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O
de Chicago,
tema da precariedade da linguagem face à tarefa de professora do
narrar a violência é onipresente na cena contemporâ- Departamento
nea, uma vez que o confronto com realidades atrozes de Letras da
provoca uma aguda crise de significação, obrigando a literatura PUC-Rio e
pesquisadora
a repensar os limites de sua própria capacidade representati-
do CNPq.
va. Eventos brutais produzem a sensação de um real excessivo,
que transborda nossas molduras referenciais e desorganizam
formas usuais de dizer. A pergunta “em que língua” contar
a aspereza do mundo torna-se ainda mais urgente quando a
criança está em xeque, no papel de protagonista e destinatária
do relato violento. Como equacionar a gravidade da matéria
narrada com a legibilidade que se espera de um texto destina-
do às crianças? Como contar eventos e situações em que a vida
é ameaçada sem ameaçar a força vital que move a infância?
Duas histórias, separadas por mais de seis décadas, nos
ajudarão a atravessar estas questões: A chave do tamanho, de
Monteiro Lobato (1942) e Filhote de Cruz-Credo, de Fabrício
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Matar, ferir, aleijar, doer são verbos que produzem uma imagem es-
facelada, de figuração cubista, muito distante da pintura suave e ale-
gre que usualmente associamos à literatura infantil. A narrativa atinge
um grau de explicitação extremo, quando apresenta a possibilidade de
suicídio às crianças do Sítio, justamente pela voz da personagem mais
centrada e serena, de quem se esperaria um discurso confortador diante
da violência. Mas D. Benta não oferece colo desta vez: “É uma perver-
sidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo
de não suportar muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade
de morrer” (7).
Que o leitor não espere, contudo, uma história deprimente. Muito
pelo contrário, a moldura inicial cede diante da gaiatice de Emília que,
sem papas na língua, se vangloria de dizer as piores atrocidades “ali na
batata”. A entrada em cena da boneca, que é a protagonista inconteste
da narrativa, reintroduz a experiência do literal por um viés cômico e
despojado, que desembaraça as palavras de carga simbólica, para exibi-
-las a nu. Nas primeiras páginas do livro, Emília resolve questionar a
expressão "pôr do sol", argumentando que o sol não põe nada, nem
mesmo ovo. Ao que Dona Benta retruca que "pôr do sol" é um modo
de dizer. Emília não se intimida:
– Estou vendo que tudo que gente grande diz são modos de dizer, continuou a pestinha [...]
Os tais poetas, por exemplo [...] Ontem à noite a senhora nos leu aquela poesia de Castro
Alves que termina assim:
1 Agradeço a André Moura, pesquisador da obra de Lobato, a leitura compartilhada do livro A chave do
tamanho. Seus comentários em muito contribuíram para a versão final deste pequeno ensaio. Devo a ele
a percepção da “sintaxe mutilada” presente no trecho citado.
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Tudo mentira. Como é que esse poeta manda o Andrada, que já morreu, arrancar uma
bandeira dos ares, quando não há nenhuma bandeira nos ares, e ainda que houvesse, bandeira
não é dente que se arranque? Bandeira desce-se do pau de cordinha [...]
Dona Benta suspirou:
– Modos de dizer, Emília. Sem esses modos de dizer, aos quais chamamos imagens poéticas,
Castro Alves não podia fazer versos (4-5).
É através deste espelho que não nubla o real, mas o expõe em riqueza
de detalhes desagradáveis, que a história vai desempacotando, frase após
frase, uma sucessão implacável de pequenas deformidades:
Toquei no meu nariz, achei grande demais.
Toquei na minha testa, achei larga demais.
Toquei no formato da cabeça, achei oval demais, não era redonda como a dos meus colegas,
não era certinha como a dos meus irmãos, não se podia desenhar contornando um pote de geleia
com o lápis.
Igual a um pneu furado de carro...
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2 As ilustrações do cartunista Rodrigo Pena intensificam o humor ácido da narrativa por meio do exa-
gero caricatural, que maximiza as feições descomunais do protagonista. Pena entra assim numa espécie
de queda de braço divertida com o desafio proposto por Carpinejar: “Sou feio, feio de nascença, mais
feio do que você possa desenhar.”
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lhe dá munição para encarar o tranco com galhardia, pela via do humor
que brota da própria experiência literária, ou seja, do encontro da crian-
ça com a linguagem e suas possibilidades. Dito de outra forma, não se
trata de ensinar a criança a ser amiga e bondosa, encorajando nela a prá-
tica das belas palavras ou de caprichados desenhos. Nada de conselhos
ponderados. O exercício é bem outro: explorar a plasticidade da língua
para que a criança deseje entrar no mundo partilhado das palavras e das
formas, disposta a nele se arriscar. Porque não há garantias quando se
vive em linguagem. Falar, escrever, ler, escutar são experiências desastro-
sas, repletas de desencontros e mal-entendidos. Raramente coincidimos
com as nossas palavras: dizemos de menos, dizemos demais, dizemos
fora de hora, dizemos de mau jeito, erramos a mão, voltamos atrás, re-
começamos... Estar na linguagem é experimentar a instabilidade.
Filhote de Cruz-Credo sugere que às vezes a felicidade não se ganha com
a palavra adequada, mas com a desmedida. O protagonista injustiçado
resolve deixar de ser piada dos outros e passa a produzir as suas próprias
tiradas, rebatendo as humilhações e dando o troco em Alice, a menina
mais linda da escola. A tática funciona:
E notei que Alice escondia cabelos nos ouvidos. Muitos cabelos dentro dos ouvidos.
Antes de sair, perguntei se ela iria para o cabeleireiro.
– Por quê?, retrucou.
– Porque teus ouvidos estão cabeludos – e ri alto. Todo mundo me acompanhou:
– Rá! Rá! Rá! Rá! Rá! Rá!
– Essa foi muito boa, Fabrício – comentavam comigo, batiam em minhas costas com
admiração.
Ouvi falarem Fabrício! Ouvi Fabrício! Ouvi Fabrício fora da lista de chamada!
Curei-me do apelido, assim como me curei de doenças de infância como catapora e caxumba.
Alice se tornou a Orelha Cabeluda. Ela não me perdoou. E não me esqueceu. Foi minha
primeira namorada.
Referências bibliográficas
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
CARPINEJAR, Fabrício. Filhote de Cruz-Credo. A triste história alegre de meus apelidos. Ilus-
trações de Rodrigo Rosa. São Paulo: Girafinha, 2006.
LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. Ilustrações de J. U. Campos e André Le
Blanc. 10.ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1964.
WOOLF, Virginia. “Lewis Carroll”, Através do espelho, Cosac Naify, 2015.