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Pedi-te, Criador, que do meu barro homem me moldasses?

Solicitei-te,acaso, que das


trevas me tirasses?
Paraíso perdido, poema épico de John Milton (1608-1674)
Estes volumes são respeitosamente dedicados pela autora a William Godwin, autor de
Political Justice, Caleb Williams e outras obras.
Apresentação
A VOZ DO MONSTRO
Braulio Tavares

Aconteceu com o monstro de Frankenstein um fenômeno comum


na cultura de massas: a cópia que toma o lugar do original. Se
falarmos nesse monstro diante de qualquer público, a imagem que
lhes virá à mente não é a do ser artificial criado pelo cientista do
livro de Mary Shelley, mas o enorme e desengonçado personagem
de Boris Karloff no cinema, a partir do filme dirigido por James
Whale em 1931.
Mais uma vez, ocorre aqui a mecânica habitual na história da
narrativa. A literatura produz arquétipos impressionantes, de
influência profunda mas restrita, e em seguida o cinema (ou algum
outro tipo de espetáculo) recria esse arquétipo mediante outra
linguagem, outro código, outras referências, produzindo significados
que só a ele pertencem.
O monstro no filme norte-americano de James Whale é uma
imitação disforme e desengonçada do monstro no livro da autora
inglesa – tal como este era uma imitação disforme e desengonçada
de um ser humano.
Será que cada recriação implica uma perda de qualidade, como
ocorre com uma xerox de uma xerox de uma xerox? Talvez, mas
cada nova versão do mito brota de uma nova “estaca zero”. Tem um
novo começo, e muitas vezes compensa as perdas em relação ao
arquétipo original com qualidades e ressonâncias mais em acordo
com o espírito de sua época. A narrativa visual do cinema energiza
essas formas abstratamente literárias. O que se tem não é um mero
reflexo, mas uma nova explosão.
O monstro de Boris Karloff tem partes iguais de humanidade e de
não-humanidade, e isso o ajudou a ser um parâmetro definitivo.
Hoje, na época dos videogames, não podemos deixar de ver nessa
criatura a mesma caminhada hesitante e mecanizada de um
“carinha” de um jogo qualquer, um avatar, com seus passos
trôpegos, seus gestos desajeitados, sua voz que varia às vezes
entre um grunhido e um uivo.
Se em 1831 Mary Shelley lançou a edição definitiva de seu livro,
e em 1931 James Whale dirigiu a adaptação clássica para o cinema,
como não imaginar que dentro de mais dez anos, em 2031, alguém
produzirá o Frankenstein dos jogos? Um diretor como Kojima ou
uma produtora como a Rockstar poderão trazer para o mundo dos
jogos eletrônicos o primeiro avatar consciente, ainda que ele exista
apenas numa forma rudimentar, prometeica, karloffiana.
A imagem que assustava os espectadores de 1931 não é mais,
necessariamente, uma fonte de terror. O gênero evoluiu tão
depressa, no cinema, que criou ramificações contraditórias: temos
hoje no cinema um “terror que não aterroriza”, que guarda do
gênero os temas, os arquétipos, os cenários, os enredos, mas não
amedronta as plateias modernas. Dificilmente essas plateias
sentirão um medo real (como conseguem sentir diante do terror
contemporâneo) diante dos filmes de Roger Corman com Vincent
Price, da maioria dos filmes da Hammer Films britânica ou dos
filmes de monstros japoneses dos anos 1960. É um terror
estetizado, em que contemplamos as convenções visuais e
narrativas, mas a emoção resultante foi substituída por outra.
O crítico Jean-Claude Bernardet, num artigo n’O Estado de S.
Paulo (18/02/2007), comenta o modo como essas leituras subjetivas
vão sendo substituídas por outras à medida que o tempo passa (e
não somente assim):
A partir de um mesmo filme, mecanismos de seleção, valorações e projeções de
anseios e aspirações de determinado grupo social em determinado momento
constroem um objeto mental. Diversos grupos em diversos momentos podem
construir diversos objetos mentais a partir de um filme. O mesmo objeto
cinematográfico, com as mesmas imagens e sons numa mesma montagem, se
transforma conforme os olhares que incidem sobre ele, dando origem a diversos
objetos mentais. [...] As projeções podem ser mais dinâmicas e enriquecedoras
quando feitas sobre o equilíbrio instável de obras híbridas do que sobre obras
coesas e harmoniosas.
Obra híbrida é o que Frankenstein se tornou, ao ser transposto do
romance oitocentista para o cinema comercial. Apesar das
numerosas e notáveis qualidades que tem o filme de Whale, a
ninguém ocorreria chamá-la uma “obra coesa e harmoniosa”,
principalmente alguém que tivesse lido a obra original em que se
baseou. Tal como o monstro foi feito a partir de pedaços de
cadáveres e de um cérebro de psicopata, e animado por descargas
elétricas, o filme resultou de muitos roteiristas trabalhando
independentemente uns dos outros, cortando e colando ideias, e foi
animado pela estética nascente do cinema sonoro em preto e
branco. Um cinema que, tal como o monstro, estava ainda
aprendendo a falar.
Comparado ao filme realizado por uma enorme equipe de
homens adultos ou de meia idade, o romance da garota de menos
de vinte anos é um primor de equilíbrio, de deliberação, de controle
de voz narrativa, de percepção da estrutura. Mesmo que a mão
experiente de Percy Bysshe Shelley tenha cortado aqui, feito
aumentar ali, trata-se de um mero trabalho de editoração, mais do
que comum na literatura. O gênio, a imaginação, o delírio e a
sustentação narrativa são todos da jovem autora.
Histórias dentro de histórias
Frankenstein foi estruturado como um romance-matriosca, com
histórias encapsuladas umas dentro das outras. Um formato que o
romance do século XIX (que desembocaria no vago subgênero
chamado “romance vitoriano”) usou fartamente. São três histórias
entre parênteses, umas dentro das outras, com narradores nesta
sequência: Walton / Victor / o monstro / Victor / Walton.
O Capitão Walton é o típico aventureiro da Ciência dessa época.
Ele viaja ao Polo Norte em busca de descobertas, e ali escuta a
narrativa de Victor Frankenstein, outro aventureiro, só que mais bem
(e mal) sucedido, porque ele, sim, conseguiu transpor o limite do
Desconhecido. O que Victor descobre/inventa, uma nova forma de
vida, volta-se contra ele. Repete-se aquela advertência feita por
Nietzsche: “Se alguém olhar muito para um abismo, o abismo olhará
de volta”.
A revolta do monstro contra Victor Frankenstein é esse olhar de
volta, que horroriza o cientista. Victor está no limiar do proibido, e o
proibido olha para ele, e dá-lhe um banho de retórica, de ética e de
argumentação. O que o Capitão Walton (o verdadeiro narrador-raiz
do livro) presencia e relata é o resultado de uma empresa faustiana
(uma defloração da Natureza) semelhante à que ele próprio tinha
em mente quando zarpou em seu navio; como se toda aquela
aventura ártica tivesse o sentido de dizer-lhe: “Volte daqui mesmo”.
O bom selvagem
O monstro original é o do livro. Foi dele que nasceu toda essa
árvore genealógica de fabricações, piratarias genéticas, gambiarras
ciberbiológicas. O monstro original tem algo importantíssimo que
somente a releitura do romance é capaz de nos trazer: ele tem um
discurso. Ele tem sua própria narrativa. Monstruoso, antinatural,
criminoso, mas ele brota na parte central do romance de Mary
Shelley como uma mente comparável à do seu criador, e um réu
capaz de defender a si mesmo.
Nenhum leitor ficará indiferente ao discurso de defesa do monstro
diante de Victor Frankenstein. Na imensa proliferação de
interpretações, exegeses e exames do livro de Mary Shelley, há um
tema recorrente: o da culpa do cientista, não apenas por ter
transposto o limite do proibido (“na Natureza há coisas que não é
dado ao Homem descobrir”), mas também por ter produzido um ser
igual a si mesmo e abdicado da responsabilidade em relação a ele,
como um pai desnaturado que dá as costas a um filho que não
desejou e o abandona à própria sorte.
O monstro seria, então, mais uma encarnação do “bom
selvagem”, do ser humano cheio de potencialidades positivas, mas
que a sociedade transforma num criminoso ou num pária. E não
falta quem veja nele (inevitavelmente, até) um símbolo das
multidões brutalizadas surgidas das brumas e da fumaça da
Revolução Industrial. Milhões de pessoas tartamudas, analfabetas,
sem cultura, sem saúde, vivendo apenas para executar tarefas
mecânicas, sem nenhum horizonte mental além do destino que lhes
foi imposto pelos cientistas, os arquitetos desse tipo de civilização.
Na recente reedição de seu A verdadeira história da ficção
científica (São Paulo: Seoman, 2018, trad. Mario Molina), Adam
Roberts cita a interpretação de Franco Moretti nesse sentido:
Sem raízes, apartado do seu trabalho, isolado e caracterizado como “monstruoso”
pelas classes dominantes, o trabalhador industrial sofria a maioria das
consequências da retração econômica do século XIX. [...] Segundo essa
interpretação, o “monstruoso” no monstro (uma criatura, como o proletariado, com
enorme potencial para o bem que sofre um entrave e se volta para fins destrutivos) é
exatamente o conjunto de sua natureza, de sua força bruta, o fato de se encontrar
fora dos discursos da sociedade civilizada (p. 194).
Uma das encarnações mais recentes desse proletariado,
resultante dos Frankenstein do futuro, são os androides de Blade
Runner (1983), o filme de Ridley Scott (mais que o livro de Philip K.
Dick), um monstro que também irrompe na vida de seu criador e o
questiona, e acaba por destruí-lo, por achar que não foi tratado com
deveria.
Cumpre-se aqui mais uma vez a tragédia da salvação que
poderia ter sido feita a tempo, mas não foi, e a desgraça chega a um
ponto irreversível. O rancor do monstro de Frankenstein repete o do
ifrit aprisionado, na lenda “O pescador e o ifrit” das Mil e uma noites:
Eu sou um dos gênios rebelados, e me ergui contra o Rei Salomão, filho de Davi
(que a paz esteja com os dois!). Fui derrotado. Salomão, filho de Davi, exortou-me a
abraçar a fé em seu Deus e obedecer a suas ordens. Eu me recusei. O Rei então
me trancou neste recipiente de cobre e impôs ao lado externo dele o seu Nome Mais
Elevado, e depois disso deu ordens aos gênios menores para que me arrojassem ao
fundo do oceano. Eu disse ao meu coração: “Aquele que me libertar eu o tornarei
rico para sempre”. Mas um século inteiro se passou, e ninguém apareceu. Então eu
disse ao meu coração: “Àquele que me libertar eu revelarei todos os segredos das
artes mágicas da terra”. Mas passaram-se mais quatro séculos, e eu continuei no
fundo do mar. Então eu disse: “Àquele que me libertar, concederei três desejos”. E
novecentos anos mais se passaram. Então, cheio de desespero eu proferi uma jura
invocando o Nome Mais Elevado: “Aquele que me libertar, eu o matarei. Prepara-te
para morrer, meu libertador!” (tradução minha).
Imagens que se prolongam
Texto fundador e fonte permanente de inspiração, o livro de Mary
Shelley deixou marcas inclusive na ficção científica da América
Latina. Em The Emergence of Latin American Science Fiction
(Wesleyan University Press, 2011), Rachel Haywood-Ferreira
analisa, entre muitas outras obras, textos que dialogam com o
romance de Shelley.
El Hombre Artificial (1910), do uruguaio Horacio Quiroga (sob o
pseudônimo de S. Fragoso Lima), mostra um homem construído de
maneira mais sofisticada do que pela costura de pedaços e órgãos:
ao contrário do monstro de Mary Shelley, o “Biógeno” de Quiroga é
construído no nível molecular, “elemento por elemento, miligrama
por miligrama”.
Já o conto pioneiro do argentino Eduardo L. Holmberg, “Horacio
Kalibang, o los Autómatas” (1879), também sobre a criação de
homens artificiais, esquece a colagem biológica e mostra seres
criados por partes mecânicas, cuja origem tanto pode vir via Shelley
quanto via E. T. A. Hoffmann e suas criaturas artificiais.
Em muitos momentos da História uma obra literária consegue
empolgar a imaginação de uma geração inteira ao servir de ponto
focal para uma série de inquietações, hipóteses, medos e desejos
que começam a ser formulados dentro do espírito da época.
Frankenstein foi isso em seu tempo. Sua influência aumentou
depois de dois séculos, ao mesmo tempo que se metamorfoseou: as
centenas de epígonos, imitações, adaptações e paródias alargaram
esse campo de significado. Se por um lado contribuíram para
esgarçar certos traços essenciais da obra fundadora, também
puderam produzir novos conjuntos de ícones e de figuras narrativas
que não deixam esgotar-se da energia inicial do arquétipo.
É importante retornar hoje ao primeiro Frankenstein de todos, e é
importante principalmente ouvir o que o Monstro tem a nos dizer.
BRAULIO TAVARES é escritor e compositor. Ganhou o Prêmio Caminho
de Ficção Científica em 1989 com A espinha dorsal da memória,
relançado em 2020 pela Ed. Bandeirola (SP). Para a Casa da
Palavra (RJ) editou e cotraduziu uma série de seis antologias de
contos fantásticos, das quais a mais recente é Detetives do
sobrenatural (2014). Já ganhou um Prêmio Jabuti de Literatura
Infantil, dois Prêmios Shell de Teatro e várias premiações brasileiras
no campo da literatura fantástica. Mantém o blog literário Mundo
Fantasmo.
NOTA DO TRADUTOR

Mary Shelley escreveu Frankenstein entre 1816 e 1817, aos 19


anos de idade. A primeira edição do livro foi publicada em 1818, em
três volumes, por uma pequena editora de Londres – a Lackington,
Hughes, Harding, Mavor and Jones –, e atribuía sua autoria a R. B.
Peake (era relativamente comum, na época, as mulheres assinarem
suas obras com pseudônimos masculinos).
Com o sucesso do livro, uma segunda edição foi publicada em
1823, agora com Mary Shelley assumindo a autoria. A essa altura,
ela já mencionara a intenção de reescrever os dois primeiros
capítulos, por achar alguns dos incidentes narrados “maçantes e
com linguagem infantil, indignos do restante da narrativa”. Por fim,
em 1831, a Colburn and Bentley, outra editora londrina, publicou em
um só volume uma nova edição, “revisada, corrigida e ilustrada, e
com uma nova introdução da autora”, segundo informava o
frontispício. Nessa edição de 1831, Mary Shelley, além de relatar na
citada introdução alguns detalhes da gênese da obra, promoveu e
comentou as alterações que havia feito em relação à edição original
de 1818, ressalvando não ter mudado “nenhuma porção da história,
nem introduzido quaisquer ideias ou circunstâncias novas”. Em
termos gerais, excetuando algumas modificações no enfoque de
certas questões, de fato não houve uma alteração significativa no
conteúdo da história. Além de acrescentar um capítulo entre o
primeiro e o segundo da edição original, a autora fez cerca de
sessenta modificações (acréscimos e substituições), algumas
extensas, com vários parágrafos, outras mais pontuais, outras ainda
limitadas a duas ou três linhas. Segundo Mary Shelley, a intenção
principal foi “corrigir a linguagem quando se mostrou árida a ponto
de interferir com o interesse da narrativa”. Em suma, uma revisão de
praxe, voltada para melhorar o estilo e tornar mais claras algumas
passagens e transições. A presente tradução se baseia nessa
edição de 1831.
INTRODUÇÃO

Os editores da Standard Novels, ao selecionarem Frankenstein


para uma de suas coleções, expressaram o desejo de que eu lhes
fornecesse algum relato sobre a origem da história. Faço isso de
bom grado, porque desse modo posso dar uma resposta geral à
pergunta que com tanta frequência me é feita: “Como é possível que
eu, então uma jovem, tivesse concebido e desenvolvido uma ideia
tão horripilante?” É verdade que sou muito avessa a me expor em
letra impressa, mas, como meu relato irá figurar apenas como
complemento a uma produção anterior e ficará restrito aos tópicos
vinculados à minha autoria deste livro, mal poderia me acusar de
uma intromissão pessoal.
Nada há de singular no fato de eu, filha de duas pessoas de
reconhecido prestígio literário, ter desde cedo na vida pensado em
escrever. Quando criança, já rabiscava algumas coisas, e meu
passatempo favorito, nas horas em que me permitiam uma
recreação, era “escrever histórias”. Mesmo assim, tinha um prazer
maior ainda, o de construir castelos de areia – entregar-me a sonhar
de olhos abertos –, seguir linhas de pensamento que tinham por
tema formar uma sucessão de eventos imaginários. Meus devaneios
eram ao mesmo tempo mais fantásticos e mais agradáveis que
meus escritos. Nesses últimos, eu era uma fiel imitadora: preferia
fazer como outros já tinham feito a introduzir sugestões da própria
mente. O que escrevia era dirigido a pelo menos outro olhar além do
meu – o da minha companheira e amiga de infância –, mas meus
sonhos eram só meus; não os contava a ninguém; eram meu refúgio
para o tédio, meu maior prazer quando estava livre.
Menina, vivi principalmente no campo e passei um bom tempo na
Escócia. Fazia visitas ocasionais às partes mais pitorescas do país,
mas minha residência habitual era nas margens desoladas e sem
graça ao norte do rio Tay, perto de Dundee. Digo desoladas e sem
graça ao rememorá-las agora, mas não as via assim na época.
Eram o mais alto reduto da liberdade, a região agradável onde eu,
despercebida, podia comungar com as criaturas da minha fantasia.
Então escrevia, mas no estilo mais trivial. Era sob as árvores dos
terrenos pertencentes à nossa casa, ou nas ermas encostas de
montanha sem bosques das proximidades, que minhas verdadeiras
composições, os etéreos voos de minha imaginação nasciam e
eram incentivados. Não fazia de mim mesma a heroína dos meus
relatos. A vida me parecia uma coisa banal demais no que me dizia
respeito. Não conseguia imaginar-me algum dia vivendo dores de
amores ou eventos maravilhosos; não me restringia à minha
identidade e preferia povoar as horas com criações bem mais
interessantes para mim, naquela idade, que minhas próprias
sensações.
Depois minha vida ficou agitada, e a realidade tomou o lugar da
ficção. Meu marido, no entanto, tinha desde o início muita
expectativa de que eu provasse estar à altura de meus pais e
encontrasse meu lugar no rol da fama. Sempre me instigava a
conquistar uma reputação literária, o que na época eu também
valorizava, embora desde então venha encarando com infinita
indiferença. Naquele tempo, ele desejava que eu escrevesse não
tanto com a ideia de que pudesse produzir algo digno de nota, mas
para que ele pudesse avaliar o quanto eu prometia fazer coisas
melhores a partir dali. Mesmo assim, não produzi nada. As viagens
e os cuidados com a família ocupavam meu tempo, e o estudo, na
forma de leituras ou de aprimoramento de minhas ideias em contato
com a mente bem mais culta de meu marido, era toda a atividade
literária que prendia minha atenção.
No verão de 1816, visitamos a Suíça e ficamos vizinhos de Lorde
Byron. De início, passávamos agradáveis horas no lago, ou
passeando pelas margens, e Lorde Byron, que compunha o terceiro
canto de Childe Harold, era o único de nosso grupo que colocava
seus pensamentos no papel. Estes, conforme os trazia
sucessivamente à nossa atenção, envolvidos por toda a luz e
harmonia da poesia, pareciam selar como divinas as glórias do céu
e da terra, cujas influências compartilhávamos com ele.
Mas o verão revelou-se úmido, antipático, e a chuva incessante
muitas vezes nos mantinha vários dias confinados dentro de casa.
Alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão
para o francês, caíram em nossas mãos. Havia a História do
Amante Inconstante, que, quando pensava abraçar a noiva a quem
declarara seus votos, via-se nos braços do pálido fantasma da
jovem de quem ele fugira. Havia o conto do pecaminoso fundador
de uma linhagem familiar, cuja triste sina era conceder o beijo da
morte a todos os filhos mais novos de seu malfadado clã, assim que
alcançavam a idade em que a promessa devia se cumprir. Sua
forma agigantada, sombria, trajada como o fantasma do Hamlet,
com armadura completa, a viseira levantada, era entrevista à meia-
noite, sob os raios tremeluzentes do luar, seguindo lentamente pela
escura alameda. A forma se dissolvia ao chegar à sombra dos
muros do castelo, mas logo um portão recuava, ouviam-se passos,
a porta do aposento era aberta e ele avançava até o leito daqueles
jovens em flor, embalados num sono saudável. Um pesar eterno
estampava-se em seu rosto quando se inclinava para beijar a testa
dos meninos, que a partir desse instante definhavam como flores
arrancadas de seu talo. Nunca mais revi essas histórias, mas seus
incidentes ainda estão frescos na minha memória como se os
tivesse lido ontem.
“Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas”, disse
Lorde Byron, e sua proposta foi aceita. Éramos quatro. O nobre
escritor começou um conto, do qual publicou um fragmento no final
de seu poema Mazeppa. Shelley, inclinado a formular ideias e
sentimentos no esplendor de uma brilhante imagética e na
musicalidade dos mais melodiosos versos que ornam nossa língua,
mais do que a inventar um enredo para uma história, começou a
escrever um conto sobre suas primeiras experiências de vida. O
pobre Polidori teve uma ideia terrível a respeito de uma mulher com
uma caveira no lugar da cabeça, que havia sido assim punida por
espiar, pelo buraco de uma fechadura – para ver o quê, não lembro
mais –, alguma coisa, é claro, muito chocante e ofensiva. Mas
quando foi reduzida a uma condição pior que a do renomado Tom
de Coventry, Polidori não soube mais o que fazer com ela e foi
obrigado a despachá-la para o túmulo dos Capuleto, único lugar
para o qual se mostrava adequada. Os ilustres poetas também,
entediados pelas platitudes da prosa, logo abriram mão da pouco
atraente missão.
Continuei tentando pensar em alguma história – uma que
estivesse à altura daquelas que haviam nos animado a cumprir
nossa tarefa. Uma que falasse dos misteriosos medos de nossa
natureza e despertasse calafrios de horror, que fizesse o leitor ter
receio de olhar ao redor, que coagulasse seu sangue e acelerasse
as batidas de seu coração. Se eu não conseguisse esses efeitos,
minha história de fantasmas não faria jus ao nome. Pensei e
ponderei – em vão. Senti o vácuo da incapacidade de invenção, que
é o maior infortúnio de um escritor quando apenas um enfadonho
Nada responde às nossas ansiosas invocações. Já pensou em
alguma história? , era a pergunta que me faziam toda manhã, e que
toda manhã eu era obrigada a responder com uma negativa
mortificante.
Tudo precisa ter um começo, já dizia Sancho Pança, e esse
começo deve estar ligado a algo que veio antes. Os hindus
concedem ao mundo um elefante para sustentá-lo, mas fazem o
elefante apoiar-se sobre uma tartaruga. A invenção, devemos ser
humildes em admitir, não consiste em criar a partir do nada, mas a
partir do caos; em primeiro lugar, devemos dispor dos materiais: a
invenção pode dar forma a substâncias escuras e informes, mas
não pode criar essas mesmas substâncias. Em todas as questões
de descoberta e invenção, até as que pertencem à imaginação,
somos sempre lembrados da história do ovo de Colombo. A
invenção consiste na capacidade de captar as potencialidades de
um tema e no poder de moldar e dar sentido às ideias que ele
sugere.
Muitas e longas foram as conversas entre Lorde Byron e Shelley,
das quais eu era uma ouvinte devota, mas quase sempre silenciosa.
Em uma delas, várias doutrinas filosóficas foram discutidas, como a
da natureza do princípio vital e se havia alguma probabilidade de ele
ser um dia descoberto e comunicado. Mencionou-se o experimento
do doutor Darwin (refiro-me não ao que esse doutor realmente fez,
ou afirmou ter feito, mas, por ser mais afim ao meu propósito,
daquilo que então se comentou que ele fizera). Havia preservado
um pedaço de vermicelli num estojo de vidro, até que, por algum
meio extraordinário, este começou a se mexer, com movimento
voluntário. De qualquer modo, não seria assim que se daria vida a
algo. Talvez um corpo pudesse ser reanimado. O galvanismo
tornara plausíveis essas coisas: quem sabe as partes componentes
de uma criatura pudessem ser manufaturadas, reunidas e dotadas
de calor vital.
A noite foi se esgotando em torno dessa conversa, e a hora das
bruxas até já havia passado quando nos recolhemos para
descansar. Ao colocar a cabeça no travesseiro, não consegui pegar
no sono, nem se poderia dizer que pensasse. Minha imaginação, à
solta, me possuía e me guiava, presenteando-me com sucessivas
imagens que brotavam em minha mente com uma vivacidade bem
além dos contornos do devaneio. Eu vi – de olhos fechados, mas
com aguda visão mental –, vi o pálido estudante das artes profanas
ajoelhado ao lado da coisa que havia montado. Vi o horripilante
fantasma de um homem estendido, que então, pela ação de algum
motor poderoso, mostrou sinais vitais e se agitou com movimentos
desajeitados, com uma semivida. Que assustador deve ser, pois de
fato seria sumamente espantoso ver o efeito de qualquer esforço
humano imitando o estupendo mecanismo do Criador do mundo. O
sucesso nessa empreitada deixaria o artista aterrorizado; ele fugiria
correndo de seu odioso artefato, tomado de horror. Esperaria então
que a tênue centelha de vida que lhe houvesse comunicado se
apagasse ao ser deixada por si só, que aquela coisa, que recebera
tão imperfeita animação, se dissipasse de volta na matéria morta e
que ele pudesse dormir acreditando que o silêncio do túmulo
liquidaria para sempre a transitória existência daquele horripilante
cadáver no qual julgara ver o berço da vida. Ele dorme, mas é
acordado; abre os olhos e contempla, plantada ao lado de sua
cama, a horrível coisa, que abre o cortinado e olha para ele com
seus olhos amarelados, aguados e especulativos.
Abri os meus, tomada de horror. A ideia possuiu de tal modo
minha mente que um calafrio de medo percorreu todo o meu corpo e
desejei trocar a medonha imagem da minha fantasia pelas
realidades ao meu redor. Vi tudo quieto: o próprio quarto, o assoalho
escuro, as persianas fechadas, por onde a luz do luar forçava
passagem, e a sensação da presença, mais ao longe, do vítreo lago
e dos altos Alpes brancos. Não conseguia me livrar do meu
apavorante espectro, ele ainda me assombrava. Quis pensar em
outra coisa e recorri à minha história de fantasmas – minha
cansativa e malfadada história de fantasmas! Oh! Se pelo menos eu
conseguisse criar uma história que assustasse meu leitor tanto
quanto eu mesma me assustara aquela noite!
Rápida como a luz e tão bem-vinda quanto, brotou em mim a
ideia. “Encontrei-a! O que me aterrorizou há de aterrorizar os outros,
e só preciso descrever o espectro que assombrou meu sonho da
meia-noite.” Na manhã seguinte, anunciei que havia pensado em
uma história. Iniciei aquele meu dia com as palavras Foi em uma
sombria noite de novembro, e fiz apenas uma transcrição dos
sórdidos terrores do meu devaneio.
De início, pensei em umas poucas páginas – um conto curto. Mas
Shelley incentivou-me a desenvolver a ideia com maior extensão.
Com certeza não devo ao meu marido a sugestão de qualquer
incidente, sequer de uma sequência de sensações, e, no entanto,
não fosse por ele ter me instigado, o romance não teria adquirido a
forma em que veio a ser apresentando ao mundo. Dessa declaração
devo excetuar o prefácio. O quanto sou capaz de lembrar, foi todo
escrito por ele.
E agora, de novo, conclamo meu horrendo rebento a seguir
adiante e prosperar. Tenho afeição por ele, pois foi cria de dias
felizes, quando a morte e o pesar eram apenas palavras que não
encontravam verdadeiro eco no meu coração. Várias de suas
páginas falam de muitas caminhadas, muitos passeios e conversas,
de um tempo em que não era sozinha e meu companheiro era
alguém que neste mundo nunca mais deverei encontrar. Mas isso
são questões minhas; meus leitores nada têm a ver com essas
associações.
Acrescento apenas uma palavra quanto às alterações que fiz.
São principalmente de estilo. Não mudei nenhuma porção da
história, nem introduzi quaisquer ideias ou circunstâncias novas.
Corrigi a linguagem onde ela se mostrou árida a ponto de interferir
com o interesse da narrativa; e essas mudanças ocorrem quase
exclusivamente no início do primeiro volume. Ao longo do livro,
ficam totalmente restritas a certas partes como meros acréscimos à
história, sem alterar sua essência e substância.

M. W. S.
Londres, 15 de outubro de 1831.
PREFÁCIO

O evento sobre o qual esta ficção se baseia não foi considerado


impossível de ocorrer pelo Dr. Darwin* e por alguns autores alemães
que escrevem sobre fisiologia. Não se deve supor que eu conceda o
mais remoto indício de crédito a tal fantasia; mesmo assim, ao
assumi-la como base de uma obra de ficção, não julguei que
estivesse simplesmente entrelaçando uma série de terrores
sobrenaturais. O evento sobre o qual se assenta o interesse desta
história está isento dos inconvenientes de um mero conto de
fantasmas ou encantamentos. Justifica-se pela novidade das
situações que desenvolve e, apesar de impossível como um fato
físico, oferece à imaginação um ponto de vista mais abrangente e
mais poderoso para o exame das emoções humanas do que
qualquer um que possa ser oferecido pelas relações comuns entre
os eventos existentes.
Fiz, portanto, um esforço para preservar a verdade dos princípios
elementares da natureza humana, embora não tenha hesitado em
inovar quanto às combinações entre eles. A Ilíada, a trágica poesia
da Grécia, Shakespeare, em A tempestade e em Sonho de uma
noite de verão, e especialmente Milton, em Paraíso perdido, seguem
essa regra; e o mais humilde novelista, se quiser oferecer diversão
ao leitor ou a si mesmo com seu trabalho, poderá, sem presunção,
aplicar à prosa de ficção uma licença, ou melhor, uma regra de cuja
adoção já resultaram tantas requintadas combinações de emoções
humanas nas formas mais elevadas de poesia.
A circunstância em que minha história se apoia foi sugerida em
conversas casuais. Teve início, em parte, como fonte de diversão e,
em parte, como expediente para exercitar quaisquer recursos da
mente que ainda não tivessem sido experimentados. Houve outros
motivos que se misturaram a esses, à medida que o trabalho foi
evoluindo. Não sou de modo algum indiferente à maneira pela qual
quaisquer tendências morais existentes nos sentimentos ou nos
personagens que esta obra contenha possam afetar o leitor; mas
minha preocupação principal a esse respeito tem se restringido a
evitar os efeitos enervantes das novelas de hoje e a expor a
afabilidade dos afetos familiares e a excelência da virtude universal.
As opiniões que naturalmente decorrem do personagem e da
situação do herói não devem de modo algum ser concebidas como
se fizessem sempre parte da minha convicção; e também não cabe
nenhuma inferência, a partir das páginas seguintes, de pré-
julgamentos sobre quaisquer doutrinas filosóficas, sejam do tipo que
forem.
Também é um assunto de interesse adicional da autora o fato de
esta história ter começado na majestosa região em que a cena
transcorre principalmente, e na companhia de pessoas que sempre
serão lembradas com saudades. Passei o verão de 1816 nos
arredores de Genebra. A estação era fria e chuvosa, e à noite nos
reuníamos em volta da lareira, entretidos às vezes com algumas
histórias alemãs de fantasmas que por acaso tinham caído em
nossas mãos. Essas histórias estimularam em nós um desejo lúdico
de imitá-las. Eu e dois amigos (e uma história escrita por um deles
seria muito mais aceitável ao público do que qualquer coisa que eu
tivesse a esperança de produzir) concordamos em escrever cada
um uma história, baseada em algum acontecimento sobrenatural.
Mas o tempo de repente amainou, meus dois amigos partiram
para uma excursão pelos Alpes e, naquele magnífico cenário,
perderam qualquer memória de suas visões fantasmagóricas. O
conto a seguir é o único que foi concluído.
Marlow, setembro de 1817.**
CARTA 1

À senhora Saville, Inglaterra.


São Petersburgo, 17 de dezembro de 17...
Você há de ficar contente em saber que nenhum desastre
acompanhou o início desta minha aventura, que vem encarando
com muitos maus presságios. Cheguei aqui ontem, e minha primeira
tarefa é tranquilizar minha querida irmã a respeito de meu bem-estar
e dizer de minha confiança cada vez maior no sucesso da minha
empreitada.
Já estou bem ao norte de Londres, e enquanto caminho pelas
ruas de Petersburgo, sinto uma brisa fria do norte bater nas faces, o
que revigora meus nervos e me enche de alegria. Você entende
essa sensação? Essa brisa, que vem das regiões para as quais me
dirijo, me faz antegozar aqueles climas gélidos. Meus devaneios,
inspirados por esse vento de promessas, tornam-se mais vívidos.
Tento em vão me convencer de que o polo é um lugar de geadas e
desolação, mas ele sempre se apresenta à minha imaginação como
uma região de beleza e prazeres. Ali, Margaret, o sol é sempre
visível; seu amplo disco apenas contorna o horizonte, e difunde um
perpétuo esplendor. Ali – porque, com sua licença, minha irmã, darei
crédito aos navegadores que me precederam –, ali a neve e o gelo
estão ausentes, e, navegando um mar tranquilo, somos levados a
uma terra que ultrapassa em maravilhas todas as demais regiões
habitáveis do globo descobertas até agora. Seus produtos e
atributos talvez sejam incomparáveis, assim como o são, sem
dúvida, os fenômenos dos corpos celestes naquelas solidões
inexploradas. O que não esperar de uma terra onde a luz é eterna?
Talvez consiga descobrir ali o assombroso poder que atrai a agulha,
e ajustar milhares de observações celestes que requerem apenas
essa viagem para explicar, de uma vez por todas, suas aparentes
excentricidades. Vou saciar minha curiosidade com a visão de uma
parte do mundo nunca visitada e pisar em terras nunca marcadas
pelas pegadas do homem. Essas são as coisas que me atraem; e
são suficientes para me fazer vencer todos os temores a respeito de
perigos ou da morte e levar-me a iniciar esta laboriosa viagem com
a alegria de uma criança ao subir em um barquinho, com seus
companheiros de férias, em uma expedição de descoberta pelo rio
de sua cidade. Mas, supondo que sejam falsas todas essas
conjeturas, você não terá como contestar o inestimável benefício
que poderei oferecer à humanidade inteira, até sua última geração,
ao descobrir, próxima ao polo, a passagem para esses lugares, cujo
acesso hoje requer tantos meses; ou ao determinar o segredo do
ímã, o qual, se for possível revelá-lo, só poderá ser descoberto em
um empreendimento como o meu.
Essas reflexões dissiparam a agitação com que comecei esta
carta, e sinto o coração vibrar com um entusiasmo que me eleva
aos céus; pois nada contribui mais para tranquilizar a mente do que
um propósito firme – um ponto no qual a alma possa fixar seu olho
intelectual. Essa expedição é meu sonho favorito desde a juventude.
Li com vivo interesse os relatos das várias viagens já realizadas na
esperança de chegar ao Oceano Pacífico Norte pelos mares que
circundam o polo. Como você deve estar lembrada, a biblioteca do
nosso querido tio Thomas era composta pelas histórias de todas as
viagens feitas com propósitos de descoberta. Minha educação foi
negligenciada, embora eu fosse um leitor apaixonado. Mas estudei
esses volumes dia e noite, e minha familiaridade com eles apenas
serviu para aumentar o pesar que senti, quando criança, ao saber
que uma determinação de meu pai, na hora de sua morte, proibira
meu tio de me permitir embarcar em uma vida ligada ao mar.
Essas visões foram se desvanecendo quando li pela primeira vez
aqueles poetas cujas efusões arrebataram minha alma e a alçaram
aos céus. Também me tornei poeta, e por um ano vivi no Paraíso da
minha própria criação; imaginei que poderia também conseguir um
nicho no templo onde os nomes de Homero e Shakespeare são
consagrados. Você sabe bem do meu fracasso, e do quanto essa
decepção foi pesada para mim. Mas justo nessa época herdei a
fortuna de meu primo, e meus pensamentos voltaram-se para a
trilha criada por essa antiga inclinação.
Já se passaram seis anos desde que optei por esta empreitada.
Ainda consigo lembrar o momento em que passei a me dedicar a
esse grande projeto. Comecei habituando meu corpo às provações.
Acompanhei baleeiros em várias expedições ao Mar do Norte;
suportei voluntariamente frio, fome, sede e falta de sono; muitas
vezes, trabalhei duro durante o dia, mais do que os marinheiros
comuns, e dediquei minhas noites ao estudo da matemática, da
teoria da medicina e daqueles ramos das ciências físicas dos quais
um aventureiro dos mares pode extrair as maiores vantagens
práticas. Por duas vezes me ofereci para trabalhar como ajudante
em um baleeiro da Groenlândia, e ganhei o afeto de todos.
Confesso que senti uma ponta de orgulho quando meu capitão me
ofereceu o posto de imediato do navio e me pediu, com a maior
sinceridade, que permanecesse com ele, de tanto que valorizou
meus serviços.
E então, querida Margaret, não sou merecedor de cumprir esse
grande propósito? Poderia ter passado minha vida em meio a
comodidades e luxos, mas preferi a glória em lugar de todas as
seduções que a riqueza colocou no meu caminho. Ah, que bom
seria se uma voz de incentivo respondesse que sim! Minha coragem
e minha determinação são firmes, mas minhas esperanças oscilam
e meu ânimo com frequência se deprime. Estou prestes a realizar
uma viagem longa e difícil, e os imprevistos irão requerer toda a
minha bravura: será exigido de mim não apenas que eleve o ânimo
dos outros, mas que às vezes sustente o meu próprio, quando o
deles vacilar.
Este é o período mais favorável para viajar pela Rússia. Eles
correm rapidamente pela neve com seus trenós; o movimento é
prazeroso e, em minha opinião, bem mais agradável do que o de
uma carruagem inglesa. O frio não é excessivo, se você se enrolar
em peles, vestimenta que já adotei; porque há uma grande diferença
entre andar em um convés e permanecer horas sentado imóvel,
quando a ausência de exercício pode fazer o sangue realmente
congelar em suas veias. Não tenho nenhuma intenção de perder a
vida na estrada dos correios entre São Petersburgo e Arcangel.
Devo partir desta última cidade em quinze dias ou três semanas;
e minha ideia é alugar um navio – o que pode ser feito facilmente,
pagando o seguro para o proprietário – e contratar quantos
marinheiros julgar necessários entre aqueles acostumados à pesca
da baleia. Não pretendo partir até o mês de junho. E quando deverei
voltar? Ah, querida irmã, como posso responder a essa pergunta?
Se tudo der certo, muitos, muitos meses, talvez anos, irão se passar
antes que eu e você possamos nos ver de novo. Se eu falhar, você
talvez volte a me ver logo, ou nunca.
Adeus, minha querida e excelente Margaret. Que os céus façam
chover bênçãos sobre você, e que me poupem, para que eu possa
muitas e muitas vezes testemunhar minha gratidão por todo o seu
amor e bondade.

Seu afeiçoado irmão,


R. Walton.
CARTA 2

Para a senhora Saville, Inglaterra.


Arcangel, 28 de março, 17...
Como o tempo passa devagar aqui, rodeado como estou por gelo
e neve. Mesmo assim, um segundo passo nesta minha empreitada
está sendo dado. Aluguei um barco e estou ocupado em
arregimentar marinheiros; os que já contratei parecem ser homens
nos quais posso confiar, e certamente são dotados de uma coragem
inabalável.
Mas tenho um desejo que até agora não fui capaz de satisfazer, e
sinto falta disso como se fosse o pior dos males. Não tenho nenhum
amigo, Margaret: quando eu exultar com o entusiasmo do sucesso,
não haverá ninguém a quem possa participar minha alegria; se a
decepção tomar conta de mim, não terei ninguém que me apoie em
minha tristeza. Posso colocar meus pensamentos no papel, é
verdade, mas esse é um recurso muito pobre para comunicar a
emoção. Gostaria de ter a companhia de um homem que pudesse
demonstrar empatia por mim, cujos olhos reagissem aos meus.
Você pode achar que sou romântico, minha querida irmã, mas sinto
muito intensamente a falta de um amigo. Não tenho ninguém perto
de mim que seja gentil, mas corajoso, que tenha uma mente culta,
além de ampla, cujos gostos sejam parecidos com os meus, que
aprove ou corrija meus planos. Como um amigo assim poderia
reparar os erros de seu pobre irmão! Sou impulsivo demais na
execução, e impaciente demais diante das dificuldades. Mas o pior
dos meus males é ter sido autodidata: durante os primeiros catorze
anos de minha vida, corri solto pelos campos, e não li nada a não
ser os livros sobre viagens do tio Thomas. Nessa idade, tive contato
com os poetas célebres de nosso país, mas só percebi a
necessidade de me familiarizar com outras línguas quando já não
estava mais em meu poder extrair os benefícios mais importantes
de tal convicção. Agora tenho vinte e oito anos de idade, e na
realidade sou menos instruído do que muitos estudantes de quinze.
É verdade que tenho pensado mais, e que meus devaneios são
grandiosos, mas eles carecem daquilo que os pintores chamam de
coesão, e preciso muito de um amigo que tenha senso suficiente
para não me desprezar como romântico e afeição suficiente por mim
para tentar ajustar melhor minha mente.
Bem, mas essas são queixas inúteis. Com certeza não deverei
encontrar nenhum amigo no vasto oceano, nem mesmo aqui em
Arcangel, entre comerciantes e marinheiros. Mas alguns
sentimentos, discordantes do rebotalho da natureza humana,
pulsam até mesmo nesses peitos rudes. Meu contramestre, por
exemplo, é um homem de magnífica coragem e iniciativa. Tem um
desejo louco de glória. É um inglês, e, misturadas aos seus
preconceitos nacionais e profissionais que não foram atenuados
pela cultura, mantém algumas das qualidades mais nobres da
humanidade. Conheci-o a bordo de um navio baleeiro; ao descobrir
que estava desempregado nesta cidade, foi fácil contratá-lo para me
ajudar em minha empreitada.
O imediato é uma pessoa de excelente disposição e se faz notar
no navio por sua gentileza e pela moderação com que impõe
disciplina. Essa circunstância, aliada à sua bem conhecida
integridade e destemida coragem, despertou-me intenso desejo de
contratá-lo. Uma juventude solitária, meus melhores anos vividos
sob seu gentil e feminino acolhimento, refinou em tal grau a base de
meu caráter que não consigo superar a intensa aversão que sinto
diante da habitual brutalidade exercida a bordo de um navio: nunca
acreditei que fosse necessária, e quando soube de um marinheiro
igualmente distinguido por seu bom coração quanto pelo respeito e
pela obediência que sua tripulação lhe dedicava, fiquei
peculiarmente feliz em poder contar com seus serviços. Ouvi falar
dele pela primeira vez, sob uma aura bem romântica, por uma
mulher que deve a ele a felicidade de sua vida. A história,
resumidamente, é a seguinte. Há alguns anos, apaixonou-se por
uma jovem dama russa de moderadas posses; e, tendo juntado uma
considerável soma em dinheiro de recompensas por viagens, o pai
da jovem consentiu na união. Ele viu sua noiva uma única vez antes
da cerimônia, mas encontrou-a em lágrimas. Atirando-se aos pés
dele, a jovem implorou que a poupasse, confessando que amava
outro, mas que ele era pobre, e o pai dela jamais permitiria a união.
Meu generoso amigo tranquilizou a moça e, tendo sido informado do
nome do amante, na mesma hora desistiu de seu intento. Ele já
havia comprado uma fazenda na qual projetara passar o resto de
sua vida, mas doou tudo ao rival, junto com o resto de sua fortuna,
para que comprasse gado. Então ele mesmo pediu ao pai da jovem
que consentisse no casamento da filha com o homem que ela
amava. Mas o velho recusou terminantemente, por achar que já
tinha um compromisso de honra com o meu amigo. Este, ao ver que
o pai estava irredutível, saiu do país e só voltou quando soube que
sua ex-noiva havia se casado com o homem que amava. “Que
sujeito mais nobre!”, você irá exclamar. Sim, ele é. Mas depois disso
decidiu passar o resto da vida a bordo de um navio, e tem pouca
ideia do que existe no mundo além de cordames e mastros.
Mas não suponha que, por me queixar um pouco ou inventar
consolos talvez inalcançáveis para os meus problemas, eu esteja
fraquejando em minha resolução. Ela é tão firme quanto o destino, e
só estou adiando minha viagem até que o tempo me permita partir.
O inverno tem sido horrivelmente rigoroso, mas a primavera
promete muito, e parece que vai chegar bem mais cedo. Portanto,
talvez eu parta até antes do previsto. Não devo me apressar em
nada. Você me conhece o suficiente para confiar em minha
prudência e bom senso sempre que a segurança de outras pessoas
é deixada a meus cuidados.
Não sou capaz de descrever minhas sensações sobre a
perspectiva cada vez mais próxima do início de meu
empreendimento. É impossível transmitir qualquer ideia dessa
sensação de inquietação, metade agradável e metade assustadora,
com a qual me preparo para partir. Estou indo para regiões
inexploradas, para a “terra da névoa e da neve”. Mas não deverei
matar nenhum albatroz, portanto não fique preocupada com minha
segurança ou que eu possa voltar a você tão exaurido e infeliz
quanto o “Velho Marinheiro”. Você talvez ria dessa minha alusão,
mas vou lhe revelar um segredo. Muitas vezes tenho atribuído meu
apego, minha paixão pelos perigosos mistérios do oceano, à
produção dos mais imaginativos poetas modernos. Há algo em
operação na minha alma que não consigo compreender. Sou muito
hábil em questões práticas – incansável –, um operário que trabalha
com perseverança e afinco. Mas ao lado disso, há um amor pelo
maravilhoso, uma crença no maravilhoso, entretecida em todos os
meus projetos, que me leva a desviar-me logo dos caminhos
comuns dos homens, e até partir para o mar bravio e para as
regiões nunca visitadas que estou prestes a explorar.
Mas voltemos às considerações mais importantes. Será que irei
vê-la de novo, depois de atravessar imensos mares e voltar pelo
cabo mais meridional da África ou da América? Não ouso esperar
tamanho sucesso, mas também não tolero pensar no contrário.
Continue escrevendo quando tiver oportunidade: talvez eu receba
suas cartas (embora a possibilidade seja bastante duvidosa) em
alguma ocasião em que tenha a máxima necessidade delas para
sustentar meu ânimo. Amo você com muita ternura. Lembre-se de
mim com afeto, caso nunca mais volte a ter notícias minhas.

Seu afeiçoado irmão,


Robert Walton.
CARTA 3

Para a senhora Saville, Inglaterra.


7 de julho de 17...
Minha querida irmã,
Escrevo umas poucas linhas na pressa, para dizer que estou bem
e bastante avançado em minha viagem. Esta carta chegará à
Inglaterra pelas mãos de um mercador que está voltando para casa,
vindo de Arcangel – mais afortunado do que eu, que talvez não veja
minha terra natal quem sabe por vários anos. Mesmo assim estou
animado: meus homens são corajosos e parecem ter firmeza de
propósitos; não desanimam nem ao ver as lâminas de gelo
flutuantes que continuamente passam por nós, indicando os perigos
da região para a qual nos dirigimos. Já alcançamos uma latitude
bem alta, mas é o auge do verão, e os ventos sul, embora não
sejam tão quentes como na Inglaterra, e nos empurrem rapidamente
em direção àquelas praias que eu tão ardentemente desejo
alcançar, sopram um pouco de calor revigorante, que eu não
imaginara encontrar.
Até agora não sofremos nenhum incidente que merecesse
menção. Uma ou duas ventanias muito fortes e a ruptura de um
mastro são acidentes que navegadores experientes mal se lembram
de registrar, e me darei por satisfeito se nada de pior ocorrer durante
nossa viagem.
Adieu, minha querida Margaret. Tenha certeza de que, para meu
próprio bem, assim como para o seu, não serei impulsivo de
arremeter contra o perigo. Serei calmo, perseverante e prudente.
Mas o sucesso há de coroar meus esforços. E por que não? Já
cheguei até aqui, traçando uma trilha segura por esses mares de
caminhos indefinidos: as próprias estrelas são testemunhas do meu
triunfo. Por que não continuar por esse indômito, mas obediente
elemento? O que poderia deter a coragem determinada e a vontade
resoluta de um homem?
Assim, meu coração pleno transborda, involuntariamente. Mas
devo concluir por aqui. Que os céus a abençoem minha querida
irmã!

Muito afetuosamente,
R. W.
CARTA 4

À senhora Saville, Inglaterra.


5 de agosto de 17...
Aconteceu um acidente tão estranho conosco que não posso
deixar de registrá-lo, embora seja muito provável que você me veja
antes que esses papéis possam chegar à suas mãos.
Na última segunda-feira (31 de julho), estávamos quase
totalmente rodeados pelo gelo, que foi se fechando em volta do
navio por todos os lados, mal deixando espaço para ele flutuar.
Nossa situação era de certo modo perigosa, especialmente porque
estávamos envoltos por uma densa neblina. Então aguardamos que
ocorresse alguma mudança na atmosfera e no tempo.
Lá pelas duas horas, a névoa foi embora, e vimos, estendidas em
todas as direções, vastas e irregulares planícies de gelo que
pareciam não ter fim. Alguns de meus companheiros grunhiram
alguma coisa, e minha mente ficou mais atenta e com pensamentos
ansiosos quando uma estranha figura chamou nossa atenção,
reduzindo a preocupação com nossa própria situação. Avistamos
um veículo baixo, preso a um trenó e puxado por cães, passando
em direção ao norte, a cerca de oitocentos metros: um ser, que tinha
o formato de um homem mas parecia ter uma altura gigantesca,
sentado no trenó, conduzia os cães. Observamos com nossas
lunetas a rápida passagem do viajante até ele se perder nas
distantes irregularidades do gelo.
Essa aparição despertou um espanto difícil de definir. Estávamos,
segundo nossos cálculos, a várias centenas de quilômetros de
qualquer terra. Tal aparição, no entanto, parecia indicar que na
realidade essa distância não era assim tão grande. Mas, bloqueados
pelo gelo, era impossível seguir sua pista, que havíamos
acompanhado com a maior atenção.
Cerca de duas horas depois dessa ocorrência, ouvimos o mar
rugir, e antes de anoitecer o gelo se rompeu e liberou nosso navio.
Mas esperamos até o amanhecer, com receio de deparar, no
escuro, com aquelas grandes massas soltas que flutuam à deriva
depois que o gelo se rompe. Aproveitei esse tempo para dormir
algumas horas.
De manhã, no entanto, assim que clareou, subi ao convés e
encontrei todos os marinheiros agitados em um dos lados do navio:
pareciam conversar com alguém no mar. Era, na realidade, um trenó
como aquele que havíamos visto, que havia se deslocado até nós,
durante a noite, sobre um grande fragmento de gelo. Apenas um
cão estava vivo, mas havia dentro um ser humano que os
marinheiros tentavam convencer a entrar no barco. Não se tratava,
como o outro viajante parecia ser, de um habitante selvagem de
alguma ilha não descoberta, mas de um europeu. Quando apareci
no convés, o imediato disse: “Eis o nosso capitão, e ele não vai
deixar que você morra no mar aberto”.
Ao me ver, o estranho se dirigiu a mim em inglês, embora com
um sotaque estrangeiro:
– Antes que eu suba a bordo de seu barco – disse ele –, o senhor
teria a bondade de me informar para onde estão indo?
Você pode imaginar meu espanto ao ouvir tal pergunta sendo
feita por um homem à beira da morte, a quem meu barco se
afiguraria, a meu ver, como um recurso que ele não teria trocado
pela riqueza mais preciosa que a terra pudesse produzir. Respondi,
mesmo assim, que estávamos em uma viagem de exploração, em
direção ao Polo Norte.
Ao ouvir isso, pareceu satisfeito e concordou em subir. Meu Deus!
Margaret, se você tivesse visto o homem que assim capitulou por
sua própria segurança, sua surpresa teria sido infinita. Os membros
dele estavam quase congelados, e seu corpo, horrivelmente
macilento de fadiga e sofrimento. Nunca vi alguém em condição tão
miserável. Decidimos carregá-lo até o camarote, mas assim que
saiu do ar fresco, desmaiou. Nós o trouxemos então de volta para o
convés e conseguimos reanimá-lo, esfregando conhaque em seus
membros e forçando-o a tomar pequenos goles. Assim que mostrou
sinais de vida, enrolamos cobertores em seu corpo e o colocamos
perto da chaminé de um fogão. Foi se recuperando aos poucos, e
tomou um pouco de sopa, o que o revigorou maravilhosamente.
Dois dias se passaram assim, até que voltasse a ser capaz de
falar, e eu várias vezes tive receio de que seus sofrimentos o
tivessem privado da razão. Quando se recuperou um pouco, trouxe-
o para a minha cabine e cuidei dele o quanto minhas obrigações
permitiam. Nunca vi uma criatura mais interessante: seus olhos têm
geralmente uma expressão selvagem, até de loucura, mas há
momentos em que, se alguém se dirige a ele com um ato de
bondade ou lhe presta o mais trivial serviço, seu rosto se ilumina
com um raio de benevolência e de doçura como nunca vi igual. Mas,
em geral, mostra-se melancólico e desesperado, e às vezes range
os dentes, como se sentisse impaciência sob o peso dos males que
o afligem.
Quando meu hóspede se recuperou melhor, tive muita dificuldade
em manter os homens afastados dele, pois queriam fazer-lhe mil
perguntas. Mas não permitiria que o atormentassem com sua vã
curiosidade, pois estava em uma condição física e mental cuja
recuperação dependia evidentemente de um repouso absoluto. Uma
vez, porém, o contramestre perguntou por que ele havia chegado
tão longe sobre o gelo em um veículo tão estanho como aquele.
O semblante do homem assumiu na mesma hora uma expressão
profundamente sombria, e ele respondeu:
– Para procurar alguém que fugiu de mim.
– E o homem que perseguia viajava da mesma maneira?
– Sim.
– Então acho que o vimos, porque um dia antes do seu resgate,
avistamos alguns cães puxando um trenó com um homem dentro,
cruzando o gelo.
Isso despertou a atenção do estranho, que passou a fazer uma
série de perguntas quanto à rota que o demônio, como ele o
chamava, havia tomado. Logo depois, a sós comigo, disse:
– Sem dúvida, devo ter estimulado sua curiosidade, assim como
a dessas boas pessoas, mas você é gentil o suficiente para não me
fazer perguntas.
– Certamente. Seria de fato muito impertinente e desumano de
minha parte atormentá-lo com quaisquer curiosidades que eu
pudesse ter.
– E, no entanto, você me resgatou de uma situação estranha e
perigosa, teve a benevolência de me devolver à vida.
Logo em seguida ele perguntou se eu achava que a ruptura do
gelo poderia ter destruído o outro trenó. Eu disse que não saberia
responder com um mínimo de certeza, pois o gelo só se rompera
perto de meia-noite, e o viajante poderia ter chegado a algum lugar
seguro antes dessa hora, mas isso eu não teria como avaliar.
A partir de então, um novo sopro de vida animou a fisionomia do
estranho. Ele manifestou o maior interesse em ficar no convés,
procurando o trenó que havia aparecido antes. Mas tenho
conseguido persuadi-lo a permanecer na cabine, pois está fraco
demais para suportar a rudeza da atmosfera. Prometi, porém, que
deixaria alguém observando por ele e que o avisaria na mesma
hora, caso qualquer objeto novo fosse visto.
Esse é o registro do meu diário sobre essa estranha ocorrência
até o presente momento. O homem foi aos poucos melhorando de
saúde, mas anda bem quieto e se mostra muito intranquilo quando
alguém que não seja eu entra na cabine. No entanto, seus modos
são tão conciliadores e gentis que os marinheiros todos se
interessam por ele, mesmo com tão pouca comunicação. De minha
parte, começo a estimá-lo como se fosse um irmão, e seu constante
e profundo pesar me aproxima dele e desperta minha compaixão.
Em seus melhores dias, deve ter sido uma nobre criatura, pois,
mesmo devastado como está, mostra-se muito atraente e amável.
Eu disse em uma de minhas cartas, querida Margaret, que não
iria encontrar nenhum amigo neste vasto oceano. No entanto,
encontrei um homem que, antes de seu espírito ser devastado pelo
sofrimento, eu me sentiria feliz de ter como um irmão do coração.
Vou continuar escrevendo de vez em quando sobre o estranho
em meu diário, caso tenha novos incidentes a registrar.
13 de agosto de 17...
Meu afeto pelo meu convidado cresce a cada dia. Ele estimula
não só minha admiração como minha pena, em um grau
impressionante. E como poderia eu ver uma criatura tão nobre ser
destruída pela infelicidade sem sentir o mais profundo pesar? Ele é
muito afável e muito sábio. Sua mente é culta, e, quando fala, suas
palavras, embora escolhidas com muito critério, fluem com rapidez e
inigualável eloquência.
Ele já está bastante recuperado e fica sempre no convés,
parecendo procurar o trenó que antecedeu o dele. Mas, apesar de
infeliz, não está mais profundamente ocupado com o próprio
infortúnio e tem muito interesse pelas atividades dos outros.
Tem conversado frequentes vezes comigo sobre meu projeto, que
lhe expus sem reservas. Ele acolhe com atenção todos os meus
argumentos em favor do meu eventual sucesso, e também todos os
detalhes das medidas que tenho tomado para assegurá-lo. A
simpatia que ele demonstrou me levou facilmente a usar a
linguagem do coração, a dar livre curso ao intenso ardor da minha
alma e a dizer, com todo o fervor que me estimula, o quanto me
disporia de bom grado a sacrificar minha fortuna, minha existência,
cada uma das minhas esperanças, pelo prosseguimento de minha
empreitada. A vida ou a morte de um homem são um preço
pequeno a pagar pela aquisição do conhecimento que eu busco,
pelo domínio que devo conquistar e transmitir sobre os inimigos
elementares da nossa espécie. Enquanto eu falava, uma densa
sombra se espalhou pelo semblante de meu ouvinte. De início,
percebi que tentava reprimir sua emoção. Ele pôs as mãos sobre os
olhos e minha voz tremeu e me faltou quando vi que não paravam
de correr lágrimas entre seus dedos, e que um gemido escapara de
seu peito arfante. Parei – até que ele falou, com voz entrecortada:
“Homem infeliz! Então compartilha da minha loucura? Também
tomou da bebida inebriante? Ouça o que vou dizer – deixe-me
contar minha história e irá afastar essa taça de seus lábios!”.
Tais palavras, como você pode imaginar, excitaram fortemente
minha curiosidade; mas aquele paroxismo de dor que se abatera
sobre o estranho superou suas debilitadas forças, e foram
necessárias várias horas de repouso e conversa tranquila para que
se recompusesse.
Depois que dominou a violência de seus sentimentos, pareceu
desprezar a si mesmo por ser escravo de paixões; e assim que
venceu a sombria tirania do desespero, levou-me a falar de novo
sobre minhas questões. Perguntou-me a respeito de meus primeiros
anos. O relato foi breve, mas despertou várias linhas de reflexão.
Falei de meu desejo de encontrar um amigo, de minha ânsia por
uma simpatia mais íntima com uma mente similar à minha, algo que
até então não experimentara, e expressei minha convicção de que
um homem pouco pode se vangloriar de ser feliz se não tiver
desfrutado dessa bênção.
“Concordo”, replicou o estranho, “somos criaturas inacabadas,
feitas pela metade, a não ser que alguém mais sábio, melhor, mais
agraciado que nós – assim como um amigo deve ser – nos preste
sua ajuda para que aprimoremos nossas naturezas frágeis e
defeituosas. Tive uma vez um amigo, a mais nobre das criaturas
humanas, portanto sei o que representa uma amizade. Você nutre
esperanças, vê o mundo à sua frente e não tem motivo para
desespero. Mas eu... eu perdi tudo, e não tenho como recomeçar a
vida.”
Disse isso com o semblante expressando um pesar tranquilo e
assentado, e isso tocou meu coração. Mas ele ficou em silêncio e
logo depois se retirou para sua cabine.
Mesmo desanimado como está, ninguém consegue sentir, tão
profundamente quanto ele, as belezas da natureza. O céu estrelado,
o mar e toda visão proporcionada por essas regiões maravilhosas
ainda parecem ter o poder de elevar sua alma. Um homem assim
tem uma dupla existência: pode sofrer infortúnios e ser assolado por
decepções, porém, ao ficar consigo mesmo, é como um espírito
celestial, com um halo em volta, dentro de cujo círculo nenhum
pesar ou tolice se aventura.
Será que você ri ao ver meu entusiasmo por esse divino
andarilho? Se o visse, não riria. Você pôde ser instruída e refinada
por livros e ao viver retirada do mundo, portanto tem alguns
melindres; mas isso só a torna mais inclinada a apreciar os
extraordinários méritos desse homem maravilhoso. Às vezes me
esforço para descobrir qual é essa qualidade que ele possui que o
eleva incomensuravelmente acima de qualquer outra pessoa que eu
tenha conhecido. Acredito que seja um discernimento intuitivo, um
poder de julgar rápido, mas infalível, uma capacidade de penetrar no
cerne das coisas inigualável em clareza e precisão. Acrescente a
isso uma facilidade de expressão e uma voz cujos timbres variados
são como uma música que ameniza a alma.
19 de agosto de 17...
Ontem, o estranho disse:
– Como o senhor pode facilmente perceber, Capitão Walton,
tenho sofrido infortúnios imensos e sem paralelo. Eu havia decidido
que a memória desses males deveria morrer comigo, mas o senhor
me fez mudar minha decisão. É um homem que busca
conhecimento e sabedoria, como eu, tempos atrás, e espero
ardentemente que a satisfação de seus desejos não seja uma
serpente que o agrida, como ocorreu comigo. Não sei se o relato de
meus infortúnios poderá lhe ser útil, mas quando reflito e vejo que
persegue o mesmo curso, expondo-se aos mesmos perigos que me
tornaram quem sou, imagino que talvez deduza uma moral útil da
minha história, uma que possa guiá-lo se tiver sucesso em sua
empresa e consolá-lo em caso de fracasso. Prepare-se para ouvir
um relato de ocorrências geralmente consideradas maravilhosas. Se
estivéssemos entre os cenários mais amenos da natureza, teria
receio de deparar com sua descrença, talvez até de que achasse
tudo ridículo, mas muitas coisas parecerão possíveis nestas regiões
selvagens e misteriosas, coisas que fariam rir aqueles não
familiarizados com os poderes sempre variados da natureza – e
tampouco poderia duvidar que minha história possa expressar, em
seu desenrolar, as evidências internas da veracidade dos eventos
dos quais se compõe.
Você pode facilmente imaginar que eu tenha ficado muito
gratificado pela oferta que ele me fez, mas não conseguia suportar a
ideia de vê-lo reviver sua dor ao me contar suas desgraças. Senti o
maior interesse em ouvir a narrativa prometida, em parte por
curiosidade, em parte por um forte desejo de melhorar o destino
dele, caso estivesse em meu poder. Expressei esses sentimentos.
– Eu agradeço – respondeu ele – a sua compreensão, mas é
inútil. Meu destino está praticamente decidido. Espero apenas um
acontecimento, e então poderei descansar em paz. Entendo como o
senhor se sente – continuou, notando que eu queria interrompê-lo –,
mas está equivocado, meu amigo, se assim me permite chamá-lo.
Nada pode alterar meu destino: ouça minha história, e verá como
está irrevogavelmente determinada.
Disse então que iria começar sua narrativa no dia seguinte,
quando eu estaria de folga. Agradeci calorosamente por essa
promessa. Decidi que toda noite, quando não estiver ocupado, vou
registrar, na medida do possível com as palavras dele, o que tiver
relatado durante o dia. Se estiver muito atarefado, farei pelo menos
algumas anotações. Esse manuscrito sem dúvida dará a você o
maior prazer; mas eu, que o conheço e que ouço isso dos lábios
dele, com que interesse e compaixão não irei lê-lo algum dia, no
futuro! Mesmo agora, enquanto inicio minha tarefa, o timbre sonoro
de sua voz se avoluma em meus ouvidos, seus olhos lustrosos
pousam em mim com toda a sua doce melancolia, vejo sua mão
esguia erguida com animação, enquanto suas feições são
iluminadas pela alma por trás delas. Estranha e atormentada deve
ser sua história; assustadora a tempestade que envolveu seu
garboso navio em seu curso e o fez naufragar – ei-la!
CAPÍTULO I

Nasci em Genebra, e minha família é uma das mais distintas


dessa república. Meus ancestrais têm sido há muitos anos
conselheiros e prefeitos, e meu pai cumpriu várias tarefas públicas
com honra e prestígio. Era respeitado, por todos aqueles que o
conheciam, por sua integridade e infatigável defesa do interesse
público. Passou a juventude ocupado sempre com os assuntos de
seu país, e foi apenas no declínio de sua vida que pensou em se
casar e em prover o Estado de filhos que pudessem levar suas
qualidades e seu nome à posteridade.
Como as circunstâncias de seu casamento ilustram bem seu
caráter, não posso deixar de relatá-las. Um de seus amigos mais
próximos era um mercador que, de uma condição de prosperidade,
viu-se, após numerosos percalços, reduzido à pobreza. Esse
homem, cujo nome era Beaufort, tinha uma disposição orgulhosa e
inflexível e não suportou viver na pobreza e no esquecimento no
mesmo país onde antes se distinguira por seu status e eminência.
Portanto, depois de pagar as dívidas da maneira mais honrosa,
retirou-se com a filha para a cidade de Lucerna, onde viveu no
anonimato e no infortúnio. Meu pai amava Beaufort e tinha por ele a
mais fiel amizade, e ficou muito triste com seu afastamento nessas
circunstâncias lastimáveis. Lamentava também perder a convivência
com ele e decidiu procurá-lo e tentar persuadi-lo a recomeçar a vida,
oferecendo-lhe seu crédito e sua assistência.
Beaufort tomara medidas eficazes para se esconder, e só dez
meses mais tarde meu pai conseguiu descobrir onde morava.
Exultante, correu até a casa, que ficava em uma rua miserável,
perto do rio Reuss. Ao entrar, porém, deparou apenas com miséria e
desespero. Beaufort conseguira salvar uma pequena soma de
dinheiro do naufrágio de sua fortuna, mas dava apenas para prover
seu sustento por poucos meses; enquanto isso, esperava arrumar
algum emprego decente na casa de um mercador.
Consequentemente, nesse intervalo de tempo ficou inativo, o que
serviu apenas para tornar sua tristeza mais profunda, já que tinha
muitas horas livres para ficar pensando. Com o tempo, a amargura
tomou conta de sua mente a ponto de deixá-lo, após uns três
meses, doente e incapaz de qualquer esforço.
A filha cuidava dele com a maior dedicação, mas via com
apreensão que seu pequeno fundo ia diminuindo rapidamente e que
não havia outra perspectiva de sustento. Mas Caroline Beaufort
possuía uma mente de molde incomum, e sua coragem aumentava
quando era preciso superar as adversidades. Ela arrumou um
trabalho simples, de trançar palha, e por vários expedientes
conseguia ganhar uma ninharia suficiente para continuar vivendo.
Passaram vários meses assim. O pai foi piorando. Ela precisou
cada vez mais dedicar seu tempo a cuidar dele. Seus meios de
subsistência se reduziram, e no décimo mês o pai morreu nos
braços dela, deixando-a órfã e na mendicância. Esse último golpe
foi superior às suas forças, e ela estava ajoelhada junto ao caixão
de Beaufort, chorando amargamente, quando meu pai entrou no
quarto. Ele chegou como um espírito protetor para a pobre jovem,
que acabou ficando sob seus cuidados. E depois do enterro do
amigo, levou-a para Genebra, aos cuidados e proteção de um
parente. Dois anos depois, Caroline tornou-se sua esposa.
Havia uma diferença de idade considerável entre meus pais, mas
essa circunstância parecia estreitar ainda mais seus laços de
dedicado afeto. Havia na mente correta de meu pai um senso de
justiça que fazia com que precisasse aprovar sem restrições para
poder amar incondicionalmente. Talvez, em anos anteriores, tivesse
sofrido ao constatar tardiamente a falta de valor de alguém que
amasse, e isso o inclinara a dar grande importância a méritos
comprovados. Havia uma mostra de gratidão e de idolatria em seu
afeto por minha mãe totalmente diferente da adoração cega da
idade avançada, pois era inspirada na reverência pelas virtudes dela
e pelo desejo de ser um meio para compensá-la em algum grau
pelos sofrimentos que ela suportara. Mas isso dava uma graça
inexprimível ao seu comportamento em relação a ela. Fazia de tudo
para ceder aos seus desejos e conveniências. Esforçava-se em
protegê-la, como um jardineiro protege a planta exótica de todo
vento mais forte, e em rodeá-la de tudo o que pudesse despertar
emoções agradáveis em sua mente delicada e benévola. Sua saúde
e mesmo a tranquilidade de seu espírito, até então equilibrado,
haviam sido abaladas por tudo o que sofrera. Nos dois anos
anteriores ao casamento, meu pai foi aos poucos abrindo mão de
suas funções públicas, e logo após se unirem procuraram o clima
ameno da Itália e a mudança de cenário e de interesses, viajando
por aquela terra de tantas maravilhas a fim de que ela se
recuperasse de seu estado debilitado.
Da Itália, foram visitar a Alemanha e a França. Eu, seu filho mais
velho, nasci em Nápoles, e em criança acompanhei-os em suas
andanças. Por vários anos continuei sendo seu único filho. Embora
fossem muito apegados um ao outro, pareciam extrair inexauríveis
porções de afeto de uma verdadeira mina de amor, e o dispensavam
a mim. As ternas carícias de minha mãe e o sorriso de prazer
benevolente de meu pai ao me contemplar são minhas recordações
mais antigas. Eu era o brinquedo deles, seu ídolo e, algo melhor –
seu filho, a criatura inocente e indefesa que os Céus lhes haviam
concedido a fim de que a criassem para o bem, e cujo destino
estava nas mãos deles conduzir à felicidade ou ao infortúnio,
conforme cumprissem seus deveres em relação a mim. Com essa
profunda consciência de suas obrigações para com o ser ao qual
haviam dado vida, aliada à ativa disposição de ternura que animava
a ambos, já se pode imaginar que, além de receber em todas as
horas de minha infância uma lição de paciência, caridade e
autocontrole, fui de tal modo guiado por um fio de seda que tudo
parecia para mim uma sequência de bons momentos.
Por um longo tempo fui a única preocupação dos dois. Minha
mãe desejava muito ter uma filha, mas eu continuei sendo a única
cria deles. Quando tinha uns cinco anos, durante uma excursão
além das fronteiras da Itália, passamos uma semana às margens do
Lago de Como. A disposição bonachona de ambos muitas vezes
fazia-os entrar nas choupanas dos pobres. Isso, para minha mãe,
mais do que um dever, era uma necessidade, uma paixão – tendo
em conta o que havia sofrido e como havia sido salva – que a
levava a retribuir portando-se como um anjo da guarda dos aflitos.
Durante um de seus passeios, um casebre pobre num recanto do
vale despertou-lhes a atenção, por sua singular precariedade e
pelas várias crianças semivestidas em volta dele, que manifestavam
a penúria em sua pior forma. Um dia em que meu pai havia ido
sozinho a Milão, minha mãe, acompanhada por mim, visitou essa
morada. Lá encontrou um camponês com sua esposa, trabalhando
duro, os dois sobrecarregados de cuidados e ocupações,
distribuindo uma parca refeição a cinco crianças famintas. Entre elas
havia uma que chamou muito mais a atenção de minha mãe que as
demais. Parecia de linhagem diferente. As quatro outras tinham
olhos escuros, eram pequenas e valentes maltrapilhas, mas essa
outra era magra e muito bonita. Seu cabelo era do dourado vivo
mais brilhante e, apesar das roupas toscas, parecia levar uma coroa
de distinção sobre sua cabeça. Sua testa era iluminada e ampla, os
olhos azuis, límpidos, e seus lábios e a moldagem de seu rosto
expressavam tanta sensibilidade e doçura que ninguém conseguia
contemplá-la sem ver nela uma espécie distinta, um ser enviado
pelo céu, ostentando um selo celestial em todas as suas feições.
A camponesa, percebendo que minha mãe ficara cheia de
espanto e admiração e que não tirava os olhos daquela adorável
menina, apressou-se em contar sua história. Não era filha dela, mas
de um nobre milanês. A mãe da menina era alemã e morrera no
parto. O bebê havia sido entregue àquela boa família para ser
cuidado por eles – estavam mais bem de vida, então. Fazia pouco
tempo que eram casados e seu filho mais velho acabara de nascer.
O pai da menina era um daqueles italianos criados na memória das
antigas glórias da Itália – um dentre os schiavi ognor frementi***, que
o exortaram a lutar pela liberdade de seu país. Ele foi uma das
vítimas da posição frágil da Itália na época. Não se sabia se havia
morrido ou se sobrevivia ainda nos calabouços da Áustria. Suas
propriedades haviam sido confiscadas, a filha virara uma órfã
mendicante. E continuou com os pais adotivos naquela rude
morada, florescendo encantadora como uma rosa de jardim entre
amoreiras de folhas escuras.
Quando meu pai voltou de Milão, viu brincando comigo, na sala
de nossa villa, uma criança mais linda que um querubim de retrato,
uma criatura que parecia irradiar luz de seus atrativos, e cuja forma
e movimentos eram mais graciosos que os de uma camurça das
montanhas. Aquela aparição foi logo explicada. Com a permissão do
marido, minha mãe convencera os rústicos guardiões a cederem a
menina. Eles gostavam muito da amável órfã. A presença dela
parecia-lhes uma bênção, mas seria justo mantê-la na pobreza e na
necessidade quando a Providência lhe oferecia uma proteção tão
poderosa? Consultaram o pároco da aldeia, e o resultado foi que
Elizabeth Lavenza se tornou moradora da casa de meus pais –
minha mais que irmã, a bela e adorada companheira de todas as
minhas ocupações e prazeres.
Todos adoravam Elizabeth. O afeto apaixonado e quase
reverente que todos lhe dedicavam tornou-se, enquanto pude
compartilhá-lo, meu orgulho e meu deleite. Na noite anterior à
chegada da menina em casa, minha mãe dissera em tom
brincalhão: “Tenho um lindo presente para o meu Victor, e chegará
amanhã”. E quando, no dia seguinte, me apresentou Elizabeth como
o presente prometido, eu, com aquela seriedade infantil, interpretei
suas palavras literalmente e passei a encarar Elizabeth como minha
– minha para proteger, amar e tratar com toda delicadeza. Todos os
elogios a ela dirigidos, eu os recebia como se fossem feitos a uma
posse minha. Tratávamo-nos em casa como primos. Nenhuma
palavra, nenhuma expressão poderia expressar o tipo de parentesco
que ela representava para mim – minha mais que irmã, que até a
morte seria apenas minha.
CAPÍTULO II

Fomos criados juntos; não havia nem um ano de diferença entre


nós. Devo dizer que éramos alheios a qualquer tipo de desunião ou
discordância. A harmonia era a alma de nosso companheirismo, e
as diferenças e os contrastes que subsistiam em nossas
personalidades nos aproximavam ainda mais. Elizabeth tinha uma
disposição mais tranquila e concentrada; já eu, com todo o meu
entusiasmo, era capaz de uma dedicação mais intensa e via-me
mais profundamente tocado pela sede de conhecimento. Ela se
ocupava com as criações etéreas dos poetas e com os majestosos
e admiráveis cenários que rodeavam nossa casa na Suíça – as
sublimes formas das montanhas, as mudanças das estações, a
tempestade e a calma, o silêncio do inverno e a vida e a turbulência
de nossos verões alpinos –, e em tudo isso encontrava amplo
escopo para admiração e deleite. Enquanto minha companheira
contemplava com espírito sério e satisfeito a magnífica aparência
das coisas, eu me deleitava em investigar suas causas. O mundo
era para mim um segredo que desejava desvendar. Curiosidade,
uma pesquisa séria para aprender as leis ocultas da natureza, uma
alegria próxima do êxtase quando elas se revelavam a mim, essas
são as primeiras sensações de que sou capaz de relembrar.
Com o nascimento de um segundo filho, mais novo que eu sete
anos, meus pais abandonaram totalmente a vida itinerante e se
fixaram em seu país natal. Tínhamos uma casa em Genebra e uma
campagne em Belrive, a praia do lado oriental do lago, a uma
distância de alguns quilômetros da cidade. Morávamos
principalmente nesta última, e meus pais passavam a vida em
considerável reclusão. Eu, por temperamento, evitava aglomerações
e me apegava com devoção a umas poucas pessoas. Era
indiferente, portanto, aos meus colegas de escola em geral, mas
uni-me por vínculos da mais estreita amizade a um deles, Henry
Clerval, filho de um comerciante de Genebra. Era um garoto de
talento e fantasia singulares. Adorava aventuras, obstáculos e até
mesmo perigos, meramente por aquilo que representavam. Tinha
lido muitos livros de cavalaria e romances. Compunha cantos
heroicos e começou a escrever contos de encantamento e de
aventuras de cavaleiros. Tentava nos fazer representar peças de
teatro e participar de outras encenações, nas quais os personagens
eram inspirados em heróis de Roncesvales, da Távola Redonda do
Rei Artur e em todos os cavaleiros que verteram seu sangue para
resgatar o Santo Sepulcro das mãos dos infiéis.
Nenhum ser humano poderia passar uma infância mais feliz que
a minha. Meus pais eram dotados de um verdadeiro espírito de
bondade e indulgência. Sentíamos que, em vez de tiranos querendo
reger nossos destinos segundo seus caprichos, eram os agentes e
criadores de todas as muitas delícias que experimentávamos.
Quando convivia com outras famílias, distinguia muito bem o quanto
meu destino era peculiarmente feliz, e a gratidão crescia junto com
meu amor filial.
Meu temperamento às vezes se mostrava violento e minhas
paixões, exacerbadas, mas, por alguma lei atuante em meu caráter,
tais aspectos não eram dirigidos a propósitos infantis, mas a um
ávido desejo de aprender, em lugar de ter apenas um conhecimento
indiscriminado das coisas. Confesso que não me atraíam a estrutura
das línguas, nem as leis dos governos ou as políticas das diversas
nações. Eram os segredos do céu e da terra o que desejava
conhecer. E quer a substância exterior das coisas fosse o que me
ocupasse, quer o espírito no cerne da natureza, quer a misteriosa
alma do homem, minhas inquirições eram sempre voltadas para a
metafísica, ou, no mais elevado sentido, para os segredos físicos do
mundo.
Enquanto isso, Clerval ocupava-se, por assim dizer, das relações
morais das coisas. O atribulado palco da vida, as virtudes dos heróis
e as ações dos homens eram seu tema, e sua esperança e seu
sonho era se tornar um daqueles nomes registrados em histórias,
como os galantes e intrépidos benfeitores da nossa espécie. A alma
pura de Elizabeth brilhava como uma luminária de santuário em
nosso tranquilo lar. Sua candura nos contagiava; seu sorriso, sua
voz suave, o doce semblante de olhos celestiais estavam sempre ali
para nos abençoar e animar. Ela era o espírito vivo do amor, a
suavizar e atrair: eu podia ficar taciturno em meu escritório, rude em
razão da intensidade de minha natureza, mas lá estava ela para me
abrandar e me deixar mais assemelhado à própria delicadeza. E
Clerval... seria possível que algum mal se entranhasse no nobre
espírito de Clerval? E, no entanto, talvez ele não tivesse sido tão
perfeitamente humano, tão atencioso em sua generosidade, tão
cheio de bondade e ternura em meio à sua paixão por intrépidas
explorações se ela não lhe tivesse revelado a real beleza do
altruísmo e tornado o ato de fazer o bem a finalidade e o alvo de sua
imensa ambição.
Sinto prazer em me estender nas lembranças da infância, antes
que o infortúnio viesse macular minha mente e transformar seus
radiantes vislumbres de grandes feitos proveitosos em reflexões
sombrias sobre mim. Mas, ao traçar o quadro dos meus primeiros
dias, não devo omitir o registro daqueles eventos que, por meio de
passos insensatos, me conduziram à minha história posterior de
tormentos. Pois quando tento relatar a mim mesmo o nascimento
daquela paixão que depois iria governar meu destino, vejo-a surgir,
como um rio de montanha, de nascentes pouco nobres e quase
esquecidas, mas que, avolumando-se ao avançar, transformaram-se
na torrente que levou embora todas as minhas esperanças e
alegrias.
A filosofia natural foi a entidade que governou meu destino.
Quero, portanto, nesta minha narrativa, citar os fatos que me
levaram à predileção por essa ciência. Quanto tinha treze anos de
idade, fomos todos para uma celebração prazerosa nas termas
perto de Thonon. O mau tempo nos obrigou a passar o dia
confinados na pousada. Naquela casa, encontrei por acaso um
volume das obras de Cornelius Agrippa. Abri-o com indiferença, mas
a teoria que ele tenta demonstrar e os fatos assombrosos que relata
logo transformaram esse sentimento em entusiasmo. Uma nova luz
pareceu nascer em minha mente, e, saltitante de alegria,
comuniquei minha descoberta a meu pai. Meu pai olhou de modo
negligente para o título do livro e disse:
– Ah! Cornelius Agrippa! Meu caro Victor, não perca tempo com
isso, é puro lixo.
Se meu pai, em vez desse comentário, tivesse se dado ao
trabalho de me explicar que os princípios de Agrippa estavam
totalmente superados e que um sistema moderno de ciência tinha
surgido, com poderes muito maiores que o antigo – já que os
poderes deste último eram quiméricos, enquanto os do outro
sistema eram reais e práticos –, eu certamente teria posto Agrippa
de lado e, com a imaginação estimulada como estava, retornado
com maior empenho aos meus estudos anteriores. É até possível
que o rumo de minhas ideias nunca tivesse recebido o impulso fatal
que levou à minha ruína. Mas o olhar superficial que meu pai deu ao
livro de modo algum me fez crer que ele estivesse familiarizado com
seu conteúdo, e continuei a lê-lo com vivo interesse.
Ao voltar para casa, a primeira coisa que fiz foi procurar as obras
completas desse autor, e depois as de Paracelso e Alberto Magno.
Li e estudei as fantasias excêntricas desses escritores com grande
deleite. Pareciam-me tesouros que poucos além de mim conheciam.
Tenho descrito a mim mesmo como alguém sempre imbuído de um
desejo fervoroso de penetrar os segredos da natureza. A despeito
do intenso trabalho e das maravilhosas descobertas dos modernos
filósofos, sempre saio de meus estudos descontente e insatisfeito.
Conta-se que Sir Isaac Newton admitia sentir-se como uma criança
catando conchinhas junto ao grande e inexplorado oceano da
verdade. Aqueles seus sucessores nos diversos ramos da filosofia
natural, com os quais eu tinha familiaridade, pareciam, mesmo ao
meu entendimento de garoto, iniciantes envolvidos na mesma
busca.
O camponês sem instrução contempla os elementos à sua volta e
sabe quais são seus usos práticos. O filósofo mais versado sabe
pouco mais. Ele remove parcialmente o véu que cobre a face da
Natureza, mas os imortais desígnios dela ainda são um assombro e
um mistério. Ele pode dissecar, descrever a anatomia e dar nomes,
mas as causas, sem falar da causa última, as causas em seus graus
secundários e terciários são-lhe totalmente desconhecidas. Tenho
ponderado sobre as fortificações e os obstáculos que parecem
impedir aos seres humanos o acesso à cidadela da natureza, mas
rapidamente me frustro com minha ignorância.
Mas aí estão os livros, e aí estão os homens que penetraram
mais fundo e que conhecem mais. Dei crédito a tudo o que
asseveram e me tornei discípulo deles. Pode parecer estranho que
tal coisa ainda aconteça no século XVIII, mas, embora eu seguisse
a rotina do ensino nas escolas de Genebra, era em grande medida
um autodidata no que se refere aos meus estudos favoritos. Meu pai
não era um cientista, e me envolvi numa batalha para adquirir
conhecimento, com minha cegueira infantil agravada por uma sede
de estudante. Sob a orientação de meus novos preceptores, me
lancei com todo o ímpeto na busca da pedra filosofal e do elixir da
vida. E foi este último que prendeu mais minha atenção: a riqueza
era um objetivo menor, mas que glória traria essa descoberta se eu
conseguisse banir a doença da constituição humana e tornar o
homem invulnerável a tudo, exceto a uma morte violenta!
Essas não eram minhas únicas ilusões. A aparição de fantasmas
ou demônios era uma promessa muitas vezes repetida por meus
autores favoritos, e eu tinha muito entusiasmo em vê-la cumprida.
Assim, o fracasso de meus encantamentos, sempre malsucedidos,
eu o atribuía mais à minha inexperiência e erros do que à falta de
competência ou confiabilidade de meus instrutores.
E, assim, por um tempo ocupei-me com sistemas ultrapassados,
combinando como um leigo mil teorias contraditórias e me
debatendo com desespero num verdadeiro lodaçal de
conhecimentos variados, guiado por uma ardorosa imaginação e por
um raciocínio infantil, até que um acidente de novo mudou o curso
de minhas ideias.
Eu completara quinze anos de idade, e estávamos em nossa
casa perto de Belrive quando testemunhamos uma tempestade
violenta e terrível. Ela avançou por trás das montanhas do Jura, com
trovões e raios rebentando ao mesmo tempo, com um barulho
assustador, em vários pontos do céu. Observei a evolução da
tempestade com curiosidade e prazer. Estava junto à porta quando
uma corrente de fogo saiu de um velho e lindo carvalho, a vinte
metros de nossa casa, e tão logo a deslumbrante luz se extinguiu, vi
que nosso carvalho havia desaparecido e restara apenas um toco
explodido. Quando fomos vê-lo na manhã seguinte, a árvore estava
estraçalhada de uma maneira singular. Em vez de despedaçada
pelo choque, fora inteiramente reduzida a finas tiras de madeira.
Nunca vira nada ser destruído de maneira tão completa.
Antes disso, tinha alguma familiaridade com as leis mais óbvias
da eletricidade. Nessa ocasião, havia entre nós um homem, grande
pesquisador de filosofia natural, que, excitado diante dessa
catástrofe, enveredou por uma explanação de uma teoria que havia
elaborado sobre o tema da eletricidade e do galvanismo, que a mim
me pareceu ao mesmo tempo nova e impressionante. Tudo o que
ele dizia era equivalente a colocar nas sombras os preceitos de
Cornelius Agrippa, Alberto Magno e Paracelso, os senhores da
minha imaginação; por alguma fatalidade, porém, ver desbancados
esses homens desestimulou-me de continuar meus habituais
estudos. Tinha a impressão de que nada seria ou poderia ser
conhecido. Tudo aquilo que por longo tempo tivera minha atenção
de repente tornava-se cada vez mais desprezível. Por um desses
caprichos da mente, aos quais estamos talvez mais sujeitos no
início da juventude, desisti de vez de minhas ocupações anteriores:
deixei de lado a história natural e todos os seus frutos, como se
fossem uma criação deformada e abortiva, e nutri o maior desdém
por aquela pretensa ciência, que jamais poderia adentrar sequer o
limiar do verdadeiro conhecimento. Nesse estado de ânimo, voltei-
me para a matemática e para os ramos de estudo aparentados a
essa ciência, edifícios erguidos sobre alicerces seguros e, portanto,
merecedores de minha consideração.
É assim que nossas almas são estranhamente construídas, e é
por essas frágeis conexões que somos levados à prosperidade ou à
ruína. Ao olhar em retrospecto, tenho a impressão de que essa
mudança quase milagrosa dos interesses e da vontade foi uma
sugestão imediata do anjo da guarda da minha vida – o último
esforço feito pelo espírito de preservação para evitar a tempestade
que já então pendia das estrelas, pronta a me envolver. Sua vitória
foi anunciada por uma incomum tranquilidade e alegria da alma, que
se seguiu ao abandono de meus antigos e mais tarde torturantes
estudos. A verdade é que estava prestes a ser ensinado a associar
o mal à continuidade desses estudos e a felicidade, a ignorá-los.
Foi um grande esforço do espírito do bem, mas foi ineficaz. O
destino foi potente demais, e suas leis imutáveis decretaram minha
completa e terrível destruição.
CAPÍTULO III

Quando fiz dezessete anos, meus pais decidiram que deveria


estudar na Universidade de Ingolstadt. Até então, eu frequentara as
escolas de Genebra, mas meu pai achou necessário, para
completar minha formação, que travasse conhecimento com outros
costumes. Minha partida, portanto, ficou definida, mas antes de
chegar o dia estipulado, o primeiro infortúnio da minha vida
aconteceu, como se fosse um presságio de futuros sofrimentos.
Elizabeth estava com febre escarlatina, mas a doença não era
grave, e ela se recuperou logo. Enquanto ficou confinada,
apresentamos muitos argumentos para convencer minha mãe de
que deveria evitar contato com ela. De início, ela atendeu aos
nossos pedidos, mas quando viu que sua favorita estava se
recuperando, não conseguiu mais se privar de sua companhia e
entrou no quarto dela muito antes que o risco de contágio tivesse
cessado. As consequências dessa imprudência foram fatais. No
terceiro dia, minha mãe adoeceu; sua febre foi devastadora, e vi
pelos olhares daqueles que cuidavam dela que o prognóstico era o
pior. Em seu leito de morte, a bravura e a bondade dessa mulher
admirável não a abandonaram. Ela juntou as mãos de Elizabeth às
minhas e disse:
– Meus filhos, minhas mais firmes esperanças de felicidade futura
foram colocadas na perspectiva da união de vocês. Essa
expectativa será agora o consolo de seu pai. Elizabeth, meu amor,
você suprirá meu lugar para seus primos mais novos. Ah, meu
Deus! Como lamento estar sendo separada de vocês, como é difícil
deixá-los tendo sido tão feliz e tão amada! Mas não são esses os
pensamentos que deveriam me ocupar. Farei de tudo para me
resignar com alegria à morte, e me permitirei a esperança de
encontrá-los no outro mundo.
Morreu serena, e seu semblante expressava afeto mesmo na
morte. Não preciso descrever os sentimentos daqueles cujos
vínculos mais caros são rompidos pelo mais irreparável dos males,
nem o vazio que se apresenta à alma ou o desespero que se
estampa nos rostos. Nossa mente levou muito tempo até se
convencer de que aquela que víamos todos os dias, e cuja
existência parecia fazer parte da nossa, pudesse ter partido para
sempre, que o brilho de seus amados olhos tivesse se extinguido e
que o som de uma voz tão familiar e agradável tivesse silenciado e
nunca mais seria ouvido. Essas são as reflexões dos primeiros dias,
mas quando o lapso de tempo confirma a realidade do infortúnio,
então começa a verdadeira amargura da perda. No entanto, de
quem essa rude mão não arrancou algum ente querido? E por que
teria eu que descrever uma dor que todos já sentimos – e como não
senti-la? Chega uma hora em que o pesar é mais uma indulgência
do que uma necessidade, e o sorriso que brinca nos lábios, embora
sentido como um sacrilégio, não pode ser banido. Minha mãe estava
morta, mas ainda tínhamos obrigações a cumprir. Precisávamos
seguir nosso caminho e aprender a nos ver como afortunados,
enquanto restasse um de nós que o ceifador não tivesse levado
embora.
Minha partida para Ingolstadt, adiada por esses acontecimentos,
estava agora de novo marcada. Obtive de meu pai uma trégua de
algumas semanas. Pareceu-me um sacrilégio abandonar tão cedo
aquela quietude da casa enlutada, em sintonia com a morte, e correr
para a agitação da vida. O luto era algo novo para mim, mas não me
alarmava nem um pouco. E não queria perder de vista aqueles que
ainda me restavam, e acima de tudo desejava ver, por pouco que
fosse, a minha doce Elizabeth mais consolada.
Ela, na realidade, ocultava seu pesar e fazia força para agir de
modo a consolar a todos nós. Encarava a vida com firmeza e
assumia seus deveres com coragem e zelo. Dedicava-se àqueles
que havia sido ensinada a chamar de tio e primos. Nunca foi tão
encantadora quanto naquela época, quando invocava o brilho solar
de seus sorrisos para poder oferecê-lo a nós. Até esqueceu a
própria dor em seu esforço para nos fazer esquecer a nossa.
Finalmente, chegou o dia da minha partida. Clerval passou a
última noite conosco. Tentara convencer o pai a deixá-lo me
acompanhar para ser meu colega de estudos, mas foi em vão. O pai
era um comerciante de mente estreita e via as aspirações e a
ambição do filho por uma educação liberal como ociosas e
prejudiciais. Henry lamentou profundamente a desventura de ser
impedido disso. Pouco falou, mas quando o fez consegui ler em seu
olhar bondoso uma resolução, ainda reprimida mas firme, de não
ficar refém das mesquinhas minúcias do comércio.
Fomos nos recolher bem tarde. Não conseguíamos nos separar
uns dos outros, nem convencer-nos a proferir a palavra “Adeus!”.
Mas ela foi dita, e nos retiramos a pretexto de buscar repouso, cada
um imaginando que poderia enganar o outro. Quando, porém, o dia
raiou, desci até a caleche que iria me levar embora e estavam todos
ali – meu pai para me dar de novo sua bênção, Clerval para apertar
minha mão uma vez mais, e minha Elizabeth para renovar suas
súplicas para que escrevesse com assiduidade e oferecer as últimas
atenções femininas ao seu colega de brincadeiras e amigo.
Desabei no banco da caleche que me levava embora e me
entreguei às reflexões mais melancólicas. Eu, que sempre vivera
rodeado de companhias amigáveis, com todo mundo sempre
envolvido em criar um ambiente de satisfação mútua, via-me agora
sozinho. Na universidade, precisaria arrumar novos amigos, e seria
eu meu único protetor. Levara até então uma vida muito isolada e
doméstica, o que me fizera rejeitar novas caras. Adorava meus
irmãos, Elizabeth e Clerval, que eram “velhos rostos familiares”, mas
me sentia totalmente inadequado na companhia de estranhos. Tais
eram minhas reflexões no início da viagem; mas, conforme fui
seguindo, meu ânimo e minhas esperanças melhoraram. Desejava
ardentemente adquirir conhecimento. Com frequência, quando
estava em casa, imaginava que seria penoso permanecer a
juventude inteira enfiado em um mesmo lugar, e tinha desejo de
entrar no mundo e achar meu lugar entre outros seres humanos.
Agora meus desejos estavam sendo atendidos, e seria de fato uma
insensatez eu me arrepender.
Tive tempo suficiente para essas e muitas outras reflexões
durante a viagem até Ingolstadt, que foi longa e cansativa. Por fim,
meus olhos divisaram o alto campanário branco da igreja local.
Desembarquei e fui levado ao meu solitário apartamento, para
passar a noite como me aprouvesse.
Na manhã seguinte, entreguei minhas cartas de apresentação e
fui visitar alguns de meus principais professores. O acaso – ou
talvez a má influência do Anjo da Destruição, que passou a ter um
controle onipotente sobre mim a partir do momento em que me
afastei com passos relutantes da porta de meu pai – levou-me
primeiro ao senhor Krempe, professor de filosofia natural. Era um
homem de poucos refinamentos, mas muito versado nos segredos
de sua ciência. Fez-me várias perguntas relativas aos meus
progressos nos diferentes ramos da ciência abrangidos pela filosofia
natural. Respondi sem muita ponderação e, com certo desdém,
mencionei os nomes de meus alquimistas como os principais
autores que havia estudado. O professor ficou surpreso: “Está me
dizendo”, replicou ele, “que perdeu seu tempo estudando essas
bobagens?”.
Respondi afirmativamente.
– Cada minuto – prosseguiu o senhor Krempe exaltado –, cada
instante que desperdiçou com esses livros foi absoluta e
inteiramente perdido. Você sobrecarregou sua memória com
sistemas esfacelados e nomes inúteis. Meu Deus! Em que terra
deserta você viveu, onde não havia ninguém com a gentileza de lhe
informar que essas fantasias, das quais você tão avidamente se
embebeu, têm mil anos de idade e são tão emboloradas quanto
antigas? Nunca imaginei que nesta era esclarecida e científica iria
encontrar um discípulo de Alberto Magno e Paracelso. Meu caro
senhor, deverá refazer seus estudos inteiramente do zero.
Dito isso, afastou-se e foi redigir uma lista de vários livros de
filosofia natural que desejava que eu providenciasse e dispensou-
me, depois de mencionar que no início da semana seguinte iria
proferir uma série de palestras gerais sobre filosofia natural, e que o
senhor Waldman, outro professor, iria dar palestras sobre química
em dias alternados, quando ele não estivesse.
Voltei para casa não desapontado, pois há tempos considerava
inúteis aqueles autores que o professor reprovara tão fortemente,
mas não me senti muito inclinado a estudar os livros que adquiri por
recomendação dele. O senhor Krempe era um homem atarracado,
de voz rouca e semblante repulsivo. O professor, portanto, não me
deixou com uma predisposição favorável aos temas de que se
ocupava. Já fiz aqui um relato, talvez em termos excessivamente
filosóficos e rebuscados, das conclusões a que eu chegara nesses
assuntos em meus primeiros anos. Quando criança, não me
contentava com os resultados prometidos pelos professores
modernos de ciência natural. Partindo de uma série de ideias
confusas, que só podem ser atribuídas à minha pouca idade e à
falta de um instrutor nesses assuntos, refizera os passos do
conhecimento ao longo das trilhas do tempo e trocara as
descobertas de pesquisadores recentes pelos sonhos de
alquimistas já esquecidos. Além disso, nutria desprezo pelos usos
da moderna filosofia natural. Era bem diferente o que os mestres da
ciência faziam, com sua procura de imortalidade e poder; tais
visões, embora fúteis, eram grandiosas. Agora, no entanto, o
cenário havia mudado. A ambição do investigador parecia limitar-se
a aniquilar aquelas visões sobre as quais meu interesse pela ciência
basicamente se alicerçava. Exigia-se de mim que trocasse quimeras
de ilimitada grandiosidade por realidades de pouco valor.
Tais foram minhas reflexões nos primeiros dois ou três dias de
minha residência em Ingolstadt, a maior parte deles dedicada a me
familiarizar com o lugar e com os principais residentes da minha
nova morada. Mas, no começo da semana seguinte, lembrei-me da
informação que o senhor Krempe me dera a respeito das palestras.
E embora rejeitasse a ideia de ouvir aquele sujeitinho convencido
discorrendo do alto de sua cátedra, lembrei-me do que ele dissera
sobre o senhor Waldman, que eu nunca havia visto, já que até então
estivera fora da cidade.
Em parte curioso, em parte por estar ocioso, fui até a sala de
palestras e vi o senhor Waldman entrar logo em seguida. Ele diferia
muito de seu colega. Parecia ter uns cinquenta anos, mas sua
aparência era expressiva, muito benevolente. Uns poucos cabelos
grisalhos cobriam suas têmporas, mas os da nuca eram quase
pretos. Era baixinho, mas notavelmente ereto, e sua voz, a mais
doce que eu já ouvira. Começou a palestra com uma recapitulação
da história da química e das diversas melhorias introduzidas por
diferentes homens de conhecimento, pronunciando com fervor os
nomes dos descobridores mais destacados. Traçou então um rápido
cenário do presente estado da ciência e explicou muitos de seus
termos elementares. Depois de uns poucos experimentos
preparatórios, concluiu com um panegírico sobre a química
moderna, cujos termos nunca vou esquecer:
– Os antigos professores dessa ciência – disse – prometeram
impossibilidades e não realizaram nada. Os mestres modernos
prometem muito pouco. Sabem que os metais não podem ser
transmutados e que o elixir da vida é uma quimera. Mas esses
filósofos, cujas mãos parecem feitas apenas para remexer resíduos
e cujos olhos parecem feitos apenas para perscrutar o microscópio
ou o cadinho, têm na verdade operado milagres. Penetraram nos
recessos da natureza e mostraram como ela funciona em seus
esconderijos. Ascenderam aos céus. Descobriram como circula o
sangue, e a natureza do ar que respiramos. Adquiriram novos e
quase ilimitados poderes. Podem comandar os trovões no céu,
simular um terremoto e até imitar o mundo invisível com as próprias
sombras.
Tais foram as palavras do professor – ou melhor, poderia dizer
que eram as palavras do destino, pronunciadas para me destruir.
Conforme ele prosseguia, senti como se minha alma se debatesse
com um inimigo palpável. Uma a uma, as várias teclas foram
acionadas e formaram o mecanismo de meu ser: acordes seguidos
ressoaram, e logo minha mente estava preenchida por um
pensamento, uma concepção, um propósito. Muito já foi feito,
exclamou a alma de Frankenstein, porém mais, muito mais, vou
conquistar: seguindo os passos já dados, serei o pioneiro de um
novo caminho, explorarei poderes desconhecidos e revelarei ao
mundo os mistérios mais profundos da criação.
Não consegui pregar os olhos naquela noite. Meu ser interno
estava num estado de insurreição e turbulência; sentia que a ordem
iria se manifestar a partir daquele momento, mas não tinha o poder
de produzi-la. Aos poucos, após o amanhecer, o sono foi chegando.
Acordei, e meus pensamentos da noite anterior eram como um
sonho. Restara apenas a resolução de retomar meus antigos
estudos e me devotar a uma ciência para a qual eu acreditava
possuir um talento natural. No mesmo dia, fiz uma visita ao senhor
Waldman. Privadamente, seus modos eram ainda mais suaves e
atraentes que em público, pois em sua expressão havia, durante a
palestra, certa solenidade que, na própria casa, foi substituída por
grande afabilidade e bondade. Ouviu com atenção minha pequena
narrativa sobre meus estudos e sorriu ao ouvir os nomes de
Cornelius Agrippa e Paracelso, mas sem o desprezo que o senhor
Krempe havia demonstrado. Disse que “esses foram homens cujo
zelo infatigável deu aos modernos filósofos a maior parte dos
alicerces de seu conhecimento. Eles deixaram a nosso encargo,
como tarefa das mais fáceis, encontrar novos nomes e criar
classificações conexas para os fatos que eles, em grande medida,
trouxeram à luz. Os trabalhos desses homens de gênio, embora
direcionados de modo equivocado, em última instância raramente
falharam em trazer avanços concretos para a humanidade”. Ouvi
sua declaração, feita sem nenhum tipo de presunção ou afetação, e
acrescentei que a palestra dele removera meus preconceitos contra
os químicos modernos e que eu, ao mesmo tempo, solicitava seu
conselho sobre os livros que deveria adquirir.
– Estou feliz – disse o senhor Waldman – por ter ganhado um
discípulo. E se a sua aplicação for igual à sua capacidade, não
tenho dúvidas quanto ao seu sucesso. A química é o ramo da
filosofia natural que teve os maiores avanços, e é por isso que fiz
dela meu estudo peculiar. Mas ao mesmo tempo não negligenciei os
outros ramos da ciência. Um homem seria um químico menor se só
atentasse para esse departamento do conhecimento humano. Se o
seu desejo é tornar-se realmente um homem de ciência, e não
apenas um mero experimentador, aconselho que se aplique a todos
os ramos da filosofia natural, incluindo a matemática.
Ele então me levou até seu laboratório e me explicou os usos de
suas diversas máquinas, instruindo-me a respeito do que deveria
comprar, prometendo que me deixaria usá-las quando eu já tivesse
avançado o suficiente na ciência para não comprometer seu
mecanismo. Deu-me também a lista de livros que lhe pedira, e fui
embora.
Assim terminou para mim um dia memorável, que decidiu meu
destino.
CAPÍTULO IV

A partir desse dia, a filosofia natural, e particularmente a química,


no sentido mais abrangente do termo, tornaram-se praticamente
minha única ocupação. Li com avidez obras de muito brilho
intelectual e discernimento que os modernos investigadores têm
escrito sobre tais assuntos. Assisti às palestras, cultivei relações
com os homens de ciência da universidade e encontrei até mesmo
no senhor Krempe muito bom senso e informações reais que,
apesar de combinadas com uma fisionomia e modos repugnantes,
não por isso perdiam seu valor. No senhor Waldman tive um
verdadeiro amigo. Seu tom era benevolente, desprovido de
dogmatismo, e ele dava instruções com um ar de franqueza e
bondade que excluía qualquer ideia de pedantismo. De mil maneiras
ele aplainou para mim o caminho do conhecimento, e tornava as
inquirições mais obscuras bem claras e fáceis de entender. De
início, minha aplicação foi oscilante e incerta; ela ganhou força à
medida que avançava, e logo me tornei tão fervoroso e interessado
que muitas vezes ficava envolvido em meu laboratório até que as
estrelas desaparecessem com a luz da manhã.
Com tamanha aplicação, não é difícil imaginar que eu tenha
progredido com rapidez. Na realidade, minha empolgação causava
espanto nos demais alunos, e minha proficiência era admirada por
meus mestres. O professor Krempe costumava me perguntar, com
um sorriso de ironia: “Como vai o Cornelius Agrippa?”. E o senhor
Waldman demonstrava a mais sincera satisfação com meus
progressos. Dois anos se passaram assim, durante os quais não fiz
nenhuma visita a Genebra, dedicado de corpo e alma às
descobertas que esperava fazer. Só quem as experimentou é capaz
de ter ideia das seduções da ciência. Em outros estudos, você vai
até onde outros já foram, e não há mais nada a descobrir; mas em
uma busca científica sempre há espaço para a descoberta e o
assombro. Uma mente de capacidade moderada, dedicando-se com
afinco a um estudo, chegará infalivelmente a uma grande
proficiência. E eu, que buscava com insistência encontrar um objeto
e estava exclusivamente envolvido nele, progredi com tal rapidez
que, ao cabo de dois anos, fiz algumas descobertas no
aprimoramento de certos instrumentos químicos que me trouxeram
grande estima e admiração na universidade. Quando cheguei a
esse ponto, totalmente familiarizado com a teoria e a prática da
filosofia natural segundo as lições dos professores de Ingolstadt, vi
que minha residência ali não resultaria mais em avanços pessoais.
Pensei, então, em voltar para meus amigos e minha cidade natal,
mas um incidente prolongou minha estada.
Um dos fenômenos que atraía particularmente minha atenção era
a estrutura do corpo humano – na realidade, a de qualquer animal
imbuído de vida. E com frequência perguntava a mim mesmo de
onde provinha o princípio da vida. Era uma questão ousada, e que
sempre fora considerada um mistério. Mas quantas coisas não
estaríamos à beira de conhecer se o que inquirimos não fosse
restringido por nossa covardia ou negligência! Revirei essas
circunstâncias em minha mente e decidi a partir de então dedicar
mais atenção àqueles ramos da filosofia natural relacionados à
fisiologia. Se não tivesse sido animado por um entusiasmo quase
sobrenatural, minha aplicação a esse estudo teria sido maçante e
quase insuportável. Para examinar as causas da vida, devemos
primeiro abordar a morte. Familiarizei-me com a ciência da
anatomia, mas isso não foi suficiente; tive também que observar a
degeneração natural e a decomposição do corpo humano. Na minha
educação, meu pai tomara as maiores precauções para que minha
mente não se deixasse impressionar por nenhum dos horrores
sobrenaturais. Não me lembro de ter estremecido diante de um
relato supersticioso, ou de ter receado a aparição de algum espírito.
A escuridão não produzia nenhum efeito em minha fantasia, e para
mim um cemitério era um mero repositório de corpos privados de
vida que, após terem sido a sede de beleza e de força,
transformavam-se em alimento para vermes. Agora, era levado a
examinar causa e evolução dessa decomposição, e fui obrigado a
passar dias e noites em jazigos e ossários. Minha atenção fixou-se
em todos aqueles objetos que a delicadeza dos sentimentos
humanos tem mais dificuldade para encarar. Assisti como a
excelente forma do homem se degrada e se exaure; contemplei a
corrupção da morte sucedendo-se ao vigor florescente da vida; vi os
vermes herdando as maravilhas do olho e do cérebro. Detive-me a
examinar todas as minúcias da causalidade, como exemplificadas
na mudança da vida para a morte e da morte para a vida, até que,
em meio a essas trevas, uma repentina luz brotou em mim – uma
luz tão brilhante e magnífica, embora tão simples, que ao mesmo
tempo que me deslumbrei com as imensas perspectivas que ela
ilustrava, surpreendeu-me que, entre tantos homens geniais que
haviam dirigido suas investigações para essa mesma ciência,
apenas a mim coubesse descobrir segredo tão assombroso.
Lembre-se, não estou aqui registrando a visão de um louco. A
certeza de que o sol brilha no céu não é maior do que a certeza da
verdade do que afirmo agora. Algum milagre deve tê-la produzido,
embora os estágios da descoberta tivessem sido nítidos e
demonstráveis. Após dias e noites de incríveis esforços e fadigas,
consegui descobrir a causa da geração e da vida. Mais do que isso,
tornei-me capaz de animar a matéria inerte.
O espanto que experimentei de início diante dessa descoberta
logo deu lugar à empolgação e ao arrebatamento. Depois de tanto
tempo gasto em trabalho penoso, chegar de vez ao ápice dos meus
desejos foi a consumação mais gratificante da minha labuta. Mas
essa descoberta era tão grandiosa e avassaladora que todos os
passos que me levaram a ela foram esquecidos, e contemplei
apenas o resultado. O que fora o objeto de estudo e o desejo dos
mais sábios homens desde a criação do mundo estava agora ao
meu alcance. Não que tudo tivesse se descortinado como em uma
cena mágica: a informação que eu obtivera era de uma natureza
mais propensa a direcionar meus esforços, tão logo eu os
apontasse para o objeto de minha busca, do que a exibir esse
objeto já consumado. Eu era como o árabe que havia sido enterrado
com os mortos e encontrara uma passagem para a vida, auxiliado
apenas por uma luz tênue e aparentemente inútil.
Vejo, meu amigo, pelo seu interesse e pelo assombro e
expectativa que seus olhos expressam, que gostaria de ser
informado do segredo do qual privo. Isso não é possível: ouça com
paciência até eu chegar ao final da minha história, e irá facilmente
perceber a razão das minhas reservas em relação a esse assunto.
Não vou fazê-lo avançar, desprotegido e fervoroso como eu estava
então, para sua destruição e infalível tormento. Aprenda comigo, se
não por meus preceitos, pelo menos por meu exemplo, como é
perigosa a aquisição de conhecimento, e o quanto o homem que
acredita que sua cidade natal constitui o mundo inteiro é mais feliz
do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza irá
permitir.
Quando vi um poder tão impressionante em minhas mãos, hesitei
longo tempo quanto à maneira de empregá-lo. Embora possuísse a
capacidade de conferir vida, o trabalho de preparar uma constituição
física para recebê-la, com toda a sua complexidade de fibras,
músculos e veias, ainda se afigurava de inconcebível dificuldade e
esforço. Tinha dúvidas se deveria tentar criar um ser igual a mim ou
uma constituição mais simples, mas minha imaginação estava
exaltada demais pelo meu primeiro sucesso para me permitir
duvidar de minha capacidade de dar vida a um animal tão complexo
e maravilhoso quanto o homem. Os materiais de que dispunha
naquele momento pareciam pouquíssimo adequados para um
empreendimento tão árduo, mas não tinha dúvida de que acabaria
conseguindo. Preparei-me para uma infinidade de reveses. Minhas
operações poderiam ser frustradas incessantemente, e meu
trabalho final talvez ficasse imperfeito; mesmo assim, quando
considerava os avanços que ocorriam todos os dias na ciência e na
mecânica, animava-me a ter esperanças de que minhas tentativas
iriam pelo menos lançar os alicerces de um futuro sucesso.
Tampouco podia encarar a magnitude e complexidade de meu plano
como um argumento de sua impraticabilidade. Foi com esses
sentimentos que comecei a criar um ser humano. Como a minúscula
dimensão das partes era um grande empecilho à minha velocidade,
decidi, contrariando minha primeira intenção, produzir um ser de
estatura gigante, isto é, com cerca de dois metros e quarenta de
altura, e proporcionalmente portentoso. Depois de tomar essa
decisão e de passar alguns meses em um trabalho bem-sucedido
de recolher e dispor meus materiais, coloquei mãos à obra.
Ninguém é capaz de imaginar a variedade de sentimentos que
me fizeram avançar, como um furacão, no entusiasmo inicial do
êxito. Vida e morte me pareciam limites ideais, que eu teria primeiro
que ultrapassar, para fazer jorrar uma torrente de luz sobre o nosso
mundo obscuro. Uma nova espécie iria me abençoar como seu
criador e como sua fonte. Muitas naturezas felizes e magníficas
passariam a dever sua existência a mim. Nenhum pai poderia
reivindicar a gratidão de seu filho tão completamente quanto eu a
delas. Levado por essas reflexões, pensei que, se fosse capaz de
conferir vida à matéria inerte, poderia, com o tempo (embora hoje
ache isso impossível), reintroduzir vida onde a morte tivesse
entregado o corpo à deterioração.
Tais pensamentos mantinham meu ânimo enquanto eu perseguia
meu empreendimento com fervor e perseverança. Meu rosto
empalidecera de tanto dedicar-me ao estudo, e meu corpo se
tornara macilento com o confinamento. Fracassei várias vezes,
quando julgava estar à beira da certeza. Mesmo assim, mantinha a
esperança de que no dia seguinte ou na próxima hora teria sucesso.
A esperança que me nutria era aquele segredo que apenas eu
possuía, e a lua, à meia-noite, assistia aos meus esforços, enquanto
eu perseguia a natureza, com avidez tensa e incansável, pelos seus
esconderijos. Quem poderá conceber os horrores dessa minha
labuta secreta, remexendo o lodo impuro dos túmulos, ou torturando
animais vivos para animar o barro inerte? A lembrança disso faz
meus membros tremerem e traz lágrimas aos meus olhos. Mas
naquele momento um impulso irresistível e frenético me fazia seguir.
Parecia ter perdido toda alma e toda sensibilidade, exceto para com
essa busca. Na realidade, porém, foi um transe passageiro, que
apenas me fez sentir uma renovada disposição quando, passado o
efeito desse estímulo não natural, voltei aos meus velhos hábitos.
Recolhia ossos de jazigos e invadia com dedos profanadores os
tremendos segredos do corpo humano. Em uma câmara solitária, ou
melhor, em uma cela no alto da casa, separada de todos os demais
aposentos por um corredor e uma escadaria, mantinha minha oficina
de criações imundas. Meus olhos saltavam das órbitas quando eu
perscrutava os detalhes de minha tarefa. A sala de dissecção e o
matadouro forneciam muitos de meus materiais, e muitas vezes
minha natureza humana me levava a afastar-me dessa repugnante
ocupação, embora, movido ainda por uma ansiedade
perpetuamente crescente, eu aproximasse meu trabalho de uma
conclusão.
Os meses de verão se passaram comigo envolvido, de corpo e
alma, em um único objetivo. Era uma estação muito bonita. Nunca
os campos concederam uma colheita tão farta, nem as videiras,
uma safra tão exuberante. Mas meus olhos eram insensíveis aos
encantos da natureza, e o mesmo sentimento que me fazia
negligenciar as cenas à minha volta me fez também esquecer
aqueles amigos que estavam a tantos quilômetros de distância e
que não via há tanto tempo. Sabia que meu silêncio os inquietava, e
me lembrava bem das palavras de meu pai: “Sei que enquanto você
estiver bem consigo mesmo, pensará em nós com carinho, e
teremos notícias suas com frequência. Perdoe-me, mas se eu
observar qualquer interrupção em sua correspondência, irei vê-la
como prova de que seus outros deveres estão também sendo
negligenciados”.
Portanto, sabia bem quais deveriam ser os sentimentos de meu
pai, mas não conseguia afastar meus pensamentos da minha tarefa,
em si mesma abominável, mas que havia tomado minha imaginação
de maneira irresistível. Minha vontade era adiar tudo o que se
relacionasse com meus sentimentos de afeto, até que o grande
projeto, que absorvia todos os hábitos de minha natureza, estivesse
concluído.
E então pensei que meu pai seria injusto se atribuísse minha
negligência a algum vício ou falha de minha parte, mas estou
convencido, agora, de que seria justificado ele acreditar que eu não
estava totalmente isento de culpa. Um ser humano em perfeitas
condições deve sempre preservar uma mente calma e pacífica, e
nunca permitir que a paixão ou um desejo transitório perturbem sua
tranquilidade. Não acho que a busca de conhecimento seja uma
exceção a essa regra. Se o estudo ao qual você se aplica tende a
enfraquecer seus afetos e destruir seu gosto por aqueles prazeres
simples nos quais nada pode se imiscuir, então esse estudo com
certeza é ilegítimo, ou seja, não é adequado à mente humana. Se
essa regra fosse sempre observada, se nenhum homem permitisse
que uma ocupação qualquer interferisse na tranquilidade de seus
afetos domésticos, a Grécia não teria sido escravizada, César teria
poupado seu país, a América teria sido descoberta de maneira mais
gradual e os impérios do México e do Peru não teriam sido
destruídos. Mas percebo que me dispersei em digressões morais na
parte mais interessante de minha narrativa, e os olhares que você
me dirige me lembram que devo prosseguir.
Meu pai não fez nenhuma repreensão em suas cartas, apenas
mostrou que percebera meu silêncio e fez inquirições a respeito de
minhas ocupações de maneira mais particular do que antes.
Inverno, primavera e verão transcorreram durante meus trabalhos,
mas não contemplei as flores brotando ou as folhas se expandindo –
visões que antes sempre haviam sido minha suprema satisfação –,
tão profundamente absorto estava em minha ocupação. As folhas
daquele ano já haviam murchado antes que meu trabalho se
aproximasse do término, e agora cada dia mostrava-me de maneira
mais clara o quanto estava sendo bem-sucedido. Mas meu
entusiasmo era emperrado por minha ansiedade, e eu mais parecia
um condenado a labutar nas minas ou a fazer qualquer outro
trabalho insalubre, do que um artista ocupado com seu ofício
favorito. Toda noite era acometido por uma febre leve, e meu
nervosismo chegou a um grau aflitivo: a queda de uma folha no
chão me assustava, e passei a evitar meus semelhantes como se
eu fosse culpado de algum crime. Às vezes ficava alarmado ao
perceber a ruína em que me havia transformado. A energia de meu
propósito era a única coisa que me sustentava. Minha labuta logo
terminaria, e acreditei que um pouco de exercício e diversão poderia
afastar a incipiente doença, e então prometi a mim mesmo dedicar-
me a essas duas coisas assim que minha criação estivesse pronta.
CAPÍTULO V

Foi em uma sombria noite de novembro que contemplei a


consumação de meus árduos esforços. Com uma ansiedade que
beirava a agonia, reuni à minha volta os instrumentos de vida que
infundiriam uma centelha de existência no ente inanimado que jazia
a meus pés. Já era quase uma da manhã; uma chuva triste
tamborilava contra as vidraças, e minha vela estava quase
apagando quando, sob o brilho daquela luz quase extinta, vi o fosco
olho amarelo da criatura se abrir; ela respirou com esforço, e um
movimento convulsivo agitou seus membros.
Como posso descrever minhas emoções diante dessa catástrofe,
ou descrever aquele desgraçado que, com infinitos e sofridos
cuidados, eu me esforçara em criar? Seus membros eram
proporcionais, e eu selecionara para ele traços que julgara bonitos.
Belos! Ah! Meu Deus! Sua pele amarelada mal cobria o emaranhado
de músculos e artérias por baixo dela; seu cabelo era de um preto
lustroso, e escorrido; seus dentes, de uma brancura perolada. Mas
essas abundâncias apenas serviam para formar um contraste mais
horrível com os olhos úmidos, que pareciam quase da mesma cor
que o branco opaco das órbitas nas quais se assentavam, com a tez
murcha e os lábios pretos e retos.
Os diferentes acidentes da vida não são tão instáveis quanto as
emoções da natureza humana. Eu trabalhara arduamente quase
dois anos, com o único propósito de infundir vida a um corpo
inanimado. Para isso me privara de descanso e comprometera a
saúde. Desejara aquilo com um fervor que ia muito além da
moderação, mas, agora que havia terminado, a beleza do sonho se
esvaiu, e meu coração se encheu de um horror e de uma aversão
sufocantes. Incapaz de encarar o aspecto do que havia criado, corri
para fora daquela sala e fiquei um longo tempo perambulando pelo
meu quarto, incapaz de aquietar minha mente para o sono. Por fim,
a lassidão venceu o tumulto que até então suportara, e me atirei na
cama de roupa e tudo, empenhado em conseguir alguns momentos
de esquecimento. Em vão: acabei dormindo, mas fui perturbado
pelos sonhos mais desordenados. Sonhei que via Elizabeth,
gozando de plena saúde, andando pelas ruas de Ingolstadt.
Encantado e surpreso, abracei-a, mas assim que lhe dei o primeiro
beijo nos lábios, estes ficaram lívidos com o matiz da morte, suas
feições pareceram mudar, e me vi então segurando nos braços o
cadáver de minha mãe. Uma mortalha a envolvia, e vi os vermes de
sepultura rastejando pelas dobras do tecido. Despertei com horror.
Um frio suor cobria minha testa, eu batia os dentes, e todos os meus
membros ficaram convulsos; então, a luz pálida e amarelada da lua,
vazando pelas frestas das persianas, permitiu-me contemplar o
desgraçado, o miserável monstro que havia criado. Ele levantou a
cortina da cama, e seus olhos, se é que podiam ser chamados de
olhos, estavam fixos em mim. Entreabriu o queixo e balbuciou
alguns sons inarticulados, enquanto um meio sorriso enrugava suas
faces. Talvez tenha falado, mas não consegui ouvir. Tinha a mão
estendida, como para me deter, mas fugi e desci as escadas
correndo. Refugiei-me no pátio da casa que habitava, e lá fiquei o
resto da noite, andando para cima e para baixo na maior agitação,
atento para ouvir alguma coisa, captando e morrendo de medo a
cada som, como se anunciasse a aproximação do demoníaco
cadáver ao qual eu tão miseravelmente havia dado vida.
Ah! Nenhum mortal poderia suportar o horror daquele semblante.
Uma múmia dotada novamente de vida não poderia ser tão
horrenda como aquele desgraçado. Eu o observara quando ainda
não estava pronto. Era feio, então, mas quando aqueles músculos e
articulações foram capazes de se mover, transformou-se em algo
que nem mesmo Dante poderia ter concebido.
Passei uma noite terrível. Às vezes meu pulso batia tão rápido e
forte que eu sentia a palpitação de cada uma de minhas artérias.
Outras vezes, quase desabava no chão, tamanho o abatimento e a
extrema fraqueza. Misturado a esse horror, sentia a amargura do
desapontamento: os sonhos que haviam sido meu alimento e meu
agradável descanso por tanto tempo agora se transformavam em
um inferno. E como fora rápida a mudança, e completa a derrocada!
Finalmente chegou a manhã, triste e chuvosa, e vislumbrei com
olhos insones e doloridos a igreja de Ingolstadt, seu campanário
branco, com o relógio que marcava seis horas. O zelador abriu o
portão do pátio que havia sido meu refúgio, e saí pelas ruas a passo
rápido, como se procurasse evitar o desgraçado que eu tinha medo
de ver à minha frente a cada esquina que dobrava. Não ousei voltar
ao meu apartamento, mas sentia-me impelido a ter pressa, apesar
de encharcado da chuva que caía de um céu escuro e ameaçador.
Continuei andando desse modo por algum tempo, no esforço de
fazer com que o exercício corporal aliviasse o peso que
sobrecarregava minha mente. Cruzei as ruas, sem nenhuma noção
clara de onde estava ou do que fazia. Meu coração palpitava no
desvario do medo e me fazia ter pressa, com passos irregulares,
sem ousar olhar em volta:
Como alguém que em deserto lugar,
Avança com apreensão e temor,
E depois de girar-se e olhar,
Não olha mais e volta a andar;
Pois sabe que um ser assustador
Segue de perto seu caminhar.****
Prosseguindo assim, acabei chegando defronte à pousada onde
várias diligências e carruagens costumavam parar. Ali me detive,
sem saber por quê, mas fiquei alguns minutos com os olhos fixos
em uma carruagem que vinha do outro lado da rua em minha
direção. Conforme se aproximou, observei que se tratava de uma
diligência suíça. Ela parou bem onde eu estava, e quando a porta se
abriu, era Henry Clerval, que, ao me ver, soltou:
– Meu querido Frankenstein – exclamou –, que alegria vê-lo! E
que casualidade você estar aqui bem na hora da minha chegada!
Nada poderia se igualar ao prazer que senti ao ver Clerval. Sua
presença trouxe de volta a figura de meu pai, de Elizabeth e todas
aquelas cenas de casa cuja lembrança me era tão cara. Segurei a
mão dele e na mesma hora esqueci meu horror e meu infortúnio.
Senti de repente, e pela primeira vez em muitos meses, uma alegria
calma e serena. Portanto, dei as boas-vindas ao meu amigo da
maneira mais cordial, e fomos andando em direção à minha
faculdade. Clerval continuou um tempo falando sobre nossos
amigos comuns, e da sua sorte em ter permissão para vir a
Ingolstadt.
– Como você deve imaginar – disse ele –, tive muita dificuldade
em convencer meu pai de que não era absolutamente
imprescindível que um comerciante ignorasse tudo exceto a
contabilidade. E, para ser franco, acho que ele ainda não se
convenceu, pois sua resposta imutável aos meus incansáveis
esforços era a mesma do professor holandês de O vigário de
Wakefield: “Ganho dez mil florins por ano sem saber grego, e como
muito bem sem saber grego”. Mas, no final, o afeto por mim venceu
sua aversão à instrução, e ele me autorizou a fazer essa viagem de
descoberta à terra do conhecimento.
– É um prazer enorme vê-lo; mas diga-me, como estão meu pai,
meus irmãos e Elizabeth?
– Estão muito bem e muito felizes, só um pouco preocupados
com a falta de notícias suas. A propósito, eu mesmo quero lhe
passar um pequeno sermão sobre isso. Mas, meu caro Frankenstein
– continuou, parando de repente e me encarando –, ainda não
comentei o quanto você parece doente: tão magro e pálido, dá a
impressão de que não dorme há dias.
– Você adivinhou. Fiquei tão envolvido em uma ocupação que
não tenho me permitido descansar o suficiente, como vê. Mas
espero, sinceramente, que todos esses trabalhos estejam agora
encerrados, e que eu esteja por fim livre.
Eu tremia muito. Não conseguia suportar pensar e muito menos
falar sobre as ocorrências da noite anterior. Caminhei a passo
rápido, e logo chegamos à minha faculdade. E então me veio à
mente, e o pensamento me fez estremecer, que a criatura que havia
deixado em meu apartamento ainda poderia estar viva e andando
por ali. Eu tinha medo de contemplar aquele monstro, mas temia
ainda mais que Henry o visse. Pedindo então que aguardasse
alguns minutos ao pé da escada, subi correndo ao meu quarto.
Minha mão já estava na maçaneta antes que eu tivesse conseguido
me recompor. Então parei, e um calafrio me percorreu. Abri a porta
de vez, como as crianças costumam fazer quando esperam que
haja um fantasma em pé esperando por elas do outro lado, mas
nada apareceu. Entrei receoso: o apartamento estava vazio, e meu
quarto também estava livre daquela horrenda visita. Mal podia
acreditar que tivesse sido contemplado com tamanha sorte, e
quando tive certeza de que meu inimigo havia de fato fugido, bati
palmas de alegria e desci para encontrar Clerval.
Subimos até meu quarto, e a empregada trouxe o café, mas não
fui capaz de me conter. Não era só a alegria que me possuía: sentia
minha carne formigar de excesso de sensibilidade, e meu pulso
acelerou. Não conseguia ficar um único instante na mesma posição,
saltava por cima das cadeiras, batia palmas e ria alto. Clerval, de
início, atribuiu meu ânimo exaltado à alegria por sua chegada, mas
quando observou com maior atenção, viu em meus olhos uma
agitação que não conseguia entender, e minha risada, alta,
descontrolada e vazia de emoção gerou nele susto e perplexidade.
– Meu caro Victor – gritou –, por Deus, o que está acontecendo?
Não ria desse jeito. Como você está mal! Qual é a causa disso
tudo?
– Não faça essa pergunta – gritei, cobrindo os olhos com as
mãos, pois pensava ter visto o temido espectro entrar no quarto –,
ele pode lhe dizer. Oh, salve-me! Salve-me!
Imaginei, naquela hora, que o monstro havia me agarrado, e me
debati furiosamente, até cair no chão, em surto.
Pobre Clerval! Como deve ter se sentido? Um encontro, pelo qual
ele devia ter ansiado com alegre expectativa, transformado em algo
tão estranho e triste. Mas não fui testemunha de seu pesar, pois
estava desprovido de consciência, e por muito tempo não consegui
recuperar a sensatez.
Era o início de uma febre nervosa que me deixou confinado por
vários meses. Durante esse tempo, fui cuidado apenas por Henry.
Mais tarde, soube que, levando em conta a idade avançada de meu
pai e sua falta de condições para uma viagem tão longa, e o quanto
minha doença iria deixar Elizabeth infeliz, ele os poupou desse
dissabor e ocultou a extensão da minha enfermidade. Sabia que eu
não poderia ter um cuidador mais bondoso e atencioso do que ele
próprio, e com a firme esperança que sentia na minha recuperação,
não duvidava de que sua atitude, em vez de ser prejudicial,
constituía a mais bondosa que poderia ter em relação a eles.
A realidade, porém, era que eu estava muito doente, e sem
dúvida foi somente graças às atenções irrestritas e incansáveis de
meu amigo que pude ser trazido de volta à vida. A forma do monstro
a quem eu dera existência voltava a toda hora aos meus olhos e me
fazia delirar sem parar. Claro que minhas palavras causavam
surpresa em Henry: de início, ele acreditou que eram devaneios de
minha imaginação perturbada, mas a persistência com que eu
voltava ao mesmo assunto convenceu-o de que minha perturbação
tinha origem em algum evento incomum e terrível.
De maneira muito lenta e parcimoniosa, e com frequentes
recaídas que alarmavam e afligiam meu amigo, recuperei-me.
Lembro-me da primeira vez em que fui capaz de observar objetos
externos com alguma espécie de prazer, e percebi que as folhas
caídas haviam desparecido, e que brotos novos desabrochavam nas
árvores que faziam sombra à minha janela. Era uma primavera
divina, e a estação contribuiu muito para acelerar minha
convalescença. Tinha também sentimentos de alegria e afeto
revivendo em meu íntimo. Minha melancolia cedeu, e em pouco
tempo voltei a ser tão alegre quanto antes de ser acometido pela
fatal paixão.
– Meu caro Clerval – exclamei –, como você é gentil e bondoso
comigo! Este inverno inteiro, em vez de estudar, como prometera a
si mesmo, passou-o neste meu quarto de doente. Como poderei um
dia retribuir? Sinto grande remorso por ter sido responsável por essa
decepção, mas você há de me perdoar.
– Você já estará me retribuindo se não se desagregar, se ficar
curado o mais prontamente possível. E como parece estar com boa
disposição, acho que posso falar com você a respeito de um
assunto, o que acha?
Eu estremeci. Um assunto! Qual seria? Estaria aludindo ao objeto
sobre o qual eu não ousava sequer pensar?
– Fique tranquilo – disse Clerval, que notou minha mudança de
cor –, não vou mencioná-lo, já que isso o deixa agitado, mas seu pai
e sua prima ficariam muito contentes em receber uma carta sua de
próprio punho. Eles não têm ideia do quanto você ficou doente, e
estão preocupados com seu longo silêncio.
– Era só isso, meu caro? Como pôde supor que meu primeiro
pensamento não iria se voltar àqueles meus caríssimos amigos que
tanto amo, e que tão merecedores são do meu amor?
– Bem, se esse é seu presente estado de ânimo, meu amigo,
talvez fique feliz em saber que há uma carta aqui há vários dias
esperando que a leia: é de sua prima, penso eu.
CAPÍTULO VI

Clerval então colocou uma carta em minhas mãos. Era da minha


querida Elizabeth.
Meu caro primo
Você tem estado doente, muito doente, e mesmo as seguidas
cartas do querido e bondoso Henry não são suficientes para me
tranquilizar a seu respeito. Você está proibido de escrever – de
segurar uma caneta. Mesmo assim, uma palavra sua, querido Victor,
é necessária para acalmar nossas apreensões. Por muito tempo
pensei que cada correio vinha trazer essa linha sua, e precisei ser
persuasiva para demover meu tio de empreender uma viagem até
Ingolstadt. Com isso quis impedir que tivesse que enfrentar os
desconfortos e talvez os perigos de uma viagem tão longa; no
entanto, quantas vezes lamentei não ser capaz de fazê-la eu
mesma! Imagino que a tarefa de atendê-lo em seu leito de enfermo
tenha sido desempenhada por alguma velha enfermeira mercenária,
que jamais seria capaz de adivinhar seus desejos, nem atendê-los
com o cuidado e o afeto da sua pobre prima. Mas isso agora já
passou: Clerval escreve dizendo que você já está melhorando.
Espero ansiosamente que me confirme logo essa informação de
próprio punho.
Fique bom – e volte para nós. Encontrará uma casa feliz, alegre,
e amigos que o amam muito. A saúde de seu pai está ótima, e ele
quer vê-lo – mas só para ter certeza de que você está bem, já que
nenhuma preocupação nunca lhe turva o semblante benévolo.
Como você ficaria satisfeito em ver o notável progresso de nosso
Ernest! Ele tem agora dezesseis anos, está muito ativo e animado.
Seu desejo é ser um verdadeiro suíço e prestar serviço militar no
estrangeiro, mas não podemos nos separar dele, pelo menos até
que seu irmão mais velho retorne. Meu tio não concorda muito com
a ideia de uma carreira militar num país distante, mas Ernest nunca
teve a mesma força de vontade que você tem para estudar. Encara
o estudo como uma restrição odiosa; passa o tempo a céu aberto,
escalando as montanhas ou remando no lago. Temo que vire um
desocupado, a menos que a gente faça uma concessão e permita
que adote a profissão que escolheu.
Foram poucas as mudanças desde que você foi embora, exceto
que nossas queridas crianças cresceram. O lago azul, as
montanhas cobertas de neve, isso nunca muda – e penso que
nosso plácido lar e nossos corações tranquilos são regulados pelas
mesmas leis imutáveis. Minhas ocupações triviais consomem meu
tempo e me distraem, e sou recompensada por meus esforços
quando só vejo rostos felizes e bondosos ao meu redor. Desde que
você se foi, ocorreu apenas uma mudança em nossa humilde vida
doméstica. Você se lembra de quando Justine Moritz entrou para a
nossa família? Provavelmente não; então vou relatar a história dela
em poucas palavras. Madame Moritz, a mãe dela, era uma viúva
com quatro filhos, dos quais Justine era a terceira. Essa menina
sempre fora a favorita do pai dela, mas por alguma estranha
perversidade a mãe não podia suportá-la e, após a morte do senhor
Moritz, passou a tratá-la muito mal. Minha tia notou isso e, quando
Justine fez doze anos, insistiu em que a mãe a deixasse morar em
casa. As instituições republicanas de nosso país têm produzido
costumes mais simples e felizes do que os que prevalecem nas
grandes monarquias em volta dele. Há entre nós menos distinções
entre as diversas classes de habitantes, e as camadas mais baixas,
por não serem aqui nem tão pobres nem tão desvalorizadas, têm
costumes mais refinados e ajustados à moral. Um criado em
Genebra não significa a mesma coisa que um criado na França e na
Inglaterra. Justine, ao ser recebida nesses termos em nossa família,
aprendeu os deveres de uma criada, uma condição que em nosso
afortunado país não implica a ideia de ignorância, nem um sacrifício
da dignidade de um ser humano.
Como você deve estar lembrado, Justine era alguém de quem
você gostava muito, e lembro-me de você ter comentado uma vez
que, se estivesse de mau-humor, bastaria receber um olhar de
Justine para que isso se dissipasse, pela mesma razão citada por
Ariosto ao se referir à beleza de Angélica: por ela ostentar muita
pureza de coração e felicidade. Minha tia tinha grande afeição por
ela, o que a induziu a dar-lhe uma instrução bem superior àquela
que de início tinha intenção de dar-lhe. Esse bem que lhe fez foi
totalmente retribuído; Justine era a pequena criatura mais
agradecida do mundo. Não digo que expressasse isso com
palavras, nunca ouvi de seus lábios declarações nesse sentido, mas
você podia ver em seus olhos que ela tinha quase adoração por sua
protetora. Apesar de sua disposição jovial, muitas vezes irreverente,
ela dava a maior atenção a cada gesto de minha tia. Via-a como o
modelo da excelência em tudo, e esforçava-se para imitar suas
frases e modos, tanto que, até agora, muitas vezes me faz lembrar
dela.
Quando minha querida tia morreu, todos estavam ocupados
demais com sua própria dor para notar o que acontecia com a pobre
Justine, que cuidara dela durante toda a sua doença com o maior
desvelo e afeto. A pobre Justine estava muito doente, mas ainda lhe
estavam reservadas outras provações.
Um por um, seus irmãos e sua irmã foram morrendo, e a mãe
ficou sozinha, sem filhos, com exceção da filha enjeitada. A
consciência da mulher estava perturbada, e ela começou a achar
que a morte dos filhos favoritos era um julgamento dos céus para
castigar sua parcialidade. Era católica, e, ao que parece, seu
confessor confirmou a ideia que ela havia concebido. Então, alguns
meses depois que você partiu para Ingolstadt, Justine foi chamada
de volta à casa pela mãe arrependida. Pobre menina! Chorou ao
sair de nossa casa; estava muito mudada desde a morte de minha
tia: a dor dera um toque mais suave e uma encantadora delicadeza
aos seus modos, que antes eram notáveis pela vivacidade. O fato
de residir com a mãe tampouco ajudou a restituir sua alegria. A
pobre mulher era muito vacilante em seu arrependimento. Às vezes,
implorava a Justine que a perdoasse por sua crueldade, mas com
maior frequência a acusava de ter causado a morte de seus irmãos
e de sua irmã. Essa perpétua inquietação acabou fazendo declinar a
saúde de Madame Moritz, o que primeiro aumentou sua
irritabilidade, depois a levou a encontrar a paz eterna. Morreu logo
que começou o tempo frio, no início deste último inverno. Justine
voltou para nossa casa, e posso lhe assegurar que a amo de
coração. Ela é muito inteligente e gentil, e extremamente bonita,
como mencionei. Seus modos e suas expressões me fazem lembrar
a toda hora de minha querida tia.
Devo também dizer algumas palavras a você, querido primo,
sobre o pequeno e querido William. Adoraria que você o visse. Está
muito alto para a idade, com lindos olhos azuis sorridentes, cílios
escuros e cabelo cacheado. Quando sorri, duas covinhas aparecem
em suas bochechas, que são rosadas de tanta saúde. Ele já teve
uma ou duas namoradinhas, mas Louisa Biron é sua favorita, uma
menininha linda de cinco anos de idade.
Bem, meu caro Victor, ouso dizer que irá gostar de saber de uma
pequena fofoca aqui do pessoal de Genebra. A linda senhorita
Mansfield já recebeu as visitas formais pela aproximação de seu
casamento com um jovem inglês, John Melbourne. A irmã feiosa
dele, Manon, casou-se com o senhor Duvillard, o rico banqueiro, no
último outono. Seu colega de escola favorito, Louis Manoir, sofreu
vários infortúnios desde a partida de Clerval para Genebra. Mas já
recuperou o ânimo, e dizem que está para se casar com uma
francesa linda e muito alegre, Madame Tavernier. Ela é viúva e mais
velha que Manoir, mas é muito admirada, e todos gostam dela.
Melhorei meu ânimo ao escrever esta carta, querido primo,
embora não possa concluir sem de novo perguntar ansiosamente a
respeito de sua saúde. Querido Victor, se não estiver muito doente,
escreva você mesmo, e com isso faça seu pai feliz e a nós todos
também; ou... não suporto pensar na outra alternativa, que minhas
lágrimas já correm. Adieu, meu querido primo.
Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de março de 17...

“Querida, querida Elizabeth!”, exclamei depois de ler a carta, “vou


escrever imediatamente e aliviá-los da preocupação”. Escrevi, e
esse empenho me fatigou muito, mas minha convalescença já havia
se iniciado e seguiu regularmente. Mais quinze dias e fui capaz de
sair do quarto.
Uma das primeiras obrigações da minha recuperação foi
apresentar Clerval a vários professores da universidade. Fazer isso
exigiu muito de mim, e mostrou-se pouco adequado às tensões que
minha mente havia sofrido. Desde aquela noite fatal, que marcou o
fim dos meus esforços e o início dos meus infortúnios, desenvolvi
uma violenta antipatia até mesmo pelo nome “filosofia natural”.
Quando já quase recuperara a saúde, a visão de um instrumento
químico trazia de volta toda a agonia dos meus sintomas nervosos.
Henry percebeu, e retirou os aparelhos do alcance da minha visão.
Também fez mudanças no apartamento, pois notou que eu adquirira
aversão pela sala que havia sido meu laboratório. Mas esses
cuidados mostraram-se inúteis quando visitei os professores. Foi
torturante ouvir o senhor Waldman elogiar, de maneira bondosa e
afetuosa, os impressionantes progressos que eu havia feito nas
ciências. Ele logo percebeu meu desagrado pelo assunto, mas, sem
atinar para a verdadeira causa, atribuiu meus sentimentos à
modéstia e tirou o foco do meu desempenho para colocá-lo na
própria ciência, com a intenção, como eu claramente percebi, de me
fazer falar. O que eu poderia fazer? Querendo ser agradável, ele me
torturava. Senti como se ele tivesse colocado meticulosamente, um
por um, diante de mim, aqueles instrumentos que seriam mais tarde
usados para me levar a uma morte lenta e cruel. Suas palavras
causavam-me contorções, mas eu não ousava demonstrar a dor
que me atormentava. Clerval, cujos olhos e sentimentos eram
sempre rápidos em discernir o que os outros sentiam, desviou o
assunto, alegando como desculpa sua completa ignorância, e a
conversa ganhou um rumo mais geral. Senti-me grato do fundo do
coração ao meu amigo, mas não disse nada. Notei que havia ficado
surpreso, mas em nenhum momento ele tentou extrair de mim meu
segredo; e, embora o amasse com uma mistura de afeto e
reverência ilimitados, mesmo assim não consegui me persuadir a
confiar-lhe aquele evento tão frequente em minhas lembranças, que
eu receava descrever a alguém, temendo que ficasse gravado ainda
mais profundamente em mim.
O senhor Krempe não mostrava a mesma docilidade, e, na minha
condição na época, que era de uma suscetibilidade quase
insuportável, seus elogios francos e rudes causavam-me dor ainda
maior do que a benevolente aprovação do senhor Waldman.
– É danado esse garoto! – gritava. – Sabe, senhor Clerval,
garanto-lhe que deixou todos nós para trás. Ah, não se espante,
não, é a pura verdade. Um jovem que há apenas uns anos
acreditava tão firmemente em Cornelius Agrippa quanto no
Evangelho, agora se pôs no comando da universidade. E se não for
desbancado, logo ficaremos todos em má situação. É como lhe digo
– continuou, observando a expressão de sofrimento no meu
semblante –, o senhor Frankenstein é modesto, o que é uma
excelente qualidade em um jovem. Jovens devem desconfiar um
pouco de si mesmos, sabe disso, não é, senhor Clerval? Eu cultivei
isso quando jovem, mas é algo que em pouco tempo se perde.
O senhor Krempe começou então a fazer um autoelogio, o que
felizmente desviou a conversa daquele assunto que tanto me
incomodava.
Clerval nunca compartilhara meu gosto por ciências naturais, e
seus interesses literários diferiam totalmente dos que haviam me
ocupado. Ele entrara na universidade com a intenção de se tornar
um mestre completo em línguas orientais, pois assim poderia abrir
um campo para o plano de vida que havia traçado. Decidido a não
seguir nenhuma carreira insossa, voltou os olhos para o Oriente
como algo que daria vazão ao seu espírito empreendedor. O persa,
o árabe e o sânscrito chamaram sua atenção, e fui facilmente
induzido a me envolver também nesses estudos. A ociosidade
sempre havia sido algo desconfortável para mim, e agora que
desejava me afastar das reflexões e nutria aversão por meus
estudos anteriores, senti grande alívio em ser colega de estudos de
meu amigo, e encontrei não só instrução, mas também consolo, nas
obras dos orientalistas. A melancolia deles é balsâmica, e sua
alegria alcança um grau que nunca havia experimentado no estudo
de autores de nenhum outro país. Quando lemos seus escritos, a
vida parece consistir em um sol quente e em um jardim de rosas;
nos sorrisos e cenho franzido de um inimigo justo, e no fogo que
consome nosso coração. Que diferença da poesia viril e heroica de
Grécia e de Roma!
O verão transcorreu nessas ocupações, e minha volta a Genebra
foi marcada para o final do outono; no entanto, com o atraso
causado por vários incidentes, o inverno e a neve acabaram
chegando, as estradas ficaram intransitáveis e minha viagem foi
protelada até a primavera seguinte. Senti muito por esse atraso,
pois ansiava rever minha cidade natal e meus queridos amigos.
Minha volta fora retardada por tanto tempo em função apenas da
minha relutância em deixar Clerval em um lugar estranho antes que
ele tivesse criado laços com seus habitantes. Mas passamos um
inverno muito alegre, e embora a primavera demorasse a chegar
naquele ano, quando veio, sua beleza compensou o atraso.
O mês de maio já havia começado, e eu esperava todos os dias a
carta que iria definir a data da minha partida, quando Henry propôs
um passeio a pé pelos arredores de Ingolstadt, para que eu pudesse
dar o meu adeus ao país que havia habitado por tanto tempo.
Aceitei com prazer sua proposta: gostava de exercício, e Clerval
sempre fora meu companheiro favorito nos passeios dessa natureza
pelos cenários de meu país natal.
Passamos quinze dias nessas perambulações. Minha saúde e
ânimo já vinham se recuperando há um bom tempo, e ganharam
força adicional com o ar saudável que respirava, com os incidentes
corriqueiros de nossos passeios e a conversa do meu amigo. O
estudo me afastara do intercâmbio com as pessoas do meu círculo,
e me tornara antissocial. Mas Clerval fez brotar os melhores
sentimentos de meu coração. Mais uma vez, ensinou-me a amar a
natureza e os rostos alegres das crianças. Meu excelente amigo!
Com que sinceridade você me ama e se esforça para elevar minha
mente à altura da sua. Um objetivo egoísta colocara obstáculos e
limites à minha vida, até que sua gentileza e afeto estimularam e
abriram meus sentidos. Voltei a ser o mesmo homem alegre que,
alguns anos atrás, amoroso e amado por todos, não tinha tristeza
nem preocupações. Quando estava feliz, a natureza tinha o poder
de despertar em mim as mais prazerosas sensações. Um céu
sereno e campos verdejantes enchiam-me de êxtase. E a estação
que vivíamos agora era realmente divina, as flores da primavera
abriam-se nas cercas vivas, enquanto as flores de verão já exibiam
seus botões. Eu não era perturbado pelos pensamentos que no ano
anterior, apesar de meus esforços para descartá-los, haviam me
atormentado com seu insuportável fardo.
Henry comprazia-se com a minha alegria e demonstrava uma
cumplicidade sincera com meus sentimentos: fazia de tudo para me
divertir, e ao mesmo tempo expressava as sensações que
preenchiam sua alma. Os recursos de sua mente naquela ocasião
eram de fato espantosos: sua conversa transbordava de
imaginação, e muitas vezes, imitando os escritores persas e árabes,
inventava histórias de uma fantasia e intensidade emocional
maravilhosas. Outras vezes, repetia meus poemas favoritos, ou me
fazia entrar em discussões que ele levava adiante com muito
engenho.
Voltamos à nossa faculdade em uma tarde de domingo: os
camponeses dançavam, e todos que encontrávamos pareciam
alegres e felizes. Meu ânimo estava ótimo, e vaguei por ali com
sentimentos exuberantes de alegria e hilaridade.
CAPÍTULO VII

Ao voltar, encontrei a seguinte carta de meu pai:


Meu caro Victor,
Você por certo esperou com impaciência uma carta que marcasse
a data de sua volta, e de início fiquei tentado a escrever só umas
poucas linhas, limitando-me a mencionar o dia em que deveria
esperá-lo. Mas isso seria uma gentileza cruel, e não ousaria
cometê-la. Qual não seria sua surpresa, meu filho, se você,
esperando uma alegre e feliz recepção, ao chegar contemplasse, ao
contrário, lágrimas e infelicidade? Ah, Victor, como farei para relatar
nosso infortúnio? A sua ausência não deve tê-lo deixado insensível
às nossas alegrias e tristezas, e como poderei eu infligir dor a um
filho ausente? Gostaria de poder prepará-lo para a lamentável
notícia, mas sei que é impossível; mesmo agora seus olhos devem
estar correndo por esta página, à procura das palavras que irão
transmitir-lhe as horríveis novidades.
William morreu! – essa doce criança, cujos sorrisos deleitavam e
aqueciam meu coração, que era tão doce, e ao mesmo tempo tão
alegre! Victor, ele foi assassinado!
Não tentarei consolá-lo, apenas irei relatar as circunstâncias do
acontecimento.
Na última quinta-feira (7 de maio), eu, minha sobrinha e seus dois
irmãos fomos andar pelo Plainpalais. Era um fim de tarde quente e
sereno, e prolongamos o passeio mais do que o habitual. Já estava
escuro quando pensamos em voltar, e então descobrimos que
William e Ernest, que haviam se adiantado, não estavam por ali.
Então, sentamos em um banco e esperamos que voltassem. A certa
altura, Ernest veio e perguntou se havíamos visto seu irmão. Contou
que os dois estavam brincando, que William correra para se
esconder e ele o procurara em vão, que esperara pelo irmão um
longo tempo, mas o menino não voltara.
Esse relato nos deixou alarmados, e continuamos a procurá-lo
até que anoiteceu de vez, quando então Elizabeth conjeturou que
ele poderia ter voltado para casa sozinho. Ele não estava lá.
Voltamos de novo, com tochas, pois eu não descansaria pensando
que meu doce menino havia se perdido e estava exposto à umidade
e ao orvalho da noite. Elizabeth também ficou muito apreensiva. Lá
pelas cinco da manhã, descobri meu adorável menino, que na noite
anterior eu vira tão saudável e cheio de vida, estendido na grama,
lívido e imóvel: a marca do dedo do assassino estava em seu
pescoço.
Ele foi trazido para casa, e a angústia visível em meu semblante
denunciou o segredo a Elizabeth. Ela quis ver o cadáver. A princípio,
tentei evitar que o fizesse, mas ela insistiu, e ao entrar no quarto
onde estava o corpo, examinou rapidamente o pescoço da vítima, e,
batendo uma mão na outra, exclamou: “Oh, Deus! Eu matei minha
querida criança!”.
Ela desmaiou, e foi muito difícil fazê-la recuperar os sentidos.
Quando voltou a si, só chorava e soluçava. Contou-me que, naquele
mesmo entardecer, William insistira para que o deixasse usar uma
pequena e valiosa miniatura que ela ganhara da mãe. Essa joia
havia sumido, e foi considerada o motivo pelo qual o assassino
cometera o delito. Não temos pista dele no momento, apesar de
nossos incansáveis esforços para tentar descobrir quem foi, se bem
que nada poderá me devolver meu querido William.
Volte, meu caro Victor. Só você poderá consolar Elizabeth. Ela
não para de chorar, e acusa a si mesma, injustamente, como
causadora da morte dele; suas palavras me partem o coração.
Estamos muito infelizes; por isso, meu filho, não acha que esse
seria um motivo a mais para você voltar e nos confortar a todos?
Sua querida mãe! Ah, Victor! Agora posso dizer: graças a Deus que
não está mais viva para testemunhar a cruel e triste morte de seu
querido filho caçula!
Venha, Victor, não para remoer pensamentos de vingança contra
o assassino, mas com sentimentos de paz e delicadeza, que irão
curar, em vez de inflamar, as feridas de nossas mentes. Entre nesta
casa enlutada, meu amigo, mas com bondade e afeto por aqueles
que o amam, e não com ódio por seus inimigos.

Seu afetuoso e aflito pai,


Alphonse Frankenstein
Genebra, 12 de maio de 17...

Clerval observara meu semblante enquanto eu lia, e ficou


surpreso ao ver o desespero tomar o lugar da alegria que eu
experimentara de início, ao receber notícias de meus amigos.
Joguei a carta em cima da mesa e cobri o rosto com as mãos.
– Meu caro Frankenstein – exclamou Henry, ao perceber meu
choro amargurado –, será que não há alívio para a sua infelicidade?!
Meu caro amigo, o que houve agora?
Indiquei com um gesto que ele pegasse a carta, enquanto eu
andava para cima e para baixo, na mais extrema agitação. Lágrimas
também rolaram dos olhos de Clerval quando leu o relato do meu
infortúnio.
– Não tenho como lhe oferecer consolo, meu amigo – disse ele. –
Seu desastre é irreparável. O que pretende fazer?
– Ir imediatamente para Genebra. Venha comigo, Henry, vou
requisitar os cavalos.
Durante a caminhada, Clerval esforçou-se para dizer algumas
palavras de consolo, mas só conseguiu expressar a solidariedade
que sentia do fundo do coração.
– Pobre William! – disse. – Aquela criança tão querida e amável
agora dorme com sua mãe angelical! Quem o viu cheio de vida e
exultante em sua beleza jovial só pode agora chorar sua perda tão
imprevista! Que morte mais triste, sentindo as garras do assassino!
Muito mais que um assassino, um ser capaz de destruir uma
inocência tão radiante! Pobre garoto! Só temos um consolo; seus
familiares lamentam e choram, mas ele descansa em paz. Não há
mais comoção, seus sofrimentos terminaram para sempre. Terra e
grama cobrem sua forma delicada, e ele não sente mais dor. Não
pode mais ser alvo de piedade: esta fica reservada àqueles que
tristemente continuam vivos.
Clerval dizia isso enquanto íamos a passo rápido pelas ruas. As
palavras ficaram gravadas na minha mente, e relembrei-as ao me
ver sozinho. De momento, porém, assim que os cavalos chegaram,
entrei depressa em um cabriolé e disse adeus ao meu amigo.
Minha viagem foi extremamente melancólica. De início, tinha
vontade de acelerar o passo, pois queria consolar meus amados e
enlutados amigos e oferecer-lhes solidariedade. Mas quando me
aproximei de minha cidade natal, retardei o avanço. Mal conseguia
suportar a variedade de emoções que povoavam minha mente.
Passei por cenas familiares da minha juventude, que eu não revia
há quase seis anos. O quanto essas coisas não teriam mudado ao
longo desse tempo? Uma mudança repentina e desoladora
acontecera, mas mil pequenas circunstâncias podiam ter operado
pouco a pouco alterações que, embora tivessem ocorrido mais
tranquilamente, talvez não fossem menos decisivas. Fui tomado
pelo medo. Não ousava ir adiante, temendo mil males inomináveis
que me fizeram tremer, embora fosse incapaz de defini-los.
Permaneci dois dias em Lausanne, nesse doloroso estado
mental. Contemplava o lago: as águas eram plácidas, tudo ao redor
era calmo, e as montanhas nevadas, “os palácios da natureza”, não
haviam mudado. Aos poucos, a calma e a cena celestial fizeram
com que me recuperasse, e prossegui viagem até Genebra.
A estrada corria junto à margem do lago, e ficava mais estreita
conforme me aproximava da minha cidade. Comecei a distinguir
melhor as encostas dos montes Jura e o pico brilhante do Mont
Blanc. Chorei como uma criança: “Minhas queridas montanhas! Meu
belo lago! Como irão dar as boas-vindas a esse seu andarilho?
Seus picos reluzentes, o céu e o lago azuis e plácidos... Será que
isso é um prognóstico de paz, ou vocês zombam da minha
infelicidade?”.
Receio, meu amigo, que esteja me tornando maçante ao me
deter nessas circunstâncias preliminares, mas foram dias de relativa
felicidade, e penso neles com prazer. Minha terra, minha amada
terra! Quem, a não ser um nativo, poderá entender o deleite que tive
ao rever teus riachos, tuas montanhas e, mais do que tudo, teu
adorável lago?
No entanto, à medida que me aproximava de casa, a dor e o
medo me assaltaram de novo. A noite também se aproximava, e
quando mal conseguia ver as escuras montanhas, senti-me ainda
mais triste. Aquela imagem afigurou-se a mim como uma vasta e
obscura cena maligna, e previ de maneira indistinta que estava
destinado a me tornar o mais infeliz dos seres humanos. Ai de mim!
Foi uma profecia correta, e falhei apenas em uma única
circunstância: todo aquele sofrimento que eu imaginara e temia não
era uma centésima parte da aflição que ainda estava destinado a
suportar.
Já escurecera totalmente quando cheguei aos arredores de
Genebra. Os portões da cidade estavam fechados, e fui obrigado a
passar a noite em Secheron, uma vila meia légua a leste. O céu
estava sereno, e, não sendo capaz de descansar, decidi visitar o
local onde meu pobre William havia sido assassinado. Como não
era possível passar pela cidade, fui obrigado a cruzar o lago em um
barco para chegar ao Plainpalais. Nessa curta viagem, vi
relâmpagos perto do cume do Mont Blanc formando os mais belos
desenhos. A tempestade parecia aproximar-se rapidamente, e, ao
chegar à margem, subi até o alto de uma colina baixa para poder
observar sua evolução. Ela avançava. Os céus estavam carregados
de nuvens, e logo senti a chuva caindo lenta, em pingos gordos,
mas com uma violência que aumentava com rapidez.
Abandonei aquele lugar e caminhei, embora a escuridão e a
tempestade aumentassem a cada minuto, com trovões fazendo um
estrondo terrível acima da minha cabeça. Ecoavam em Salève, nos
Montes Jura e nos Alpes da Saboia. Clarões intensos de
relâmpagos ofuscavam meus olhos, iluminando o lago, fazendo-o
parecer um vasto lençol de fogo. Depois, por um instante, tudo
pareceu escuro como breu, até meus olhos se recuperarem do
último clarão. A tempestade, como é comum acontecer na Suíça,
espalhava-se por várias partes do céu. A mais violenta tormenta
caía exatamente ao norte da cidade, sobre a parte do lago que fica
entre o promontório de Belrive e a vila de Copêt. Outra tormenta
iluminava o Jura com clarões mais sutis, e outra escurecia e às
vezes revelava a Môle, a pontuda montanha a leste do lago.
Ao mesmo tempo que observava a tempestade, magnífica
embora terrível, continuei avançando com rapidez. Aquela nobre
batalha no céu acendeu meu ânimo. Bati as mãos e exclamei em
voz alta, “William, meu anjo querido! Esse é o seu funeral, esse é
seu canto fúnebre!” Quando proferi essas palavras, percebi na
penumbra uma figura saindo furtivamente de um grupo de árvores
perto de mim. Fiquei imóvel, olhando fixo: não era possível que
estivesse equivocado. Um clarão de relâmpago iluminou o objeto, e
mostrou claramente sua forma: a estatura gigantesca e a aparência
disforme, mais horrenda do que seria possível a um ser humano, na
mesma hora me fizeram saber que se tratava do desgraçado, do
asqueroso demônio ao qual eu dera vida. O que fazia ali? Seria ele
(estremeci diante da ideia) o assassino de meu irmão? Tão logo
essa ideia cruzou minha imaginação, convenci-me de sua verdade.
Comecei a bater os dentes e tive que me encostar a uma árvore
para me apoiar. A figura passou por mim rapidamente e perdeu-se
nas sombras. Nada em forma humana poderia ter destruído aquela
linda criança. Ele era o assassino! Sem dúvida. A mera presença da
ideia era prova irrefutável do fato. Pensei em perseguir o demônio,
mas teria sido em vão, pois outro clarão me fez vê-lo dependurado
entre as rochas daquela subida quase perpendicular do Monte
Salève, a montanha que limita o Plainpalais ao sul. No instante
seguinte, já estava no cume, e desapareceu.
Fiquei ali, imóvel. Os trovões cessaram, mas continuava
chovendo, e tudo ficou envolvido em uma escuridão impenetrável.
Revirei na mente os eventos que até então procurara esquecer: toda
a sequência do meu progresso em direção à criação, o aspecto
daquela obra de minhas próprias mãos viva ao lado da minha cama,
a sua partida. Haviam se passado quase dois anos desde a noite
em que ele recebera vida. Seria esse seu primeiro crime? Ah, meu
Deus! Eu deixara à solta no mundo um desgraçado cujo deleite era
promover carnificinas e tragédias. Pois não havia ele assassinado
meu irmão?
Ninguém é capaz de conceber a aflição que me tomou pelo resto
da noite, que acabei passando, com frio e encharcado, a céu aberto.
Mas sequer sentia as agruras do tempo, pois minha imaginação
ficara ocupada por cenas de maldade e desespero. Passei a ver
aquele ser, que eu lançara entre os homens e dotara de vontade e
de poder para propósitos horrendos como o que acabara de
perpetrar, quase como um vampiro saído de mim, como meu próprio
espírito libertado de sua sepultura e obrigado a destruir tudo o que
me era caro.
O dia raiou e me dirigi à cidade. Os portões estavam abertos e
corri até a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento foi revelar o
que sabia a respeito do assassino e desencadear uma perseguição
imediata. Mas detive-me quando refleti sobre a história que teria que
contar. Um ser que eu mesmo não só havia formado, mas dotado de
vida, encontrara-se comigo à meia-noite entre os precipícios de uma
montanha inacessível. Lembrei-me também da febre nervosa de
que fora acometido bem na época da minha funesta criação, o que
daria um ar de delírio a uma história que, de resto, já parecia
totalmente improvável. Sabia que se outra pessoa fizesse um relato
daqueles, eu mesmo iria encará-lo como um devaneio insano. Além
do mais, a estranha natureza do animal iria tornar inúteis todas as
buscas, mesmo que eu conseguisse crédito suficiente para
convencer meus parentes a iniciarem uma perseguição. E o que
adiantaria persegui-lo? Quem conseguiria prender uma criatura
capaz de escalar as encostas do Monte Salève? Essas reflexões
fortaleceram minha decisão de ficar em silêncio.
Eram umas cinco da manhã quando entrei na casa de meu pai.
Disse aos criados para não perturbarem a família e fui até a
biblioteca, esperar que desse a hora em que costumavam se
levantar.
Seis anos haviam se passado, transcorridos como um sonho, a
não ser por um traço indelével, e me vi parado no mesmo lugar
onde abraçara meu pai pela última vez antes de partir para
Ingolstadt. Meu amado e respeitável pai! Ainda era desse modo que
o via. Observei o quadro de minha mãe, que ficava sobre a lareira.
Era um tema histórico, pintado por desejo de meu pai, e
representava Caroline Beaufort em uma agonia desesperada,
ajoelhada junto ao caixão de seu defunto pai. Suas vestes eram
rústicas, as faces, pálidas, mas havia nela um ar de dignidade e
beleza que dificilmente despertaria um sentimento de piedade.
Abaixo desse quadro ficava uma miniatura de William, e minhas
lágrimas correram quando a admirei. Enquanto estava nisso, Ernest
entrou: tinha ouvido minha chegada e correra para me dar as boas-
vindas. Expressou uma satisfação pesarosa em me ver:
– Bem-vindo, meu querido Victor – disse. – Ah! Queria que
tivesse vindo três meses atrás, e então teria encontrado todos
alegres e satisfeitos. Você chega agora para compartilhar uma
infelicidade que nada é capaz de aliviar, e, no entanto, sua presença
irá, assim espero, reanimar nosso pai, deprimido com esse
infortúnio, e suas persuasões induzirão a pobre Elizabeth a parar de
se atormentar em vão com autoacusações. Pobre William! Era
nosso mimo, nosso orgulho!
Lágrimas incontidas caíam dos olhos de meu irmão. Uma
sensação de agonia mortal se insinuou em mim. Antes, eu
imaginara somente a desgraça de meu desolado lar, mas agora a
realidade caía sobre mim com um novo e não menos terrível
desastre. Tentei acalmar Ernest. Perguntei mais detalhes a respeito
de meu pai e daquela que eu chamava de prima.
– Ela, mais que ninguém – disse Ernest – precisa de consolo.
Acusa a si mesma de ter causado a morte de meu irmão, e isso a
deixa muito mal. Mas como o assassino já foi descoberto...
– O assassino foi descoberto! Meu bom Deus! Como assim?
Quem foi capaz de encontrá-lo? Isso é impossível, é como tentar
ultrapassar os ventos ou deter um riacho de montanha com uma
palha. Eu o vi também, ele estava à solta na noite passada!
– Não entendo o que você quer dizer com isso – replicou meu
irmão, surpreso –, mas ficamos todos muito tristes quando ela foi
descoberta. No início, ninguém acreditou, e até agora Elizabeth não
se convenceu, apesar de todas as evidências. De fato, quem
acreditaria que Justine Moritz, tão amável e tão amorosa com a
família, poderia de repente se tornar tão extremamente perversa?
– Justine Moritz! Pobre menina, é ela que está sendo acusada?
Mas isso é um equívoco, qualquer um pode ver. Ninguém está
acreditando nisso, não é, Ernest?
– No início ninguém acreditou, mas foram reveladas várias
circunstâncias que quase nos obrigam a ter essa convicção. E o
próprio comportamento dela tem se mostrado tão confuso que
acrescenta à evidência dos fatos um peso que, receio eu, quase não
deixa esperanças para alguma dúvida. Mas ela será julgada hoje, e
então você ficará sabendo de tudo.
Ele contou que, na manhã em que descobriram o assassinato do
pobre William, Justine caiu doente e ficou acamada. Após vários
dias, uma das criadas, examinando a roupa que ela usava na noite
do crime, descobriu no bolso a miniatura da minha mãe, tida como o
móvel do assassinato. Essa criada na mesma hora mostrou-a a
outra, que, sem informar ninguém da família, foi até um juiz. Após o
seu depoimento, Justine foi detida. Acusada, a pobre moça
confirmou as suspeitas, em grande medida por se mostrar
extremamente confusa.
Era uma história muito estranha, mas não abalou minha
convicção, e, respondi, enfaticamente:
– Vocês estão todos enganados. Sei quem foi o assassino.
Justine, a pobre e boa Justine, é inocente.
Nesse instante, meu pai entrou. Vi a infelicidade profundamente
gravada em seu semblante, mas ele se esforçou para me receber
com alegria, e depois de trocarmos nossos cumprimentos
pesarosos, teríamos tratado de qualquer outro assunto que não
fosse nossa tragédia, se Ernest não tivesse exclamado:
– Pelo bom Deus, papai! Victor diz que sabe quem foi o
assassino do pobre William.
– Infelizmente, nós também – respondeu meu pai –, porque, sem
dúvida, eu teria preferido ignorar isso para sempre, em vez de
descobrir tanta depravação e ingratidão em alguém que tive em tão
alta estima.
– Meu querido pai, está equivocado. Justine é inocente.
– Se for, que Deus impeça que seja considerada culpada. Ela
será julgada hoje, e espero, sinceramente espero, que seja
absolvida.
Essa fala me acalmou. Eu estava firmemente convencido de que
Justine, e na verdade qualquer ser humano, não poderia ser
culpada daquele assassinato. Não temia, portanto, que fosse
apresentada nenhuma prova circunstancial forte o suficiente para
condená-la, e com essa certeza fiquei mais calmo, aguardando o
julgamento com ansiedade, mas sem prognosticar um mau
resultado.
Logo depois Elizabeth veio se juntar a nós. O tempo produzira
grandes alterações em sua aparência desde a última vez que a vira:
dera-lhe um encanto que superava a beleza de seus anos de
criança. Havia a mesma candura, a mesma vivacidade, mas agora
aliada a uma expressão mais plena de sensibilidade e de intelecto.
Recebeu-me com muito afeto.
– Sua chegada, meu caro primo, enche-me de esperança. Talvez
você encontre alguma maneira de justificar a inocência de minha
pobre Justine. Ah, meu Deus! Quem poderá se sentir seguro se ela
for condenada pelo crime? Confio na inocência dela tanto quanto na
minha. Nosso infortúnio é redobrado; não só perdemos aquele
menino tão adorável e querido, mas essa pobre moça, que amo
sinceramente, está prestes a ser arrastada para um destino ainda
pior. Se for condenada, nunca mais terei alegria na vida. Mas isso
não irá ocorrer, tenho certeza, e então serei de novo feliz, mesmo
após a triste morte do meu pequeno William.
– Ela é inocente, minha cara Elizabeth – disse eu –, e isso terá
que ficar provado. Não tenha medo, deixe seu ânimo alegrar-se pela
certeza de que ela será absolvida.
– Como você é bom! Todos os demais acreditam que é culpada, e
isso me deixa infeliz. Porque sei que é impossível, e quando vejo
todos os outros fazendo esse pré-julgamento de maneira tão
definitiva, fico sem ânimo e desesperada.
Desatou a chorar.
– Minha doce sobrinha – disse meu pai –, enxugue suas lágrimas.
Se ela é inocente como você acredita, confie na justiça de nossos
juízes e na minha intervenção, com a qual deverei impedir a menor
sombra de parcialidade.
CAPÍTULO VIII

Passamos algumas horas tristes até às onze da manhã, quando o


julgamento deveria começar. Meu pai e o resto da família tiveram
que comparecer como testemunhas, e acompanhei-os ao tribunal.
Durante todo esse malfadado simulacro de justiça, sofri verdadeira
tortura. O que seria julgado ali era se o resultado da minha
curiosidade e das minhas desregradas artimanhas teria sido o que
causara a morte de dois de meus semelhantes: uma criança
sorridente, cheia de inocência e alegria, e alguém que morreria de
maneira mais pavorosa ainda, com o agravante da infâmia terrível
que acompanharia a memória de sua morte. Justine era também
uma jovem valorosa, com qualidades que lhe prometiam uma vida
feliz: agora, tudo isso ficaria atravancado em uma tumba desonrosa,
e eu seria o causador! Teria preferido mil vezes confessar-me
culpado do crime atribuído a Justine, mas estava ausente quando
ele fora cometido, e uma declaração daquelas seria encarada como
o delírio de um louco e não eximiria de culpa aquela que sofria por
minha causa.
Justine aparentava calma. Vestia luto, mas seu semblante,
sempre encantador, ostentava agora, com a solenidade de seus
sentimentos, uma beleza impecável. Parecia confiante na inocência
e não tremia, apesar de estar sendo olhada e execrada por muitos,
pois embora sua beleza, em outras circunstâncias, fosse capaz de
estimular sentimentos piedosos, era ofuscada agora na mente dos
espectadores pela fantasia da monstruosidade que supostamente
cometera. Estava tranquila, embora com uma tranquilidade
evidentemente coagida, e como sua confusão mental havia sido
apresentada como prova de sua culpa, esforçava-se para assumir
uma atitude corajosa. Quando entrou no tribunal, lançou um olhar
em volta e não tardou a descobrir onde estávamos sentados.
Lágrimas pareceram nublar seu olhar quando nos viu, mas ela logo
se recompôs, e um ar de emoção aflita parecia atestar sua absoluta
inocência.
O julgamento teve início, e, depois que o promotor expôs a
acusação, as testemunhas foram convocadas. Vários fatos
estranhos reuniam-se contra ela, e devem ter feito vacilar aqueles
que não tivessem, como eu, uma prova tão cabal da inocência dela.
Estivera fora a noite inteira em que o assassinato fora cometido, e
de manhã cedo uma mulher do mercado avistou-a não muito longe
de onde o corpo do menino seria encontrado mais tarde. A mulher
perguntara o que fazia por ali, mas ela, com um olhar estranho, deu
apenas uma resposta confusa e ininteligível. Voltou para casa por
volta das oito da manhã, e quando alguém lhe perguntou onde
passara a noite, disse que estivera procurando o menino, e
perguntou, preocupada, se havia notícia dele. Quando lhe
mostraram o corpo, entrou em violenta histeria e passou vários dias
acamada. Apresentaram então a miniatura que a empregada
encontrara em seu bolso, e quando Elizabeth, com uma voz
insegura, confirmou ser a mesma que, uma hora antes de o menino
ser morto, ela colocara em volta do pescoço dele, um murmúrio de
horror e indignação percorreu o tribunal.
Justine foi chamada a se defender. Conforme o julgamento
avançava, o semblante dela ia se modificando. Surpresa, horror e
tristeza expressavam-se com intensidade. Às vezes tentava
controlar as lágrimas, mas quando foi intimada a se defender,
recompôs suas forças e falou com voz audível, embora às vezes
oscilante:
– Deus sabe – disse ela – que sou totalmente inocente. Mas não
pretendo que meus protestos me absolvam: apoio minha inocência
em uma explicação sincera e simples dos fatos que têm sido
apresentados contra mim, e espero que o caráter que sempre
demonstrei incline aqueles que me julgarem a uma interpretação
favorável, diante de quaisquer circunstâncias que pareçam
duvidosas ou suspeitas.
Ela relatou então que, com a permissão de Elizabeth, havia
passado a noite do crime na casa de uma tia em Chêne, uma vila a
uma légua de Genebra. Ao voltar, lá pelas nove da noite, cruzou
com um homem que lhe perguntou se sabia algo sobre o menino
desaparecido. Ficou alarmada com essa notícia, e procurou por ele
durante horas, até que os portões de Genebra foram fechados e ela
teve que passar a noite em um celeiro pertencente a um chalé, pois
não quis incomodar os moradores, que conhecia bem. Passou a
maior parte da noite ali sem dormir. Quase ao amanhecer, teve a
impressão de ter dormido apenas alguns minutos. Alguns passos a
perturbaram e ela acordou. O dia clareava, e ela saiu de seu refúgio,
para continuar em seu esforço de encontrar meu irmão. Se chegou
a ficar perto do lugar em que estava o corpo dele, foi sem que
tivesse conhecimento disso. E não era de admirar que tivesse um ar
confuso ao ser questionada pela mulher do mercado, pois passara a
noite em claro e ainda não tinha notícia do paradeiro do pobre
menino. Quanto à miniatura, ela não tinha como oferecer qualquer
explicação.
– Eu sei – continuou a infeliz vítima – o quanto esse detalhe pesa
contra mim de maneira decisiva e fatal, mas não tenho como
explicá-lo. E, depois de expressar minha total ignorância, resta-me
apenas conjeturar a respeito de como a miniatura pode ter sido
colocada no meu bolso. E isso também me faz empacar. Não
acredito que tenha inimigos na face da Terra, e nenhum deles com
certeza seria tão malvado a ponto de querer me destruir
deliberadamente. Teria sido colocada ali pelo assassino? Não vejo
como teria oportunidade de fazê-lo; e se tivesse, por que roubaria
uma joia se pretendia livrar-se dela tão cedo? Confio minha causa à
justiça de meus juízes, embora não veja lugar para esperança. Peço
permissão para que algumas testemunhas deponham sobre meu
caráter, e se o testemunho delas não conseguir ter peso maior que o
da minha suposta culpa, acabarei sendo condenada, apesar de
apoiar minha salvação na minha inocência.
Foram chamadas várias testemunhas, que já a conheciam há
muitos anos e falaram bem dela. Mas o medo e a aversão ao crime
do qual a julgavam culpada deixaram-nas intimidadas e relutantes
em sair em sua defesa. Elizabeth, ao ver que esse último recurso –
apelar para o excelente caráter e a conduta irretocável de Justine –
estava prestes a se revelar inútil, decidiu, apesar da violenta
agitação que sentia, pedir permissão para se dirigir ao tribunal.
– Sou a prima – disse ela – do infeliz menino assassinado, ou
melhor, sua irmã, pois fui criada e vivi com os pais dele desde muito
antes de ele ter nascido. Portanto, poderia parecer pouco adequado
de minha parte apresentar-me nesta ocasião, mas quando vejo uma
criatura igual a mim prestes a morrer devido à covardia de seus
pretensos amigos, desejo que me seja permitido falar, para poder
dizer o que sei a respeito do caráter dela. Conheço muito bem a
acusada. Vivemos sob o mesmo teto, primeiro por cinco anos,
depois por cerca de mais dois. Em todo esse período, pareceu-me a
mais amável e benevolente das criaturas humanas. Cuidou de
Madame Frankenstein, minha tia, na sua última enfermidade, com o
maior afeto e desvelo, e cuidou depois da própria mãe durante sua
longa doença, de uma maneira que despertou a admiração de todos
os que a conheciam. Depois, voltou a viver na casa de meu tio,
onde era amada por toda a família. Foi muito ligada à criança que
agora está morta, e se relacionava com ela como uma mãe
extremamente amorosa. De minha parte, não hesito em dizer que,
apesar de todas as provas apresentadas contra ela, acredito e
confio em sua total inocência. Sei que ela não teve a tentação de
perpetrar uma ação como essa; quanto à bugiganga sobre a qual se
apoia a principal prova, se ela tivesse mostrado desejo de possuí-la,
eu lhe teria dado de boa vontade, tal a estima e consideração que
tenho por ela.
“Muito bem, Elizabeth!” – ouviu-se um murmúrio de aprovação,
estimulado mais por sua generosa intervenção do que em favor da
pobre Justine, sobre a qual a indignação pública voltou-se com
renovada violência, sob a acusação adicional da mais nefasta
ingratidão. A própria Justine chorou enquanto Elizabeth falava, mas
não comentou nada. Senti uma agitação e uma angústia enormes
durante todo o julgamento. Acreditava na inocência dela, tinha
certeza disso. Talvez aquele demônio que assassinara meu irmão
(não duvidava disso um minuto) também tivesse, em seu infernal
jogo, traído a inocente para levá-la à morte e à desonra. Não
consegui suportar o horror da minha situação, e quando percebi que
a opinião popular e os semblantes dos juízes já haviam condenado
a infeliz vítima, corri para fora do tribunal em grande agonia. As
torturas da acusada não se igualavam às minhas. Ela tinha o apoio
de sua inocência, mas as garras do remorso rasgavam meu íntimo e
não iam aliviar sua pressão.
Passei a noite totalmente desolado. De manhã, voltei ao tribunal.
Tinha a garganta e os lábios ressequidos. Não ousei fazer a
pergunta fatal, mas eu era conhecido ali, e o oficial adivinhou a
causa da minha visita. Os votos dos jurados haviam sido dados, e
Justine havia sido condenada.
Não tenho a pretensão de descrever o que senti. Já
experimentara sensações de horror antes, e fizera esforço para
atribuir-lhes expressões adequadas, mas as palavras não são
capazes de dar ideia do torturante desespero que suportei. A
pessoa a quem me dirigira acrescentou que Justine já havia
confessado sua culpa.
– Isso sequer teria sido necessário, em um caso tão óbvio –
observou ele –, mas fiquei satisfeito, porque, na verdade, nenhum
de nossos juízes gosta de condenar um criminoso a partir de provas
circunstanciais, mesmo sendo tão conclusivas.
Essa era uma informação estranha e inesperada; o que poderia
querer dizer? Teriam meus olhos me enganado? E seria eu tão
louco quanto o mundo todo acreditaria que fosse a ponto de revelar
o objeto de minhas suspeitas? Apressei-me a voltar para casa, e
Elizabeth perguntou, ansiosa, qual havia sido o resultado.
– Minha prima – respondi –, foi decidido da maneira que você já
poderia prever. Os juízes sempre preferem fazer sofrer dez
inocentes do que deixar escapar um culpado. Mas ela confessou.
Isso foi um rude golpe para a pobre Elizabeth, que havia confiado
firmemente na inocência de Justine.
– Ah, meu Deus! – disse ela –, como vou poder acreditar de novo
na bondade humana? Justine, que eu amava e respeitava como se
fosse minha irmã, como pôde ser capaz de fingir aqueles sorrisos de
inocência para depois nos trair? Aqueles seus olhos ternos
pareciam incapazes de qualquer maldade ou irritação, e, no entanto,
cometeu um assassinato.
Logo depois, soubemos que a pobre vítima expressara o desejo
de ver minha prima. Meu pai não queria que ela fosse, mas deixou-a
decidir por ela mesma, conforme suas razões e sentimentos.
– Sim – disse Elizabeth –, irei vê-la, mesmo que seja culpada. E
você, Victor, deve me acompanhar: não consigo ir sozinha.
A ideia dessa visita era uma tortura para mim, mas não tive como
recusar.
Entramos na cela sombria da prisão e vimos Justine sentada em
um monte de palha junto à parede oposta. Estava algemada e com
a cabeça apoiada nos joelhos. Ergueu-se ao nos ver entrar e,
quando ficamos a sós com ela, atirou-se aos pés de Elizabeth,
chorando amargamente. Minha prima também chorava.
– Ah, Justine! – disse ela –, por que me roubou meu último
consolo? Confiei na sua inocência e, embora me sentisse muito
infeliz, não estava tão deprimida como agora.
– E você também acredita que eu seja tão perversa assim?
Também faz coro aos meus inimigos para me arrasar?
A voz dela era sufocada pelos soluços.
– Fique em pé, minha pobre menina – disse Elizabeth –, por que
se ajoelha, se é inocente? Não sou um de seus inimigos; acreditei
em sua inocência, apesar de todas as provas, até ter a notícia de
que você mesma se declarara culpada. Mas você diz que essa
afirmação é falsa. E tenha certeza, minha cara Justine, de que nada
pôde abalar minha confiança em você por um instante sequer, a não
ser sua própria confissão.
– De fato, confessei, mas confessei uma mentira. Confessei para
poder obter a absolvição, mas agora essa falsidade pesa mais no
meu coração do que todos os meus outros pecados. Que Deus do
céu me perdoe! Desde que fui condenada, meu confessor vem me
pressionando. Ele me ameaçou e amedrontou, até que comecei a
me achar o monstro que ele me fazia crer que era. Ameaçou-me
com a excomunhão e o fogo do inferno nos meus últimos momentos
se continuasse a negar. Minha cara senhora, não tive onde me
apoiar. Todos olhavam para mim como se fosse uma infeliz
condenada à desonra e à perdição. O que podia fazer? Em um mau
momento, endossei uma mentira, e agora me sinto mais infeliz
ainda.
Fez uma pausa, ainda chorando, e continuou.
– Fiquei horrorizada, minha doce senhora, ao vê-la acreditar que
sua Justine, que sua abençoada tia tinha em tão alta consideração e
que a senhora amava, fosse uma criatura capaz de um crime que
ninguém, a não ser o próprio demônio, poderia perpetrar. Ah,
querido William! Criança amada e abençoada! Logo irei revê-lo no
céu, onde seremos felizes de novo, e isso me consola, já que estou
condenada a sofrer a desonra e a morte.
– Oh, Justine! Perdoe-me por ter perdido por um momento a
confiança em você. Por que confessou? Mas não lamente, minha
querida. Não lamente. Irei proclamar, irei provar sua inocência.
Derreterei os corações de pedra de seus inimigos com minhas
lágrimas e orações. Você não pode morrer! – Você, minha parceira
de brincadeiras, minha companhia, minha irmã, morrer no cadafalso!
Não! Não! Eu nunca conseguiria sobreviver a uma desgraça tão
horrível.
Justine balançou a cabeça com pesar.
– Não temo mais morrer agora – disse –, essa aflição já passou.
Deus me dá forças e coragem para suportar o pior. Eu saio de um
mundo triste e amargo, e se você se lembrar de mim e pensar em
mim como alguém injustamente condenado, eu me resigno ao
destino que me aguarda. Aprenda comigo, querida dama, a se
submeter com paciência à vontade dos Céus!
Durante esta conversa, eu me retirara a um canto da cela, onde
podia ocultar a horrível angústia de que fora tomado. Desespero!
Quem ousava falar disso? A pobre vítima, que na manhã seguinte
iria cruzar o sombrio limiar entre a vida e a morte, não se sentia
como eu, em profunda e amarga agonia. Eu apertei e rangi os
dentes, emitindo um gemido que vinha do mais fundo da minha
alma. Justine sobressaltou-se. Quando viu de quem se tratava,
aproximou-se de mim e disse:
– Caro Senhor, foi muita bondade sua visitar-me. Espero que não
acredite que eu seja culpada.
Não consegui responder.
– Não, Justine – disse Elizabeth –, ele está mais convencido de
sua inocência do que eu estava, pois mesmo quando soube que
você havia confessado, não deu crédito a isso.
– Fico-lhe agradecida, de coração, senhor. Nesses últimos
momentos, sinto a mais sincera gratidão por aqueles que me veem
com benevolência. Como é doce o afeto dos outros para uma infeliz
como eu! Remove mais da metade de meu infortúnio, e sinto como
se pudesse morrer em paz, agora que minha inocência é
reconhecida por você, querida senhora, e por seu primo.
Assim a pobre sofredora tentava confortar a nós dois e a si
mesma. Ela de fato alcançou a resignação que desejava. Mas eu, o
verdadeiro assassino, sentia o verme ainda vivo em meu interior,
impedindo-me de ter esperança ou consolo. Elizabeth também
chorou, e sentia-se infeliz, mas a infelicidade dela era também a da
inocência, que, como uma nuvem ao passar diante da lua, esconde
por breve instante seu brilho, mas não consegue empaná-lo.
Angústia e desespero haviam penetrado no âmago de meu coração.
Eu trazia dentro de mim um inferno que nada era capaz de extinguir.
Ficamos várias horas com Justine, e foi com muita dificuldade que
Elizabeth conseguiu se separar dela.
– Eu queria – gritou ela – poder morrer com você. Não consigo
viver neste mundo de infelicidade.
Justine assumiu um ar mais alegre, enquanto Elizabeth, com
muita dificuldade, controlava suas lágrimas amargas. Abraçada a
Elizabeth, Justine disse, com a voz meio abafada pela emoção:
– Adeus, doce senhora, minha querida Elizabeth, minha amada e
única amiga. Que o céu, em sua generosidade, a abençoe e
preserve, que este seja o último infortúnio que você sofra. Viva, e
seja feliz, e faça os outros felizes.
E na manhã seguinte Justine morreu. A eloquência de Elizabeth,
de partir o coração, não foi suficiente para demover os juízes de sua
sólida convicção na criminalidade daquela santa sofredora. Meus
apelos exaltados e indignados não foram entendidos por eles. E
quando recebi suas respostas frias e ouvi as razões duras e
insensíveis daqueles homens, a declaração que eu pretendia fazer
foi definhando em meus lábios. Com ela, talvez eu me proclamasse
um louco, mas isso não revogaria a sentença imposta à minha
malfadada vítima. Ela pereceu no cadafalso como uma assassina!
Ao emergir das torturas de meu coração, voltei minha atenção
para o profundo e silencioso pesar de minha querida Elizabeth. Isso
também era obra minha! E o desgosto de meu pai, e a desolação
daquele lar antes tão risonho – tudo era obra daquelas minhas mãos
três vezes amaldiçoadas! Vocês choram, infelizes, mas essas não
serão suas últimas lágrimas! Outras vezes terão que se entregar ao
seu pranto fúnebre e o som de suas lamentações será ouvido de
novo, e mais uma vez! Frankenstein, seu filho, seu parente, seu
velho e muito querido amigo; ele, que daria cada gota de seu
sangue vital para o bem de vocês, que não abriga nenhum
pensamento ou sentimento alegre que não possa se refletir também
em seus queridos semblantes, que encheria o ar de bênçãos e
passaria a vida servindo-os, ele ordena que chorem, que derramem
incontáveis lágrimas, feliz além de suas expectativas se tal destino
inexorável se cumprir e se a destruição só parar quando a paz do
túmulo suceder aos seus tristes tormentos!
Assim falou minha alma profética quando, dilacerado de remorso,
horror e desespero, contemplei aqueles que amava esvaindo-se em
dores inúteis diante dos túmulos de William e Justine, as primeiras
indefesas vítimas de minhas artes profanas.
CAPÍTULO IX

Nada é mais doloroso para a mente humana, depois que as


emoções são afetadas por uma sucessão de eventos, do que a
calma mortiça da inatividade e da certeza que vêm em seguida e
que privam a alma tanto da esperança quanto do medo. Justine
estava morta. Ela descansava, eu vivia. O sangue corria livre por
minhas veias, mas o desespero e o remorso pesavam em meu
coração, e nada podia removê-los. O sono fugia dos meus olhos. Eu
vagava como um espírito maligno, pois cometera atrocidades de
horror indescritível, e mais, muito mais (essa era minha convicção)
ainda estava por vir. Meu coração, no entanto, transbordava de
bondade e de amor à virtude. Eu começara a vida com boas
intenções e ansiava pelo momento de poder colocá-las em prática e
tornar-me útil a meus semelhantes. Agora tudo isso desmoronara:
em vez dessa consciência serena, que me permitiria olhar para o
passado satisfeito comigo mesmo e reunir, a partir daí, novas
esperanças, era tomado pelo remorso e pela culpa, que me
impeliam a um inferno de torturas atrozes que nenhuma linguagem
consegue descrever.
Esse estado mental repercutiu em minha saúde, que talvez nunca
tivesse se restabelecido do primeiro choque que suportara. Eu
evitava o contato com pessoas, e qualquer manifestação de alegria
e complacência era uma tortura para mim. A solidão virou meu único
consolo: uma solidão profunda, escura e mortífera.
Meu pai notou com aflição a perceptível mudança em minha
atitude e hábitos, e esforçou-se, por meio de argumentos deduzidos
dos sentimentos de sua serena consciência e de sua vida sem
culpas, inspirar-me força e despertar em mim a coragem para
afastar a escura nuvem que me envolvia.
– Acha que não sofro também, Victor? – disse ele. – Ninguém
amou mais um filho do que amei seu irmão – enquanto falava,
lágrimas corriam dos seus olhos –, mas, afinal, não temos nós, os
sobreviventes, o dever de evitar que o pesar assuma um aspecto
desmedido e que torne ainda maior essa infelicidade? Esse é
também um dever seu para consigo, pois sofrimento em excesso
impede tanto o aprimoramento e o desfrute da vida quanto descartar
o que é inútil no dia a dia, e sem isso nenhum homem está apto a
viver em sociedade.
Esse conselho, apesar de bom, não se aplicava absolutamente
ao meu caso. Eu teria sido o primeiro a ocultar meu pesar e
consolar meus amigos se o remorso não tivesse misturado seu
amargor às minhas outras sensações. Agora, só podia reagir ao
meu pai com um olhar de desespero e tentar me esconder, para que
não me visse.
Por volta dessa época, retiramo-nos para nossa casa de Belrive.
Essa mudança foi particularmente agradável para mim. O
fechamento dos portões regularmente às dez da noite e a
impossibilidade de permanecer no lago depois dessa hora tornavam
muito maçante nossa residência dentro dos muros de Genebra.
Agora estava livre. Com frequência, depois que o resto da família se
recolhia à noite, eu pegava o barco e passava horas no lago. Às
vezes, levantava vela e era levado pelo vento; outras vezes, depois
de remar até o meio do lago, deixava o barco seguir o próprio curso
e me entregava às minhas infelizes reflexões. Com frequência tive a
tentação – quando tudo estava em paz à minha volta e eu era a
única agitação naquela cena tão bela e celestial, exceto por algum
morcego ou pelo coaxar áspero e intermitente dos sapos, que eu só
ouvia ao me aproximar da margem –, com frequência, dizia, fui
tentado a mergulhar no silencioso lago, para que as águas se
fechassem para sempre sobre mim e minhas calamidades. Mas
continha-me ao pensar no heroísmo e no sofrimento de Elizabeth,
que eu amava ternamente e cuja existência estava muito ligada à
minha. Pensava também em meu pai, e no irmão que sobrevivera:
deveria eu, com minha vil deserção, deixá-los desprotegidos e à
mercê da maldade do demônio que eu pusera à solta no meio
deles?
Nessas horas, eu chorava amargamente e desejava ter de volta
minha paz mental apenas para poder dar-lhes algum consolo e
alegria. Mas era impossível. O remorso aniquilava qualquer
esperança. Eu fora o autor de maldades irreparáveis, e vivia todos
os dias com medo de que o monstro que eu criara perpetrasse nova
atrocidade. Tinha a sensação obscura de que aquilo tudo não havia
terminado, e que ele ainda cometeria algum crime extraordinário
que, pela sua magnitude, iria quase ofuscar as lembranças do
passado. Haveria sempre motivos para temer, desde que alguém
que eu amava ainda estivesse vivo. Não há como conceber a
abominação que sentia por aquele demônio. Quando pensava nele,
rangia os dentes, meus olhos ficavam injetados, e sentia o ardente
desejo de extinguir aquela vida que eu concebera tão
impensadamente. Quando refletia sobre seus crimes e
perversidades, meu ódio e sede de vingança ultrapassavam todos
os limites. Teria feito uma peregrinação ao cume mais alto dos
Andes***** se, ao chegar, pudesse precipitá-lo lá de cima. Desejava
vê-lo de novo, para poder descarregar na cabeça dele a mais
profunda raiva e vingar as mortes de William e Justine.
Nossa casa vivia enlutada. A saúde de meu pai estava muito
abalada pelo horror dos eventos recentes. Elizabeth andava triste e
deprimida, não sentia mais gosto em suas ocupações habituais:
todo prazer lhe parecia um sacrilégio para com os mortos, achava
que o pesar eterno e as lágrimas eram o justo tributo a ser pago
pela inocência arrasada e destruída. Não era mais aquela criatura
feliz que, na juventude, passeava comigo pelas margens do lago e
falava com empolgação das perspectivas futuras. Havia sido
visitada pelo primeiro daqueles pesares que são enviados para
romper nosso vínculo com a terra, e sua influência anuviadora
extinguiu seus mais adoráveis sorrisos.
– Quando reflito, querido primo – disse ela –, sobre a miserável
morte de Justine Moritz, não vejo mais o mundo e suas obras do
jeito que via. Antes, os relatos de depravações e injustiças, que eu
lia em livros ou dos quais tinha notícia, pareciam-me histórias de
tempos antigos ou males imaginários; pelo menos, eram coisas
remotas, mais familiares à razão do que à imaginação; mas agora a
infelicidade chegou à nossa casa, e vejo os homens como monstros
sedentos de sangue. Mesmo assim, devo estar sendo injusta. Todos
acreditaram que a pobre jovem fosse culpada, e, se tivesse mesmo
cometido o crime pelo qual foi punida, com certeza seria a mais
depravada das criaturas humanas. Matar, por causa de uma joia, o
filho de sua benfeitora e amiga, uma criança da qual cuidara desde
o nascimento e que parecia amar como se fosse dela! Eu não
consentiria com a morte de nenhum ser humano, e certamente
consideraria tal criatura inepta para o convívio humano. No entanto,
ela era inocente. Sei disso, sinto que era inocente. Você tem a
mesma opinião, e isso confirma a minha. Ai de mim, Victor! Quando
a falsidade parece igual à verdade, quem poderá ter certeza de ser
feliz? Sinto como se andasse à beira de um precipício para o qual
milhares de pessoas se dirigem, decididas a me atirar no abismo.
William e Justine foram assassinados, e o assassino escapou,
perambula livre pelo mundo e talvez seja até respeitado. Mas
mesmo que fosse condenada a sofrer no cadafalso pelos mesmos
crimes, eu não trocaria de lugar com um desgraçado desses.
Ouvi esse discurso com extrema agonia. Eu era, não pelo próprio
ato, mas como causador dele, o verdadeiro assassino. Elizabeth
percebeu a angústia no meu semblante e, pegando minha mão com
delicadeza, disse:
– Meu querido primo, acalme-se. Esses eventos me afetaram,
Deus sabe quanto, mas não me sinto tão infeliz quanto você. Há no
seu semblante uma expressão de desespero, às vezes de vingança,
que me faz estremecer. Querido Victor, livre-se dessas paixões
sombrias. Lembre-se dos amigos à sua volta, que põem todas as
suas esperanças em você. Será que perdemos o poder de fazê-lo
feliz? Ah! Enquanto amarmos, enquanto formos verdadeiros uns
com os outros, aqui nesta terra de paz e beleza, seu país natal,
iremos colher todas as serenas bênçãos – o que poderia perturbar
nossa paz?
E por acaso as palavras dela, alguém que eu calidamente
apreciava mais que qualquer outra dádiva do destino, não seriam
suficientes para afugentar o demônio que espreitava em meu
coração? Mesmo enquanto falava fui me aproximando dela, como
aterrorizado, temendo que aquele destruidor estivesse por perto
naquele preciso instante para roubá-la de mim.
Mas era assim: nem a ternura da amizade, nem a beleza da terra,
nem a do céu podiam redimir minha alma do desgosto. Mesmo a
menção ao amor era ineficaz. Estava envolvido por uma nuvem que
nenhuma influência benéfica conseguiria penetrar. Um cervo ferido,
arrastando seus membros enfraquecidos até algum refúgio para ali
contemplar a flecha que o havia perfurado e morrer – era assim que
eu poderia ser descrito.
Às vezes conseguia lidar com o sombrio desespero que me
oprimia: outras vezes, o torvelinho de paixões de minha alma me
fazia buscar, pelo exercício físico e pela mudança de lugar, algum
alívio das minhas insuportáveis sensações. Foi durante um acesso
desse tipo que de repente saí de casa e, guiando meus passos em
direção aos vales alpinos próximos, procurei a magnificência, a
eternidade de tais cenários, para me esquecer de mim e de meus
efêmeros, pois humanos, sofrimentos. Minhas andanças iam me
levando ao vale de Chamonix. Já o visitara muitas vezes na
juventude. Seis anos haviam se passado desde então. Eu era agora
uma ruína, mas nada havia mudado naquelas paisagens selvagens
e perenes.
Fiz a primeira parte da jornada a cavalo. Depois aluguei uma
mula, animal de passos seguros, menos propenso a se machucar
naquelas estradas escarpadas. O tempo estava ótimo: era meados
de agosto, quase dois meses após a morte de Justine, aquela época
infeliz a partir da qual marquei os dias do meu infortúnio. O peso
sobre meu ânimo ia sendo sensivelmente aliviado à medida que
mergulhava mais fundo na ravina de Arve. As imensas montanhas e
precipícios que se erguiam à minha volta, o fragor do rio entre as
rochas, o jorro das cascatas ao redor, tudo isso falava de forças
próximas da Onipotência, e parei de temer, ou de me curvar diante
de qualquer ser menos poderoso que aquele que criara e regia os
elementos, aqui revelados em seu maior impacto. Em seguida, à
medida que ganhava altitude, o vale assumiu um caráter mais
magnífico e impressionante. Castelos em ruínas pendendo de
precipícios em montanhas cobertas de pinheiros, o impetuoso Arve
e as choupanas, aqui e ali espreitando entre as árvores, formavam
um cenário de singular beleza, ampliada e tornada sublime pelos
poderosos Alpes, com suas brancas pirâmides e cumes reluzentes
elevando-se acima de tudo, como se pertencessem a outro mundo,
habitado por seres de outra estirpe.
Atravessei a ponte de Pélissier, onde a ravina que o rio forma se
abria diante de mim, e comecei a subir a montanha que se projetava
além dela. Logo depois, adentrei o vale do Chamonix. É um vale
majestoso e sublime, mas não tão belo e pitoresco como o do
Servox, que eu acabara de percorrer. As montanhas altas e
cobertas de neve eram seu limite imediato, mas não se viam mais
castelos em ruínas e campos cultivados. Imensas geleiras
chegavam perto da estrada. Ouvi o estrondo retumbante da
avalanche que caía e vi a névoa deixada por sua passagem. O Mont
Blanc, o supremo e magnífico Mont Blanc, elevava-se das
aiguilles****** em volta, com seu tremendo cume dominando o vale.
Durante essa jornada, por várias vezes tive um frêmito de prazer
que havia tempos não sentia. Alguma curva da estrada, um novo
objeto que de repente percebia e reconhecia traziam-me de volta
aos dias passados, que associava à alegria descompromissada da
juventude. Até os ventos sopravam com acentos tranquilizadores, e
a mãe natureza ordenava-me que não chorasse mais. Mas de
repente a benfazeja influência de novo parava de agir, e me via
outra vez prisioneiro da dor e cedendo a toda a infelicidade das
minhas reflexões. Então esporeava meu animal, num esforço para
me esquecer do mundo, dos meus medos e, mais que tudo, de mim
mesmo, ou, tomado por maior aflição, apeava e me atirava sobre a
grama, vencido pelo horror e pelo desespero.
Por fim, cheguei ao vilarejo de Chamonix. A exaustão coroou a
extrema fadiga de corpo e mente que havia suportado. Por um curto
espaço de tempo, permaneci junto à janela, observando os pálidos
lampejos que brincavam acima do Mont Blanc e ouvindo o rumorejar
do Arve abaixo da minha janela. Os mesmos sons embalaram como
uma cantiga minhas sensações exaltadas: quando coloquei a
cabeça no travesseiro, o sono se insinuou, senti que chegava e
abençoei-o por me conceder o esquecimento.
CAPÍTULO X

Passei o dia seguinte perambulando pelo vale. Parei junto às


nascentes do Arveiron, que se originam numa geleira que desce a
passo lento do cume das montanhas até formar uma barricada no
vale. As encostas abruptas das vastas montanhas estavam à minha
frente, a parede da geleira pendia acima de mim, alguns pinheiros
destruídos espalhavam-se por ali, e o solene silêncio dessa gloriosa
sala de recepções da imperial Natureza era quebrado apenas pelas
ondas discordantes do rio, ou pela queda de algum fragmento, pelo
estrondo da avalanche ou pelos estalos reverberados pelas
montanhas do gelo acumulado, que pelo silente trabalho de leis
imutáveis era de vez em quando rompido e arrancado, como se
fosse um mero brinquedo nas mãos delas. Essas cenas sublimes e
majestosas deram-me o maior consolo que era capaz de receber.
Elevaram-me de toda aquela pequenez de sentimentos, e embora
não tivessem me tirado o pesar, o amenizaram e acalmaram. Em
alguma medida, também, desviaram minha mente dos pensamentos
que ela ruminara no último mês. Recolhi-me para descansar à noite,
e meu repouso, digamos, foi concedido e ministrado pela reunião
das grandes formas que havia contemplado durante o dia. Elas se
reuniam à minha volta, os imaculados picos nevados das
montanhas, o cintilante cume, os pinheiros e a ravina arrasada à
mostra, a águia sobrevoando em meio às nuvens – todas elas me
envolviam e me faziam ficar em paz.
Mas para onde fugira tudo isso no dia seguinte, quando acordei?
Tudo o que inspirava a alma foi embora com o sono, e uma escura
melancolia nublou meu pensamento. A chuva caía torrencial, e
densas névoas escondiam os picos das montanhas, de modo que
ainda não via as faces daqueles poderosos amigos. Mesmo assim,
penetraria em seu indistinto véu e iria procurá-los em seus retiros
nebulosos. Afinal, o que eram a chuva e a tormenta para mim?
Minha mula foi trazida até a porta, e decidi subir ao alto do
Montanvert. Relembrei o efeito que a vista daquela geleira tremenda
e sempre movente produzira em minha mente quando a contemplei
pela primeira vez. Preencheu-me então de um êxtase sublime, deu
asas à alma e permitiu que se elevasse do mundo obscuro para a
luz e a alegria. A visão do que é terrível e majestoso na natureza
sempre tivera o efeito de tornar minha mente solene e me fazer
esquecer as preocupações corriqueiras da vida. Decidi ir sem um
guia, pois conhecia bem o caminho, e a presença de outra pessoa
destruiria a solitária grandiosidade do cenário.
A subida é muito íngreme, mas o caminho todo é cheio de curvas,
que permitem vencer melhor a perpendicularidade da montanha. O
cenário é de uma desolação assustadora. Em mil pontos há
vestígios de avalanches de inverno, com árvores caídas e
espalhadas pelo chão, algumas totalmente destruídas, outras,
inclinadas, apoiadas sobre rochas que afloram da montanha ou
atravessadas sobre outras árvores. O caminho, quanto mais se
sobe, é cortado por ravinas de neve, para onde rolam as pedras que
se desprendem. Uma dessas ravinas é particularmente perigosa,
pois o menor ruído, até mesmo falar em voz alta, produz no ar uma
concussão suficiente para fazer despencar a destruição sobre a
cabeça de quem falou. Os pinheiros não são altos e exuberantes, e
sim sombrios, e dão um ar opressivo à paisagem. Olhei para o vale
abaixo de mim: vastas neblinas erguiam-se dos rios que percorriam
esse vale e subiam, retorcidas em densas grinaldas, em volta das
montanhas em frente, cujos picos ficavam ocultos por nuvens
uniformes, enquanto um céu escuro despejava uma chuva
torrencial, acentuando a sensação de melancolia produzida pelos
objetos ao meu redor. Ah, meu Deus! Por que o homem ostenta
uma sensibilidade superior à que é aparente nos animais? Isso só
nos torna seres mais predestinados ainda. Se nossos impulsos se
limitassem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres;
mas sentimos uma comoção a cada vento que sopra, a cada
palavra dita ao acaso ou à imagem que essa palavra evoca em nós.
Durmo, e um sonho meu sono envenena.
Acordo, e uma ideia polui meu dia.
Sentir, conceber, pensar; chorar ou rir,
Reter mágoa ou expulsar agonia,
Dá igual que seja pena ou alegria,
A rota de partida ainda é livre.
O que foi não será como o porvir;
Apenas o mutável é que vive!*******
Era quase meio-dia quando cheguei ao topo da subida. Fiquei um
tempo sentado sobre a pedra que dominava o mar de gelo – coberto
por uma névoa, assim como as montanhas em volta. A certa altura,
uma brisa dissipou a nuvem, e desci até a geleira. Sua superfície é
bastante irregular, elevando-se e descendo como as ondas de um
mar revolto, entremeada por fendas profundas. O campo de gelo
tem quase uma légua de largura, mas levei quase duas horas para
atravessá-lo. A montanha oposta é uma rocha perpendicular nua.
Do lado onde estava, Montanvert ficava bem em frente, à distância
de uma légua, e acima dele erguia-se o Mont Blanc, em sua
magnífica majestade. Abriguei-me em uma reentrância da rocha,
admirando aquela cena imponente e assombrosa. O mar, ou melhor,
o vasto rio de gelo serpenteava entre as montanhas circundantes,
cujos aéreos picos elevavam-se acima de seus recessos. Cumes
gelados e lustrosos brilhavam com os raios de sol acima das
nuvens. Meu coração, antes pesaroso, agora se enchia de algo
como o júbilo. Exclamei:
– Espíritos errantes, se realmente vagais, em vez de dormir em
vossas estreitas camas, permiti-me essa breve felicidade ou levai-
me embora, como companheiro, para longe das alegrias da vida!
Ao dizer isso, avistei a figura de um homem avançando em minha
direção com velocidade sobre-humana. Saltava as fendas no gelo,
as mesmas entre as quais eu andara com extrema cautela. Sua
estatura também, conforme se aproximava, parecia exceder a de
um homem. Fiquei perturbado: minha visão nublou-se e me senti
desfalecer, mas o vento gelado das montanhas logo me refez. Notei,
à medida que a figura chegava mais perto (visão tremenda e
abominável!), que se tratava do infeliz que eu havia criado. Tremi de
raiva e horror, decidido a esperar sua abordagem para entrar em
combate mortal. Ele se aproximou. Seu semblante traía uma aflição
intensa, combinada com desdém e malignidade, e sua feiura
sobrenatural tornava-o quase insuportavelmente horrível a olhos
humanos. Mas mal me detive a observar isso. A raiva e o ódio
haviam de início me tirado a voz, e quando consegui recuperar a
fala foi apenas para oprimi-lo com palavras que expressavam com
fúria minha abominação e desprezo.
– Demônio! – exclamei. – Como ousa se aproximar de mim e não
temer a feroz vingança de meu braço, apto a destruir sua miserável
cabeça? Vá embora, inseto vil! Ou melhor, fique, para que possa
pisoteá-lo até que vire pó! Sim, e para que possa, com a extinção de
sua miserável existência, restaurar a vida daquelas vítimas que você
tão diabolicamente assassinou!
– Já esperava uma recepção como essa – disse o demônio. – Se
todos os homens odeiam os infelizes, quanto devo ser odiado, eu, a
mais infeliz das criaturas vivas! Mas você, meu criador, me detesta e
me rejeita, apesar de eu ser a sua criatura, a quem está ligado por
laços que só a aniquilação de um de nós poderá dissolver. Tem
intenção de me matar! Como ousa brincar desse jeito com a vida?
Cumpra seu dever comigo, e cumprirei o meu em relação a você e
ao resto da humanidade. Se atender à minhas condições, deixarei
todos em paz, e você também; mas, se não aceitar, vou empanturrar
o bucho da morte, até ficar saciado com o sangue dos amigos que
lhe restaram.
– Monstro abominável! Demônio é o que você é! As torturas do
inferno são uma vingança leve demais para os seus crimes.
Satânica e infeliz criatura! Repreende-me por tê-lo criado; venha
aqui, então, para que possa extinguir a centelha que eu, com
tamanha imprudência, fiz brilhar.
Minha raiva era infinita. Saltei sobre ele, impelido por todas as
emoções que podem levar um ser a querer eliminar a existência de
outro.
Ele esquivou-se facilmente e disse:
– Acalme-se! Rogo que me ouça, antes de dar vazão a seu ódio
sobre minha devotada cabeça. Será que ainda não sofri o suficiente
para que queira aumentar ainda mais a minha infelicidade? A vida,
mesmo sendo apenas um acúmulo de infortúnios, me é muito cara,
e irei defendê-la. Lembre que me fez mais forte do que você; minha
altura é superior à sua; minhas juntas, mais flexíveis. Mas não serei
tentado a enfrentá-lo. Sou sua criatura, e serei amável e dócil a
quem é meu senhor e rei, por lei natural, desde que faça também
sua parte, em relação à qual está em dívida. Oh, Frankenstein, não
se iguale aos outros espezinhando-me, a mim, a quem mais deve
justiça e, até, clemência e afeto. Lembre-se, sou sua criatura:
deveria ser seu Adão, mas em vez disso sou mais o seu anjo caído,
a quem nega alegria, sem que tenha feito nada de mal. Por toda
parte vejo felicidade, da qual somente eu sou irrevogavelmente
excluído. Era benevolente e bom, mas a infelicidade me tornou uma
criatura malvada. Faça-me feliz, e serei de novo virtuoso.
– Afaste-se! Fora! Não quero ouvi-lo. Não pode haver acordo
entre nós, somos inimigos. Saia, ou vamos medir forças em uma
luta da qual um de nós não sairá vivo.
– Como poderei comovê-lo? Será que nenhuma súplica o fará
olhar de maneira favorável para a sua criatura, que implora sua
bondade e compaixão? Acredite-me, Frankenstein: eu era bom,
minha alma irradiava amor e humanidade. Mas, diga, não estou
sozinho, miseravelmente sozinho? Você, que é meu criador, me
abomina: que esperança posso ter, então, em relação a seus
semelhantes, que nada me devem? Eles me espezinham, me
odeiam. As montanhas desertas e as desoladas geleiras são meu
refúgio. Vaguei por aqui muitos dias. As cavernas de gelo, onde
somente eu tenho coragem de entrar, são a minha morada, a única
com a qual o homem não implica. Esses céus lúgubres, eu os
abençoo, pois são mais amáveis que seus semelhantes. Se as
multidões da humanidade soubessem da minha existência, fariam
como você e se armariam para me destruir. Como posso não odiar
aqueles que me abominam? Não darei trégua aos meus inimigos.
Sou infeliz e irei compartilhar com eles essa infelicidade. Mas está
em suas mãos compensar-me e liberá-los de um mal cuja dimensão
só você pode controlar e que irá tragar, no turbilhão de minha raiva,
não apenas você e sua família, mas milhares de outros. Deixe que
sua compaixão prevaleça e não me despreze. Ouça minha história,
e depois de ouvi-la, abandone-me ou tenha compaixão por mim,
conforme julgar que eu mereça. Mas ouça-me. Os culpados têm
permissão, pela lei humana, por mais sanguinários que sejam, de
falar em sua defesa antes de serem condenados. Ouça-me,
Frankenstein. Você me acusa de assassinato, e no entanto
destruiria, com a consciência tranquila, sua própria criatura. Ah,
louvada seja a eterna justiça do homem! Mesmo assim, não peço
que me poupe: ouça-me e então, se puder, e se quiser, destrua a
obra que fez com as próprias mãos.
– Por que traz à minha lembrança circunstâncias que me dão
calafrios ao ver que fui seu infeliz causador e autor? Maldito o dia,
abominável demônio, em que viu pela primeira vez a luz! Malditas
as mãos que o formaram (embora sejam as minhas)! Você me
tornou infeliz além do que é possível descrever. Deixou-me sem
poder saber se sou justo com você ou não. Saia! Poupe-me da
visão de sua detestável figura.
– Eis como irei poupá-lo disso, meu criador – disse ele, colocando
sobre meus olhos suas odiosas mãos, que afastei com gesto brusco
–, eis como tiro de você a visão que tanto abomina. E mesmo assim
ainda é capaz de me ouvir e me conceder sua compaixão. Pelas
virtudes que eu uma vez possuí, peço-lhe que me ouça. Ouça minha
história. É longa e estranha, e a temperatura desse lugar não é
adequada aos seus sentidos delicados. Venha até a cabana no alto
da montanha. O sol ainda está elevado no céu, e antes que desça e
se esconda atrás dos precipícios nevados para iluminar outro
mundo, você terá ouvido minha história e poderá tomar a decisão.
Cabe a você decidir se abandonarei para sempre a companhia dos
homens para levar uma vida inofensiva, ou se me tornarei o flagelo
de seus semelhantes e o causador de sua pronta ruína.
Ao dizer isso, tomou a dianteira pelo gelo. Eu o segui. Meu
coração estava oprimido, e não respondi, mas, enquanto andava,
pesei os vários argumentos que ele havia exposto e decidi por fim
ouvir sua história. Em parte, fui estimulado pela curiosidade, mas a
compaixão selou minha decisão. Vinha supondo, até aquele
momento, que era ele o assassino de meu irmão, e ansiava pela
confirmação ou negação dessa ideia. Pela primeira vez, também,
senti quais eram os deveres de um criador em relação à sua
criatura, e percebi que precisaria torná-lo feliz antes de me queixar
de sua maldade. Esses motivos fizeram-me aceitar seu pedido.
Portanto, atravessamos o gelo e subimos até a rocha em frente. O
ar estava frio, e começou a chover de novo. Entramos na cabana –
o demônio, com ar exultante; eu, com um peso no coração e o
ânimo deprimido. Mas concordei em ouvir, e sentei-me junto à
fogueira que meu odioso companheiro acendera. Ele então
começou seu relato.
CAPÍTULO XI

– É com considerável dificuldade que eu lembro a época inicial da


minha existência: todos os eventos desse período parecem
confusos e indistintos. Imerso em uma estranha multiplicidade de
sensações, eu enxergava, sentia, ouvia e percebia cheiros, tudo ao
mesmo tempo. E, de fato, demorei bastante tempo até aprender a
distinguir como operavam meus sentidos. Aos poucos, lembro, uma
luminosidade mais forte foi irritando meus nervos, obrigando-me a
fechar os olhos. Com isso, veio a escuridão e me perturbou, mas
mal acabava de sentir isso e, ao abrir os olhos, como imagino ter
feito, a luz voltava a penetrar em mim. Caminhei, e, acredito, desci a
algum lugar, mas senti então grande alteração nas sensações.
Antes, era rodeado por corpos escuros e opacos, que mal
conseguia tocar ou ver, mas agora descobria que podia andar
livremente, sem obstáculos que não fosse capaz de superar ou
evitar. A luz tornou-se mais e mais opressiva, o calor me cansava à
medida que andava, e procurei então um lugar onde pudesse
desfrutar de sombra. Cheguei à floresta perto de Ingolstadt e ali
deitei junto a um riacho, para me refazer da fadiga, até que senti o
tormento da fome e da sede. Isso me tirou de meu estado de quase
dormência, e comi alguns frutos silvestres que pendiam das árvores
ou que encontrava espalhados pelo chão. Saciei minha sede no
riacho e deitei, vencido pelo sono.
Já estava escuro quando acordei. Tinha frio também, e um pouco
de medo, um medo instintivo, se é que cabe chamá-lo assim, por
me ver tão desamparado. Antes de sair de seu apartamento, ao
sentir frio, tinha me coberto com algumas roupas, mas eram
insuficientes agora para me proteger do orvalho da noite. Eu era um
pobre infeliz, indefeso. Não conseguia entender ou distinguir coisa
alguma e, sentindo dores invadindo-me por todos os lados, sentei e
chorei.
Logo depois, uma luz suave insinuou-se pelos céus e me deu
uma sensação prazerosa. Fiquei em pé e vi uma forma radiante
erguendo-se entre as árvores. Contemplei-a com uma espécie de
assombro. Movia-se lentamente, mas iluminava meu caminho, e
parti de novo em busca de frutos silvestres. Ainda fazia frio quando,
ao pé de uma das árvores, encontrei uma grande capa. Cobri-me
com ela e sentei no chão. Não tinha ideias definidas que ocupassem
minha mente, era tudo confuso. Sentia a luz, a fome, a sede e a
escuridão. Inúmeros sons vibravam em meus ouvidos, e era
saudado por aromas variados que chegavam a mim de todos os
lados: o único objeto que distinguia era a luz brilhante da lua, e fixei
meus olhos nela com prazer.
Várias mudanças do dia para a noite se sucederam, e o orbe da
noite já diminuíra muito quando comecei a distinguir minhas
sensações umas das outras. Pouco a pouco, passei a ver com
nitidez o riacho cristalino que me supria de água e as árvores que
me protegiam com sua folhagem. Fiquei encantado ao descobrir
pela primeira vez que aquele som agradável, que às vezes vibrava
em meus ouvidos, procedia da garganta daqueles pequenos
animais alados que costumavam interceptar a luz que feria meus
olhos. Comecei também a observar com muita precisão as formas
que me rodeavam e a perceber os limites da radiante abóbada de
luz que me cobria. Às vezes, tentava imitar o agradável canto dos
pássaros, mas era incapaz. Outras vezes, desejava expressar
minhas sensações a meu modo, mas os sons grosseiros e
inarticulados que saíam de mim assustavam-me e me faziam
silenciar de novo.
A lua desaparecera da noite e surgira de novo, com uma forma
menor, enquanto eu ainda estava na floresta. Minhas sensações a
essa altura já eram mais definidas, e minha mente, a cada dia,
ganhava novas ideias. Meus olhos foram se acostumando à luz e a
perceber objetos em sua forma correta. Eu conseguia distinguir os
insetos da grama, e, aos poucos, uma planta de outra. Descobri que
o pardal emitia apenas sons ásperos, enquanto os do pássaro preto
e do melro eram doces e sedutores.
Um dia, quando estava oprimido pelo frio, encontrei uma fogueira
deixada por alguns mendigos que vagavam por ali e fiquei extasiado
com o calor que experimentei perto dela. Em meu entusiasmo, enfiei
a mão nas brasas vivas, mas logo a retirei, gritando de dor. Era
muito estranho, pensei, que a mesma causa pudesse produzir
efeitos tão opostos! Examinei o material que compunha a fogueira,
e, para minha alegria, descobri que era feita de lenha. Fui então
recolher alguns gravetos, mas estavam molhados, e não pegaram
fogo. Lamentei isso, e voltei a sentar e observar o fogo. Os galhos
molhados que colocara perto do calor secaram e começaram a se
inflamar. Isso me fez pensar e, ao tocar os vários galhos, descobri a
causa. Recolhi grande quantidade de lenha, para poder secá-la e ter
um bom suprimento de fogo. Quando a noite veio e trouxe com ela o
sono, fiquei com medo que a fogueira apagasse. Cobri-a com
cuidado com lenha seca e folhas, e coloquei os galhos molhados
por cima. Então, estendi a capa, deitei no chão e mergulhei no sono.
Era de manhã quando acordei, e minha primeira medida foi
examinar a fogueira. Descobri-a, e uma brisa suave logo soprou e
produziu uma chama. Percebi isso também e construí um leque de
folhas, com o qual reavivava as brasas que estavam quase
apagando. Quando veio a noite de novo, descobri com satisfação
que o fogo produzia luz, além de calor, e que a descoberta daquele
elemento era útil para a minha comida, pois notei que algumas das
vísceras deixadas pelos viajantes haviam sido assadas e tinham um
gosto muito mais saboroso do que os frutos silvestres que eu colhia
das árvores. Portanto, experimentei preparar minha comida do
mesmo jeito, colocando-a sobre as brasas vivas. Descobri que essa
operação estragava os frutos, mas as nozes e raízes ficavam muito
melhores.
A comida, porém, foi ficando escassa, e com frequência eu
gastava o dia inteiro procurando, em vão, umas poucas bolotas de
carvalho para atenuar as pontadas de fome. Ao constatar isso,
decidi sair daquele lugar que até então habitara e procurar outro
onde as poucas necessidades que eu experimentava pudessem ser
mais facilmente atendidas. Ao migrar, lamentei muito a perda da
fogueira, que eu encontrara por acaso e não sabia reproduzir. Ainda
refleti várias horas sobre essa dificuldade, mas fui obrigado a abrir
mão de qualquer tentativa de resolvê-la; e, enrolando-me na capa,
cruzei o bosque em direção ao sol poente. Passei três dias nessas
andanças, e por fim descobri um descampado. Uma grande
nevasca tivera lugar na noite anterior, e os campos estavam todos
cobertos de branco. A aparência era desoladora, e descobri que
meus pés congelavam com a substância úmida e fria que cobria o
chão.
Eram por volta de sete da manhã, e eu ansiava por obter comida
e abrigo. A certa altura, deparei com uma pequena cabana, em um
terreno elevado, que com certeza fora construída para uso de algum
pastor. Era uma visão nova para mim, e examinei a construção com
grande curiosidade. Como a porta estava aberta, entrei. Um homem
velho estava ali sentado, perto do fogo sobre o qual preparava seu
café da manhã. Ele virou-se ao ouvir um barulho, e, quando me viu,
soltou um berro e saiu correndo da cabana a uma velocidade que
me surpreendeu, dada sua constituição debilitada. Sua aparência,
diferente da de outras pessoas que eu já vira, e sua fuga de certo
modo me surpreenderam. Mas fiquei mais curioso ainda com o
aspecto da cabana: ali, a neve e a chuva não conseguiam penetrar;
o chão estava seco, e ela me pareceu um retiro tão refinado e divino
quanto o Pandemônio******** deve ter parecido aos demônios do
inferno, após seus sofrimentos no lago de fogo. Avidamente, devorei
os restos do desjejum do pastor, que consistiam de pão, queijo, leite
e vinho. Este último, porém, não me agradou. Então me refiz da
fadiga, deitei no meio da palha e adormeci.
Já era meio-dia quando acordei e, atraído pelo calor do sol, que
brilhava forte naquele chão de um branco uniforme, decidi retomar
minhas andanças. Coloquei os restos do desjejum do pastor em
uma bolsa que encontrei e andei várias horas pelos campos, até
chegar a uma vila, ao pôr do sol. Como parecia magnífica! As
cabanas, os chalés mais bem construídos, as mansões majestosas
foram, em sequência, despertando minha admiração. As hortaliças
nos jardins e o leite e o queijo que vi junto às janelas de alguns
chalés instigaram meu apetite. Entrei em um dos melhores que vi,
mas assim que pus o pé dentro as crianças berraram e uma das
mulheres desmaiou. A vila inteira se alvoroçou. Alguns fugiram,
outros me atacaram, até que, bastante machucado pelas pedradas
e outros objetos arremessados contra mim, fugi para campo aberto
e, amedrontado, me escondi em uma cabana baixa, bem tosca, de
aparência miserável em comparação com os palacetes que havia
contemplado na vila. Essa cabana ficava colada a um chalé de
aparência bem cuidada e agradável, mas, depois da minha recente
e desastrosa experiência, não ousei entrar. Meu refúgio era de
madeira e muito baixo, mal dava para sentar ereto dentro dele. O
chão não tinha revestimento de madeira, era de terra batida, mas
estava seco, e embora o vento entrasse por inúmeras frestas, achei-
o um abrigo agradável contra a neve e a chuva.
Ali me acomodei e deitei, feliz por achar um lugar, mesmo que
precário, para me proteger das inclemências do tempo e, mais
ainda, da barbaridade dos homens.
Assim que amanheceu, arrastei-me para fora da minha toca para
poder olhar o chalé adjacente e ver se teria como continuar naquela
habitação que havia encontrado. Minha choupana ficava encostada
à parte de trás do chalé e tinha de um lado um chiqueiro e, do outro,
um tanque de água limpa. A parte que ficava exposta era por onde
eu havia entrado, e achei melhor cobrir com pedras e lenha as
fendas pelas quais eu poderia ser visto, mas de modo que pudesse
retirá-las ao sair. Toda a luz de que desfrutava vinha do chiqueiro, e
era suficiente para mim.
Depois de arrumar minha moradia e cobrir o chão com palha
limpa, fiquei ali recolhido, pois vi a figura de um homem à distância e
me lembrei muito bem do tratamento que me fora dispensado na
noite anterior. Antes, porém, já havia providenciado meu sustento
para o dia: um pedaço de pão rústico que eu surrupiara e uma
xícara com a qual poderia tomar a água limpa que passava junto ao
meu abrigo, com mais facilidade do que usando as mãos. O piso
ficava um pouco elevado, portanto, mantinha-se perfeitamente seco,
e, por sua proximidade com a lareira do chalé, a choupana era
razoavelmente aquecida.
Estando assim provido, decidi residir nessa toca até que algum
acontecimento me levasse a alterar minha decisão. Na realidade,
era um paraíso, comparado com a gélida floresta, minha antiga
residência, onde pingava água de chuva dos galhos e a terra era
úmida. Tomei meu desjejum com gosto, e estava prestes a retirar
uma tábua para ir providenciar um pouco de água quando ouvi
passos; ao olhar por uma fresta estreita, vi uma jovem criatura, com
um balde na cabeça, passar diante da minha toca. Era uma moça
jovem, de porte delicado, diferente do que eu havia visto até então
nos moradores dos casebres e nos empregados das fazendas. No
entanto, vestia-se de maneira bem simples, apenas com uma saia
rústica azul e uma jaqueta de linho; seu cabelo loiro estava
trançado, mas sem enfeites; parecia tranquila, mas triste. Perdi-a de
vista, e cerca de quinze minutos mais tarde ela voltou, carregando o
balde, agora parcialmente cheio de leite. Enquanto vinha, parecendo
incomodada pelo peso do fardo, um jovem foi encontrá-la, com um
semblante que expressava profundo desânimo. Pronunciando
alguma coisa com ar melancólico, pegou o balde da cabeça dela e
levou-o até o chalé. Ela o seguiu, e ambos desapareceram. A certa
altura, vi o jovem de novo, com algumas ferramentas na mão, cruzar
os campos atrás do chalé, e a jovem continuou ocupada, às vezes
dentro da casa, outras vezes, no quintal.
Examinando melhor minha moradia, descobri que uma das
janelas do chalé havia sido antes parte do meu refúgio, mas as
antigas vidraças estavam agora vedadas por madeira. Em uma
delas havia uma pequena rachadura, quase imperceptível, por onde
o olho podia espreitar. Por essa fenda, via-se uma pequena sala,
caiada e limpa, mas com pouca mobília. Em um canto, perto de uma
pequena lareira, sentava-se um velho, com a cabeça apoiada nas
mãos, em atitude desconsolada. A jovem estava arrumando o chalé,
mas a certa altura tirou de uma gaveta algo que passou a ocupar
suas mãos e sentou ao lado do velho, que, pegando um
instrumento, começou a tocar e a produzir sons mais doces do que
o canto do melro ou do rouxinol. Era uma visão muito bonita, mesmo
para mim – pobre infeliz! –, que nunca havia contemplado nada de
belo antes. O cabelo prateado e o semblante bondoso do aldeão
idoso conquistaram minha reverência, e os modos gentis da jovem
despertaram meu amor. Ele tocou uma ária melodiosa, que fez
brotarem lágrimas dos olhos de sua amável companheira, coisa que
o velho só percebeu quando ela começou a soluçar. Ele pronunciou
alguns sons, e a bela criatura, deixando de lado seu trabalho,
ajoelhou-se a seus pés. Ele a fez levantar e sorriu com tal bondade
e afeto que experimentei sensações de uma natureza peculiar e
extremamente poderosa: eram uma mistura de dor e prazer, como
nunca havia experimentado antes, nem quando senti fome ou frio,
nem com o calor ou o alimento; então, me afastei da janela, incapaz
de suportar tantas emoções.
Logo após, o jovem voltou, carregando nos ombros um feixe de
lenha. A jovem foi encontrá-lo à porta, ajudou-o a descarregar seu
fardo e, levando um pouco de lenha para o chalé, colocou-a na
lareira. Então ela e o jovem afastaram-se para um canto, e ele
mostrou-lhe um grande filão de pão e um pedaço de queijo. Ela
pareceu animada e foi até a horta pegar algumas raízes e plantas,
que colocou na água e depois levou ao fogo. Em seguida, continuou
seu trabalho, enquanto o jovem foi para o jardim e pareceu ocupado
em cavar e arrancar raízes. Depois de fazer isso por uma hora, a
jovem foi até ele e entraram juntos no chalé.
O velho, enquanto isso, permaneceu pensativo, mas quando seus
companheiros apareceram assumiu um ar mais alegre, e sentaram
todos para comer. A refeição durou pouco. A jovem voltou a se
ocupar em arrumar a casa, o velho foi andar ao sol diante do chalé
por alguns minutos, apoiando-se no braço do jovem. Nada podia
exceder em beleza o contraste entre essas duas excelentes
criaturas. O velho, com o cabelo prateado e o semblante que
irradiava benevolência e amor; e o jovem, de figura ágil e graciosa,
com feições moldadas na mais perfeita simetria, apesar de os olhos
e a postura expressarem profunda tristeza e desânimo. O velho
voltou ao chalé, e o jovem, com ferramentas diferentes das que
usara de manhã, dirigiu-se ao campo.
A noite logo caiu, e, para meu grande espanto, descobri que os
aldeões tinham como prolongar a luz por meio de velas. Fiquei
maravilhado ao descobrir que o pôr do sol não pusera um fim ao
prazer que eu experimentava de observar meus vizinhos humanos.
À noite, a jovem e seu companheiro dedicaram-se a várias
ocupações que eu não consegui entender, e o velho pegou de novo
o instrumento, que produzia os sons divinos que haviam me
encantado de manhã. Assim que ele terminou, o jovem começou a
proferir sons monótonos, que não se pareciam nem com a harmonia
do instrumento do velho nem com o canto dos pássaros. Mais tarde
eu descobriria que ele lia em voz alta, mas naquela hora não sabia
ainda nada sobre a ciência das palavras e das letras.
A família, depois de se ocupar um tempo com isso, extinguiu suas
luzes e se recolheu, segundo me pareceu, para descansar.
CAPÍTULO XII

– Deitei na minha palha, mas não consegui dormir. Fiquei


pensando nos acontecimentos do dia. O que mais havia me
marcado era a delicadeza dos modos daquelas pessoas, e tive
vontade de me juntar a elas, mas não me atrevi. Lembrava-me bem
demais de como havia sido tratado pelos bárbaros aldeões, e decidi
que, qualquer que fosse a conduta que pudesse achar conveniente
adotar a partir de então, naquele momento ficaria quieto em minha
toca, observando e tentando descobrir os motivos que influenciavam
suas ações.
Os aldeões do chalé acordaram na manhã seguinte antes do sol.
A jovem arrumou a casa e preparou comida, e o jovem saiu após a
primeira refeição.
O dia transcorreu com a mesma rotina do anterior. O rapaz ficou
o tempo todo ocupado do lado de fora, e a moça, em vários
trabalhos dentro do chalé. O velho, que logo percebi que era cego,
dedicava suas horas de ócio ao instrumento ou à reflexão. Nada
podia superar o amor e o respeito que os jovens aldeões
demonstravam para com seu venerável companheiro. Dedicavam-
lhe todas as atenções, com afeto e gentileza, e ele retribuía com
sorrisos benevolentes.
Eles não estavam totalmente felizes. O jovem e sua companheira
muitas vezes iam cada um para um canto e pareciam chorar. Eu não
entendia o motivo de sua infelicidade, mas isso me afetava
profundamente. Ao ver criaturas adoráveis como aquelas infelizes,
começava a achar menos estranho que eu, um ser imperfeito e
solitário, pudesse ser infeliz. Mas por que esses seres tão amáveis
estavam tão desgostosos? Tinham uma casa confortável (pois
assim parecia aos meus olhos), e bem-estar: uma lareira para
aquecê-los quando fazia muito frio e deliciosas provisões quando
tinham fome; vestiam roupas muito boas e, mais ainda, desfrutavam
da companhia um do outro, conversavam e trocavam todos os dias
olhares de afeto e benevolência. Como explicar aquelas lágrimas?
Elas expressavam dor? De início, não fui capaz de encontrar
resposta a essas perguntas, mas a atenção constante e o tempo
explicaram muitas aparências que de início pareciam enigmáticas.
Passou bastante tempo até que eu descobrisse uma das causas
do mal-estar daquela amável família. Era a pobreza, e eles sofriam
desse mal em um grau muito penoso. Sua alimentação dependia
totalmente dos legumes e verduras da horta e do leite de uma vaca,
que produzia muito pouco no inverno, quando seus donos
praticamente não conseguiam alimento para sustentá-la. Acredito
que muitas vezes sofressem as aflições da fome de maneira muito
aguda, especialmente os dois jovens, pois era comum colocarem
comida diante do velho, sem reservar nada para si.
Esse traço de bondade tocou minha sensibilidade. Eu me
acostumara, durante a noite, a roubar parte de suas provisões para
meu próprio consumo, mas, quando descobri que fazendo isso
infligia dor àqueles aldeões, abstive-me, e me contentava com frutos
silvestres, castanhas e raízes, que eu recolhia em um bosque
vizinho.
Achei outro meio de ajudá-los. Notei que o jovem passava grande
parte do dia recolhendo lenha para o fogão da família. Então,
durante a noite, muitas vezes eu pegava as ferramentas dele, cujo
uso logo entendi, e trazia para a casa lenha suficiente para o
consumo de vários dias.
Lembro que da primeira vez que fiz isso, a jovem, ao abrir a porta
de manhã, pareceu imensamente surpresa quando viu uma grande
pilha de lenha do lado de fora. Ela proferiu algumas palavras em voz
alta, e o rapaz foi até ela e mostrou também grande assombro.
Constatei com prazer que ele não foi à floresta aquele dia,
aproveitando para fazer reparos no chalé e cultivar a horta.
Pouco a pouco, fiz uma descoberta ainda mais importante. A de
que aquelas pessoas possuíam um método de comunicar suas
experiências e sentimentos umas às outras por meio de sons
articulados. Percebi que as palavras que usavam às vezes
produziam prazer ou dor, sorrisos ou tristeza na mente e no
semblante de quem as ouvia. Tratava-se realmente de uma ciência
divina, e desejei muito me familiarizar com ela. Mas todas as minhas
tentativas nesse sentido viram-se frustradas. Sua pronúncia era
rápida, e como as palavras que diziam não tinham nenhuma
conexão aparente com objetos visíveis, eu era incapaz de descobrir
qualquer pista pela qual pudesse desvelar o mistério de seu sentido.
Com grande aplicação, porém, e depois de permanecer por várias
revoluções da lua em minha toca, descobri os nomes que davam
aos objetos mais frequentes em seu discurso: aprendi e passei a
usar as palavras fogo, leite, pão e lenha. Aprendi também o nome
dos aldeões. A jovem e seu companheiro tinham, cada um, vários
nomes, mas o velho era chamado apenas de pai. A moça era
chamada de irmã, ou Agatha; e o jovem, de Félix, irmão ou filho.
Não sou capaz de descrever a alegria que senti quando aprendi as
ideias que correspondiam a cada um desses sons e fui capaz de
pronunciá-los. Distinguia também várias outras palavras, sem ainda
compreendê-las ou saber usá-las, como bom, querido, infeliz.
Assim passei o inverno. Os modos gentis e a beleza dos aldeões
despertaram em mim grande afeto por eles: quando estavam
infelizes, eu me deprimia; quando exultavam, eu me animava com
sua alegria. Via poucos seres humanos além deles, e se outros por
acaso vinham até o chalé, suas maneiras rudes e seu andar
desajeitado só faziam realçar para mim as virtudes de meus amigos.
O velho, segundo notei, fazia muitas vezes um esforço para
incentivar os filhos, que é como ele às vezes os chamava, a vencer
sua melancolia. Falava-lhes em tom alegre, com uma expressão de
bondade que trazia satisfação até a mim mesmo. Agatha ouvia
respeitosamente, e seus olhos às vezes se enchiam de lágrimas,
que ela discretamente procurava enxugar. Mas eu via que seu
semblante e seu tom de voz ficavam mais animados depois de ouvir
as exortações do pai. Não era assim com Félix. Era sempre o mais
triste do grupo, e, mesmo aos meus sentidos pouco
experimentados, era quem parecia sofrer mais profundamente.
Mesmo assim, apesar de seu semblante mais tristonho, sua voz era
mais animada que a da irmã, especialmente quando se dirigia ao
velho.
Eu poderia mencionar inúmeros exemplos que, apesar de
corriqueiros, mostravam a disposição daqueles amáveis aldeões.
Em meio à pobreza e à privação, Félix tinha o prazer de levar para a
irmã a primeira florzinha branca que despontava no chão coberto de
neve. Logo de manhã cedo, antes que ela se levantasse, ele
limpava a neve que obstruía o caminho da irmã até o estábulo onde
ela ia pegar o leite, além de puxar água do poço e trazer madeira da
casinha de fora, onde, para seu espanto, encontrava seu estoque
sempre renovado por alguma mão invisível. De dia, imagino,
trabalhava às vezes para algum fazendeiro vizinho, pois com
frequência saía e só voltava na hora do jantar, e sem trazer lenha.
Outras vezes cuidava da horta, mas, como havia pouco o que fazer
no inverno, lia para o velho e para Agatha.
No início, essa sessão de leitura me deixava muito confuso, mas
aos poucos descobri que ele pronunciava muitos dos mesmos sons,
tanto ao ler quanto ao falar. Conjeturei, portanto, que encontrava no
papel os sinais que transformava em fala, e desejei ardentemente
compreendê-los também. Mas como seria possível, se sequer
compreendia os sons representados por aqueles sinais? Mesmo
assim, melhorei sensivelmente nessa ciência, embora não o
suficiente para acompanhar alguma conversa, apesar de aplicar
toda a minha mente nesse esforço. Não foi difícil concluir que,
apesar de estar ansioso para me apresentar aos aldeões, só deveria
fazê-lo depois de dominar sua linguagem, pois ao conhecê-la
poderia fazer com que tolerassem a deformidade de minha
aparência, da qual me tornara consciente pelo contraste que sempre
mostrara a meus olhos.
Eu admirava as formas perfeitas de meus aldeões – sua
graciosidade, beleza e tez delicada. E ficava aterrorizado ao ver
minha imagem em um espelho d’água! De início, recuava, incapaz
de acreditar que era de fato eu que estava refletido ali. E quando me
convenci plenamente de que era de fato o monstro que sou, fui
tomado pelas mais amargas sensações de desalento e mortificação.
Ai de mim! Eu ainda não compreendia inteiramente os efeitos fatais
dessa miserável deformidade.
Conforme o sol foi ficando mais quente e a luz do dia, mais longa,
a neve sumiu, e contemplei as árvores desfolhadas e a terra escura.
A partir de então, Félix ficou mais ativo, e desapareceram aqueles
sinais comoventes de uma iminente inanição. A comida deles, como
mais tarde descobri, era rústica, mas saudável, e conseguiam o
suficiente. Brotaram da horta várias novas espécies de plantas, que
eles cozinhavam, e esses sinais de bem-estar foram aumentando
dia a dia, à medida que a estação avançava.
O velho, apoiado no filho, andava diariamente ao meio-dia, desde
que não caísse chuva, como descobri que era chamada aquela
água despejada pelos céus. Ela era frequente, mas um vento
rapidamente secava a terra, e a estação se tornava bem mais
agradável.
Minha vida na toca era a de sempre. De manhã, acompanhava os
movimentos dos aldeões, e quando eles se dispersavam em suas
várias ocupações, eu dormia; o resto do dia, dedicava-o a observar
meus amigos. Quando se recolhiam para dormir, se houvesse lua ou
a noite fosse de céu estrelado, ia para os bosques e recolhia minha
comida e lenha para o chalé. Ao voltar, sempre que necessário,
removia a neve da trilha e fazia aquelas tarefas que havia visto Félix
cumprir. Mais tarde, descobri que esses trabalhos realizados por
uma mão invisível os deixavam estupefatos, e um par de vezes
ouvi-os pronunciar as palavras espírito bom, maravilhoso, mas sem
compreender o sentido desses termos.
Meus pensamentos eram agora mais ativos, e eu desejava
descobrir os motivos e sentimentos daquelas adoráveis criaturas.
Ansiava saber por que Félix parecia tão infeliz e Agatha, tão triste.
Imaginei (grande tolice!) que teria como restaurar a felicidade
daquelas pessoas que tanto a mereciam. Quando dormia ou me
abstraía, as formas do venerável pai cego, da delicada Agatha e do
formidável Félix esvoaçavam na minha mente. Eu os considerava
seres superiores, que iriam arbitrar meu destino futuro. Construí na
imaginação mil cenas nas quais eu me apresentava, e eles me
acolhiam. Imaginava que sentiriam repulsa, mas que meus modos
gentis e minhas palavras de conciliação me levariam a conquistar
primeiro seu acolhimento, e depois seu amor.
Esses pensamentos me entusiasmavam, e me apliquei com
renovado ímpeto à aquisição da arte da linguagem. Meus órgãos, na
verdade toscos, eram flexíveis, e embora minha voz fosse bem
diferente da suave musicalidade dos timbres deles, eu pronunciava
as palavras com relativa facilidade, do modo que as compreendia.
Era como na fábula do asno e do cãozinho de estimação,********
embora com certeza o amável asno, cheio intenções amorosas mas
expressando-as de modo rude, merecesse tratamento melhor do
que pancadas e execrações.
As agradáveis chuvaradas e o calor ameno da primavera
alteraram muito o aspecto da terra. Os homens, que antes dessa
mudança pareciam ter se escondido em cavernas, espalharam-se e
passaram a se dedicar às várias artes do cultivo. Os pássaros
cantavam em tons mais alegres, e as folhas começaram a brotar
das árvores. Ah, feliz terra! Morada propícia dos deuses, que pouco
tempo antes era sombria, úmida e insalubre. Meu ânimo se elevou
ao ver o encantador cenário da natureza. O passado foi apagado da
minha memória, o presente era tranquilo, e o futuro iluminava-se
com os raios cintilantes da esperança e com a expectativa de
felicidade.
CAPÍTULO XIII

– Aproximo-me agora da parte mais comovente de minha história:


o relato dos eventos que gravaram em mim as emoções
responsáveis por eu ter deixado de ser o que era e me transformar
naquilo que sou.
– A primavera avançava rapidamente. O tempo era excelente, o
céu, límpido. Fiquei surpreso ao ver que aquilo que antes era
deserto e lúgubre vicejava agora com as mais belas flores e plantas.
Meus sentidos ficaram gratificados e renovados por milhares de
aromas deliciosos e mil visões de imensa beleza.
Em um daqueles dias em que meus aldeões periodicamente
descansavam do trabalho – o velho tocava seu violão, os filhos o
ouviam –, observei no semblante de Félix uma melancolia
indescritível: ele suspirava a toda hora, e quando seu pai
interrompeu a música e eu conjeturei, pelos seus modos, que
estivesse perguntando ao filho o motivo de tanta tristeza, Félix
respondeu de maneira alegre, e o velho retomou a música. Nessa
hora, alguém bateu à porta.
Era uma mulher a cavalo, acompanhada por um camponês que
lhe servia de guia. A mulher se vestia toda de preto e cobria o rosto
com um grosso véu da mesma cor. Agatha perguntou algo, e a
forasteira respondeu pronunciando, em tom doce, o nome de Félix.
Sua voz era melodiosa, mas diferente da dos meus amigos.
Ouvindo essa palavra, Félix apresentou-se prontamente à dama,
que, ao vê-lo, removeu seu véu, e pude contemplar seu semblante,
de uma beleza e expressão angelicais. Seu cabelo era preto e
lustroso, e trançado de modo curioso; os olhos escuros eram doces,
sem perder a vivacidade; as feições, bem proporcionadas, e a tez
magnificamente clara, com cada face tingida por um adorável tom
róseo.
Félix pareceu extasiado ao vê-la. Todos os sinais de tristeza
desapareceram de seu rosto, e na mesma hora expressou uma
alegria transbordante, da qual eu não imaginava que fosse capaz.
Seus olhos brilhavam e suas faces coraram de prazer. E nessa hora
achei-o tão bonito quanto a forasteira. Ela parecia tomada por
emoções diversas. Enxugando algumas lágrimas de seus belos
olhos, estendeu a mão a Félix, que a beijou com paixão e chamou a
moça, pelo que pude distinguir, de “minha doce árabe”. Ela pareceu
não entendê-lo, mas sorriu. Ele ajudou-a a desmontar e,
dispensando o guia, conduziu-a para o interior do chalé. Ele trocou
algumas palavras com o pai, e a jovem forasteira ajoelhou-se aos
pés do velho, e teria beijado sua mão, mas ele ergueu-a e abraçou-
a afetuosamente.
Logo percebi que, embora a forasteira pronunciasse sons
articulados e parecesse ter uma língua própria, não era entendida
pelos aldeões, e tampouco os entendia. Faziam sinais que eu não
compreendi, mas notei que a presença dela difundia alegria pela
casa, dissipando a tristeza como o sol dissipa a névoa. Félix parecia
peculiarmente feliz, e era todo sorrisos com sua árabe. Agatha, a
sempre gentil Agatha, beijou as mãos da adorável forasteira e,
apontando para o irmão, fazia sinais que pareciam indicar que ele
estivera triste até a chegada dela. Assim passaram-se algumas
horas, com eles expressando no semblante uma alegria cuja causa
eu não compreendia. A certa altura, descobri, pelo fato de a
forasteira repetir frequentemente uma palavra que eles haviam
acabado de pronunciar, que ela fazia esforços para aprender sua
língua, e na mesma hora ocorreu-me que eu deveria fazer uso das
mesmas instruções para alcançar esse mesmo fim. A forasteira
aprendeu cerca de vinte palavras na primeira lição, e a maior parte
delas eu já havia antes compreendido, mas tirei proveito das
demais.
Quando a noite chegou, Agatha e a árabe recolheram-se cedo.
Ao se separarem dos demais, Félix beijou a mão da forasteira, e
disse: “Boa noite, doce Safie”. Ele ficou sentado mais tempo
conversando com o pai, e pela frequente repetição do nome dela,
inferi que o tema de sua conversa era a adorável hóspede. Eu tinha
o desejo ardente de entender o que diziam, e usava todas as
faculdades para esse propósito, mas era absolutamente impossível.
Na manhã seguinte, Félix saiu para trabalhar, e, depois que
Agatha concluiu suas ocupações usuais, a árabe sentou-se aos pés
do velho e, pegando o violão, tocou algumas árias tão encantadoras
que arrancaram na mesma hora lágrimas de tristeza e prazer dos
meus olhos. Ela cantava, e sua voz fluía em uma cadência rica,
crescendo ou diminuindo de intensidade, como um rouxinol dos
bosques.
Quando ela terminou, deu o violão a Agatha, que, depois de
relutar um pouco, tocou uma ária simples, acompanhando-a com a
voz em doces inflexões, mas sem a maravilhosa expressividade da
forasteira. O velho parecia arrebatado e disse algumas palavras,
que Agatha esforçou-se para explicar a Safie e por meio das quais
ele parecia querer expressar o imenso prazer que ela lhe
proporcionara com sua música.
Os dias agora transcorriam tão tranquilos quanto antes, e a única
diferença era que a alegria ocupara o lugar da tristeza no semblante
de meus amigos. Safie estava sempre alegre e bem disposta. Ela e
eu melhoramos rapidamente nosso conhecimento da língua, de
modo que em dois meses comecei a compreender a maioria das
palavras ditas por meus protetores.
Nesse ínterim, a terra escura também se cobrira de grama, e os
montes verdes encheram-se de flores, maravilhosas por seu
perfume e beleza, estrelas de sutil brilho entre bosques enluarados.
O sol ficou mais quente, as noites, mais claras e agradáveis, e
minhas andanças noturnas davam-me o máximo prazer, embora
tivessem encurtado bastante com o sol se pondo tão tarde e
nascendo tão cedo, pois de dia nunca me aventurava muito longe,
com medo de me deparar com o mesmo tratamento que havia
suportado na primeira vila em que entrei.
Passava os dias muito atento, para poder dominar logo a língua,
e posso me gabar de ter melhorado mais rápido do que a árabe, que
compreendia pouca coisa e conversava com forte sotaque,
enquanto eu compreendia e conseguia imitar quase todas as
palavras que eram ditas.
Além de melhorar na fala, também aprendi a ciência das letras,
conforme era ensinada à estrangeira, e isso abriu para mim um
amplo campo de encantamento e prazer.
O livro a partir do qual Félix ensinava era As ruínas de Palmira,
de Volney. Eu não teria entendido o propósito desse livro se Félix
não tivesse dado explicações bem minuciosas a respeito dele
enquanto o lia. Escolhera aquele livro, segundo ele, porque o estilo
de apresentação baseava-se em uma imitação dos autores
orientais. Por meio desse livro, obtive um conhecimento geral da
história e uma visão dos vários impérios que existiam no mundo.
Deu-me uma ideia dos costumes, governos e religiões das
diferentes nações da terra. Fiquei conhecendo os indolentes
orientais, a magnitude do gênio e da atividade mental dos gregos,
as guerras e maravilhosas virtudes dos antigos romanos – e sua
subsequente degeneração –, o declínio daquele poderoso império, a
cavalaria, o cristianismo e os reis. Soube da descoberta do
hemisfério americano e chorei com Safie pelo terrível destino dos
seus habitantes originais.
Essas maravilhosas narrativas inspiraram-me sentimentos
estranhos. Seria o homem, de fato, tão poderoso, virtuoso e
magnífico e, ao mesmo tempo, tão perverso e vil? Ele parece ser às
vezes um mero fruto do princípio do mal, e outras vezes tudo o que
pode ser concebido de mais nobre e divino. Ser eminente e virtuoso
parecia ser a mais alta honraria que se poderia conceder a uma
criatura sensível; ser vil e perverso, como todos aqueles dos quais
havia registro, parecia ser a mais baixa degradação, uma condição
mais abjeta que a de uma toupeira cega ou a de um verme
inofensivo. Por muito tempo fui incapaz de conceber como um
homem podia chegar ao extremo de matar um semelhante, e
também a razão de existirem leis e governos. Mas quando soube
dos detalhes das maldades e carnificinas, meu assombro cessou, e
passei a sentir aversão e abominação.
Cada conversa dos aldeões abria agora novos mistérios para
mim. Enquanto ouvia as instruções que Félix dava à árabe, o
estranho sistema da sociedade humana ficava mais claro. Aprendi
sobre a divisão da propriedade, a imensa riqueza e a pobreza
extrema, a hierarquia das classes, as linhagens e o sangue nobre.
As palavras me fizeram voltar para dentro de mim. Aprendi que o
mais valorizado por seus semelhantes era a alta linhagem pura
aliada à riqueza. Um homem podia ser respeitado se tivesse apenas
um desses atributos, mas sem nenhum dos dois era considerado,
exceto em casos muito raros, um vagabundo e um escravo,
condenado a desperdiçar seus poderes em proveito de uns poucos
escolhidos. E o que era eu? Ignorava totalmente minha criação e
meu criador, mas sabia que não possuía dinheiro nem amigos e
nenhuma espécie de bens. Além disso, era dotado de uma figura
horrendamente deformada e repulsiva: sequer tinha a mesma
natureza que o homem. Era mais ágil do que ele, e podia subsistir
com uma dieta mais rústica; suportava os extremos de calor e frio
com menos danos ao meu corpo; minha estatura superava muito a
dele. Ao olhar em volta, não via nem tinha notícia de alguém como
eu. Seria então um monstro, uma mácula sobre a terra, da qual
todos os homens fugiam e que todos renegavam?
Não sou capaz de descrever a você a agonia que essas reflexões
me provocavam. Tentei evitá-las, mas, à medida que adquiria maior
conhecimento, minha tristeza só aumentava. Ah, se tivesse
permanecido para sempre naquele meu bosque nativo, sem
conhecer ou sentir nada além das sensações de fome, sede e calor!
Ah, como é estranha a natureza do conhecimento! Depois de
tomar a mente, adere a ela como o líquen a uma pedra. Às vezes,
tinha desejo de me desvencilhar de todos os pensamentos e
sentimentos, mas aprendi que havia apenas um meio de superar a
sensação de dor – que era a morte, estado que eu temia, apesar de
não entendê-lo. Admirava a virtude e os bons sentimentos, e amava
os modos gentis e as qualidades afáveis dos meus aldeões, mas
era-me vedado o intercâmbio com eles, exceto por meios furtivos,
quando eu não era visto e não tinham notícia de minha existência, o
que, em vez de satisfazer, aumentava ainda mais meu desejo de me
tornar um deles. As delicadas palavras de Agatha e os animados
sorrisos da sedutora árabe não eram para mim. As amáveis
exortações do velho e a animada conversa do querido Félix não
eram para mim. Miserável, desgraçado e infeliz!
Outras lições ficaram gravadas em mim de modo ainda mais
profundo. Soube da diferença entre os sexos, do nascimento e
crescimento das crianças, de como o pai se compraz com os
sorrisos do filho bebê e com suas travessuras quando cresce.
Soube que toda a vida e os cuidados da mãe se concentram em seu
precioso fardo, que a mente dos jovens se expande e adquire
conhecimentos, soube a respeito de irmãos, irmãs e todas as várias
relações que vinculam um ser humano a outro por laços mútuos.
Mas onde estavam meus amigos e parentes? Nenhum pai vigiara
minha infância, nenhuma mãe me abençoara com sorrisos e
carícias, ou, se o haviam feito, toda a minha vida passada era agora
um borrão no qual eu não distinguia nada. Nas minhas mais antigas
recordações, eu já era como agora em altura e proporções. Até
então, nunca havia visto um ser parecido comigo, ou que quisesse
ter algum contato. O que era eu? A questão voltava outra vez, e só
podia ser respondida com gemidos.
Logo irei explicar a que me levaram esses sentimentos, mas
permita-me agora voltar aos meus aldeões, cuja história despertou
em mim emoções tão diversas como a indignação, o deleite e a
admiração, todas elas redundando em mais amor e reverência por
meus protetores (pois assim eu gostava de chamá-los, em meu
inocente e algo doloroso autoengano).
CAPÍTULO XIV

– Demorou um bom tempo até eu conhecer a história de meus


amigos. Uma história que ficaria profundamente gravada na minha
mente, pois consistia em uma série de circunstâncias, todas elas
interessantes e maravilhosas para alguém tão inexperiente como
eu.
O nome do velho era De Lacey. Descendia de uma prestigiosa
família da França, onde vivera por muitos anos, rico, respeitado por
seus superiores e amado por seus pares. Seu filho havia sido
educado para servir seu país, e Agatha convivia com as damas da
mais alta distinção. Poucos meses antes da minha chegada, todos
residiam em uma cidade grande e luxuosa chamada Paris, rodeados
de amigos e desfrutando de tudo o que a virtude, o refinamento do
intelecto e o bom gosto, acompanhados de uma moderada fortuna,
podem proporcionar.
O pai de Safie havia sido a causa de sua ruína. Era um mercador
turco e vivia em Paris há muitos anos, mas, por alguma razão que
não pude elucidar, indispôs-se com o governo. Foi detido e
aprisionado no mesmo dia em que Safie chegou de Constantinopla
para se juntar a ele. Julgado, foi condenado à morte. A injustiça de
sua sentença era muito flagrante, e Paris inteira ficou indignada,
pois era patente que sua religião e sua riqueza, mais do que o crime
de que era acusado, haviam sido a causa de sua condenação.
Félix assistira ao julgamento. Seu horror e indignação foram
incontroláveis quando soube da decisão da corte. Naquela hora, fez
um solene voto de libertá-lo, e saiu à procura dos meios para fazê-
lo. Depois de várias tentativas infrutíferas de conseguir acesso à
prisão, descobriu uma janela com fortes grades em uma parte
desguarnecida do edifício, por onde entrava luz no calabouço do
infeliz maometano, que, preso com pesadas correntes, aguardava
em desespero a execução da bárbara sentença. À noite, Félix foi até
aquela janela e comunicou ao prisioneiro suas intenções em favor
dele. O turco, surpreso e animado, procurou incentivar o zelo de seu
salvador com promessas de recompensa e riquezas. Félix rejeitou
suas ofertas com desdém, mas, quando viu a adorável Safie, que
fora visitar o pai e que, com gestos, expressou-lhe imensa gratidão,
o jovem não teve como não concluir que o cativo possuía um
tesouro que compensaria plenamente seu esforço e seus riscos.
O turco logo percebeu a impressão que a filha causara no
coração de Félix, e quis garantir a intervenção do jovem em seu
favor prometendo-lhe a mão da filha em casamento assim que fosse
levado a local seguro. Félix era correto demais para aceitar essa
oferta, mas via com grande expectativa essa probabilidade de
consumar sua felicidade.
Nos dias que se seguiram, enquanto corriam os preparativos para
a fuga do mercador, o zelo de Félix foi estimulado por várias cartas
que recebeu dessa adorável jovem, que encontrou uma maneira de
expressar seus pensamentos na língua de seu pretendente com
ajuda de um velho criado de seu pai, que dominava bem o francês.
Ela agradeceu nos termos mais efusivos os serviços que o jovem
pretendia prestar a seu pai e, ao mesmo tempo, lamentou com
discrição seu próprio destino.
Fiz cópias dessas cartas, pois durante minha residência na
choupana, consegui arrumar os apetrechos necessários à escrita, e
as cartas costumavam ficar nas mãos de Félix ou de Agatha. Antes
de partir, irei dá-las a você, e elas servirão para provar a veracidade
da minha história. Mas de momento, como o sol já declinou
bastante, terei tempo apenas de repetir o seu conteúdo.
Safie contava que sua mãe era uma árabe cristã, que havia sido
capturada e escravizada pelos turcos. Destacando-se pela beleza,
conquistara o coração do pai de Safie, que se casou com ela. A
jovem referia-se em termos altamente elogiosos à mãe, que,
nascida em liberdade, abominava a servidão a que estava agora
reduzida. Ela instruíra a filha nos preceitos da sua religião, e
ensinou-a a aspirar a poderes intelectuais mais elevados e um
espírito de independência, proibidos às mulheres seguidoras de
Maomé. Essa senhora havia morrido, mas suas lições ficaram
gravadas de modo indelével na mente de Safie, que se revoltava
com a perspectiva de voltar para o Oriente e ser enclausurada nas
quatro paredes de um harém, onde teria permissão apenas de se
ocupar com passatempos pueris, inadequados ao temperamento de
sua alma, agora acostumada a ideias grandiosas e à nobre busca
da virtude. A perspectiva de se casar com um cristão e de
permanecer em um país onde as mulheres podiam ocupar um lugar
na sociedade lhe parecia encantadora.
O dia da execução do turco foi marcado, mas na noite anterior ele
fugiu da prisão, e antes do amanhecer já estava a várias léguas de
Paris. Félix providenciara salvo-condutos para seu pai e sua irmã e
para ele próprio. Comunicara seu plano previamente ao pai, que
contribuíra com o estratagema saindo de casa, alegando que iria
viajar, mas escondendo-se com a filha em uma parte recôndita de
Paris.
Félix conduziu os fugitivos pela França até Lyon, e cruzaram o
Monte Cenis até Livorno, onde o mercador decidira aguardar uma
oportunidade favorável de passar para alguma parte dos domínios
turcos. Safie decidiu permanecer com o pai até a hora de sua
partida, tendo o turco, antes disso, renovado sua promessa de que
ela se uniria ao seu salvador. E Félix continuou com os dois, na
expectativa desse evento, desfrutando, nesse ínterim, da companhia
da árabe, que demonstrava o afeto mais sincero e terno.
Conversavam com o auxílio de um intérprete, e, às vezes,
simplesmente trocando olhares, e Safie cantava para ele as divinas
árias de seu país natal.
O turco permitia essa intimidade e incentivava as expectativas
dos jovens amantes, mas no íntimo abrigava planos bem diferentes.
Odiava a ideia de que a filha se casasse com um cristão, mas temia
que Félix se ressentisse se ele mostrasse pouco entusiasmo com a
ideia, pois sabia que estava ainda em poder de seu salvador
denunciá-lo ao estado italiano onde se encontravam. Examinou mil
planos por meio dos quais pudesse prolongar a farsa até que não
fosse mais necessária e conseguisse levar a filha com ele ao partir.
Seus planos foram enormemente facilitados pelas notícias que
chegaram de Paris.
O governo da França ficou furioso com a fuga de sua vítima, e
não poupou esforços para identificar e punir seu salvador. O plano
de Félix foi logo descoberto, e De Lacey e Agatha foram presos. A
notícia chegou a Félix, fazendo-o acordar de seu sonho de
felicidade. O pai, idoso e cego, e sua doce irmã estavam em um
fétido calabouço, enquanto ele desfrutava de liberdade e da
companhia daquela que amava. Essa ideia era torturante para ele.
Combinou então com o turco que, se este tivesse oportunidade de
fugir antes que Félix retornasse à Itália, Safie ficaria em um
convento em Livorno. Então, separou-se da adorável árabe, correu
de volta a Paris e entregou-se à vingança da lei, esperando com
isso libertar De Lacey e Agatha. Não foi, porém, bem-sucedido, e
ficaram presos por cinco meses até o julgamento, que os privou de
sua fortuna e condenou-os ao exílio perpétuo de seu país natal.
Os três conseguiram refúgio naquele miserável chalé da
Alemanha, onde os encontrei. Félix não demorou a saber que o
traiçoeiro turco, por quem ele e sua família suportaram castigo tão
inaudito, ao saber que seu salvador fora reduzido à pobreza e à
impotência traiu os bons sentimentos e a honra e fugiu da Itália com
a filha, enviando a Félix, de maneira afrontosa, uma ninharia em
dinheiro, para ajudá-lo, segundo disse, em algum plano futuro que
tivesse para o próprio sustento.
Eram esses os eventos que fustigavam o coração de Félix na
primeira vez que o vi, e que faziam dele o mais infeliz de sua família.
Ele poderia ter suportado a pobreza, como um preço a pagar por
sua virtude, e até vangloriar-se disso; mas a ingratidão do turco e a
perda de sua amada Safie eram infortúnios mais amargos e
irreparáveis. Agora, a chegada da árabe infundia nova vida à sua
alma.
O mercador, ao receber em Livorno a notícia de que Félix havia
sido destituído de sua riqueza e posição social, ordenou que a filha
nunca mais pensasse no amado e que se preparasse para voltar
com ele ao seu país natal. A natureza generosa de Safie sentiu-se
ultrajada por essa ordem. Ela tentou argumentar com o pai, mas ele
não quis conversar e retirou-se, furioso, reiterando sua ordem
tirânica.
Poucos dias depois, o turco entrou apressado nos aposentos da
filha e disse ter razões para crer que sua residência em Livorno
havia sido delatada, e que poderia ser entregue a qualquer
momento ao governo francês. Portanto, contratara um barco para
levá-lo a Constantinopla, e partiria em poucas horas. Pretendia
deixar a filha aos cuidados de um criado de confiança, para que o
seguisse depois, com mais tranquilidade, e levasse a maior parte de
seus pertences, que ainda não haviam chegado a Livorno.
Ao ver-se sozinha, Safie elaborou um plano de ação para aquela
emergência. Residir na Turquia era uma ideia abominável, e sua
religião e sentimentos também eram avessos a isso. Por meio de
alguns papéis do pai que lhe chegaram às mãos, soube do exílio de
seu amado e descobriu o nome do lugar onde residia. Hesitou um
tempo, mas por fim decidiu. Levando consigo algumas joias que lhe
pertenciam e uma pequena soma em dinheiro, saiu da Itália com
uma criada, nativa de Livorno mas que compreendia a língua da
Turquia, e partiram para a Alemanha.
Chegou sã e salva a uma cidade a cerca de vinte léguas do chalé
de De Lacey, onde sua criada caiu gravemente enferma. Safie
cuidou dela com o mais dedicado desvelo, mas a pobre morreu, e a
árabe ficou sozinha, sem saber a língua do país e ignorando
totalmente os costumes locais. Felizmente, porém, caiu em boas
mãos. A italiana mencionara o nome do lugar para onde estavam
indo, e, após a morte dela, a mulher da casa em que haviam se
hospedado cuidou para que Safie chegasse em segurança ao chalé
de seu amado.
CAPÍTULO XV

– Essa era a história dos meus queridos aldeões. Ela me


impressionou profundamente. Aprendi, com os vislumbres da vida
social que ela descreve, a admirar as virtudes deles e a condenar os
males da humanidade.
Até então, considerava o crime um mal distante. A benevolência e
a generosidade estavam sempre diante de mim, incitando-me o
desejo de me tornar ator na agitada cena onde tantas qualidades
admiráveis eram solicitadas e exibidas. Mas, neste relato que faço
dos progressos do meu intelecto, não posso omitir um evento que
ocorreu no início do mês de agosto daquele mesmo ano.
Uma noite, durante minha costumeira visita ao bosque vizinho,
onde recolhia minha comida e trazia lenha para os meus protetores,
encontrei no chão uma valise de couro contendo várias peças de
roupa e alguns livros. Avidamente, trouxe aquele achado valioso
para a minha choupana. Por sorte, os livros estavam escritos na
língua cujos rudimentos eu adquirira no chalé; eram o Paraíso
perdido, um dos volumes de Vidas paralelas de Plutarco, e Os
sofrimentos do jovem Werther. A posse desses tesouros deu-me
muita alegria. Passei a estudar e a exercitar minha mente com
essas histórias, enquanto meus amigos se dedicavam às suas
ocupações de rotina.
É difícil descrever a você o efeito desses livros. Eles produziram
em mim uma infinidade de novas imagens e sentimentos que às
vezes me levavam ao êxtase, mas que, com maior frequência, me
lançavam na mais profunda depressão. Em Werther, além do
interesse da história simples e comovente, eram tantas as opiniões
emitidas e tantos os vislumbres sobre temas até então obscuros
para mim, que encontrei no livro uma fonte inesgotável de
especulação e assombro. As situações tranquilas e corriqueiras ali
descritas, combinadas com os elevados sentimentos e emoções,
que tinham como objeto algo fora do âmbito da personalidade
egoísta, combinavam bem com a experiência que eu tinha de meus
protetores e com as carências sempre vivas em meu íntimo. Mas via
o próprio Werther como o ser mais divino que jamais seria possível
contemplar ou imaginar. Seu caráter, embora sem nenhuma
pretensão, deixava profundas marcas. Suas inquirições sobre a
morte e o suicídio pareciam calculadas para me encher de
admiração. Eu não tinha intenção de entrar no mérito da questão,
mas tendia a concordar com as opiniões do herói, cuja morte chorei,
mesmo sem tê-la compreendido muito bem.
Enquanto lia, porém, aplicava muita coisa a meus próprios
sentimentos e à minha condição. Achava-me similar, embora ao
mesmo tempo estranhamente diferente dos seres sobre os quais lia
e de cujas conversas era ouvinte. Simpatizava com eles e
compreendia-os em parte, mas minha mente ainda não estava
formada. Eu não dependia de ninguém, não me relacionava com
ninguém. “A rota de minha partida ainda estava livre”, e não havia
ninguém para lamentar minha aniquilação. Meu físico era horrendo,
e minha estatura, gigantesca: o que isso significava? Quem era eu?
O que era eu? De onde vinha? Qual era meu destino? Eram
questões recorrentes, mas não conseguia resolvê-las.
O volume que eu possuía das Vidas paralelas de Plutarco
contava as histórias dos fundadores das antigas repúblicas. Esse
livro teve em mim um efeito muito diferente do produzido pelo
Werther. Com as imaginações de Werther, aprendi o que eram o
desalento e a tristeza, mas Plutarco revelou-me altos pensamentos,
elevou-me acima da miserável esfera de minhas próprias reflexões,
fazendo-me admirar e amar os heróis de épocas passadas. Muitas
das coisas que li no livro estavam acima da minha compreensão e
experiência. Tinha um conhecimento muito precário do que eram os
impérios, as extensões dos países, os grandes rios e os mares
infindáveis. Mas não fazia a menor ideia do que eram as cidades e
as grandes concentrações de homens. O chalé de meus protetores
havia sido a única escola na qual eu estudara a natureza humana,
mas esse livro descortinou novos e poderosos cenários de ação. Li
sobre homens que se dedicavam a afazeres públicos, que
governavam ou massacravam seres de sua espécie. Senti nascer
em mim uma tremenda admiração pela virtude e uma aversão às
más condutas – o quanto conseguia compreender o significado
desses termos, relativos como são, já que os aplicava apenas ao
prazer e à dor. Induzido por essas emoções, fui levado, como seria
de esperar, a admirar legisladores pacíficos, como Numa, Sólon e
Licurgo, em detrimento de Rômulo ou Teseu. As vidas patriarcais de
meus protetores fizeram com que essas impressões se arraigassem
em minha mente; se minha primeira apresentação da humanidade
tivesse sido feita por um jovem soldado, sedento de glória e de
matança, talvez eu tivesse me imbuído de sensações diferentes.
Já o Paraíso perdido estimulou outras emoções, bem mais
profundas. Li-o, do mesmo modo que os outros volumes caídos em
minhas mãos, como se fosse uma história verdadeira. Ele mexeu
com todos os sentimentos de assombro e reverência que o retrato
de um deus onipotente em confronto com suas criaturas é capaz de
despertar. Muitas vezes associei as diversas situações à minha, pois
a sua similaridade me impressionava. Como Adão, eu fora criado
sem estar unido aparentemente por nenhum laço a qualquer outro
ser existente. Mas a condição dele era bem diversa da minha em
todos os demais aspectos. Ele surgira das mãos de um deus como
uma criatura perfeita, feliz e próspera, protegido por seu Criador
com carinho especial, e com permissão de se comunicar com seres
de uma natureza superior e obter deles maior saber. Eu, porém, era
infeliz, indefeso e sozinho. Com frequência considerei Satã o
emblema que melhor refletia minha condição, pois muitas vezes,
como ele, ao ver a felicidade de meus protetores, sentia em mim o
amargo fel da inveja.
Outra circunstância fortaleceu e confirmou esses sentimentos.
Logo após minha chegada à choupana, descobri alguns papéis no
bolso da roupa que havia levado de seu laboratório. De início, não
lhes dei importância, mas agora que era capaz de decifrar os
caracteres com que haviam sido escritos, comecei a estudá-los com
atenção. Eram o diário dos quatro meses que precederam a minha
criação. Nesses papéis você descrevia em detalhes cada passo que
havia tomado no decorrer de seu trabalho. Esse histórico era
entremeado por relatos de ocorrências do dia a dia. Sem dúvida,
você deve se lembrar desses papéis. Aqui estão eles. Relatam tudo
o que se refere à minha malfadada origem. Aqui estão expostos
todos os detalhes dessa série de repugnantes circunstâncias que a
produziram, e a minuciosa descrição de minha odiosa e abominável
pessoa feita em uma linguagem que retrata seu próprio horror, que
tornou o meu indelével. Fiquei revoltado ao ler. “Maldito o dia em
que me foi dada a vida!”, exclamei em minha agonia. “Maldito
criador! Por que produzir um monstro tão horrendo que até mesmo
você rejeita com aversão? Deus, em sua misericórdia, fez o homem
belo e atraente, à sua imagem e semelhança; mas minha forma é
uma asquerosa cópia da sua, e a própria semelhança torna-a ainda
mais horrenda. Satã tinha seus companheiros, demônios também,
para admirá-lo e incentivá-lo, mas eu sou solitário e detestado.”
Essas eram as reflexões nas minhas horas de desalento e
solidão, mas ao contemplar as virtudes dos aldeões do chalé, sua
índole amável e benevolente, convencia a mim mesmo de que,
quando soubessem da minha admiração por suas virtudes, teriam
pena de mim e tolerariam minha deformidade. Como poderiam
rejeitar alguém que, embora monstruoso, vinha solicitar-lhes
compaixão e amizade? Decidi pelo menos não perder a esperança e
procurar, de todas as formas, me preparar para um encontro com
eles que decidiria meu futuro. Adiei essa tentativa por mais uns
meses, pois a importância que atribuía ao seu sucesso inspirou-me
o grande temor de que não desse certo. Além disso, vi que minha
compreensão aumentava tanto com a experiência do dia a dia que
não quis dar início ao empreendimento antes que alguns meses a
mais viessem aumentar meu saber.
Várias mudanças ocorreram nesse ínterim no chalé. A presença
de Safie espalhou felicidade entre seus moradores, e também
percebi que reinava maior abundância. Félix e Agatha passavam
mais tempo em diversões e conversas e eram auxiliados em seus
trabalhos por alguns criados. Não pareciam ricos, mas estavam
satisfeitos e felizes; seus sentimentos eram serenos e pacíficos,
enquanto os meus tornavam-se cada dia mais tumultuados. Meu
maior conhecimento serviu apenas para revelar com maior clareza o
quanto eu era um pária desgraçado. Alimentava esperanças, é
verdade; mas elas se desfaziam quando me contemplava refletido
na água ou via minha sombra à luz da lua, apesar da fragmentação
da imagem e da indefinição da sombra.
Esforçava-me para eliminar esses medos e fortalecer-me para o
desafio que eu decidira enfrentar em poucos meses. E às vezes
permitia que meus pensamentos, dispensando o exame da razão,
vagassem pelos campos do Paraíso, e ousava fantasiar que
criaturas amáveis e amorosas simpatizariam com meus sentimentos
e alegrariam minha tristeza com seus semblantes angélicos
oferecendo-me sorrisos de consolo. Mas era tudo um sonho: eu não
tinha uma Eva para aliviar minhas penas e com quem partilhar
pensamentos. Estava sozinho. Lembrei-me das súplicas de Adão ao
seu Criador, mas onde estava o meu? Ele me abandonara, e, com
amargura em meu coração, amaldiçoei-o.
O outono transcorreu assim. Vi com surpresa e pesar as folhas se
degradarem e caírem, e a natureza assumir outra vez aquele
aspecto árido e triste da primeira vez que contemplei os bosques e a
adorável lua. Mas não me importei com o rigor do tempo; meu físico
era mais bem equipado para suportar o frio do que o calor. Mas meu
maior prazer era a visão das flores, dos pássaros e de todas as
bênçãos do verão; quando isso me faltou, voltei-me com mais
atenção aos aldeões. Sua felicidade não diminuiu com a ausência
do verão. Continuaram amorosos e solidários, e as alegrias de seu
convívio não foram interrompidas pelas circunstâncias à sua volta.
Quanto mais os observava, maior meu desejo de solicitar sua
proteção e sua bondade. Meu coração ansiava ser conhecido e
amado por aquelas afáveis criaturas. Ver seu terno olhar voltado
para mim com afeto era o patamar mais alto da minha ambição. Não
ousava pensar que pudessem rejeitar-me com desdém e horror. Os
pobres que batiam à sua porta nunca eram mandados embora. Eu
pedia, é verdade, tesouros maiores do que um pouco de comida ou
abrigo; vinha pedir bondade e compaixão, mas não acreditava que
fosse absolutamente indigno disso.
O inverno seguiu adiante, e completava-se agora uma revolução
completa das estações desde que eu despertara para a vida. Minha
atenção, nessa época, estava concentrada apenas no plano de me
apresentar no chalé de meus protetores. Examinara vários projetos,
e acabei me fixando no de entrar na casa do velho cego quando ele
estivesse sozinho. Eu tinha astúcia suficiente para saber que o
aspecto hediondo e anormal da minha pessoa era o principal motivo
do horror daqueles que já me haviam visto. Minha voz, embora
áspera, não tinha nada de terrível. Portanto, pensei eu, se na
ausência de seus filhos eu pudesse conquistar a boa vontade e a
mediação do velho De Lacey, poderia, com sua ajuda, ser tolerado
por meus protetores mais jovens.
Um dia em que o sol brilhava sobre as folhas vermelhas caídas
pelo chão e espalhava alegria, embora negasse seu calor, Safie,
Agatha e Félix partiram para uma longa caminhada pelo campo, e o
velho, por vontade própria, ficou sozinho no chalé. Depois que os
filhos saíram, pegou seu violão e tocou várias árias, tristes mas
muito doces, mais doces e tristes do que eu já o ouvira tocar antes.
De início, seu semblante iluminava-se de prazer, mas foi aos poucos
assumindo um ar tristonho. A certa altura, deixando de lado o
instrumento, sentou-se, absorto em pensamentos.
Meu coração acelerou. Era essa a hora do desafio que iria
realizar minhas esperanças ou então tornar reais os meus medos.
Os criados tinham ido a uma feira nas vizinhanças. Tudo estava em
silêncio dentro e em volta do chalé: era uma excelente
oportunidade, mas, quando me propus a executar meu plano,
minhas pernas fraquejaram e desabei no chão. Levantei e,
conseguindo controlar minha força, removi as tábuas que colocara
na frente da choupana para ocultar meu refúgio. O ar fresco me
reanimou e, com renovada determinação, fui até a porta do chalé.
Bati.
– Quem é? – disse o velho. – Entre.
Entrei.
– Perdoe minha intromissão – disse eu. – Sou um viajante e
preciso descansar um pouco. Seria imensamente grato se me
permitisse ficar alguns minutos junto ao fogo.
– Entre – disse De Lacey –, e verei de que modo posso atender
às suas necessidades. Mas, infelizmente, meus filhos saíram, e
como sou cego receio que seja difícil arrumar-lhe algo para comer.
– Não se preocupe, meu gentil anfitrião, eu tenho comida. Só
procuro um pouco de calor e descanso.
Sentei-me, e seguiu-se um silêncio. Sabia que todo minuto era
precioso para mim, mas continuava hesitando sobre a maneira de
começar a conversa. Então o velho se dirigiu a mim.
– Pelo seu jeito de falar, forasteiro, suponho que seja meu
conterrâneo. Por acaso é francês?
– Não, mas fui educado por uma família francesa, e só
compreendo essa língua. Estou indo pedir a proteção de alguns
amigos, que amo sinceramente e que tenho a esperança de que
possam me ajudar.
– São alemães?
– Não, são franceses. Mas vamos mudar de assunto. Sou uma
criatura desventurada e desamparada. Olho em volta, e não tenho
nenhum parente ou amigo na face da Terra. Essas pessoas amáveis
que estou indo encontrar nunca me viram, e pouco sabem a meu
respeito. Estou com muito medo, porque se falhar com eles, serei
para sempre um proscrito no mundo.
– Não se desespere. Não ter amigos é de fato uma infelicidade,
mas o coração dos homens, quando desprovido de preconceitos
nascidos do óbvio egoísmo, é cheio de amor fraterno e de caridade.
Confie, portanto, nesses seus amigos. Se forem bons e amáveis,
não há por que se desesperar.
– Eles são bons, são as criaturas mais magníficas do mundo,
mas, infelizmente, têm preconceitos em relação a mim. Tenho boas
intenções. Até agora na minha vida não prejudiquei ninguém e tenho
até, em certa medida, beneficiado os outros. Mas há um preconceito
fatal que ofusca os olhos deles, e onde deveriam ver um amigo
sensível e bondoso, veem apenas um monstro detestável.
– Isso é de fato lamentável, mas se você realmente está isento de
culpa, será que não é capaz de esclarecer isso?
– Estou prestes a empreender essa tarefa, e é por isso que sinto
um receio tão avassalador. Amo ternamente esses amigos. Sem
que saibam, há muitos meses mantenho o hábito de prestar-lhes
pequenos serviços, e, mesmo assim, acreditam que pretendo fazer-
lhes mal, e é esse o preconceito que desejo ver superado.
– Onde moram esses seus amigos?
– Perto daqui.
O velho fez uma pausa e continuou.
– Se o senhor me relatar sem reservas as particularidades de sua
história, talvez isso ajude a fazer com que seus amigos superem
esse preconceito. Sou cego, e não posso julgar sua aparência, mas
há algo nas suas palavras que me faz crer que seja sincero. Sou um
pobre exilado, mas terei satisfação genuína em ser útil de alguma
maneira a uma criatura humana.
– O senhor é um homem muito bom. Eu lhe agradeço e aceito
sua generosa oferta. A sua bondade me dá novo ânimo, e confio
que com sua ajuda não perderei o convívio da sociedade e terei a
compaixão de seus semelhantes.
– Que os céus permitam! Pois, mesmo que o senhor fosse um
criminoso, isso só iria levá-lo ao desespero e afastá-lo da virtude.
Também sou um desventurado, e minha família foi condenada,
apesar de ser inocente. Portanto, não teria como não ser sensível
ao seu infortúnio.
– Como posso lhe agradecer, meu melhor e único benfeitor? De
seus lábios, ouço pela primeira vez a voz da bondade dirigir-se a
mim. Serei eternamente grato, e essa sua humanidade me faz
acreditar que terei sucesso com aqueles amigos que estou prestes a
encontrar.
– Posso saber os nomes e onde moram esses seus amigos?
Fiz uma pausa. Era este, pensei eu, o momento da decisão que
iria me roubar a felicidade ou concedê-la para sempre. Tentei em
vão criar coragem suficiente para responder ao velho, mas esse
esforço destruiu o que me restava de forças. Desabei na cadeira e
solucei alto. Nessa hora, ouvi os passos de meus protetores mais
jovens. Não tinha um segundo a perder e, tomando as mãos do
velho, gritei:
– É essa a hora! Salve-me e proteja-me! São você e sua família
os amigos que estou procurando. Não me abandone na hora da
minha provação!
– Meu Deus! – exclamou o velho. – Quem é você?
Nesse instante, a porta do chalé foi aberta e Félix, Safie e Agatha
entraram. Quem poderia descrever o horror e a consternação que
sentiram ao me ver? Agatha desmaiou, e Safie, sem condições de
ajudar a amiga, saiu correndo do chalé. Félix avançou como um
raio, e com uma força descomunal arrancou-me do pai dele, a cujos
joelhos eu me abraçara. Em um surto de fúria, atirou-me no chão e
golpeou-me violentamente com um pedaço de pau. Eu poderia tê-lo
despedaçado, membro por membro, como um leão destroça um
antílope. Mas meu coração ficou oprimido no peito com um
desespero amargo, e me contive. Vi-o prestes a repetir seu golpe, e
então, subjugado pela dor e pela angústia, decidi ir embora do
chalé, e no meio do tumulto geral recolhi-me, despercebido, à minha
choupana.
CAPÍTULO XVI

– Maldito, maldito criador! Por que continuei vivo? Por que não
extingui naquele instante a centelha de vida que com tamanha
petulância você me inculcou? Não sei dizer. O desespero ainda não
havia se apoderado de mim. Meus sentimentos eram de raiva e
desejo de vingança. Poderia com prazer ter destruído o chalé e seus
moradores, e me fartado com seus gritos e sua infelicidade.
Quando a noite chegou, saí de meu retiro e vaguei pelos
bosques. E agora, não mais refreado pelo medo de ser descoberto,
dei vazão à minha angústia com uivos assustadores. Era como um
animal selvagem rompendo as amarras, destruindo os objetos que
me obstruíam e varrendo o bosque com a rapidez de um cervo. Ah!
Que noite miserável passei! As frias estrelas brilhavam como se
zombassem de mim, e as árvores desfolhadas agitavam seus
galhos sobre minha cabeça; a intervalos, o doce canto de um
pássaro rompia um silêncio universal. Todas as coisas, exceto eu,
descansavam ou se satisfaziam; eu, como o arquidemônio, trazia
um inferno dentro de mim, e, vendo-me rejeitado, desejava
destroçar as árvores, espalhar o caos e a destruição à minha volta,
e depois sentar e desfrutar da visão das ruínas.
Mas essa era uma exuberância de sensações que não podia
durar. Fatiguei-me com o excesso de esforço físico e afundei na
grama úmida, na nauseante impotência do desespero. Entre a
miríade de homens, não havia sequer um que pudesse
compadecer-se de mim ou ajudar-me. E, contudo, deveria eu ter
bons sentimentos para com meus inimigos? Não: a partir daquele
momento, declarei guerra perpétua à espécie e, acima de tudo,
àquele que me havia formado e me lançado nessa desgraça
insuportável.
O sol nasceu. Ouvi vozes de homens e soube que era impossível
voltar ao meu refúgio naquele dia. Escondi-me, então, no mato
denso, decidido a dedicar as horas seguintes a refletir sobre minha
situação.
O sol agradável e o ar puro permitiram-me recuperar um pouco a
tranquilidade, e quando avaliei o que acontecera no chalé, tive que
admitir que havia sido precipitado demais em minhas conclusões.
Com certeza, agira de modo imprudente. Era evidente que minha
conversa colocara o pai a meu favor, e que fora uma tolice expor
minha pessoa ao horror dos filhos dele. Deveria ter feito o velho De
Lacey familiarizar-se comigo, e pouco a pouco me revelar ao resto
da família, quando já estariam preparados para a minha
aproximação. Mas não achava que meus erros eram irreparáveis e,
depois de ponderar muito, decidi voltar ao chalé, procurar o velho e
usar meus argumentos para trazê-lo para o meu lado.
Esses pensamentos me acalmaram, e à tarde caí em um sono
profundo, embora a febre de meu sangue não me permitisse ser
visitado por sonhos tranquilos. A horrível cena do dia anterior não
parava de passar diante dos meus olhos: as mulheres fugindo e o
enfurecido Félix arrancando-me dos pés de seu pai. Acordei
exausto, e como achava que já era noite, arrastei-me para fora de
meu esconderijo para buscar comida.
Depois de aplacar a fome, dirigi meus passos para o familiar
caminho que levava ao chalé. Tudo ali estava tranquilo. Enfiei-me
de novo na minha toca e permaneci em silêncio, à espera da hora
em que a família costumava se levantar. Essa hora passou, e o sol
já ia alto no céu, mas os moradores do chalé não apareceram. Senti
um tremor intenso, receando algum infortúnio terrível. O interior do
chalé estava às escuras, e não se ouvia nenhum movimento. Não
posso descrever a agonia desse suspense.
A certa altura, dois camponeses passaram por ali e pararam junto
ao chalé, iniciando uma conversa, acompanhada por veemente
gesticulação, mas eu não entendia o que diziam, pois falavam a
língua do país, diferente da dos meus protetores. Logo depois,
porém, Félix apareceu com outro homem; fiquei surpreso ao ver que
não havia saído do chalé naquela manhã, e aguardei ansiosamente
que o seu discurso me desse alguma pista do sentido de tudo
aquilo.
– Está levando em conta – disse o homem a Félix – que será
obrigado a pagar três meses de aluguel e que perderá a produção
de sua horta? Não quero tirar nenhuma vantagem indevida, portanto
peço que passe alguns dias reconsiderando sua decisão.
– Isso seria totalmente inútil – replicou Félix –, nunca mais
poderemos habitar seu chalé. A vida de meu pai corre grande risco,
devido à terrível circunstância que já lhe relatei. Minha esposa e
minha irmã nunca mais irão se recuperar do horror. Peço que
desista de argumentar comigo. Assuma a posse de seu imóvel e
deixe-me ir embora desse lugar.
Félix tremia fortemente enquanto dizia isso. Ele e seu
acompanhante entraram no chalé, no qual permaneceram alguns
minutos, e então partiram. Nunca mais vi nenhum dos membros da
família De Lacey.
Continuei o resto do dia no meu esconderijo, em um estado de
profundo e estúpido desespero. Meus protetores tinham ido embora
e rompido o único vínculo que me prendia ao mundo. Pela primeira
vez, sentimentos de vingança e ódio preencheram meu íntimo, e
não fiz esforço para contê-los. Deixei-me levar pela corrente e
entreguei minha mente à ofensa e à morte. Quando pensava em
meus amigos, na suave voz de De Lacey, nos olhos meigos de
Agatha e na exótica beleza da árabe, esses pensamentos se
desvaneciam, e uma torrente de lágrimas me trazia algum alívio.
Mas quando relembrava que haviam me rejeitado e abandonado, a
raiva voltava com toda a fúria, e, como era incapaz de machucar um
ser humano, voltava minha ira para os objetos inanimados. A noite
chegou, e então espalhei vários combustíveis em volta do chalé; e,
depois de destruir todos os vestígios de cultivo na horta, aguardei
com impaciência que a lua desaparecesse para dar início às minhas
operações.
A noite avançou, e um vento forte surgiu dos bosques e dispersou
as nuvens que haviam restado: raios rasgaram o céu como em uma
poderosa avalanche e produziram uma espécie de insanidade em
meu espírito, explodindo todos os limites da razão e da reflexão.
Pus fogo ao ramo seco de uma árvore e dancei furiosamente em
volta do amado chalé, os olhos ainda fixos no horizonte, cuja
beirada a lua quase tocava. Por fim, uma parte de seu orbe se
escondeu, e brandi meu galho. A lua mergulhou no horizonte, e,
com um potente grito, ateei fogo à palha, ao mato e aos arbustos
que havia coletado. O vento avivou o fogo, e o chalé foi logo
envolvido pelas chamas que se agarravam a ele e o lambiam com
suas labaredas bifurcadas e destruidoras.
Assim que me convenci de que nenhuma ajuda seria capaz de
salvar parte alguma daquela moradia, abandonei o local e procurei
refúgio nos bosques.
E agora? Com o mundo todo à minha frente, para onde deveria
dirigir meus passos? Decidi fugir para longe da cena dos meus
infortúnios. Mas, para alguém como eu, odiado e desprezado,
qualquer lugar seria igualmente horrível. A certa altura, veio-me à
mente você. Soube pelos seus papéis que era meu pai, meu criador.
E haveria alguém mais adequado para recorrer do que aquele me
dera a vida? Nas aulas que Félix ministrava a Safie, a geografia não
havia sido omitida: eu aprendera então a localização relativa dos
diferentes países da Terra. Você mencionava Genebra como o nome
de sua cidade natal, e foi para lá que decidi ir.
Mas como deveria me orientar? Sabia que teria que seguir na
direção sudoeste para chegar ao meu destino, mas meu único guia
era o sol. Não sabia os nomes das cidades pelas quais iria passar,
nem podia pedir informações a quem quer que fosse. Mesmo assim,
não me desesperei. Você era a única pessoa de quem poderia
esperar ajuda, embora não nutrisse outro sentimento por você a não
ser o ódio. Insensível e cruel criador! Você me dotara de percepções
e paixões, e depois me expulsara e entregara à humanidade como
um objeto de escárnio e horror. Mas só de você poderia reclamar
alguma piedade e reparação, e decidi procurar em você a justiça
que em vão tentara obter de algum outro ser dotado de forma
humana.
Minhas viagens foram longas, e suportei intensos sofrimentos.
Era o final do outono quando saí do distrito onde residira por tanto
tempo. Viajava só à noite, por medo de deparar com o rosto de um
ser humano. A natureza degradava-se à minha volta, e o sol já não
propiciava nenhum calor. Chuva e neve caíam ao meu redor; vi rios
imensos congelados, a superfície da terra endurecida, gelada e nua,
e eu sem abrigo. Oh, terra! Quantas vezes amaldiçoei a causa de
minha existência! Minha natureza mais afável desaparecera, e tudo
dentro de mim se transformara em amargura e ódio. Quanto mais
me aproximava de sua morada, mais profundamente sentia o
espírito de vingança inflamar meu coração. Caía neve, as águas
endureciam, mas eu não tinha descanso. Ia guiado por algumas
indicações naturais, e possuía um mapa do país, mas era comum
me afastar muito do meu caminho. A agonia dos meus sentimentos
não me dava trégua: não havia incidente do qual minha raiva e
infelicidade não extraíssem alimento. Mas um evento que ocorreu
ao chegar à fronteira da Suíça, quando o sol já recuperara seu calor
e a terra de novo começava a verdejar, confirmou de maneira
particular a amargura e o horror de meus sentimentos.
Eu geralmente descansava de dia e só viajava quando a noite me
ocultava do olhar do homem. Uma manhã, porém, ao constatar que
meu caminho se estendia por um bosque denso, decidi continuar
minha jornada depois que o sol nasceu. O dia, um dos primeiros da
primavera, alegrava até a mim mesmo, com o magnífico esplendor
do sol e uma brisa agradável. Senti reviverem emoções de
benevolência e prazer que julgava mortas há muito tempo. Meio
surpreso pela novidade dessas sensações, permiti-me ser levado
por elas e, esquecendo minha solidão e deformidade, ousei me
sentir feliz. Lágrimas suaves voltaram a cobrir minhas faces, e até
ergui meus olhos úmidos com gratidão para o abençoado sol, que
me trouxera tamanha alegria.
Continuei pelas sinuosas trilhas do bosque até chegar ao seu
limite, margeado por um rio profundo e rápido, sobre o qual várias
árvores inclinavam seus galhos, agora florescendo com a primavera
recém-chegada. Ali parei, sem saber direito que caminho tomar,
quando ouvi o som de vozes e me escondi à sombra de um cipreste.
Mal havia me ocultado quando uma jovem chegou correndo em
direção ao ponto em que estava escondido, rindo, como se
brincasse de fugir de alguém. Ela continuou sua fuga pela margem
íngreme do rio, mas de repente escorregou e caiu na correnteza
rápida. Saí às pressas do meu esconderijo e com muito esforço,
devido à intensidade da corrente, salvei-a, arrastando-a até a
margem. Ela estava sem sentidos, e fiz de tudo a meu alcance para
reanimá-la, mas fui interrompido pela aproximação de um
camponês, que provavelmente era a pessoa de quem ela brincava
de fugir. Quando me viu, o camponês partiu para cima de mim e,
arrancando a garota dos meus braços, correu em direção às partes
mais densas do bosque. Fui imediatamente atrás dele, sem saber
bem por quê, mas quando o homem viu que me aproximava,
apontou a arma que carregava e disparou. Caí no chão, e meu
agressor, com maior pressa ainda, embrenhou-se pelo bosque.
Era essa então a retribuição à minha bondade! Eu salvara um ser
humano da destruição e como recompensa contorcia-me agora com
a intensa dor de uma ferida que destroçara carne e osso. Os
sentimentos de benevolência e docilidade que experimentara alguns
momentos antes deram lugar a uma fúria infernal e ao ranger de
dentes. Incendiado pela dor, jurei eterno ódio e vingança à
humanidade. Mas a agonia pelo meu ferimento era maior. Meu pulso
ficou fraco, e desmaiei.
Durante algumas semanas levei uma vida miserável no bosque,
preocupado em fazer sarar o ferimento. A bala entrara no meu
ombro, e não sabia se o trespassara ou se ainda estava ali alojada.
De qualquer modo, não teria como extraí-la. Meus sofrimentos eram
intensificados também pela opressiva sensação de injustiça e
ingratidão, pela maneira com que me haviam sido infligidos.
Reiterava todos os dias minhas promessas de vingança – uma
vingança cabal e mortífera, que pudesse compensar os ultrajes e
agonias que havia suportado.
Após algumas semanas, minha ferida sarou, e continuei a
jornada. Os sofrimentos que suportei não eram mais aliviados pelo
sol esplendoroso ou pelas suaves brisas da primavera. Toda alegria
era apenas um escárnio, um insulto ao meu estado de desolação, e
me fazia sentir de maneira ainda mais dolorosa que eu não fora feito
para o desfrute e o prazer. Mas meus esforços agora se
aproximavam de seu término, e dois meses depois alcancei os
arredores de Genebra.
Anoitecia quando cheguei, e me recolhi a um esconderijo entre os
campos em volta da cidade, para ponderar de que modo entraria em
contato com você. Estava oprimido por fadiga e fome, e infeliz
demais para desfrutar da brisa suave da noite ou da visão de um pôr
do sol atrás das esplêndidas montanhas do Jura.
Nessa hora, uma breve soneca me aliviou das penúrias da
reflexão, mas foi perturbada pela chegada de uma linda criança, que
entrou correndo no recesso onde me escondera, com toda a
espontaneidade da infância. De repente, ao olhá-la, fui tomado pela
ideia de que aquela pequena criatura não tinha preconceitos, e
vivera muito pouco tempo para se imbuir do horror à deformidade.
Portanto, se pudesse capturá-la e educá-la como minha
companheira e amiga, não me sentiria tão desolado nessa terra
povoada.
Instigado por esse impulso, agarrei o menino quando passou e
trouxe-o para perto. Assim que me viu, cobriu os olhos com as mãos
e soltou um tremendo grito; afastei as mãos dele à força de seu
rosto e disse:
– Menino, o que significa isso? Não vou machucá-lo, ouça o que
vou lhe dizer.
Ele se debatia violentamente.
– Solte-me – gritava ele –, monstro! Infeliz, horroroso! Você quer
me cortar em pedaços e me comer. É um ogro. Solte-me, se não
vou chamar meu pai.
– Garoto, você nunca mais irá ver seu pai, terá que ficar comigo.
– Monstro horrível! Solte-me. Meu pai é magistrado, é o senhor
Frankenstein, ele irá puni-lo. Não se atreva a me raptar.
– Frankenstein! Então você é da família do meu inimigo, aquele a
quem jurei eterna vingança. Você será minha primeira vítima.
O menino ainda se debatia, e me cobriu de ofensas que levaram
meu coração ao desespero. Apertei sua garganta para silenciá-lo, e
um instante depois ele jazia morto a meus pés.
Contemplei minha vítima, e meu coração se encheu de exultação
e triunfo diabólico. Bati as mãos e exclamei:
– Também sou capaz de criar desolação! Meu inimigo não é
invulnerável. Essa morte irá deixá-lo desesperado, e mil outros
males irão atormentá-lo e destruí-lo.
Quando fixei meu olhar na criança, vi que algo brilhava em seu
peito. Peguei e vi que era o retrato de uma linda mulher. A despeito
de minha malignidade, aquela miniatura me enterneceu e me atraiu.
Fiquei alguns instantes apreciando com deleite seus olhos escuros,
emoldurados por longos cílios, e seus lábios adoráveis. Mas a certa
altura minha raiva voltou: lembrei que estava privado para sempre
das delícias que tão belas criaturas podiam conceder, e que aquela
cujo semblante eu contemplava, se olhasse para mim, iria mudar
aquele ar de divina benevolência para uma expressão de aversão e
horror.
Você se surpreende que tais pensamentos despertassem em mim
a raiva? O que me admira é apenas que naquela hora, em vez de
expressar minhas sensações com exclamações e agonia, eu não
tivesse me precipitado entre os homens e perecido na tentativa de
destruí-los.
Enquanto era dominado por essas emoções, deixei o local onde
havia cometido o assassinato e, procurando um esconderijo mais
afastado, entrei em um celeiro que me pareceu estar vazio. Uma
mulher dormia em cima de um pouco de palha. Era jovem, e na
realidade não tão bonita quanto aquela do retrato que eu guardava,
mas era de aparência agradável e radiante, na flor da sua juventude
e saúde. Eis aqui, pensei, uma daquelas que distribui sorrisos e
alegra os corações de todos, exceto eu. E então me inclinei sobre
ela e sussurrei “Desperte, linda criatura, seu amante está aqui, ele
daria a vida por um olhar de afeto de seus olhos. Minha amada,
desperte!”.
A moça agitou um pouco o corpo, e um calafrio de terror me
percorreu. Seria mesmo conveniente que despertasse, me visse e
amaldiçoasse, e me denunciasse como assassino? Certamente é o
que faria se seus olhos, agora no escuro, se abrissem e ela me
visse. O pensamento era insano e agitou o demônio em mim: não
era eu que devia sofrer, mas ela. Era ela quem deveria arcar com o
assassinato que eu cometera por estar para sempre privado de tudo
o que ela poderia me dar. Era nela que estava a raiz do crime. Pois,
então, que recebesse a punição! Graças às lições de Félix e às
sanguinárias leis dos homens, havia aprendido agora como
perpetrar maldades. Inclinei-me sobre a moça e coloquei a miniatura
com o retrato em uma das dobras de seu vestido. Ela se mexeu de
novo e eu fugi.
Perambulei por alguns dias pelo lugar onde essas cenas haviam
acontecido, às vezes desejando encontrar você, outras vezes
decidido a abandonar este mundo e suas misérias para sempre. Em
certo momento, vim para essas montanhas, e tenho vagado por
seus imensos recessos, consumido por uma paixão ardente que
apenas você pode satisfazer. Não iremos nos separar enquanto
você não cumprir minhas exigências. Estou sozinho e sou infeliz.
Nenhum homem irá se associar a mim, mas alguém que seja tão
deformado e horrível quanto eu não me negaria sua companhia.
Minha companheira terá de ser da mesma espécie que eu, ter os
mesmos defeitos. E só você pode criar esse ser.
CAPÍTULO XVII

A criatura terminou de falar e ficou olhando fixo para mim,


aguardando uma resposta. Mas eu me sentia desconcertado,
perplexo e incapaz de ordenar minhas ideias o suficiente para
compreender toda a extensão de sua proposta. Ele continuou.
– Você precisa criar uma fêmea para mim, com quem eu possa
viver trocando aqueles afetos necessários ao meu ser. Isso só você
pode fazer, e é o que eu lhe peço, como um direito que você não
pode me negar.
A última parte de seu relato acendera de novo em mim a raiva
que havia sido aplacada enquanto ele narrava sua vida pacífica
entre os aldeões. Mas quando ele disse isso, não fui mais capaz de
conter a ira que fervia dentro de mim.
– Recuso-me a fazê-lo – repliquei –, e nenhuma tortura arrancará
de mim esse compromisso. Você pode me achar o mais miserável
dos homens, mas nunca me fará parecer vil a meus próprios olhos.
Para que criar outro ser como você? Para que uma maldade
conjunta cause desolação ao mundo? Fora! Já lhe respondi. Pode
até torturar-me, mas jamais terá minha concordância.
– Você está equivocado – replicou o demônio –, e em lugar de
ameaçá-lo, contento-me em argumentar com você. Sou mau porque
sou infeliz. Afinal, não sou evitado e odiado por toda a humanidade?
Se você, meu criador, me fizesse em pedaços, seria um triunfo.
Considere isso e diga-me: por que eu deveria ter mais compaixão
pelos homens do que eles têm por mim? Se você pudesse me atirar
do alto de um daqueles precipícios gelados e destruir meu corpo,
obra de suas próprias mãos, não iria chamar isso de assassinato. E
por que, então, sou obrigado a respeitar os homens quando eles me
desprezam? Se pudesse conviver com eles em um intercâmbio de
bondade, iria dispensar-lhes, em vez de maldades, todos os
benefícios possíveis, com lágrimas de gratidão ao ver que os
aceitavam. Mas isso não é possível. Os sentidos humanos são
barreiras intransponíveis para a nossa união. Não devo, porém,
aceitar me submeter a uma escravidão abjeta. Vingarei as ofensas
que me são feitas: se não consigo inspirar amor, causarei medo. E
sobretudo a você, meu arqui-inimigo, por ser meu criador, juro-lhe
um ódio que nada poderá extinguir. Cuide-se: farei de tudo para
destruí-lo e não vou parar até deixar seu coração desolado, para
que amaldiçoe a hora em que nasceu.
Uma raiva demoníaca o animava enquanto dizia isso. Seu rosto
enrugava-se em contorções horríveis demais para serem
contempladas por olhos humanos. Mas a certa altura acalmou-se e
prosseguiu.
– Minha intenção é argumentar racionalmente. Essa paixão me é
prejudicial, pois você não aceita que é a causa desses meus
excessos. Se algum ser tivesse emoções benévolas a meu respeito,
eu as retribuiria centuplicadas e, em nome dessa criatura, faria as
pazes com a espécie toda! Mas esses meus sonhos de felicidade
são irrealizáveis. O que lhe peço é razoável e moderado. Peço-lhe
uma criatura do outro sexo, tão horrenda quanto eu: é uma
gratificação pequena, mas é tudo o que posso receber, e deverá me
contentar. Tem razão, seremos monstros, isolados do mundo, mas
por isso seremos ainda mais ligados um ao outro. Não teremos
vidas felizes, mas serão vidas inofensivas e sem a infelicidade que
agora sinto. Oh! Meu criador, faça-me feliz, permita-me sentir
gratidão por você por um único benefício! Faça-me ver que sou
capaz de despertar a compaixão de alguma coisa existente, não me
negue esse pedido!
Fiquei comovido. Estremeci quando pensei nas possíveis
consequências do meu consentimento, mas senti que havia justiça
em sua argumentação. Seu relato e os sentimentos que agora
exprimia comprovavam que era uma criatura de sensibilidade. E
será que eu, como seu criador, não lhe devia a porção de felicidade
que estivesse em meu poder conceder-lhe? Ele notou minha
mudança de sentimentos e continuou.
– Se concordar, nem você nem nenhum outro ser humano irá ver-
nos de novo: irei para as vastas extensões das selvas sul-
americanas. Meu alimento não é o do homem. Não destruo o
cordeiro e o cabrito para saciar meu apetite; bolotas de carvalho e
frutos silvestres dão-me suficiente nutrição. Minha companheira terá
a mesma natureza, e ficará satisfeita com a mesma comida.
Faremos nossa cama com folhas secas, o sol brilhará sobre nós
como brilha sobre o homem e fará nosso alimento amadurecer. O
quadro que lhe apresento é pacífico e humano, e você sem dúvida
sente que só poderá negar-me isso por uma frívola maldade,
derivada do poder e da crueldade. Embora tenha sido tão impiedoso
comigo, vejo agora um vislumbre de compaixão em seus olhos:
deixe-me aproveitar esse momento favorável e persuadi-lo a
prometer o que tão ardentemente desejo.
– Você propõe – repliquei eu – fugir dos locais onde habita o
homem para morar nas florestas onde os animais serão seus únicos
companheiros. Mas como poderá, você que tanto anseia pelo amor
e convívio humano, manter-se nesse exílio? Irá voltar e procurar de
novo a bondade deles e deparará com sua abominação. Suas
emoções malignas serão revividas, e terá então uma companheira
para ajudá-lo na tarefa de destruição. Isso não é possível. Pare de
argumentar, pois não irei consentir.
– Como são inconstantes seus sentimentos! Se um instante atrás
você estava comovido com minha exposição, por que de novo se
mostra insensível às minhas queixas? Juro a você, pela terra que
habito e por você que me fez, que, junto com a companheira que me
conceder, irei abandonar a proximidade com o homem e residir,
conforme for o caso, no mais selvagem dos lugares. Minhas paixões
malévolas já terão desaparecido, pois conhecerei a compreensão.
Minha vida transcorrerá em paz, e na hora da morte não irei
amaldiçoar aquele que me fez.
Suas palavras tiveram um estranho efeito em mim. Sentia
compaixão por ele, e às vezes também o desejo de consolá-lo. Mas
ao olhá-lo, quando via aquela asquerosa massa que se movia e
falava, meu coração se indignava e meus sentimentos se
transformavam em horror e ódio. Eu tentava abafar essas
sensações. Pensava que, apesar de não ter por ele nenhuma
solidariedade, tampouco tinha o direito de recusar-lhe aquela
pequena porção de felicidade que ainda estava em meu poder
conceder-lhe.
– Você jura – disse eu – que será inofensivo. Mas já não mostrou
um grau de maldade que tornaria razoável não confiar em você? E
quem me garante que essa não seria uma manobra escusa para
aumentar seu poder e obter um âmbito maior para perpetrar sua
vingança?
– Como assim? Não permitirei ser ludibriado, e exijo uma
resposta. Se não tiver vínculos nem afetos, o ódio e o mal serão a
parte que me cabe; mas receber o amor de outra pessoa irá eliminar
a causa dos meus crimes, e me tornarei alguém cuja existência será
ignorada por todos. Minhas maldades são fruto de uma solidão
forçada que abomino, e minhas virtudes irão aflorar
necessariamente quando puder viver em comunhão com outro
alguém como eu. Sentirei o afeto de um ser sensível, e passarei a
fazer parte da cadeia de existência e de acontecimentos da qual
agora estou excluído.
Fiz uma pausa e fiquei um tempo refletindo sobre tudo o que ele
relatara e sobre seus vários argumentos. Pensei na promessa de
virtudes que ele demonstrara no início de sua existência e nos seus
bons sentimentos, destruídos mais tarde pela repugnância e pelo
escárnio que seus protetores manifestaram por ele. Não deixei de
considerar, em minhas reflexões, seu poder e suas ameaças: uma
criatura capaz de sobreviver nas cavernas de gelo dos glaciares e
de se esconder da perseguição entre as fendas de precipícios
inacessíveis era um ser com faculdades que seria inútil tentar
enfrentar. Após longa pausa, concluí que, pela justiça que devia
tanto a ele quanto a mim e a meus semelhantes, deveria atender ao
seu pedido. Assim, voltando-me para ele, disse:
– Consinto em atender o seu pedido, desde que, a partir do
momento em que entregar às suas mãos uma fêmea para
acompanhá-lo em seu exílio, mantenha seu juramento solene de
sair da Europa para sempre e se manter longe de qualquer lugar
próximo de onde mora o homem.
– Eu juro – gritou ele –, pelo sol e pelo céu azul e pelo fogo de
amor que arde em meu coração que, se me conceder essa graça,
enquanto tais coisas existirem, você nunca mais irá me ver! Volte
para casa e comece a trabalhar; aguardarei seu progresso com
inexprimível ansiedade, e não tenha medo, pois só voltarei a
aparecer quando você tiver terminado.
Dito isso, foi embora de repente, talvez com receio de alguma
mudança nos meus sentimentos. Vi-o descer a montanha em
velocidade maior que a do voo de uma águia, e logo o perdi de vista
entre as ondulações do mar de gelo.
Sua história me ocupara o dia inteiro, e o sol já beirava o
horizonte quando ele partiu. Sabia que precisava me apressar para
descer até o vale, pois logo seria envolvido pela escuridão, mas
sentia o coração oprimido e meus passos eram lentos. O esforço de
trilhar os caminhos sinuosos e estreitos das montanhas e de ter que
firmar bem os pés deixou-me desconcertado, exaurido como estava
pelas emoções que os eventos do dia haviam suscitado. A noite já
ia alta quando cheguei ao ponto de descanso na metade do
caminho e me sentei ao lado da fonte. As estrelas brilhavam a
intervalos, conforme as nuvens passavam por elas. Escuros
pinheiros erguiam-se à minha frente, e aqui e ali uma árvore jazia
derrubada no chão: era uma cena de magnífica solenidade e agitou
estranhos pensamentos em meu íntimo. Chorei de amargura e,
batendo as mãos em agonia, exclamei:
– Oh! Estrelas e nuvens e ventos, aqui reunidos para zombar de
mim. Se realmente têm compaixão, esmaguem minhas sensações e
minha memória e reduzam-me a nada; ou então vão embora,
deixem-me sozinho aqui na escuridão.
Eram pensamentos desvairados e infelizes, mas não consigo
descrever o quanto o eterno cintilar das estrelas pesava sobre mim,
e como cada rajada de vento que ouvia lembrava um sombrio e
horrível siroco a ponto de me consumir.
Já amanhecera quando cheguei à vila de Chamonix. Em vez de
descansar, retornei imediatamente a Genebra. Nem em meu
coração era capaz de dar expressão às minhas sensações – elas
pesavam em mim como uma montanha, a ponto de destruir minha
agonia sob seu peso. Então voltei para casa e, ao entrar, encontrei-
os reunidos. Meu aspecto abatido e desfigurado despertou intenso
alarme, mas não respondi a nenhuma pergunta, mal pronunciei
palavra. Sentia como se tivesse sofrido um banimento, como se não
tivesse direito à compaixão deles, como se nunca mais pudesse
desfrutar de sua companhia. Mesmo assim, amava-os, sentia quase
adoração por eles. E para salvá-los, decidi dedicar-me à minha mais
abominável tarefa. A perspectiva de tal ocupação fez todas as
demais circunstâncias da existência passarem diante de mim como
se fossem um sonho. Apenas esse pensamento tinha para mim a
realidade da vida.
CAPÍTULO XVIII

Dias e dias e várias semanas se passaram após minha volta a


Genebra, e não conseguia criar coragem para retomar meu
trabalho. Temia a vingança do desapontado demônio, mas era
incapaz de superar minha aversão pela tarefa imposta. Sabia que
não poderia compor uma fêmea sem antes dedicar de novo vários
meses a um profundo estudo e a trabalhosas investigações. Ouvira
falar de algumas descobertas feitas por um filósofo inglês, e
conhecê-las era crucial para meu sucesso, por isso às vezes
pensava em obter a permissão de meu pai para uma visita à
Inglaterra com esse fim. Mas me aferrava a qualquer pretexto para
adiá-la, e não era capaz de me decidir a interromper a recém-
recuperada tranquilidade. Minha saúde, que até então piorara,
estava agora bem estável, e meu ânimo, quando não era acossado
pela memória de minha infeliz promessa, elevava-se na mesma
medida. Meu pai viu essa mudança com satisfação, e voltou seus
pensamentos para a melhor maneira de erradicar o que restava da
minha melancolia, que a toda hora retornava por surtos,
obscurecendo com um negror avassalador a promessa de um novo
sol a brilhar. Nessas horas, refugiava-me na mais perfeita solidão.
Passava dias inteiros sozinho em um barco no meio do lago,
observando as nuvens e ouvindo o murmúrio das ondas, apático e
em silêncio. Mas o ar fresco e o esplendor do sol quase sempre me
faziam recuperar algum grau de compostura, e ao voltar recebia os
cumprimentos de meus amigos, sorrindo com maior prontidão e com
uma disposição mais alegre.
Foi na volta de um desses passeios que meu pai, chamando-me
de lado, dirigiu-se a mim nos seguinte termos:
– Fico feliz, meu querido filho, ao ver que está retomando seus
antigos prazeres, e que parece voltar ao normal. No entanto, ainda
parece infeliz e evita nossa companhia. Conjeturei por algum tempo
qual poderia ser a causa disso, mas ontem me veio uma ideia, e se
ela tiver fundamento, peço que confirme. Manter reservas em
relação a um assunto como esse seria não só inútil, mas causaria
uma aguda tristeza em todos nós.
Estremeci com essa exortação, e meu pai prosseguiu:
– Confesso, meu filho, que sempre alimentei a expectativa de
você se casar com sua prima, como um laço que ampliaria nosso
bem-estar e como um esteio para minha velhice. Vocês estão
ligados desde a mais tenra infância, estudaram juntos e parecem,
tanto nas disposições como nos gostos, bastante adequados um ao
outro. Mas a experiência do homem é tão cega que aquilo que
concebo como o melhor auxílio ao meu plano talvez seja o que
possa destruí-lo de vez. É possível que você a veja apenas como
sua irmã, sem nenhum desejo de que se torne sua esposa. E quem
sabe já tenha encontrado o amor em outra mulher, e esse
compromisso de honra com sua prima o faça enfrentar uma luta
interna que talvez seja a responsável pela grande infelicidade que
parece sentir.
– Meu caro pai, fique tranquilo. Amo minha prima de maneira
terna e sincera. Nunca encontrei uma mulher que despertasse em
mim tanta admiração e afeto como Elizabeth. Minhas esperanças e
perspectivas futuras estão inteiramente ligadas à expectativa de
nossa união.
– A expressão de seus sentimentos sobre essa questão, meu
caro Victor, é o maior prazer que experimentei nesses últimos
tempos. Se você sente assim, com certeza ficaremos felizes, por
mais que os eventos presentes possam lançar uma sombra sobre
nós. Mas é justamente essa sombra, que parece ter se projetado
com tanta força sobre sua mente, o que desejo dissipar. Diga-me,
pois, se você tem alguma objeção à celebração imediata desse
casamento. Temos sido infelizes, e os acontecimentos recentes nos
tiraram aquela tranquilidade cotidiana que seria mais adequada à
minha idade e às minhas enfermidades. Você é bastante jovem,
mas, com a relativa fortuna que possui, não acho que um
casamento precoce interfira de modo algum em quaisquer planos
futuros de obter reconhecimento e prestar bons serviços. Não ache,
porém, que eu pretenda ditar a sua felicidade, ou que um adiamento
de sua parte possa me causar maiores inquietações. Interprete
minhas palavras como expressão de minha franqueza e responda-
me, eu lhe peço, com confiança e sinceridade.
Ouvi meu pai em silêncio, e durante um tempo não fui capaz de
lhe dar uma resposta. Revirei na mente uma sucessão de
pensamentos e esforcei-me para chegar a alguma conclusão. Ai de
mim! A ideia de uma união imediata com minha prima despertava-
me horror e desânimo. Estava obrigado por uma solene promessa,
que ainda não cumprira e não ousaria romper, pois, caso o fizesse,
que infortúnios de todo tipo não poderiam se abater sobre mim e
minha devota família! Poderia eu participar de uma festa com esse
peso mortal ainda amarrado ao pescoço e me fazendo curvar até o
chão? Teria que cumprir minha promessa e deixar o monstro partir
com sua parceira, antes de poder desfrutar do deleite de uma união
que, eu esperava, me trouxesse paz.
Lembrei-me também da necessidade que se impunha de viajar à
Inglaterra ou iniciar uma longa correspondência com os filósofos
daquele país, cujos conhecimentos e descobertas teriam utilidade
crucial para o meu empreendimento. Esse último método de obter
as informações necessárias era demorado e insatisfatório. Além
disso, eu nutria uma insuperável aversão à ideia de me envolver em
minha abominável tarefa dentro da casa de meu pai, mantendo ao
mesmo tempo as relações familiares com aqueles que amava.
Sabia que poderiam ocorrer mil tenebrosos acidentes, e o mais
ínfimo deslize poderia revelar uma história que deixaria horrorizados
todos aqueles que conviviam comigo. Tinha também noção de que
muitas vezes poderia perder o autocontrole, a capacidade de ocultar
as sensações angustiantes que se apoderariam de mim durante o
andamento da minha sobrenatural ocupação. Seria preciso que me
ausentasse de todos que amava enquanto estivesse debruçado
nisso. Uma vez iniciado o trabalho, logo conseguiria meu intento e
poderia ser restituído à minha família em paz e feliz. Depois de
cumprir minha promessa, o monstro partiria para sempre. Ou então
(assim minha fantasia se comprazia em imaginar) algum acidente
poderia destruí-lo nesse ínterim, colocando um ponto final em minha
escravidão.
Esses sentimentos ditaram minha resposta ao meu pai. Expressei
o desejo de visitar a Inglaterra, mas ocultei minhas verdadeiras
razões, vestindo meu desejo com um disfarce que não despertasse
nenhuma suspeita, ao mesmo tempo que lhe conferia uma urgência
e seriedade capazes de induzir meu pai facilmente a concordar. Ele
ficou contente em ver que, após aquele longo período de melancolia
tão absorvente, próxima da loucura em intensidade e efeitos, eu
ainda era capaz de extrair prazer da ideia de fazer uma viagem
como aquela. E esperava que essa mudança de ares e as diversões
variadas que me proporcionaria me fariam voltar totalmente refeito.
A duração de minha ausência foi deixada inteiramente a meu
critério – alguns meses ou, no máximo, um ano, foi o período
estipulado. Meu pai teve a bondosa precaução de assegurar que eu
tivesse companhia. Sem me comunicar previamente, arranjara, em
conluio com Elizabeth, para que Clerval se juntasse a mim em
Estrasburgo. Isso interferiria na solidão que almejava ter para a
realização de minha tarefa, mas, de qualquer maneira, no início de
minha jornada a presença de meu amigo não seria de modo algum
um estorvo, e na realidade até me alegrei, pois isso me pouparia de
muitas horas de reflexões solitárias e enlouquecedoras. Além do
mais, Henry poderia ser um anteparo entre mim e a intromissão de
meu inimigo. Afinal, se eu estivesse sozinho, não poderia ele me
impor sua abominável presença, para me lembrar de minha tarefa
ou acompanhar seu progresso?
Parti então para a Inglaterra, e ficou acertado que minha união
com Elizabeth teria lugar assim que retornasse. A idade avançada
de meu pai tornava as protelações extremamente inadequadas.
Para mim, havia uma recompensa, que prometi cumprir, por meus
detestáveis encargos – um consolo para meus incomparáveis
sofrimentos. Era a perspectiva de que no dia em que me libertasse
de minha miserável escravidão desposaria Elizabeth e esqueceria o
passado em união com ela.
Passei aos preparativos para a viagem, mas um sentimento me
assombrava e me enchia de medo e inquietude. Na minha ausência,
eu deixaria meus amigos sem saber da existência de seu algoz e
desprotegidos de seus ataques, pois ele poderia ficar exasperado
com minha partida. Mas ele prometera seguir-me aonde quer que eu
fosse. Será que me acompanharia à Inglaterra? Esse pensamento
era terrível por si só, mas também um alívio, já que pressupunha a
segurança de meus amigos. Minha agonia era pensar na
possibilidade de que o oposto disso viesse a acontecer. Mas durante
todo o período em que vinha sendo escravo de minha criatura,
permiti-me ser guiado pelos impulsos do momento, e minha intuição
indicava fortemente que o demônio iria me seguir, isentando minha
família do risco de suas maquinações.
Foi bem no final de agosto que parti de novo de meu país natal. A
viagem havia sido uma sugestão minha, e Elizabeth, portanto,
concordou. Mas ficou muito inquieta com a ideia de eu, longe dela,
poder sofrer a intromissão da infelicidade e da dor. Foi um desvelo
dela que me permitiu contar com a companhia de Clerval – e ainda
há homens cegos às milhares de pequenas circunstâncias às quais
uma mulher diligente está atenta. Ela queria muito me pedir que
apressasse meu retorno, mas mil emoções conflitantes a deixaram
muda, e despediu-se de mim calada, com lágrimas nos olhos.
Enfiei-me na carruagem que iria me levar, sem saber bem para
onde ia nem me importar com o que ocorria à minha volta.
Lembrava-me apenas, e foi com angústia amarga que pensei nisso,
de ter ordenado que meus instrumentos químicos fossem
empacotados e despachados comigo.
Com a mente cheia de imagens sombrias, passei por muitos
cenários belos e majestosos, mas mantinha o olhar fixo e ausente.
Só conseguia pensar na meta das minhas viagens e no trabalho que
iria me ocupar enquanto durassem.
Após alguns dias, vividos com indolência e desinteresse e
durante os quais percorri muitas léguas, cheguei a Estrasburgo,
onde esperei dois dias por Clerval. Ele chegou. Ai de mim, como era
grande o contraste entre nós! Ele mostrava vivo interesse em cada
nova paisagem, e ficava feliz quando via as belezas de um poente,
e mais feliz ainda ao ver o sol nascer e o início de um novo dia.
Apontava para mim as cores mutantes do cenário natural e os
aspectos que o céu ia ganhando.
– Isso é que é viver – gritou ele –, isso é que é desfrutar da
existência, meu amigo! Mas e você, caro Frankenstein, por que está
tão desanimado e triste?
Na verdade, ocupava-me com pensamentos sombrios e sequer
via a descida da estrela vespertina ou o nascer do sol dourado
refletido no Reno. E você, amigo, com certeza iria achar muito mais
interessante o diário de Clerval, que apreciava o cenário com os
olhos do sentimento e do deleite, do que ouvir minhas reflexões. Eu,
um pobre desgraçado, assombrado por uma maldição que me
fechava as portas a qualquer satisfação.
Havíamos combinado descer o Reno de barco, de Estrasburgo a
Roterdã, onde pegaríamos um navio para Londres. Nessa viagem,
passamos por muitas ilhas cobertas de salgueiros e vimos várias
cidades lindas. Descansamos um dia em Manheim, e no quinto dia
de nossa partida de Estrasburgo chegamos a Mainz. O curso do
Reno depois de Mainz torna-se muito mais pitoresco. O rio desce
rapidamente, serpenteando entre colinas não muito altas, mas
íngremes e com belas formas. Vimos muitos castelos em ruínas à
beira de precipícios, rodeados por bosques densos e escuros, altos
e inacessíveis. Essa parte do Reno na verdade tem uma paisagem
singularmente variada. Em um ponto, você vê colinas escarpadas,
castelos em ruínas no alto de tremendos precipícios, com o escuro
Reno correndo embaixo; e ao virar, de repente, por um promontório,
surge um cenário de vinhedos em todo o seu esplendor, com
margens verdejantes íngremes e um rio sinuoso, junto a cidades
populosas.
Viajamos na época da vindima, e ouvimos os cantos dos
trabalhadores enquanto deslizávamos pelo rio. Até eu, apesar da
mente deprimida e do ânimo sempre agitado por sentimentos
sombrios, encontrava prazer. Deitei no convés do navio e,
contemplando o céu azul sem nuvens, tive a impressão de me
embeber de uma tranquilidade que há muito tempo me era estranha.
E se essas eram minhas sensações, quem poderia descrever as de
Henry? Ele imaginava ter sido transportado para uma terra de fadas
e desfrutava de uma felicidade raramente experimentada pelo
homem.
– Vi as mais belas paisagens da minha terra – disse ele –, visitei
os lagos de Lucerna e Uri, onde as montanhas nevadas descem
quase perpendiculares até a água, projetando sombras negras e
impenetráveis, que poderiam compor um cenário soturno e
pesaroso não fossem as verdejantes ilhas que aliviam os olhos com
sua alegre presença. Vi esse lago agitado por uma tempestade,
quando o vento levantava redemoinhos de água, dando uma ideia
de como deve ser uma tromba d’água no vasto oceano, e as ondas
batiam com fúria na base da montanha, onde o padre e sua amante
foram arrasados por uma avalanche, e onde dizem que suas vozes
agonizantes são ainda ouvidas em meio às pausas dos ventos
noturnos. Vi as montanhas de La Valais e do Pays de Vaud, mas
esta região, Victor, agrada-me mais do que todas aquelas
maravilhas. As montanhas da Suíça são mais imponentes e
estranhas, mas há nas margens desse divino rio um encanto que
nunca vi igual. Veja aquele castelo que se projeta sobre o precipício,
e também o outro, naquela ilha, quase oculto entre a folhagem
daquelas belas árvores; e agora aquele grupo de peões voltando
dos vinhedos, e aquela vila meio escondida no recesso da
montanha. Ah, com certeza, o espírito que habita e guarda este
lugar tem uma alma mais harmonizada com o homem do que aquele
que forma a geleira ou que se retira para os picos inacessíveis das
montanhas de nosso país.
Clerval! Meu amado amigo! Mesmo agora, alegro-me em
relembrar suas palavras, e sem dúvida merece que me demore em
elogiá-las. Era um ser moldado na “própria poesia da natureza”. Sua
imaginação cheia de desvario e entusiasmo era moderada pela
sensibilidade de seu coração. Sua alma transbordava de ardentes
afetos, e sua amizade era daquela natureza devotada e maravilhosa
que, segundo as pessoas comuns, devemos buscar apenas na
imaginação. Mas até mesmo as afinidades humanas não eram
suficientes para sua mente ávida. As paisagens da natureza, que os
outros olham apenas com admiração, ele as amava ardorosamente:
O som da catarata
Enfeitiçava-o como uma paixão: a alta rocha,
A montanha e o bosque denso e sombrio,
Suas cores e formas, eram para ele então
Uma apetência; uma emoção, um amor,
Que não exigia encanto mais remoto
Que o dado pela razão, nem outro interesse
Que não fosse o propiciado pelo olhar.********
E onde existirá agora? Será que esse ser bondoso e adorável
perdeu-se para sempre? E essa mente tão repleta de ideias, de
imagens fantasiosas e magníficas, que constituíam um mundo cuja
existência dependia da vida de seu criador, terá essa mente
perecido? Será que existe agora apenas na minha memória? Não,
não é assim. Sua forma tão divinamente urdida e radiante de beleza
degradou-se, mas seu espírito ainda visita e consola este seu infeliz
amigo.
Perdoe-me essa efusão de pesar. Essas palavras inócuas são
apenas um pequeno tributo ao valor incomparável de Henry, mas
aliviam meu coração, transbordante da angústia criada pela sua
lembrança. Continuo com meu relato.
Depois de Colônia, descemos até as planícies da Holanda e
decidimos adiar o restante de nossa viagem, pois o vento era
contrário e a correnteza do rio, suave demais para nos ajudar. Ali
nossa viagem perdeu o interesse proporcionado pelo belo cenário,
mas em poucos dias chegamos a Roterdã, de onde seguimos por
mar até a Inglaterra. Foi em uma clara manhã dos últimos dias de
dezembro que vi pela primeira vez os rochedos brancos da Grã-
Bretanha. As margens do Tâmisa descortinaram nova paisagem.
Eram planas, mas férteis, e quase todas as cidades eram marcadas
pela lembrança de alguma história. Vimos o Forte de Tilbury, e nos
lembramos Invencível Armada espanhola, e também de Gravesend,
Woolwich e Greenwich, lugares dos quais ouvira falar ainda em meu
país.
Por fim, vislumbramos os inúmeros campanários de Londres, a
catedral de St. Paul acima de todo o resto e a famosa Torre da
história inglesa.
CAPÍTULO XIX

Londres passou a ser nossa residência. Decidimos ficar vários


meses naquela maravilhosa e célebre cidade. Clerval queria ter
contato com os homens de gênio e talento que despontavam
naquela época, mas esse era para mim um objetivo secundário.
Minha principal preocupação eram os meios de obter as
informações necessárias para cumprir minha promessa, e logo me
servi das cartas de apresentação que trouxera comigo, endereçadas
aos membros mais destacados da filosofia natural.
Se essa viagem tivesse ocorrido nos dias em que eu estudava e
era feliz, teria me proporcionado um prazer indizível. Mas uma praga
se abatera sobre minha existência, e visitei essas pessoas com o
único intuito de colher as informações que pudessem me fornecer
sobre a questão na qual meu interesse se concentrava, por motivos
tão terríveis. O convívio social, para mim, era maçante. Quando
ficava sozinho, podia ocupar a mente com as visões do céu e da
terra. A voz de Henry era um bálsamo, e me dava a ilusão de uma
paz transitória. Mas o contato com rostos agitados, com alegrias
banais trazia o desespero de volta ao meu coração. Via uma
barreira intransponível entre mim e meus semelhantes, uma barreira
marcada pelo sangue de William e Justine, e quando me vinham à
mente os eventos ligados a esses dois nomes minha alma se afligia.
Mas em Clerval eu via a imagem de meu antigo eu. Era
questionador e ansiava ganhar experiência e conhecimento. A
diferença de costumes era para ele uma fonte inesgotável de
aprendizagem e diversão.
Ele também perseguia um objetivo que havia tempos tinha em
mente. Seu projeto era visitar a Índia, pois achava que seu
conhecimento das várias línguas locais e as informações que
recolhera sobre a sociedade indiana lhe dariam meios de contribuir
materialmente para o progresso da colonização e do comércio
europeus. E apenas na Grã-Bretanha poderia avançar na execução
desse seu plano. Estava sempre ocupado, e a única coisa que o
deixava insatisfeito era meu aspecto tristonho e deprimido. Eu
tentava ocultar isso ao máximo, para não me tornar um empecilho
ao prazer que naturalmente alguém sente ao entrar em um novo
cenário de vida, quando não é perturbado por nenhuma
preocupação ou lembrança amarga. Muitas vezes preferia não
acompanhá-lo, alegando outros afazeres, só para ficar sozinho.
Começava agora também a juntar o material necessário para minha
nova criação, e isso era como uma tortura de pingos d’água
intermitentes caindo sobre minha cabeça. Cada pensamento a
respeito gerava uma angústia tremenda, e cada palavra dita em
alusão a essa criação fazia meus lábios tremerem e meu coração
palpitar.
Depois de alguns meses em Londres, recebemos carta de uma
pessoa da Escócia, que uma vez nos visitara em Genebra. Ele
mencionou todas as belezas de sua terra natal, e perguntou se não
seriam sedução suficiente para estendermos nossa viagem mais ao
norte, até Perth, onde residia. Clerval ficou vivamente interessado
em aceitar o convite, e eu, embora abominando a vida social,
desejava ver de novo montanhas e riachos e todas as obras
magníficas com as quais a natureza enfeita os lugares onde escolhe
residir.
Havíamos chegado à Inglaterra no início de outubro, e estávamos
agora em fevereiro. Assim sendo, decidimos iniciar nossa viagem
para o norte quando expirasse mais um mês. Nessa expedição, em
vez de seguirmos pela grande estrada até Edimburgo, preferimos
visitar Windsor, Oxford, Matlock e os lagos Cumberland, com a
intenção de concluir essa viagem por volta do final de julho.
Empacotei meus instrumentos químicos e o material que havia
recolhido e decidi terminar meu trabalho em algum recanto obscuro
das altas terras do norte da Escócia.
Saímos de Londres no dia 27 de março e ficamos uns poucos
dias em Windsor, vagando por sua bela floresta. Era um cenário
novo para nós, montanheses. Os imponentes carvalhos, a fartura da
caça e as manadas de majestosos cervos eram novidade para nós.
Dali fomos para Oxford. Ao entrar na cidade, nossas mentes
foram preenchidas pelas lembranças dos eventos que haviam tido
lugar ali há mais de um século e meio. Foi em Oxford que Carlos I
reuniu suas forças. A cidade permanecera fiel a ele, depois que a
nação inteira renegou sua causa para se juntar ao estandarte do
Parlamento e da liberdade. A memória desse desafortunado rei e
seus companheiros, o amável Falkland, o insolente Goring, sua
rainha e seu filho, deu um interesse particular a cada parte da
cidade que eles supostamente tinham habitado. O espírito dos
velhos dias fizera sua morada ali, e nos deliciamos rastreando seus
vestígios. Mesmo que esses sentimentos não tivessem oferecido
sua gratificação imaginária, o próprio aspecto da cidade já era, por
si só, de beleza suficiente para ganhar nossa admiração. As
faculdades são antigas e pitorescas, as ruas são quase magníficas
e o adorável Isis, que corre junto à cidade pelas campinas de um
verdor delicado, distribui-se em uma plácida extensão de águas, que
reflete sua imponente reunião de torres, campanários e cúpulas,
envolvidos por árvores centenárias.
Desfrutei daquela cena, mas minha satisfação era amargada
tanto pela memória do passado quanto pela antecipação do futuro.
Eu fora criado para uma felicidade pacífica. Nos dias da minha
juventude, nunca o descontentamento visitara minha mente, e se
alguma vez eu era tomado pelo ennui,******** a visão daquilo que é
belo na natureza ou o estudo do que há de excelente e sublime nas
produções do homem podiam sempre interessar meu coração e
conferir maleabilidade a meu espírito. Mas sou uma árvore atingida
por um raio que penetrou minha alma, e sentia então que deveria
viver para exibir o que logo deixarei de ser: o mísero espetáculo de
um ser humano desgraçado, digno de pena para os outros e
detestável aos próprios olhos.
Passamos um bom tempo em Oxford, vagando pelos arredores e
empenhados em identificar cada ponto que pudesse ter relação com
o período mais agitado da história inglesa. Nossas pequenas
excursões de investigação costumavam prolongar-se pelas
sucessivas descobertas que íamos fazendo. Visitamos o túmulo do
ilustre Hampden, e o campo onde esse patriota tombou. Por um
momento, minha alma elevou-se de seus humilhantes e
deprimentes medos para contemplar as divinas ideias de liberdade e
autossacrifício, das quais aquelas vistas eram os monumentos e
memoriais. Por um instante ousei me libertar das minhas correntes e
olhar em volta com um espírito livre e elevado. Mas o ferro havia
corroído minha carne, e naufraguei de novo, tremendo e
desesperançado, no meu miserável eu.
Saímos de Oxford com relutância e seguimos até Matlock, nossa
parada seguinte. A área rural nas vizinhanças dessa cidade era bem
parecida com a paisagem da Suíça, só que com cada um de seus
aspectos em escala menor, e as verdes colinas não eram coroadas
por Alpes nevados à distância, que no meu país natal estão sempre
presentes por trás das montanhas de pinheiros. Visitamos a
impressionante caverna e as pequenas vitrines dedicadas à história
natural, onde as curiosidades são expostas da mesma maneira que
nos acervos de Servox e Chamonix. Este último nome fez-me
estremecer quando pronunciado por Henry, e me apressei a sair de
Matlock, com a qual aquela terrível cena passou a ficar associada.
Depois de Derby, ainda seguindo para o norte, ficamos dois
meses em Cumberland e Westmoreland. Eu quase podia imaginar
que estava nas montanhas da Suíça. Os pequenos recortes de neve
que ainda restavam nas encostas norte das montanhas, os lagos e
os riachos espertos descendo pelas rochas eram visões familiares e
queridas. Ali também conhecemos algumas pessoas que quase
conseguiram me alegrar. O contentamento de Clerval era
proporcionalmente maior que o meu. Sua mente se expandia na
companhia de homens de talento, fazendo-o descobrir, na própria
natureza, capacidades e recursos maiores do que ele poderia
imaginar possuir na sua convivência com gente inferior a ele.
– Poderia passar a vida aqui – disse –, e no meio dessas
montanhas dificilmente sentiria falta da Suíça e do Reno.
Mas ele descobriu que a vida de um viajante encerra também
muita dor no meio de seus encantos. Os sentimentos são sempre
solicitados ao máximo, e quando começamos a desfrutar de algum
repouso, já nos vemos obrigados a largar aquilo que nos dá um
descanso prazeroso para ir atrás de algo novo, que mais uma vez
irá solicitar nossa atenção e que também será abandonado em
seguida em favor de outras novidades.
Mal acabávamos de visitar os vários lagos de Cumberland e
Westmoreland e de criar algum laço de afeto por alguns de seus
habitantes quando se aproximou a data de nosso encontro com o
amigo escocês, e seguimos viagem. De minha parte, não lamentei.
Já vinha negligenciando minha promessa há algum tempo e temia
os efeitos do desapontamento do demônio. Ele poderia ficar na
Suíça e perpetrar sua vingança em meus parentes. Essa ideia me
perseguia e atormentava em todos aqueles momentos que, não
fosse por isso, eu poderia aproveitar para ter repouso e paz.
Aguardava a chegada de cartas com uma impaciência febril: quando
demoravam, sentia-me infeliz e tomado por mil medos, e quando
chegavam e via o nome de Elizabeth ou de meu pai no remetente,
mal ousava ler e averiguar meu destino. Às vezes achava que o
demônio me seguia, e que poderia querer me apressar e me tirar de
minha negligência matando meu companheiro. Quando esses
pensamentos me possuíam, eu não largava Henry um segundo,
seguindo-o como sua sombra, para protegê-lo da fúria de seu
suposto destruidor. Sentia-me com a consciência pesada como se
tivesse cometido algum grande crime. Era inocente, mas havia por
certo atraído uma horrível maldição sobre a minha cabeça, tão
mortal quanto a de um crime.
Visitei Edimburgo com os olhos e a mente apáticos, embora essa
cidade tenha como interessar até o mais infeliz dos seres. Clerval
não gostou tanto dela quanto de Oxford, pois a antiguidade desta
última lhe era mais prazerosa. Mas a beleza e regularidade da nova
cidade de Edimburgo, seu romântico castelo e seus arredores, os
mais agradáveis do mundo, com a montanha Arthur’s Seat, o Poço
de São Bernardo e as Colinas Pentland, compensaram a mudança e
o encheram de alegria e admiração. Mas eu me impacientava para
chegar ao término da minha jornada.
Deixamos Edimburgo em uma semana, passando por Coupar, St.
Andrews e pelas margens do Tay até chegar a Perth, onde nosso
amigo nos aguardava. Mas eu não estava com ânimo para rir e
conversar com estranhos, ou participar de seus sentimentos ou
planos com aquele bom humor que se espera de um hóspede.
Assim, disse a Clerval que desejava fazer sozinho minha excursão
pela Escócia.
– Aproveitem bem – disse eu –, e vamos nos reencontrar aqui.
Talvez eu me ausente por um mês ou dois, mas peço-lhe que não
interfira em minhas andanças: permita-me um breve tempo de paz e
solidão, e quando eu voltar, espero que seja com um ânimo mais
leve, mais afinado com o seu temperamento.
Henry quis me dissuadir, mas, ao me ver determinado a seguir
esse plano, parou de argumentar. Suplicou que lhe escrevesse com
frequência.
– Preferiria estar com você – disse ele – nos seus passeios
solitários, do que com esse pessoal escocês que não conheço.
Apresse-se em voltar, então, meu caro amigo, para que eu possa
me sentir de algum modo em casa, o que não me será possível na
sua ausência.
Depois de me separar de meu amigo, decidi procurar algum
ponto remoto da Escócia e concluir ali minha obra no isolamento.
Não tinha dúvidas de que o monstro me seguia e que iria me
localizar quando eu terminasse, para poder receber sua
companheira.
Tomada essa resolução, atravessei as terras altas do norte e
escolhi uma das ilhas Órcades mais afastadas como meu local de
trabalho. Era um lugar adequado para um trabalho desse tipo,
pouco mais que um rochedo, com suas altas encostas
constantemente fustigadas pelas ondas. O solo era estéril, mal dava
para fornecer pasto a umas poucas vacas esquálidas e aveia para
seus habitantes, apenas cinco pessoas, com pernas e braços
esqueléticos que atestavam sua escassa alimentação. Legumes,
verduras e pão, quando se permitiam esses luxos, e até mesmo
água potável, tinham que ser trazidos do continente, que ficava a
uns oito quilômetros de distância.
Em toda a ilha havia apenas três cabanas miseráveis, e uma
delas estava vaga quando cheguei. Aluguei-a. Continha apenas dois
cômodos, ambos exibindo o abandono da mais absoluta penúria. O
teto de palha desabara, as paredes não tinham reboco e a porta se
desprendera das dobradiças. Ordenei que a casa fosse reparada,
comprei alguma mobília e tomei posse, algo que sem dúvida teria
causado alguma surpresa nos habitantes se todos os seus sentidos
não estivessem já embotados pela privação e pela sórdida pobreza.
Sendo assim, vivi sem ser observado ou perturbado, e mal me
agradeciam as ninharias de comida e roupas que lhes dava, tal o
grau em que o sofrimento entorpece até mesmo os sentidos mais
toscos dos homens.
Nesse retiro, dedicava as manhãs ao trabalho, mas à noite,
quando o tempo permitia, caminhava pela praia pedregosa, ouvindo
o rugir das ondas que batiam a meus pés. Era um cenário
monótono, mas em constante mudança. Pensei na Suíça. Era bem
diferente dessa paisagem desolada e espantosa. Lá havia
montanhas cobertas de vinhedos, e as casas distribuíam-se em bom
número pelas planícies. Seus belos lagos refletiam um céu azul e
amável, e quando suas águas se agitavam com os ventos, era como
uma mera brincadeira de criança travessa, em comparação com as
turbulências desse vasto oceano.
Assim dividia minhas ocupações ao chegar, mas com o passar
dos dias meu trabalho tornava-se mais horrível e fatigante. Às
vezes, ficava vários dias sem conseguir me persuadir a entrar em
meu laboratório; outras vezes, trabalhava dia e noite, a fim de
concluir minha obra. Na realidade, era um processo asqueroso
aquele em que estava envolvido. Na época de meu primeiro
experimento, uma espécie de entusiasmo frenético cegou-me para o
horror da minha tarefa. Minha mente ficava concentrada em levar
adiante meu trabalho, e meus olhos eram cegos aos horrores de
meus procedimentos. Mas agora me debruçava sobre a obra com
sangue frio, e meu coração muitas vezes revoltava-se com o
trabalho de minhas mãos.
Nessa situação, dedicado à mais detestável das ocupações e
imerso em uma solidão onde nada podia desviar um instante sequer
minha atenção da cena real em que estava envolvido, meu ânimo
ficou instável. Estava cada vez mais inquieto e nervoso. A toda hora
receava encontrar meu perseguidor. Às vezes me sentava com o
olhar fixo no chão, com medo de levantar os olhos e deparar com o
objeto que mais temia contemplar. Tinha medo de ficar longe da
vista de meus semelhantes e de andar sozinho e ser abordado por
aquele que vinha reclamar sua companheira.
De todo modo, continuei trabalhando, e minha obra já estava bem
avançada. Encarava sua conclusão com uma esperança hesitante e
ansiosa que eu não ousava questionar, mas que se mesclava com
obscuros maus presságios, deixando meu coração oprimido dentro
do peito.
CAPÍTULO XX

Uma noite, sentei-me no laboratório. O sol já se pusera e a lua


acabava de se erguer no horizonte do mar. Não havia luz suficiente
para trabalhar, e fiquei ocioso, fazendo uma pausa para avaliar se
deveria encerrar meu trabalho daquela noite ou apressar sua
conclusão, dedicando-lhe uma atenção incansável. Assim que me
sentei, veio-me à mente uma sucessão de pensamentos que me
levou a ponderar sobre os efeitos do que vinha fazendo. Três anos
antes, estivera envolvido do mesmo modo e criara um monstro cuja
barbaridade sem paralelo arrasara meu coração, preenchendo-o
para sempre com o mais amargo remorso. Estava agora prestes a
formar outro ser, cuja disposição eu também ignorava. Poderia
tornar-se dez mil vezes mais maligno que seu par, e deleitar-se no
próprio ato de perpetrar assassinatos e desgraças. O monstro jurara
abandonar a proximidade com os homens e esconder-se em locais
ermos, mas ela, não, e como tinha toda a probabilidade de se tornar
um animal pensante e racional, poderia recusar-se a cumprir um
pacto feito antes de sua criação. Os dois talvez se odiassem. A
criatura que já vivia odiava a própria deformidade; portanto, quem
poderia garantir que não viesse a nutrir uma abominação ainda
maior por tal deformidade ao vê-la diante dos seus olhos na forma
feminina? Ela também poderia nutrir-lhe aversão, diante da superior
beleza do homem. Talvez o abandonasse, e ele ficaria de novo
sozinho, exasperado com uma nova provocação, a de ser rejeitado
por alguém da própria espécie.
Mesmo que ambos saíssem da Europa e fossem habitar os
desertos do Novo Mundo, ainda assim um dos primeiros resultados
dos desejos que o demônio ansiava saciar poderiam ser os filhos, e
então uma raça de demônios se propagaria pela terra, o que talvez
tornasse a própria existência da espécie humana uma condição
precária e cheia de terror. Teria eu o direito de, em benefício próprio,
infligir essa maldição a gerações sem-fim? Eu me comovera com os
sofismas do ser que havia criado, e suas ameaças demoníacas
haviam embotado meus sentidos; mas agora, pela primeira vez,
tomava consciência da malignidade da minha promessa. Estremeci
ao pensar que as eras futuras poderiam me amaldiçoar, considerar-
me uma praga cujo egoísmo não hesitara em comprar a própria paz
ao preço da existência, quem sabe, de toda a raça humana.
Tremi, e meu coração fraquejou no peito quando, ao erguer o
olhar, vi, à luz da lua, o demônio espreitando pela janela. O
medonho esgar de um sorriso enrugava-lhe os lábios enquanto
olhava para mim, sentado ali a cumprir a tarefa que ele me
designara. Sim, havia me seguido naquelas viagens, vagara pelas
florestas, escondera-se em cavernas ou se refugiara em matagais
vastos e ermos, e vinha agora averiguar meu progresso e reclamar
o cumprimento de minha promessa.
Ao olhá-lo, vi em seu semblante a expressão da maldade e da
traição no mais alto grau. Pensei no quanto havia sido tresloucada
minha promessa de criar outro ser como ele, e, tremendo de
emoção, fiz em pedaços a coisa em que estava trabalhando. O
desgraçado viu-me destruindo a criatura em cuja futura existência
colocara sua ilusão de felicidade, e com um urro de desespero
demoníaco foi embora.
Saí do laboratório, tranquei a porta e fiz um voto solene de nunca
mais retomar meu trabalho. E então, com passos vacilantes, fui até
meu quarto. Estava sozinho. Não tinha com quem dissipar minha
tristeza e aliviar aquela devastadora opressão criada pelos
devaneios mais terríveis.
Passaram-se várias horas, e fiquei junto à janela olhando o mar,
que estava quase imóvel. Os ventos haviam cessado, e toda a
natureza repousava sob o olhar da tranquila lua. Apenas uns poucos
barcos pesqueiros pontuavam a água, e vez por outra a suave brisa
trazia o som das vozes dos pescadores. Senti o silêncio, embora
mal percebesse sua extrema profundidade, até que meus ouvidos
foram de repente atraídos para o som de remos batendo nas
imediações da praia e de uma pessoa desembarcando perto de
minha casa.
Poucos minutos depois, ouvi minha porta rangendo, como se
alguém tentasse abri-la sem fazer ruído. Tremi dos pés à cabeça.
Pressenti de quem se tratava e tive vontade de acordar um dos
camponeses que moravam em uma cabana não muito distante da
minha, mas fui dominado por uma sensação de desamparo, tão
frequente em alguns pesadelos, quando você em vão tenta fugir de
algum perigo iminente. Fiquei grudado ao chão.
A certa altura, ouvi o som de passos pelo corredor. A porta foi
aberta, e o desgraçado que eu temia apareceu. Fechando a porta,
chegou perto de mim e disse, baixinho:
– Você destruiu o trabalho que havia iniciado. O que pretende
com isso? Ousa quebrar sua promessa? Tenho suportado penúrias
e infelicidades. Saí da Suíça com você, fui me arrastando pelas
margens do Reno, entre suas ilhas de salgueiros, e galgando os
picos das montanhas. Durante vários meses tive como morada os
matagais da Inglaterra e os desertos da Escócia. Suportei fadigas
inimagináveis, além de frio e fome. Como ousa destruir minhas
esperanças?
– Vá embora! Estou quebrando minha promessa. Jamais criarei
outra criatura para ser tão deformada e perversa quanto você.
– Escravo! Eu antes argumentei com você, mas agora se mostra
indigno da minha condescendência. Lembre-se de que tenho poder.
Você acredita que já é infeliz, mas posso fazê-lo tão miserável que a
luz do dia há de lhe parecer odiosa. Você é meu criador, mas sou
seu mestre. Obedeça!
– Minha hora de fragilidade já passou, e seu poder também
chegou ao fim. Suas ameaças não podem me levar a praticar um
ato maldoso: ao contrário, confirmam minha decisão de não criar
para você uma companheira de perversões. Por que deveria eu, a
sangue frio, deixar à solta na Terra um demônio que se deleitaria na
morte e na maldade? Vá embora! Já tomei minha decisão, e suas
palavras só irão acirrar minha ira.
O monstro viu a determinação em meu rosto e rangeu os dentes,
de raiva impotente.
– Quer dizer então que todo homem irá encontrar uma esposa –
gritou ele – e cada animal terá seu parceiro, mas eu deverei
continuar sozinho? Eu tinha sentimentos de afeto, e foram
retribuídos com abominação e escárnio. Homem, você pode odiar,
mas tenha cuidado! Suas horas serão de apreensão e infelicidade, e
logo um raio irá se abater sobre você e retirar-lhe a felicidade de
uma vez por todas. Ou faz algum sentido que você seja feliz
enquanto eu chafurdo nesse infortúnio incomensurável? Você pode
acabar com todas as minhas outras paixões, mas a sede de
vingança irá permanecer. A partir de agora, a vingança há de ser
mais cara a mim do que a luz ou o alimento! Posso morrer, mas
antes, meu tirano e meu torturador, você irá amaldiçoar este sol que
ilumina sua desgraça. Cuidado, pois não tenho medo, e sou,
portanto, poderoso. Hei de espreitá-lo com a argúcia de uma
serpente, para que possa instilar-lhe veneno. Homem, irá se
arrepender das ofensas que me infligiu.
– Basta, demônio! E não infeste o ar com esses sons cheios de
malícia. Já lhe declarei minha resolução, e não sou covarde para me
curvar sob suas palavras. Vá embora. Minha decisão é inexorável.
– Está bem, irei embora. Mas lembre-se de que estarei com você
em sua noite de núpcias.
Avancei na direção dele e exclamei:
– Canalha! Antes de assinar minha sentença de morte, certifique-
se de que está de fato a salvo.
Eu o teria agarrado, mas ele esquivou-se e saiu da casa às
pressas. Em poucos minutos, vi-o em seu barco, avançando com a
rapidez de uma flecha pelas águas, e logo o perdi entre as ondas.
Tudo ficou de novo em silêncio, mas suas palavras ainda
ressoavam em meus ouvidos. Eu fervia de raiva e de vontade de
perseguir o assassino da minha paz e precipitá-lo no oceano.
Andava de lá para cá no quarto, irrequieto e perturbado, enquanto
minha imaginação compunha mil imagens para me atormentar e
espicaçar. Por que não o havia seguido e entrado com ele em
combate mortal? Mas eu o deixara partir, e ele se dirigira ao
continente. Sentia calafrios ao pensar na próxima vítima que poderia
ser sacrificada à sua insaciável vingança. E então relembrei suas
palavras: – “Estarei com você em sua noite de núpcias”. Essa então
seria a data fixada para o cumprimento de meu destino. Nessa hora
eu deveria morrer, e de uma vez por todas iria satisfazer e extinguir
sua maldade. Essa perspectiva não me despertava medo; no
entanto, pensei na minha amada Elizabeth – nas lágrimas dela e no
seu infinito pesar quando visse seu amado arrancado dela tão
barbaramente –, e senti lágrimas, as primeiras que derramava há
meses, correndo de meus olhos. Decidi não cair diante de meu
inimigo sem antes travar com ele uma luta encarniçada.
A noite seguiu adiante até que o sol se ergueu do oceano. Minhas
sensações se acalmaram, se é que aquilo podia ser chamado de
calma, quando a violência da raiva assentou-se nas profundezas do
desespero. Saí da casa, aquele horrendo cenário da contenda da
noite anterior, e andei pela beira do mar, que considerava quase
uma barreira instransponível entre mim e meus semelhantes – e, de
fato, passou por mim o desejo de que assim fosse. Desejei poder
passar o resto da minha vida naquela rocha árida, fatigado, por
certo, mas sem ser interrompido por nenhum impacto repentino de
sofrimento. Se retornasse, seria para ser sacrificado ou para ver
aqueles que mais amava morrerem nas garras de um demônio que
eu mesmo havia criado.
Andei pela ilha como um espectro inquieto, longe de tudo o que
amava e infeliz com essa separação. Ao meio-dia, com o sol já alto,
deitei na grama e fui dominado por um sono profundo. Ficara
acordado a noite inteira, meus nervos estavam agitados e meus
olhos, inflamados da vigília e infelicidade. O sono no qual
mergulhara revigorou-me, e ao acordar senti de novo como se
pertencesse a uma raça de humanos como eu, e comecei a refletir
com maior compostura sobre o que havia acontecido. Mesmo assim,
as palavras do demônio ainda vibravam em meus ouvidos como um
dobre fúnebre. Pareciam fazer parte de um sonho, mas eram nítidas
e opressivas como a realidade.
O sol já descera bastante, e eu permanecia sentado na praia,
saciando meu apetite, que se tornara voraz, com um bolo de aveia.
A certa altura, um barco pesqueiro atracou na praia, perto de onde
estava, e um dos homens trouxe-me um pacote. Eram cartas de
Genebra e uma de Clerval, pedindo que fosse me juntar a ele. Dizia
que estava desperdiçando seu tempo de maneira infrutífera ali, e
que as cartas dos amigos que havia feito em Londres pediam sua
volta para concluir a negociação já iniciada sobre seu
empreendimento na Índia. Não podia mais retardar sua partida, e
como sua viagem a Londres poderia ser seguida, mesmo antes do
que agora conjeturava, por sua viagem mais longa, insistia para que
lhe fizesse companhia o quanto antes. Rogava, portanto, que saísse
de minha solitária ilha e fosse encontrá-lo em Perth, para seguirmos
juntos para o sul. Essa carta de certo modo me fez voltar à vida, e
decidi abandonar minha ilha dali a dois dias.
No entanto, antes de partir, havia uma tarefa a ser realizada, e
estremeci ao pensar nela: precisava empacotar meus instrumentos
de química, e para isso teria que entrar no cômodo que fora o
cenário de meu odioso trabalho e manipular aqueles utensílios, cuja
visão despertava-me repugnância. Na manhã seguinte, ao nascer
do dia, juntei coragem suficiente e destranquei a porta do
laboratório. Os restos da criatura inacabada que eu havia destruído
jaziam espalhados pelo chão, e eu sentia quase como se tivesse
mutilado a carne de um ser humano. Parei para me recompor, e
entrei. Com a mão trêmula, trouxe os instrumentos para fora do
quarto, mas refleti que não deveria deixar as relíquias de meu
trabalho ali, pois excitariam o horror e a suspeita dos ilhéus.
Portanto, coloquei-os em uma cesta, junto com uma grande
quantidade de pedras, e decidi que naquela mesma noite iria atirá-
los ao mar. Nesse ínterim, sentei-me na praia e me dediquei a
limpar e organizar meu aparato químico.
Nada poderia ser mais definitivo do que a alteração ocorrida em
meus sentimentos desde a noite em que o demônio apareceu.
Antes, eu encarava minha promessa com um desespero sombrio,
como algo que, quaisquer que fossem as consequências, teria que
ser cumprido. Agora, porém, sentia como se um véu tivesse sido
removido de meus olhos e eu pudesse ver com clareza pela
primeira vez. Não me ocorria sequer por um instante a ideia de
retomar meu trabalho, e a ameaça que ouvira pesava nos meus
pensamentos, mas não achava que um ato voluntário de minha
parte pudesse evitá-la. Já decidira que o ato de criar outro ser como
o demônio que havia feito seria de um egoísmo indigno e atroz, e
tirava da mente qualquer pensamento que pudesse me levar a uma
conclusão diferente.
Entre duas e três da manhã a lua surgiu, e então, colocando
minha cesta a bordo de um pequeno bote, avancei até uns seis
quilômetros da praia. O cenário era absolutamente solitário: alguns
barcos voltavam para a terra, mas me afastei deles. Sentia-me
como se estivesse a ponto de cometer um crime terrível, e evitei
com uma ansiedade trêmula qualquer encontro com meus
semelhantes. A certa altura, a lua, que até então brilhava luminosa,
foi de repente coberta por uma densa nuvem, e aproveitei o
momento de escuridão para atirar minha cesta ao mar. Ouvi o ruído
borbulhante conforme a cesta afundava, e então naveguei para
longe daquele ponto. O céu ficou nublado, mas o ar era puro,
embora a brisa nordeste que chegava o fizesse esfriar um pouco.
Mas isso me revigorou e me encheu de sensações tão agradáveis
que decidi ficar mais um pouco ali. Fixei o leme em uma posição
reta e deitei no chão do bote. Nuvens escondiam a lua, estava tudo
escuro, e eu ouvia apenas o som da embarcação, conforme
avançava sua quilha pelas ondas. O murmúrio me embalava, e em
pouco tempo caí em um sono profundo.
Não sei quanto tempo permaneci nessa situação, mas quando
acordei o sol já havia subido bastante. O vento estava forte, e as
ondas o tempo todo ameaçavam a segurança de meu pequeno
bote. Constatei que o vento era nordeste e que devia ter me levado
para longe da costa onde embarcara. Esforcei-me para mudar meu
curso, mas logo descobri que, se repetisse essa manobra, o barco
iria imediatamente encher-se de água. Assim, o que me restou foi
navegar a favor do vento. Confesso que tive alguns instantes de
terror. Não dispunha de bússola e estava tão pouco familiarizado
com a geografia daquela parte do mundo que o sol era de pouco
auxílio. Poderia ter sido levado para o vasto Atlântico e sofrer todas
as torturas da inanição, ou ser engolido pelas ondas imensas que
rugiam e me fustigavam por todos os lados. Já estava no mar há
várias horas e sentia os tormentos de uma sede ardente, prelúdio de
meus outros sofrimentos. Olhei para o céu, coberto por nuvens que
corriam com o vento apenas para dar lugar a outras. Contemplei o
mar, talvez minha sepultura.
– Demônio – exclamei –, sua tarefa já está cumprida!
Pensei em Elizabeth, no meu pai e em Clerval, todos os que
haviam ficado e em quem o monstro poderia satisfazer suas paixões
sanguinárias e impiedosas, e mergulhei em um delírio tão
desesperador quanto assustador que, mesmo agora, quando a cena
está prestes a se fechar de vez diante de mim, tremo ao pensar
nela.
Algumas horas se passaram assim, mas, aos poucos, conforme o
sol descia em direção ao horizonte, o vento amainou até se tornar
uma brisa leve, e o mar ficou livre das vagas. Isso, porém, deu lugar
a uma forte ondulação. Senti enjoo e mal conseguia segurar o leme
quando avistei uma linha de altas terras na direção sul.
Quase esgotado como estava, da fadiga e do terrível suspense
suportado por várias horas, essa repentina certeza de vida foi como
um jorro de cálida alegria em meu coração, e lágrimas brotaram de
meus olhos.
Como são inconstantes nossas emoções, e como é estranho
esse amor com que nos apegamos à vida mesmo nos momentos de
maior aflição! Construí outra vela com parte de minha roupa, e fui
ansiosamente em direção à terra, que tinha um aspecto selvagem e
rochoso. Mas, à medida que chegava mais perto, fui logo
percebendo indícios de cultivos. Avistei barcos perto da praia, e de
repente me vi transportado de volta aos arredores da civilização.
Tentei avidamente discernir os contornos daquela terra e por fim
saudei a visão de um campanário surgindo por detrás de um
pequeno promontório. Como estava em um estado muito debilitado,
decidi velejar diretamente até a cidade, onde seria mais fácil
arrumar alimento. Por sorte, trazia dinheiro comigo. Assim que
contornei o promontório, avistei uma cidadezinha bem arrumada e
um bom porto, no qual entrei, com o coração pulando de alegria
pela minha inesperada salvação.
Enquanto me ocupava em amarrar o bote e arrumar as velas,
várias pessoas se reuniram naquele ponto. Pareciam muito
surpresas com minha aparência, mas, em vez de me prestarem
alguma ajuda, cochichavam entre si com gestos que em qualquer
outra situação teriam produzido em mim uma leve sensação de
alarme. Naquela hora, porém, simplesmente notei que falavam
inglês e, portanto, dirigi-me a elas nessa língua:
– Meus bons amigos – disse eu – teriam a bondade de me dizer o
nome desta cidade e de me informar onde me encontro?
– Você vai descobrir isso logo, logo – respondeu um homem em
tom grosseiro. – Talvez tenha chegado a um lugar que não seja
muito de seu agrado, mas não será consultado a respeito de onde
quer ficar, isso lhe garanto.
Fiquei muito surpreso com a resposta rude do estranho, e
também desconcertado ao perceber os semblantes contraídos e
zangados de seus companheiros.
– Por que responde de modo tão agressivo às minhas perguntas?
– repliquei. – Certamente não é habitual que os ingleses recebam os
estrangeiros de modo tão pouco hospitaleiro.
– Não sei – disse o homem – quais possam ser os costumes dos
ingleses, mas o dos irlandeses é odiar os canalhas.
Enquanto esse estranho diálogo prosseguia, notei que a multidão
crescia rapidamente. Os rostos expressavam uma mistura de
curiosidade e raiva, e isso me perturbou e, em certa medida, me
deixou alarmado. Perguntei onde podia encontrar uma pousada,
mas ninguém respondeu. Então decidi avançar, e um murmúrio se
ergueu da multidão que me rodeava. A certa altura, um homem de
aspecto mal-encarado deu um tapinha em meu ombro e disse:
– Venha, homem. Terá que me acompanhar até o senhor Kirwin,
para dizer quem é e o que veio fazer aqui.
– Quem é o senhor Kirwin? E por que devo dar-lhe explicações a
meu respeito? Este não é um país livre?
– Exato, senhor, é livre o suficiente para gente honesta. O senhor
Kirwin é um magistrado, e o senhor deverá prestar-lhe contas a
respeito da morte de um cavalheiro, encontrado assassinado aqui
na noite passada.
Essa resposta me alarmou, mas consegui me recompor. Eu era
inocente, e seria fácil provar isso. Assim, segui o homem em silêncio
e fui levado até uma das melhores casas da cidade. Estava prestes
a desabar de fadiga e fome, mas, rodeado pela pequena multidão,
achei mais político reunir todas as minhas forças, a fim de que
nenhuma fraqueza física pudesse ser interpretada como apreensão
ou consciência culpada. Mal sabia eu a calamidade que em alguns
momentos iria se abater sobre mim, cujo horror e desespero iriam
extinguir todos os temores de ignomínia e morte.
Devo aqui fazer uma pausa, pois precisarei de todas as minhas
forças para recuperar a memória dos assustadores eventos que
estou a ponto de relatar, com os detalhes apropriados que me
vierem à lembrança.
CAPÍTULO XXI

Fui logo levado à presença do magistrado, um senhor idoso


benevolente, com modos calmos e amáveis. No entanto, olhou-me
com alguma severidade e, virando-se para aqueles que me
conduziam, perguntou quem se apresentava como testemunha
daquele caso.
Cerca de meia dúzia de homens se adiantaram, e um deles,
selecionado pelo magistrado para depor, disse que saíra para
pescar na noite anterior com o filho e o cunhado, Daniel Nugent,
quando, por volta de dez da noite, observaram uma forte ventania
erguendo-se do norte e decidiram voltar ao porto. A noite estava
muito escura, pois a lua ainda não surgira. Não atracaram no cais, e
sim, como era costume deles, em um riacho três quilômetros
adiante. Ele desembarcou primeiro, carregando uma parte do
equipamento de pesca, e seus companheiros seguiram-no a alguma
distância. Andando pela areia, bateu o pé em algo e caiu estatelado
no chão. Seus companheiros foram até ele para ajudá-lo e, à luz de
uma lanterna, descobriram que havia tropeçado no corpo de um
homem que tudo indicava estar morto. A primeira suposição foi que
se tratava do cadáver de alguém que se afogara e fora atirado à
praia pelas ondas. Mas, ao examinarem melhor, constataram que as
roupas não estavam molhadas e que o corpo não estava frio.
Levaram-no na mesma hora até a cabana de uma velha perto dali, e
tentaram em vão restaurar-lhe a vida. Era um belo jovem, de uns
vinte e cinco anos de idade. Parecia ter sido estrangulado, pois não
havia sinal de violência, exceto a marca preta de dedos no pescoço.
A primeira parte desse depoimento não me interessou nem um
pouco, mas quando foi mencionada a marca dos dedos, lembrei-me
do assassinato de meu irmão e senti uma imensa agitação. Minhas
pernas tremeram, minha vista ficou nublada, e fui obrigado a me
apoiar em uma cadeira. O magistrado observava-me com atenção, e
sem dúvida extraiu um presságio desfavorável desse meu gesto.
O filho confirmou o relato do pai, mas, quando foi chamado,
Daniel Nugent disse ter absoluta certeza de que, logo antes da
queda de seu companheiro, havia visto um bote, com um único
homem dentro, a uma curta distância da praia, e, pelo que foi capaz
de julgar à luz de poucas estrelas, era o mesmo barco no qual eu
acabara de chegar.
Em seguida, ouviram o depoimento de uma mulher que morava
perto da praia e estava em pé à porta de sua cabana, aguardando a
volta dos pescadores, cerca de uma hora antes de saber da
descoberta do corpo, e que disse ter visto um barco, com apenas
um homem dentro, afastando-se da parte da praia onde o cadáver
depois seria encontrado.
Outra mulher confirmou o relato dos pescadores, dizendo que
haviam trazido o corpo para a casa dela. Não estava frio.
Colocaram-no em uma cama e massagearam-no, e Daniel foi até a
cidade procurar o farmacêutico, mas a vítima já estava sem vida.
Vários outros homens foram interrogados sobre o meu
desembarque, e concordaram que, com o forte vento norte que
soprara à noite, era bem provável que eu tivesse tentado navegar
durante horas, mas sido obrigado a voltar praticamente ao mesmo
lugar de onde partira. Além disso, tinham a impressão de que eu
havia trazido o corpo de outro lugar e que, por desconhecer a praia,
teria atracado no porto, ignorando que a cidade ficava perto de onde
eu depositara o cadáver.
O senhor Kirwin, ao ouvir esses testemunhos, quis que eu fosse
levado para a sala onde o corpo aguardava ser enterrado, para que
observassem o efeito que a visão dele produziria em mim. Essa
ideia provavelmente fora sugerida por eu ter demonstrado extrema
agitação ao ouvir a descrição de como o assassinato fora cometido.
Assim, fui levado pelo magistrado e por várias outras pessoas até a
pousada. Não tive como não sentir o impacto das estranhas
coincidências que haviam ocorrido naquela noite tumultuada, mas
levando em conta que, mais ou menos na mesma hora em que o
corpo havia sido encontrado, eu estivera conversando com várias
pessoas na ilha onde residira, sentia-me perfeitamente tranquilo
quanto às consequências de tudo aquilo.
Entrei no recinto onde jazia o cadáver e fui levado até o caixão.
Como posso descrever minhas sensações ao contemplá-lo? Ainda
me sinto consumido pelo horror, e não consigo relembrar esse
terrível momento sem um estremecimento de agonia que evoca
vagamente a angústia que senti ao reconhecê-lo. O julgamento, a
presença do magistrado e das testemunhas, tudo isso passa como
um sonho pela minha lembrança quando revejo o corpo inerte de
Henry Clerval estendido diante de mim. Perdi o fôlego e, atirando-
me sobre o corpo, exclamei:
– Será que minhas criminosas maquinações levaram embora
também a sua vida, meu caro Henry?! Eu já havia destruído duas
pessoas, e outras vítimas ainda aguardavam esse destino, mas
você, Clerval, meu amigo, meu benfeitor...
Minha constituição física não conseguiu mais resistir ao agônico
sofrimento que suportava, e fui retirado da sala acometido de fortes
convulsões.
Uma febre sobreveio a tudo isso. Fiquei dois meses acamado, à
beira da morte: meus delírios, como vim a saber mais tarde, eram
assustadores. Eu chamava a mim mesmo de assassino de William,
de Justine e de Clerval. Às vezes, suplicava aos que me atendiam
que me ajudassem a destruir o demônio pelo qual era atormentado.
Outras vezes, sentia os dedos do monstro já apertando minha
garganta e gritava bem alto de agonia e terror. Felizmente, como
falava na minha língua nativa, apenas o senhor Kirwin entendia o
que eu dizia, mas meus gestos e gritos desesperados bastavam
para assustar as outras testemunhas.
Por que não morri? Era mais infeliz do que qualquer homem
antes de mim pudesse ter sido, e por que então não mergulhava no
esquecimento e no repouso? A morte leva embora, na flor da idade,
muitas crianças que são a única esperança de seus amorosos pais;
quantas noivas e jovens amantes são vistos um dia no auge da
saúde e da esperança, e no dia seguinte tornam-se repasto de
vermes e da decomposição no túmulo! De que matéria era feito eu,
que conseguia resistir a tantos choques que, como uma roda a girar,
renovavam continuamente a tortura?
Mas estava condenado a viver e, dois meses depois, encontrei-
me, como se acordasse de um sonho, em uma prisão, estendido em
uma cama miserável, rodeado de guardas, carcereiros, ferrolhos e
de todo o triste aparato de uma masmorra. Era de manhã, lembro
bem, quando despertei para a consciência: esquecera os detalhes
do que havia ocorrido e sentia apenas que um grande infortúnio se
abatera de repente sobre mim. Ao olhar em volta, porém, e ver as
janelas gradeadas e a precariedade do ambiente no qual estava,
tudo veio como um relâmpago à minha memória, e soltei um gemido
de dor.
Esse som acordou uma senhora idosa que dormia em uma
cadeira ao meu lado. Era uma enfermeira contratada, esposa de um
dos carcereiros, e seu semblante expressava todas as más
qualidades que costumam caracterizar esse tipo de pessoa. Os
traços de seu rosto eram duros e rudes, como o das pessoas
habituadas a contemplar a miséria alheia sem demonstrar
compaixão. Seu tom de voz expressava sua total indiferença.
Dirigiu-se a mim em inglês, e sua voz soou-me familiar, como uma
voz que eu já ouvira em meio aos meus sofrimentos:
– Está melhor agora, senhor? – perguntou ela.
Respondi na mesma língua, com voz fraca:
– Acredito que sim, mas se tudo isso for verdade, e de fato eu
não estiver sonhando, lamento estar ainda vivo e sentir essa
infelicidade e esse horror.
– Quanto a isso – replicou a velha –, se o senhor se refere ao
cavalheiro que assassinou, acho que seria melhor mesmo que
estivesse morto, pois imagino que as coisas não andarão bem para
o seu lado, e que será enforcado quando forem realizadas as
próximas sessões. No entanto, isso não é da minha conta, estou
aqui para cuidar da sua saúde e deixá-lo em boas condições.
Cumpro meu dever com a consciência tranquila, e seria bom se
todos fizessem o mesmo.
Virei as costas, com aversão por aquela mulher capaz de dizer
coisas com tamanha falta de sensibilidade a uma pessoa que
acabava de ser salva do limiar da morte. Mas me sentia exangue e
sem forças para refletir sobre tudo o que havia acontecido. A série
inteira de eventos da minha vida parecia um sonho. Duvidava às
vezes que tudo aquilo fosse verdadeiro, pois nunca se apresentara
a mim com a força da realidade.
À medida que as imagens que pairavam em minha mente se
tornaram mais nítidas, minha febre aumentou. A escuridão ficava
mais densa ao meu redor. Eu não tinha ninguém por perto para me
trazer alívio com uma voz doce e amorosa. Nenhuma mão amiga
me apoiava. O médico veio e prescreveu remédios, e a velha os
preparava. Mas o primeiro mostrava total indiferença por mim, e a
velha ostentava claramente no rosto uma expressão de brutalidade.
Quem poderia se interessar pelo destino de um assassino, a não ser
o carrasco que iria receber sua paga?
Essas foram minhas primeiras reflexões, mas logo soube que o
senhor Kirwin me via com extrema benevolência. Reservara para
mim a melhor cela da prisão (por precária que fosse essa melhor
cela), e fora ele quem providenciara o médico e a enfermeira.
Raramente me visitava, é verdade, porque, embora fosse ardente
seu desejo de aliviar os sofrimentos de toda criatura humana, não
queria estar presente e ver as agonias e os deprimentes devaneios
de um assassino. Portanto, quando vinha era apenas para garantir
que eu não fosse negligenciado, e suas visitas eram curtas e a
intervalos bem espaçados.
Um dia, quando já me recuperava, sentei-me em uma cadeira,
com os olhos entreabertos, o rosto lívido como o de um morto,
dominado pela tristeza e pela infelicidade, e pensei que seria melhor
a morte do que permanecer assim, em um mundo repleto de tantas
desgraças. Cheguei uma vez a pensar se não seria preferível
declarar-me culpado e sofrer as penalidades da lei, mesmo sendo
menos inocente do que Justine havia sido. Tais eram meus
pensamentos quando a porta da cela foi aberta, e o senhor Kirwin
entrou. Seu semblante era afável e compassivo. Ele puxou uma
cadeira para perto da minha e dirigiu-se a mim em francês:
– Receio que este lugar seja muito chocante para você. Posso
fazer algo para deixá-lo mais confortável?
– Eu lhe agradeço, mas tudo o que o senhor menciona não tem
importância para mim: em toda a face da Terra não há conforto que
possa me aliviar.
– Sei que a compreensão de um estranho não constitui muito
alívio a alguém como o senhor, afetado por um infortúnio tão fora do
comum. Mas o senhor, assim espero, irá sair logo deste lugar
melancólico, pois certamente será fácil apresentar provas para
libertá-lo da acusação de ter cometido um crime.
– Isso é o que menos me preocupa: essa série de estranhos
eventos fez de mim o mais infeliz dos mortais. Considerando o
quanto fui e tenho sido perseguido e torturado, será que a morte
seria realmente algo nefasto para mim?
– Na realidade, nada poderia ser mais desafortunado e cruel do
que as estranhas circunstâncias que tiveram lugar ultimamente. O
senhor foi atirado, por algum acidente imprevisto, a essa praia,
conhecida por sua hospitalidade, e imediatamente preso e acusado
de homicídio. A primeira coisa que foi posta diante de seus olhos foi
o corpo de seu amigo, morto de maneira inexplicável e colocado em
seu caminho, como foi, por algum ser diabólico.
Enquanto o senhor Kirwin dizia isso, apesar da agitação que me
tomava pelo retrospecto de meus sofrimentos, vi também, com
considerável surpresa, que ele parecia ter amplo conhecimento
sobre mim. Suponho que meu semblante deve ter demonstrado de
algum modo meu espanto, pois o senhor Kirwin se apressou em
dizer:
– Foi apenas um ou dois dias após sua doença que tive a ideia de
examinar suas roupas, e descobri então alguns indícios, por meio
dos quais pude enviar a seus parentes um relato de seu infortúnio e
de sua doença. Encontrei várias cartas e, entre elas, uma que
descobri, ao abri-la, tratar-se de uma missiva de seu pai. Na mesma
hora escrevi a Genebra; passaram-se quase dois meses desde que
enviei essa carta. No entanto, o senhor ainda está doente, ainda
treme, não tem condições de suportar qualquer tipo de agitação.
– Esse suspense é mil vezes pior do que o mais horrível dos
acontecimentos; conte-me que nova cena de morte foi produzida e
de quem devo agora lamentar o assassinato.
– Sua família está perfeitamente bem – disse o senhor Kirwin,
com delicadeza –, e alguém, um amigo, veio visitá-lo.
Não sei por meio de que sequência de pensamentos essa ideia
se apresentou, mas imediatamente imaginei que o assassino viera
zombar da minha infelicidade e demonstrar seu sarcasmo pela
morte de Clerval, como uma nova forma de me instigar a atender
aos seus infernais desejos. Coloquei a mão diante dos olhos e gritei,
em agonia:
– Oh, não, levem-no embora daqui! Não posso vê-lo. Pelo amor
de Deus, não o deixem entrar!
O senhor Kirwin olhou-me com uma expressão perturbada. Não
teve como não interpretar minha exclamação como presunção de
culpa, e disse, em tom grave:
– Imaginei, meu jovem, que a presença de seu pai seria bem-
vinda, e não que iria inspirar-lhe uma repugnância tão violenta.
– Meu pai! – gritei, ao mesmo tempo que cada traço do meu rosto
e cada músculo se distendiam e passavam da angústia ao prazer.
– Meu pai? Ele realmente veio? Que bom, que maravilha! Mas
onde está, por que não vem logo me ver?
A mudança de minha atitude surpreendeu e deixou o magistrado
satisfeito. Talvez tivesse achado que minha primeira exclamação
fosse uma volta momentânea ao estado delirante, mas o caso é que
retomou na mesma hora sua anterior benevolência. Pôs-se em pé e
saiu da cela junto com minha enfermeira, e no momento seguinte
meu pai entrou.
Nada poderia ter me proporcionado maior prazer naquele
momento do que a chegada de meu pai. Estendi a mão na direção
dele e gritei:
– Meu pai, o senhor está bem? E Elizabeth e Ernest?
Meu pai me acalmou ao garantir que todos estavam bem, e, ao
se demorar um tempo nesses assuntos tão caros ao meu coração,
conseguiu elevar meu ânimo abatido. Mas logo sentiu que uma
prisão não poderia ser a morada da alegria.
– Que lugar é esse que você está habitando, meu filho! – disse
ele, olhando com tristeza para as janelas gradeadas e o aspecto
miserável da cela. – Você viajou em busca da felicidade, mas
parece que uma fatalidade o persegue. E o pobre Clerval...
O nome de meu infeliz amigo assassinado promoveu uma
agitação grande demais para ser suportada pelo meu estado tão
fragilizado. Desatei a chorar.
– Ai de mim! Sim, meu pai – repliquei –, algum destino da mais
horrível espécie pesa sobre mim, e terei que viver para cumpri-lo, se
não com certeza já teria morrido no mesmo caixão de Henry.
Não nos permitiram conversar nem um segundo mais, pois minha
saúde precária exigia todas as precauções possíveis que
assegurassem minha tranquilidade. O senhor Kirwin entrou e insistiu
para que minhas energias não fossem ainda mais exauridas por
esforços adicionais. Mas a aparição de meu pai foi para mim como a
vinda de um anjo bom, e aos poucos fui recuperando a saúde.
À medida que a doença cedia, fui sendo absorvido por uma
densa e obscura melancolia, que nada conseguia dissipar. A
imagem de Clerval ficava o tempo todo diante de mim, pálido e
assassinado. Mais de uma vez, a agitação em que era lançado por
essas reflexões fez com que meus amigos temessem uma perigosa
recaída. Ai de mim! Por que insistiam em querer preservar uma vida
tão infeliz e detestável? Com certeza, para que pudesse cumprir
meu destino, que agora se aproximava de seu desfecho. Logo, logo,
sem dúvida, a morte irá extinguir essas palpitações e me aliviar
desse peso angustiante que me faz curvar até o chão. E quando
tiver sido feita justiça, também terei repouso. Então, a perspectiva
da morte estava distante, embora o desejo fosse sempre presente
em meus pensamentos, e eu passasse horas sentado, imóvel e
calado, aguardando alguma grande catástrofe que pudesse
enterrar-me e ao meu destruidor sob suas ruínas.
A época do julgamento se aproximava. Eu já passara três meses
na prisão e, apesar de estar ainda fraco e com risco constante de
uma recaída, fui obrigado a viajar quase cento e sessenta
quilômetros até a cidade onde o julgamento seria realizado. O
senhor Kirwin encarregou-se de todas as providências para reunir
as testemunhas e preparar minha defesa. Fui poupado do
constrangimento de aparecer em público como um criminoso, pois o
caso não foi levado a um tribunal que decidisse sobre vida e morte.
O grande júri rejeitou a acusação, por ter ficado provado que eu
estava nas ilhas Órcades na hora em que o corpo de meu amigo foi
encontrado, e quinze dias depois de ter sido transferido a essa
cidade, fui libertado da prisão.
Meu pai ficou imensamente feliz ao me ver livre do vexame de
uma acusação de homicídio e respirando de novo o ar livre, com
permissão de voltar ao meu país natal. Eu não compartilhava
desses sentimentos. Para mim, as paredes de um calabouço ou as
de um palácio eram igualmente odiosas. A taça da vida estava para
sempre envenenada, e embora o sol brilhasse sobre mim tanto
quanto sobre aqueles que eram felizes e tinham o coração leve, eu
via à minha volta apenas uma escuridão densa e assustadora,
impenetrável a qualquer luz, exceto ao brilho de dois olhos à minha
espreita. Às vezes eram os olhos expressivos de Henry, degradados
pela morte, seus círculos escuros quase cobertos pelas pálpebras,
emoldurados pelos longos cílios negros; outras vezes, eram os
olhos opacos e úmidos do monstro, como os vira da primeira vez em
minha sala em Ingolstadt.
Meu pai tentou despertar meus sentimentos de afeto. Falou de
Genebra, para onde eu voltaria em breve, de Elizabeth e Ernest.
Mas suas palavras apenas me fizeram gemer de sofrimento. Às
vezes, é verdade, eu sentia um desejo de felicidade, e pensava com
deleite melancólico na minha amada prima, ou ansiava, com uma
avassaladora maladie du pays,******** ver uma vez mais o lago azul e o
Reno, com sua correnteza ágil, que me haviam sido tão caros na
primeira infância. Mas em geral meu estado anímico era de torpor,
fazendo-me ver uma prisão como uma residência tão bem-vinda
quanto o mais divino cenário da natureza, e esses surtos raramente
eram interrompidos, a não ser por paroxismos de angústia e
desespero. Nessas horas, costumava me esforçar para pôr um
ponto final na existência que abominava, e era preciso uma
assistência e vigilância constantes para que não cometesse algum
terrível ato de violência.
Mas ainda me restava uma obrigação, e a lembrança dela
finalmente venceu meu desespero egoísta. Era necessário voltar
sem demora a Genebra, para tomar conta da vida daqueles que eu
tanto amava e ficar à espera do assassino, para que, se algum
acaso me levasse ao local onde se escondia ou ele ousasse
irromper à minha frente, eu pudesse, com decisão inabalável,
colocar um fim à existência daquela imagem monstruosa que eu
dotara de um arremedo de alma mais monstruoso ainda. Meu pai
ainda queria protelar um pouco nossa partida, com receio de que eu
não conseguisse aguentar as fadigas de uma viagem, já que era
alguém destroçado – a sombra de um ser humano. Minhas forças
tinham se exaurido. Era um esqueleto, e a febre noite e dia
acometia minha constituição desgastada.
Mesmo assim, diante da tamanha inquietação e impaciência com
que eu insistia em sair da Irlanda, meu pai julgou melhor ceder.
Embarcamos num navio com destino a Havre-de-Grâce e zarpamos
com bom vento da costa irlandesa.
Era meia-noite. Deitei no convés, olhando as estrelas e ouvindo o
bater das ondas. B endisse a escuridão que apagava a Irlanda da
minha visão, e senti o coração pulsar com uma alegria febril ao
pensar que em breve iria rever Genebra. Encarava o passado como
um sonho assustador, mas o navio em que estava, o vento que me
afastava da odiosa praia da Irlanda e o mar que me rodeava me
obrigavam a constatar que não estava sendo iludido por nenhuma
visão, e que Clerval, meu amigo e querido companheiro, havia de
fato morrido, vitimado por mim e pelo monstro que eu criara.
Repassei na memória minha vida inteira, minha tranquila felicidade
com a família em Genebra, a morte de minha mãe e minha partida
para Ingolstadt. Lembrei-me dos frêmitos de tresloucado entusiasmo
que me levaram à criação de meu horrendo inimigo, e trouxe à
mente a noite em que ele ganhou vida. Fui incapaz de acompanhar
essa série de pensamentos, pois mil angústias me acossaram, e
chorei amargamente.
Desde que me recuperara da febre, tinha por hábito tomar toda
noite uma pequena dose de láudano, pois era apenas por meio
dessa droga que conseguia ter o descanso necessário para a
preservação da vida. Oprimido pela lembrança de meus diversos
infortúnios, tomei então uma dose dupla e logo dormi
profundamente. Mas o sono não me trouxe alívio dos pensamentos
e da infelicidade. Meus sonhos faziam desfilar mil cenas
assustadoras. Quase de manhã, fui possuído por uma espécie de
pesadelo. Senti o monstro agarrando meu pescoço e não conseguia
me libertar dele. Gemidos e gritos ressoavam em meus ouvidos.
Meu pai, que cuidava de mim, percebendo minha angústia,
despertou-me. As ondas batiam em volta do navio, o céu acima de
nós estava nublado, mas o demônio não estava ali. Uma sensação
de segurança, um sentimento de ter se estabelecido uma trégua
entre o momento presente e o futuro ineludível e desastroso
concedeu-me uma espécie de tranquilo esquecimento, ao qual a
mente humana, por sua estrutura, é peculiarmente suscetível.
CAPÍTULO XXII

A viagem chegou ao fim. Desembarcamos e fomos para Paris.


Logo descobri que havia exigido demais de minhas forças e que
precisava repousar para ser capaz de seguir viagem. Meu pai era
infatigável em seus cuidados e atenções, mas não conhecia a
origem de meus sofrimentos e concebia métodos equivocados para
remediar a doença incurável. Queria que eu procurasse
entretenimento com outras pessoas. Eu abominava a face do
homem. Minto, não abominava, não! Eram meus irmãos, meus
semelhantes, e via-me atraído até pelos mais repulsivos, como
criaturas de natureza angelical e mecanismo celestial. Mas sentia
que não tinha direito de compartilhar de seu convívio. Havia
desacorrentado e soltado no meio deles um inimigo, cuja alegria era
derramar seu sangue e comprazer-se com seus gemidos. Todos e
cada um deles iriam me detestar e me expulsar do mundo se
soubessem dos meus atos profanadores e dos crimes que em mim
tinham sua origem!
Meu pai por fim cedeu ao meu desejo de evitar o convívio social e
tentou, por meio de vários outros argumentos, banir meu desespero.
Ele às vezes pensava que me sentia humilhado demais por ter sido
obrigado a me defender de uma acusação de assassinato, e então
se esforçava para me demonstrar a futilidade do orgulho.
– Ai de mim, meu pai! – eu dizia. – Quão pouco você me
conhece! Os seres humanos, seus sentimentos e paixões de fato
ver-se-iam rebaixados se um desgraçado como eu sentisse orgulho.
Justine, a pobre e infeliz Justine, era tão inocente quanto eu e
sofreu a mesma acusação, morrendo por causa dela, e eu sou o
causador disso, fui eu que a matei. William, Justine e Henry, os três
morreram pelas minhas mãos.
Durante meu aprisionamento, meu pai ouvira-me fazer essa
mesma afirmação várias vezes. Quando me via acusar-me desse
modo, às vezes parecia querer alguma explicação, outras vezes
dava a impressão de atribuir isso ao meu estado delirante, como se
minha doença tivesse feito surgir alguma ideia desse tipo na minha
imaginação e eu preservasse sua lembrança durante a
convalescença. Eu evitava dar explicações e mantinha silêncio em
relação ao monstro que havia criado. Tinha a sensação de que
deveria continuar a ser visto como um insano, e isso fez calar para
sempre minha língua. Mas, além disso, não podia me permitir
revelar um segredo que deixaria meu ouvinte consternado, e que
levaria o medo e o horror natural a residir em seu peito. Reprimi,
portanto, minha impaciente sede de compaixão e fiquei em silêncio
quando teria dado o mundo para poder confiar aquele segredo fatal.
Mesmo assim, palavras como essas que tenho mencionado
brotavam de modo incontrolável. Não era capaz de dar-lhes uma
explicação, mas sua verdade aliviava um pouco o fardo da minha
misteriosa infelicidade.
Em uma dessas ocasiões, meu pai perguntou, com uma
expressão de infinito assombro:
– O que você quer dizer com isso, Victor? Ficou louco? Querido
filho, peço-lhe que nunca mais faça essa afirmação.
– Não estou louco, pai – gritei com vigor –, o sol e os céus, que
têm assistido às minhas maquinações, podem testemunhar a
verdade disso. Eu sou o assassino daquelas vítimas totalmente
inocentes, elas morreram devido às minhas maquinações. Mil vezes
teria preferido verter meu próprio sangue, gota por gota, para salvar-
lhes a vida; mas não consegui, meu pai – na realidade, nem que
sacrificasse a humanidade inteira.
Minhas últimas palavras convenceram meu pai do transtorno de
minhas ideias, e ele na mesma hora mudou de assunto, procurando
desviar o curso de meus pensamentos. Ele queria o quanto possível
apagar da minha memória as cenas que haviam tido lugar na
Irlanda, e nunca fazia menção a elas ou me deixava falar sobre
meus infortúnios.
O tempo foi passando, e me acalmei. A infelicidade tinha morada
no meu coração, mas eu já não falava mais daquela maneira
incoerente a respeito de meus crimes. Bastava-me a consciência
deles. Na mais extrema violência que perpetrei contra mim, reprimi a
voz imperiosa da minha desventura, que às vezes desejava
declarar-se ao mundo inteiro. Minhas atitudes mostravam-se mais
tranquilas e contidas do que jamais haviam sido desde minha
viagem ao mar de gelo.
Poucos dias antes de sairmos de Paris e rumarmos para a Suíça,
recebi a seguinte carta de Elizabeth:
Meu querido amigo,
Tive a maior alegria ao receber uma carta de meu tio datada de
Paris. Você não está mais a uma tremenda distância, e posso ter a
esperança de vê-lo em menos de quinze dias. Meu pobre primo,
quanto deve ter sofrido! Imagino que irei encontrá-lo mais
adoentado ainda do que quando partiu de Genebra. Passei esse
inverno na maior tristeza, torturada por um ansioso suspense.
Mesmo assim, ainda espero ver paz no seu semblante e descobrir
que ainda resta em seu coração um pouco de conforto e
tranquilidade.
No entanto, temo que ainda persistam os mesmos sentimentos
que o fizeram tão infeliz há um ano, talvez até aumentados pelo
tempo. Não quis incomodá-lo naquele período em que tantos
infortúnios pesavam sobre você, mas uma conversa que tive com
meu tio antes que partisse exige algumas explicações prévias ao
nosso encontro.
Talvez você exclame: “Explicações! Mas o que Elizabeth pode ter
a me explicar?”. Se você realmente pensou assim, minhas questões
já estarão respondidas, e não terei mais nada a fazer a não ser
assinar “Sua prima que lhe quer muito bem”. Mas você está muito
distante de mim, e é possível que possa temer e ao mesmo tempo
achar bem-vindas essas explicações. E, na probabilidade de que
seja este o caso, não ousarei postergar mais escrever aquilo que,
durante sua ausência, muitas vezes desejei expressar-lhe, mas
nunca tive coragem de fazê-lo.
Você sabe bem, Victor, que nossa união sempre foi o plano
favorito de seus pais desde nossa infância. Fizeram-nos saber disso
quando éramos jovens, e nos ensinaram a encará-lo como um
evento que certamente teria lugar. Fomos companheiros de
folguedos, muito afeiçoados um ao outro durante a infância, e ao
crescer nos tornamos amigos, acredito eu, com muito amor e apreço
mútuos. Mas, como irmão e irmã muitas vezes têm um afeto muito
grande um pelo outro sem que desejem uma união mais íntima, será
que não é esse também o nosso caso? Diga-me, querido Victor.
Responda-me, suplico-lhe, por nossa mútua felicidade, com a
simples verdade: você ama outra mulher?
Você tem viajado muito, passou vários anos de sua vida em
Ingolstadt, e confesso, meu amigo, que ao vê-lo tão infeliz no último
outono, buscando a solidão e evitando o convívio com qualquer
criatura, não pude evitar supor que talvez lamentasse nossa união,
julgando-se obrigado, por uma questão de honra, a atender aos
desejos de seus pais, embora contrários aos seus. Mas este seria
um raciocínio equivocado. Confesso, meu primo, que o amo, e que
em meus etéreos devaneios sobre o futuro você tem sido meu
amigo e companheiro constante. Mas é a sua felicidade o que
desejo, tanto quanto a minha, ao declarar que nosso casamento, se
não for ditado pela sua livre escolha, só irá me fazer eternamente
infeliz. Mesmo agora choro ao pensar que, abatido como está pelos
seus cruéis infortúnios, venha a reprimir, em nome da palavra honra,
toda a sua expectativa de amor e felicidade, únicas coisas que
poderiam fazê-lo voltar a ser você mesmo. Eu, que alimento um
afeto tão intenso por você, talvez multiplicasse por dez sua
infelicidade ao ser um obstáculo aos seus desejos. Ah, Victor, tenha
certeza de que sua prima e companheira de brincadeiras tem um
amor sincero demais por você para não se entristecer com essa
suposição. Seja feliz, meu amigo, e se atender a esse meu único
pedido, fique em paz, porque nada na Terra terá o poder de me tirar
a tranquilidade.
Não deixe que esta carta o perturbe. Não precisa respondê-la
amanhã, ou no dia seguinte, ou mesmo antes de voltar, se isso for
lhe causar dor. Meu tio irá mandar notícias sobre sua saúde, e se eu
puder ver em seus lábios, ao encontrá-lo, um único sorriso que
tenha a ver com esta ou qualquer outra atitude minha, não vou
precisar de nenhuma outra felicidade.

Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de maio de 17...

Essa carta fez reviver em minha memória o que eu já havia


esquecido, a ameaça do demônio: Estarei com você em sua noite
de núpcias! Essa era a minha sentença, e nessa noite o demônio
iria empregar todas as suas artimanhas para me destruir e arrancar-
me do vislumbre de felicidade que prometia consolar em parte meus
sofrimentos. A decisão dele era que nessa noite iria consumar seus
crimes com a minha morte. Bem, que assim fosse; com certeza teria
lugar uma luta mortal após a qual, caso ele fosse vitorioso, eu ficaria
em paz, e seu poder sobre mim chegaria ao fim. Se fosse ele o
vencido, eu seria um homem livre. Ai de mim! Que liberdade? A
mesma de que desfruta o camponês quando sua família é
massacrada diante de seus olhos, sua choupana incendiada, suas
terras arrasadas, e ele é deixado sem rumo, sem teto, sem dinheiro
e sozinho, a vagar livremente. Essa seria a minha liberdade, exceto
pelo fato de possuir um tesouro: minha Elizabeth. Pobre de mim!
Seguiria abalado por esses horrores de remorso e culpa, que iriam
me perseguir até a morte.
Minha doce e amada Elizabeth! Li e reli sua carta, e alguns
sentimentos mais amenos penetraram meu coração e ousaram
sussurrar sonhos paradisíacos de amor e alegria; mas a maçã já
havia sido mordida, e o anjo já erguia o braço para me tirar toda
esperança. Ainda assim, estava disposto a morrer para fazê-la feliz.
Se o monstro executasse sua ameaça, a morte seria inevitável;
mas, de novo, avaliei se meu casamento seria capaz de apressar
meu destino. Na realidade, minha destruição poderia chegar alguns
meses mais cedo, mas, por outro lado, se meu torturador
suspeitasse que eu adiava o casamento por influência de suas
ameaças, com certeza encontraria outras formas de se vingar,
talvez mais terríveis. Ele jurou estar comigo em minha noite de
núpcias, mas não por isso sentiu-se obrigado a manter a paz nesse
meio-tempo, pois, como se quisesse me mostrar que ainda não
saciara sua sede de sangue, assassinou Clerval logo após fazer
suas ameaças. Concluí, portanto, que se minha união imediata com
minha prima pudesse fazer a felicidade tanto dela quanto de meu
pai, meu inimigo não iria protelar por uma hora sequer seus
desígnios de acabar com minha vida.
Nesse estado de espírito, escrevi a Elizabeth. Minha carta era
calma e afetuosa. “Tenho receio, minha amada garota”, declarei, “de
que nos reste pouca felicidade neste mundo. No entanto, tudo de
bom que eu possa desfrutar um dia concentra-se em você. Afaste
seus medos inúteis; a você apenas eu consagro minha vida e minha
busca de contentamento. Tenho um segredo, Elizabeth, um segredo
terrível. Quando o revelar a você, ficará congelada de horror, e
então, longe de se surpreender com a minha infelicidade,
simplesmente sentirá admiração por eu ter sobrevivido a tudo que
suportei. Irei confidenciar-lhe esse relato de infortúnio e terror um
dia após a realização de nosso casamento, porque, minha doce
prima, não deve haver segredos entre nós. Até então, porém,
suplico que não o mencione ou faça alusão a ele. É uma súplica que
lhe faço com a maior seriedade e sei que irá atendê-la.”
Mais ou menos uma semana depois de receber a carta de
Elizabeth, voltamos a Genebra. Minha prima recebeu-me com afeto
caloroso, embora derramasse lágrimas ao ver meu físico combalido
e minhas faces febris. Também a achei mudada. Estava mais magra
e perdera muito daquela divina vivacidade que tanto me encantara.
Mas sua delicadeza e seus olhares ternos de compaixão faziam
dela uma companhia ainda mais adequada a alguém tão alquebrado
e infeliz como eu.
A tranquilidade de que desfrutava não durou muito. As memórias
traziam de volta a loucura, e quando eu pensava em tudo o que
havia acontecido, era possuído por uma verdadeira insanidade. Às
vezes, ficava furioso, inflamado de raiva; outras, sentia-me
deprimido e desanimado. Não falava nem olhava, apenas me
sentava, imóvel, perplexo diante dos múltiplos infortúnios sofridos.
Só Elizabeth tinha o poder de me tirar desses surtos. Sua voz
gentil me acalmava quando era arrebatado por essas emoções, e
me inspirava sentimentos humanos quando mergulhava no torpor.
Ela chorava comigo e por mim. Quando eu voltava à razão, ela me
repreendia, e procurava inspirar-me resignação. Ah! A resignação
serve para os desafortunados, mas para quem é culpado não há
paz. A agonia do remorso contamina até o alívio que às vezes é
possível sentir quando nos permitimos mergulhar nos extremos do
pesar.
Assim que cheguei, meu pai falou-me sobre o casamento
imediato com minha prima. Permaneci em silêncio.
– Por acaso tem algum outro relacionamento?
– Nenhum em toda a face da Terra. Amo Elizabeth e vejo com
alegria a nossa união. Vamos marcar o dia, e então irei consagrar-
me, na vida ou na morte, à felicidade de minha prima.
– Meu caro Victor, não fale assim. Pesados infortúnios se
abateram sobre nós, mas vamos nos apegar apenas ao que restou
e transferir o amor por aqueles que perdemos às pessoas que ainda
vivem. Nosso círculo será pequeno, mas fortemente unido pelos
laços de afeto e pelos infortúnios que compartilhamos. E quando o
tempo tiver abrandado nosso desespero, novos e queridos objetos
de afeto irão ocupar o lugar daqueles que nos foram tão cruelmente
arrancados.
Tais foram os conselhos de meu pai. Mas, para mim, a lembrança
da ameaça voltava sempre: não admira, portanto, que, com a
onipotência que o demônio demonstrara em seus feitos
sanguinários, eu o considerasse quase invencível, e que ao vê-lo
pronunciar aquelas palavras, Estarei com você em sua noite de
núpcias, eu passasse a encarar essa ameaça como um destino
inevitável. Mas a morte não representava um desfecho ruim para
mim, em contraposição à perda de Elizabeth. Portanto, com um
semblante de aceitação e até de alegria, concordei com meu pai
que, se minha prima não se opusesse, a cerimônia deveria ter lugar
em dez dias – e isso, imaginei, selaria meu destino.
Meu bom Deus! Se por um instante eu tivesse imaginado a real
intenção de meu diabólico adversário, teria me exilado para sempre
de meu país natal e vagado como um solitário proscrito pelo mundo,
em vez de concordar com aquele infeliz casamento. Mas, como se
fosse dotado de algum mágico poder, o monstro me cegara para
suas reais intenções, e enquanto eu imaginava preparar apenas a
minha morte, apressava a de uma vítima muito mais querida.
À medida que se aproximava a data fixada para nosso
casamento, talvez por covardia, talvez por uma intuição profética,
sentia meu coração oprimido no peito. Mas ocultei meus
sentimentos com uma aparência de alegria suave, que trouxe
sorrisos e contentamento ao semblante de meu pai, mas não
conseguia enganar o olhar mais atento e perspicaz de Elizabeth. Ela
aguardava nossa união com uma serena satisfação, que não
deixava de ter uma ponta de medo, incutido pelos infortúnios
passados, de que aquilo que agora parecia uma felicidade certa e
tangível pudesse logo se dissipar em um sonho etéreo e não deixar
outro traço a não ser um profundo e eterno pesar.
Corriam os preparativos para o evento; várias visitas vinham nos
dar os parabéns, e todos ostentavam um semblante sorridente. Eu
tranquei em meu coração, da melhor maneira que pude, a
ansiedade que o consumia, e endossei com aparente seriedade os
planos de meu pai, embora eles talvez servissem apenas como uma
moldura para minha tragédia. Graças a providências tomadas por
meu pai, uma parte da herança de Elizabeth havia sido restituída a
ela pelo governo austríaco. Uma pequena propriedade à beira do
lago de Como pertencia a ela. Ficou acertado que logo após nossa
união seguiríamos para a Villa Lavenza, para passar nossos
primeiros dias de felicidade junto ao belo lago onde ficava a
propriedade.
Nesse ínterim, tomei todas as precauções para me defender,
caso o demônio viesse me atacar abertamente. Trazia sempre
comigo duas pistolas e uma adaga, ficava continuamente atento
para evitar armadilhas, e por isso alcancei maior tranquilidade. Na
verdade, com o passar do tempo, a ameaça parecia mais ilusória, e
não algo que pudesse perturbar minha paz. Ao mesmo tempo, a
felicidade que eu almejava com meu casamento ganhava maior
aparência de certeza conforme a data marcada se aproximava e eu
ouvia falar dele a toda hora, o que lhe dava a aparência de um
evento que nenhum incidente poderia evitar.
Elizabeth parecia feliz, e minha atitude mais tranquila contribuía
muito para acalmar sua mente. Mas no dia em que se cumpririam
meus desejos e meu destino, mostrou-se melancólica. Foi invadida
por um mau pressentimento, e talvez também pensasse no terrível
segredo que eu prometera revelar-lhe no dia seguinte. Meu pai,
nesse meio-tempo, estava radiante e, na agitação dos preparativos,
encarava a melancolia de sua sobrinha como uma mera
insegurança de noiva.
Após a realização da cerimônia, um grupo grande de pessoas
reuniu-se na casa de meu pai, e ficou combinado que Elizabeth e eu
começaríamos nossa jornada pela água, dormindo aquela noite em
Evian, para continuar viagem no dia seguinte. O dia era de tempo
bom, com vento favorável, e todos sorriam no nosso embarque
nupcial.
Aqueles foram os últimos momentos da minha vida em que
desfrutei de um sentimento de felicidade. Navegávamos com
rapidez; o sol ardia, mas estávamos protegidos de seus raios por
uma espécie de toldo, desfrutando da beleza da paisagem, às vezes
de um dos lados do lago, onde era possível ver o Monte Salève, as
agradáveis margens do Montalègre e, à distância, coroando tudo, o
belíssimo Mont Blanc e a reunião de montanhas nevadas que
tentam em vão imitá-lo. Outras vezes, bordejando as margens
opostas, víamos o poderoso Jura, antepondo sua face escura
àquele que almejasse sair de seu país natal e erguendo-se como
barreira quase intransponível ao invasor que desejasse subjugá-lo.
Tomei a mão de Elizabeth.
– Você parece tristonha, meu amor. Ah! Se soubesse o que tenho
sofrido, e o que talvez ainda me caiba suportar, você faria de tudo
para me permitir saborear a paz e o alívio do desespero que este
único dia pelo menos me permite desfrutar.
– Fique feliz, meu caro Victor – replicou Elizabeth. – Não há nada,
espero, que possa fazê-lo sofrer, e esteja certo de que mesmo que
meu rosto não demonstre uma alegria exuberante, meu coração
está contente. Algo sussurra que não devo esperar demais da
perspectiva que se abre diante de nós, mas não darei ouvidos a
essa voz sinistra. Veja como seguimos adiante com rapidez, e como
as nuvens que às vezes encobrem e outras vezes se erguem acima
do pico do Mont Blanc tornam essa bela paisagem ainda mais
atraente. Veja também os inúmeros peixes que nadam nessas
águas cristalinas, onde podemos distinguir cada seixo que repousa
no fundo. Que dia mais divino! Como a natureza inteira parece feliz
e serena!
Assim Elizabeth se esforçava para afastar seus pensamentos e
os meus de qualquer reflexão sobre assuntos melancólicos. Mas
seu humor oscilava. Por alguns instantes, a alegria brilhava em seus
olhos, mas continuamente dava lugar à dispersão e ao devaneio.
O sol já ia mais baixo no céu. Passamos pelo rio Drance e vimos
seu curso pelos abismos das montanhas mais altas e pelos vales
dos montes mais baixos. Os Alpes, ali, ficam mais perto do lago, e
nos aproximamos do anfiteatro de montanhas que define seu limite
oriental. O pináculo de Evian brilhava sob os bosques que o
rodeavam, com a cadeia de montanhas acima dele.
O vento, que até então nos levara com impressionante
velocidade, reduziu-se a uma leve brisa na hora do pôr do sol. Seu
sopro ameno criava uma leve ondulação nas águas, e à medida que
nos aproximávamos da margem, vimos como ele fazia as árvores
balançarem graciosamente, trazendo os mais deliciosos aromas de
flores e feno. O sol mergulhou no horizonte ao desembarcarmos, e
assim que pus os pés em terra, senti reavivarem-se aquelas
preocupações e medos que logo iriam me tomar para sempre.
CAPÍTULO XXIII

Eram oito da noite quando chegamos à margem. Caminhamos


um breve tempo pela praia, apreciando a luz efêmera, e então nos
recolhemos à pousada, para contemplar a linda paisagem de águas,
bosques e montanhas, indistintos na escuridão, embora ainda
exibindo seus contornos negros.
O vento sul diminuíra, e agora era o vento oeste que soprava
forte. A lua alcançara seu zênite no céu e começava a descer. As
nuvens corriam mais rápidas que o voo do falcão, ofuscando os
raios da lua, enquanto o lago refletia a paisagem movimentada do
céu, mais agitada ainda pelas inquietas ondas que começavam a se
formar. De repente, caiu uma forte tempestade.
Eu me mantivera calmo durante o dia, mas assim que a noite
obscureceu a forma dos objetos, mil medos brotaram em minha
mente. Estava ansioso e vigilante, e minha mão direita segurava
uma pistola escondida no peito. Qualquer som me aterrorizava, mas
decidi que iria vender caro minha vida, e que não desistiria do
conflito iminente até que minha vida, ou a de meu adversário, fosse
extinta.
Elizabeth notou minha agitação e ficou um tempo num silêncio
tímido e temeroso. Mas havia algo em meu olhar que lhe comunicou
o terror, e perguntou, tremendo:
O que o perturba, meu caro Victor? Qual é o seu medo?
– Oh, fique tranquila, meu amor – respondi. – Fique tranquila,
porque esta noite tudo se resolverá. Mas será uma noite terrível,
muito terrível.
Passei uma hora nesse estado de ânimo, até que de repente
pensei no quanto esse combate que esperava travar a qualquer
momento seria assustador para minha esposa, e lhe pedi
enfaticamente que se recolhesse, pois só me juntaria a ela depois
de obter alguma pista sobre a situação de meu inimigo.
Ela foi para o quarto, e continuei algum tempo andando para cima
e para baixo pelos corredores da casa, inspecionando cada canto
que pudesse oferecer refúgio ao meu adversário. Mas não encontrei
nenhum indício dele, e já começava a conjeturar a intervenção de
algum feliz acaso que tivesse impedido a execução de suas
ameaças quando ouvi um grito lancinante e assustador. Vinha do
quarto ao qual Elizabeth se recolhera. Ao ouvi-lo, a verdade inteira
se precipitou em minha mente; meus braços desabaram, o
movimento de cada músculo e de cada fibra foi suspenso. Eu podia
sentir o sangue correndo nas veias e um formigamento na
extremidade dos membros. Esse estado durou apenas um instante.
O grito se repetiu, e então corri até o quarto.
Deus do céu! Por que não morri naquela hora?! Por que estou
aqui relatando a destruição da minha melhor esperança, da criatura
mais pura do mundo? Lá estava ela, inerte e sem vida, de través na
cama, a cabeça pendendo para fora, os traços pálidos e distorcidos,
meio encobertos pelo cabelo. Onde quer que olhe, vejo essa mesma
imagem: os braços exangues, a lassidão do corpo, atirado pelo
assassino em seu leito nupcial. Como contemplar isso e continuar a
viver? Ai de mim! A vida é obstinada e aferra-se com maior força
àqueles que mais a odeiam. Por um momento apenas perdi a
consciência. Fui ao chão, desmaiado.
Ao recuperar os sentidos, vi-me rodeado pelas pessoas da
pousada. O semblante delas expressava um horror de tirar o fôlego:
mas esse horror parecia apenas uma paródia, uma sombra dos
sentimentos que me oprimiam. Fugi delas e corri para o quarto onde
jazia o corpo de Elizabeth, meu amor, minha esposa tão querida, tão
valiosa, viva até poucos minutos atrás. Havia sido movida da
posição em que a encontrara, e agora, do jeito que jazia, a cabeça
em cima do braço e com um lenço cobrindo seu rosto e pescoço,
poderia tê-la suposto adormecida. Corri até ela e abracei-a com
ardor, mas a lassidão mortal e a temperatura fria de seus membros
me diziam que o que agora segurava nos braços havia deixado de
ser a Elizabeth que eu amara e tanto prezara. A marca mortífera das
mãos do demônio estava estampada em seu pescoço, e a
respiração não mais exalava de seus lábios.
Enquanto ainda me debruçava sobre ela na agonia do desespero,
por acaso ergui os olhos. As janelas do quarto haviam sido fechadas
mais cedo, e senti uma espécie de pânico ao ver a pálida luz
amarelada da lua iluminando o quarto. As persianas estavam
abertas, e, com uma sensação de horror indescritível, vi na janela
uma figura, a mais horrenda e abominável. Seu rosto exibia um
sorriso de sarcasmo. Parecia caçoar, e com seu diabólico dedo
apontava para o corpo de minha esposa. Corri em direção à janela
e, puxando a pistola de meu peito, atirei, mas ele se esquivou,
saltou de onde estava e correu com a rapidez de um raio,
mergulhando no lago.
O barulho do disparo atraiu uma multidão até o quarto. Apontei
para o lugar onde ele havia desaparecido e fomos atrás em vários
barcos. Redes foram lançadas, mas em vão. Depois de várias
horas, voltamos decepcionados, com a maioria dos que me
acompanhavam achando que talvez eu tivesse criado aquela forma
na minha imaginação. Ao desembarcarmos, passaram a vasculhar a
área, com grupos partindo em diferentes direções pelos bosques e
vinhedos.
Tentei acompanhá-los e continuei até uma curta distância da
casa, mas minha cabeça girava, meus passos eram como os de um
bêbado, e por fim caí num estado de extrema exaustão. Uma névoa
cobria minha visão, e minha pele estava ressequida com o calor da
febre. Nesse estado, fui carregado de volta e colocado numa cama,
mal tendo consciência do que havia ocorrido. Meus olhos vagavam
pelo quarto, como se à procura de algo que tivesse perdido.
Após um tempo, despertei e, como por instinto, arrastei-me pelo
quarto até onde jazia o cadáver de minha amada. Havia mulheres
ali, chorando – fiquei por perto e juntei minhas tristes lágrimas às
delas –, e durante todo esse tempo nenhuma ideia discernível se
apresentou à minha mente. Meus pensamentos vagavam por vários
assuntos, numa reflexão confusa sobre meus infortúnios e a causa
deles. Estava transtornado, envolvido por uma nuvem de espanto e
horror. A morte de William, a execução de Justine, o assassinato de
Clerval e, por último, o da minha esposa. E, naquele momento, não
sabia se os amigos que me restavam estavam ou não a salvo da
malignidade do demônio. Meu pai, naquele exato momento, poderia
estar se contorcendo nas garras dele, e Ernest talvez estivesse
morto a seus pés. Essa ideia me fez estremecer e voltar à ação.
Fiquei em pé e decidi ir para Genebra na mesma hora.
Não era possível providenciar cavalos, e tive que voltar pelo lago.
Mas o vento era desfavorável, e caía uma chuva torrencial. No
entanto, ainda não amanhecera, e talvez fosse razoável esperar que
eu chegasse a Genebra à noite. Contratei homens para remar, e eu
mesmo peguei um remo, pois sempre experimentara alívio do meu
tormento mental ao exercitar o corpo. Mas a infelicidade
transbordante que sentia e o excesso de agitação que suportara
deixaram-me incapaz de qualquer esforço. Larguei o remo, apoiei a
cabeça nas mãos e dei vazão a todas as sombrias ideias que
surgiam em minha mente. Ao olhar em volta, via as cenas familiares
de meus tempos felizes, cenas que contemplara no dia anterior na
companhia dela, que era agora apenas uma sombra e uma
lembrança. Lágrimas escorreram de meus olhos. A chuva parou por
um momento e vi os peixes brincando nas águas, como haviam feito
poucas horas antes, observados por Elizabeth. Nada é tão doloroso
para a mente humana quanto uma mudança abrupta. O sol podia
brilhar, as nuvens podiam cobrir o céu, mas nada me parecia como
no dia anterior. Um demônio arrancara de mim qualquer esperança
de felicidade: nenhuma criatura havia sido antes tão infeliz quanto
eu. Um evento tão aterrador era um caso único na história da
humanidade.
Mas por que me demoro nos incidentes que se seguiram a esse
último evento devastador? Minha história é uma sequência de
horrores. Cheguei ao seu ápice, e o que possa relatar agora só irá
produzir tédio. Considere que, um por um, meus amigos me haviam
sido arrebatados. Estava desolado. Minhas forças estavam
exauridas, e o que segue agora é, em poucas palavras, o que resta
de minha horrenda narrativa.
Cheguei a Genebra. Meu pai e Ernest estavam vivos, mas o
primeiro ficou arrasado com a notícia que eu trazia. É como se o
visse agora, aquele senhor venerável e magnífico! Seus olhos
vagavam a esmo, pois havia perdido aquilo que o encantava e lhe
dava prazer: sua sobrinha, mais que uma filha, a quem dedicava
todo o afeto que é capaz de sentir um homem na fase final de sua
vida e que, tendo poucos afetos, apega-se com maior intensidade
aos que lhe restam. Maldito, maldito seja o demônio que trouxe a
desgraça a seus cabelos grisalhos e condenou-o a definhar na
infelicidade! Ele não conseguiu sobreviver aos horrores acumulados
à sua volta: sofreu um ataque de apoplexia e em poucos dias
morreu nos meus braços.
O que foi feito de mim então? Não sei dizer. Perdi as sensações,
e me sentia acorrentado em meio às trevas. É verdade que às vezes
sonhava vagar por campinas floridas e vales agradáveis junto com
os amigos de minha juventude, mas acordava e me via em uma
masmorra. Fora acometido de profunda melancolia, mas aos poucos
fui ganhando uma noção mais clara das minhas infelicidades e da
minha situação, e então me libertaram da minha prisão. Como
entendi mais tarde, ao ser considerado insano, haviam-me internado
em uma cela solitária onde passei vários meses.
Mas a liberdade teria sido uma dádiva inútil para mim se, ao
acordar para a razão, não tivesse também acordado para a
vingança. À medida que trazia à memória o peso dos infortúnios
passados, comecei a refletir sobre sua causa: o monstro que havia
criado, o infeliz demônio que deixara solto no mundo para minha
destruição. Ao pensar nele, era possuído por uma raiva
enlouquecedora, e desejei e rezei ardentemente que me fosse
permitido tê-lo em minhas mãos para poder despejar uma grande e
marcante vingança em sua maldita cabeça.
Meu ódio não ficou muito tempo confinado a desejos inócuos.
Comecei a pensar nos melhores meios de capturá-lo, e com esse
propósito, cerca de um mês após ser libertado, procurei um
magistrado da cidade e disse-lhe que tinha uma acusação a fazer,
pois sabia quem havia destruído minha família e pedia que ele
exercesse toda a sua autoridade para prender o assassino.
O juiz me ouviu com atenção e gentileza.
– Esteja certo, senhor – disse ele –, que não pouparei esforços
para encontrar o criminoso.
– Agradeço-lhe – repliquei. – Ouça, portanto, meu depoimento.
De fato, é uma história tão estranha que receio que não lhe daria
crédito se não houvesse no próprio relato algo que, apesar de
assombroso, inclina a acreditar nele. A história é bem-encadeada
demais para ser confundida com um delírio, e não tenho motivos
para falsear as coisas.
Minha atitude, quando assim me dirigi a ele, era determinada,
mas tranquila. Tomara em meu íntimo a resolução de perseguir meu
destruidor até a morte, e esse propósito apaziguou minha agonia e
reconciliou-me provisoriamente com a vida. Passei então a relatar
minha história de forma resumida, mas com firmeza e precisão,
especificando datas e sem nunca me dispersar com insultos ou
exclamações.
O juiz pareceu de início totalmente incrédulo, mas conforme eu
prosseguia foi ficando mais atento e interessado. Notei que às vezes
estremecia de horror e que em outros momentos seu semblante
refletia uma viva surpresa, sem nenhuma sombra de descrença.
Depois de concluir minha narração, eu disse:
– Esse é o ser que acuso, e para cuja detenção e punição solicito
que exerça todo o seu poder. É seu dever como magistrado, e
acredito e espero que seus sentimentos humanos o levem a cumprir
essa tarefa.
Essa fala causou considerável mudança na fisionomia do
magistrado. Ele ouvira minha história com aquela espécie de
reserva com que costumam ser ouvidos os relatos sobre espíritos e
eventos sobrenaturais. Mas quando foi solicitado a agir em termos
oficiais, toda a sua inclinação à incredulidade voltou. Mesmo assim,
respondeu amavelmente:
– Gostaria muito de poder ajudá-lo em seu intento, mas a criatura
de quem o senhor me fala parece ter poderes que iriam frustrar
todos os meus esforços. Quem pode perseguir um animal capaz de
atravessar geleiras e de habitar cavernas e covis onde nenhum
homem ousaria entrar? Além disso, já se passaram alguns meses
desde que cometeu seus crimes, e ninguém teria como conjeturar
por onde andou ou que região habita agora.
– Não tenho dúvidas de que ele ronda perto do lugar em que
moro agora, e, se ele de fato se refugiou nos Alpes, pode ser
caçado como se faz com a camurça e destruído como um animal
selvagem. Mas acho que sei o que pensa: não acreditou na minha
narrativa, e não pretende perseguir meu inimigo para puni-lo como
merece.
Enquanto eu falava, meus olhos soltavam centelhas de raiva. O
magistrado ficou intimidado.
– Engana-se, senhor – disse ele. – Vou me esforçar, e se estiver
a meu alcance capturar o monstro, esteja certo de que ele terá uma
punição proporcional aos seus crimes. Meu medo é que, pela
descrição que me fez dos atributos dele, isso se revele impraticável,
e que, mesmo que todas as medidas adequadas sejam tomadas, o
senhor precise se preparar para encarar uma frustração.
– Isso não pode ser, mas tudo o que eu disser será de pouca
valia. Minha vingança não tem importância para o senhor, e mesmo
assim, embora eu concorde que possa ser uma perversidade, devo
confessar-lhe que se trata da única paixão que consome minha
alma. Sinto uma raiva indescritível quando penso que o assassino
que deixei à solta na sociedade ainda existe. O senhor se recusa a
atender à minha justa solicitação: resta-me apenas um recurso, e
vou dedicar-me, custe-me a vida ou a morte, a destruí-lo.
Eu tremia com excesso de agitação ao dizer isso. Havia um
frenesi na minha atitude e também, sem dúvida, um pouco daquela
altiva ferocidade que, segundo dizem, fazia-se presente nos
mártires de antigamente. Mas para um magistrado genebrês, de
mente ocupada por ideias bem diversas das de devoção e
heroísmo, aquela exaltação mental tinha forte aparência de loucura.
Ele procurou me acalmar do jeito que uma babá faz com uma
criança e voltou a encarar minha história como fruto de um delírio.
– Homem – gritei –, como se mostra ignorante na soberba de seu
suposto saber! Basta; o senhor não sabe o que diz.
Saí da casa com raiva, alterado, e fui embora para pensar em
alguma outra forma de ação.
CAPÍTULO XXIV

Minha situação presente fazia todo pensamento voluntário ser


devorado e se perder. A fúria me deixava precipitado e confuso. Só
a vingança me dava força e autocontrole, moldava meus
sentimentos e me permitia raciocinar com calma, em uma hora em
que, não fosse por ela, teria sucumbido ao delírio e à morte.
A primeira resolução que tomei foi sair para sempre de Genebra.
Minha terra natal, que quando eu era feliz e amado despertara em
mim tanto afeto, na minha adversidade se tornara odiosa. Arrumei
uma boa soma de dinheiro, peguei umas poucas joias que haviam
pertencido à minha mãe e parti.
E começaram minhas andanças, que só irão cessar com a morte.
Tenho percorrido uma vasta porção da Terra e suportado todas as
provações que aqueles que viajam por desertos e países bárbaros
se habituaram a enfrentar. Nem sei como sobrevivi. Muitas vezes
estendi meus membros alquebrados em uma planície arenosa e
rezei pedindo a morte. Mas a vingança me fez sobreviver. Não
ousaria morrer e deixar meu inimigo vivo.
Ao sair de Genebra, minha primeira tarefa foi procurar alguma
pista que me permitisse seguir o rastro de meu diabólico inimigo.
Mas meu plano era aleatório, e fiquei vagando várias horas pelos
limites da cidade, sem saber que caminho tomar. A noite se
aproximava, e acabei me vendo na entrada do cemitério onde
William, Elizabeth e meu pai repousavam. Entrei e fui em direção ao
jazigo onde estavam sepultados. Reinava o silêncio, exceto pelas
folhas das árvores, suavemente agitadas pelo vento. A noite era
quase totalmente escura, e a cena teria parecido solene e
comovente mesmo a um observador alheio. Os espíritos dos que
haviam partido pareciam pairar por ali e lançar uma sombra, mais
sentida do que visível, em volta da cabeça de quem ali lamentava
sua ausência.
O profundo pesar que essa cena despertara de início logo deu
lugar à raiva e ao desespero. Eles estavam mortos, e eu vivia. Seu
assassino também estava vivo, e era para destruí-lo que eu deveria
arrastar minha existência fatigada. Ajoelhei-me na grama e beijei a
terra, e, com lábios trêmulos, exclamei:
– Pela sagrada terra em que me ajoelho, pelas sombras que
vagam ao meu redor, pelo profundo e eterno pesar que sinto, eu
juro; e por ti, ó Noite, e pelos espíritos que te governam, juro
perseguir o demônio que causou essa infelicidade, até que um de
nós dois pereça em conflito mortal. Por esse propósito, preservarei
minha vida: para executar essa cara vingança, contemplarei
novamente o sol e pisarei na verde relva da terra, que de outro
modo desapareceriam de meus olhos para sempre. E invoco-vos,
espíritos dos mortos; e também a vós, agentes errantes da
vingança, para que me auxilieis e orienteis em minha lida. Que o
maldito e infernal monstro beba da taça da agonia até a última gota;
que sinta o desespero que agora me atormenta.
Eu havia iniciado esse juramento com tal solenidade e reverência
que quase me convenci de que as sombras dos meus amigos
mortos ouviam e aprovavam meu fervor. Mas quando concluía, a
fúria me tomou e a raiva sufocou minhas palavras.
Uma resposta então quebrou a quietude da noite: uma
gargalhada alta e diabólica. Ela vibrou, alongada e pesada, em
meus ouvidos. As montanhas devolveram seu eco, e senti como se
todo o inferno me rodeasse, zombando e rindo de mim. Com
certeza, naquele momento teria sido dominado por um frenesi e
destruído minha miserável existência, não fosse por ter sido ouvido
e me sentir animado a perpetrar minha vingança. A risada foi
sumindo, dando lugar a uma voz bem conhecida e detestada, que
parecia próxima ao meu ouvido e se dirigiu a mim em um sussurro
audível:
– Estou satisfeito agora, miserável infeliz! Você decidiu viver, e
isso me deixa satisfeito.
Parti como um raio na direção de onde provinha o som, mas o
demônio evadiu-se. De repente, o amplo disco da lua despontou no
céu e brilhou sobre seu corpo horripilante e deformado, enquanto
ele fugia a uma velocidade sobre-humana.
Persegui-o, e há muitos meses essa tem sido minha ocupação.
Guiado por uma pista vaga, segui pelo sinuoso Ródano, mas em
vão. O Mediterrâneo, com suas águas azuis, surgiu à minha frente,
e, por um estranho acaso, vi o demônio entrar à noite e se esconder
em um barco com destino ao Mar Negro. Comprei uma passagem e
embarquei no mesmo navio, mas ele escapou, não sei como.
Pelos ermos da Tartária e da Rússia, apesar de ele sempre me
escapar, continuei a seguir seu rastro. Às vezes, os camponeses,
assustados com a horrenda aparição, me informavam o caminho
que havia seguido; outras vezes, era ele próprio: temendo que eu
perdesse de vez o seu rastro e pudesse me desesperar e morrer,
costumava deixar alguma marca para guiar-me. Nevava sobre
minha cabeça, e eu via suas imensas pegadas na planície branca.
Você, que começa a entrar na vida, para quem a preocupação é
uma coisa nova e a agonia, algo desconhecido, como poderá
compreender o que tenho sentido e ainda sinto? Frio, privações e
fadiga eram os menores males a que estava sujeito. Fui
amaldiçoado por um demônio e carrego meu eterno inferno. Mesmo
assim, um espírito bom me guia e orienta meus passos, e nas horas
em que mais lamentava minha sorte, de repente me salvava de
dificuldades aparentemente intransponíveis. Às vezes, quando meu
corpo era afligido pela fome e desabava de exaustão, uma refeição
era preparada para mim no meio do deserto e restaurava minhas
forças, reanimando-me. A comida era rústica, é verdade, como a
que comem os camponeses, mas não podia duvidar de que havia
sido colocada ali pelos espíritos que invocara em meu auxílio.
Muitas vezes, em meio à maior seca, com os céus sem uma nuvem
sequer e a sede ressecando-me a garganta, surgia no céu uma
pequena nuvem, lançava umas poucas gotas que me faziam reviver
e em seguida desaparecia.
Quando possível, acompanhava o curso dos rios, mas o demônio
costumava evitá-los, pois era onde a população do campo em geral
se agrupava. Havia lugares nos quais eram raros os seres
humanos, e eu subsistia de animais selvagens que cruzavam meu
caminho. Levava dinheiro, e conquistava a amizade dos aldeões
distribuindo um pouco dele ou da comida que trazia comigo por tê-la
caçado e que, depois de pegar uma pequena porção, sempre dava
de presente àqueles que haviam me provido com fogo e utensílios
para cozinhá-la.
A vida que levava era de fato detestável, e só durante o sono
podia ter um pouco de alegria. Ó, abençoado sono! Com frequência,
quando me sentia muito infeliz, deitava para repousar, e meus
sonhos me tranquilizavam e me levavam ao êxtase. Os espíritos
que me protegiam me proporcionavam esses momentos, ou melhor,
essas horas de felicidade, para que pudesse preservar forças e
continuar minha peregrinação. Privado desses alívios, teria
sucumbido às dificuldades. De dia, o que me mantinha e animava
era a expectativa da noite, pois no sono revia meus amigos, minha
esposa e meu amado país. Contemplava de novo o semblante
benevolente de meu pai, ouvia o tom prateado da voz de Elizabeth e
via Clerval desfrutando de saúde e juventude. Muitas vezes, exausto
após uma marcha muito árdua, convencia a mim mesmo de que
continuaria sonhando até a noite chegar, e que só então iria
desfrutar da realidade nos braços de meus queridos amigos. Que
afeto pungente sentia por eles! Como me apegava às suas imagens
tão queridas, quando às vezes era por elas visitado mesmo nas
horas de vigília e até me persuadia de que estavam ainda vivos!
Então, a vingança que ardia dentro de mim arrefecia em meu
coração, e eu seguia meu caminho rumo à destruição do demônio
mais como se cumprisse uma tarefa imposta pelos céus,
obedecendo a um impulso mecânico de algum poder inconsciente,
do que por um desejo ardente da minha alma.
Quais eram os sentimentos daquele que eu perseguia? Não
posso saber. Às vezes, ele deixava algo escrito nos troncos das
árvores ou cortado na pedra, e isso me guiava e instigava minha
fúria. “Meu reinado ainda não terminou” (eram as palavras legíveis
em uma dessas inscrições); “Você está vivo e meu poder é total.
Siga-me; procure a neve eterna do norte, onde sentirá as agruras do
frio e do gelo, às quais sou insensível. Você encontrará perto daqui,
se não se atrasar muito, uma lebre morta; coma-a e reponha as
energias. Vamos, meu inimigo! Ainda iremos combater por nossas
vidas, mas terá primeiro que suportar muitas horas de dificuldade e
sofrimento, até que esse momento chegue.”
Demônio zombeteiro! Mais uma vez juro vingança, de novo
condeno-o, miserável monstro, à tortura e à morte. Nunca vou
cessar minha perseguição, até que um de nós morra, e então, com
que êxtase irei me juntar à minha Elizabeth e àqueles que, neste
momento, devem estar preparando a recompensa por meu tedioso
esforço e por esta horrenda peregrinação.
À medida que seguia minha jornada de perseguição rumo ao
norte, as neves ficavam mais densas, e o frio aumentava num grau
quase severo demais para suportar. Os camponeses trancavam-se
em suas choças, e só os mais resistentes se aventuravam a sair
para pegar os animais que a inanição obrigara a sair de seu
esconderijo em busca de alguma presa. Os rios cobriam-se de gelo,
e, na ausência de peixes, fiquei privado de meu principal item de
sustento.
O triunfo de meu inimigo ficava mais palpável com as crescentes
dificuldades que eu enfrentava. Uma das inscrições que deixou
dizia: “Prepare-se! Suas dificuldades mal começaram: enrole-se nas
peles e providencie comida, porque logo vamos entrar em uma
jornada na qual seus sofrimentos irão satisfazer meu infinito ódio”.
Minha coragem e perseverança eram revigoradas por essas
palavras de escárnio. Decidi não fraquejar em meu propósito e,
invocando o auxílio dos céus, continuei em frente com um fervor
inabalável, atravessando imensos desertos, até que o oceano
apareceu ao longe e formou o último limite do horizonte. Oh! Como
era diferente dos mares azuis do sul! Coberto de gelo, só podia ser
distinguido da terra por ser mais vasto e inóspito. Os gregos
choraram de alegria quando contemplaram o Mediterrâneo desde as
montanhas da Ásia, e saudaram, extasiados, o limite de seus
esforços. Não chorei, mas me pus de joelhos e, de todo o coração,
agradeci meu espírito guia por ter me conduzido em segurança até
o lugar em que eu esperava, apesar do deboche de meu adversário,
encontrá-lo e lutar com ele.
Algumas semanas antes desse período, eu providenciara um
trenó e cães, e assim cruzei as neves a uma velocidade
inconcebível. Não sei se o demônio dispunha das mesmas
vantagens, mas achei que, do mesmo modo que eu antes havia
perdido terreno todos os dias na perseguição, agora avançava mais
que ele, tanto assim que, quando vi o mar, ele estava apenas um dia
de viagem à minha frente, e julguei poder interceptá-lo antes que
alcançasse a margem. Com redobrada coragem, portanto, acelerei
o passo, e em dois dias cheguei a uma miserável aldeia junto à
praia. Perguntei aos habitantes sobre o demônio e obtive
informações precisas. Um monstro gigante, disseram, chegara na
noite anterior, armado de espingarda e de várias pistolas, e sua
horrenda aparência fez com que os moradores de uma choupana
solitária fugissem correndo. Ele carregou todo o estoque de comida
de inverno deles e, pondo tudo em um trenó puxado por um bom
número de cães treinados que ele arrebatara e provera de arreios,
na mesma noite, para alegria dos horrorizados aldeões, prosseguiu
sua jornada pelo mar, em uma direção que não dava em terra
nenhuma. Conjeturaram então que iria morrer logo, ou devido a um
rompimento do gelo ou congelado naquelas neves eternas.
Ao receber essa informação, tive um surto temporário de
desespero. Ele conseguira escapar, e eu teria que começar uma
viagem perigosa e quase infindável pelas montanhas de gelo do
oceano, em um frio que poucos daqueles habitantes seriam capazes
de suportar por muito tempo, e ao qual eu, nativo de um clima
ameno e ensolarado, não poderia esperar sobreviver. Diante,
porém, da ideia de que o demônio viesse a sobreviver e triunfar,
minha raiva e meu desejo de vingança vieram à tona e, como uma
maré poderosa, sobrepujaram todos os demais sentimentos. Depois
de um curto repouso, durante o qual os espíritos dos mortos
pairaram à minha volta e me instigaram a persistir no meu esforço
de me vingar, preparei-me para a jornada.
Troquei meu trenó de andar sobre a terra por um adequado às
irregularidades de um oceano congelado. Comprei um bom estoque
de provisões e abandonei a terra firme.
Não sei dizer quantos dias se passaram desde então, mas
suportei grandes tormentos somente pelo eterno sentimento que
arde em meu coração de promover um justo revide. Montanhas de
gelo, imensas e escarpadas, a toda hora bloqueavam minha
passagem, e muitas vezes ouvi o estrondo do mar sob meus pés,
ameaçando destruir-me. Mas a geada voltava e tornava novamente
seguros os caminhos pelo mar de gelo.
Pela quantidade de provisões que consumi, imagino que tenha
passado três semanas nessa jornada, e o contínuo protelar da
esperança abatia meu ânimo e, com frequência, arrancava lágrimas
de desânimo e pesar de meus olhos. Estava quase sendo tomado
pelo desespero e a ponto de sucumbir à minha infelicidade quando,
após os pobres animais terem me levado com incrível esforço ao
topo de uma íngreme montanha de gelo, tendo um deles morrido de
fadiga, contemplei angustiado a vasta expansão diante dos meus
olhos. De repente, meu olho captou um ponto mais escuro naquela
planície ao crepúsculo. Forcei a vista para tentar descobrir o que
poderia ser e soltei um grito louco de êxtase ao distinguir um trenó,
e dentro dele as proporções distorcidas de um corpo muito familiar.
Oh! Que jorro ardente de esperança revisitou meu coração!
Lágrimas quentes encheram-me os olhos, e limpei-as na mesma
hora para que não atrapalhassem a visão que eu tinha do demônio.
Mas minha visão continuou ofuscada pelas lágrimas ardentes até
que, dando vazão às emoções que me oprimiam, chorei alto.
Mas não era hora de me demorar. Desvencilhei os cães de seu
companheiro morto, dei-lhes uma farta porção de comida e, após
uma hora de descanso, absolutamente necessária para eles, apesar
de quase me consumir de agonia, continuei meu curso. O trenó
ainda era visível, e não o perdi mais de vista, exceto nos breves
momentos em que alguma rocha de gelo se interpunha entre nós.
Na realidade, eu vinha encurtando minha distância, e quando, após
uns dois dias de perseguição, contemplei meu inimigo a menos de
dois quilômetros, meu coração dava pulos dentro do peito.
No entanto, quando parecia ter meu inimigo praticamente ao
alcance das mãos, minhas esperanças de repente se extinguiram, e
perdi o rastro dele da maneira mais cabal que jamais ocorrera antes.
Ouvi o rugir do mar sob o gelo. O estrondo das águas rolando e se
avolumando sob meus pés era cada vez mais ameaçador e terrível.
Apressei-me, mas foi em vão. O vento soprava forte, o mar rugia, e
um abalo forte como o de um terremoto fez o gelo rachar e estalar
com um som tremendo e avassalador. Consumava-se o desastre:
em poucos minutos um mar tumultuado rolou entre mim e meu
inimigo, e fiquei à deriva sobre um bloco de gelo que se
desprendera e se tornava cada vez menor, prevendo para mim uma
morte horrenda.
Assim passei muitas horas torturantes. Vários dos meus cães
morreram, e eu mesmo estava a ponto de falecer sob o acúmulo de
infortúnios quando vi seu navio ancorado acenando com novas
esperanças de socorro e vida. Não tinha ideia de que alguns navios
chegassem tão ao norte, e fiquei atônito com a visão. Rapidamente
destruí parte do trenó e construí remos, com os quais fui capaz, com
infinito esforço, de mover minha balsa de gelo na direção de seu
barco. Estava determinado, caso rumassem para o sul, a entregar
minha sorte à mercê dos mares, mas não abandonaria meu
propósito. Esperava convencê-los a me fornecer um bote com o
qual pudesse ainda perseguir meu inimigo. Mas seu barco ia seguir
para o norte. Aceitaram-me a bordo quando meu vigor estava
exaurido e minhas inúmeras desgraças arrastavam-me para a
morte, que continuo a temer, já que ainda não cumpri minha tarefa.
Oh! Quando será que meu espírito guia, que me conduz até o
demônio, permitirá que eu tenha o descanso que tanto almejo? Ou
será que devo morrer e ele, continuar vivo? Nesse caso, por favor,
Walton, jure para mim que não o deixará escapar, que irá procurá-lo
e cumprir minha vingança e matá-lo. Mesmo assim, eu pergunto:
seria justo eu ousar lhe pedir que empreendesse essa peregrinação
e suportasse as provações às quais fui submetido? Não, meu
egoísmo não chega a tanto. Mesmo assim, quando eu morrer, se ele
aparecer, se os agentes da vingança o levarem até você, jure que
não o deixará escapar – jure que ele não triunfará sobre minhas
desgraças acumuladas, que não sobreviverá para aumentar sua
lista de crimes nefandos. Ele é eloquente e persuasivo, e já houve
tempo em que suas palavras tinham até o poder de sensibilizar meu
coração; mas não confie nele. Sua alma, tanto quanto sua forma, é
infernal, traiçoeira e cheia de malícia diabólica. Não ouça o que ele
diz, invoque os nomes de William, Justine, Clerval, Elizabeth, de
meu pai e do infeliz Victor, e enfie sua espada no coração desse
monstro. Eu estarei por perto, para dirigir a lâmina de aço ao lugar
certo.
Walton, continuação.
26 de agosto de 17...
Você Margaret, ao ler essa história estranha e terrível, não sentiu
por acaso seu sangue congelar de horror, assim como sinto o meu
ainda coagular em minhas veias? Às vezes, tomado por uma súbita
agonia, aquele homem não conseguia continuar narrando sua
história; outras, sua voz fraquejava, sem deixar de ser incisiva, e ele
pronunciava com dificuldade suas palavras tão repletas de agonia.
Seus belos olhos expressivos ora brilhavam de indignação, ora se
apagavam, sombrios, e mergulhavam em uma infinita tristeza. Às
vezes, ele assumia o controle de seu semblante e de sua atitude, e
relatava os mais horríveis incidentes com voz tranquila, suprimindo
qualquer indício de agitação; outras vezes, porém, como um vulcão
expelindo lava, seu rosto ganhava uma súbita expressão de raiva
selvagem, enquanto berrava imprecações ao seu perseguidor.
Sua história é coerente, e seu modo de contá-la lhe confere a
aparência da mais pura verdade. Mas confesso a você que as
cartas de Félix e Safie que ele me mostrou e a aparição do monstro,
que registramos daqui do nosso navio, me deram maior convicção
da veracidade de sua narrativa do que suas próprias afirmações,
apesar de sérias e bem encadeadas. Tal monstro, portanto, existe
de fato, não duvido, mas me sinto ainda perdido, muito surpreso e
assustado. Tentei algumas vezes obter de Frankenstein detalhes
sobre como produziu a criatura, mas mostrou-se impenetrável a
respeito.
– Enlouqueceu, amigo? – dizia ele. – Já imaginou aonde sua
insensata curiosidade pode levá-lo? Seria capaz também de criar,
para o senhor e para o mundo, um inimigo demoníaco? Ou para
onde tendem as suas questões? Sossegue, amigo! Aprenda com
minha desgraça e não corra o risco de seguir pelo mesmo caminho.
Frankenstein ficou sabendo que eu fazia anotações sobre sua
história. Pediu para vê-las, e introduziu correções e acréscimos em
vários trechos, principalmente para dar maior vida e autenticidade
às conversas que travara com seu inimigo.
– Já que preservou minha narrativa – disse ele –, não quero que
a transmita mutilada à posteridade.
Assim passei essa semana, ouvindo a história mais estranha que
uma imaginação jamais concebeu. Meus pensamentos, e todos os
sentimentos de minha alma, ficaram muito interessados por esse
meu hóspede, pela sua história e seus modos nobres e gentis.
Quero aliviar as dores dele, mas será que posso aconselhar alguém
tão infinitamente infeliz, tão destituído de qualquer esperança de
consolo, a ter apego à vida? Ah, não! A única alegria que poderá
conhecer agora seria poder conduzir seus sentimentos destroçados
para a paz e a própria morte. Mesmo assim, ainda conta com um
conforto, fruto de sua solidão e de seu delírio: acredita que, em
sonhos, comunica-se com seus amigos, e dessa comunhão extrai
consolo para seus infortúnios ou estímulo para sua vingança, pois
crê que não são criações de sua fantasia e sim seres reais que o
visitam, vindo de regiões de um mundo distante. Essa crença
confere uma solenidade aos seus devaneios e torna-os para mim
quase tão convincentes e interessantes quanto a verdade.
Nossas conversas nem sempre se restringem à sua própria
história e infortúnios. Ele demonstra um imenso conhecimento de
todos os aspectos da literatura em geral, e tem uma compreensão
rápida e penetrante. Sua eloquência é eficaz e tocante, e quando
relata um incidente comovedor ou se esforça para despertar
emoções de pena ou amor, não consigo ouvi-lo sem que me
venham lágrimas aos olhos. Que criatura gloriosa deve ter sido em
seus dias de prosperidade, já que se mostra tão nobre e divino na
ruína. Ele parece ter noção de seu valor – e da dimensão de sua
derrocada.
– Quando jovem – contou –, sentia que estava destinado a algum
feito importante. Meus sentimentos são intensos, mas eu possuía
uma frieza de julgamento que me tornava apto a realizações
louváveis. Esse meu sentimento do valor da própria natureza
alimentava-me, quando outros talvez pudessem se sentir oprimidos
por ele, pois eu considerava um crime desperdiçar em pesares
inúteis aqueles talentos que poderiam ser benéficos a meus
semelhantes. Quando refletia sobre a obra que havia concluído, que
era nada menos do que a criação de um animal sensível e racional,
não podia me considerar no mesmo nível dos demais cientistas.
Mas esse sentimento, que me estimulou no início da carreira, agora
serve apenas para me mergulhar mais fundo na infelicidade. Todas
as minhas especulações e esperanças deram em nada, e, como o
arcanjo que aspirava à onipotência, vivo acorrentado a um inferno
eterno. Minha imaginação era fértil, e meu poder de análise e de
dedicação era imenso. Por meio da junção dessas qualidades,
concebi a ideia e concluí a criação de um homem. Mesmo agora me
emociono ao relembrar meus devaneios enquanto a obra estava
prestes a ser concluída. Em meus pensamentos, eu percorria o
paraíso, ora exultante com meus poderes, ora excitado com a ideia
de seus efeitos. Desde a infância, nutria altas expectativas e uma
ambição portentosa. Como decaí! Oh! Meu amigo, se tivesse me
conhecido antes, não iria me reconhecer agora nesse estado de
degradação. Raramente o desânimo visitava meu coração; um
destino grandioso parecia me fazer avançar, até que caí, e nunca,
nunca mais hei de me reerguer.
Devo então abrir mão desse ser admirável? Tenho ansiado por
um amigo, procurado encontrar alguém que tenha afinidade comigo
e me estime. E, veja você, fui encontrá-lo justamente nesses mares
desertos. Mas receio que tenha sido só para reconhecer seu valor e
perdê-lo. Gostaria de reconciliá-lo com a vida, mas ele se mostra
avesso a essa ideia.
– Eu lhe agradeço, Walton – disse ele –, por suas boas intenções
em relação a mim, um desgraçado infeliz. Mas quando fala em
novos laços e afetos, acredita mesmo que haja algo capaz de
substituir aqueles que se foram? Acha que algum homem pode
representar para mim o que Clerval representou, ou alguma mulher
ocupar o lugar de Elizabeth? Mesmo quando os afetos não são
fortemente movidos por qualidades mais elevadas, os companheiros
de nossa infância sempre têm sobre nossas mentes um poder que
um amigo que venha mais tarde dificilmente terá. Eles conhecem
nossas disposições da meninice, que, por mais que possam ser
alteradas mais tarde, nunca são erradicadas, e sabem julgar nossas
ações com observações mais precisas quanto à integridade de
nossas motivações. Uma irmã ou um irmão nunca podem, a não ser
que tais indícios tenham surgido antes, suspeitar que o outro
cometeu fraude ou algo escuso, mas outro amigo, por mais forte
que seja sua ligação, talvez possa, mesmo à revelia de si mesmo,
ser invadido por essas suspeitas. Eu tive, porém, amigos que me
eram queridos não só em decorrência do hábito e da convivência,
mas por seus méritos, e, onde quer que eu esteja, a reconfortante
voz da minha Elizabeth e a conversa de Clerval serão sempre
sussurradas aos meus ouvidos. Estão mortos; por isso, na minha
solidão encontro apenas um sentimento que me convence a
continuar vivo. Se estivesse envolvido em algum alto
empreendimento ou projeto de evidente utilidade para meus
semelhantes, poderia continuar a viver para levá-lo adiante. Mas
meu destino não é esse. Tenho que perseguir e destruir o ser ao
qual dei existência, e então meu papel na Terra terá se cumprido, e
poderei morrer.
2 de setembro
Minha querida irmã,
Escrevo-lhe cercado de perigos e sem saber se estou fadado ou
não a rever minha querida Inglaterra e os amigos ainda mais
queridos que nela vivem. Estou bloqueado por montanhas de gelo
que não oferecem saída e ameaçam a todo momento esmagar meu
navio. Esses bravos homens, que persuadi a serem meus
companheiros, olham para mim pedindo ajuda, mas não posso fazer
nada. Há algo terrivelmente espantoso na nossa situação, mas
ainda preservo a coragem e a esperança. E, no entanto, é terrível
pensar que as vidas de todos esses homens estão em perigo por
minha causa. Se estamos perdidos, minhas maquinações insanas é
que são a causa.
Ainda assim, Margaret, o que será de seu estado mental? Não
receberá a notícia da minha morte e ficará aguardando
ansiosamente minha volta. Os anos irão passar e você terá
momentos de desespero, mas continuará torturada pela esperança.
Oh! Querida irmã, a dolorosa frustração de suas fervorosas
expectativas é, na minha imaginação, algo mais terrível do que
minha própria morte. Mas você tem marido e filhos maravilhosos, e
deverá ser feliz: que os céus a abençoem e lhe concedam isso!
Meu infeliz convidado olha para mim com a mais terna
compaixão. Esforça-se para me encher de esperança e fala como
se a vida fosse um bem que ele valorize. Faz questão de me
lembrar que acidentes como esse são muito frequentes com outros
navegantes que se aventuram por esses mares, e, apesar da minha
resistência, faz prognósticos animadores. Até os marinheiros
sentem o poder de sua eloquência: quando fala, parecem ficar
menos desesperados. Ele desperta as energias, e enquanto ouvem
sua voz, acreditam que essas vastas montanhas de gelo são
obstáculos menores, que irão se desvanecer diante da
determinação do homem. Mas são sentimentos transitórios. A cada
dia, o fato de terem de protelar a expectativa lhes infunde mais
medo, e receio que o desespero possa levá-los a um motim.
5 de setembro
Acaba de ocorrer uma cena tão absolutamente incomum que,
embora seja muito improvável que essa carta chegue até você, não
posso deixar de registrá-la.
Estamos ainda rodeados por montanhas de gelo e sob o risco
iminente de sermos esmagados por elas. O frio é excessivo, e
muitos dos meus desafortunados camaradas já encontraram seu
túmulo em meio a esse cenário de desolação. A saúde de
Frankenstein declina a cada dia: uma centelha de arrebatamento
ainda brilha em seus olhos, mas está exaurido, e, se de repente tem
que fazer algum esforço, logo volta a mergulhar em um estado
aparentemente inanimado.
Mencionei na última carta meu temor de um motim. Esta manhã,
ao me sentar e observar o semblante ausente de meu amigo – seus
olhos semicerrados, os braços pendendo inertes –, me sobressaltei
com a chegada de meia dúzia de marinheiros à minha cabine.
Entraram, e seu líder se dirigiu a mim. Disse que ele e seus
companheiros haviam sido escolhidos pelos demais para vir
conversar comigo e fazer um pedido que não seria justo eu negar.
Estávamos bloqueados pelo gelo, e talvez nunca mais
conseguíssemos escapar, mas eles temiam que, se o gelo cedesse,
como era possível ocorrer, e uma passagem fosse aberta, eu
tivesse ainda ímpeto suficiente para seguir viagem e levá-los a
enfrentar novos perigos, depois de terem felizmente superado este.
Portanto, queriam de mim a promessa solene de que, caso o barco
fosse liberado, eu dirigiria meu curso na mesma hora para o sul.
Essa fala me perturbou. Eu não estava desesperado e tampouco
concebia a ideia de voltar, caso o navio fosse liberado. Assim,
poderia eu, sendo justo, ou mesmo por hipótese, recusar o pedido?
Hesitei antes de responder, e então Frankenstein, que de início
ficara calado, e na realidade mal parecia ter forças para ouvir, de
repente ficou em pé. Seus olhos brilhavam, e suas faces ganharam
um rubor momentâneo. Dirigindo-se aos homens, disse:
– O que vocês pretendem? O que estão pedindo ao seu capitão?
Quer dizer então que vão abrir mão tão facilmente de seu objetivo?
Não diziam que esta seria uma expedição gloriosa? E por que
gloriosa? Certamente não porque a rota fosse fácil e tranquila como
nos mares do sul, mas porque seria cheia de perigos e de terror,
porque a cada novo incidente teriam que recorrer à sua força e
exibir sua coragem, porque o perigo e a morte rondariam, e vocês
teriam que combater e superar esses obstáculos. Por isso seria
gloriosa, por isso era uma empreitada louvável. Por causa dela
vocês seriam saudados como benfeitores de sua espécie, teriam
seu nome venerado, como membros de um grupo de homens que
enfrentaram a morte para a honra e benefício da humanidade. E
agora, vejam só, diante da primeira ameaça de perigo, ou, se
quiserem, do primeiro teste duro e terrível de coragem, recuam e se
contentam em ser tratados como homens que não tiveram força
suficiente para suportar o frio e o perigo, e que, portanto, como
pobres almas, ficaram enregelados e voltaram para o calor de suas
lareiras! Ah, para isso não teriam sido necessários tantos
preparativos, nem precisariam ter ido tão longe e arrastado seu
capitão ao vexame de um fracasso, apenas para provar a vocês
mesmos sua covardia. Vamos! Sejam homens, ou mais que
homens. Mantenham seu propósito e fiquem firmes como uma
rocha. Esse gelo não é da mesma matéria que seus corações
poderiam ser: ele é mutável, e não resistirá à sua força se vocês
assim determinarem. Não voltem às suas famílias com o estigma do
fracasso marcado na testa. Voltem como heróis que lutaram e
venceram, e que não sabem o que é virar as costas à adversidade.
Ele disse isso com uma voz tão modulada pelos diferentes
sentimentos expressos em sua fala, com um olhar tão cheio de
elevadas intenções e de heroísmo, que você já pode imaginar o
quanto aqueles homens ficaram comovidos. Entreolharam-se, sem
saber o que responder. Então eu falei. Pedi que se retirassem e
considerassem o que havia sido dito: que eu não iria levá-los para o
norte, caso desejassem muito o contrário, mas tinha a esperança de
que, com essa reflexão, recuperassem a coragem.
Eles foram embora, e me voltei para o meu amigo, mas ele já
mergulhara de novo na lassidão, em um estado quase privado de
vida.
Como tudo isso terminará não sei dizer, mas teria preferido
morrer a voltar vergonhosamente, sem ter cumprido meu propósito.
Temo, porém, que seja esse o meu destino. Os homens, sem o
apoio de ideias de glória e honra, nunca poderão, por vontade
própria, continuar suportando as presentes dificuldades.
7 de setembro
A sorte está lançada. Eu consenti com a nossa volta, caso não
sejamos destruídos. Vejo, portanto, que minhas esperanças foram
aniquiladas pela covardia e pela indecisão. Volto ignorante e
desapontado. E vou precisar de mais filosofia do que a que possuo
para poder suportar essa injustiça com resignação.
12 de setembro
Já passou. Estou voltando à Inglaterra. Perdi as esperanças de
ser útil e de alcançar glórias. Perdi meu amigo. Mas vou me esforçar
para detalhar essas dolorosas circunstâncias, querida irmã, pois não
quero voltar à Inglaterra e ao seu encontro com uma sensação de
abatimento.
No dia 9 de setembro, o gelo começou a se mover, e estrondos
como os das trovoadas eram ouvidos à distância, conforme as ilhas
se fendiam e se fragmentavam em todas as direções. Vivíamos sob
o mais iminente perigo, mas como só nos restava permanecer
passivos, minha principal preocupação continuava a ser meu infeliz
convidado, cuja doença agravou-se a tal ponto que o mantinha
totalmente confinado à cama. O gelo estalava embaixo de nós, e era
empurrado com força para o norte. Uma brisa soprava do oeste, e
no dia 11 a passagem para o sul ficou perfeitamente livre. Quando
os marinheiros viram isso, e perceberam que seu retorno ao país
natal estava aparentemente assegurado, um grito de turbulenta
alegria irrompeu entre eles, alto e prolongado. Frankenstein, que
dormitava, acordou e perguntou a causa do tumulto.
– Gritam – disse eu – porque logo estarão de volta à Inglaterra.
– Quer dizer que você está voltando?
– Ai de mim! Sim. Não posso contrariar a vontade deles. Não
posso levá-los à revelia para enfrentarem perigos. Tenho que voltar.
– Faça isso se quiser, mas eu não vou. Você pode abrir mão de
seu propósito, mas o meu foi designado pelos céus, e não ouso
renunciar a ele. Estou fraco, mas com certeza os espíritos que
assessoram minha vingança irão dotar-me de força suficiente.
Dizendo isso, fez menção de levantar da cama, mas esse esforço
era grande demais para ele e caiu de volta, desmaiado.
Passou tempo até que se recuperasse, e algumas vezes pensei
que a vida tivesse se extinguido nele. A certa altura, abriu os olhos,
mas respirava com dificuldade e era incapaz de falar. O médico lhe
deu uma beberagem revigorante e ordenou que o deixássemos
descansar. A certa altura, comentou que meu amigo com certeza
não tinha muitas horas de vida.
Sua sentença fora pronunciada, e eu só podia lamentar e
aguardar. Sentei ao lado da cama, em vigília. Ele estava de olhos
fechados, e achei que dormia, mas a certa hora chamou-me com
voz fraca, pedindo que me aproximasse. Disse então:
– Ai de mim! A força em que confiava me abandonou. Sinto que
vou morrer logo, e ele, meu inimigo e perseguidor, talvez ainda
esteja vivo. Não pense, Walton, que nos últimos momentos de
minha existência eu ainda sinta arder em mim aquele ódio e o forte
desejo de vingança que venho expressando, mas de qualquer modo
sinto-me justificado em desejar a morte de meu adversário. Nesses
últimos dias, ocupei-me em examinar minha conduta passada, e não
encontrei nada de condenável. Em um arroubo de louco
entusiasmo, criei um ser racional, e meu compromisso em relação a
ele era assegurar-lhe, o quanto estivesse em meu poder, sua
felicidade e seu bem-estar. Esse era meu dever, mas havia outro,
que o sobrepujava. Meus deveres em relação aos seres da minha
própria espécie pediam maior atenção de minha parte, pois
envolviam maior proporção de felicidade ou infelicidade. Amparado
por essa visão, recusei, e fiz bem em recusar, a criação de uma
companheira para a primeira criatura. Ela mostrou uma maldade e
um egoísmo sem par: destruiu meus amigos, dedicou-se a eliminar
seres dotados de sensações, de felicidade e de sabedoria em grau
altamente refinado. Sequer sei onde essa sede de vingança irá
parar. Um ser desgraçado como ele tem que morrer, para evitar que
faça mais gente infeliz. A tarefa de destruí-lo estava em minhas
mãos, mas falhei. Quando era movido por egoísmo e motivos
perversos, pedi a você que assumisse o trabalho que não consegui
concluir, e renovo esse pedido, agora que me sinto induzido apenas
pela razão e pela virtude.
Ainda assim, não posso pedir-lhe que renuncie ao seu país e aos
seus amigos para cumprir essa tarefa. E agora que está voltando à
Inglaterra, é pouco provável que o encontre. Mas deixo a seu critério
a consideração desses aspectos e a ponderação daquilo que
acredita serem seus deveres. Meu julgamento e minhas ideias já
estão perturbados pela proximidade da morte. Não ouso pedir-lhe
que faça o que acredito ser o certo, pois talvez ainda esteja sendo
mal guiado pela paixão.
O fato de ele continuar a viver como um instrumento de
malefícios me perturba. De resto, essa hora em que aguardo minha
partida é a única hora feliz de que desfrutei nesses últimos anos. As
imagens dos entes queridos pairam ao meu redor, e anseio por seu
abraço. Adeus, Walton! Busque sua felicidade em paz, e evite a
ambição, mesmo que ela tenha apenas a inocente aparência de
desejo de um destaque na ciência e nas descobertas. Mas por que
digo isso? Embora eu tenha fracassado em relação a essas
expectativas, outros poderão ser bem-sucedidos.
Sua voz foi ficando mais fraca enquanto falava, e a certa altura,
exaurido pelo esforço, mergulhou no silêncio. Cerca de meia hora
depois, tentou falar mais, mas não teve forças. Apertou minha mão
levemente, e seus olhos se fecharam para sempre, com a radiância
de um doce sorriso percorrendo por um breve instante seus lábios.
Margaret, o que poderia eu comentar sobre a prematura extinção
desse glorioso espírito? O que poderia eu dizer que a fizesse
compreender a profundidade de meu pesar? Tudo o que poderia
expressar seria inadequado e insuficiente. Minhas lágrimas
escorrem e minha mente é coberta por uma nuvem de
desapontamento. Mas sigo rumo à Inglaterra, e lá deverei encontrar
consolo.
Sou interrompido. O que significam esses sons? É meia-noite,
sopra uma brisa leve, e o vigia no convés mal se mexe. De novo,
ouço o som de uma voz humana, só que mais rouca. Vem da cabine
onde ainda estão os restos de Frankenstein. Preciso ir lá e conferir.
Boa noite, minha irmã.
Deus do céu! Que cena acabo de presenciar! Fico com vertigens
só de relembrá-la. Nem sei se terei condições de relatá-la em
detalhes, embora a história que acabo de contar certamente ficaria
incompleta sem essa espantosa catástrofe final.
Entrei na cabine onde jaziam os restos mortais de meu admirável
amigo de malfadado destino. Debruçava-se sobre ele uma forma
que não encontro palavras para descrever. De estatura gigantesca,
mas com proporções grosseiras e distorcidas. Ao se inclinar sobre o
caixão, seu rosto ficou oculto por longas mechas de cabelo
desgrenhado, mas ele mantinha estendida a mão enorme, com cor
e textura similares às de uma múmia. Quando ouviu o som da minha
aproximação, parou de proferir exclamações de pesar e horror e deu
um salto em direção à janela. Nunca havia contemplado uma visão
tão horrorosa quanto a daquele rosto, de uma feiura asquerosa e
aterradora. Involuntariamente, fechei os olhos e me esforcei para
relembrar quais eram minhas obrigações em relação àquele
monstro. Disse a ele que ficasse.
Ele parou, olhando-me espantado e, virando-se de novo em
direção ao corpo inerte de seu criador, pareceu esquecer minha
presença, e todas as suas feições e gestos davam a impressão de
serem instigados pela furiosa raiva de alguma paixão incontrolável.
– Esta é mais uma das minhas vítimas! – exclamou. – Com sua
morte, meus crimes se encerram. A infeliz trajetória de meu ser
chega ao fim! Oh, Frankenstein! Generoso e dedicado ser! De que
valeria agora eu pedir que me perdoasse? Eu, que o destruí de
maneira irreversível ao matar todos os que você amava. Ai de mim!
Ele está frio, não pode mais responder.
A voz dele parecia sufocada, e meu primeiro impulso, após a
promessa que fizera ao meu amigo moribundo de atender ao seu
pedido e destruir seu adversário, ficava agora suspenso por uma
mistura de curiosidade e compaixão. Aproximei-me daquele ser
tremendo. Não ousava erguer de novo o olhar para aquele rosto,
pois havia algo muito assustador e sobrenatural na sua feiura. Tentei
falar, mas as palavras morreram em meus lábios. O monstro
continuava proferindo autorrecriminações desvairadas e
incoerentes. Por fim, tomei a resolução de me dirigir a ele, em uma
das pausas daquela sua tempestuosa exaltação:
– Agora é inútil arrepender-se – disse eu. – Se tivesse ouvido a
voz de sua consciência e prestado atenção aos aguilhões do
remorso antes de dar tão extremada vazão à sua diabólica
vingança, Frankenstein ainda estaria vivo.
– Por acaso está sonhando? – disse o demônio. – Imagina então
que eu era insensível à agonia e ao remorso? Ele – disse,
apontando para o cadáver – não sofreu mais do que eu na
consumação dessas ações. Oh! Nem a décima milésima parte da
angústia que senti durante os prolongados detalhes de sua
execução. Um egoísmo assustador impelia-me adiante, ao mesmo
tempo que meu coração era envenenado pelo remorso. Acha que os
gemidos de Clerval eram música para os meus ouvidos? Meu
coração foi feito para ser sensível ao amor e à simpatia, e, quando
empurrado pela infelicidade à perversidade e ao ódio, teve que
suportar a violência dessa mudança com uma tortura que você não
é capaz nem de imaginar.
Depois de assassinar Clerval, voltei à Suíça, arrasado, com o
coração partido. Tinha pena de Frankenstein. Minha pena
transformou-se em horror: eu abominava a mim mesmo. Mas
quando descobri que ele, responsável ao mesmo tempo pela minha
existência e pelos meus inenarráveis tormentos, tinha a ousadia de
almejar a felicidade, e que, enquanto me cobria de desgraças e
desespero, almejava comprazer-se em sentimentos e paixões que
eu jamais poderia desfrutar, então fui tomado por uma inveja
impotente e por uma amarga indignação, que despertaram uma
insaciável sede de vingança. Lembrei-me da ameaça que fizera e
decidi cumpri-la. Sabia que preparava para mim mesmo uma tortura
mortal, mas era o escravo, e não o senhor de um impulso que
abominava, embora não fosse capaz de desobedecê-lo. E quando
ela morreu, então! Não, naquela hora não me senti abjeto. Já havia
banido todo sentimento e dominado toda a angústia, e me entreguei
ao desvario do meu desespero. O mal, a partir de então, virou bem.
Levado a esse extremo, não tinha escolha, a não ser adaptar minha
natureza a algo que havia deliberadamente escolhido. Levar a cabo
meu propósito demoníaco tornou-se uma paixão insaciável. E agora
acabou; eis minha última vítima!
De início, a exposição de sua infelicidade comoveu-me, mas
quando me lembrei do que Frankenstein dissera sobre seus poderes
de eloquência e persuasão e de novo lancei um olhar à forma sem
vida de meu amigo, a indignação reacendeu em mim.
– Desgraçado! – disse eu. – Agora vem lamentar a desolação que
criou. Você ateia fogo a um bloco de casas e, quando estão
consumidas, senta em cima das ruínas e lamenta. Demônio
hipócrita! Se este aqui que você pranteia estivesse vivo, ainda seria
o alvo, seria de novo a vítima de sua maldita vingança. Não é pena
o que você sente; o que lamenta é simplesmente que a vítima de
sua malignidade não esteja mais em seu poder.
– Oh, não! Não é isso – interrompeu o ser –, embora possa ser
essa a impressão que você extrai daquilo que parece ser o
propósito de minhas ações. Não busco despertar um sentimento de
solidariedade pelo meu sofrimento. Nunca vou poder contar com a
compaixão de ninguém. Ao procurá-la, no início, o que queria
compartilhar era o amor à virtude, os sentimentos de felicidade e
afeto que transbordavam de todo o meu ser. Mas agora que a
virtude se tornou para mim uma sombra e que a felicidade e o afeto
se transformaram em um desespero amargo e odioso, aonde
deveria eu buscar compaixão? Contento-me em sofrer sozinho,
enquanto durarem meus sofrimentos: quando morrer, sei muito bem
que a repulsa e o opróbio irão acompanhar minha memória. Antes,
minha fantasia era apaziguada por sonhos de virtude, de fama e de
satisfação. Já houve tempo em que nutri falsas esperanças de
conviver com seres que, relevando minha forma exterior, iriam me
amar pelas excelentes qualidades que eu fosse capaz de expressar.
Era nutrido por altos pensamentos de honra e devoção. Mas agora o
crime degradou-me abaixo do animal mais pérfido. Nenhuma culpa,
nenhum malfeito, nenhuma maldade, nenhuma infelicidade podem
ser comparados aos meus. Quando rememoro o assustador
catálogo dos meus pecados, não consigo acreditar que sou aquele
cujos pensamentos já foram uma vez preenchidos por visões
sublimes e transcendentais da beleza e da magnificência da
bondade. Mas é assim; o anjo caído torna-se um demônio maligno.
No entanto, até esse inimigo de Deus e do homem conta com
amigos e companheiros na sua desolação. Não é o meu caso. Estou
totalmente só.
E você, que chama Frankenstein de seu amigo, parece ter
conhecimento de meus crimes e de meus infortúnios. Mas ele, ao
lhe dar os detalhes a respeito, talvez não tenha acrescentado todas
as horas e meses de infelicidade que suportei, consumido por
paixões impotentes. Porque apesar de destruir as esperanças dele,
não por isso consegui satisfazer meus desejos. Sempre foram
ardentes e insatisfeitos. Continuava a desejar amor e amizade, e era
sempre rejeitado. Não terá havido nenhuma injustiça nisso? Será
que devo ser visto como o único criminoso, quando a humanidade
inteira pecou contra mim? Por que não odeia Félix, que expulsou um
amigo de sua casa com ofensas? Por que não execra o camponês
que tentou destruir quem lhe salvou a filha? Não! Esses são seres
virtuosos e imaculados! Eu, o miserável e abandonado, eu é que
sou um aborto, tratado com escárnio, chutado e pisado. Mesmo
agora meu sangue ferve ao relembrar essas injustiças.
Mas é verdade, sou de fato um desgraçado. Assassinei gente
adorável e indefesa. Estrangulei inocentes enquanto dormiam,
apertando até a morte sua garganta que jamais ofendera a mim ou a
qualquer outro ser vivo. Promovi a desgraça de meu criador, seleto
espécime de tudo o que é digno de amor e admiração entre os
homens. Persegui-o até causar-lhe irremediável ruína. Lá está ele
agora deitado, com a palidez e a frieza da morte. Você me odeia,
mas sua abominação não se iguala àquela com a qual encaro a mim
mesmo. Olho as mãos que perpetraram esses feitos, penso no
coração no qual a ideia deles foi concebida, e anseio pela hora em
que essas mãos não mais irão encontrar meus olhos, quando essa
imaginação não irá mais assombrar meus pensamentos.
Não tenha medo de que eu possa ser o instrumento de outras
maldades. Meu trabalho está praticamente concluído. Nem a sua
morte nem a de qualquer homem é necessária para consumar a
trajetória de meu ser e para cumprir o que deve ser feito. Basta
minha própria morte. Não pense que vou demorar a realizar esse
sacrifício. Sairei de seu barco na mesma balsa de gelo que me
trouxe até aqui e vou procurar o extremo mais ao norte deste globo.
Erguerei uma pira funerária e consumirei até as cinzas esse
miserável arcabouço, para que não reste nenhum vestígio capaz de
inspirar a curiosidade e impiedade de algum desgraçado a criar
outro igual a mim. Devo morrer. Não devo mais sentir as agonias
que agora me consomem, ou ser presa de desejos insatisfeitos,
ainda que não extintos. Está morto aquele que me trouxe à vida, e
quando eu não mais existir, a própria memória de nós dois irá
esvair-se rapidamente. Não verei mais o sol ou as estrelas, nem
sentirei o vento bater em meu rosto. A luz, as emoções e os
sentidos irão desaparecer, e nessa condição encontrarei minha
felicidade. Alguns anos atrás, quando pela primeira vez deparei com
as imagens que este mundo oferece, quando senti as cálidas
carícias do verão e ouvi o farfalhar das folhas e o gorjeio das aves e
isso era tudo para mim, teria chorado ao pensar na morte; agora, ela
é meu único consolo. Poluído por meus crimes, dilacerado pelo mais
amargo remorso, onde poderia achar descanso a não ser na morte?
Adeus! Deixo-o, como último ser da espécie humana que esses
meus olhos irão contemplar. Adeus, Frankenstein! Se você fosse
ainda vivo e alimentasse o desejo de vingança contra mim, este
seria mais bem saciado se me deixasse vivo do que me destruindo.
Mas não é assim. Você buscou minha extinção para que eu não
causasse mais desgraças. Mas se, por alguma maneira que me é
desconhecida, você ainda não tiver cessado de pensar e sentir, não
poderá desejar vingança maior que isto que sinto. Por mais terrível
que tenha sido sua maldição, minha agonia será ainda maior, pois o
amargo aguilhão do remorso não cessará de lacerar minhas feridas
até que a morte venha fechá-las para sempre.
Mas em breve – gritou ele, com um triste e solene entusiasmo –
deverei morrer, e o que agora sinto não mais haverá quem o sinta!
Essas intensas penúrias serão logo extintas. Irei ascender
triunfalmente em minha pira funerária e exultar na agonia das
torturantes chamas. A luz desse fogo irá minguar, e o vento varrerá
minhas cinzas para o mar. Meu espírito dormirá em paz. Ou, se
continuar pensando, com certeza não será mais como o faz agora.
Adeus.
Dito isto, saltou pela janela do camarote sobre a balsa de gelo
que flutuava junto ao barco. E foi levado embora pelas ondas,
perdendo-se na escuridão e na distância.
FIM
* O médico inglês Erasmus Darwin (1731-1802), amigo dos Godwin (pais de Mary Shelley)
e avô do evolucionista Charles Darwin (1809-1882), era um dos cientistas de maior
prestígio em sua época. (N.T.)
** Este prefácio foi escrito por Percy Bysshe Shelley, marido de Mary Shelley, aqui sob o
pseudônimo Marlow. (N.T.)
*** A expressão em italiano schiavi ognor frementi [“escravos sempre agitados”] é uma
alusão aos italianos do norte que lutavam pela devolução dos seus territórios – parte do
nordeste do país e da Lombardia –, cedidos à Áustria pelo Congresso de Viena (1814-
1815). Muitos deles foram presos por atividades ditas subversivas, especialmente em
Milão, e encarcerados na Áustria. Mais tarde, vários membros da intelligentsia milanesa
radicaram-se na Inglaterra, entre eles o pai do poeta inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-
1882). (N.T.)
**** Do poema A balada do velho marinheiro, de Samuel T. Coleridge (1772-1834). No
original: “Like one who, on a lonely road,/ Doth walk in fear and dread,/ And, having once
turned round,/ walks on, And turns no more his head;/ Because he knows a frightful fiend
/Doth close behind him tread”. (N.T.)
***** Como no original, embora, pela lógica, o correto fosse Alpes. (N.E.)
****** Agulhas; cumes altos e pontiagudos. Em francês no original. (N.E.)
******* Nesse trecho (aqui em tradução livre), a autora incluiu duas estrofes do poema
Mutability, de P. B. Shelley (1792-1822), poeta inglês, com o qual foi casada. Os versos
originais são: We rest; a dream has power to poison sleep./ We rise; one wand’ring
thought pollutes the day./ We feel, conceive, or reason; laugh, or weep,/ Embrace fond
woe, or cast our cares away;/ It is the same: for, be it joy or sorrow,/ The path of its
departure still is free./ Man’s yesterday may ne’er be like his morrow;/ Nought may endure
but mutability! (N.T.)
******** Neologismo criado pelo poeta inglês John Milton (1608-1674), no seu Paraíso
perdido, para nomear a capital imaginária do Inferno. No uso comum, o mesmo que
tumulto, balbúrdia, confusão. (N.E.)
******** O asno e o cão, fábula de Esopo. (N.T.)
******** Do poema “A Abadia de Tintern”, de William Wordsworth (1770-1850). (N.T.)
******** Tédio ou melancolia. Em francês no original. (N.E.)
******** Expressão que significa “saudade do país”. Em francês no original. (N.E.)
Vozes Negras em Comunicação
Corrêa, Laura Guimarães
9788551307144
244 páginas

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Tensionadas pelos sujeitos e pelos movimentos emancipatórios, as


articulações entre comunicação e raça, bem como as imbricações
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artigos que compõem este livro interpretam, indagam e propõem
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para compreender e desvelar como a mídia, que atravessa as
nossas vidas, é forjada, historicamente, no contexto de profundas
desigualdades. Nilma Lino Gomes

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A invenção de si e do mundo
Kastrup, Virgínia
9788582178812
256 páginas

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"É muito agradável o sentimento que agora me cativa diante desta


singela certeza: a de que estarei vivendo feliz minha tentativa de
escrever […] coisas favoráveis a este livro. Digo tentativa porque
pressinto que minhas frases elogiosas serão insuficientes para
delinear a efetiva importância que as pessoas descobrirão nesta
obra, sejam elas especialistas ou não. Primeiramente, trata-se de
um livro bem escrito. Não digo isso apenas para salientar a
qualidade prazerosa de sua leitura. Ele é bem escrito porque sua
clareza é especial. Com efeito, em vez de fingir simplicidade, em
vez de expor-se como fácil luz comunicativa, dessas que acabam
ofuscando por exibirem tão-somente a si próprias, a clareza deste
livro envolve-se com a complexidade do assunto que o imanta, que
nos dispõe e nos leva a pensá-lo com rigor que ele merece. A
fluência do estilo de Virgínia Kastrup, com simpatia, carinho e
competência, e sem perder um ar de paciente sorriso, vai cuidando
de um tema difícil e escorregadio, o tema da cognição, essa
misteriosa potência que é capaz de nos lançar para além da mera
aquisição de conhecimento." Luiz B. L. Orlandi

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O Potomak
Cocteau, Jean
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240 páginas

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Cem anos depois da sua primeira publicação, O Potomak se revela


aos leitores lusófonos como um baú de preciosidades. Neste livro,
encontramos máximas consagradas de Jean Cocteau e um
vanguardismo literário extraordinário, em que texto e imagem
compõem, conjuntamente, a narrativa de um romance dedicado a
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de Serge Diaghilev. Quando, em uma noite de 1912, Diaghilev disse
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resposta melhor: O Potomak. Nesse universo perfeitamente
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edições francesas de 1919 e 1924. É chegado o momento de você
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vida de casados de Anne e Gilbert Blythe. Logo após o casamento
no pomar de Green Gables, os dois se mudam para a "casa dos
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Anne de Green Gables
Montgomery, Lucy Maud
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Se você gostou de Pollyanna, vai se apaixonar por Anne de Green


Gables. Quando os irmãos Marilla e Matthew Cuthbert, de Green
Gables, na Prince Edward Island, no Canadá, decidem adotar um
órfão para ajudá-los nos trabalhos da fazenda, não estão
preparados para o "erro" que mudará suas vidas: Anne Shirley, uma
menina ruiva de 11 anos, acaba sendo enviada, por engano, pelo
orfanato. Apesar do acontecimento inesperado, a natureza
expansiva, sempre de bem com a vida, a curiosidade, a imaginação
peculiar e a tagarelice da menina conquistam rapidamente os
relutantes pais adotivos. O espírito combativo e questionador de
Anne logo atrai o interesse das pessoas do lugar – e muitos
problemas também. No entanto, Anne era uma espécie de
Pollyanna, e sua capacidade de ver sempre o lado bonito e positivo
de tudo, seu amor pela vida, pela natureza, pelos livros conquista a
todos, e ela acaba sendo "adotada" também pela comunidade.
Publicada pela primeira vez em 1908, esta história deliciosa, que
ilustra valores fundamentais como a ética, a solidariedade, a
honestidade e a importância do trabalho e da amizade, teve
numerosas edições, já tendo vendido mais de 50 milhões de cópias
em todo o mundo. Foi traduzida para mais de 20 idiomas e
adaptada para o teatro e o cinema. Mais recentemente, inspirou
também a série Anne com E, já com duas temporadas na Netflix.

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