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Ruy Gardnier
Desde o começo, há algo que mostra muito perceptivelmente que houve uma
mudança: desta vez, a ausente é a mã e, que abandona o filho num kibbutz, o que
acaba ocasionando a identificaçã o materna de Avner, o protagonista, com a mã e-
Israel (é o que comenta um dos personagens). Num dos momentos mais fortes do
filme, Golda Meir comenta com Avner, quando ele está prestes a decidir ser o
homem que o estado israelense estabeleceu para executar onze homens palestinos
de renome: "Você se parece muito com a sua mã e". A frase é ambígua, e podemos
interpretá -la como quisermos: ele se parece muito com a mã e bioló gica (o que nã o
faria muito sentido naquele momento) ou com a mã e-pá tria? Avner nã o será só o
porta-voz da retribuiçã o israelense ao ataque palestino à delegaçã o de Israel nas
Olimpíadas de Munique: ele será também a consciência destroçada do senso-
comum israelense que acompanha pela televisã o os acontecimentos daquele
famoso dia de setembro (no começo do filme), como também será a alegoria
traumatizada de um país que perdeu sua potência e sua alegria de viver depois de
uma troca de destruiçõ es que só existe como funçã o de auto-alimentaçã o e deixou
de ter qualquer referência à busca por um equilíbrio, pela paz (ao final dele).
Munique tentará entã o partir do ponto-de-vista de um israelense médio, patriota,
pai de família que, ao assumir a posiçã o do vingador, vai se dar conta de que as leis
que regem o alto mundo das decisõ es internacionais sã o inteiramente diferentes e
autô nomas em relaçã o à s que regem a vida diá ria das famílias que vivem suas
vidas diá rias. E, talvez pior que isso: que a interface entre elas é recheada de
segredos, falseamentos e mentiras. Avner nã o é apenas um mossad, mas alguém
que renunciou ao serviço secreto por contrato, e ainda assim será um super-
mossad, alguém que se entregará de corpo e alma, 24 horas por dias, sete dias na
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Publicado originalmente na revista Contracampo. Disponível online em:
http://www.contracampo.com.br/78/munique.htm
semana, a fazer o serviço secreto de Israel, abandonando casa, mulher e o futuro
filho.
De certa forma, Munique faz o que Apocalipse Now (1979) fez só pela metade:
afirma a natureza de espetá culo das intervençõ es estrangeiras. Se Coppola faz de
seu filme uma grande Las Vegas adaptada ao Vietnã , tira todo o proveito em
termos de entretenimento (cenas "impagá veis" das coelhinhas, do bombardeio
com Wagner,etc.), Spielberg prefere ir ao cerne da questã o, um cerne muito pouco
confortá vel: desde o começo, fica claro que a missã o de Avner nã o tem nenhum fim
prá tico de dar fim ao terror, mas unicamente a funçã o midiá tica de expor ao
mundo a morte de homens palestinos notá veis (filmados, na verdade, como
homens honrados, ou até como intelectuais, no caso do tradutor das 1001 Noites,
aumentando ainda mais a sensaçã o de gratuidade e vergonha de todo o projeto) e
fazer um revide olho-por-olho do episó dio de Munique. A progressã o do filme será
a tomada de consciência de Avner de que o circuito de assassinatos é algo que diz
respeito unicamente a uma queda-de-braço entre grupos, e nã o a uma estratégia
maior de proteçã o a um povo. Resultado: Avner, desertor (finalmente parecerá
mais com a mã e bioló gica do que com a mã e-pá tria), dará proteçã o à sua família no
Brooklyn, numa comunidade judaica, e abdicará de suas funçõ es de grande
assassino mossad. Do alto poder de estado, ele passa ao baixo poder familiar; sai,
assim, de um ciclo de destruiçã o para um de construçã o (um filho, é sempre uma
esperança).