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Comunicação Social

Ideologia para Crianças: O


Filme FormiguinhaZ à Luz dos
Estudos Culturais e da
Semiótica da Cultura
Vanderlei Dorneles, professor do curso de Comunicação Social do
Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho,
diretor da Unaspress, mestre em teologia pelo Unasp, mestre em Comunicação
Social pela Umesp e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP,
vandorneles1@ig.com.br

Resumo: Este texto faz uma crítica ideológica da produção animada FormiguihaZ,
da Dreamworks. Considera o cinema uma importante ferramenta pedagógica a
serviço de estruturas dominantes, mas não deixa de reconhecer que no interior da
indústria cultural há também espaços de resistência e tensões. Identifica os principais
personagens da história fictícia da colônia de formigas, e procura apontar as questões
sociais e históricas que estruturam a narrativa. Baseado no referencial teórico dos
estudos culturais de Douglas Kellner e do conceito de texto da cultura e memória
de Iúri Lotman procura, também, evidenciar como os principais personagens e a
narrativa retratam os conflitos históricos e como projetam o modelo sóciopolítico
americano como um valor histórico dominante.
Palavras-chave: Estudos culturais, ideologia, memória, cinema

Ideology for childreen: Antz movie based on the


Cultural Studies and Semiotic of the Culture
Abstract: This study makes an ideological critic of Dreamworks animated
production AntZ. The search does not let to recognize that there are spaces of
resistance and tensions within the culture industry, considering the cinema an im-
portant pedagogic instrument working for dominants structures. Identifies the main
characters of the fictitious history of the ants’ colony; and wishes to point the social
questions and histories that structure the narrative. The study look for evidence the
way the main characters and the narrative present the historical conflicts and the way
this conflicts project the american socio-politic standard like a dominant historical
value, based on the theoretical reference of the Cultural Studies of Douglas Kellner
and based on the conception of Culture Text and Memory of Iuri Lotman.
Keywords: Cultural studies, ideology; memory, cinema

ACTA Científica - Ciências Humanas 2º Semestre - 2006 43


Introdução
FormiguinhaZ, em inglês AntZ, é uma produção da quer matar todas as formiguinhas fracas, operárias, e
Dreamworks. Com 82 minutos de duração, lançado construir uma “colônia forte”, de guerreiros.
nos Estados Unidos em 1998, o filme infantil tem um Diante da inundação, o pânico toma conta da
roteiro fascinante e dinâmico, com animações incríveis. A colônia. Lá dentro, as águas começam a afogar os
dublagem conta com atores consagrados de Hollywood, operários. No entanto, Z consegue lançar um plano
como Woody Allen, Sharon Stone, Gene Hackman e salvador, fazendo uma coluna de formigas, que, indo
Sylvester Stallone. até o teto, permite tirar todas elas do buraco em
O personagem principal, chamado “Z”, dublado inundação. Lá fora estão Mandíbula e os soldados,
por Allen, é uma formiga operária, imersa numa gigante os fortes. Surpreso, o general tenta matar Z. Ambos
colônia, dividida rigidamente entre operários e soldados. caem no buraco inundado. Mandíbula morre. Z fica
Diferente das demais, Z é uma formiga inquieta e incon- imerso, mas sobrevive e se casa com a princesa.
formada com a vida sem alternativas, determinada pela FormiguinhaZ seria apenas mais uma produção
“ordem social” do formigueiro. Z começa o filme diante animada para crianças não fosse o tratamento acurado
do divã, tentando expressar seu drama existencial. dado a importantes questões sociais como domina-
O roteiro criado por Chris Weitz e Paul Weitz parte ção, emancipação, individualismo e liberdade. Alguns
desse ponto, do drama de Z, para desenvolver a trama. exemplos:
O problema de Z se intensifica por ele ser o único in- Diante do divã, Z se queixa: “Por que tenho de
conformado. Só ele pensa. Só ele critica. Portanto, só ser um operário a vida toda sem poder mudar?” Há
ele é infeliz. uma cena pitoresca em que a rainha vê seus filhotes
A vida intranqüila de Z, no entanto, lhe reserva sendo colocados sobre uma mesa a fim de serem exa-
uma surpresa: ele conhece inesperadamente alguém minados e encaminhados, desde o nascimento, para a
inconformado como ele, a princesa Bala (dublada obra operária, no caso dos mais fracos, ou para a vida
por Sharon Stone), que se disfarça por uma noite militar, caso dos mais robustos. Rígido determinismo.
a fim de ver como se divertem as formiguinhas da Fraco e pequeno, Z não atendeu às expectativas acer-
plebe no bar e na pista de dança. Ela também está ca de um soldado. A luta contra os cupins mostra a
inconformada com seu destino, sua futura função, de crueldade da guerra, além de revelar os bastidores do
progenitora de uma colônia. Está revoltada com seu conflito, em que vidas são manipuladas com a mais
futuro casamento obrigatório com o general Mandí- insensível indiferença.
bula (Gene Hackman), um formigão militar rígido e Quando se queixa, e o faz o tempo todo, Z critica
rude, que não tem tempo para as questões pessoais e seus companheiros devido ao conformismo e a incapa-
é intolerante com as formiguinhas operárias. Ele se cidade de pensar sua condição de dominação. Para ele,
ocupa só das questões de guerra e da construção do todos estão tutelados sob Mandíbula, dominado por
“Mega Túnel”. seus planos megalomaníacos. Durante a dança vesper-
Após conhecer Bala no bar, Z se apaixona e con- tina, em que as formigas se movimentam enfileiradas e
vence seu amigo Weaver (Stallone), um forte soldado, de forma unânime e rígida, Z critica: “São todos zumbis
a trocar de lugar temporariamente com ele para que ele sem cérebro, capitulando ante a opressão do sistema”.
reveja Bala durante a inspeção militar. Mas a princesa No trabalho do Mega Túnel, os operários não devem
não o vê. Com o esquadrão, ele é mandado em uma questionar. A eles, toca o trabalho. Seus inspetores dão
missão contra uma colônia de cupins. O conflito é ordens, que eles mesmos não sabem explicar. No salão
cruento. Só Z sobrevive. Volta ao formigueiro e é principal da colônia, há faixas de estímulo ao trabalho
condecorado pela rainha, numa cerimônia que ter- e à resignação: “Trabalhar primeiro, desfrutar depois!”;
mina de forma inesperada. Bala reconhece Z, fala “O trabalho edifica!”.
que dançou com ele, o que leva Mandíbula a ordenar No bar, uma formiga mais velha e bêbada fala a Z
sua prisão. Ele toma Bala como refém e são lançados que existe um lugar onde ninguém permaneceria in-
fora do formigueiro. Após conhecerem “insetopia”, conformado: “Insetopia!”. É um segredo. As formigas
um lixão cheio de insetos, Z e Bala são reconduzidos não devem saber desse lugar. Deve isso permanecer
ao formigueiro. como um mito. Do contrário a ordem social do for-
Eles encontram a colônia no momento crucial. migueiro estaria comprometida. Diz-se que os que
O Mega Túnel está para ser inaugurado. Os planos aspiram à insetopia são acomodados que não querem
de Mandíbula são ousados. Com uma inundação, ele pagar o preço da glória com trabalho resignado.

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Mandíbula, o general autoritário, não gosta de econômico dominante para plantar nas narrativas da
heróis. Ele considera Z um obstáculo para seus pla- mídia ideologias e valores conservadores parece não dar
nos. Para o general, o Mega Túnel será o grande passo conta da diversidade das produções, embora isso possa
para o progresso final do formigueiro, algo de que a ser verdade em muitos casos. Na tarefa de entender os
“História” lhe prestará reconhecimento. mecanismos de reprodução desses valores na cultura de
Antes de salvar a colônia, Z é perseguido, injusti- massa, a semiótica da cultura, de Iuri Lotman, com os
çado e seu amigo é torturado a fim de delatá-lo. Ele conceitos de texto cultural, memória e semiosfera, parece
precisa se decepcionar com insetopia para saber que dar uma contribuição importante.
condição superior ele poderá conquistar com sua ação Kellner considera a mídia como ferramenta de
individual. Após salvar a colônia, Z se vangloria: “Essa “pedagogia cultural” que ensina como as pessoas de-
é a típica história do rapaz simples que se casa com a vem se comportar e o que devem pensar e sentir. Os
princesa e muda a ordem social estabelecida.” espetáculos midiáticos determinam o exercício do poder.
A importância dos temas sociais tratados por For- Demonstram quem tem poder e quem não tem, quem
miguinhaZ rouba à produção sua aparente ingenuidade, pode exercer força e violência e quem não. Dramatizam
em geral própria de um filme infantil. Como uma peça e legitimam o poder das forças vigentes (2001, p.10).
típica da indústria cultural hollywoodiana, FormiguinhaZ Para ele, a cultura da mídia favorece um processo
deve ser visto e lido como instrumento ideológico. É de dominação cultural. Mas há também resistência no
preciso analisar os conflitos históricos que ele reproduz interior dessa cultura, o que ocorre tanto no processo
e saber de onde o filme retira seus símbolos, como os de mediação em que os indivíduos fazem sua própria
arranja, que leitura faz dos importantes eventos histó- leitura dos fatos ancorados em seus próprios valores
ricos que retrata. culturais, quanto a mídia produz e promove cultura
de resistência à hegemonia. “A cultura veiculada pela
Estudos culturais e crítica ideológica
mídia induz os indivíduos a conformar-se à organi-
FormiguinhaZ, no melhor padrão do cinema ame- zação vigente da sociedade, mas também lhes oferece
ricano, apresenta riqueza de movimento, trilha sono- recursos que podem fortalecê-los na oposição a essa
ra e efeitos especiais. A produção cinematográfica sociedade” (Ibid, p. 11-12).
hollywoodiana deve ser vista como um tipo particular Os produtos da indústria cultural legitimam o
de cultura, a cultura da mídia, industrial, organizada poder dominante ao reproduzir os discursos sociais
com base no modelo de produção de massa. É um “encravados nos conflitos e nas lutas fundamentais”
produto para consumo, feito, portanto, segundo crité- da época. A sociedade é um terreno de conflitos, de
rios de mercado e que obedece a fórmulas e códigos dominação e resistência, “um grande campo de bata-
convencionais. A narrativa tem personagens bem de- lha, e lutas heterogêneas se consumam nas telas e nos
finidos: herói, vilão, vítimas, coadjuvantes; e final feliz. textos da cultura da mídia” (Ibid, p.79). Em vista disso,
Reforça valores e sistemas dominantes. a resistência a esse processo de dominação cultural
Esses critérios e fórmulas, porém, não explicam to- não pode prescindir do estudo crítico dos produtos
dos os aspectos sócio-culturais envolvidos na produção culturais. Esse estudo crítico considera os textos da
cultural de massa. Há espaços nas narrativas em que mídia não apenas como veículos de uma ideologia
valores emancipatórios são defendidos, o que dá conta de dominante nem entretenimento puro e simples. Não
uma tensão entre os processos de dominação e emanci- rejeita a cultura da mídia como “um instrumento banal
pação dentro da indústria cultural de massa. Esse parece da ideologia dominante”. Mas procura contextualizá-la
ser o caso de FormiguinhaZ, em que o herói emerge do e interpretá-la dentro da “matriz dos discursos e das
anonimato e vence estruturas até então dominantes. Mas forças sociais que a constituem” (Ibid, p. 27).
ao fechar a narrativa, o mérito desse herói é capitalizado Fazendo a crítica da dominação e dos modos como
a favor de um novo poder dominante. a cultura veiculada pela mídia se empenha em reiterar
Os estudos culturais, de perspectiva crítica, como as relações de opressão, essa leitura se constitui num
vistos em A Cultura da Mídia, de Douglas Kellner, pro- importante instrumento de resistência (Ibid, p. 12).
curam explorar os conflitos políticos, econômicos, de
gêneros e etnia espelhados nas narrativas midiáticas. No
A cultura como memória coletiva
entanto, esses estudos nem sempre são claros em identifi- A compreensão crítica dos textos midiáticos en-
car os mecanismos pelos quais os sistemas ideológicos se contra nos estudos da linguagem importantes suportes
articulam no interior da produção cultural. A suposição metodológicos. Por sua vez, os estudos culturais críti-
de um plano deliberado por parte do sistema político- cos, como pretendidos por Kellner, são corroborados

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pela semiótica. O próprio Kellner propõe que a crítica complexos entrecruzamentos de textos” (1996, p.
ideológica deve partir de uma perspectiva múltipla, 109). O texto, portanto, tem uma significação ampla,
analisando narrativas, discursos e imagens, e também que integra o conceito de cultura e memória. É uma
símbolos e mitos (2001, p. 81). organização de signos que emite uma mensagem, que
Nessa perspectiva, os conceitos de texto cultural, se reproduz a partir de outros textos conservados na
memória e sistemas culturais desenvolvidos por Lot- memória e que constitui os próprios dados da cultura.
man e pela escola semiótica de Tártu vêm ampliar a Como fazem parte de um sistema dinâmico entesoura-
análise no sentido de prover uma visão do processo do na memória, os textos da cultura, sejam produções
semiótico pelo qual textos da cultura ativos na memó- do cinema, obras de arte, imprensa, publicidade, não
ria são articulados e repercutem na produção cultural, cessam de entrecruzar e gerar novos textos.
eventualmente cristalizando valores dominantes. Iuri A geração de textos se processa num espaço
Lotman tem sido reconhecido como um dos mais abstrato, no qual formações semióticas de diversos
importantes pensadores das ciências sociais. Como tipos ocorrem continuamente. Esse espaço semiótico
expoente máximo da semiótica soviética contempo- abstrato é chamado de “semiosfera” (Ibid, p. 22). O
rânea (Lozano, 1979), ele levou a cidade de Tártu, universo semiótico ou a semiosfera é “um conjunto de
na Estônia, na Rússia, a ser reconhecida como “uma textos e linguagens distintos”, que forma um “meca-
espécie de Meca do pensamento semiótico” (Ferreira, nismo único” ou “um organismo vivo”. “A semiosfera
2004, p. 69). é o espaço semiótico fora do qual é impossível a
A semiótica da cultura concebe uma multiplicidade existência até mesmo da semiose” (Ibid, p. 24). Ela
de textos como componentes da cultura e da memória, funciona porque está dotada de um complexo sistema
mas ao mesmo tempo essa multiplicidade em certo de memória (Ibid, p. 35). Os textos mais hierárquicos
sentido constitui “um texto único” (Ferreira, 2004, não cessam de gerar textos porque estão preservados
p. 75). O texto é tanto “um condensador da memó- nesse sistema dinâmico. Semiosfera, cultura, memória
ria cultural” quanto “gerador” de novos significados e tradição são conceitos inseparáveis para a semiótica
(Ibid, p. 82). Tem, portanto, duas funções principais: russa. Cultura é a “memória comum da humanidade”
a transmissão adequada dos significados e a geração composta de uma multiplicidade de textos (Lotman,
de novos sentidos, sendo que, como gerador de sen- 1981, p. 101).
tidos, o texto nunca é um recipiente passivo. Nele, os Tudo aquilo que “foi traduzido num sistema de sig-
elementos sígnicos estão em constante movimento nos” torna-se patrimônio da memória” (Ferreira, 2004,
de conservação e geração, “interação e integração” 75). Sendo assim, a tradição não passa de um “sistema
(Fernandes, 2003). de textos, preservados na memória de uma dada cultura,
Para Lotman, há certas ordens e hierarquias no subcultura ou personalidade” (Ibid, p. 84). Dotada do
interior dos textos de uma dada cultura. O texto é um dinamismo intrínseco de um organismo vivo, a semios-
espaço semiótico no qual “interatuam, interferem-se fera, portanto, não cessa de sobrepor textos.
e se auto-organizam hierarquicamente as linguagens”
Entrecruzamentos de textos em FormiguinhaZ
(1996, p. 97). Da mesma forma que as linguagens se
organizam hierarquicamente no texto, os textos tam- O roteiro, os símbolos, as imagens e a narrativa de
bém se organizam hierarquicamente na cultura (Ibid, FormiguinhaZ reproduzem importantes eventos históri-
p. 102). É essa organização hierárquica que explica por cos e recompõem a memória ocidental pelo entrecru-
que alguns textos repercutem mais que outros, por que zamento que faz entre “textos” relativos a nazismo,
alguns elementos da memória se tornam mais domi- totalitarismo, monarquia, Segunda Guerra, individua-
nantes e se reproduzem mais que outros. FormiguinhaZ lismo, emancipação e liberdade, entre outros.
é uma das diversas produções de Hollywood em que O visual criado dentro da colônia de proporções
os eventos históricos da Segunda Guerra são reinci- gigantescas é excelente. É uma clara alusão ao espírito
dentes. Eles parecem ocupar certa hierarquia sobre o cosmopolita, que derrete a individualidade. Na imen-
conjunto de textos da memória ocidental, o que explica sidão do formigueiro, “o que importa é a colônia!”,
sua constante reprodução e sua influência estruturante brada Mandíbula. É essa condição de alma coletiva
sobre os textos contemporâneos, especialmente os que inconforma Z. Todos são um, e, por isso, ninguém
cinematográficos. pensa, ninguém sente nada por si mesmo. A colônia é
Lotman vê a cultura, em sua totalidade, como “um a imagem da não-individualidade, retrato da consciên-
texto complexamente organizado que se decompõe cia de massa sobre a qual se erguem os totalitarismos
em uma hierarquia de ‘textos nos textos’ e que forma radicais e dissimulados.

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Mandíbula reproduz perfeitamente a figura de mecanismo seus sistemas culturais. Os textos que
um ditador, autoritário e dominante. Ele tem o poder formam a “memória comum” de uma coletividade
da retórica, como Hitler. Diante da manifestação e cultural, não apenas servem como “meio de decifração
revolta das formigas, que não queriam mais trabalhar, dos textos que circulam no corte sincrônico contem-
ele declara em discurso que o trabalho resignado será porâneo da cultura, mas também geram novos textos”
sempre recompnesado mais tarde num bem coletivo. modelados pelos paradigmas criados pela memória,
Em poucos segundos, o formigueiro se transforma de que, longe de ser um depósito passivo para a cultura, é
um bando de questionadores, movido por uma opinião parte integrante do mecanismo “formador de textos”
pública desfavorável à ordem dominante, em uma (Ibid, p. 160-161).
massa de mão-de-obra determinada e alienada. “O que Esse processo de hierarquização e de formação de
importa é a colônia!”, repete Mandíbula. paradigmas, operado no interior da cultura, através de
Os closes laterais de Mandíbula, durante seus discur- uma diversidade de textos, tende à criação de estrutu-
sos, fazem projetar seu queixo, em sinal de autoridade e ras quase arquetípicas. No caso ocidental, os textos da
domínio, a exemplo de imagens clássicas de Stalin. cultura de massa não cessam de condenar os sistemas e
O Mega Túnel de Mandíbula é uma estratégia para os valores ideológicos vinculados aos totalitarismos, ao
sepultar as formigas fracas, “gentis” e “incompetentes”. mesmo tempo em que enaltecem os sistemas e valores
O corredor terminaria num lago, próximo do formi- vinculados aos vencedores desses totalitarismos.
gueiro. Mandíbula planejava afogar todos lá dentro da A morte de Mandíbula, como uma reversão de seu
colônia, depois de sair com os soldados, com quem tenebroso plano “nazista”, dissimula de forma virtual
constituiria uma “raça pura e forte”. Mandíbula afirma a indignação do público. E não deixa de renovar a atri-
em tom grave e cerimonioso: “Há um momento na buição desse ato de justiça à figura histórica ou sistema
história de uma colônia em que os elementos fracos político-cultural representado pelo herói Z.
devem dar lugar aos fortes, para a construção de uma Há outro personagem do filme que abre uma
colônia grandiosa.” gaveta histórica importantíssima da memória ociden-
Tecendo a trama com falas e ações desse persona- tal. A velha, lenta, pesada e impotente rainha é uma
gem, FormiguinhaZ constrói uma narrativa entrecruzan- alusão direta às monarquias ocidentais. O filme põe
do textos da memória que remontam uma tradição de lado a lado autoritarismo e monarquia, dois textos da
autoritarismo que inclui desde o comunismo russo até o memória ocidental, e projeta esses poderes como a
nazismo e fascismo. A articulação desses elementos da base de um sistema social despersonalizado, em que
memória coletiva ocidental faz uma leitura fortemente os indivíduos foram dissolvidos numa alma coletiva,
ideológica. Ao projetar Mandíbula como um vilão uma massa manipulável. Insinua ainda que a fraqueza
demonizado, contra quem se volta de forma massifi- da monarquia, sua lentidão e o espírito de conformismo
cada toda a indignação do público, a narrativa reitera que ela desperta sobre os súditos é que abre caminho
e renova com forte carga emocional o julgamento da para o surgimento de poderes autoritários e manipu-
História aos personagens e sistemas nomeados, bem ladores. FormiguinhaZ julga a monarquia, mostrando
como às ideologias que eles vinculam. que um poder apoiado na tradição e no determinismo
Na medida em que essa leitura da História é re- da hereditariedade termina por barrar as iniciativas
produzida nos textos da cultura de massa, os eventos individuais, conformando os súditos e favorecendo o
passados ganham força no sentido de determinar a surgimento de poderes ditatoriais construídos sobre a
mesma leitura para os fatos contemporâneos. Uma vez alienação da massa.
que a memória retém os textos em certa hierarquia e Ao contrário do monarca e do ditador, Z detém
disponibilidade, “os textos atuais são iluminados pela um prestígio e uma autoridade que nascem das ações
memória”. Nesse caso, o passado nunca desaparece, do personagem voltadas para o bem comum. Z é um
embora pareça apagado, ele permanece latente, “po- herói, que luta pelo povo. Ele quer e mostra que pode
tencial” (Lotman, 1996, p. 158-159). Como mecanismo salvar o formigueiro. Z incorpora um ideal de “força” e
criador, a memória cultural conserva os textos man- grandeza a que todos aspiram. Ele realiza um sonho co-
tendo o passado como “algo que está”, que “não é letivo. Suas conquistas são claramente colocadas como
passado” (Ibid, p. 159). O passado “que está” chega a fruto de seu espírito crítico, de seu inconformismo. É a
ganhar um status estruturante do presente. capacidade de se indignar, é o pensamento negativo que
No dinamismo da memória, cada cultura define funda a ação libertadora. Mas é preciso notar que há
por meio de paradigmas o que se deve “conservar” e na personagem uma clara tensão entre elementos que
o que se deve “esquecer”, construindo a partir desse atendem aos clamores emancipadores que condecoram

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a Esquerda e elementos conservadores aliados ao poder códigos da memória relativos a guerras tendem a ser
sócio-político americano dominante, que se oculta por predominantes, dada a carga emocional e ideológica
trás dos valores de liberdade e autonomia, cristalizados que incorporam.
em Z. Se por um lado Z é um elemento determinante Os filmes de Hollywood cujo personagem principal
do processo de emancipação e individualização, ele é um herói idealizado, em geral, mostram o triunfo deste
também é o herói idealizado que realimenta o espírito herói sobre o sistema, “dando continuidade ao tropo
de conformismo, que espera sempre pela ação de um dominante do individualismo na ideologia americana”
personagem grandioso, sobre-humano. (Kellner, 2001, p. 90). O sistema, o estado burocrático,
Ao longo da narrativa, o personagem Z constrói é frequentemente o empecilho para o êxito imediato do
um herói idealizado e mítico, no qual diversos textos herói. FormiguinhaZ apresenta um herói vitorioso, mas
da memória ocidental se entrecruzam. Sua trajetória que não antagoniza o poder do estado americano. Ele
cumpre um itinerário messiânico. Ele é pobre, fraco, subverte sistemas ultrapassados, uma ordem social in-
sofre a incompreensão, é perseguido, injustiçado, che- corporada na monarquia e nos totalitarismos. Sua vitória
ga a “morrer”, mas “ressuscita” para euforia de toda projeta a força individual contra um sistema opositor.
a colônia salva, na última cena do filme. Z retoma a Essa figura do herói representado por Z remonta a anti-
figura messiânica do imaginário ocidental. Não há nos gas figuras na memória coletiva e da tradição protestante
domínios humanos alguém capaz de salvar os pobres e americana. Lutero lutou contra um sistema opressor,
dilacerados do destino injusto, da não-individualidade, da que lhe antagonizou. Ele venceu projetando a força do
insignificância e do autoritarismo. Eis, porém, que dentre indivíduo investido de uma missão. Da mesma forma,
os mortais a ficção faz surgir esse herói, sobre-humano, Cristo também percorreu um caminho semelhante.
que reverte a ordem social e promulga a libertação. Antagonizado pelos judeus e pelos romanos, ele venceu
No nível do signo, o personagem encarna uma sozinho, transformando-se num ideal de luta.
figura messiânica, mítica, sobre-humana. Seu nome Z é o personagem que, surgindo do nada, inter-
“Z” faz referência ao “ômega”, como o próprio mes- rompe a conspiração nazista de Mandíbula. Liquida
sias é chamado nas escrituras bíblicas. Mas no nível da o autoritarismo. Ele muda a ordem social. Sendo po-
narrativa, Z é uma figura “humana” (ou uma formiga, bre, casa-se com a princesa, suplantando a lógica da
uma “grande formiga”, como diz Weaver), cujo mérito monarquia. A figura representada por Z, ao mesmo
heróico é atribuído ou imputado a um personagem tempo, sepulta o poder autoritário e supera o poder do
humano, à figura histórica que ele representa. determinismo. Nesse sentido, o filme projeta o modelo
Essa figura fica claramente nomeada no último americano e os ideais de individualismo e liberdade
movimento da câmera que se ergue do formigueiro, como a salvação do mundo. Faz parecer que, por graça
abrindo o foco para o Central Park, para Manhattan desse poder de epicentro americano, o mundo pode ter
e, por fim, para as torres gêmeas do antigo World liberdade, individualidade e ser livre do autoritarismo.
Trade Center, símbolos do capitalismo, da liberdade, FormiguinhaZ é um típico texto da cultura, no inte-
do individualismo, dos Estados Unidos da América. rior do qual outros textos da memória são arranjados
Esse movimento sugestivo fecha a produção com uma e reproduzidos num processo de aprofundamento da
indicação bem direta. É como se dissesse: esse mundo ideologia americana dominante, a despeito de alguns
que venceu os modelos totalitários nazista e fascista e elementos de tensão entre emancipação e dominação
rompeu com a ultrapassada monarquia é o único capaz que ele entrecruza.
de produzir a liberdade, a riqueza e o desenvolvimento Os paradigmas criados pela memória coletiva sedi-
simbolizados pelas torres gêmeas da Manhathan. mentam sistemas culturais, que vão gerar novos textos
FormiguinhaZ, nessa perspectiva, reforça como os constantemente. A criação de textos da cultura e a
fatos históricos devem ser lidos pela nova geração, ao reprodução dos elementos próprios da cultura tendem,
mesmo tempo que projeta estruturas para a leitura por isso, a uma padronização progressiva, se deixada à
dos fatos atuais. Os sistemas culturais e ideológicos lei do acaso. Segundo Lotman, uma vez que
preservados no interior da memória coletiva, pela
ação do cinema, estão freqüentemente estruturando as forças sociais dominantes nas distintas fases da história
e modelando a maneira como os sujeitos vêem e lêem criaram seus próprios modelos do mundo numa situação
o mundo e os acontecimentos (Lotman, 1996, 157). de amargos conflitos ... a história da sucessão dos códigos
As informações guardadas na memória coletiva de dominantes de cultura será, simultaneamente, a história
um povo tendem, portanto, a uma hierarquização duma penetração cada vez mais profunda nos princípios
determinada pela força com que são preservados. Os estruturais dos sistemas sígnicos (1981, p. 102).

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A narrativa, lançando mão de signos históricos e gicos eventualmente vinculados ao autoritarismo; e
de elementos da memória, planta na mente das novas recomenda, para além das possibilidades de crítica, a
gerações uma estrutura de leitura da história que, ao hegemonia americana, à qual se vinculam as ideologias
mesmo tempo, condena os sistemas e valores ideoló- do individualismo e da liberdade.

Referências Bibliográficas
Ferreira, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros Lotman, Iúri M. “O problema do signo e do sistema
ensaios. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. sígnico na tipologia da cultura anterior ao século
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