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Universidade Aberta

O DUPLO NO CINEMA E A ALTERIDADE DO REAL

Lia Cardoso Coronel Martins Cameira

Literatura e Outras Artes

Prof. Doutor Gerald Bär

Data: 20/02/2022
No início do século XX, a Alemanha assombrava-se com a psicanálise de Freud
e descobria-se um inseto gigante em A Metamorfose de Kafka. Siegfried Krakauer, com
seu estudo From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film
(1947), coloca o filme como um produto de um tempo histórico e que, portanto, a
história do cinema poderia servir como um reflexo da história nacional, um seu duplo. O
cenário de O Gabinete do Dr. Caligari (Wiene, 1920), por exemplo, traduz o ambiente
das alucinações e dos sonhos, uma vez que seus recortes, ângulos, tortuosidades e
contrastes sugerem uma representação do que não é real. (O mesmo também poderia ser
dito dos entretítulos que foram considerados “crípticos” pela revista Cinéfilo no ano em
que o filme estreou em Portugal.) Lotte Eisner comenta em seu livro O Ecrã
Demoníaco (1952) o quanto isso advém da literatura expressionista e do sentimento
alemão da época e conclui que o cinema é a sua “forma de expressão ideal”.

É de fácil compreensão a ideia do cinema como um espelho quando nos


recordamos do acontecido durante a primeira exibição de Chegada de um trem à
estação (Lumière, 1895), na qual a plateia, desesperada, ao ver o comboio que se
aproximava no ecrã, fugiu da sala. Desde então, o “espelho mágico” do ecrã tem
proporcionado as experiências mais variadas às pessoas e possibilitado que elas se
identifiquem com personagens que representam o seu mundo real, o seu mundo
imaginário ou a sua versão mais obscura. O cinema é o portal para a alteridade da vida
por excelência, é em si mesmo fantástico, desta maneira subcategorizar algumas de suas
obras como “cinema fantástico” é uma redundância, como diz Gerard Lenne (1985, 20).
Entretanto, e segundo o mesmo autor, acaba por ser denominado de “filme fantástico”
aquele que é sobre monstros, em que a alteridade é representada fisicamente e isto é
minimizar ou “degradar” o cinema fantástico, já que a essência da outridade fica
reduzida a acessório (p.23).

Portanto, o cinema que já é a experiência, ainda que à uma distância segura, de


uma outra vida, é o meio ideal do “género fantástico”, que é considerado
verdadeiramente mitológico “dado que se alimenta constantemente dos mitos que
engendra” e “revela a existência, a vinda, a evolução ou mesmo o desaparecimento de
mitos criados por e para o cinema” (Lenne, 1985, 22). O fantástico é construído a partir
de dualidades, pelo que a estrutura temática do duplo pode-se-lhe ser aplicada
facilmente (p.79). O cinema está como o espelho do que existe, materializando a
verdadeira essência múltipla do indivíduo, quando a própria individuação obriga a

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escolha da identidade. A identidade é limitadora, pois parte do social. Assim, o ecrã
revela a pluralidade interna e a incita. O “mundo irreal dos duplos é uma gigantesca
imagem da vida terra-a-terra” (Morin, 1980, p.34) Os mitos do cinema transpõem a tela
e transformam a sociedade que lhes deu origem. É mantida uma simbiose entre o
público e o cinema ao longo dos anos. Talvez seja assim explicada a demanda pelo
duplo, pois a oferta é variada e rende centenas de milhões de dólares todos os anos.

Desde O Estudante de Praga (Rye,1913), filme em que um homem “vende” o


seu reflexo para depois ser aterrorizado por ele, motivo trazido da literatura romântica,
particularmente gótica, que os aprimoramentos de técnicas cinematográficas têm
possibilitado ao duplo uma existência incontestável que ora diverte ora aterroriza uma
audiência, nem que apenas temporariamente, crente. O desdobramento, seja ele
simultâneo, como o de Frankestein, ou alternado, como no caso dos licantropos, traz
sempre o conflito entre as personalidades (Lenne, 1985).

No caso da obra literária de Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso de Dr.


Jekyll and Mr Hyde (1885), a maior parte das adaptações feitas para o cinema ignoram
ou negligenciam o fator de se tratar de um indivíduo não duplicado, mas divido, isto é,
de Mr. Hyde ser também Dr. Jekyll, ainda que uma sua parte reprimida, o Id, pelo
Superego (Jekyll), de acordo com a abordagem psicanalítica baseada em Freud,
preferindo um foco mais policial e sensacionalista, baseado na monstruosidade, no
diferente, no que não é humano. O que é compreensível, uma vez a “indústria cultural”,
visando o lucro capitalista, costuma optar por produtos que sejam compreendidos e
apreciados pelo maior número de pessoas (Morin, 2010).

Versões como a The Nutty Professor (1963), de Jerry Lewis, ainda que em se
tratando de uma comédia dirigida para as massas, é um exemplo de adaptação em que o
duplo é a divisão da personalidade consciente de ser um único indivíduo. Ainda que a
metamorfose não tenha sido inteiramente intencional, a manutenção do duplo confere ao
Professor Kelp, o Jekyll da versão de Lewis, a liberdade de um ser sexual masculino
dominante. Sobre o Mr. Hyde de Kelp, Jerry Lewis diz: “I didn't like him. I didn't even
like writing Buddy Love, the despicable, discourteous, uncouth rat, much less playing
him. I asked myself: How do I know so well how to be a heel? Was I leaning to a side of
me that really existed? Certainly, I was. There was truth in him. It was also in me”
(Lewis, 2021, 62).

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Edgar Morin diz que a imagem mental é o duplo, o reflexo, uma ausência e que
pode ser tão ou mais objetivada do que o real (1980,28), partindo de uma ampliação
subjetiva da imagem objetiva, a imagem pode ser exteriorizada, tratando-se de uma
alienação ou projeção. A projeção no espaço de qualquer objeto psíquico é a
concretização de uma subjetividade. “Quanto mais poderosa é a carência subjectiva,
tanto mais a imagem a que ela se fixa tende a projectar-se, a alienar-se, a objectivar-se,
a alucinar-se, a fetichizar-se (…), tanto mais essa imagem, sem bem que aparentemente
objectiva, e exactamente por essa razão, se apresenta rica daquela carência, a ponto de
adquirir um carácter surreal” (p.29). Desta forma a imagem se manifesta como um “ser
autónomo” uma entidade independente e esse “duplo” advém do desejo mais profundo
do indivíduo: “a imortalidade”. Desta forma entende-se que o “duplo está na origem de
todos os mitos” (Lenne,1985, p.80), podendo ser “o único mito humano universal”
(Morin, 1980, 30). Nesta prova da individualidade do homem que é construído pelo
próprio homem, o duplo é o mito do indivíduo (alterego, sonhador, cadáver, fantasma)
assim como é o resultado do processo da relação do homem com tudo o que existe,
principalmente através da arte (p.31).

Esta ausência projetada é parte da experiência de Cecília, a esposa infeliz de A


Rosa Púrpura do Cairo (Allen,1985) que durante a depressão americana “aliena-se”
com a vida mais glamorosa e romântica do cinema. Woody Allen foi questionado
muitas vezes sobre o fim de seu filme favorito. A respeito de sua escolha ele diz: “With
Mia (Farrow), real life in the film is an incredible painful thing, and we’re all forced to
choose between reality and fantasy – and, of course, you can’t choose fantasy because
there lies madness. You must choose reality. If you do choose reality, then things are
not perfect and you get hurt” (Allen, 2006,98).

A materialização do duplo no ecrã não tem limites transformando a ausência, a


carência em “presença”, deixando de ser apenas uma sugestão como na literatura ou, até
mesmo, no teatro e passando a ser uma representação. Assim, voltamos ao aspeto do
espelho que tem o ecrã, mas agora “um espelho vivo, que escapa a todo controle”
(Lenne, 1985, 79), uma vez que espelha uma proposta de imagem que afetará a
construção de outras imagens, assim como as suas confirmações, o que alcançará uma
legitimação das novas mitologias.

Em 2001, a Warner Bros. lançou o seu grande sucesso Lord of the Rings, trilogia
baseada na obra de J.R.Tolkien que, mais do que sua base literária, dominou a produção
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de filmes e séries que a tomaram como enciclopédia mítica. Antes disso, em 1977,
George Lucas, com Star Wars, recicla de tal forma os mitos da humanidade que
desenvolve uma nova mitologia moderna repetida desde então. Vampiros com reflexo e
que não dormem em caixões, fadas e lobisomens são, agora, personagens que povoam o
mesmo espaço e perderam a sua característica de “Outro” para serem “encaixados” em
narrativas sobre diversidade. Por mais que algum defensor da “alta cultura” se
incomode com isto, acreditamos que é mais perturbador a relação público/cinema
quando o tema aborda a perversidade.

Longe de reconhecimento ou de uma catarse, o género fantástico de


monstruosidades, seguindo a terminologia de Lenne, tem crescido no seu subgénero
terror, tanto no que diz à quantidade de público como à perversidade praticada por seus
monstros. Há algumas décadas, filmes como Poltergeist (Hooper,1982), The Exorcist
(Friedkin,1973) e, até o mais sádico, The Chainsaw Massacre (Hooper,1974), traziam
fantasmas, demónio e vilão, cuja intenção era a de aterrorizar a audiência. Entretanto,
podemos constatar com o surgimento de franquias como, por exemplo, Saw
(Wan,2004), uma subida bastante ingrime nos níveis de sadismo, muitas vezes
demonstrados com efeitos especiais e maquiagem incrivelmente realistas, algo que
suspeitamos seja para o deleite do público, mas a que nível? Não está aqui em questão
se tais filmes devem ou não ser feitos, apenas relacionamos a mudança e crescimento do
gore com uma possível maior identificação do indivíduo com o vilão.

A porção do indivíduo transformada em “Outro”, como é o caso de Mr. Hyde


para Dr. Jekyll de Robert Louis Stevenson, mesmo quando se tratando de um
doppelgänger, como em William Wilson de Edgar Alan Poe, pois é assim identificada
uma “entidade” independente, o que de certa maneira iliba ou atenua a culpa do
indivíduo, identifica-se com a suposta alteridade da obra ficcional, não só na obra de
terror, mas também em documentários sobre crimes ou em reality shows, suposta
porque é na verdade mimetizada ou materializada a própria estrutura subjacente na
sociedade, como na “fantasia ideológica” de Žižek, em que “ideologia não é
simplesmente algo imposto a nós. A ideologia é a nossa relação espontânea com o
mundo social, é como percebemos seu significado etc” (apud Kangussu, 2016, 8), em
que a “ideologia” é um tipo de projeção (ou alienação) da carência, dessa imagem
mental, a narrativa que criamos do mundo. Portanto, “o Real irrompe em momentos que
frequentemente consideramos “ficcionais” ou “fantasiosos” (Kangussu, 2016).

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Referências:

Allen, W. (2006). Woody Allen: Interviews. University Press of Mississippi

Kangussu, I., Silva, A. C. N., (2016). Fantasia e Ideologia: o “lixo” que ingerimos
diariamente. Revista Dialectus, nª 9. https://doi.org/10.30611/2016n9id18778 [acedido
em 19/02/2022]

Kracauer, S. (1947). From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German


Film. Princeton: Princeton U.P.

Lenne, G. (1985). O cinema fantástico e as suas mitologias, Árvore

Lewis, J. (2021). The total filmmaker. Michael Wiese Productions

Morin, E. (1980).  O cinema ou o homem imaginário – Ensaio de Antropologia, Moraes


Editores

Morin, E. (2010). Cultura de Massas no Século XX- Volume 1: Neurose, Ed. Forense

Outras obras mencionadas:

Allen, W. (realizador). (1985). The purple rose of Cairo. [filme]. EUA: Orion.

________(1929). Cinéfilo, [revista]. 23, p. 6

Friedkin, W. (1974). The Exorcist. [filme]

Hooper, T. (1982). Poltergeist. [filme]

Hooper, T. (1982). The Texas Chainsaw Massacre. [filme]

Kafka, F. (1915). A Metamorfose

Jackson, P. (2001). The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring[filme]

Lewis, J. (1963). The Nutty Professor. [filme]

Lumiére. (1895). Chegada de um trem à estação. [filme]

Rye, S. (1913). O Estudante de Praga. [filme]

Stevenson, R. (1885). O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr Hyde

Tolkien, J. (1954). The Fellowship of the Ring


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Wan, J. (2004) Saw. [filme]

Wiene, R. (1920). O Gabinete do Dr. Caligari. [filme]

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