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Munique1

Ruy Gardnier

Sem meias palavras: Munique (2005) é a caixa preta do cinema de Steven


Spielberg. Nele, impossível achar refú gio em algum tipo de visã o confortá vel, em
heró i positivo, ou ao menos num sentimento que possa enternecer nossos coraçõ es
mesmo que tudo vá mal (o que era o caso de A.I., sobretudo: o filme terminava em
tristeza absoluta, mas entregava a quem quisesse o sentimento do filho finalmente
sendo recebido pelo simulacro de mã e). Dessa vez, nã o há nenhuma certeza,
nenhuma ratificaçã o e tampouco favorecimento a um dos lados ("e nã o vai ter
happy end", adicionaria Tom Zé). Munique nã o é só mais um filme da "fase
sombria" de Spielberg. Se podemos ver a carreira do diretor de E.T. (1982) e O
Império do Sol (1987) como um olhar inocente diante da diversidade do mundo –
um olhar inocente com um quê de melancolia porque falta um pai, porque a
travessia tem que ser feita com uma figura paterna ausente –, Munique
simplesmente vai ser o total contracampo de todos esses momentos: o filme
mostrará o que papai fazia quando estava ausente, o filme vai nos mostrar o que
papai fazia quando saiu em viagem de negó cios. E a visã o é sombria: estamos
diante de um mundo que nã o tem mocinhos nem bandidos, em que o seu amigo de
hoje pode ser seu algoz de amanhã , em que a forma de garantir a vida dos filhos
pode ser a mesma forma de garantir sua morte.

Desde o começo, há algo que mostra muito perceptivelmente que houve uma
mudança: desta vez, a ausente é a mã e, que abandona o filho num kibbutz, o que
acaba ocasionando a identificaçã o materna de Avner, o protagonista, com a mã e-
Israel (é o que comenta um dos personagens). Num dos momentos mais fortes do
filme, Golda Meir comenta com Avner, quando ele está prestes a decidir ser o
homem que o estado israelense estabeleceu para executar onze homens palestinos
de renome: "Você se parece muito com a sua mã e". A frase é ambígua, e podemos
interpretá -la como quisermos: ele se parece muito com a mã e bioló gica (o que nã o
faria muito sentido naquele momento) ou com a mã e-pá tria? Avner nã o será só o
porta-voz da retribuiçã o israelense ao ataque palestino à delegaçã o de Israel nas
Olimpíadas de Munique: ele será também a consciência destroçada do senso-
comum israelense que acompanha pela televisã o os acontecimentos daquele
famoso dia de setembro (no começo do filme), como também será a alegoria
traumatizada de um país que perdeu sua potência e sua alegria de viver depois de
uma troca de destruiçõ es que só existe como funçã o de auto-alimentaçã o e deixou
de ter qualquer referência à busca por um equilíbrio, pela paz (ao final dele).
Munique tentará entã o partir do ponto-de-vista de um israelense médio, patriota,
pai de família que, ao assumir a posiçã o do vingador, vai se dar conta de que as leis
que regem o alto mundo das decisõ es internacionais sã o inteiramente diferentes e
autô nomas em relaçã o à s que regem a vida diá ria das famílias que vivem suas
vidas diá rias. E, talvez pior que isso: que a interface entre elas é recheada de
segredos, falseamentos e mentiras. Avner nã o é apenas um mossad, mas alguém
que renunciou ao serviço secreto por contrato, e ainda assim será um super-
mossad, alguém que se entregará de corpo e alma, 24 horas por dias, sete dias na

1
Publicado originalmente na revista Contracampo. Disponível online em:
http://www.contracampo.com.br/78/munique.htm
semana, a fazer o serviço secreto de Israel, abandonando casa, mulher e o futuro
filho.

De certa forma, Munique faz o que Apocalipse Now (1979) fez só pela metade:
afirma a natureza de espetá culo das intervençõ es estrangeiras. Se Coppola faz de
seu filme uma grande Las Vegas adaptada ao Vietnã , tira todo o proveito em
termos de entretenimento (cenas "impagá veis" das coelhinhas, do bombardeio
com Wagner,etc.), Spielberg prefere ir ao cerne da questã o, um cerne muito pouco
confortá vel: desde o começo, fica claro que a missã o de Avner nã o tem nenhum fim
prá tico de dar fim ao terror, mas unicamente a funçã o midiá tica de expor ao
mundo a morte de homens palestinos notá veis (filmados, na verdade, como
homens honrados, ou até como intelectuais, no caso do tradutor das 1001 Noites,
aumentando ainda mais a sensaçã o de gratuidade e vergonha de todo o projeto) e
fazer um revide olho-por-olho do episó dio de Munique. A progressã o do filme será
a tomada de consciência de Avner de que o circuito de assassinatos é algo que diz
respeito unicamente a uma queda-de-braço entre grupos, e nã o a uma estratégia
maior de proteçã o a um povo. Resultado: Avner, desertor (finalmente parecerá
mais com a mã e bioló gica do que com a mã e-pá tria), dará proteçã o à sua família no
Brooklyn, numa comunidade judaica, e abdicará de suas funçõ es de grande
assassino mossad. Do alto poder de estado, ele passa ao baixo poder familiar; sai,
assim, de um ciclo de destruiçã o para um de construçã o (um filho, é sempre uma
esperança).

Se a luz de Janusz Kaminsky sempre foi um pouco pegajosa em seus brancos


estourados tendendo a redençã o, em Munique ela soa trá gica, quase quimérica,
dado que o filme nã o apresenta em nenhum momento qualquer soluçã o palpá vel
para o fim da troca de gentilezas entre estado palestino e estado israelense. Ao
contrá rio, o cará ter sombrio do filme e os poucos instantes de "luz da salvaçã o"
tornam tudo ainda mais soturno, irrespirá vel até. Os ú nicos instantes em que o
filme se deixa respirar sã o aqueles em que um pai muito apegado, Michael
Lonsdale, brilha como um sol eterno que acasala todo o terreno habitá vel. Pouco
importa que o trabalho dele seja fazer trá fico de informaçõ es entre diversos
serviços secretos: lá é um bunker de segurança, uma espécie de Estado auto-
suficiente, de família protegida, é o ú nico momento em que o filme tem uma luz
calorosa, solar. Fora disso, resta um imprevisível metá lico do azul sem vida ou uma
luminosidade sombria, um contraluz que amedronta, sinalizando o cotidiano de
salve-se-quem-puder dos cinco assassinos mossad. O fato de que os pró prios cinco
integrantes do grupo contra-terrorista sejam acima de tudo cidadã os normais cria
ainda mais intensidade moral em relaçã o ao projeto da mã e-pá tria: estamos diante
de um pai que coloca filhos desprotegidos em perigo. Que, ao final, tudo caia num
campo de indeterminaçã o, que os caçadores se transformem em caçados segundo
uma mesma ló gica muito semelhante (e tornada como que natural pela ló gica da
narrativa, que segue como que um ciclo de causalidades em que a justificativa de
tudo ultrapassa a moral), só faz do Estado algo que finge ser um grande-pai mas na
verdade é o verdadeiro pai ausente, aquele que se comporta segundo as leis do
fora-de-casa fazendo pouco caso do dentro-de-casa, e deixando seus filhos em
perigo por se comportar como tal.
Natural que, como tomada radical de posiçã o diante de como a ló gica da política
internacional se transformou numa ló gica do espetá culo, o maior rei do espetá culo
do cinema americano nos ú ltimos vinte anos queira também criar comentá rios
sobre as incursõ es imperialistas dos Estados Unidos no Oriente Médio. Para isso,
basta que conversem Ephraim e Avner, tendo como horizonte as duas torres
gêmeas. É simples: Avner viu que a ló gica da contagem de corpos nã o vai dar em
nada; Ephraim, fiel à política de Israel, mantém que é preciso continuar a fazer
terrorismo contra os palestinos. Avner, recusando o convite (ou seja, sendo de
opiniã o diferente), convida Ephraim a jantar em sua casa. Ephraim, de opiniã o
diferente, mas intolerante, recusa. Avner construirá sua família, ainda que nã o
tenha a certeza de que se transformará em alvo em breve. Ephraim, junto com a
mã e-pá tria, continuarã o sua peregrinaçã o por mais sangue inimigo. As Torres
Gêmeas, ao longe, contemplam Ephraim-Bush em sua tentativa de unicamente
resguardar seu terreno doa a quem doer, doa inclusive a seus filhos.

Munique nã o é um filme de defesa da posiçã o de Israel, nã o é um filme que tenta


misturar o ponto-de-vista israelense com o palestino, nã o é um filme que tenta
fazer dos Estados Unidos uma espécie de juiz das negociaçõ es de paz (ao contrá rio,
o filme é muito lú cido ao mostrar como tanto alemã es quanto os americanos da
CIA negociaram com o Setembro Negro e deram dinheiro ao grupo para nã o terem
problemas com ele). É , como Intervençã o Divina, do palestino Elia Suleiman, um
filme que diz um "Chega!" veemente a tudo isso (embora o de Suleiman seja mais
gracioso e, talvez, contenha mais momentos de cinema que Munique), sem
identificar heró is e bandidos, colocando a todos num terreno indiferenciado dos
apá tridas, pois ter um país é considerar acima de tudo o bem-estar daqueles que
habitam seu territó rio. Como nunca antes, Spielberg mostra a seus espectadores o
que é perder sua alma, o que é ser desviado de seu destino por intervençã o de um
poder externo. Ou mortos ou traumatizados, os assassinos-heró is de Israel nã o
serã o exemplos, mas testemunhas de um processo de despersonalizaçã o por terem
sido retirados de suas vidas e passado a um mundo que, tal como filmado, parece
pertencer intrinsecamente a um mundo que perdeu seu rumo, um mundo
desgarrado. Spielberg ainda permanece, mesmo que ligeiramente, com um olhar
ingênuo: ele jamais seria capaz de admitir a interdependência entre o seio familiar
e o poder central nacional, da mesma forma que ainda abusa de alguns efeitinhos
gratuitos de suspense – como a patética seqü ência da menininha com o telefone –,
mas, com todo o seu idealismo e suas fó rmulas, Munique é facilmente um dos
filmes mais poderosos da temporada, e o filme mais forte que Spielberg faz em
vinte anos.

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