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Lost Girls – Um

discurso erótico
feminino?


Prof. Dr. Marcelo
Bolshaw Gomes
UFRN

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo estudar a


possibilidade de um discurso erótico feminino, através
da análise interpretativa da História em Quadrinhos
Lost Girls (2007), escrita por Alan Moore e ilustrada
por Melinda Gebbie. Através da metodologia hermenêutica
narrativa, o texto discute ainda o conceito de erotismo
em Bataille e Pasolini, a representação do feminino
no universo das HQs e faz uma análise discursiva e
semiótica dos elementos simbólicos da narrativa.

PALAVRAS-CHAVE: Erotismo; Análise do discurso; Histórias


em Quadrinhos.

ABSTRACT: This article aims to study the possibility


of a female erotic discourse, through interpretative
analysis Comic Book Lost Girls (2007), written by
Alan Moore and illustrated by Melinda Gebbie. Through
narrative hermeneutic methodology, the text also dis-
cusses the concept of eroticism in Bataille and
Pasolini, the representation of women in the universe
of comics and makes a discursive analysis of semiotic
and symbolic elements of the narrative.

KEY-WORDS: Eroticism ; Analysis of the Speech; Comics.

Um objeto erótico! esposa do roteirista Alan


Moore) em um estilo
Desenhada por artnoveau romântico, a
Melinda Gebbie (atual série Lost Girls (2007)

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conta o inusitado encontro Porém, a arte de
de três conhecidas perso- Melinda Gebbies distanciou
nagens femininas – Wendy muito Lost Girls dos
(Potter), de Peter Pan; quadrinhos pornográficos
Alice (Lady Fairchild), de clássicos - como Guido
Alice no País das Maravi- Crepax (2007) e Milo Manara
lhas ; e Dorothy (Srta. (2004, 2006, 2008) - e
Gale), de O Mágico de Oz - acrescentou vários elemen-
todas adultas, mas com ida- tos simbólicos do universo
des diferentes, em um hotel erótico feminino.
austríaco, no início da 1ª Em Lost Girls, tudo
Guerra Mundial. Lá, elas é simétrico e regular (cada
confessam entre si as suas volume tem dez capítulos
preferências e vivências e cada capítulo tem oito
sexuais em uma história páginas). A regularidade
cheia de cenas fortes com formal, no entanto, apenas
pedofilia e fetichismo. O enquadra o transbordamento
lançamento da obra nos Esta- erótico, um crescimento
dos Unidos foi alvo dos crí- gradativo da obscenidade,
ticos mais radicais e mora- em que novos elementos per-
listas por causa do conteúdo vertidos e depravados são
sexual da história, envol- inseridos progressivamen-
vendo personagens de livros te, sem pressa, obedecendo
infantis e até mesmo alguns a um ritmo lento e fatal,
lojistas recusaram-se a a uma cadência calma e
revendê-la. inevitável. Como no Bolero
Os três livros de lu- de Ravel, ou melhor, como
xo (a narrativa não foi na Sagração da Primavera
publicada em forma de revis- de Stravinsky, explicita-
tas) formam um objeto erótico mente homenageada no
em si - que, além de ter a capítulo X.
mesma utilidade da literatu- No primeiro volume
ra do gênero, - tem também da série, Meninas
personagens complexos, dese- Crescidas, as protagonis-
nhos artísticos, texto filo- tas se conhecem no hotel:
sófico em que dialoga com Lady Alice Fairchild,
as ideias de Lacan (1966) e aristocrata inglesa,
Bataille (1988). O próprio escritora, rica, lésbica
Moore, no documentário The e viciada em ópio; srta.
Mindscape of Alan Moore Dorothy Gale, jovem
(2005), afirma que não há norteamericana, criada em
distinção entre erotismo e uma fazenda no interior do
pornografia e que sua inten- Kansas; e a Sra. Wendy
ção com Lost Girls foi escre- Potter, dona de casa,
ver uma narrativa eró-tica- acompanhada de seu marido,
pornográfica inteligen-te em um enfadonho engenheiro
que o aspecto sexual fosse naval. Após vários jogos
acompanhado de elemen-tos de de sedução, as protagonis-
outros gêneros narrativos. tas contam, para se excitar

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Figura 1 – O espantalho

mutuamente, como foram forma um harém (O Jardim


suas primeiras experiên- de Flores Vivas ) e é
cias sexuais. O primeiro escolhida para adoção pela
livro chega ao ápice com Sra. Redman (a rainha de
o balé de Stravinsky. copas), que a vicia em ópio
Nos livros seguin- e a prostitui de diferentes
tes, as narrativas sobre modos. Alice, cansada da
o passado das protagonis- rotina de orgias e drogas,
tas continuam e se alternam rebela-se contra a rainha
– seguindo o mesmo padrão e é internada em uma
crescente e gradativo. clínica psiquiátrica.
Após ser molestada por um Dorothy conta suas
amigo de seu pai (o coe- aventuras rurais com os
lho), Alice vai para um empregados da fazenda do
orfanato feminino, onde Kansas: o espantalho, com

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a qual aprende a usar os seus dois irmãos) com
homens (capítulo XIV); o Peter, um garoto de rua;
leão covarde (capítulo os ciúmes e a conquista
XVIII), a quem ensina a da incestuosa irmã,
ter confiança com as mu- Annabel; o medo e o
lheres; e o homem de lata fascínio exercido pelo
(capítulo XXIV), que a capitão gancho, um odioso
acorrenta e a faz mastur- voyeur que prostituía e
bar um jumento enquanto estuprava as crianças
faz sexo anal. Dorothy pobres do parque.
confes-sa ainda que
transava com o próprio pai Um discurso erótico?
biológico, tendo sido
expulsa da fazenda pela Existe um discurso
madrasta. erótico? Ou o verdadeiro
Wendy narra sua erotismo não se deixa
experiência sexual (e dos aprisionar pela linguagem?
Qual a diferença entre
erotismo e pornografia? E,
se há realmente um discurso
erótico, ou melhor: se
existem diferentes discur-
sos eróticos segundo o lu-
gar e a época, como carac-
terizá-los? Será possível
distinguir o discurso
erótico feminino do
masculino?
Erotismo deriva do
nome de Eros, o deus grego
do amor, Cupido para os
romanos, associado à
paixão e ao desejo intenso.
Pornografia também deriva
do grego pórne, “prostitu-
ta”; grafé, representação.
Ela é representação, por
quaisquer meios, de cenas
ou objetos obscenos desti-
nados a serem apresentados
a um público e também expor
práticas sexuais diversas,
com o fim de instigar a
libido do observador.
Quase sempre a pornografia
assume um caráter comer-
cial, seja para os próprios
Figura 2 – Wendy e seus modelos, seja para os em-
amigos presários do setor. En-
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quanto o erotismo, em si, É um duplo movimento
existe sem ser comerciali- de esconder sensações e
zado e geralmente é gratui- descobrir emoções e
to, em vários sentidos. sentimentos – que não
Portanto, não se trata de existe nos atos obscenos,
bom gosto, da pornografia no caráter apelativo e
ser grosseira e vulgar em vulgar do pornográfico. O
oposição à estética eróti- erotismo é um aspecto da
ca, requintada e sutil: é subjetividade do ser
a indústria cultural que humano oposta à sexualida-
prostitui o erotismo de animal livre de
transformando-o em restrições ou interdições.
pornografia. O homem, no processo
Desta primeira cons- histórico de construção da
tatação nascem duas posi- máquina social, foi
ções extremadas que evita- simultaneamente reprimindo
mos: a primeira consiste a sexualidade e a cons-
em acreditar que não existe ciência da própria morte,
um discurso erótico puro: dando origem ao erotismo.
tudo que é enunciado é (ou Somos seres descon-
pode ser) pornográfico. A tínuos, na medida em que
segunda posição é de que somos individuais, dife-
não existe distinção pos- rentes e sós. E essa di-
sível entre os discursos ferença jamais pode ser
erótico e pornográfico, completamente suprimida;
uma vez que a comercializa- apesar de todos os esforços
ção do discurso é uma de comunicação, há um
questão externa à lingua- abismo descontínuo entre
gem. Ambas se equivalem, Eu e o Outro. Somos descon-
pois negam a autonomia tínuos, vivemos e morremos
discursiva do ato erótico, sozinhos, mas trazemos em
colocando-o em uma posição nós o que Bataille chama
transcendente. Pode pare- de “nostalgia da continui-
cer que esse valor extra- dade perdida”. No entanto,
linguístico deseja super- ao mesmo tempo em que busca
valorizar o Erotismo, mas, a experiência da continui-
na verdade, trata apenas de dade, o homem também a
escondê-lo e de silenciá-lo. teme, pois ela é a morte –
O que define o o aniquilamento da indivi-
erotismo em si é “a trans- dualidade descontínua.
gressão de um interdito” Baseado nessa relação
(BATAILLE, 1988). O fruto dialética entre a repressão
proibido é sempre o mais sexual e o medo da morte,
desejado e o segredo Bataille dá ao erotismo e à
erótico é ocultar a violência uma dimensão espi-
sexualidade e simultanea- ritual, como uma forma de
mente sugerir seu revelar ser além de si mesmo e trans-
sensual. cendendo a descontinuidade:

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(...) o Erotismo dos Antes da contracul-
corpos, o Erotismo dos tura, o corpo e o erotismo
corações e, eram focos de resistência
finalmente, o Erotismo ao poder, mas a sociedade
sagrado. Falarei de consumo os prostituiu
dessas três formas a (ou transformou-os em
fim de deixar bem claro mercadorias). O sexo não
que nelas o que está é mais um escândalo, sua
sempre em questão é interdição não é mais tabu
substituir o isolamen- e, portanto, sua trans-
to do ser, a sua des- gressão não é mais uma li-
continuidade, por um bertação – como desejava
sentimento de conti- Pasolini. Pier Paolo
nuidade profunda. Pasolini (2000), em seu
(BATAILLE, 1988, 56) cinema-poesia, acreditava
poder retratar uma sexua-
Para compreender lidade de tradição clássi-
Bataille em sua totalidade ca homoerótica, que remon-
é preciso partir de sua ta aos poetas latinos e
ideia de uma ‘economia de gregos da antiguidade,
consumo’ primitiva (oposta para subverter “as conven-
às concepções econômicas ções morais da burguesia”;
tradicionais baseadas na valorizava a liberdade
primazia da produção) e na sexual e a sensualidade sem
adesão à tese central de culpa de um mundo popular,
Um Ensaio sobre a Dádiva burlesco, não subjugado
(MAUSS, 2008) - o presen- pelo puritanismo burguês.
tear e sua retribuição Ironicamente, o eros
estão na origem das virou thanatus e, apartir
relações dos homens entre dos anos 70, o cinema de
si e com o Divino. Pasolini estimulou a pro-
Em alguns momentos, a dução de filmes pornográ-
noção de ‘Erótico’ de ficos e sua própria obra
Bataille lembra a de ‘Mana’ foi vista de forma porno-
de Mauss; isto é: de energia gráfica. O erotismo revo-
pessoal que fica impregnada lucionário do cineasta foi
em objetos e lugares e a de absorvido pelo sistema. Na
‘áurea do objeto artístico’ perspectiva de Pasolini,
antes da reprodutividade aonde o fascismo histórico
técnica de Benjamim (1994). fracassou em realizar, o
Nesta perspectiva, a unifor- poder conjugado do mercado
mização industrial não ape- e das mídias opera docemen-
nas dessacralizou a arte, li- te (na servidão voluntá-
bertando-a de sua função re- ria) através da domestica-
ligiosa, ele também ‘desero- ção do erotismo: um verda-
tizou’ os corpos e seus deiro “genocídio cultu-
objetos, privando-os de suas ral”, no qual o povo desa-
energias singulares origi- parece em uma massa
nais. indiferenciada de consumi-

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dores submissos e E um tema de discus-
alienados (PASOLINI, 183, são constante em Lost Girls
p. 53-58). é justamente sobre a ques-
Mas será que o tão do poder das mulheres
erotismo (como expressão de contarem a própria
da sexualidade livre) foi história, em que elas sejam
completamente domesticado narradoras e protagonistas
pela mídia (e pela produção de seus desafios específi-
em escala industrial de cos. A possibilidade de um
imagens obscenas)? Ou será discurso erótico tipica-
que o Eros libidinoso ainda mente feminino depende da
vaza pelas brechas do capacidade das mulheres se
sistema pornográfico? tornarem sujeitas históri-
Em nossa perspecti- cas de suas narrativas
va, o erotismo foi, é e biográficas.
será discursivo, não ape-
A erótica da heroína ou a
nas por motivos comer-
heroína erótica?
ciais, mas sobretudo por
motivos sexuais. O erótico A psicóloga Maureen
se inscreve na linguagem Murdock (1990) ficou
para nos excitar. Por outro bastante decepcionada
lado, o discurso erótico quando questionou Joseph
é semi-silencioso e quase Campbell (1995) sobre que
invisível, avesso às aspectos a Jornada da
palavras e à representação Heroína incorporava da
visual. Há até quem advogue Jornada do Herói.
que é a representação Em toda tradição
visual que torna o erotismo mitológica, a mulher é.
pornográfico. E no que diz Tudo o que ela tem que
respeito a representação fazer é conscientizar-
visual (legítima ou não) se que está no lugar
do erótico e, principal- onde as pessoas estão
mente, às histórias tentando chegar. Quan-
pornográficas em quadri- do uma mulher percebe
nhos, há um universo esta característica
inteiro a ser pesquisado. maravilhosa, ela não
A proposta de Lost Girls, fica confusa com a
no entanto, é muito mais noção de ser um pseudo-
complexa, bastante recente macho (MURDOCK, 1990,
e deriva do universo p. 02)
fantástico feminino dos
contos de fadas em um A ‘Jornada do Herói’
contexto contemporâneo; como processo iniciático
principalmente no sentido é uma viagem eminentemente
de fusão de gêneros narra- masculina, refletindo um
tivos, com momentos trági- contexto cultural
cos, cômicos, filosóficos patriarcal. ‘Iniciação’ é
– combinados à narrativa um rito de passagem, em
erótica. que um jovem torna-se

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membro adulto de uma res femininos sejam os pro-
determinada comunidade. tagonistas e o aspecto
Nas lendas, os heróis são cognitivo masculino seja
sempre homens, enfrentando minimizado sempre é um
situações masculinas: desafio nas próprias
lutando pela justiça e pela estórias.
verdade. As mulheres, Murdock não entendeu
nessas estórias, corres- a resposta de Campbell,
pondem ao Sagrado Feminino considerando-a machista,
ou ‘anima narrativa’, isto no sentido, de excluir as
é, à representação proje- mulheres da jornada ini-
tada dos valores femininos ciática do autoconhecimen-
do narrador (mediação to. Ou seja: as meninas
entre autor e leitor) no não jogam esse jogo simbó-
interior da narrativa. Com lico narrativo da trans-
isso, elas, ou são meras formação espiritual atra-
coadjuvantes, sequestradas vés de aventuras heroicas.
pelo dragão e resgatadas O episódio motivou a
para o casamento alquímico psicóloga na pesquisa de
final; e/ou então se uma jornada mística femi-
associam com o mal e seus nina, com características
vilões, dificultando a próprias. Murdock pensa
vida do herói. que o foco do desenvolvi-
Há também estórias em mento espiritual feminino
que a mulher é a protago- é o de curar a divisão
nista em um universo com interna entre a mulher e
valores masculinos, como sua natureza feminina.
a estória de Joana D’Arc, E elaborou uma
por exemplo. Por isso, estrutura circular de dez
contar uma estória iniciá- etapas, representando o
tica (uma jornada heroica) processo de desenvolvimen-
em que a mulher e os valo- to espiritual feminino.

A JORNADA DA HEROÍNA
01) formação do feminino;
02) Identificação com masculino e
reunião de aliados;
03) Caminho das provações;
04) Encontrando o sucesso;
05) Despertando os sentimentos de morte
espiritual;
06) Iniciação e descida à deusa;
07) Apelo urgente para se reconectar
com o feminino;
08) Curando a divisão entre mãe e
filha;
09) Curando o masculino ferido;
10) Integração do masculino e feminino.

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A pesquisadora protagonizar a própria
Mônica Martinez (2008, história com sucesso
138-143) interpretou a comercial. A personagem,
resposta de Campbell de no entanto, forjada no
modo diferente . Para ela, período da segunda grande
o que Campbell (que estudou guerra, tinha um traje sen-
várias lendas de mitos com sual estilizado a partir
protagonistas femininos) da bandeira dos EUA, com
quis dizer foi que a mulher acessórios alusivos a prá-
não deve se masculinizar ticas sadomaquistas, como
para trilhar a jornada os braceletes indestrutí-
iniciática de um ponto de veis, forjados a partir dos
vista externo. Segundo grilhões que mantinham as
Martinez, ‘a mulher já é’, amazonas escravas; e o laço
significa que a narrativa mágico obriga a vítima a
feminina é mais interior obedecer às suas ordens.
que exterior, lugar em que Segundo Silva (2011,
os homens estão. Foi, diga- p. 9) embora a personagem
mos assim, um infeliz galan- tenha se proposto a defen-
teio anti-feminista: As mu- der uma visão progressista
lheres são; os homens estão. sobre a mulher (que deixa
Martinez quer ser uma vítima do vilão e
adaptar a Jornada do Herói um prêmio do herói), ela
de Campbell às questões es- também reflete a ideologia
pecíficas da mulher (mais de vínculo entre mulher e
profundas e complexas que a perversão sexual.
as masculinas); Murdock
O mesmo padrão sexy
prefere formular o próprio
patriótico da Mulher-
processo de desenvolvi-
maravilha inspirou várias
mento feminino: a Jornada
super-heroínas, mas, a
da Heroína.
partir dos anos 60, novas
As representações personagens femininas, com
femininas dentro do outras características,
universo das histórias em começaram a aparecer nas
quadrinhos, um universo histórias em quadrinhos.
tipicamente masculino, Elektra Assassina (1986),
sempre foi algo fora da de Frank Miller, por
realidade das mulheres. exemplo. Porém, mesmo
Elas eram namoradas, quebrando estereótipos e
secretárias, amigas dos chegando mais próximo de
heróis; sequestradas pelo uma protagonista feminina
vilão e salvas pelo semelhante à realidade,
protagonista. essas novas personagens
Em 1941, no entanto, não passaram de novas
surge a Mulher-Maravilha representações masculinas
de William Marston na da mulher moderna
revista All Star Comics n. (BARCELLOS, p. 7;
8, a primeira heroína a SIQUEIRA, p. 195-196). Po-

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rém, foi necessária a che- A própria história
gada da arte sequencial ja- Lost Girls, sob esse ponto
ponesa (Mangás e Animês) de vista, é uma transgres-
ao ocidente para que as são moral e artística. Uma
estórias de personagens das principais caracterís-
femininas se tornassem ticas femininas da
realmente narrativas femi- narrativa é a circularida-
ninas, em que finalmente de discursiva. O discurso
o público feminino possa masculino (erótico ou não)
se reconhecer tanto em tende a ser linear: começo,
‘jornadas de heroínas’ meio e fim. Ou pior, a
(estórias juvenis de escritura masculina se
aventura1), como também nos assemelha ao seu orgasmo:
quadrinhos eróticos, os “um eterno introduzir com
‘Hentai’. Por outro lado, finais abruptos”. Em
a chegada dos mangás ao contraponto, a escritura
cenário dos quadrinhos feminina e seu orgasmo não
também corresponde ao se baseiam na lógica do
aparecimento de um novo ‘acumula, acumula e gas-
público feminino globali- ta’, mas no fluxo ininter-
zado interessado em consu- rupto e progressivo do con-
mir narrativas que conso- sumo. Em outras palavras:
lidem sua identidade. o discurso não enfatiza nem
começo nem fim da narrati-
va, é um discurso circular
Lost Girls
ou elíptico que se inicia
Observou-se aqui que onde encerra sua
as representações femini- enunciação.
nas nas histórias em
quadrinhos não são criação Em Lost Girls , a
de mulheres, mas sim narrativa começa e termina
projeções masculinas da com o espelho de Alice.
mulher. E se as mulheres Aliás, a moldura do espelho
não se reconhecem nesses enquadra os Capítulos I e
personagens estereotipados XXX, sugerindo que toda a
em relação ao universo das narrativa é contada
aventuras de super-heróis, indiretamente pelos
muito menos se identificam reflexos do Espelho. E há
quando se trata de quadri- diversas menções a essa
nhos eróticos, em que elas dupla representação em
são geralmente represen- vários momentos da
tadas de formas submissas. narrativa. Na sexta página
Ressaltou-se inclusive a do primeiro capítulo, por
interpretação de que toda exemplo, quando Monsieur
1
Como, por exemplo, representação visual do Rougeur comenta a
os animes Nausicaä do Vale do erotismo pode ser conside- qualidade da literatura
Vento (1984); e a Princesa
rada pornográfica e vulgar erótica atribuída à Lady
Mononoke(Mononoke Hime, 1997),
ambos de Hayao Miyazaki, por ser demasiadamente Fairchild, sob o codinome
produzido pelo Studio Ghibli. explícita. de Hippolyte:

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Figura 3 – Diálogo entre
Monsieur Rougeur e Lady
Fairchild

O Espelho está da chegada dos soldados


presente também no final, alemães e Alice decide
no capítulo XXX (O deixar o seu espelho.
espelho: reprise & Compara-se o espelho à
crescendo ou quem sonhou imaginação, que aprisiona
isso? ), quando as três e liberta, que será
protagonistas finalmente destruída pela violência
vão fugir do hotel antes dos homens.

Figura 4 – O espelho

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De fato, os soldados das características clás-
alemães invadem o hotel e sicas do discurso erótico,
destroem o espelho de Alice a presença de breves estó-
e a narrativa (a imagina- rias eróticas no interior
ção) continua por mais três da narrativa principal com
páginas completas sem o o objetivo de excitar seus
enquadramento da moldura, personagens, e, consequen-
dando a entender que os temente, excitar os leito-
autores preferiram não res finais em uma dupla
terminar a estória com ato pedagogia sexual. Nas his-
de violência, mas sim com tórias em quadrinhos, cuja
sua crítica dentro do enre- linguagem permite o desen-
do principal. A violência volvimento de duas ou mais
destrói apenas a represen- narrativas em paralelo ao
tação duplicada. mesmo tempo, esse recurso
Também há tripla é particularmente possí-
representação ou dupla re- vel. E Moore o explora bas-
presentação interna à nar- tante. As lembranças con-
rativa através da presença fessadas das três protago-
de um livro branco de con- nistas formam narrativas
tos eróticos escrito ano- paralelas que desempenham
nimamente por Monsieur então o mesmo papel das
Rougeur (e assinado por di- estórias eróticas do livro
ferentes autores, cujo es- branco: excitá-las (e
tilo pretende imitar) do excitar-nos também) em
qual há um exemplar em cada suas orgias, cada vez mais
quarto. Aliás, essa é uma obscenas e transgressoras.

Figura 5 - Alice no país das


maravilhas

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No Capítulo III, Som- é o do contraponto entre
bras Ausentes, enquanto texto e imagem, entre a
Sra. Wendy Potter lê um voz que seduz e a imagina-
conto – Vênus e Tannahauser ção seduzida. No Capítulo
– em que os personagens IV, Papoula , enquanto
se masturbam com velas, ge- Alice seduz Dorothy e a
rando desejos inconfessá- inicia no ópio em um quar-
veis e fantasias visíveis to, Wendy e o marido escu-
através das sombras. Ou tam o acontecido no quarto
ainda, no Capítulo XXII, vizinho. E no seguinte, Da
em que Monsieur Rougeur lê noite à alvorada, desco-
um conto erótico em que brimos o aconteceu na ima-
uma família completa (pai, ginação e na realidade de
mãe, filho e filha) faz Wendy no outro quarto.
sexo entre si, embalando Outra característica
uma verdadeira orgia entre feminina de Lost Girls é o
os hospedes devassos do ho- estilo Art Nouveau da ilus-
tel. Ele, inclusive, enfa- tradora, uma “tolice
tiza de que o livro trata caprichosa”, definida pelo
de incestos imaginários, Sr. Potter na própria nar-
cuja função é apenas rativa, oposta ao figura-
excitar seus leitores. tivo da perspectiva rea-
Além do livro bran- lista, surge também de for-
co, que aparece em vários ma decorativa, nos deta-
outros capítulos, outro lhes ilustrativos e no aca-
recurso erótico narrativo bamento refinado.

Figura 6 – O Sr. Potter

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O erotismo masculino torturante substitui a dor
é misógino e sádico. Se física, se repete para
‘poder’ é “a capacidade de fazer Dorothy confessar
impor sua vontade aos que transava com o pai,
outros”. Pode-se dizer que no capítulo XXVIII, O homem
há o poder de coação, em atrás da cortina.
que a vontade é imposta Assim, é ao poder da
através da força; o poder sedução feminina que o
de persuasão, em que há o erotismo de Lost Girls
convencimento racional rende sua homenagem. E o
(incluindo aí a chantagem que observamos é a excita-
e o aliciamento por dinhei- ção através da corrupção
ro e drogas); e o poder da da inocência, do sentimen-
sedução, em que o desejo to de vergonha, da lenta
domina o outro, submeten- decomposição das resis-
do-o. No erotismo patriar- tências morais.
cal, há um forte apelo pela No Capítulo XII,
submissão pela força; no Sacudindo e despertando,
erotismo feminino, é a Alice não apenas seduz, mas
sedução que força os também corrompe moralmente
sujeitos desejantes a Wendy com suas joias,
realizarem a vontade do fazendo-a viver os sete
dominador. Mesmo quando há pecados capitais descritos
violência e submissão, no livro branco. Alice tam-
elas são alegóricas e tea- bém prostitui e vicia seus
trais. “Você gosta que eu amantes, principal-mente
o obrigue” – sussurra o através do ópio e do
Capitão Rolf Bauer (amante láudano, minando-lhes o
de Dorothy) para (Sr.) amor próprio e a dignidade.
Potter (marido de Wendy), O papel excitante da
enquanto força gentilmente inocência pode ser visto
a penetração anal, no em vários momentos e níveis
capítulo XIII, em que eles do texto: os personagens
bebem e transam, inspira- saírem de fábulas infan-
dos por um conto do livro tis, nas primeiras expe-
branco sobre o caso de riências sexuais contadas
Dorian Gray com Lord Henry pelas protagonistas, na
Wooton. sedução dos parceiros,
E, no capítulo XXIII, mas, principalmente de
em que as três protagonis- forma perversa com o Sr.
tas torturam Monsieur Potter e com o marido da
Rougeur para que ele rainha-madrasta (Sra.
confesse a autoria dos Redman) nas memórias de
contos do livro branco; tal Alice, que são sucessiva-
violência é apenas uma mente traídos e enganados
encenação delicada da ver- com grande prazer.
dadeira submissão sexual A propósito, reza um
imposta contra vontade. A enunciado erótico que a
operação, em que o prazer homossexualidade sáfica, a

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relação entre mulheres O primeiro, no capí-
não-masculinizadas, é uma tulo VI, Rainhas Unidas, onde
relação a três, incluindo Wendy observa Alice e Dorothy
ainda, além das amantes fazendo sexo oral recíproco
principais, um ‘voyeur a céu aberto. E o outro, no
invisível’ – um homem a capítulo XXVII, quando a
quem as mulheres querem própria Wendy vence o próprio
ferir e/ou excitar. E, medo da violência, engolindo
afinadas aos protestos o Capitão Gancho (o voyeur
femininos a essa polêmica assustador que prostituía as
tese, há duas passagens em crianças pobres do parque)
que a narrativa repreende pela vagina como se fosse
veementemente o voyeurismo um crocodilo, quando esse ia Figura 7 – Wendy engole o
não autorizado. lhe estuprar: Capitão Gancho

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Contudo, além do orgia das protagonistas se
texto e dos esquemas de entrelaça à viagem de ópio,
gênero e dos modelos de combinando o êxtase poé-
transgressão e contra tico do texto aos delírios
transgressão sexual, há, visuais da narrativa. Ou
na narrativa de Moore, mo- ainda no capítulo VII (O
mentos de erotismo puro e tornado?) , o primeiro
inexplicável, ‘silêncios orgasmo de Dorothy, duran-
visuais’, como no capítulo te um ciclone em sua fazen-
XX, Zás-trás, em que uma da em Kansas City.
Figura 8 – O
tornado

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Conclusão É quando Pasolini
filmará sua obra mais
Ressaltou-se ao
radical: Saló ou os 120
longo do texto vários
dias de Sodoma (1975),
elementos discursivos
superando qualquer coisa
eróticos femininos na
que tenha sido feita antes
narrativa de Lost Girls:
dele em termos de
a simetria matemática da
transgressão estética e
arte, a circularidade
moral2. Baseado na obra do
narrativa, a múltipla
Marquês de Sade, 120 dias
representação (uma estória
de sodoma ou escola de
dentro de outras), a
libertinagem (2008), o
sedução e a submissão
filme conta a história de
voluntária como formas de
quatro homens que compram
poder, a inocência como
meninos e meninas para,
fator erótico, o ritmo
enquanto esperam a queda
narrativo constante,
iminente do regime
gradativo e crescente,
fascista que os sustentam
sempre encerrada por
na pequena república de
apoteoses de êxtase. Tais
Saló, praticam o que de
elementos apontam para
pior um ser humano pode
intenção não declarada de
fazer com outro. Em um
produzir um erotismo mais
suntuoso castelo, cercadas
refinado, estético e...
de seguranças armados e
feminino.
empregados, prostitutas
Porém, o mais impor-
contam séries de estórias
tante é o deslocamento do
eróticas que são encenadas
foco narrativo das represen-
pelos jovens escravos
tações masculinas do femini-
sexuais para o deleite dos
no, tanto nas prota-gonistas
quatro senhores: há o ciclo
da ação narrativa como também
de manias, o de merda, o 2
“Alegoria sinistra do
na narração da estória.
do sangue... Porém, mais fetichismo da sociedade de
Pasolini, no início consumo”, Saló teve seu
do que as torturas físicas equivalente e clímax com o
dos anos 70, renegou seus
o que chama atenção são as assassinato de Pasolini, no
filmes eróticos, afirmando mesmo ano de 1975, e
humilhações psicológicas,
que eles foram apropriados contribuiu para fazer do
os constrangimentos cineasta uma verdadeira lenda
erroneamente pela indús-
morais, o sofrimento de negra - transpondo o mito
tria cultural, que os clas- para cotidiano em imagens
serem vítimas inocentes e como em seus filmes, a do
sificava como pornográfi-
indefesas, objetos de anjo do mal, a do herege
cos. Diante da absorção perseguido, a do último
crueldade por simples
conservadora das mídias na grande artista maldito,
prazer e diversão. sempre colocando em crise e
cultura de massas, que
Pasolini promove uma subvertendo as concepçõ
transformou o erotismo em
inversão notável da es de mundo dominantes,
pornografia, Pasolini, sempre dando visibilidade ao
intenção do texto não-dito das representações
trocou a representação
original: coloca o convencionais, sempre fazer
idealizada do sexo surgir aquilo que foi
sujeito-narrador na
clássico por uma visão repelido do consenso social e
situação de vítima e não cultural - sem nada ceder,
denunciadora de sua
na de agressor. O filme jamais, sobre a sua
violência. singularidade.
não nos incita à violência

9ª Arte | São Paulo, vol. 3, n. 1, 35-58, 1o. semestre/2014 51


3
Batman foi criado
por Bob Kane. Moore escreveu
(como normalmente fazem os representação do feminino
duas estórias importantes do filmes violentos da em narrativas gráficas.
homem morcego: Barro mortal,
cultura de massas), mas sim
desenho John Byrne,
originalmente publicado na aos sentimentos de O autor
Batman Annual 11, julho de vergonha e culpa.
1987 (MOORE et al., 2006,
232); e a importantíssima
Vários paralelos O mais importante
A piada mortal, desenho de podem ser traçados em uma roteirista de histórias em
Brian Bolland, originalmente
analogia entre Lost Girls quadrinhos da atualidade
publicado como Batman: the
killing Joke, julho de 1998 e Saló. Ambos trabalhos – tanto em quantidade como
(MOORE et al, 2006, 256). abordam a questão do sexo em qualidade e diversidade1
4
Superman foi criado por
Jerry Siegel e Joe Shuster.
e da violência, dentro de – é mesmo Alan Moore, o
Moore escreveu: Para o homem um intervalo de tempo bruxo de Northampton.
que tem tudo, desenhos de
transitório. Porém, Profissionalmente, não é
Dave Gibbons, originalmente
publicado na Superman annual enquanto Sade/Pasolini um exagero dizer que Moore
11, janeiro de 1985 (2006, estabelecem um período de inventou sua própria
9); A Linha da Selva, com
desenhos de Rick Veitch,
tempo limitado e história, trabalhando nas
originalmente publicado na decrescente de suspensão duas grandes editoras - DC
DC Comics Presents, n. 85
do afeto para livre prática Comics e Marvel Comics –
Setembro de 1985 (MOORE et
al., 2006, 128); e O que da violência; Moore e brigando com ambas por
aconteceu com o homem de aço? estabelece uma duração do um sistema mais justo de
desenhos Curt Swan & Murphy
Anderson, originalmente
prazer antes da guerra. O reconhecimento e de
publicado na Superman 423 e sexo é colocado como uma remuneração de direitos
583, em setembro de 1986
resposta feminina à autorais. Moore escreveu
(MOORE et al, 2006, 164).
5
Monstro do Pântano violência do mundo histórias sofisticadas
foi criado por Len Wein e masculino, antes da tanto para heróis
Berni Wrightson. Moore
assumiu a série em 1984, na
invasão militar. tradicionais e criados por
edição #20 e, em oito O paralelo mais outros autores (Batman3,
números, transformou um
importante, no entanto, é S u p e r m a n 4, M o n s t r o d o
estrondoso fracasso em um
retumbante sucesso (MOORE, que assim como Pasolini Pântano5, entre outros6)
2007). reinterpretou o Marques de como também criando
6
Para o personagem do Arqueiro
Verde, Moore escreveu uma
Sade de modo masoquista, narrativas completamente
estória dupla: Olimpíadas deslocando o foco novas com seus próprios
Noturnas, desenhos de Klaus
narrativo do agressor para personagens.
Janson, originalmente
publicado na Detctive Comics a vítima – é possível Para conhecer toda
, # 549/550, abril e maio de observar no trabalho de produção de Alan Moore,
1985 (MOORE et al., 2006,
51). Para o Lanterna Verde,
Moore/Gebbies, um acesse o site de fã clube
as mais importantes são: deslocamento do agente no exterior: <http://
Mogo não comparece às
sexual ativo para www.alanmoorefansite.com/
reuniões, desenhos de Dave
Gibbons, originalmente protagonistas passivas. O bibliography.html.
publicado na Green Lantern que nos excita nas estórias Aliás, como também
#188, maio de 1985 (MOORE et
al, 2006, 66); Tigres,
não é apenas o que elas criando suas próprias
desenhos Kevin O’Neill, fazem, mas também o que é histórias com personagens
originalmente publicado na
feito com elas. As de outras narrativas,
Tales of the green Lantern
corps, Annual 2, dezembro de protagonistas são senhoras oriundos da literatura,
1986 (MOORE et al, 2006, da ação e prisioneiras do como é o caso da Liga
152); Na noite mais densa,
desenhos Billy Willinghan,
seu contexto e do seu Extraordinária. No final
originalmente publicado na passado, ao mesmo tempo. do século XIX a rainha
Tales of the green Lantern
Trata-se, portanto, de uma Vitória nomeia, para
corps, Annual 3, maio de 1987
(MOORE et al, 2006, 226). nova forma de (auto) combater um perigoso

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inimigo, um gênio do crime Hell é um romance gráfico
que deseja conquistar o escrito por Alan Moore e
planeta uma legião de ilustrado por Eddie
grandes nomes da época: Campbell que especula
Allan Quatermain (As Minas sobre a identidade e as
do Rei Salomão, de H. Rider motivações de Jack o
Hagard), Mina Harker Estripador. Apesar de ser
(Drácula, de Bram Stoker), confessadamente um
Henry Jekyll e Edward Hyde trabalho ficcional, Moore
(Dr. Jekyll e Mr. Hyde, faz uma rigorosa
de Robert Louis Stevenson investigação sobre todas
), Rodney Skinner (O Homem as fontes do caso, não só
Invisível, de H.G. Wells), para garantir plausibili-
Capitão Nemo (20.000 dade e verossimilhança da
Léguas Submarinas , de narrativa, mas como uma
Julio Verne), Dorian Gray forma de pesquisa e revisão
(O Retrato de Dorian Gray, das interpretações ante-
de Oscar Wilde), Tom Sawyer riores. From Hell apre-
(As Aventuras de Tom senta mais de 40 páginas
Sawyer, de Mark Twain) e de informações e referên-
professor James Moriarty cias, indicando quais
( Memórias de Sherlock partes são baseadas na
Holmes, de Arthur Conan imaginação de Moore e quais
Doyle). são tiradas de fontes
Mas, a adaptação da específicas. As opiniões
história para o cinema de Moore sobre as
(NORRINGTON, 2003) foi um informações referenciais
fracasso de crítica e de também são listadas. Além
público. Motivo: os disso, a verdadeira aula
detalhes de época, as sobre a história e a
citações de outras arquitetura de Londres –
narrativas, a disposição bem como sobre a época e
gráfico-visual da os costumes em que o
narrativa como um todo se Estripador fez suas
perderam no tempo contínuo vítimas. A obra é densa,
e linear da sétima arte. cheia de camadas e
O próprio Moore detesta, imensamente detalhada; a
declaradamente, a ideia de edição em coletânea tem
adaptarem suas obras para aproximadamente 572
o cinema e nunca se páginas - que foram
envolveu em nenhuma das severamente amputadas pela
produções (DEZ, 2005). versão cinematográfica. E,
O mesmo aconteceu mesmo assim, o filme ficou
com a adaptação de From monótono e complexo, sendo
Hell (Do Inferno, 2005a) elogiado pela crítica,
para o cinema (HUGLES, ignorado pelo público.
2001), com participações Depois foi a vez de
de Johnny Depp, Heather Constantine, uma adaptação
Graham e Ian Holm. From do personagem das histó-

9ª Arte | São Paulo, vol. 3, n. 1, 35-58, 1o. semestre/2014 53


rias em quadrinhos John Unido, conta a história de
Constantine7, protagonista Ivi, salva da morte por
da revista Hellblazer , um vigilante mascarado,
para o cinema (LAWRENCE, conhecido apenas por ‘V’.
2005). Embora possa ser À medida que Ivi descobre
considerado um sucesso de a verdade sobre o miste-
bilheteria, é muito rioso V, ela descobre tam-
criticado pelos fãs dos bém algumas verdades sobre
quadrinhos pela falta de si própria e assim emerge
fidelidade ao original. uma inesperada aliada no
No filme, John plano para trazer liberda-
Constantine (Keanu Reeves) de e justiça a uma socieda-
é um ocultista e exorcista, de marcada pela crueldade
que ajuda Angela Dodson e corrupção.
(Rachel Weisz), uma Lançada em 1985,
policial cética, a Watchmen tornou-se um
investigar o misterioso extraordinário sucesso e é
suicídio de sua irmã gêmea, considerado um marco na evo-
Isabel. O filme é inspirado lução dos quadrinhos, intro-
numa história antiga de duzindo temas e linguagens
Hellblazer, Hábitos antes utilizadas apenas por
perigosos (1995), em que quadrinhos alternativos. O
Constantine descobre que sucesso crítico e de público
têm câncer de pulmão e já que a série teve ajudou a
em estado terminal. O mago popularizar o formato co-
então tenta bolar um plano nhecido como Graphic Novel,
para escapar da morte, até então pouco explorado
lidando com demônios pelo mercado.
legais e anjos malvados.
Mais recentemente, Na trama de Watchmen,
também houve adaptações situada nos EUA de 1985,
para cinema de dois dos existem super heróis
principais trabalhos: V de mascarados reais. O país
Vingança (2006a), com estaria em vias de declarar
roteiro dos Irmãos uma guerra nuclear contra
Wachowski, da trilogia a União Soviética. A estó-
Matrix (MC TEIGUE, 2005); ria envolve os episódios
e Watchmen (2005), vivi-dos por um grupo de
dirigido por Zack Snyder super-heróis no passado e
7
John Constantine foi criado (2009). no presente e o misterioso
por Alan Moore, como um mero
figurante da revista Monstro
V de Vingança (versão assassinato de um deles.
do Pântano, mas se em português para V for Watchmen retrata os super-
popularizou rapidamente. Vendetta) é uma série
Arrogante, negligente e
heróis como indivíduos
enganador, o personagem foi desenhada por David Lloyd em verossímeis, que enfrentam
inventado por Moore para preto e branco em 1983 e problemas éticos e psico-
satisfazer o pedido dos então
desenhistas da revista, Steve
relançada em cores em 1988. lógicos, lutando contra
Bissette e John Totleben de A história, que se neuroses e defeitos. E com
ter um personagem parecido
com o cantor Sting nas
passa em um distópico vários problemas de
histórias. futuro de 1997 no Reino relacionamento entre eles.

54 9ª Arte | São Paulo, vol. 3, n. 1, 35-58, 1o. semestre/2014


Pode-se dizer que e Técnica: ensaios sobre
Moore entrou assim na 3ª literatura e história da
geração de grupos de cultura. Tradução de
heróis: primeiro na Liga Sergio Paulo Rouanet. São
da Justiça, ele dá Paulo: Brasiliense, 1994.
profundidade psicológica e p. 165 – 196.
narrativas sofisticadas CAMPBELL, Joseph. O Herói
aos superheróis tradicio- de Mil Faces. São Paulo,
nais; com a Liga Extraordi- Editora Cultrix/
nária, amplia ainda mais Pensamento, 1995.
a façanha, elegendo sua CREPAX, Guido. Valentina
própria legião de heróis . Dois volumes. São Paulo,
literários; com Watchmen, editora Conrad, 2007.
no entanto, Moore descons-
trói a própria noção de DEZ, VYLENZ. The Mindscape
superherói e de grupo de of Alan Moore (2005) 80 8
Uma releitura satírica dos
50 anos de estórias de
super heróis. min - Documentary | Superman, com várias
Biography - 21 August homenagens críticas, citações
Nos últimos anos, 2005 (Denmark); Directors: e analogias aos seus
Moore está trabalhando em Dez Vylenz, Moritz Winkler
principais desenhistas e
roteiristas. Desenhado por
várias séries, retomando Writers: Dez Vylenz, Chris Sprouse, Rick Veitch e
alguns projetos inacabados Moritz Winkler; Stars:
outros, publicado por Image
Comics/Awesome Entertainment,
(A Liga Extraordinária II Glenn Doherty, Florian em 2003. A Editora Devir
e III e Supremo8) bem como Fischer, Alan Moore. lançou os quatro fascículos
começando outros (As Produced by: George Arton,
(A Era de Ouro, A Era de
Prata, A Era de Cobre e A Era
Aventuras de Tom Strong9 e Dez Vylenz, Gert Winkler, Moderna) em português.
Promethea10). Mas certamen- Moritz Winkler.
(MOORE, 2008)
9
No mesmo estilo de homenagem
te o projeto mais incomum
ENNIS, Garth; SIMPSON, satírica de Supreme, Tom
deste novo período de Moore Strong conta as aventuras de
é a série Lost Girls. William; PENNINGTON, Mark; um science hero,
et alli. Hellblazer: inspirados nas histórias em
quadrinhos pulps das décadas
REFERÊNCIAS hábitos perigosos. de 1920/1930. Incluindo
Hellblazer # 41, publicado também as séries derivadas da
BATAILLE, Georges. O saga principal, há pelo menos
originalmente pela DC
Erotismo. Lisboa: dez volumes, desenhados por
Comics, 1991. São Paulo: Chris Sprouse, Steve Moore,
Antígona, 1988.
Vertigo, 1995. Art Adams e outros; e
BARCELLOS, Janice Primo. publicados pela DC Comics/
Wildstorm/ABC, entre 1999 e
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Aventuras e No final dos
mulher pelos olhos dos Estados Unidos 2001 • cor •
tempos) foram publicados pela
homens. Acesso em: 18/09/ 122 min Produção; Direção: Devir (2006) e pela Pixel
2013. Disponível em: Albert Hughes; Allen Hughes; (2008).
10
A estudante Sophie Bangs,
http://www.eca.usp.br/ Roteiro Adaptação: Terry investigando o mito de
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heroína mística que se
a n o 2 / n u m e r o 4 / Graphic Novel: Alan Moore,
manifestou em diversas
artigosn4_1v2.htm Eddie Campbell. Elenco mulheres, acaba por se tornar
BENJAMIN, Walter. A obra original: Johnny Depp, a nova encarnação dessa
guerreira mitológica.
de arte na era de sua re- Heather Graham, Ian Holm; Desenhado por J.H. Williams
produtibilidade técnica. Género: Suspense, Idioma III e outros, 1999-2005, 5
volumes, pela DC Comics/
In:_______________. Magia original; Inglês.
Wildstorm/ABC. (MOORE, 1999).

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Idioma original: Inglês. clássicos DC n. 09 - Alan
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Direção: James McTeigue; VEITCH, Rick. et alli.
Produção: Joel Silver, Supremo. Publicado origi-
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Kevin O’Neill. Roteiro: Tse, David Hayter. Obra
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Shane West. Haley, Billy Crudup,
SADE, Marques de. 120 dias Jeffrey Dean Morgan, Malin
de sodoma ou escola de Åkerman, Matthew Goode;
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ção:Alain François. São científica; Idioma
Paulo: Iluminara, 2008. original: inglês.

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PASOLINI, Pier Paolo. Empi- Sodoma. Com: Giorgio
rismo Erótico. Roma: Cataldi, Paolo Bonacelli,
Garzanti, 3a ed, 2000. Umberto Paolo Quintavalle.
PASOLINI, Pier Paolo (Dir.) Gênero: Drama, Terror. ITA/
Saló o Le 120 Giornate di FRA, 1975, Cores, 117 min.

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