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M. W. S.
Londres, 15 de outubro de 1831.
PREFÁCIO
Muito afetuosamente,
R. W.
CARTA 4
– Maldito, maldito criador! Por que continuei vivo? Por que não
extingui naquele instante a centelha de vida que com tamanha
petulância você me inculcou? Não sei dizer. O desespero ainda não
havia se apoderado de mim. Meus sentimentos eram de raiva e
desejo de vingança. Poderia com prazer ter destruído o chalé e seus
moradores, e me fartado com seus gritos e sua infelicidade.
Quando a noite chegou, saí de meu retiro e vaguei pelos
bosques. E agora, não mais refreado pelo medo de ser descoberto,
dei vazão à minha angústia com uivos assustadores. Era como um
animal selvagem rompendo as amarras, destruindo os objetos que
me obstruíam e varrendo o bosque com a rapidez de um cervo. Ah!
Que noite miserável passei! As frias estrelas brilhavam como se
zombassem de mim, e as árvores desfolhadas agitavam seus
galhos sobre minha cabeça; a intervalos, o doce canto de um
pássaro rompia um silêncio universal. Todas as coisas, exceto eu,
descansavam ou se satisfaziam; eu, como o arquidemônio, trazia
um inferno dentro de mim, e, vendo-me rejeitado, desejava
destroçar as árvores, espalhar o caos e a destruição à minha volta,
e depois sentar e desfrutar da visão das ruínas.
Mas essa era uma exuberância de sensações que não podia
durar. Fatiguei-me com o excesso de esforço físico e afundei na
grama úmida, na nauseante impotência do desespero. Entre a
miríade de homens, não havia sequer um que pudesse
compadecer-se de mim ou ajudar-me. E, contudo, deveria eu ter
bons sentimentos para com meus inimigos? Não: a partir daquele
momento, declarei guerra perpétua à espécie e, acima de tudo,
àquele que me havia formado e me lançado nessa desgraça
insuportável.
O sol nasceu. Ouvi vozes de homens e soube que era impossível
voltar ao meu refúgio naquele dia. Escondi-me, então, no mato
denso, decidido a dedicar as horas seguintes a refletir sobre minha
situação.
O sol agradável e o ar puro permitiram-me recuperar um pouco a
tranquilidade, e quando avaliei o que acontecera no chalé, tive que
admitir que havia sido precipitado demais em minhas conclusões.
Com certeza, agira de modo imprudente. Era evidente que minha
conversa colocara o pai a meu favor, e que fora uma tolice expor
minha pessoa ao horror dos filhos dele. Deveria ter feito o velho De
Lacey familiarizar-se comigo, e pouco a pouco me revelar ao resto
da família, quando já estariam preparados para a minha
aproximação. Mas não achava que meus erros eram irreparáveis e,
depois de ponderar muito, decidi voltar ao chalé, procurar o velho e
usar meus argumentos para trazê-lo para o meu lado.
Esses pensamentos me acalmaram, e à tarde caí em um sono
profundo, embora a febre de meu sangue não me permitisse ser
visitado por sonhos tranquilos. A horrível cena do dia anterior não
parava de passar diante dos meus olhos: as mulheres fugindo e o
enfurecido Félix arrancando-me dos pés de seu pai. Acordei
exausto, e como achava que já era noite, arrastei-me para fora de
meu esconderijo para buscar comida.
Depois de aplacar a fome, dirigi meus passos para o familiar
caminho que levava ao chalé. Tudo ali estava tranquilo. Enfiei-me
de novo na minha toca e permaneci em silêncio, à espera da hora
em que a família costumava se levantar. Essa hora passou, e o sol
já ia alto no céu, mas os moradores do chalé não apareceram. Senti
um tremor intenso, receando algum infortúnio terrível. O interior do
chalé estava às escuras, e não se ouvia nenhum movimento. Não
posso descrever a agonia desse suspense.
A certa altura, dois camponeses passaram por ali e pararam junto
ao chalé, iniciando uma conversa, acompanhada por veemente
gesticulação, mas eu não entendia o que diziam, pois falavam a
língua do país, diferente da dos meus protetores. Logo depois,
porém, Félix apareceu com outro homem; fiquei surpreso ao ver que
não havia saído do chalé naquela manhã, e aguardei ansiosamente
que o seu discurso me desse alguma pista do sentido de tudo
aquilo.
– Está levando em conta – disse o homem a Félix – que será
obrigado a pagar três meses de aluguel e que perderá a produção
de sua horta? Não quero tirar nenhuma vantagem indevida, portanto
peço que passe alguns dias reconsiderando sua decisão.
– Isso seria totalmente inútil – replicou Félix –, nunca mais
poderemos habitar seu chalé. A vida de meu pai corre grande risco,
devido à terrível circunstância que já lhe relatei. Minha esposa e
minha irmã nunca mais irão se recuperar do horror. Peço que
desista de argumentar comigo. Assuma a posse de seu imóvel e
deixe-me ir embora desse lugar.
Félix tremia fortemente enquanto dizia isso. Ele e seu
acompanhante entraram no chalé, no qual permaneceram alguns
minutos, e então partiram. Nunca mais vi nenhum dos membros da
família De Lacey.
Continuei o resto do dia no meu esconderijo, em um estado de
profundo e estúpido desespero. Meus protetores tinham ido embora
e rompido o único vínculo que me prendia ao mundo. Pela primeira
vez, sentimentos de vingança e ódio preencheram meu íntimo, e
não fiz esforço para contê-los. Deixei-me levar pela corrente e
entreguei minha mente à ofensa e à morte. Quando pensava em
meus amigos, na suave voz de De Lacey, nos olhos meigos de
Agatha e na exótica beleza da árabe, esses pensamentos se
desvaneciam, e uma torrente de lágrimas me trazia algum alívio.
Mas quando relembrava que haviam me rejeitado e abandonado, a
raiva voltava com toda a fúria, e, como era incapaz de machucar um
ser humano, voltava minha ira para os objetos inanimados. A noite
chegou, e então espalhei vários combustíveis em volta do chalé; e,
depois de destruir todos os vestígios de cultivo na horta, aguardei
com impaciência que a lua desaparecesse para dar início às minhas
operações.
A noite avançou, e um vento forte surgiu dos bosques e dispersou
as nuvens que haviam restado: raios rasgaram o céu como em uma
poderosa avalanche e produziram uma espécie de insanidade em
meu espírito, explodindo todos os limites da razão e da reflexão.
Pus fogo ao ramo seco de uma árvore e dancei furiosamente em
volta do amado chalé, os olhos ainda fixos no horizonte, cuja
beirada a lua quase tocava. Por fim, uma parte de seu orbe se
escondeu, e brandi meu galho. A lua mergulhou no horizonte, e,
com um potente grito, ateei fogo à palha, ao mato e aos arbustos
que havia coletado. O vento avivou o fogo, e o chalé foi logo
envolvido pelas chamas que se agarravam a ele e o lambiam com
suas labaredas bifurcadas e destruidoras.
Assim que me convenci de que nenhuma ajuda seria capaz de
salvar parte alguma daquela moradia, abandonei o local e procurei
refúgio nos bosques.
E agora? Com o mundo todo à minha frente, para onde deveria
dirigir meus passos? Decidi fugir para longe da cena dos meus
infortúnios. Mas, para alguém como eu, odiado e desprezado,
qualquer lugar seria igualmente horrível. A certa altura, veio-me à
mente você. Soube pelos seus papéis que era meu pai, meu criador.
E haveria alguém mais adequado para recorrer do que aquele me
dera a vida? Nas aulas que Félix ministrava a Safie, a geografia não
havia sido omitida: eu aprendera então a localização relativa dos
diferentes países da Terra. Você mencionava Genebra como o nome
de sua cidade natal, e foi para lá que decidi ir.
Mas como deveria me orientar? Sabia que teria que seguir na
direção sudoeste para chegar ao meu destino, mas meu único guia
era o sol. Não sabia os nomes das cidades pelas quais iria passar,
nem podia pedir informações a quem quer que fosse. Mesmo assim,
não me desesperei. Você era a única pessoa de quem poderia
esperar ajuda, embora não nutrisse outro sentimento por você a não
ser o ódio. Insensível e cruel criador! Você me dotara de percepções
e paixões, e depois me expulsara e entregara à humanidade como
um objeto de escárnio e horror. Mas só de você poderia reclamar
alguma piedade e reparação, e decidi procurar em você a justiça
que em vão tentara obter de algum outro ser dotado de forma
humana.
Minhas viagens foram longas, e suportei intensos sofrimentos.
Era o final do outono quando saí do distrito onde residira por tanto
tempo. Viajava só à noite, por medo de deparar com o rosto de um
ser humano. A natureza degradava-se à minha volta, e o sol já não
propiciava nenhum calor. Chuva e neve caíam ao meu redor; vi rios
imensos congelados, a superfície da terra endurecida, gelada e nua,
e eu sem abrigo. Oh, terra! Quantas vezes amaldiçoei a causa de
minha existência! Minha natureza mais afável desaparecera, e tudo
dentro de mim se transformara em amargura e ódio. Quanto mais
me aproximava de sua morada, mais profundamente sentia o
espírito de vingança inflamar meu coração. Caía neve, as águas
endureciam, mas eu não tinha descanso. Ia guiado por algumas
indicações naturais, e possuía um mapa do país, mas era comum
me afastar muito do meu caminho. A agonia dos meus sentimentos
não me dava trégua: não havia incidente do qual minha raiva e
infelicidade não extraíssem alimento. Mas um evento que ocorreu
ao chegar à fronteira da Suíça, quando o sol já recuperara seu calor
e a terra de novo começava a verdejar, confirmou de maneira
particular a amargura e o horror de meus sentimentos.
Eu geralmente descansava de dia e só viajava quando a noite me
ocultava do olhar do homem. Uma manhã, porém, ao constatar que
meu caminho se estendia por um bosque denso, decidi continuar
minha jornada depois que o sol nasceu. O dia, um dos primeiros da
primavera, alegrava até a mim mesmo, com o magnífico esplendor
do sol e uma brisa agradável. Senti reviverem emoções de
benevolência e prazer que julgava mortas há muito tempo. Meio
surpreso pela novidade dessas sensações, permiti-me ser levado
por elas e, esquecendo minha solidão e deformidade, ousei me
sentir feliz. Lágrimas suaves voltaram a cobrir minhas faces, e até
ergui meus olhos úmidos com gratidão para o abençoado sol, que
me trouxera tamanha alegria.
Continuei pelas sinuosas trilhas do bosque até chegar ao seu
limite, margeado por um rio profundo e rápido, sobre o qual várias
árvores inclinavam seus galhos, agora florescendo com a primavera
recém-chegada. Ali parei, sem saber direito que caminho tomar,
quando ouvi o som de vozes e me escondi à sombra de um cipreste.
Mal havia me ocultado quando uma jovem chegou correndo em
direção ao ponto em que estava escondido, rindo, como se
brincasse de fugir de alguém. Ela continuou sua fuga pela margem
íngreme do rio, mas de repente escorregou e caiu na correnteza
rápida. Saí às pressas do meu esconderijo e com muito esforço,
devido à intensidade da corrente, salvei-a, arrastando-a até a
margem. Ela estava sem sentidos, e fiz de tudo a meu alcance para
reanimá-la, mas fui interrompido pela aproximação de um
camponês, que provavelmente era a pessoa de quem ela brincava
de fugir. Quando me viu, o camponês partiu para cima de mim e,
arrancando a garota dos meus braços, correu em direção às partes
mais densas do bosque. Fui imediatamente atrás dele, sem saber
bem por quê, mas quando o homem viu que me aproximava,
apontou a arma que carregava e disparou. Caí no chão, e meu
agressor, com maior pressa ainda, embrenhou-se pelo bosque.
Era essa então a retribuição à minha bondade! Eu salvara um ser
humano da destruição e como recompensa contorcia-me agora com
a intensa dor de uma ferida que destroçara carne e osso. Os
sentimentos de benevolência e docilidade que experimentara alguns
momentos antes deram lugar a uma fúria infernal e ao ranger de
dentes. Incendiado pela dor, jurei eterno ódio e vingança à
humanidade. Mas a agonia pelo meu ferimento era maior. Meu pulso
ficou fraco, e desmaiei.
Durante algumas semanas levei uma vida miserável no bosque,
preocupado em fazer sarar o ferimento. A bala entrara no meu
ombro, e não sabia se o trespassara ou se ainda estava ali alojada.
De qualquer modo, não teria como extraí-la. Meus sofrimentos eram
intensificados também pela opressiva sensação de injustiça e
ingratidão, pela maneira com que me haviam sido infligidos.
Reiterava todos os dias minhas promessas de vingança – uma
vingança cabal e mortífera, que pudesse compensar os ultrajes e
agonias que havia suportado.
Após algumas semanas, minha ferida sarou, e continuei a
jornada. Os sofrimentos que suportei não eram mais aliviados pelo
sol esplendoroso ou pelas suaves brisas da primavera. Toda alegria
era apenas um escárnio, um insulto ao meu estado de desolação, e
me fazia sentir de maneira ainda mais dolorosa que eu não fora feito
para o desfrute e o prazer. Mas meus esforços agora se
aproximavam de seu término, e dois meses depois alcancei os
arredores de Genebra.
Anoitecia quando cheguei, e me recolhi a um esconderijo entre os
campos em volta da cidade, para ponderar de que modo entraria em
contato com você. Estava oprimido por fadiga e fome, e infeliz
demais para desfrutar da brisa suave da noite ou da visão de um pôr
do sol atrás das esplêndidas montanhas do Jura.
Nessa hora, uma breve soneca me aliviou das penúrias da
reflexão, mas foi perturbada pela chegada de uma linda criança, que
entrou correndo no recesso onde me escondera, com toda a
espontaneidade da infância. De repente, ao olhá-la, fui tomado pela
ideia de que aquela pequena criatura não tinha preconceitos, e
vivera muito pouco tempo para se imbuir do horror à deformidade.
Portanto, se pudesse capturá-la e educá-la como minha
companheira e amiga, não me sentiria tão desolado nessa terra
povoada.
Instigado por esse impulso, agarrei o menino quando passou e
trouxe-o para perto. Assim que me viu, cobriu os olhos com as mãos
e soltou um tremendo grito; afastei as mãos dele à força de seu
rosto e disse:
– Menino, o que significa isso? Não vou machucá-lo, ouça o que
vou lhe dizer.
Ele se debatia violentamente.
– Solte-me – gritava ele –, monstro! Infeliz, horroroso! Você quer
me cortar em pedaços e me comer. É um ogro. Solte-me, se não
vou chamar meu pai.
– Garoto, você nunca mais irá ver seu pai, terá que ficar comigo.
– Monstro horrível! Solte-me. Meu pai é magistrado, é o senhor
Frankenstein, ele irá puni-lo. Não se atreva a me raptar.
– Frankenstein! Então você é da família do meu inimigo, aquele a
quem jurei eterna vingança. Você será minha primeira vítima.
O menino ainda se debatia, e me cobriu de ofensas que levaram
meu coração ao desespero. Apertei sua garganta para silenciá-lo, e
um instante depois ele jazia morto a meus pés.
Contemplei minha vítima, e meu coração se encheu de exultação
e triunfo diabólico. Bati as mãos e exclamei:
– Também sou capaz de criar desolação! Meu inimigo não é
invulnerável. Essa morte irá deixá-lo desesperado, e mil outros
males irão atormentá-lo e destruí-lo.
Quando fixei meu olhar na criança, vi que algo brilhava em seu
peito. Peguei e vi que era o retrato de uma linda mulher. A despeito
de minha malignidade, aquela miniatura me enterneceu e me atraiu.
Fiquei alguns instantes apreciando com deleite seus olhos escuros,
emoldurados por longos cílios, e seus lábios adoráveis. Mas a certa
altura minha raiva voltou: lembrei que estava privado para sempre
das delícias que tão belas criaturas podiam conceder, e que aquela
cujo semblante eu contemplava, se olhasse para mim, iria mudar
aquele ar de divina benevolência para uma expressão de aversão e
horror.
Você se surpreende que tais pensamentos despertassem em mim
a raiva? O que me admira é apenas que naquela hora, em vez de
expressar minhas sensações com exclamações e agonia, eu não
tivesse me precipitado entre os homens e perecido na tentativa de
destruí-los.
Enquanto era dominado por essas emoções, deixei o local onde
havia cometido o assassinato e, procurando um esconderijo mais
afastado, entrei em um celeiro que me pareceu estar vazio. Uma
mulher dormia em cima de um pouco de palha. Era jovem, e na
realidade não tão bonita quanto aquela do retrato que eu guardava,
mas era de aparência agradável e radiante, na flor da sua juventude
e saúde. Eis aqui, pensei, uma daquelas que distribui sorrisos e
alegra os corações de todos, exceto eu. E então me inclinei sobre
ela e sussurrei “Desperte, linda criatura, seu amante está aqui, ele
daria a vida por um olhar de afeto de seus olhos. Minha amada,
desperte!”.
A moça agitou um pouco o corpo, e um calafrio de terror me
percorreu. Seria mesmo conveniente que despertasse, me visse e
amaldiçoasse, e me denunciasse como assassino? Certamente é o
que faria se seus olhos, agora no escuro, se abrissem e ela me
visse. O pensamento era insano e agitou o demônio em mim: não
era eu que devia sofrer, mas ela. Era ela quem deveria arcar com o
assassinato que eu cometera por estar para sempre privado de tudo
o que ela poderia me dar. Era nela que estava a raiz do crime. Pois,
então, que recebesse a punição! Graças às lições de Félix e às
sanguinárias leis dos homens, havia aprendido agora como
perpetrar maldades. Inclinei-me sobre a moça e coloquei a miniatura
com o retrato em uma das dobras de seu vestido. Ela se mexeu de
novo e eu fugi.
Perambulei por alguns dias pelo lugar onde essas cenas haviam
acontecido, às vezes desejando encontrar você, outras vezes
decidido a abandonar este mundo e suas misérias para sempre. Em
certo momento, vim para essas montanhas, e tenho vagado por
seus imensos recessos, consumido por uma paixão ardente que
apenas você pode satisfazer. Não iremos nos separar enquanto
você não cumprir minhas exigências. Estou sozinho e sou infeliz.
Nenhum homem irá se associar a mim, mas alguém que seja tão
deformado e horrível quanto eu não me negaria sua companhia.
Minha companheira terá de ser da mesma espécie que eu, ter os
mesmos defeitos. E só você pode criar esse ser.
CAPÍTULO XVII
Elizabeth Lavenza
Genebra, 18 de maio de 17...