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Inteligência Artificial1
Adrian Martin
O cinema popular contemporâ neo tem muitos blockbusters, mas poucos eventos
reais. Para que um filme seja um evento, ele precisa de mais do que simplesmente
emoçã o, esperteza ou poder de estrela; mais do que a mitologia pré-fabricada de
um ciclo de Star Wars ou o elaborado espetá culo de um Gladiador (2000).
A.I. Inteligência artificial (A.I. Artificial Intelligence, 2001) – escrito e dirigido por
Steven Spielberg a partir de uma montanha de material desenvolvido pelo falecido
Stanley Kubrick – é estranho, confrontador, má gico, enlouquecedor e inspirador.
Como blockbuster, é rebelde e fascinante – fascinante precisamente porque nem
tudo nele faz sentido ou se encaixa bem. Mas é incontestavelmente um evento
cultural da mais alta ordem.
But first, another context. One of the most poignant, tearing moments in cinema
happens an hour into Henry Hathaway’s Peter Ibbetson (1935). This today little-
known Hollywood gem is a mystical romance about two people (played by Gary
Cooper and Ann Harding) who, cruelly separated for most of their lives, manage to
meet up and frolic, forever young, in their shared dreams.
Mas, antes de mais nada, outro contexto. Um dos momentos mais pungentes e
dolorosos da histó ria do cinema acontece por volta de uma hora de duraçã o de
Amor sem fim (Peter Ibbetson, 1935), de Henry Hathaway. Esta joia hoje pouco
conhecida de Hollywood é um romance místico sobre duas pessoas (interpretadas
por Gary Cooper e Ann Harding) que, cruelmente separadas durante a maior parte
de suas vidas, conseguem se encontrar e se divertir, para sempre jovens, em seus
sonhos compartilhados.
Cooper, no entanto, leva um pouco de tempo para entender essa viagem noturna e
transcendente. Em sua primeira visã o de sonho - ocorrida enquanto cumpria uma
sentença de prisã o perpétua - sua amante se materializa e se move, como um
fantasma, pelas grades da cela. Ele continua preso, amaldiçoando a ilusã o que o
provoca: “Tudo isso é mentira!” Sua companheira fantasmagó rica responde
friamente: “Nã o pergunte por quê. Apenas acredite!"
1
Publicado originalmente em http://filmcritic.com.au/reviews/a/ai.html Traduçã o de Julio
Bezerra
Os três atos da histó ria futurista de A.I. sã o esculpidos a partir de deslocamentos
surreais e grandes saltos no espaço e no tempo. O primeiro ato é uma histó ria
íntima e familiar sobre Monica (Frances O'Connor), Henry (Sam Robards) e a
criança robô que eles adotam, David (Joel Haley Osment, uma escolha soberba) -
um protó tipo especial implantado experimentalmente com a capacidade de
desenvolver emoçõ es de amor e pertencimento.
O terceiro ato, que lembra em alguns aspectos o final de 2001 (1968), leva David a
vá rias viagens notá veis - inclusive para um futuro distante e debaixo d'á gua, onde
Nova York dorme depois que uma nova Era do Gelo atingiu a Terra.
Enquanto Ringu (1998) é sobre a fú ria onipotente de uma criança, A.I. é sobre
saudade irrefreá vel. Uma e outra vez, David explica, sussurra, reza ou grita seu
dilema: se ele puder mesmo se tornar um menino de verdade, entã o mamã e
finalmente o amará .
Kubrick costuma ser descrito como um cineasta frio, clínico e misantró pico. De
fato, Jacques Rivette chegou a dizer certa vez: “Kubrick é uma má quina, um
mutante, um marciano. Ele nã o tem nenhum sentimento humano”. Rivette
acrescentou, no entanto: “Mas é ó timo quando a má quina filma outras má quinas,
como em 2001”.3
2
Ver Denis Wood, “No Place for a Kid: Critical Commentary on The Last Starfighter”, Journal of
Popular Film and Television, vol. 14 nº 2 (1986), pp. 52-63.
3
Frédéric Bonnaud (trad. Kent Jones), “The Captive Lover – An Interview with Jacques Rivette”,
Senses of Cinema, nº. 15 (setembro de 2001).
Carlo Collodi a Walt Disney e, portanto, logicamente, a um dos cineastas
contemporâ neos mais impregnados pelos ethos, tradiçã o e ideologia da Disney.4
4
Para uma discussã o brilhante sobre o que a Disney fez com Pinó quio, veja William Paul, “Art,
Music, Nature and Walt Disney”, Movie, nº 24 (verã o de 1977), pp. 44-52.
“[Eu] concebo a histó ria da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá
no mesmo, de imaculada concepçã o. Eu me imaginava chegando pelas costas de
um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que
fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito
tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também
representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de
descentramentos, deslizes, quebras, emissõ es secretas que me deram muito
prazer.”5
Depois, há a evidente fixaçã o materna de David. A.I. pode muito bem ser o conto
edipiano mais marcante da histó ria do cinema. No auge do sonho de David de ser o
ú nico depositá rio do amor de Mô nica, ele até reflete agradavelmente: “Chega de
Henry, chega de Martin…” E a cena final, sob essa luz, é nada menos que alucinante.
Depois, há a questã o da pró pria humanidade, que suspeito ter sido o tema
orientador de Kubrick ao desenvolver o projeto. Seu interesse neste tó pico é mais
profundo do que a orientaçã o usual do estilo Star Trek em relaçã o a alienígenas,
andró ides e a evoluçã o da espécie humana - embora esse seja um nível em que os
criadores de 2001 e Jurassic Park (1993) de fato se encontram.
A.I. torna-se mais intrigante quando lembramos que os seres humanos sempre
foram entidades bastante estranhas e precá rias no cinema de Kubrick. Para
começar, o indivíduo psicoló gico de hoje é apenas um pontinho histó rico para
Kubrick, posicionado em algum lugar entre a ameba rodopiante e a informe criança
das estrelas no final de 2001, vivendo além das coordenadas estritas de tempo e
espaço.
Como muitas vezes foi observado, a visã o clínica de Kubrick sobre a humanidade o
levou a um nível paradoxal de ternura e compaixã o. Só ele poderia apresentar
criaturas inteiramente fabricadas – como o computador HAL em 2001 ou o
ambulante Teddy em A.I. – como os personagens mais intrigantes e até
encantadores de uma histó ria; apenas ele imaginaria o ciú me bá sico, obsessivo e
5
Gilles Deleuze, “Carta a um crítico severo”, citado e traduzido por Terence Blake, Agent Swarm, 12
de julho de 2016.
6
Devo, neste ponto, a Dana Polan, “Jack and Gilles: Reflections on Deleuze’s Cinema of Ideas”, Art &
Text, nº 34 (Primavera de 1989), pp. 23-30.
paranó ico (em De olhos bem fechados, 1999) como o traço humano mais essencial e
universal.
A.I. leva esta investigaçã o kubrickiana da humanidade ao seu ponto mais extremo e
deliberadamente confuso. A histó ria apresenta seus humanos nominais como
movidos principalmente pelo ego – expresso em um desejo ilimitado de ser amado
e adorado (Hobby: “No princípio, Deus nã o criou Adã o para amá -lo?”). Quanto à s
emoçõ es das quais os mechas sã o capazes, o filme permanece resolutamente
ambíguo até o fim.
Qual é a jornada de David, afinal? Ele realmente se torna humano no final? Duas
outras dú vidas fundamentais corroem como cupins no coraçã o deste familiar
conto de Peter Pan spielbergiano.
A.I. transborda de situaçõ es, palavras e eventos que ficam esfregando nossos
narizes na natureza ilusó ria e artificial de tais crenças oníricas – desde a
capacidade de Joe de literalmente fundir as categorias de fato e conto de fadas, até
a inesquecível apariçã o de uma má gica Fada Azul que é na verdade uma está tua
cafona de Coney Island. A mã o do infiel e sempre cético Kubrick certamente está
trabalhando no momento em que um David devastado assiste a esse ícone cafona
desmoronar lentamente em mil pedaços.
No coraçã o do filme, você pode sentir essa guerra constante entre Kubrick, o
misantropo gélido e sardô nico, e Spielberg, o otimista incurá vel, o sonhador com
um sorriso idiota. O ú nico recurso de Spielberg é levar seu pequeno heró i ainda
mais fundo no reino da fantasia de realizaçã o de desejos. Enquanto David brinca
com um fantasma de sua mã e em um lar celestial mais fantá stico do que qualquer
coisa que Peter Ibbetson teve a chance de visitar, o típico sonho Spielbergiano
tornado realidade é simultaneamente afirmado e completamente dobrado sobre si
mesmo.
Este pode nã o ser o drama que A.I. pretendia transmitir, mas é ele que o torna um
filme rico e imperdível.