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Data: 20/02/2022
No início do século XX, a Alemanha assombrava-se com a psicanálise de Freud
e descobria-se um inseto gigante em A Metamorfose de Kafka. Siegfried Krakauer, com
seu estudo From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film
(1947), coloca o filme como um produto de um tempo histórico e que, portanto, a
história do cinema poderia servir como um reflexo da história nacional, um seu duplo. O
cenário de O Gabinete do Dr. Caligari (Wiene, 1920), por exemplo, traduz o ambiente
das alucinações e dos sonhos, uma vez que seus recortes, ângulos, tortuosidades e
contrastes sugerem uma representação do que não é real. (O mesmo também poderia ser
dito dos entretítulos que foram considerados “crípticos” pela revista Cinéfilo no ano em
que o filme estreou em Portugal.) Lotte Eisner comenta em seu livro O Ecrã
Demoníaco (1952) o quanto isso advém da literatura expressionista e do sentimento
alemão da época e conclui que o cinema é a sua “forma de expressão ideal”.
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escolha da identidade. A identidade é limitadora, pois parte do social. Assim, o ecrã
revela a pluralidade interna e a incita. O “mundo irreal dos duplos é uma gigantesca
imagem da vida terra-a-terra” (Morin, 1980, p.34) Os mitos do cinema transpõem a tela
e transformam a sociedade que lhes deu origem. É mantida uma simbiose entre o
público e o cinema ao longo dos anos. Talvez seja assim explicada a demanda pelo
duplo, pois a oferta é variada e rende centenas de milhões de dólares todos os anos.
Versões como a The Nutty Professor (1963), de Jerry Lewis, ainda que em se
tratando de uma comédia dirigida para as massas, é um exemplo de adaptação em que o
duplo é a divisão da personalidade consciente de ser um único indivíduo. Ainda que a
metamorfose não tenha sido inteiramente intencional, a manutenção do duplo confere ao
Professor Kelp, o Jekyll da versão de Lewis, a liberdade de um ser sexual masculino
dominante. Sobre o Mr. Hyde de Kelp, Jerry Lewis diz: “I didn't like him. I didn't even
like writing Buddy Love, the despicable, discourteous, uncouth rat, much less playing
him. I asked myself: How do I know so well how to be a heel? Was I leaning to a side of
me that really existed? Certainly, I was. There was truth in him. It was also in me”
(Lewis, 2021, 62).
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Edgar Morin diz que a imagem mental é o duplo, o reflexo, uma ausência e que
pode ser tão ou mais objetivada do que o real (1980,28), partindo de uma ampliação
subjetiva da imagem objetiva, a imagem pode ser exteriorizada, tratando-se de uma
alienação ou projeção. A projeção no espaço de qualquer objeto psíquico é a
concretização de uma subjetividade. “Quanto mais poderosa é a carência subjectiva,
tanto mais a imagem a que ela se fixa tende a projectar-se, a alienar-se, a objectivar-se,
a alucinar-se, a fetichizar-se (…), tanto mais essa imagem, sem bem que aparentemente
objectiva, e exactamente por essa razão, se apresenta rica daquela carência, a ponto de
adquirir um carácter surreal” (p.29). Desta forma a imagem se manifesta como um “ser
autónomo” uma entidade independente e esse “duplo” advém do desejo mais profundo
do indivíduo: “a imortalidade”. Desta forma entende-se que o “duplo está na origem de
todos os mitos” (Lenne,1985, p.80), podendo ser “o único mito humano universal”
(Morin, 1980, 30). Nesta prova da individualidade do homem que é construído pelo
próprio homem, o duplo é o mito do indivíduo (alterego, sonhador, cadáver, fantasma)
assim como é o resultado do processo da relação do homem com tudo o que existe,
principalmente através da arte (p.31).
Em 2001, a Warner Bros. lançou o seu grande sucesso Lord of the Rings, trilogia
baseada na obra de J.R.Tolkien que, mais do que sua base literária, dominou a produção
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de filmes e séries que a tomaram como enciclopédia mítica. Antes disso, em 1977,
George Lucas, com Star Wars, recicla de tal forma os mitos da humanidade que
desenvolve uma nova mitologia moderna repetida desde então. Vampiros com reflexo e
que não dormem em caixões, fadas e lobisomens são, agora, personagens que povoam o
mesmo espaço e perderam a sua característica de “Outro” para serem “encaixados” em
narrativas sobre diversidade. Por mais que algum defensor da “alta cultura” se
incomode com isto, acreditamos que é mais perturbador a relação público/cinema
quando o tema aborda a perversidade.
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Referências:
Kangussu, I., Silva, A. C. N., (2016). Fantasia e Ideologia: o “lixo” que ingerimos
diariamente. Revista Dialectus, nª 9. https://doi.org/10.30611/2016n9id18778 [acedido
em 19/02/2022]
Morin, E. (2010). Cultura de Massas no Século XX- Volume 1: Neurose, Ed. Forense
Allen, W. (realizador). (1985). The purple rose of Cairo. [filme]. EUA: Orion.
Jackson, P. (2001). The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring[filme]