phoné semantikeé. Isso nao encontra respaldo nas reias descritas na Odisseia, muito embora, sintomaticamente, 126. exista ja no texto homérico um ou outro elemento a arrasti: na diregio do canto sem palavras de seu futuro destino. E ¢ quem fala das Sereias para Ulisses. “Escuta as minhas palavras’, diz. a sedutora ao herdi. E logo anuncia 0 tremendo. perigo: “na tua viagem pelo mar, itis as Sereias, que a todos os homens seduzem com seu canto suave” (thelgousin aoidé)! Tratae -se de uma sedlucaio mortal, A margem proxima a elas esti repleta de esqueletos € de cadiiveres em putrefugao. Logo suberemos que essa morte coube a pobres navegantes, enfeitigados pelo ‘canto, que se arrebentaram nas rochas. Mas, clo modo como conta ©, poderia parecer que tudo era simplesmente efeito da voz harmoniosa das Serekas, pura sonoridade vocal, modula sem palavras. Ulisses, de fato, € alertado contra a voz (phthogghe) inresistivel que proporciona prazer a quem escuta, Circe nao. cer s- Todo, © pathos se concentra no circuito mortalmente sedutor de voz € escuta, som € ouvido, Monstros canoros, mulheres teriomérficas de voz potente, as Sereias carregam um prizeractistico que mata os homens. Circe, entao, aconselha o her6i a dissolver cera perfue macla de mel nas orelhas de seus companheiros € a inciti-los a remar, Uma vez ineapazes cle ouvir, eles ultrapassariam incolumes: a ilha das fatais cantoras. Se, por acaso, Ulisses desejasse escutar at vor das Sereias ~ supde, ou melhor, sugere maliciosamente Circe =, ele deveria ser fortemente amarrado ao mastro do navio € manter os ouvidos livres para gozr o canto, A alguém, portanto, seria concedido ouvir € apreciar a voz das Sereias sem morrer por isso. Poderiam ser varios os homens amarrados « mastros, ‘com ouvidos desimpedidos e timpanos disponiveis. Com efeito, (© mar esté calmo, nao ha ondas nem vento: bastariam poucos arinheitos aos remos. No entanto, s6 um aproveita: o homem, “rico em asticias’, o grego de inteligéncia aguda, inventor de expedientes, 0 campedo de discursos persuasivos. Em suma, la razio. ito se faz de rogado, Descrevendo aos companheiros aventura, nao hesita em definir como canto divino, (hespesiaon) a vor das Seteias* O monstruoso, 0 divino & portentoso caminham juntos. Quando a itha maldita se aproxima, de fato um deus detém as ondas; na calmaria, um silencio irreal acolhe @ nave. Sob 0 sol forte, a cera pode derreter com facili dade, as cordas sto reforgadas € logo o trabalho estara terminado, 128 Surcios e suados, os homens esto remando; Ulisses, todo ouvidos, eesti amarrado a0 mastro com nés bem apertados. Muito esperado pelo hersi, 0 canto comeca de repente. As Sereias o entoam quando o barco esti “ao aleance de um grito’.* Coerentemente, clas medem a distancia com © metro da voz, a0 com 0 do olho (se bem que, como veremos, elas também tém uma visio aguda), A surpresa, porém, é outra, Os monstros canoros nao se limitam «1 emitir de sua boca (stoma) uma voz que, como a da Musa, tem tum *som de mel” e se identifica com a propria voz de Homero.* las cantam palavras, vocalizam historias, narram cantando, E sabem_o que dizem. Si sbemos lidmeri® Tal Como oconria com a Musa, lingua homérica toma a confirmar que ver ¢ saber coincide. A semelhanca com 8 Musa é ratificada com igual preciso. As divinas cantoras narram musicalmente as coisas que viram acontecer sobre a planicie de Trofa e tudo o que se desenrola sobre a terra, Sabem tudo porque. \tegralmente e em detalhe n tudo, O que as distingue da Musa, além do corpo monstruoso, é principalmente uma voz aaudivel para ouvidos humanos. Simples marinheiros podem ouvie quilo que a Musa, por sua vez, reserva ao poeta. a sabedoria, de fato, € total: “nds tudo Seduzido pelo canto narrador, Ulisses obviamente se agit Seu coracio (her) deseja ouvir. Ou seja — visto que livres ja the permitem escutar -, deseja ouvir por 1 Para sempre, tanto a voz belissima qu lato. orelhas tempo, too ‘Acenandlo- ches com os olhos"® = forcado a recorrer & linguagem gestual (logo ele, campeao da palavra argumentada ¢ persuasiva, rei do Jogos em versio astuciosa) -, 0 her6i convid os companheiros solti-lo das cordas,/Deseja ir até o fim: deliciar-se e morrer, Mas eles, de acordo com 0 programado, apertam os nds até que f distincia se tome suficiente para deixar inaudivel o canto, quando somente entao, retirada a cera dos ouvidos, os remadores liberam o prisioneiro. ‘Tero 0s marinheiros surdos calcukido no olho a distancia? Uma careta mais eficaz de Ulisses os tera convencide? Terio acre-| | dltadlo em um gesto combinado com o pouco confiavel capitio, rico em astticias”? Isso 0 texto nao nos diz, e a narrativa homérica em, naturalmente, pressa em passara outra aventura. Aquela que atba de se concluir, ainda que breve, permanece, no entanto, ‘como a mais memorivel. Pronto para se sedimentar no imaginario =. coletivo dos séculos que virlo, o episédio das Sereias entregat © canto feminino 2 cantilha ocidental das grandes inquictagdes, Que se trata de um canto feminino nao ha divida. Por isso inquieta em grau maximo. Inquieta, porém, de um modo singular se comparaclo aos esterestipos dle género elaboradlos pela tradigao ‘ocidental. Homero quer as monstruosas cantoris oniscientes como a Musa e, em iiltima anilise, como duplos de si mesmo no ato de narrar cantando as historias de Troia. Nao hi dtividas sobre a orientagio “sexual” da poética homérica: Fonte da épica, canto feminino esta como garantia da verdhide do relato e de seu poder sedutor, seja vocal ou narrativo, Nao se trata de pura voz, potente € melodiosa, agucla ¢ animalesca, pré-humana ~ divina, em todo caso, Trata-se, sim, de uma vor. narrativa, isto 6, de um canto no qual a vocalidade ¢ a oralidade estto conjugadas na musicalidade do ato, © importante, para Homero, é que a épica proporcione um deleite irresistivel, seduza prazerosamente os ouvintes, ainda que nio de forma necessariamente fetal. Também por isso, a Musa € uma figura muito mais adequada que as Sereias para representar a fonte da pica. O seu canto nao mata: mesmo que, pelo fato de s6 0 poeta poder ouvi-lo, alguma coisa exista nele de perigoso, a ponto de a competéncia poétiea dever filtri-lo € traduzi-lo em canto humano ¢ humanamente audivel, Entre a “Musi ¢ as Sereias — ambas oniscientes em ver, saber e, logo, em narrar todos os eventos troianos ~, a diferenca, além da destinacao actistica, refere-se aos efeitos letais do canto. O canto das Sereias é audivel por todos os mortais que, desventurados, aproximam-se de sua ilha, © canto da Musa é audivel somente ao poeta que, privilegiado entre os mortais, nao morre ao deixar-se dominar por ele, podendo assim reprocuzi-lo, Em certo sentido, ele faz experiencia de Ulisses: goa do canto divino sem perecer. AO contririo do Odisseu, porém, o poeta se faz de trite vocal para levar aos humanos 6 ~ agora suportivel — prazer. Resta © fato de que a fonte primeira desse prazer € feminina, Como ocorre a cada ser humano que um dia veio ao mundo, a primeira voz uma voz. de mulher. Homero tem essa e outras az0es para querer feminina a vor do canto. O importante é que ele a quer também. narradora, articulada em palavras, plenamente semyintica. Afinal, niio est ‘em jogo a vor na qualidade dle voz, mas sim uma vor particular, voz canora da épica. Resulta, entao, ainda mais significativa a 130 diferente recepeaio que coube as duas figuras homéricas ao longo dos séculos. Como ji foi assinalado, nas vicissitudes do imagi Nirio ocidental os destinos da Musa e das Sereias se bifurcam. A primeira continua a “inspirar” versos a poetas que, a rigor, nao cantam mais, As outras tendem a perder a palavra e a se trans- formar em puri vor, canto inarticulado, vibragao acdistica, grito Gragas aun s, tem i ‘uma historia menor ~ confiada 2 fabula e 2 lenda ~em que a pura vor. prevalece sobre a palavra e a contrasta Imente, trata-se do reverso de uma hist6ria maior na qual o puro semantico, ou seit, um pensamento videocéntrico € desvocalizacdo se opde poténcia sonora da palavra, Na iconogral a da hist6ria menor, a maior parte das Sere ainda canta, 10 narra. Nem sabem sudo como suas antigas Maes. Sinuosas, despenteadas e pisciformes ~ como os monstros homéricos nunca foram —, elas seduzem os homens por seu canto, © por sua beleza, O fascinio da voz, tornado ainda mais inquie- tante pela auséncia de palavras, € o apelo aos homens para o 4g070 letal, nao raro abertamente erético, orientam ainda a cena marinha da sedugao, de tal forma que o resultado das metamor- ' historicas das Sereias homéricas acaba por coincidir com cle que o discurso de Circe parecia preanunciar. feminina que seduz até a morte e que nao tem pala Como se sabe pel s pinturas vasculares, 0s gregos imaginavam as Seteias como mulheres em corpos de passaros. De tronco esfévico © com patas dotadas de gurras, bonitas certamente fram, Ficavam sobre os escolhos ou sobre a mangem herbosa, ‘mas, embora proximas 20 mar, niio companihavam nenhum parentesco com os peixes. E dbvio que, por terem portentosas Competéncias vocais, a relacao imediata era com passaros, € ndo ‘com peixes, Quem é mudo como um peixe nao pode certamente se prestar a hibricar um monstro canoro. Muit ppissaros, como é sabido, can espécies de tam, ¢ algumas sao particularmente ¢lebres por sua incomparivel musicalidade, Conta, por exemplo, Platao, no mito de Er, que o cantor Tamiris escolheu reer em ui nar rouxinol para experimentar em plenitude a felicidade de sui arte. lif, ndlo Aquelas dos abismos. A recepgio do mito, toda Seteias a0 mar. A mudanga de morada metamorfose pisciforme € acompanhada pela si ‘em mulheres belis I processo corresponde, muito signifi tivamente, a afirmacto de um dos modelos mais estereotipados do género feminino. Trata-se do padrio segundo o qual, em suia funcao erética de sedutora ~ ou, como se costuma dizer, de objeto do desejo masculino ~, a mulher surge antes de tudo como compo € como vor inarticulada, Deve ser bonita, mas nao deve falar, Concede-Ihe a emissio de sons agradaveis, vocalizagbes assemanticas, gemidos de atrago © de prazer. Uma vez que a voz vem do interior do corpo, sai da boca © penetra no ouvido transformacao, de quem escuta, quadro favorece o reforgo mito de corpo € voz, O fato de que a voz seja puro vocalise, que nada signifique, assegura-the também um estranhamento em relacao a dimensiio semantica do fogos, incrementando a natureza feminina da propria voz. Em outras palavras, na ordem simbdlica patriarcal, notoriamente dicotémica, que concebe o homem como mente € a mulher como corpo, a cisio do logos em pura phoné feminina ‘© em puro semantikon masculino resulta coerente com o sistema © 0 confirma. ale, em geral, para a representago estereotipica das humanas, mas se torna ainda mais verdadeiro, ou seja, simbolicamente perfeito, na longa reelaboragao icOnica do mito das Sereias. Narradoras oniscientes, as Sereias de Homero apresent im, de fato, um lado inadmissivel para o sistema andro~ rico. Flas usurpam a especialidade masculina do Jogos. No caso das Sercias, obviamente, trata-se de um Jogos um tanto parti cular, isto é, de um logos postico, narrative, cantado © musical que conflita com o Jogos insonoro da filosofia. F, todavia, trata-se sempre de um Jogos no qual a dimensio vocal do canto acom= panha a dimensdo semantica que pde um saber em palavras. Tais dimensdes, como Homero nao cessa de enfatizar, tem ainda um cariter divino e extraordindrio: a sua eficicia ¢ extensio superam as capacidades humanas. O efeito sedutor se refere a ambos 08 aspectos e deriva, aliés, de sua substancial indissociabilidade: esta € nada menos que 0 segredo da épica, sua poténcia hipnotica, seu papel soberano numa cultura oral. Quando essa cultura oral € deixada para tris, os desdobramentos da tradicao que tira a palavra das Sereias, deixando-thes somente a voz, cumprem um xgesto simbélico decisivo. A antiga figura roubada muda radical= mente de signo: as Sereias sobrevivem no imagindrio, mas nao Slo mais aquelas de Homero. Exaltada por uma voz que € pura voz, a sua corporeidade passa a dominar uma cena em que nenhuma forma de Jogos chega a perturbar o esterestipo do feminino. De resto, tragos de uma corporeidade pronta a invadir a cena s Sereias cram presentes ja em Homero. Afinal, a0 contratio das Musas, as Sereias sto monstros tremendos e mortiferos. Cria- turas hibridas, nas quais a mulher se mistura ao animal, elas so rodeadas de cadveres de marinheitos, obviamente homens. Seu )pecto repelente tem inclusive uma fungdo precisa na poética homérica. Ble certifica que 0 fascinio vem some do canto, fou seja, da competéncia épica. A obra sedutora nao tem nada a ver com a beleza das divinas cantoras, € © poeta faz. questio de enfatizi-lo, Nao obstante, isso nao impede que justamente seu iter monstruoso cesperte os efeitos incontroléveis © notoria- mente ambiguos que Sio tipicos do monstruum. Como diz 0 seu étimo latino, monstruum é tal exatamente por se mostrar, se oferecer & visio: esti ali para ser visto. A sua atrai irresistivelmente © olhar. Tra anomalia corporal -se de um fendmeno bem conhecidlo das faces mais sinistras da cultura popular que por séculos imperou nas barracas das feiras. Terrivel ou magnifica, a forma que transgride os cdinones do que € familiar captura os olhos € € por el 's consumida com horrendo deleite. Mantendo firme 0 fascinio visual do monstruoso, © imaginirio ocidental sobre as cantoras home bastante cas pode jogar com uma modi imples: tornar bela a parte feminina do monstro adaptar-lhe um corpo sinuoso de peixe. Com as pernas invagi- lus em uma faixa prateada e curv eentao rumo 2s Agua em tomo 2 ilha originalmente ja havia. A aventura de Ulisses era uma historia de marinheiros bem adequada as Futura: hist6rias de pescadores narradas por mil lendas. até provaivel {que 0 liquido amnictico tenha imposto o seu inevitivel icone feminino as leis androcéntricas do imaginario.* Ap6s a primeira 02, a primeira dguar a figura de uma mae, em transparéncia, parece conduzir o mito, desde o inicio, a uma direcao bem deter- minada, Por vezes, isso € até demasiacdamente explicito, Nao sao poucas as versdes populares da lenda nas quais a sereia abraca 0 pescador e, em meio a paixao do tiltimo beijo, arrasta-o consigo para o fundo do mar. Nascido das 4guas de uma mulher, ele volta 4 dgua para morrer. Ea conhecida e velha Fibula patriarcal de Eros e ‘Fanatos, com corpo mateo que funciona como berco ¢ tumba: origem € fim do corpo vivo. Ulises nto quer mesmo morrer de prizer? Nao foi 0 n6 bbenigno da sedugo épica que 0 salvou in extremis, zamarrando-o firme ao mastro? Ha um célebre quadro de Magritte? que repre deitada a bei sna ul Sere at dt praia, Acima dla cinturt € um peixe, abaixo € uma mulher. Assemetha-se a um peixe ao qual foi enxertado, ‘um corpo feminino. O efeito € chocante. Apagando o elemento humano do rosto, a inverse procluz uma figura na cyexal 1 €oOmPO- nente animal tende a prevalecer. F, no entanto, nenhut pintor soube olhar para o destino milenar da sereia mais queMagrtte. Trata-se do destino que a abandona sobre a sua Cleim pri, Ki para onde é arrastada pelo mar do imaginario ociclenol através das ondas que a distanciam de Homero para, enfinn, mit A sereia de Magrite, de fato, nao canta, A suit bea & muda. Nio respira sequer: € um peixe voluptuoso, ford gua, agonizante. © piibis e as pemas nus, um acencs dequtdil © fas coxas redondas conseguem ainda provocar exe-itago sextal ». A historia do imaginirio que a fez pitt € the deu um aspecto sedutor mesmo nao ousando dec Lara, queria yente isto: um corpo de mulher a ser possu silo, m COPE feminino para desfrute do homem, que nenhumx pate pre- senta melhor do que o triingulo escuro entre as pe=rnasCom um pouco de malicia, pode-se até entender a seriedade= dogoblema: no fundo, as fantasias erdticas Sobre as sereias Scamp tiveram certa dificuldade em abordar 0 cetalhe “téenico” «Jo «ite. Em razio disso, a bela Melusina tinha, por exemplo, <1 pat inferior permutivel: a5 vezes era pisciforme, mas, quineto sesirio, tor eiramente mulher. A sereia de Magritte ten potanto, © mérito de ilustrar a conveni@ncia de uma decissao imlmente drdstica. Se 0 monstro € classicamente um hibr-idot % Para desfruté-lo € preciso renunciar a uma parte, que esse rstcie 20 rosto. Sem mai beijos nem seios a serem acaricsiade & sereia tem agora uma face de peixe. Ou talvez, como 0 CLelfin(delphis) que tanto se Ihe assemelha, alude a centralidades qeut vulva (delphus), 0 que poderia também significar— com. cy syntim 0s mais mis6ginos — que aquilo que identifica 0 g@=neneninino, ‘© seu proprium, é a parte do Corpo abaixo da cin veurst @bega, ainda mais como sede da inteligéncia, nao costuma figurar entre fcas necessirias. suas caractet palavras nem gritos. Perdida também a antiga memoria do canto, assim morre modermamente a sereia. Mudas como no quadro de Magritte, mas por motivos bem diferentes, so as Sercias imaginadas por Kafka. Coretamente homéricas, com rosto de mulher e corpo de piissaro, elas esto a espera de marinheiros, prontas para mati-los com seu terrivel m homem arrogante como Ulises, a estampar no rosto artimanhas”," todavia, elas nao ia inocente por sua esperivam. A surpresa as emudece. Era de todos sabido ~ escreve Kafka ~ que nenhuma cera podia bloquear @ voz penetrante das Sereias, nem qualquer amarra serviria para resistir a forca da paixio suscitada pelo ji mesmo © em suas pequenas astticias, Llisses, contudo, enfrentou o desafio com resoluto otimismo; e, concentrando todo 0 seu pensamento sobre 0 ridiculo expe- dente da cera € das correntes, venceu 0 obsticulo. O herdi, de fato, mostrou tao arrogante © humana felicidade no rosto que as Sereias se esqueceram naquele instante de qualquer canto. Embasbacadas, elas se calaram, Ou talver. acreditassem “que 86 0 silencio poderia levar a melhor sobre aquele adversirio’. LLlisses, “Se assim se pode dizer, nao ouvit o silencio delas, resguar- aereditou. que cantassem e que somente ele estives dado de ouvi-las". Obliquamente, ele viu as gargantas te bocas entreabertas e pensou que ar ao seu redor vibrasse de inauditas melodias. A ideia de uma surdez.privilegiada, precioso antidoto contra a letalidade do canto, fez. crescer seu orgulho. Sem nenhum suspiro, scus olhos satisfeitos continuaram a olhar para frente, capturados por uma imensa distineia que jt nada sabia das Sereias Para Kafka, Ulisses € 0 homem do olhar. Nisso esti a sua potencia, A interpretacio ¢ facilmente suportada pelas pinturas em ‘vasos antigos nas quais, amarrado ao mastto do barco € retratado de perfil, Ulisses olha decididamente para frente e para 0 alto, de modo que pode ver as Sereias somente de soslaio. Na genial prigina kafkiana, a interpretacio quer também sugerir, todavia, que © herdi pertence & ordem da visto tanto quanto as Sereias pertencem a ordem da voz. Trata-se da visio, faminta de novas seas 135 aventuras, de quem olha para a proxima meta; mas também da visio que, como 0 pensamento, ndo percebe as coisas a0 redor € se projeta em outra direcio. Tudo gira em torno do olhar de Ulisses, que € carregado de mitiplos significados. O mais imediato consiste na expresso de dlegria —em virtude da crenga na eficicia de su: “artimanhas” — que as Sereias captam no rosto do her6i. Como enfatiza Kafka, elas si0, porém, sobretudo capturadas pelo “reflexo luminoso nos olhos imensos” do audaz desafiante. A légica insonora do olhar, portanto, engloba inelu= sive 08 monstros canoros em seu sistema: as sedutoras terminam seduzidas. Olhando para ele, que olha para outro lugar, elas calam porque ficam encantadas e desistem de seduz da visto vence a esfera da voz e a reduz.ao silencio. A esfera, Vencedor do desafio, Ulises consegue derrotar nao somente: (© canto das Sereias, mas também. uma arma imprevista ¢ ainda mais terrivel, nunca antes enfrentad pelos homens: o seu emude- cimento. Um mortal comum, vindo exatamente para Alas.e prevenido por meios idGneos para no sucumbir ao prazer, nal tetia suportado 0 silencio delas. Iria morrer, sem dlivida, menos, pela decepcio do que pelo sentimento de ter vencido com sua linica forga: um tremendo ato de orgulho “que tudo arrasta © a que naa de terreno pode resistir". Diluindo a poténcia titinica lo orgulho na Iogica das pequenas astiicias, Ulisses, no entanto, wz de Virar qualquer situagao em seu proveito, ele neutraliza a arma do siléncio, assim como estava pronto para neutralizar a do canto. O extremo risco se transforma za satisfacao por um merecido privilégio. Nada o “distrai” de sua autoestima, ¢ ele vai adiante, em direcao & proxima aventura, revigorado na alma e ainda mais confiante em seus truques. Com sutil ironta, Kafka acrescenta que tudo poderia ter sido uma inteira comédia, Ulisses 6, no fundo, um campeao na arte de fingir. Ele notou que as Sereias silenciavam, mas, esperto como ‘uma raposa, fingiu nao perceber. A terrivel arma do siléncio nao alcangou seu efeito. Pelo contrario, provavelmente ele pensou que fosse um mero blefe das sedutoras, a0 qual respondeu com mais um dos seus proprios ardis. A consequéncia mais curiosa & que, dessa forma, Ulisses enganou até os deuses ¢ todo o mundo homeérico, 0 qual continua a narrar sobre seu encontro com as Sereias ¢ Sobre o prazer que ele experimentou, Por obra do astuto herdi e de seu talento para a comédia, no stbemos se as Sereias a dle fato cantaram ou se ficaram em silencio, Os companheiros aos remos, surdos com a cera, nao podem testemunhar. O intré capitio, em meio a piscadelas, agitagbes e contorgoes, enganou-os também, Claro, podemos contar com Homero. Mas Homero no se limitaria a referir, neste epis6dio das Sereias, uma parte do relato autobiogrifico de Ulises? Quem, se nao as Seteias, poderia vel silencio? narrar veridicamente a respeito de seu impro Pré-datando a orige ‘Theodor Adorno © Max Horkheimer enxergam na Odisseia ‘a descricho da érbita onde o sujeito se subtrai a do Iuminismo ao epos homérico, Frankfurt localizam no personagem de Ulisses. Representagaio de m sujeito nao “ainda perfeitamente idéntico ¢ compacto”,!* que ‘esti apenas em processo de se formar como autoconsciéncia, 0 herdi encarna *o itineririo do Si através dos mitos”.!* As potent arc evocadas pelo mito, so entao aquilo a qu ‘0 sujeito racional se ope, mas so também, e to mesmo tempo, atfiando a natureza para domind-la, \s da nature, que nele ain sob o controle vi mesmo, que funda o seu Si" tem ainda ouvidos para a nostalgia apenas para Ulises, Mais do ida de ingénuos marinheiros, os a Em certo sentido, as Sereias que corpos sem apodrecem na illha das a eres que auloras evocam 0 risco mortal do sujeito, a natureza da qual ele provém ¢ contra a qual se edific: Esse risco mortal é, contudo, inevitivel part 0 sujeito. Justa- mente porque est sedimentado em seu trabalho de autocons- ug incipiente subst no tenta percorrer um: dla ilha das Sereias. E Horkheimer, nio tenta sequer confiar apenas na forga dit razalo contra as prepotent muito frigil para tum embate direto com poténeias que carrega internamente, 0 Si recorre a uma racionalidade de tipo menor: a asticia. Encontra os cexpecientes para se distanciar da natureza, mas a ela “permanece, Ao = como uma espécie de estigio pré-histérico de sua jonal ~ 0 Si nao pode eviti-lo, Ulisses a diante ‘como anotam diligentemente Adorno € diferente daquela que pas Forgas da natureza, Ain como ouvinte, a \sujeitado”." Aliés, no momento decisivo, procura se liberar dos vinculos por el mesmo criados e, concentrando-se no chamado das Sereias, retornar A sua pré-hist6ria. A enfrentar a seducao desse retomo, nao é a razio em sentido pleno, mas sim as técnicas de salvagio que elt preventivamente inventa, Mediante tais técnicas, 0 Si dissolucao, mas, afastando-se ileso do ter mor dle Sua auton rel desafio, ele se confirma € se reforga. Tomando de empréstimo a terminologia de Fouca we ilt, pode-se dizer que a escuta do canto das Serei mn teste funcional as tecnologias do Si E até demasiado facil notar que, ainda que sugestiva, a oti bem moderna com a qual os autores da Dialética do Iuminismo lero Homero termina por deformar 0 texto antigo com uma aborrecida lente anacrOnica. Aplicados & Odisseia, termos como sujeito, Si, Huminismo ~ como também sociedade burguesa € 10 ~ Soam improviiveis € deslocados. Toda interpre- aquela que se volta para o antigo ~ sustenta, obviamente, uma livre reapropriagao do original por parte do intérprete. Porém, as vestes do sujeito burgues ficam bastante apertadas no herdi de flaca, Devido a sua deriva moderna, no centanto, especificamente quanto ao problema da phoné, a leitara adorniana das Sereias apresenta um lado bem interessante, ‘Trata-se do costumeiro erro de omissio reser homeéricas. Pelo que se depreende do texto de Horkheimer € Adomo, as Sereias representam, de fato, a pura voz: cantam, mas 10 dizem nada, nao contam. Flas nio pertencem ao mundo ade. Ulisses “reconhece « enorme poténcia arcaica do ® mas o relato onisciente, que de todo modo sai da boca das Sereias homéricas, parece nao se inserir entre as iresistiveis competéncias dos monstros cantores. Como quer uma tradigao ‘mais tard exatamente de uma pura vocalidade, melo- Absolutizado, o som concentra em si toda a dimensio da prova enfrentada por Ulisses. Consequentemente, (© desafio passa a se dar entre a caracteristica fisico-sonora do canto € a razo: entre a pura voz € o puro semantico, Cada um dos desafiantes se encontra em polos extremos de um logos que tende a cindir-se em uma vocalidade pré-semantica © em uma racionalidade desvocalizada, ado &s sedutoras diosa & Na economia da interpretagio de Horkheimer e Adorno, isso significa que o Si reconhece © prazer da pura phoné na sua pré-hist6ria e, precavendo-se de vinculos racionais, decide testar 0 seu risco de regressio & beatitude de um estigio pré-semantico do {qual 6 nostilgico. E como se os vocalizos do in-fante chamassem de volta o adulto, recuperando-o para 0 gozo dat emissio fonica © do ouvido. Designada pela inevitivel ambiguidade do termo a figura de Ulisses, além de representar a parabola do sujeito, 1 paribola de um homem que foi crianga, ou sej xt medida em que € nimal falante, Como os autores sugerem, a Odissefa se presta a exemplificar muitos tipos de percurso: 0 do sujeito € do Si que m, mas também aquele da especie bem como 0 da crianga que se faltam, O disforme Polife ma tipica estatura glgantesca representa tam paribola de todo ser humano Adomo e Horkhei humana que dei torna adulto, Os exemplos habita ainda a caverna, possui tam que as criancas apreendem nos adultos. Os Lot6fagos, incapazes tes, lembram uma + prefer 10, que © comedores de flores inebria de violets crstalizacas [quel promete um estado no quill a conse vagio da vida & independente da autoconservacio consciente, a beatitude € satisfeita pela uilidade da aliment | infincta do individuo ¢ a da espécie convergem, em su evocagao de um estado de prazer a que tanto o adulto qt forma faz. 0 sujeto, ou encia, em relacio m ser “reenviados para as izacto clevem renunciar. Da mest completa da autoconsc seja, 0 Si como form 40 qual os deménios do mito d rochas € as cavernas de onde sairam um dia, no arrepio dos primérdios™. Jue o prazer que vem do canto das Sereias 6 um dos aspectos cruciais dessa gia de rentincia. Afinal, especialmente para Adorno € para as suas conhecidas reflexoes sobre a musica, a regressio da escuta & um fendmeno digno da ‘maxima consideracao. Adomo mesmo €, por outro lado, “uma riatura da tradicao hegeliana que postula uma teleologia histori paz de incorporar qualquer coist em seu. inrefredvel progresso”.” Nesse sentido, as Sereias devem encarnar uma vocalidade musical que é desprovida de palavra. Ulisses, por sua vez, ¢ desafiado a superi-la Para Homero, que nada sabe do sujeito racional moderno, as Sereias, todavia, nto representam uma vocalidade pré Blas, ju ntam ¢ narram, ou melhor, narram cantando: © fascinio irresistivel da vor se liga ao fascinio do relato, © prazer assim obtido nao esta, portanto, no ambito de uma pré-historia — de qualquer maneira que se a considere =, mas sim coincide com aquilo que o proprio Homero é capaz de proporcionar a seu pblico, Orgulhoso por vincular a figuras femininas oniscientes a fonte da épica, o poeta herda do canto delas o poder do encanto. De testo, a relacao privilegiada que o liga & Musa consiste exata- mente na fungio de filtro entre esta € os ouvintes. Ele € 0 tinico que pode ouvir © canto divino e traduzi-lo em canto humano. © 0 tinico que pode traduzir a vocalidade © a onisciéncia dla Must em um canto narrativo que transmite prizer humanamente suportivel. Se tivessem a do canto originario, os simples mortais morrer Ulisses tentou a empreitada e some! le morrer. Isso transmitir 0 so & potencia im de prize. tuicia the imped pela sua capacidade de escutar € into divino, Homero vem colocar-se em um degrau bem mais alto do que aquele ocupado por Ulisses na escala dos mortais. Na economia hom U6, de Fato, superior a0 ssim como a arte da épica € superior aos expedientes, © canto narrativo, ao discurso racional, e 0 poder de proporcionar prazer, 2 auckicia de desafiar os efeitos letais. No fundo, as Sereias so uma c6pia da Musa que Homero concede tos ouvidos de Ulisses para comprovar a superioridade da épica de ges do prazer, Na Gtica de Adorno © Horkheimer, por outro lado, desapa- rece justamente a questao do prazer ligada a coincidéncia de vocalidade © relato na competéncia pica. O aspecto narrative do canto é silenciado. As Sereias cantam, mas, a0 contririo de Homero, nao contam. O canto das Sereias como pura vor passa entio a funcionar como prazer reprimido, estigio primit objeto de nostalgia, de um Jogos que tend a identificar-se com © puro semantic, Desligando-se da palavra, e a elt absoluta € constitutivamente ndo destinada, a phone p: assim, uma “forgafisica” primitiv Polifemo, Ao conttirio do que ocorre com as erelas “reinventadas” por Adomo ¢ Horkheimer, o gigante, porém, fala, Segundo os dois fildsofos alemaes, ele tem, todavia, uma relagio arcaica com a palavra que € muito diferente daquele civilizado de Ulises. A brincadeira de Ulisses quanto ao proprio nome serve precisamente “0. para enfatizar essa diferenca, O episédio € conhecido (e nos forca a lembrar que o nome grego de Ulisses é Odisseu): jogando com a proximidade entre oudeis(ninguém) e Odysseos, 0 her6i diz a Polifemo que se chama Ninguém, Dessa forma, com sua tipica asticia, ele mostra que s cao de sua fuga Futura. Reduzido a cegueira, © gigante pedir © auxilio de outros ciclopes dizendo que “ninguém” esti the fazendo mal; e, obviamente, os ciclopes nao o socorrem. O ponto fundamental, porém, ¢ outro. Segundo Adorno € Horkheimer, racidade de Ulisses de retirar o nome da esfera = na qual nome € coisa magicamente coincidem ~ “inse- rindo neste um significado" * Polifemo nao pode entender isso. Pela sua concepgao arcaica do Jogos, a relagao entre significante actistico € significado mental e, sobretuclo, a possivel disjuncio entre eles sio inconcebiveis, ele consiste na mit sampedo de truques semiinticos & pioneiro dt manipulagio sofistica do discurso, segundo os dois fil6sofos alemaes, Ulisses € também o prot6tipo do narrador. Que os cantos centrais da Odisseia saiam diretamente de sua boca nao hi divida. O proprio episédio das Sereias € notoriamente encenado por Homero como um conto autobiogrifico de Ulisses. Aliés, a poética homérica presenta aqui uma complexidade de textura que merece ser assinalada. O poeta conta ao publico da épica o modo como Ulisses relata aos feacios seu encontro com as Sereias, as qu cestavam narrando a Ulisses sua propria historia e que, uma vez que tudo veem, so capazes de contar inclusive como ele estat naquele momento falando delas. Nao se trata de uma confustio paradoxal, mas sim de um médulo narrativo construfdo sobre uma trama circular de relatos que, ao remeterem uns aos outros, colocam em cena 0 seu proprio movimento. Espanta, portanto, que Adorno € Horkheimer, opondo © narrador Ulisses a0 canto mitico das Sereias, acabem por simplificar drasticamente tal enredo de remissdes. A atencio dos intérpretes, concentrada no herdi, poe em curto-circuito as complexas tensdes narrativas do texto: protagonista dt Odisseia nas improvaveis vestes de sujeito, Ulisses se torna também o seu narrador privilegiado, Coerentemente com sua indole racional, io “a fria separagdo da narraglo", que transforma “os cle poe e fatos narrados em algo que transcorreu ha muitissimo tempo’ Mediante 0 uso da meméria, distancia as historias entregando 141 dimensio do tempo que separa os acontecimentos passados 2 ulterior 240 para reconhecer ao logos uma funcio de controle. O que resta do prazer Gass lo tanto ao alivio em relagio a0 perigo evitado quanto a um relato que narra “os fatos: mais atrozes como se fossem destinados t divertir’, sem que, oby mente, a musicalidade da voz narradora entre na narragao. Ede todo modo sintomatico que, entre as atrocickides que abundam ro texto homérico, Adomo ¢ Horkheimer decicam citar o breve episédio do enforcamento das escravas, comparaicas “impassi vyelmente & morte de passaros pegos no laco”.* Nesse caso, de fato, Ulisses & 0 executor, nao o narrador. Quem conta it respeito tGenica da das escravas € Homero, Nem mesmo Adomo € Horkheimer podem, portanto, evitar confundir Homero com Ulisses, ou seja, 0 trabalho a épica com a personagem que, segundo eles, encama a paribola do sujeito, A complexidade do desenho narrativo termina vencendo a esta a simpl Permanece 0 fato de que, segundo os dois autores da Dialética do Maminismo, as Sereias nao alcancam jamais a arte de contar. Figuras de uma coagao para a repetig2o que as fixa numa tnica fungio, elas se limitam a levantar a vox ‘melodiosa de uma seducio asser M2 3 VOZES DO MELODRAMA A emissto canora é, por si mesn 1, exibicao le corporeidade: nao & som proxluzido por instrumento mecinico, mas pelo proprio fisico do & or, fuxo corpéreo proveniente das ‘que determinam 0 seu peculiar "geo" (..) no & timbre genético, pré-codiicado pela tenica construtiva dos instruments, mas timbre peculiar € exclusivo, altamente individualizado, imagem acd de uma especifica carmalidade Marco Beghelli. Erotismo canoro Osiléncio das Sereias de Kafka tem um significado impre extraordinatio © assombroso. Todo 0 contririo acontece com as mulheres, comuns mortais, que A convém o 10 caladas. “As mulheres iléncio”, proclama um célebre adégio da sabedoria patriarcal, apreciaclo nao apenas por Aristoteles. Ainda em matéria Ale provérbios, “o silencio ¢ de ouro” significaria aqui: “quem cala, consente”, Isto 6, obedece, como € justo que filhas ¢ esposas facam. A rigor, como remédio ao falatorio feminino, a perfeigao seria a mulher muda. Nao a mulher que se abstém de falar, ma a que nao tem voz. E, mais precisamente, ndio a mulher surda- luda (que, entao, traria o risco de nao obedecer as palavras do homem porque nao as ouve), mas sim a mulher que perdeu a Yor, Ou seja, uma mulher que escuta, mas que nao pode falar. Pode, porém, acontecer que, refletindo sobre a mudez. “ideal” dle seu sexo € recordando-se das Sere as mulheres terminem

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