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Pobres Criaturas, novo filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, chegou aos cinemas

chamando muita atenção do público geral, impactando pessoas fora da bolha cinéfila,
muito por conta de sua chamativa direção de arte
imediatas comparações com outros de seus olhares perturbados sobre este cartunesco
mundo real tão violento que precisa ser olhado pelo lado de dentro, pelos vidros nunca
desembaçados, pelos minúsculos vãos das fechaduras. Por subverterem certas condições
do que pode existir em sociedade, seus personagens nutrem um fascínio pelo conceito
aterrador da prisão que está diretamente vinculado com a manutenção da masculinidade
como uma entidade onipresente em tudo que define a estrutura social.
Indicado ao Oscar em 11 categorias, incluindo melhor filme e direção, Pobres Criaturas
é, curiosamente, a obra mais com uma produção envolvente e excêntrica, que costura
com inteligência e provocação o romantismo gótico da história de Frankenstein com
uma trajetória típica dos romances de formação. O roteiro engenhoso narra a jornada de
autodescoberta e emancipação de uma mulher revivida no sentido mais amplo do termo
– brilhantemente encarnada pela atriz Emma Stone. O filme entra em cartaz nesta
quinta-feira (1º/2).

Em Pobres Criaturas, Emma – também produtora do longa – interpreta Bella Baxter,


uma jovem trazida de volta à vida depois de se atirar do alto de uma ponte na Londres
vitoriana pelo brilhante e nada ortodoxo médico Godwin Baxter (Willem Dafoe).
Cientista maluco de catálogo, o genial Godwin – chamado de God (“Deus”) por Bella –
mantém seu experimento científico trancado em sua mansão, estudando e incentivando
o rápido desenvolvimento intelectual e motor da garota com a ajuda do estudante Max
McCandles (Ramy Youssef).
Inquieta e curiosa por conhecer o que existe para além da casa a que vive restrita, Bella
foge com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado ricaço e galanteador. Ao
lado disse pilantra de fino trato, a heroína vai viajar a lugares exóticos, conhecer pessoas
singulares e encarar aventuras e contratempos que a ajudarão a entender e confrontar o
mundo ao redor – que ela descobre ser regrado pelo patriarcalismo hipócrita, feito para
beneficiar os homens e oprimir as mulheres.
A exuberante direção artística de Pobres Criaturas recria o ambiente vitoriano
steampunk do romance homônimo do escritor escocês Alasdair Gray no qual se baseia.
O artificialismo dos vários cenários pintados remete aos primórdios do cinema e a
títulos como Querelle (1982), de Rainer Werner Fassbinder, e, especialmente, E la Nave
Va (1983), de Federico Fellini, no caso das sequências portuárias e em alto-mar a bordo
de um cruzeiro.
Já a direção de fotografia e a trilha musical repetem a estranheza visual e sonora
característica dos filmes de Yorgos Lanthimos, que o realizador cristalizou
particularmente em A Favorita (2018). Como nesse seu longa anterior, Pobres Criaturas
distorce literalmente a percepção naturalista da realidade em cenas filmadas com lentes
grandes angulares que deformam a imagem, acompanhadas por inserções sonoras
estranhas dissonantes, que muitas vezes ficam a meio caminho entre a música e o ruído.
Diferentemente da afetação pedante e vazia dos últimos filmes de Wes Anderson, diretor
estadunidense também célebre pelas idiossincrasias e esquisitices de seus filmes, o
maneirismo do cineasta grego vai muito além da pirotecnia estilística: em Pobres
Criaturas, sua visão enviesada das relações familiares, sentimentais e sociais está a
serviço de um poderoso Bildungsroman de uma mulher que se descobre intrinsecamente
libertária e inconformada com a submissão imposta às mulheres.
Na trama, o aperfeiçoamento físico, psíquico e moral de Bella, tutelado pelo
racionalismo científico e moldado pelas convenções sociais e a lógica capitalista, sofre
uma convulsão com o súbito despertar da sexualidade, revelando à personagem a
sufocante estrutura que a prende. O revolucionário poder do desejo passa então a ser o
motor do terceiro nascimento de Bella – uma reinvenção da qual ela finalmente pode ser
a protagonista.
Ganhadora do Globo de Ouro de melhor atriz de comédia ou musical e indicada ao
Oscar deste ano, Emma Stone literalmente dá vida a uma figura cujo arco dramático vai
da inocência ignorante à autoconsciência inconformista – passando por momentos de
confusão, humilhação, dor, prazer, revelação e superação. Entre as ótimas atuações do
elenco central, merece destaque ainda a composição de Mark Ruffalo – indicado ao
Oscar de ator coadjuvante – do patético janota Duncan, exemplar acabado do macho
dominador pretensamente autossuficiente, mas incapaz de lidar com suas inseguranças
e, em especial, com a autonomia feminina.
Matriz referente de Pobres Criaturas, o livro Frankenstein, publicado em 1818 por Mary
Shelley – uma das poucas mulheres a se destacarem na época no masculino universo
literário –, tinha como subtítulo Prometeu Moderno. Se no mito grego o titã é castigado
por roubar o fogo dos deuses e entregá-lo à humanidade, em Pobres Criaturas essa
espécie de Prometeu de corset é uma feminista pioneira que desconcerta a sociedade
machista por querer adonar-se do próprio corpo – manipulado pela razão (o cientista
Godwin), pelo amor romântico (o assistente Max) e pelo desejo de posse (o
aproveitador Duncan) – para traçar livremente seu destino.
O longa inspira-se no livro “Frankenstein“, a mais célebre obra de Shelley, para levantar
alguns debates filosóficos e científicos. Assim como o ser criado pela autora inglesa, em
“Pobres Criaturas”, uma jovem é trazida de volta à vida por um cientista maluco – e se
vê obrigada a reaprender a humanidade e a sociedade em que vive.
Assim como “Pobres Criaturas” faz em 2024, “Frankenstein” de Mary Shelley não se
limitou às amarras do gênero do horror do início do século 19. Em ambas as obras,
vemos questionamentos filosóficos acerca do papel da ciência, dos limites éticos da
medicina, do sentido da vida e, principalmente, da rejeição da sociedade a tudo que é
estranho ou diferente.
Acho importante olhar para sua obra nessa amplitude porque “Poor Things” – no título
original – chega num pedaço curioso de sua trajetória como mensageiro desta mesma
mensagem, que é essencialmente de uma inversão moral: sua personagem feminina,
criada e guiada sob a monstruosidade de homens distintos, pertence ao lado de fora.
Havia algo disso na caricatura de A Favorita (2018), que certamente abriu vários
caminhos agora tão explícitos, mas é este o capítulo que o põe nos trilhos de uma
Hollywood aberta aos discursos inerentes à estética – afinal, por que não a história de
uma mulher que precisa vestir-se de monstro para olhar o mundo sem a violência
patriarcal?
Diferente do que Margot Robbie precisou fazer de forma adocicada para dar
materialidade à descoberta de uma boneca sobre um mundo que não lhe pertence,
Emma Stone tem aqui uma provocação ampla ao se impor numa realidade que não têm
– e não pode ter – proprietários. Quando Bella responde que “é seu próprio meio de
produção”, percebemos que esta é, na verdade, a resposta de um homem que a imagina.
No limite do que é possível captar dessa ironia, é fascinante a importância que tem o
personagem do Mark Ruffalo, e como ele escracha isso, ao ser usado como uma espécie
de “autocrítica” do próprio autor que por tanto tempo desenhou a bobagem de tudo
aquilo que é masculino na gramática do mundo.
Barbie e Bella, afinal, compartilham da mesma inocência ao tratar com esse mundo real
que Yorgos tanto escondeu de seus próprios homens. “Nós não temos genitália”,
informa a boneca de Greta Gerwig para um grupo de homens que os observa ao que
Ken reage envergonhado logo em seguida: “Eu tenho todos os genitais”. É certo que
esses filmes, tão abismais, falam da mesma coisa. Não que sejam consequenciais, mas a
existência de ‘Pobres Criaturas’ desta forma tão lúcida e narrativamente polida para dar
sua visão de um “mundo transgredido” por morais que não foram fundadas como tais,
vai de encontro com este momento em que essas histórias são abraçadas por Hollywood
exatamente porque são digestíveis, mesmo que neste caso tão no limite da fronteira.
Emma Stone entende a seriedade desta missão e nos cativa aos poucos com o avanço
de Bella, partindo da pureza de sua irracionalidade no rumo de certa conformidade e
estacionando numa subversão tão doce quanto a de Barbie. Com seu já famoso olhar
agudo e uma expressão corporal que fala por si, imagino que seja difícil alguém não
mergulhar na sua tomada de consciência. Willem Dafoe oferece quase um contraponto do
instinto de sua criatura ao marcar uma presença sempre encantadora, mesmo
representando tanta crueldade.

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