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mo embagam as fronteiras entre 0 real ¢ o ficcional a0 fabrica- rem narrativas ¢ imagens do eu que se traduzem como a repre- sentagio de vidas reais, No tiltimo ensaio, a figura da boneca, representada na literatura, fotografia, artes plisticas e publicidade, coloca em pauta o desejo mimético de transformar a matéria inerte em objeto encantatério. A boneca hiper-real 0 fcone de novos tipos de experiéncia subjetiva nos quais o “realismo” de cada dia é substitufdo pelo fetiche do desejo imaginério. 4 1. Modernidade cultural e estéticas do realismo Modernidade: projeto, momento histbrico e experiéncia cultural realismo estético na fotografia, cinema, literatura ¢ meios de comunicagao constituiu-se como um senso comum que permeia a percepgio do cotidiano na modernida- de. Essa premissa nao € novidade.! As conseqiiéncias disso, assim como a definigio do que venha a scr o realismo estéti- £0, € que, todavia, despertam controvérsias. Desde 0 século XIX, quando o realismo surge como uma nova estética, a que- rela em torno de sua legitimidade enquanto “representacio da realidade” desenvolveu-se em campos antagdnicos. Em linhas gerais, os que aderem aos idedrios estéticos do realismo enfatizam uma conexao vital entre representagdo e experién- cia da realidade. Os que se opéem a legitimagao privilegiada dos eédigos realistas insistem que o “realismo” é uma conven= so estilfstica como outras que, entretanto, mascara seus pr6- prios processos de ficcionalizacao justamente porque as nor- mas da percepcao cotidiana se medem pela naturalizagio da “visio de mundo” realista do momento.2 Entre essas demar- cagées, concordo com ambas. Ou seja, endosso, como o critico inglés Raymond Williams, a idéia de que as estéticas do rea- lismo erftico almejam captar as manciras cotidianas pelas quais 0s individuos expressam seus dilemas existenciais por 15 meio das experiéncias subjetivas ¢ sociais que estio em circu lago nas montagens da realidade social. Oferecem, dessa forma, uma intensificagao desses imagindrios, na tentativa de tornar o cotidiano amorfo, fragmentirio ¢ dispersivo mais sig- nificativo, embora, muitas vezes, o retrato social que resulte disso seja o de cendrios desolados. Mas isso néo exclu a segun- da consideracao, ou seja, de que essai estéticas so socialmen- te codificadas, que clas so interpretagées da realidade ¢ nao a realidad. O paradoxo do realismo consiste em inventar ficgdes que parecem realidaded, Entretanto, a esse espelhamento deve-se adicionar outro componente. A Fealidade € socialmente fabri- cada, ¢ uma das postulages d& modernidade tardia € a per- cepgio de que os imagin4rios culturais séo parte da realidade € que nosso acesso ao real € a realidade somente se processa por meio de representacées, narrativas ¢ imagens, Entretanto, © que € a “realidade” ¢ por que as estéticas do realismo so 0 mais adequado meio para retraté-la € um assunto que suscita um candente debate. Nas palavras de Joel Black, A realidade nunca esteve em tanta demanda quanto agora za nossa cultura global mediada pelos meios de comunica- foe pelo cinema [...] Na medida em que ha uma crescente demanda pela realidade, ela também é crescentemente con- testada. A realidade nas sociedades liberais, democriticas € mediadas pela midia nao é auto-cvidente, mas € constante- mente contestada e disputada3 ‘Uma das conseqiiéncias da globalizagio cultural foi, pre- cisamente, a naturalizagio dos cédigos do realismo como forma de apreensao do cotidiano. O realismo como percep¢io do cotidiano, avaliago de condigdes materiais ¢ registro de realidade pautada na evidéncia dos fatos legitima uma apreen- sio da realidade que se tornou costumeira na nossa vivéncia didria, na nossa racionalizagio comezinha do mundo, In- clusive, 0 manejo dos registros realistas abaliza a entrada cul- 6 tural na modernidade. Entretanto, enfatizo que se hé algum. sentido unificador no conceito de realismo é que ele se carac- teriza por uma visio de mundo que exclui ou coloca em qua rentena fantasias, crengas esotéricas, tradigdes misticas ou so- nhos romAnticos que também se manifestam na fabricagao social da realidade na modernidade. Daf o sentido comum de ser “realista” em contraponto ao devaneio fantasioso. Ou seja, hé uma naturalizagio do registro realista na pro- dugio dos noticidrios, nos romances do cotidiano, no controle expectativas do presente ¢ do futuro ¢, a0 mesmo tempo, hi um mundo de fantasias consumistas, devaneios publicitérios, praticas misticas, imagens e narrativas que nos evocam mun- dos encantados, improvaveis e delirantes. O que caracteriza a ficgio realista, nos seus diversos avatares desde seu surgimen- to no século XIX até hoje, € que a narrativa ou imagem realis- ta nos diz que est em sintonia com a experiencia presente, que ela traduz a equiparagio entre a representacio do mundo ¢ a realidade social. Entretanto, no mundo global saturado pelos meios de comunicagao, evidenciamos uma superprodu- gio de imagens de realidade. Neste prinefpio do século XX1, com 0 esmorecimento das vanguardas e a fragmentagio de agendas politicas, 0 realismo crftico reemerge em diferentes vertentes, tecendo um contra- ponto com o realismo sentimentalizado das telenovelas, 0 rea~ lismo mainstream dos filmes de Hollywood, o realismo sensa- cionalista da imprensa, 0 realismo espetacularizado dos reality shows, entre outros. Hé, nos meios de comunicagio, uma pro- dugio de “realidades” exacerbada pelo sensacionalismo, pela propulsio do choque, pela necessidade imperiosa de produzir novidades, pela vertiginosa velocidade de informagdes frag- mentérias que nao compdem um retrato total do social-global. Sc as estéticas do realismo sao variadas, as modernidades com as quais o realismo se relaciona também sio plurais. Co- mo conceituar a modernidade? Como definir o realismo esté- rd tico? Ambas as questées, sobretudo a primeira, foram to co- piosamente debatidas ¢ interpretadas, que tragar as principais correntes intelectuais e estéticas que as responderam constitui, em si, um esforco avantajado. Portanto, minha resposta a essas, indagacdes ser4, necessariamente, didética, sintética, parcial e seletiva na medida em que o que busco enfatizar é a conexao en- tte as estéticas do realismo e conceitos de modernidade cultural. No tocante a nogio de modernidade, quero enfoc4-la em tués aspectos. A modernidade entendida como projeto, como perfodo histérico e como experiéncia cultural. Enquanto proje- to, parto de uma corrente académica que situa a modernidade atrelada ao Iegado iluminista do século XVII! Legado este que visava 3 emancipagio do homem, a domesticagio da natu- reza, a0 questionamento da tradico, A crenca no progresso € na razio cientifica ¢ 3 aposta num futuro diverso do presente. Este projeto de modernidade, segundo a ética de Habermas, seré ainda o fomentador do espago piiblico que possil © agenciamento politico da comunidade de cidadaos ¢ a cria- so de esferas auténomas da ciéncia, moralidade ¢ arte.5 Hi4 uma copiosa bibliografia que rebate, precisamente, a nogio de espaco ptiblico em Habermas, enfatizando que sua concepcio de um diélogo racional entre pares resulta numa elaboracao idcalizada do agenciamento politico, j4 que as motivagées que regem 0 comportamento social nao se encontram plena- mente encapsuladas pela racionalidade consensual. Mas, enquanto projeto de modernidade, o que me interessa enfati- zar &, justamente, a dimensio conceitual, a proposta inovado- +a do projeto moderno que, ao questionar os fundamentos da autoridade da tradi¢io, modificou as concepgdes sacras do mundo ¢ abalizou o pensamento racional como o instrumen- to opcracional e interpretativo do social. Vale ressaltar que no h4 uma equiparagio direta entre 0 idedrio da modernida- de do projeto iluminista e os processos de modernizacio eco- nOmicos ¢ sociais desencadeados pelas sucessivas revolugdes técnico-industriais, consolidagio do Estado-nagio burgués, 18 ampliagio dos mercados capitalistas, burocratizagao do Esta- do, primazia da racionalidade instrumental e expansio impe-~ rialista, Tais ingredientes compdem, sobretudo, a modernida- de do século XIX. Os ideérios do conhecimento cientéfico, emancipagao social e questionamento da tradi¢io nfo estio causalmente conectados aos processos de modernizagio. De fato, excetuando-se alguns paises da Europa, os Estados Unidos ¢ Canads, no restante do mundo, a despeito da difu- sio global dos idedrios modernos, a modernizagio econdmica niio foi necessariamente acompanhada pela emancipagio polt- tica e social, nem pela consolidagao de arenas piblicas ou por formas democriticas de representagio social. Mesmo na Euro- pa, Estados Unidos e Canad4, 0s idesrios universalistas de dania no foram implementados de forma igualitéria. Na América Latina, tal como apontam Roberto DaMatta, Nestor Garcia Canclini, Roberto Schwarz, Claudio Lomnitz e tantos outros, os idedrios da modernidade conviveram com priticas politicas caudilhescas, e a modernizagao social e técnica nio climinou crengas tradicionais ¢ visdes magicas do mundo.’ Como jé fora salientado pelos socidlogos latino-america- nos da teoria da dependéncia nos anos 1960 e como atualmen- te est em pauta nos estudos pés-coloniais indianos, € pratica- mente impossivel mencionar a histria da América Latina, Africa ou Asia sem referir-se 4 Europa e aos parametros da modernidade européia, enquanto o inverso, discorrer sobre a hist6ria da Europa nao implica, necessariamente, uma com- preensio das especificidades culturais nao curopéias. Entretanto, mesmo os que endossam a invengio da moderni- dade no Ocidente néio podem negligenciar que a modernidade a modernizagio da Europa fomentaram-se pela sua expan- sio imperial e por meio da absorcio de figuras do exético, pri- :aitivo ou estrangeiro e mesmo do confronto com elas. De fato, no filéo dos “subaltern studies” ¢ dos estudos p6s-coloniais, antropélogos, criticos literdrios, entre outros, enfatizam que a modernidade como visio de mundo é engendrada na expan- 19 so imperial da Europa, porque é diante do “outro” coloniza- do que 0 curopeu tecerd sua defini¢io de individualidade, nacionalidade ¢ secularizacio.? Ou seja, é somente nesta zona de contacto do controle colonial-imperial que 0 europeu se inventa. Os idedrios do projeto moderno e as caracterfsticas da modernidade técnica, secular, capitalista e racional- instrumental ganham poder de difusio global ¢ se modificam de acordo com as caracteristicas especfficas das culturas locais. Na sua acepedo ocidental, essa modernidade foi entrevista por Max Weber como constitutiva de uma visio de mundo desencantada, A famosa metifora da modernidade como “gaiola de ferro” enfatiza a percepcio de Weber sobre a condi- so moderna como sendo a de controle, disciplina, razio ins- trumental, pragmatismo calculista que promoveria o desen- cantamento do mundo na medida em que negaria 0 magico, mifstico, misterioso e oculto.8 Em um sentido espectfico, o desencantamento do mundo supe o triunfo da racionalidade instrumental que moldou, inclusive, a propria ética religiosa. A perda de magia de um mundo onde os seres humanos nao dialogam mais com forcas ocultas incide na racionalizagao religiosa e na apropriagao utilitéria da natureza, Em sentido mais amplo, o desencanta- mento do mundo gerou uma crise de sentidos, na medida em que a ciéncia ¢ a técnica nao seriam capazes de oferecerem explicagées sobre o significado da existéncia humana. De forma consoante com 0 “desencantamento” de Weber, Michel Foucault ird entrever a modernizagio como um proceso de criagdo de instituigdes de vigildncia, purificagio disciplina, configuradas em Ambitos espaciais especificos, tais como a escola, a fabrica e a prisio. O individuo moderno seria aquele ‘que se autoconstréi mediante a interiorizagao das normas vigilantes sociais.2 Como periodo histérico, a modemidade que viso enfocar € aquela que se consolida a partir do século XIX, porque este € © perfodo que assiste a0 surgimento do realismo estético ¢ a0 20 impacto da modcrnizagio na emergéncia de uma nova cultu- ra técnico-urbana. Em outras palavras, 0 século XIX tece a coincidéncia entre modernidade como periodo histérico e modernidade enquanto experiéncia cultural cotidiana para os habitantes das grandes metr6poles. A proliferagao de fabricas industriais, o inchamento de cidades com multidées de seres anénimos, a alteragio do ritmo cotidiano, acelerado pela velo- cidade dos novos meios de transporte (trem, bonde elétrico © carro); ¢, finalmente, o impacto das novas maquinas de visua~ lidade (cAmera fotogr4fica, camera cinematografica) ¢ de meios de comunicagio (telégrafo) imprimem, na experiéncia moderna, a vertigem do novo, do efémero e do choque.!? No século XIX, a cultura do consumo consolida-se com 0 surgimento de lojas de departamento ¢ com a criagao de novas formas de entretenimento, notadamente, o éxito formidével dos romances de folhetim publicados nos jornais. Nessa cul- tura do consumo e do mercado, a arte adquire uma fungio diversa. Ao lado do mecenato tradicional, da aristocracia ¢ da Igreja, o artista deve se projetar no mercado ¢ buscar ingresso nos sales abalizados. As fronteiras entre alta cultura, cultura de massa ¢ cultura de vanguarda foram negociadas e minadas a0 mesmo tempo. De fato, a tessitura da experiéncia cultural no século XIX parece compor-se do embate entre tendéncias contraditorias € complementares. De um lado, a racionalidade pragmitica ¢ calculadora que projeta luctos, métodos de disciplina ¢ contro- le social. De outro, fortemente influenciados pelo romantismo, 0s imagindtios do desejo enfatizando a validade da paixio, do sonho e da transgressio. Nas palavras de Colin Campbell, A l6gica cultural da modernidade nfo € meramente a da racionalidade, como se expressa nas atividades de cilculo ¢ cexperimentagio: € também a da paixio ea do sonhar criati- vo que nasce do anscio (...) Lutando para enfrentar a neces- sidade de proceder 4s trocas entre a nccessidade € 0 prazer, ‘enquanto procuram conciliar seus egos boémio ¢ burgués, a 0s in de ferro’ da necessidade ccondmica, mas num castelo de sonhos romanticos, esforcando-se, mediante sua conduta, para transformar um no out {duos modernos no moram somente numa ‘gaiola A cultura do consumo, conforme explicita Campbell, redine tanto a légica calculadora da produgio de mercadorias visando ao lucro, quanto a fabricagao publicitéria que fomen- ta sedugio dos objetos. A conhecida critica marxista a reifi- cacao das mercadorias enfatiza isso: 0 ocultamento do célculo capitalista e do trabalho para luzir 0 produto, fazendo-o pare- cer encantado. Para Walter Benjamin, que se dedicou a explo- rar 0s primérdios da cultura do consumo urbano nas passa- gens de Paris do século XIX, a sedugio dos objetos induz a uma fantasmagoria de sonhos irrealizados.!? As passagens de Paris com seu comércio caduco e suas méquinas desativadas eram a expressio “arqueol6gica” daqueles anseios de felicida- de. Nas palavras de Agnes Heller, “O fetichismo das merca- dorias (as relagées humanas aparecem como se fossem rela- ‘des entre coisas) exemplifica a experiéncia moderna da deso- rientagio, a ignordncia sobre as conseqtiéncias de nossas agées ‘¢ dos mecanismos do mundo. O mundo racional (desencan- tado) é simultaneamente encantado. A troca de mercadorias, 0 mercado enchem o mundo de aparéncias fantasmag6ricas”.!3 A “gaiola de ferro” e o shopping center sintetizam a opo- sigio € complementaridade entre a racionalidade instrumen- tal € 0 convite ao desfrute hedonista tornando-os partes da mesma engrenagem social, inscritas na produgio e circulagio das mercadorias. A experiéncia cultural resultante da emer- géncia dessa nova sociedade industrial e do consumo se expressa, conforme assinalado na citagio de Campbell, em correntes estéticas diversas que representam, de forma geral, visdes do mundo distintas que podem ser caracterizadas pela oposicao entre 0 romantismo € o realismo/naturalismo."4 As caracteristicas do imagindrio romantico sio conhecidas: exal- tagio da imaginacio, enaltecimento do individuo extraordi- a nario, busca pelo insélito, maravilhoso e ex6tico, critica a0 raciocinio instrumental, culto ao amor como sublimagio, valo- rizagio da natureza em simbiose com a consciéncia humana, énfase na cultura popular e na comunidade de senti experiéncias coletivas ¢, finalmente, a ironia auto-reflexiva sobre seus préprios mecanismos de fabulagao. Em suas varia- das formas ¢ nuances, 0 romantismo popularizou-se ¢ criow, segundo a expresso de Raymond Williams, “estruturas de sentimento” 15 Modificou, sobretudo, os costumes e atitudes em face do amor, da subjetividade e da experiencia. Se 0 alto romantismo artistico na poesia insurgiu-se con- tra 0 cotidiano do utilitarismo pragmatico e também buscou ‘um sublime transcendente além do hedonismo consumista, a popularizacio do imagindrio romantico, por sua vez, esco- Iheu certos repertérios da busca pela auto-expressio indivi- dual, gerando uma gama de expectativas sobre a realizagio de sonhos de felicidade cotidiana. Herofnas padecendo de amor, heréis galantes, crapulas inescrupulosos ¢ obstéculos sociais ‘emergem no romance sentimental ¢ gético do século XVIII, surgem nas peripécias do romance em folhetim jornalistico do século XIX ¢ finalmente desembocam e se modificam no grande caudal da producio massiva de filmes, fotonovelas, telenovelas, romances ¢ seriados televisivos que alimentam a inddistria cultural até hoje. A arte realista, no século XIX, se insurge como critica aos fantasmas romAnticos popularizados, a0 devaneio escapista ¢ a0 imaginério fantasioso. Argumenta | Williams que o realismo tina como objeto de representagio .-] uma realidade costumeira, contempordnca ¢ cotidiana em oposigio aos assuntos tradicionalmente herdicos, roman- || ticos ou legendérios. © adjetivo que usualmente caracterizava \ 0 realismo era ‘startling’ estarrecedor ‘surpreendente’ e no bojo da ‘realidade comum e corrente’ uma atengio particular || 4 Sob o crivo do olho realista, o cotidiano banal torna-se assunto de interesse artistico. Nas palavras de Linda Nochlin, © intuito primario da arte realista era “oferecer uma verdadei- ra, objetiva e imparcial representagio do mundo real baseada na observagio meticulosa da vida contemporanea”.\7 Este, entretanto, € 0 cerne da questo. Nao se trata apenas de que o cotidiano seja valorizado como experiéncia significativa, mas sim a nogio extrafda do pensamento cientifico de que o arti ta pode atuar como um observador imparcial e objetivo da vida tal como cla é, Em outras palavras, h4, neste idedrio do realismo, uma desconfianga em relagio 0s poderes transfor- madores da imaginagio. No vertiginoso mundo da moderni- dade onde, nas palavras do Manifesto Comunista, “tudo se dis- solve no ar”, a énfase recai na promogao de uma pedagogia da realidade de maneira a formar um ptiblico de leitores ¢ espec- tadores aptos a decodificarem 0 social de acordo com 0 empi- rismo critico da observagao. ‘A desconfianga realista da imaginagfo, algo que era exal- tado como fonte essencial da criatividade no idedrio romanti- co, também é fruto do desencantamento do mundo na modet- nidade € parte do esforgo de enfocar a realidade como docu- mento social que deve ser revelado para denunciar a condigfo humana. Como jé mencionado, na acepgio estrita de Max Weber, 0 desencantamento do mundo conduz a visio desola- da da modernidade como “gaiola de ferr0”, sociedades regula- doras onde os individuos encontram-se submetidos a engre- nagens sociais desprovidas de epifanias. Mas o desencanta- mento do mundo também possibilitou 0 questionamento dos feitigos” do passado e a introdugdo de um imaginério secular ut6pico, A secularizagio e desmagificagao do mundo também fomentaram os idearios iluministas da cmancipagio social, 0 questionamento dos fundamentos ¢ da autoridade hierarquica € 0 anscio por uma sociedade transformadora de agenciamen- tos politicos, sociais, econémicos e culturais. Em contrapartida, no teencantamento, a modernidade cultural oferece cenérios 4 de deleite no fetiche das mercadorias, nas sedugbes publicité- rias, na cultura do espetaculo e do entretenimento. “Desen- cantamento do mundo” e “reencantamento do mundo” sao complementares nao somente pelas sedugdes do consumo, mas também porque o pensamento técnico ¢ cientifico convi- veu com o surgimento de novas formas de espiritualidade, crengas misticas, préticas transgressivas de liberagio indivi- dual e do culto ao irracional. As respostas artisticas ao desen- cantamento ¢ reencantamento do mundo tensionaram-se entre as correntes realistas ¢ as diversas estéticas do romantis- mo, vanguardismo, modernismo. ‘Ao tecer o questionamento das engrenagens sociais que promovem a opressio social, ao buscar as nuances subjetivas € psicolégicas dos seus personagens, ao pintar e fotografar 0 cotidiano dos anénimos, o realismo critico promoveu uma vi- sio “desencantada” do mundo que, entretanto, dialogava com os anseios € aspiragées de mundos melhores. De forma diver- sa, 0 romantismo, certas correntes vanguardistas, como 0 sur- realismo, e expressbes especificas do modernismo artistico rcintroduziram as possibilidades de encantamento na moder- nidade por meio das experiéncias do sublime rom{ntico, estra- nhamento vanguardista, epifania modernista e maravilhoso surreal. Tratava-se, sobretudo, de combater a petrificagio da normatividade, de demolir a racionalidade instrumental e de perfurar 0 déja vn cotidiano pela ago poetizadora da arte. As vanguardas artisticas, expresses do modernismo cultural e, sobretudo, a contracultura jovem dos anos 1960 ¢ 70 busca~ ram validar estilos de vida e formas de experiéncia contrérios aos pardmetros do realismo burgués. Na riqueza dessas con- testagées, na absorcdo transcultural entre Oriente ¢ Ocidente, as experiéncias diversas da modernidade cultural demonstram que uma faceta crucial do ser moderno € 0 questionamento da propria modernidade. 5 Novos ¢ velhos realismos Enquanto representagio estética, o realismo é, nas pal ‘Terry Eagleton, “um dos termos mais escorregadios”.!8 Esta dimensfo fluida atesta no somente que uma pluralidade de estilos e formas de representacao se expressa pela rubrica “rea- lismo”, mas que a palavra “realismo” traduz uma forte cono- tacdo ideolégica que enfatiza a conexao entre representacio artistica ¢ realidade. No scu sentido mais primario, o realismo estaria conectado com a utilizagio da mimese, ativando a nogio da arte como cépia de uma realidade e mundo mate- rial. A mimese é aqui entendida como um ilusionismo espe- Ihado, uma representagio que parece copiar aquilo que existe no mundo.!? Mas, desde a Antiguidade classica, esta “ilusio” imitativa obedecia aos cédigos espectficos de verossimilhanca que cram culturalmente engendrados. Segundo Eagleton: “Realismo artistico, portant, nio pode significar ‘representar © mundo tal qual mas sim representé-lo de acordo com as convengées da representagio do mundo-real."20 Margaret Cohen enfatiza a conexio entre estéticas do rea- lismo e modernidade argumentando que: auge do realismo na Franga se deu no que foi designado como a invengio da modernidade (...] 0 realismo na Franga cera um estado de arte visual e uma pritica textual e o foco de um debate polémico durante a metade do século que assistiu za¢io do estado-nagio burgués; a derrocada do poder da classe aristocritica e a eriagao do proletariado; A invengio de tecnologias do espetéculo, reproducao mecanica, notadamente, 2 fotografia e os meios de comunicagio massi- vos, especificamente, 0 jornalismo massivo; ao pice do pro- jeto imperial francés; a consolidagio da ciéncia experimental moderna; & criagio dos primeiros socialismos modernos bem. ‘como dos primeiros movimentos feministas2! Na tentativa de responder as questdes sociais urgentes do seu tempo, o realismo estético do séeulo XIX buscou oferecer retratos da contemporancidade, enfatizando a observagio dis- tanciada, 0 olhar erftico sobre as formas de comportamento dos individuos na sociedade ¢ a construgio ideol6gica de valo- tes sociais, A'forca da persuasio da arte realista reside na sua fabricagio daquilo que Roland Barthes analisou como sendo © “efeito do real"? A arte realista introduz uma nova forma | de verossimilhanca, afastada das convengées de género da arte cléssica. O realismo buscou uma representagao extrafda da experiencia cotidiana de vivenciar 0 mundo atrelada ao senso. | comum da percepgio. O “efeito do real” no romance realista € obtido por detalhes que dao credibilidade 4 ambientagio e caracterizagio dos personagens. Assim, a descrigio da casa burguesa contém a mengéo de objetos que nao estio direta- mente associada a trama, mas que sugerem o que deveria estar contido num lar burgués, dat a inscrigéo do bardmetro na Iarcira de Madame Bovary a inclusio dos objetos de refina- mento francés na sala de estar de Quincas Borba quando ele buscava ascender socialmente, entre outros tantos exemplos. _| Na arte realista critica, o “efeito do real” e a retérica da verossimilhanga deveriam ser acionados no para meramente configurar o quadro mimético dos costumes, mas para masca- rar os préprios processos de ficcionalizacao e assim garantir a0 leitor-espectador uma imersio no mundo da represcntagao que, entretanto, contivesse uma andlise critica do social ¢ da realidade. As diversas vertentes do realismo critico tal como entrevistas na literatura de Flaubert (1821-1880), Maupassant (1850-1890) ¢ até mesmo Balzac (1799-1850), endossavam a visio critica do mundo social como dominio do desencanta- mento produzido pela perda do sagrado, do predominio do pensamento cientifico, da exploragio social ¢ da hegemonia da racionalidade calculadora. A discrepfncia entre as expectativas € desejos dos protagonistas dos romances eo duro embate com a realidade teceu a trama das desilusbes de inémeros enredos. 7 Nao € & toa que 0 romance feone do olho critico realista desvendando as ilusdes sentimentais € 0 célebre texto de Flaubert, Madame Bovary (1857). Emma Bovary, a equivoca~ da herofna de Flaubert, sofrera o contagio das leituras ro- miAntico-sentimentais. Vivendo uma existéncia de acanha- mento provinciano, casada com um médico mediocre que, entretanto, a amava, Madame Bovary busca incessantemente realizar ideais de paixio amorosa adiltera. Estes ideais da paixo, por sua vez, eram fortemente acoplados aos seus anseios de consumo, pautados pela vida elegante. Flaubert confere A sua herofna um desfecho trégico e sem redengio. Emma fantasia amores € sacrifica o cotidiano da construgio familiar cm prol de desejos passionais e do consumismo ftil. cenredada em dfvidas e desilusdes fabricadas pelo desatino fantasioso. Entretanto, seu criador, Gus- tave Flaubert, famosamente declara “Madame Bovary c'est moi”. Esse “c'est moi” ndo se reduz a uma questo de autoria, ou seja, eu sou ela porque a inventei, mas traduz um impasse da condi¢ao moderna fragmentada entre 0 desejo de fantasias eas engrenagens do social; entre auto-imagens do “eu” ea visio do individuo produzida pela propria sociedade. Enquanto engendravam as crfticas 20 mundo social, esses romances abalizavam 0 realismo como a forma interpretativa da realidade, Se a arte realista questionava o status quo e pos- sufa, para varios artistas, agendas politicas revolucionérias, 0 realismo como estética parte de pressupostos tais como argiii- ao cmpfrica ¢ obscrvagio objetiva que caracterizariam 0 pen- samento racional cientifico. Phyllis Frus argumenta que provavel que os jornalistas e escritores de ficgao no final do século XIX ¢ nas primeiras décadas do século XX foram influenciados pelas mesmas forgas culturais, como 0 domfnio do conhecimento e da investigagao intelectual, forjadas pela ciéncia empfrica.2 28 Era essa, justamente, a busca da representagio do escritor naturalista no século XIX, no qual a observagio empirica deveria revelar, por meio de uma palavra literdria transparen- te, os mecanismos da sociedade ¢ 0 comportamento humano rnas engrenagens do social. O naturalismo diferencia-se do realismo justamente na aposta cientffica da observagio empi- sta, na definigéo da natureza humana de acordo com pre- missas biolégicas em que a psicologia individual € submetida aos critérios de uma tipologia de comportamentos. Entretanto, em varios outros escritores realistas do século XIX, tal como é © caso de Machado de Assis analisado nos estudos de Silviano Santiago, Roberto Schwarz e outros, a transparéncia da lin- guagem € civada de complexidades, Na medida em que se problematiza a legitimidade da escrita, colocam-se em evi- déncia os limites da verossimilhanga e se esmitica, exemplar- mente, no caso de Memdrias péstumas de Bras Cubas (1881), a prépria ficcao no como uma tela transparente ou um espelho sem mécula, mas uma construcfo resultante de uma conten- da entre a tradicao literdria, a inventividade do escritor ¢ as suas préprias percepg5es da tessitura social. ~ O realismo, acrescenta Frus, “no € 0 que nos dé uma documentagio factual ou completa mas o que produz uma iluso de mundo que reconhecemos como real”.24 E nessa equagio que a narrativa e a visualidade realista encontram seu paradoxo, Se o discurso cientifico enfatizava a importan- cia da prova empfrica ¢ tecia a separagdo entre fatos ¢ ficgdes, a verossimilhanga do realismo artistico embagava as fronteiras, entre a representagio e a experiéneia vivida, Mas, 0 que marca de forma decisiva a polémica moderna em torno do realismo estético € que, desde o surgimento da m&quina fotografica no século XIX, o status das estéticas realistas esteve fortemente acoplado aos meios de reduplicagao do real ¢ da realidade fomentados pela cultura visual ¢ pelas novas tecnologias mididticas. Na complexa relagio entre as novas méquinas da idade (fotografia ¢ cinema) ¢ a literatura ¢ as artes plés- » ticas, as estéticas do realismo tiveram uma importincia cru- cial j& que, mesmo se valendo, inicialmente, de convengdes pictéricas dos outros géneros, a imagem técnica superou as demais artes na sua tradugio do realismo mimético. De fato, como foi extensamente estudado, o impacto documental da imagem fotogrdfica debilitou os c6digos de verossimilhanga da pintura, assim como o cinema, posteriormente, influen- ciou a criago de imagens escritas e contribuiu para acelerar a dinmica da agdo no enredo literdrio, Sobretudo, a fotografia ind produzir um “efeito do real” de outra ordem e categoria. ‘Afinal, toda imagem fotogréfica possui o indice de que tal paisagem, objeto ou pessoa efetivamente esteve, durante um tempo pretérito, imobilizado diante da camera. A maquina fotogréfica testemunha uma presenca passada, retém w espectro do tempo materializado. A fotografia realiza aqui que Sontag denominou como sendo a transformagio do mundo em imagem. E o apelo dos meios de comunicagio € fazer com que a imagem ou a narrativa midiética seja mais prenhe de realismo do que nossa realidade fragmentéria ¢ individual. Tecendo imagens ¢ narrativas da realidade, os enredos ¢ imagens dos meios mididticos serdo absorvidos no cotidiano de milhares de pessoas ¢ se transformardo nos c6di- 4g0s interpretativos com 0s quais elas abalizam o mundo e tecem suas préprias narrativas pessoais. A modernidade desencantada e reencantada enfatiza a primazia da visio por meio das novas méquinas da visualida- dle] cimera fotogréfica, o cinema ¢ posteriormente, no final dos séculos XX e XXI, a realidade virtual potencializaram 0 “efeito do real”)A realidade tornou-se mediada pelos meios de comunicagio eos imagindtios fiecionais e visuais fornecem 8 enredos ¢ imagens com os quais construfmos nossa subjeti- vidade.|O surgimento dos novos realismos na literatura, foto- srafia ¢ cinema nos séculos XX XXI atesta uma necessidade de introduzir novos “efeitos do real” em sociedades saturadas dc imagens, narrativas e informagées. Estes “efeitos do real” 30 serio distintos daqueles do século XIX, nfo se pautam somen- na observagio empfrica ou distanciada, mas promovem ma intensificagto e valorizagao da experiéncia vivida que, ntretanto, € ficcionalizada, A arte de vanguarda do final dos séculos XIX e XX bus cou, justamente, desmontar a naturalizagao da realidade e do real apoiada nos cédigos estéticos do realismo da verossimi- anga, insistindo no cardter construido da realidade e na pos- idade de se vislumbrar outro real no estranhamento artis- tico experimental. Abeleza das méquinas, o tumulto das grandes metrépo- les, a vertigem da aceleracao eram, para os futuristas italianos, um chamado para sepultar tanto as velhas retéricas adiposas da poesia simbolista e romantica, como também enscjavam a criagdo de uma nova linguagem, diversa do realismo costu- meiro. Uma poesia sintética com o impacto de um soco, uma pintura pulsante de movimento, em vez. do retrato realista estético, uma aposta no futuro sem 0 rango do antiquario ¢ do museu constitufam parte do novo vocabulério da vanguarda italiana insurgente. Com outras implicacdes politicas e opg6es estéticas, 0 futurismo soviético dos anos 1920 também ira “inaugurar o futuro no presente” com pinturas abstratas, poc- sias de verso livre, nova fotografia, cinema de montagem e arquitetura moderna. O futurismo soviético apostou na ino- vacio estética ¢ no experimentalismo como formas efetivas de implantagio de uma nova consciéncia moderna que inaugu- raria a sociedade comunista revolucionéria. Nessas produgGes, ni se buscava somente utilizar o modemo como novo monu- mento estético — algo que sera almejado nas produgées estéti- cas fascistas ¢ também na arte candnica do realismo socialista jd que o efeito catértico do experimentalismo era 0 “choque” inesperado do novo propondo uma outra agenda do olhar. Nos anos de 1920, a implosio do cAnone realista foi parti- larmente relevante para os artistas surreais j4 que, advogan- lo a demolicao das barreiras entre vida arte, os surrealistas am dinamitar 0 senso comum da racionalidade burguesa 31 exaltando o inconsciente, a imaginagio, o primitivismo e a loucura. André Breton, como figura central do movimento surrealista, travou contenda direta contra a proliferagao dos registros realistas pontificand A atitude realista [..] inspirada, de santo Tomas de Aquino a Anatole France, no positivismo, se me afigura hostil a qual- quer arrancada intelectual ¢ moral. Tenho-Ihe horror, pois cla € fruto da mediocridade, do édio e de presungéo rasteira. E dela que nascem, hoje em dia, tados esses que insultam a inteligncia. Continuamente vemo-la for- talecer-se nos jornais, pondo a perder os esforcos da ciéncia e da arte, 20 mesmo tempo que se empenha em adular os gos- tos mais reles do pablico: a clareza que tende a confundir-se com a toleima, uma vida digna de cies. Com tudo isso ven a sofrer a atividade dos melhores espiritos: a lei do menor cesforgo acaba por se impor a eles, como aos demais2 ros ridfculos Em contraposigio, a0 realismo artistico € midistico que consideravam como fruto de um sentido comum restritivo e banal, os surrealistas buscavam uma iluminagio profana que reencantaria o mundo com o maravilhoso. Um maravilhoso criado pelo olhar de estranhamento sobre o mundo material onde as coisas j6 néo seriam artefatos inanimados, mas teriam © poder do olhar reciproco, uma nova realidade entrevista na montagem entre coisas dispares, realidades contraditérias € temporalidades diversas. Enquanto os dadafstas e surrealistas travaram uma bata- ha contra os cénones do realismo convencional e da “bela arte” académica, outros artistas modernistas,tais como o pin- tor Fernand Léger (1881-1955), que se autodenominava “no- vo realista”, buscavam, justamente, desautorizar o realismo académico das verossimilhangas, ativando novos cédigos do realismo que respondessem 20 impacto da estética das méqui- nas, sem recair no convencionalismo figurativo.27 Entretanto, 32 foi mencionado, a forca mobilizadora da representagio he conferiu uma importincia {mpar na disputa politica grandes blocos fascista, nazista, comunista soviético © |cmocrético que polarizaram 0 mundo nas décadas de ¢ 40. Como jé foi intensamente debatido, apés 0 experi- ismo dos anos 1920, a década de 1930 e os anos 40 con- 1m 0 endosso soviético aos preceitos do realismo socia- 1. O realismo socialista retomava, em grande medida, as \s narrativas e pict6ricas figurativas do realismo candnico, indo a retratagio da sociedade agora sob 0 crivo da rea- io da promessa socialista. Ou seja, guardou os convencio- ismos da representagio de tipos e costumes agregados 4 con- dos retratos dos lideres revoluciondrios e do povo. Na manha nazista, Hitler condena a arte “degenerada” da van- mas igualmente repudia o realismo critico. Entroniza 0 mentalismo cléssico, a pintura dos costumes na luz sen- tal-Ritsch, as mitologias nacionais ¢ promoye a “cultura em filmes, fotografias e meetings politicos. Ni ‘es capitalistas, a vanguarda aticava a disputa contra petrifi- 1 demolir os efeitos “ilus6rios” da inddstria cultural. Nessa contenda, Bertold Brecht (1898-1956) iré tanto itar o realismo socialista quanto o realismo burgués. O mo, na dtica de Brecht, dependia do efeito produzido a obra de arte. Ou seja, era proveniente de uma relagio 0 artista e sua audiéncia, Caberia ao artista engajado wendrar outras formas de conceber a realidade inventando ‘os c6digos atrelados ao seu tempo. O realismo do século XX deveria ser arriscado ¢ inovador, deveria: “ser conquista- partir de um mundo de novos materiais, vitrines de lo- . filmes ¢ tecnologias” 28 Ja para Georg Lukiécs (1885-1971), sor maximo do realismo erftico nas modalidades do ace burgués, o realismo do século XX ainda deveria estar os propésitos humanfsticos do século XIX pois se de descortinar os mecanismos sociais que configu- 33 rariam as diretrizes da hist6ria e da vivéncia humana, Em vez de apostar na relevancia da experimentagao vanguardista ou modernista, Lukécs validou a correspondéncia entre as for- mas narrativas do cdnone realista ¢ a possibilidade de discer- nir criticamente a realidade social ¢ a condigao existencial. Entretanto, se artistas como Fernand Léger, vanguardistas como Malevich, e, posteriormente, em 1960, os [*Novos Realistas” franceses iro reivindicar a denominagao de realis- tas, sob o argumento de que o realismo nao poderia ser confi- nado ao imitativo ilusionista, aos cAnones da arte burguesa, ao figurativo ou & verossimilhanea do sentido comum, o ter- mo*realista”se esgarga e perde sua correspondéncia com a fabricagio social do cotidiano. — A despeito da nomenclatura que certos artistas de vanguar- da edo modernismo deram ao “realismo”, 0 cdnone realista que se estabeleceu no século XIX, enfatizando a vida costumei- fs, a representagio figurativa, o retrato social e a psicologia dos personagens, consolida-se como marco definidor dle um senti- do comum cotidiano. Evoco, neste aspecto, as palavras de Gustave Courbet (1819-1877), 0 pintor emblematico do realis- mo pict6rico no século XIX. Ao ter suas telas rejeitadas pelos sales de pintura académica, Courbet redige seu manifesto sobre o realismo ¢ enfatiza: “Atingir a habilidade através do conhecimento ~ este tem sido meu propésito. Gravar as manei~ ras, idéias ¢ aspectos da época tal como eu as vi — ser um homem além de um pintor, em suma, ctiar uma arte viva — esse € 0 meu objetivo.”2? Portanto, hé nessa premissa realista um desejo ativo de ancorar a representagio com as experién- cias ¢ 05 idedrios do seu tempo. Nota-se que Courbet no endossa meramente a transparéncia e a objetividade cientifica ue seré depois sustentada pelo escritor maximo do naturalis- ‘mo, Emile Zola (1840-1902). Na prédica de Coubert, hé o posi cionamento do olhar subjetivo contido nas palavras “as idéias © os aspectos da época como eu as vi", mas esta visto esté posta a servigo de um engajamento objetivo no mundo. 4 Lividentemente, 0 “feito de real” dos realismos dos sécu- XX e XXI serd outro. A desconstrugio da objetividade dis- validade da subjetividade e a percepgio do carater o do social pelos meios de comunicagio afastam-se idéia da experigncia direta quanto do ideal da neu- lc objetiva cientifica do realismo anterior. Mas, em suas 's manifestagdes, 0 realismo critico busca o resgate da i@ncia ¢ uma apreensio do contemporaneo expressa pelo wcio da “arte viva”, . ‘A nogio de “arte viva”, entretanto, € em si problemética, lida em que um dos postulados da vanguarda artfstica jc justamente dinamitar as barreiras entre vida e arte, ficando os habitos perceptivos de ambas. Neste sentido, gama de criticos tem argumentado que a vanguarda ex- a modificagio do conceito de arte e a propria percep- do real, enquanto 0 modernismo estético visava produzir ‘s formas de narrar a modernidade nos metacédigos da iio artfstica. A vanguarda estaria dinamitando as per- s normativas do real e revelando as fabricagées s realidade, enquanto os modernistas estariam modificando \s percepgdes estéticas da arte. Mas estas distingdes perdem vigencia quando notamos como a absorcio de obras moder- istas pode produzir um efeito desestabilizador maior do que tos gestos vanguardistas revolucionérios, que quase sem- xe atingiram um péblico reduzido. Sobretudo, € importante essaltar que as linhas divis6rias entre vanguarda e arte moder- ta foram muitas vezes artificialmente arquitetadas. Tanto a suarda quanto a arte modernista, conforme a argumenta~ de Andreas Huyssen, tiveram de fazer frente 4 producao lc mundos simbélicos pelo advento da sociedade de massas ‘ante o século XX.30 Na contemporancidade, nota-se 0 csgotamento da van- arda, a consolidagio plena dos meios de comunicagao € ‘ma busca pelo “real” em sociedades fortemente midiatiza- 1s. Ao longo do século XX, a arte de vanguarda, conforme 35 ressalta Garcfa Canclini, encontrou-se esvaziada do seu pro- jeto politico na medida em que foi institucionalizada pelo muscu ¢ absoryida pelo mercado.3! Em outras palavras, a rup- tura experimental das vanguardas e a valorizagio do novo no modernismo tornaram-se os valores accitos pelas prdprias ins tituigdes e pelo mercado Avido de novas reciclagens. No final do século XX ¢ principios do século XXI, jé nio se trata do embate entre vanguarda, cultura de massa e alto modernismo. Independentemente da qualidade, da experimentagao formal ou do contetido, qualquer obra de arte € posta em circulagao por meio dos mercados e dos meios de comunicacio, Nas tiltimas décadas, 0 boom da cibercultura ¢ a criagio de mundos virtuais na Internet modificaram os pardmetros conceituais sobre a cultura de massa, Se a critica aos modelos de entretenimento consagrados pela Escola de Frankfurt se bascava na dentincia da manipulacio e domesticagao do pibli- co forjada pela inddstria cultural, as novas tecnologias da ibernética desestabilizam as teorias da absorgao passiva na medida em que a interatividade dos usudrios com outros usus- tios e com as préprias tecnologias digitais promove agencia- mentos. Mas, sobretudo, a cibercultura vem adicionar uma outra dimensio ao debate da representagio jé ela € capaz de criar realidades virtuais que fabricam nao os “efeitos do res uusuais, mas “efeitos hiper-reais”. Diversamente da imerséo no livro de ficgio, na sala escura do cinema ou na contemplagio da imagem fotografica, a interagio cibernética coloca 0 usud- rio numa suprazona de contacto que independe de sua locali- zagio espacial especifica. Nao se trata apenas de criar uma bolha imaginativa que atuc como um parénteses de reclusio em face do contorno imediato, mas de fabricar outros espacos cibernéticos com suas proprias demarcagdes e formas de comunicagéo. Mas, conforme as sugestées anunciadas no ini- cio deste ensaio, novas tecnologias da visualidade e novas for- mas de produgio de imagens ¢ simulactos nfo cancelam 0 “anseio pelo real”, Se assim fosse, o advento da fotografia teria 36 ado, de uma vez. por todas, as formas realistas e figurati- sav da pintura, No entanto, 0 realismo piet6rico prosperou na Franca mesmo com a fotografia. E os encontros virtuais na Internet sio, tantas vezes, transformados em contatos diretos vida real. Permanece em pauta, portanto, a questo sobre o teor de féncias que j4 no se processam de corpo presente, de exp interagbes que se realizam por meio de telas cintilantes, de ogos e mundos imagindrios que somente existem na efe- meridade do ciberespaco. Apesar da interatividade do usuario, Internet, assim como os outros meios de comunicacio, é regi- descorporificagio dos usuarios, agregada a simultanei- «le temporal e & abstrago espacial. Usudrios se comunicam ites, chats, e-mails, blogs e fotologs estando em Cingapura Manaus. Se a cibercidade nao climina a cidade real, as expe- ‘ncias mediadas pela mfdia nfo cancelam experiéncias vivi- \s. Entretanto, as experiéncias vividas so alimentadas e inter pretadas também pelo prisma midistico, entre outros. O apelo das estéticas do realismo enquanto “arte viva” ou cnquanto resgate da experigncia se d4 no contexto de socieda- 's institucionalizadas ¢ midiatizadas onde nao somente as idades so regulamentadas em nichos institucionais espe- s (escola, hospital, fabrica, entre outros) como 0 acesso a realidade € moldado pelos meios de comunicacao que forne- com, inclusive, os imaginérios para a invengao ¢ fabricagio do ividuo, Neste sentido, nas Gltimas décadas, os debates em torno ‘cultura do espetéculo” (Debord, 1967), da desaparicdo do 1 pela produgio do simulacro (Baudrillard, 1983) ou a crf- perda do sentido da hist6ria por meio do pastiche midia- 0 e artistico (Jameson, 1991) so parte central das discus- sobre a condigio pés-moderna que enfatiza a porosidade re 0 vivido ¢ 0 imaginado; entre a experiéncia ¢ a produgio realidade pelos meios de comunicagio; entre a meméria 37 pessoal, histérica e coletiva e as meméria: meios de comunicacio. Para Debord, que articulou sua critica & sociedade capita- lista ocidental em pleno auge das mobilizagdes estudantis dos anos 1960, a sociedade do espetdculo é uma relacdo entre 0 espectador ¢ 0 processamento de imagens que ocasiona 0 apa- gamento do mundo simbélico, na medida em que engloba a totalidade do sistema social ¢ submete qualquer vivencia as mediagées da midia. Regidas pela I6gica capitalista da circula~ io, as imagens imperam, impdem o dominio da aparéncia ¢ fomentam a alienagio social j4 que dinamitam agenciamen- tos sociais em prol das fabricagées visuais que nfo convidam 20 didlogo, mas a mera passividade da absorc4o consumista. Em Debord, hé, todavia, a expectativa da derrocada do espe- téculo pelo agenciamento revolucionério mobilizador. A tomada das ruas, a agio politica do protesto, a ocupagio ativa da arena pablica seriam as medidas insurrecionais para a der- rocada do império das imagens. J4 para Baudrillard, que escreve seu famoso ensaio “A pro- isso dos simulacros” no inicio dos anos 1980, as perspectivas de agenciamento politico foram completamente esmagadas pelo dominio nao mais da mera imagem, mas do simulacro mididtico. Enquanto a imagem, mesmo na sociedade do espe- taculo, retém uma cozrespondéncia entre o real ¢ sua repre- sentagio, no mundo dos simulacros no h4 mais real nem realidade, Hi somente a realidade dos simulacros que so narrativas, c6pias ¢ imagens auténomas, que nao possuem lastro no real. Assim, as noticias televisivas que comentam eventos, atentados, celebridades estariam na plena ordem do simulacro, porque atuam em esfera prépria, fabricando enre- dos proprios como num jogo vi Fredric Jameson também iré questionar o dominio das ima- gens ¢ do real na légica cultural da pés-modernidade. Para 0 marxista americano, trata-se de verificar 0 esgotamento politico aginadas dos 38 urativas do futuro, algo que impossibilitaria uma tomada + na acepeio de Debord, mas isto nfo significa que 0 realidade foram deslocados pelo simulacro total.}2 Na lc Jameson, o pés-moderno seria um estdgio no desen- nento do capitalismo tardio, marcado pelo desapareci- da natureza eo apagamento do sentido da hist6ria. A p6s-moderna nfo mais regida pelo imperativo do novo, caracterizava as produg6es modernistas, investe na combi- cclética de estilos, imaginarios e tradigdes culturais desan- )s de vivéncias histéricas ¢ praticas coletivas. Estariamos, acepcao, rendidos aos jogos Itidicos dos parques temati- se dos shopping malls. Tudo se combina ¢ se neutraliza na \¢io de um presente saturado de mercadorias, imagens © ides mediadas. : Sem negligenciar a saturagao mididtica, o critico literdrio reas Huyssen propée uma visio mais nuangada do mo- to contemporineo.%3 A crise do futuro, ocasionada péla rrocada das utopias socialistas ou libertérias implica, segun- » Huyssen, uma problematizagio do conceito do futuro no rio imagindrio capitalista atual. Se jé nao ha erengas nem las de posigao revoluciondrias ¢ se endossar a aceitagao mundo-simulacro no conduz. a nenhuma safda porque afirmagio em si mesma contém premissas totalizadoras negam a diversidade de modernidades e experiéncias mundo, resta apostar num sentido critico do presente que ssa por uma avaliagio da hist6ria, da meméria do desejo . Huyssen explicita que um ingrediente utépico per- ‘0 da arte modernista estava contido na busca pela epifa- jue, momentaneamente, suspenderia o fluxo temporal, a alidade do cotidiano, a descartabilidade do sujeito para ‘r uma sublimagao da experiéncia como algo revelatério. esta experigncia epifinica, argumenta, era contraposta «avs mundos repressivos, sociedades ainda disciplinares, cultu- ’inda prenhes de tadigées, porém: 39 Quando este mesmo presente, entretanto, tenha sido pro- gressivamente deslocado da tradicio, quando a saturacio da midia apaga diferencas espaciais e temporais fazendo com que todo lugar, todo tempo seja disponivel para um replay instantaneo entio 0 retorno da histéria ¢ da meméria tam- bém pode ser entendido como uma tentativa de encontrar ‘um novo chao. A procura pelo passado, a meméria eo real no seria mero exercicio de nostalgia, mas uma busca por significagées fora do niilismo apocaliptico, do conformismo consumista ou da desilusio politica, Creio que € nesta indefinicao dada pela crise dos imagi- ndrios do futuro, da proliferagéo mididtica, da perda de espa- ¢0s ptiblicos, do esgargamento de experiéncias coletivas e da disputa em torno da conceituagao da realidade social que as estéticas do realismo agucam os paradoxos do momento con- \tempordneo) Se, conforme a andlise de Jameson, aceitamos que o realismo é um conjunto de estéticas que camuflam seus proprios mecanismos de fabulago ao pretenderem “represen- tara realidade”, s6 podemos chegar 3 conclusdo de que ele esta servigo de uma determinada ideologia, ideologia essa que 0 pensador marxista aloca na acepgéo burguesa do senti- do comum do mundo. Esta naturalizagio do realismo, por sua vez, promoveria o cardume de narrativas, imagens e gén: ros literdrios que inundam 0 mercado nfo como “atte viva”, mas como produtos a serem consumidos, desprovidos de potencial politico. Embora nao negligencie que os mecanis- mos de circulacZo, insergZo e vendagem de imagens, narrati- vas e noticias estio fortemente controlados por interesses eco- ndmicos ¢ atrelados 3 manutencao do status quo, enfatizo a premissa de que nenhum sistema € totalizante. Nem os mass media sto homogeneamente iguais, nem os ptiblicos recepto- res sio idénticos, nem as instituigdes sio impermedveis a0 escrutinio, nem os imagindrios sociais sucumbem inteiramen- 40 cultura do espeticulo. Que a Iégica da cultura do espeté- » petmeie o social nao significa que a imagem tornada rea cancele agenciamentos. As fotografias dos campos de rminio, as imagens da guerra do Vietnd c as recentes foto- fias sobre o abuso dos prisioneiros iraquianos por soldados icanos na ocupagio do Iraque, entre tantos outros exem- los, atestam 0 poder mobilizador da fotografia piiblica. O a realidade nos importam porque pautam nossa possi- \de de significagao no mundo. Importam também por- ue 0 real € a realidade sao arduamente contestados c fabrica- os, Num mundo de realidades em disputa, as estéticas do smo no cinema, fotografia ¢ literatura continuam a ser conclamadas a oferecer retratos candentes do real ¢ da reali- ade, so acionadas a revelar a carne do mundo em toda sua imperfeigio. 4

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