Você está na página 1de 10

L I T E R AT U R A E L E C T R Ô N I C A : N O V O S H O R I Z O N T E S P A R A O L I T E R Á R I O | 557

to erase so that memory remains empty «myth, n.». OED Online. June 2011. Oxford
and myths do not decompose» (Blan- University Press. 22 July 2011 <http://
chot 198). One must not stop here but oed.com/viewdictionaryentry/
go one step further: if one is fortunate Entry/124670>.
enough to discover one’s own personal
myth, it is only because discovery so
often and so closely resembles creation. LITERATURA ELETRÔNICA: NOVOS
HORIZONTES PARA O LITERÁRIO
Erik Van Achter N. KATHERINE HAYLES
São Paulo, Editora Global, 2009
WORKS CITED 208 páginas, ISBN 978-852-60-1415-2
Bataille, Georges (2006), The Absence of
Myth. Translated by Michael Richard- Com uma formação inicial na área da
son. New York & London: Verso. Química, N. Katherine Hayles veio
Blanchot, Maurice (2001), Faux Pas. a centrar-se no estudo da literatura,
Translated by Charlotte Mandell. Stan- nomeadamente no estudo da cultura
ford, CA: Stanford University Press. digital, tecendo elos entre ciência, tec-
Blumenberg, Hans (1985), Work on Myth. nologia e literatura. Para aqueles que
Translated by Robert M. Wallace. Cam- seguem os passos da literatura ele-
bridge, MA: MIT Press. trónica, N. Katherine Hayles tornou-
Curcio, James, ed. (2011a), The Immanence -se num nome incontornável. Autora
of Myth. London: Weaponized, 2011. das obras How We Became Posthuman
Curcio, James, ed. (2011b), The Best of (1999), Writing Machines (2002) e My
Modern Mythology [forthcoming]. Mother was a Computer (2005), em 2008
Motte, Warren, ed. (1998), OULIPO: A Hayles acrescentou um novo título à
Primer of Potential Literature. Cham- área de estudos literários. Trata-se da
paigne and London: Dalkey Archive. obra Electronic Literature: New horizons
Nicolescu, Basarab (2011), «Disciplinary for the Literary (2008), agora também
Boundaries», Bulletin Interactif du Cen- disponível em português.
tre International de Recherches et Études A edição aqui apresentada conta com
Transdisciplinaires (CIRET) 21 (Jan o prefácio de Tania Rösing e Miguel
2011): 1-3. <http://basarab.nicolescu. Rettenmaier, onde o leitor é advertido
perso.sfr.fr/ciret/ARTICLES/Nico- que o livro que irá ler foi produzido
lescu_fichiers/DisciplinaryBoundaries. em meio digital. Publicada em 2009,
pdf>. a edição brasileira do livro Electronic
Queneau, Raymond (2007), Letters, Num- Literature: New Horizons for the Literary
bers, Forms: Essays, 1928-70. Translated (2008), apresenta um grafismo seme-
by Jordan Stump. Urbana and Chicago, lhante ao original em inglês, o qual
IL: University of Illinois Press. procura espelhar as potencialidades do
558 | RECENSÕES

meio digital. A introdução do livro foi surge como um valioso instrumento


intitulada de «Leia-me»(«Readme»), para todos os leitores que desejam ini-
um arquivo utilizado em meio digital ciar ou alargar a investigação feita nesta
que serve para facultar informações área. Neste primeiro capítulo, a autora
sobre, por exemplo, a instalação de começa por apontar alguns dos obstá-
um software. E é precisamente esse culos colocados à legitimação e divul-
objetivo que esta lexia alcança. Nesta gação da literatura eletrónica. Hayles
introdução, N. Katherine Hayles sugere refere que existe uma proliferação de
como o seu livro pode servir «para obras que são publicadas em linha pelos
auxiliar o avanço da literatura na sala seus autores, o que testemunha a cres-
de aula» (p. 13). A edição brasileira cente produção de literatura em meio
não é acompanhada pelo CD, onde o digital. Contudo, a qualidade e quan-
leitor pode encontrar várias obras de tidade destas obras são impossíveis de
literatura eletrónica, também publica- determinar. A publicação dispersa e
das no sítio web da Electronic Litera- aleatória destas obras coloca sérios pro-
ture Organization.1 No entanto, Hayles blemas em termos de arquivo e divul-
refere que este foi acrescentado à edi- gação. Isto faz com que elas sejam con-
ção impressa para comodidade do lei- sideradas como inferiores ao «cânone
tor. Tanto na edição original, como na impresso».
brasileira, o leitor dispõe ainda de um Neste capítulo inicial, onde se pre-
sítio, onde estão publicados inúmeros tende responder à pergunta «o que é
recursos direccionados para o ensino literatura eletrônica», Hayles refere
de literatura eletrónica.2 que esta não pode ser vista «através da
No primeiro capítulo, N. Katherine lente da obra impressa» e que é preciso
Hayles descreve o seu livro como a atentar nas «especificidades dos meios
«primeira tentativa de estruturar sis- digitais». Refere igualmente a necessi-
tematicamente todo o campo da lite- dade de considerar a literatura eletró-
ratura eletrônica». De facto, este livro nica «como parte integrante da tradição
literária», e de «introduzir transforma-
1 O conteúdo do CD-ROM (Electronic Literature
ções cruciais que redefinam o que é lite-
Collection, Volume 1, ISSN 1932-2011) foi publicado ratura». Oferece ainda uma definição
na íntegra em linha, em Outubro de 2006, no ende-
reço electrónico seguinte: http://collection.elitera-
de literatura eletrónica, distinguindo-
ture.org/1/. Em Fevereiro de 2011 foi publicado em -a da mera digitalização. Para Hayles
DVD-ROM o 2º volume (Electronic Literature Col-
lection, Volume 2, ISSN 1932-2011), que também
ela é uma literatura «nascida no meio
está integralmente disponível em linha: http://col- digital», ou seja, «um objeto digital de
lection.eliterature.org/2/. Ao contrário do primeiro
volume, quase exclusivamente composto por auto-
primeira geração criado pelo uso de
res de língua inglesa, o segundo volume inclui várias um computador e (geralmente) lido
obras em francês, português e espanhol.
2 Os recursos podem ser encontrados em http://
em uma tela de computador» (p. 20).
newhorizons.eliterature.org/ Citando a definição da Electronic Lite-
L I T E R AT U R A E L E C T R Ô N I C A : N O V O S H O R I Z O N T E S P A R A O L I T E R Á R I O | 559

rature Organization, acrescenta que tivas, instalações, codework, arte gene-


é uma «obra com um aspecto literário rativa e o poema em Flash». A partir
importante que aproveita as capaci- da descrição destes géneros, a autora
dades e contextos fornecidos por um desenha uma biografia da investigação
computador independente ou em rede» feita na área da literatura eletrónica.
(p. 21). Porque a palavra «literatura» Esta preocupação em associar à litera-
está ligada a toda uma tradição de arte tura eletrónica uma genealogia e uma
verbal, e porque a literatura eletrónica história, confere a este livro um caráter
desafia «a repensar nossos pressupostos testemunhal que apresenta a literatura
do que a literatura pode fazer e ser», eletrónica como um campo de estudos
Hayles propõe o uso do vocábulo «lite- válido e sério.
rário». A fim de garantir uma definição Hayles reflete igualmente sobre os
precisa da literatura eletrónica face à obstáculos ao entendimento da especi-
literatura impressa, refere que o texto ficidade do medium onde a literatura
eletrónico depende da «urgência» do eletrónica se insere: «a tentação de ler a
código. Sendo assim, no capítulo ini- tela como uma página é especialmente
cial, Hayles salienta uma caraterística sedutora» (p. 38). De facto, enquanto a
fundamental da literatura eletrónica. literatura eletrónica tem uma presença
Para ler uma obra deste tipo, o leitor visível apenas há duas décadas, a cul-
terá que manipular o código (ainda que tura impressa conta com instituições
indiretamente através da interface), ou que divulgam, publicam e distribuem
seja, terá que interagir com o software. livros há cerca de 500 anos. Isto faz
Hayles refere-se às fases de evolução com que seja difícil ver a literatura ele-
da literatura eletrónica distinguindo trónica sob uma perspetiva que não seja
uma fase clássica, durante a qual preva- a herdada de séculos de tipografia.
lecem as obras construídas através do O seu livro surge marcado por
programa Storyspace e uma segunda um discurso que pretende legitimar
fase (fase contemporânea) que começa a literatura eletrónica face à cultura
a partir de 1995 e que se demarca da impressa. Os seus argumentos não são
anterior pelo uso das capacidades mul- baseados numa contraposição entre os
timodais da Web. Sendo assim, o sof- dois média, mas numa aproximação, o
tware utilizado pelo programador/ que não significa que a especificidade
autor de uma obra eletrónica, surge de cada um seja ignorada. Hayles sabe
como um elemento distintivo entre que o meio digital suscitou discus-
géneros. Hayles refere alguns desses sões frutíferas na arena dos estudos
géneros que surgiram desde a introdu- literários e pretende cessar com uma
ção da Web até aos nossos dias: «ficção tendência estigmatizadora das obras
em hipertexto, ficção na rede interli- nascidas em ambiente eletrónico. Para
gada, ficção interativa, narrativas loca- tal, defende um prolongamento do
560 | RECENSÕES

trabalho crítico de forma a abranger a média que a autora pretende eliminar.


literatura eletrónica. Porém, este pro- Ela reconhece a importância do tra-
cesso «requer novos métodos de análise balho feito pelos primeiros teóricos
e novas formas de ensino, interpretação do hipertexto, referindo-se a George
e execução» e exige que o crítico pense Landow e Jay David Bolter. O pro-
«digitalmente». Isto quer dizer que, ao grama Storyspace havia sido inven-
mesmo tempo que o crítico se preo- tado para colocar em prática o conceito
cupa com a especificidade do medium, pós-estruturalista do texto rizomático
ele deverá utilizar (e não romper) com em aberto, o qual serviria para limitar
«os recursos das valiosas tradições com a influência do autor, aumentando a
base na literatura e crítica impressas» participação do leitor. A hiperligação
(p. 43). Só assim poderá a literatura seria um elemento fundamental neste
eletrónica ser inserida nos estudos lite- processo, porque implicava o leitor na
rários, sem recorrer a uma permanente construção do texto, através de uma
contraposição com o medium impresso. interação com a máquina. Contudo,
Hayles não esquece que a literatura Hayles refere que toda a teoria de
eletrónica começou na tentativa de libertação do leitor construída à volta
suplantar o seu adversário impresso, do «link» não constituía uma novidade.
cingindo-se a potenciar as suas capaci- As notas de rodapé, os textos rizomá-
dades, através dos recursos disponibili- ticos de Jorge Luis Borges ou Julio
zados pelo computador. Nessa fase ini- Cortázar, por exemplo, já haviam con-
cial existia um otimismo exacerbado que cretizado as mesmas propostas no texto
coincidia com a generalização do com- impresso.
putador e com as capacidades que esta Como já foi acima salientado, Hayles
máquina exibia ou prometia desenvol- aponta igualmente para um problema
ver. Atualmente existe uma preocupa- fundamental: o da preservação, arquivo
ção fundamental em definir a literatura e divulgação de textos eletrónicos. O
eletrónica no conjunto das práticas lite- software utilizado na produção e difu-
rárias, uma questão que Hayles aborda são de obras eletrónicas depressa se
consecutivamente, a cada página do seu torna obsoleto e as obras encontram-se
livro. Na verdade, existe uma crescente distribuídas aleatoriamente pela Web,
produção de arte em ambiente digital, o dificultando a sua catalogação ou pro-
que denuncia que a antiga oposição face moção. Ao contrário de um livro que se
ao livro impresso deixou de ser uma mantém acessível durante décadas, as
questão fundamental. obras eletrónicas são objetos de difícil
O argumento do fim do livro conservação e arquivo, impedindo o
impresso, nomeadamente do romance, estabelecimento de um corpus de aná-
e a sua substituição pelo livro eletró- lise ou identificativo deste tipo de lite-
nico, criou um fosso entre ambos os ratura. Hayles vê estes factores como
L I T E R AT U R A E L E C T R Ô N I C A : N O V O S H O R I Z O N T E S P A R A O L I T E R Á R I O | 561

uma clara desvantagem em relação ao digital, colocando a tónica na interme-


livro impresso: diação (um termo de Nicholas Gessler)
entre o códice e a literatura eletrónica e
Com um cânone reduzido, limitado a entre o sujeito humano e as máquinas
alguns anos e sem a oportunidade de inteligentes. A intermediação entre dois
construir o tipo de tradições associadas média ocorre quando o medium novo
com a literatura impressa, a literatura ele- adota algumas das caraterísticas base
trônica corre o risco de ser condenada ao do seu antecessor, mas entre literatura
domínio do efémero, seriamente restrita eletrónica e impressa a intermediação
em seu desenvolvimento e na influência ocorre igualmente em sentido inverso:
que pode exercer. (p. 51) «quase todos os livros impressos são
arquivos digitais antes de se tornarem
A Organização de Literatura Eletrô- livros» (p. 61).
nica, da qual N. Katherine Hayles foi Hayles prevê que «a literatura digi-
presidente, promove a Iniciativa de Pre- tal será um componente importante
servação, Arquivo e Divulgação (PAD) do cânone do século XXI» e por isso
que tem em vista dar a conhecer, arqui- chama a atenção para o facto de grande
var e preservar obras eletrónicas. Esta parte dos textos impressos atuais nas-
organização permite uma «resposta cerem já em meio digital. A tipografia
fácil» a quem procure literatura eletró- está a ser marcada pelas possibilidades
nica de qualidade, pois no seu site são de edição, publicação e distribuição
publicadas periodicamente coletâneas trazidas pelo computador. Embora os
de literatura eletrónica. «Acid-free textos impressos e a literatura eletró-
bits» é um documento produzido pela nica («digital de nascença») apresentem
Organização de Literatura Eletrônica caraterísticas e funções diferenciadas,
que faculta aos autores de literatura Hayles considera ambos como «dois
eletrónica um conjunto de conselhos componentes de uma complexa e dinâ-
práticos, para que possam aumentar a mica ecologia de mídia» (p. 164).
durabilidade das mesmas. Estes facto- A ansiedade de obsolescência em
res demonstram que as instituições de relação ao romance, ou seja, o receio
publicação, arquivo e distribuição de que a leitura de um romance se venha a
literatura eletrónica ainda se encontram tornar numa tarefa enfadonha perante
num estado incipiente. as propostas colocadas pelos novos
No entanto, Hayles não se limita a média, sofreu uma alteração que se
tecer uma biografia da literatura ele- deve ao meio digital. Hayles refere
trónica e a desenhar uma problemática que, nos últimos anos, tem havido uma
acerca da sua conservação e difusão. produção exponencial de romances, o
Incorpora também a sua investigação que contraria o receio partilhado por
em torno da especificidade do meio muitos leitores de livros impressos. Isto
562 | RECENSÕES

demonstra que o romance, enquanto modos humanos de conhecimento com


representante do formato impresso, cognição de máquina» (p. 142). Sendo
tem em sua posse «novos truques jus- assim, os seres humanos estão ligados
tamente porque se tornou uma forma aos computadores através de «malhas
de produção para o texto eletrônico» de retroalimentação e alimentação», o
(p. 165). Hayles aponta desta forma que significa que os computadores são
a relação umbilical entre a literatura projetados ou construídos pelos seres
impressa e a literatura eletrónica, refe- humanos, mas estes últimos são modi-
rindo que a «tentativa do romance ficados pelas máquinas que constroem.
impresso de demonstrar superioridade O livro impresso é capaz de «alterar
sobre a textualidade eletrônica está o estado percetível e cognitivo de um
assim inextricavelmente entrelaçada leitor». Porém, enquanto um livro fun-
com o reconhecimento simultâneo de ciona como «um receptáculo para as
que a textualidade eletrônica torna cognições do escritor que se encontram
possíveis muitos dos seus desenvolvi- armazenadas até serem ativadas por
mentos inovadores» (p. 166). Com este um leitor», o computador permite uma
argumento, Hayles pretende frisar que constante alteração da superfície do
a oposição entre ambos os formatos é ecrã «valendo-se de algoritmos ou de
um processo estéril que omite as capa- programas aleatórios que obtêm infor-
cidades do computador enquanto ins- mações de fluxos em tempo real para
trumento crítico e criativo e que reduz criar um número infinito de recombi-
a literatura eletrónica a uma situação de nações possíveis» (p. 74).
permanente experimentalismo. O «fluxo recombinante» confere ao
O livro impresso é uma tecnologia computador a singularidade de respon-
utilizada na transmissão de conheci- der dinamicamente às escolhas do utili-
mento. No entanto, ao contrário do zador, um atributo que o livro não con-
livro eletrónico, ele está integrado na segue exibir. Adicionalmente, o compu-
cultura como um objeto naturalizado. tador é capaz de entender e produzir a
Hayles pretende atenuar a reação linguagem alfabética. Contudo, os seres
ludita que muitos dos leitores apre- humanos não conseguem ler as opera-
sentam perante um texto em formato ções internas de um computador. Isto
eletrónico e refere que «são os huma- faz com que ele seja considerado como
nos, não as máquinas, que fornecem, uma caixa negra. No entanto, é preciso
transmitem e interpretam significados» notar que a opacidade que é atribuída a
(p. 114). Para evidenciar uma relação este medium, resulta do nível de com-
naturalizada com a tecnologia, Hayles plexidade atingida pela computação,
refere-se a um segundo nível de inter- o qual impede o utilizador comum de
mediação. A literatura eletrónica «rea- entender o funcionamento interno de
liza a função adicional de entrelaçar um computador. Sobre isto, Matthew
L I T E R AT U R A E L E C T R Ô N I C A : N O V O S H O R I Z O N T E S P A R A O L I T E R Á R I O | 563

Kirschenbaum, no seu estudo forense uma obsolescência do corpo. De facto,


sobre a materialidade do computador3, perante uma obra de literatura eletró-
apontou para a tendência de centrar a nica, o leitor/ utilizador não acede à
análise da materialidade deste medium narrativa apenas através da visão. As
no ecrã e não no seu funcionamento opções que leva a cabo são assinaladas
interno. Neste estudo, Kirschenbaum e transmitidas ao computador através
analisa, numa escala microscópica, os de um itinerário feito de cliques ou
bits inscritos na superfície de um disco de impulsos, os quais são despoleta-
rígido, comprovando que o computa- dos pela participação do corpo (e não
dor tem uma materialidade que não se apenas da visão) no ato da leitura. O
resume à iridiscência do ecrã. Sobre a mesmo acontece com o livro impresso,
aparente imaterialidade do computa- perante o qual o contacto físico e visual
dor, Hayles refere que «as tecnologias é também permanente. A leitura dos
são corporizadas porque têm as suas carateres e das imagens é intercalada
próprias especificidades materiais como com o virar da folha, o que se asseme-
elementos centrais para entender como lha ao itinerário de cliques despoletado
funcionam, assim como a fisiologia pelo texto eletrónico.
humana, a psicologia e a cognição são Por último, Hayles afirma que não
centrais para entender como o corpo será profícuo basear o estudo da espe-
(humano) funciona» (p. 121). Desta cificidade da literatura eletrónica numa
forma, o computador não poderá ser oposição entre ser humano e tecnolo-
considerado como um instrumento gia. Em vez disso, ela sugere um estudo
autónomo da intervenção humana. Os das interações entre ambos, permitindo
processos que leva a cabo são ativados a análise da continuidade entre a litera-
pelo próprio utilizador e não segundo tura impressa e a literatura eletrónica.
uma prática aleatória. Apesar de não Só procedendo assim poderá ser pos-
estar ao alcance do utilizador comum, sível considerar a literatura eletrónica
o funcionamento interno deste pode ser «como parte de um espaço de mídia
revelado, desde que se tenha em conta contemporâneo com implicações signi-
a sua especificidade material (ou a sua ficativas para a prática corporizada e a
profundidade), e não apenas a superfí- subjetividade» (p. 102).
cie do ecrã. O ser humano e a tecnologia estão
A visão tem um papel primordial no envolvidos numa «espiral coevolucio-
contacto com o texto eletrónico. Porém, nária», sendo impossível de determinar
embora baseie muito da sua ação na qual obtém prevalência em detrimento
visão, o ambiente digital não permite do outro. De forma a entender a influ-
ência da tecnologia no cérebro humano,
3 Matthew G. Kirschenbaum (2008), Mechanisms:
New Media and the Forensic Imagination. Cam-
Hayles refere que os seres humanos
bridge, MA: MIT Press. «nascem com o sistema nervoso pronto
564 | RECENSÕES

a ser reconfigurado em resposta ao pelas páginas da recém-chegada World


ambiente» (p. 123). Isto significa que, Wide Web.
numa sociedade em que os novos média Hayles estende a teoria da «coevo-
têm uma posição preponderante, o lução adaptativa» entre tecnologia e
cérebro humano está constantemente ser humano ao ato de leitura. Graças
a ser reconfigurado para responder à elasticidade permitida pelo código
aos desafios colocados pela tecnologia. binário do computador, o texto inte-
Hayles pretende assim sublinhar uma rativo permite que sejam estimuladas
relação naturalizada entre ser humano funções sensório-motoras que o livro
e tecnologia, porque considera que ao impresso não permitia desenvolver. A
ter em conta a computação como uma literatura impressa promovia uma lei-
mera prática técnica (em vez de uma tura baseada na visão, mas a literatura
prática artística) perde-se a oportuni- eletrónica implica o tacto associado a
dade de compreender como artistas e uma reação psicofísica. Esta «estimula-
programadores, utilizadores e jogado- ção sensorial», desconhecida até à che-
res se adaptam a este medium, coevo- gada do computador, tem um impacto
luindo com ele. biológico acentuado na geração M (ou
Através de uma comparação entre geração «Multitasking»), a qual:
dois textos construídos através do
programa Storyspace, Hayles refere (…) está passando por uma mudança cog-
que os próprios escritores estão a res- nitiva significativa, caracterizada por um
ponder aos desafios colocados pela desejo por estímulos que variam constan-
literatura segundo uma «coevolução temente, baixa tolerância ao tédio, habi-
adaptativa». A obra Afternoon, a story lidade de processar múltiplos fluxos de
(1989) de Michael Joyce4 é considerada informação simultaneamente e uma rápida
como a primeira hiperficção eletró- compreensão intuitiva de procedimentos
nica. Embora seja construída e acedida algorítmicos subjacentes que geram com-
em formato digital, ela é constituída plexidade de superfície. (p. 125)
maioritariamente por texto (ou lexias),
com um escasso recurso a imagens e a A autora compara o fenómeno de
gráficos. A obra Twelve Blue (1996), «hiperatenção», em que o leitor tem
publicada pelo mesmo autor sete anos que lidar com transformações súbi-
depois, foi também construída através tas do texto e com múltiplos fluxos de
do programa Storyspace. No entanto, informação, ao de «atenção profunda»
esta obra beneficia já de um aprovei- que se observa na leitura de um livro
tamento do grafismo proporcionado impresso. Perante este, a atenção cen-
tra-se num só artefacto, numa só função
4 Também criador do programa Storyspace, junta-
e exclui outro tipo de estímulos. Já na
mente com Jay David Bolter. literatura eletrónica, porque o leitor/
L I T E R AT U R A E L E C T R Ô N I C A : N O V O S H O R I Z O N T E S P A R A O L I T E R Á R I O | 565

utilizador está perante «múltiplos flu- mudar as cognições dos leitores» (p.
xos de dados, estímulos em constante 94), pelo que o movimento ludita con-
mudança e a evocação de um entendi- tra a literatura eletrónica representa
mento intuitivo de operação algorít- um contrassenso. A teoria literária terá
mica» (p. 126), a atenção profunda e a que elaborar uma revisão de alguns
hiperatenção são invocadas simultane- conceitos fundamentais como o de
amente no ato de ler. «literatura», adaptando-os à nova rea-
Hayles refere que a «evolução dos lidade, na qual o computador não serve
mídia permite uma sucessão de adap- apenas para processamento de texto.
tações ontogênicas e com elas novas O computador promete alterar as pró-
possibilidades de envolvimentos literá- prias práticas críticas, proporcionando-
rios» e defende a importância de a crí- -lhes novos instrumentos críticos como
tica literária se manter recetiva a cada arquivos digitais, edições eletrónicas e
alteração. A interpretação de um texto todo um conjunto de ferramentas de
eletrónico não se resume ao papel ativo análise textual.
do leitor, mas também à performance O computador, inicialmente consi-
da máquina: derado como um instrumento de cál-
culo e de tratamento de dados, é o local
É exactamente quando esses processos onde a literatura eletrónica é produzida
de múltiplas camadas e múltiplos locais e difundida. O que Hayles sublinha é
dentro de seres humanos e máquinas que este instrumento é agora utilizado
interagem por meio de dinâmicas de artisticamente, suplantando a sua ima-
intermediação que os ricos efeitos da lite- gem de mera ferramenta e permeando
ratura eletrônica são criados, executados vários aspetos da vida humana: «a lite-
e experimentados. (p. 128) ratura pode ser compreendida como
uma tecnologia semiótica feita para
Inicialmente, a literatura eletrónica criar – ou, mais precisamente, ativar –
espelhava muitas das caraterísticas da malhas de retroalimentação que unam
literatura impressa. Porém, à medida dinâmica e recursivamente sentimentos
que a tecnologia evoluiu, novas cara- e raciocínio, corpo e mente» (p. 141). O
terísticas foram introduzidas no meio computador acentua o feedback recur-
digital. Hayles refere que «o conheci- sivo entre medium e ser humano, na
mento acumulado dos experimentos medida em que, durante a leitura de
literários anteriores não se perdeu, mas uma obra de literatura eletrónica, existe
continua a moldar os desempenhos no um canal aberto entre as operações da
novo meio» (p. 74). A autora defende máquina, o corpo e a mente do utiliza-
que a crítica literária tem vindo a igno- dor. A literatura eletrónica «promove
rar que a própria literatura «funciona intermediações entre código de compu-
como uma tecnologia projetada para tador e linguagem unicamente humana,
566 | RECENSÕES

processamento digital e análogo, e rejeitando a posição antagónica que a


meio impresso e formas de mídia elec- literatura eletrónica tem manifestado
trônica» (p. 142). O leitor de um texto face ao livro impresso e referindo que
impresso terá que ultrapassar uma pri- ambos estão umbilicalmente ligados.
meira superfície onde existe um código Ao intitular a introdução «Leia-me»,
por decifrar. Só após resolver esse pri- Hayles não está apenas a dar instruções
meiro enigma, poderá o leitor encontrar sobre como utilizar o seu livro num
um mundo que se esconde por trás de contexto pedagógico. Está igualmente
cada página. Hayles refere que só se a refletir sobre a natureza de uma lite-
esse mundo for «vibrante o suficiente», ratura que exige do leitor uma resposta
poderá o leitor abstrair-se da página e psicofísica aumentada e um conheci-
entrar em contacto com uma voz que mento técnico, ainda que intuitivo, do
emana do texto. Essa voz permite que a funcionamento do medium. A litera-
interioridade do leitor e do autor surjam tura eletrónica introduz uma alteração
interligadas. Porém, perante o compu- no ato de ler, que Hayles vê como um
tador, o leitor lida fundamentalmente sinal de mudança na interação entre ser
com um programa que serve de inter- humano e mundo. Por isso, a sua intro-
mediário entre as operações da máquina dução intitulada «Leia-me» não espelha
e as intenções do autor/programador. apenas a natureza da literatura eletró-
A interação entre estes três elementos, nica, mas chama a atenção para a neces-
unidos num ciclo recursivo, representa sidade de «uma instalação» das obras de
«em microcosmo nossa situação con- literatura eletrónica no horizonte literá-
temporânea de viver e agir dentro de rio que afinal já se estende a partir do
ambientes inteligentes» (p. 158). meio digital.
Neste livro, Hayles levanta muitas
questões que permanecem em aberto, Daniela Côrtes Maduro

Você também pode gostar