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UFJF/FACULDADE DE LETRAS

OFICINA V – CRIAÇÃO LITERÁRIA


Prof. Fernando Fiorese

Contém:

Teses sobre o conto, de Ricardo Piglia


Decálogo do perfeito contista, de Horacio Quiroga
Manual del perfecto cuentista, de Horacio Quiroga
La retórica del cuento, de Horacio Quiroga
Borges e o conto, de Jorge Luis Borges
Uma história do conto, de Guillermo Cabrera Infante
TESES SOBRE O CONTO* porque é imprescindível na armação da história
secreta. Como fazer com que um gângster como
Ricardo Piglia** Red Scharlach fique a par das complexas tradições
judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada
1. Num de seus cadernos de notas Tchecov re- mística e filosófica? Borges lhe consegue esse
gistrou este episódio: “Um homem, em Monte livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a
Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para história 1 para dissimular essa função: o livro pa-
casa, se suicida”. A forma clássica do conto está rece estar ali por contiguidade com o assassinato
condensada no núcleo dessa narração futura e não de Yarmolinsky e responde a uma causalidade
escrita. irônica. “Um desses lojistas que descobriram que
Contra o previsível e convencional (jogar- qualquer homem se resigna a comprar qualquer
perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como livro publicou uma edição popular da Historia de
um paradoxo. A anedota tende a desvincular a la secta de Hasidim. O que é supérfluo numa his-
história do jogo e a história do suicídio. Essa exci- tória, é básico na outra. O livro do lojista é um
são é a chave para definir o caráter duplo da forma exemplo (como o volume das Mil e uma noites em
do conto. “El Sur”; como a cicatriz em “La forma de la es-
Primeira tese: um conto sempre conta duas his- pada”) da matéria ambígua que faz funcionar a
tórias. microscópica máquina narrativa que é um conto.
2. O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em 5. O conto é uma narrativa que encerra uma
primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e história secreta.
constrói em segredo a história 2 (o relato do suicí- Não se trata de um sentido oculto que depende
dio). A arte do contista consiste em saber cifrar a da interpretação: o enigma não é senão uma histó-
história 2 nos interstícios da história 1. Uma histó- ria que se conta de modo enigmático. A estratégia
ria visível esconde uma história secreta, narrada de da narrativa está posta a serviço dessa narrativa
um modo elíptico e fragmentário. cifrada. Como contar uma história enquanto se
O efeito de surpresa se produz quando o final está contando outra? Essa pergunta sintetiza os
da história secreta aparece na superfície. problemas técnicos do conto.
3. Cada uma das duas histórias é contada de Segunda tese: a história secreta é a chave da
maneira diferente. Trabalhar com duas histórias forma do conto e suas variantes.
significa trabalhar com dois sistemas diversos de 6. A versão moderna do conto que vem de
causalidade. Os mesmos acontecimentos entram Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Ander-
simultaneamente em duas lógicas narrativas anta- son, o Joyce de Dublinenses, abandona o final
gônicas. Os elementos essenciais de um conto têm surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a
dupla função e são utilizados de maneira diferente tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-
em cada uma das duas histórias. las. A história secreta conta-se de um modo cada
Os pontos de cruzamento são a base da cons- vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava
trução. uma história anunciando que havia outra; o conto
4. No início de “La muerte y la brújula”, um moderno conta duas histórias como se fossem uma
lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primei-
ra síntese desse processo de transformação: o mais
* PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Folha de São Paulo, importante nunca se conta. A história secreta se
Caderno Mais, 30 dez. 2001, p. 24 (Tradução de Josely Vianna constrói com o não dito, com o subentendido e a
Baptista).
** Ricardo Piglia é escritor argentino, autor deRespiração artificial alusão.
(Iluminuras) e Dinheiro queimado (Companhia das Letras), entre 7. “O grande rio dos dois corações”, um dos
outros. O texto acima foi publicado originalmente em O labora- textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal
tório do escritor (Iluminuras). ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick
Adams) que o conto parece a descrição trivial de gênero. Uma partida num armazém, na planície
uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda entrerriana, contada por um velho soldado da ca-
sua perícia na narração hermética da história se- valaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A
creta. Usa com tal maestria a arte da elipse que narração do suicídio seria uma história construída
consegue com que se note a ausência da outra his- com a duplicidade e a condensação da vida de um
tória. homem numa cena ou ato único que define seu
O que Hemingway faria com o episódio de destino.
Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e 10. A variante fundamental que Borges intro-
o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica uti- duziu na história do conto consistiu em fazer da
lizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida construção cifrada da história 2 o tema principal.
que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se Borges narra as manobras de alguém que cons-
suicidar, mas escrever o conto se o leitor já sou- trói perversamente uma trama secreta com os ma-
besse disso. teriais de uma história visível. Em “La muerte y la
8. Kafka conta com clareza e simplicidade a brújula”, a história 2 é uma construção deliberada
história secreta e narra sigilosamente a história de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo
visível até transformá-la em algo enigmático e Bandeira em “El muerto”; com Nolan em “Tema
obscuro. Essa inversão funda o “kafkiano”. del traidor y del héroe”; com Emma Zunz.
A história do suicídio no argumento de Tche- Borges (como Poe, como Kafka) sabia trans-
cov seria narrada por Kafka em primeiro plano e formar em argumento os problemas da forma de
com toda naturalidade. O terrível estaria centrado narrar.
na partida, narrada de um modo elíptico e ameaça- 11. O conto se constrói para fazer aparecer ar-
dor. tificialmente algo que estava oculto. Reproduz a
9. Para Borges a história 1 é um gênero e a his- busca sempre renovada de uma experiência única
tória 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimu- que nos permita ver, sob a superfície opaca da
lar a monotonia essencial dessa história secreta, vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea
Borges recorre às variantes narrativas que os gêne- que nos faz descobrir o desconhecido, não numa
ros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são longínqua terra incógnita, mas no próprio coração
construídos com esse procedimento. do imediato”, dizia Rimbaud.
A história visível, o jogo no caso de Tchecov, Essa iluminação profana se transformou na
seria contada por Borges segundo os estereótipos forma do conto.
(levemente parodiados) de uma tradição ou de um

DECÁLOGO DO PERFEITO CONTISTA* sonalidade requer muita paciência.


IV. Tem fé cega não em tua capacidade para o
Horacio Quiroga (1878-1937) triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua
arte como à tua namorada, de todo o coração.
I. Crê em um mestre – Poe, Maupassant, Kipling, V. Não comeces a escrever sem saber desde a
Tchecov – como em Deus. primeira linha aonde queres chegar. Em um conto
II. Crê que tua arte é um cume inacessível. Não bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a
sonhes alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, con- mesma importância das três últimas.
seguirás sem ao menos perceber. VI. Se quiseres expressar com exatidão esta cir-
III. Resiste o quando puderes à imitação, mas cunstância: “Desde o rio soprava o vento frio”,
imite se a demanda for demasiado forte. Mais que não há na língua humana mais palavras que as
nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da per- apontadas para expressá-la. Uma vez dono de
tuas palavras, não te preocupes em observar se
apresentam consonância ou dissonância entre si.
* Extraído do site http://www.charleskiefer.com.br/oficina/ VII. Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão
(Tradução de Rodrigo Penteado e Sandra Miguel).
quantos apêndices coloridos aderires a um subs-
tantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então
ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso capaz de revivê-la tal qual a sentiu, terás alcança-
encontrá-lo. do na arte a metade do caminho.
VIII. Pega teus personagens pela mão e conduza- X. Não penses em teus amigos ao escrever, nem
os firmemente até o fim, sem ver nada além do na impressão que causará tua história. Escreva
caminho que traçastes para eles. Não te distraias como se teu relato não interessasse a mais nin-
vendo o que a eles não importa ver. Não abuses guém senão ao pequeno mundo de teus persona-
do leitor. Um conto é um romance do qual se gens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro
retirou as aparas. Tenha isso como uma verdade modo de dar vida ao conto.
absoluta, ainda que não o seja.
IX. Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-
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MANUAL DEL PERFECTO CUENTISTA* géneros literarios.
Comenzaremos por el final. Me he convencido
Horacio Quiroga (1878-1937) de que, del mismo modo que en el soneto, el cuen-
to empieza por el fin. Nada en el mundo parecería
Una larga frecuentación de personas dedicadas más fácil que hallar la frase final para una historia
entre nosotros a escribir cuentos, y alguna expe- que, precisamente, acaba de concluir. Nada, sin
riencia personal al respecto, me han sugerido más embargo, es más dificil.
de una vez la sospecha de si no hay, en el arte de Encontré una vez a un amigo mío, excelente
escribir cuentos, algunos trucos de oficio, algunas cuentista, llorando, de codos sobre un cuento que
recetas de cómodo uso y efecto seguro, y si no no podía terminar. Faltábale sólo la frase final.
podrían ellos ser formulados para pasatiempo de Pero no la veía, sollozaba, sin lograr verla así tam-
las muchas personas cuyas ocupaciones serias no poco.
les permiten perfeccionarse en una profesión mal He observado que el llanto sirve por lo general
retribuida por lo general y no siempre bien vista. en literatura para vivir el cuento, al modo ruso;
Esta frecuentación de los cuentistas, los co- pero no para escribirlo. Podría asegurarse a ojos
mentarios oídos, el haber sido confidente de sus cerrados que toda historia que hace sollozar a su
luchas, inquietudes y desesperanzas, han traído a autor al escribirla, admite matemáticamente esta
mi ánimo la convicción de que, salvo contadas frase final:
excepciones en que un cuento sale bien sin recurso “¡Estaba muerta!”.
alguno, todos los restantes se realizan por medio Por no recordarla a tiempo su autor, hemos
de recetas o trucos de procedimiento al alcance de visto fracasar más de un cuento de gran fuerza. El
todos, siempre, claro está, que se conozcan su ubi- artista muy sensible debe tener siempre listos, có-
cación y su fin. mo lágrimas en la punta de su lápiz, los admirati-
Varios amigos me han alentado a emprender vos.
este trabajo, que podríamos llamar de divulgación Las frases breves son indispensables para fina-
literaria, si lo de literario no fuera un término muy lizar los cuentos de emoción recóndita o conteni-
avanzado para una anagnosia elemental. da. Una de ellas es:
Un día, pues, emprenderé esta obra altruista, “Nunca volvieron a verse”.
por cualquiera de sus lados, y piadosa, desde otros Puede ser más contenida aun:
puntos de vista. “Sólo ella volvió el rostro”.
Hoy apuntaré algunos de los trucos que me han Y cuando la amargura y un cierto desdén supe-
parecido hallarse más a flor de ojo. Hubiera sido rior priman en el autor, cabe esta sencilla frase:
mi deseo citar los cuentos nacionales cuyos párra- “Y así continuaron viviendo”.
fos extracto más adelante. Otra vez será. Conten- Otra frase de espíritu semejante a la anterior,
témonos por ahora con exponer tres o cuatro rece- aunque más cortante de estilo:
tas de las más usuales y seguras, convencidos de “Fue lo que hicieron”.
que ellas facilitarán la práctica cómoda y casera de Y ésta, por fin, que por demostrar gran domi-
lo que se ha venido a llamar el más difícil de los nio de sí e irónica suficiencia en el género, no re-
comendaría a los principiantes:
*Extraído do site “El cuento concluye aquí. Lo demás, apenas si
http://www.literatura.us/quiroga/manual.html.
tiene importancia para los personajes”. fue la diversión mayor que desde su matrimonio
Esto no obstante, existe un truco para finalizar hubiera tenido la recién casada”.
un cuento, que no es precisamente final, de gran Nadie supone que la luna de miel pueda mos-
efecto siempre y muy grato a los prosistas que trarse tan parca de dulzura al punto de hallarla por
escriben también en verso. Es este el truco del fin a lo largo de un vidrio en una tarde de lluvia.
“leit-motiv”. De estas pequeñas diabluras está constituido el
Final: “Allá a lo lejos, tras el negro páramo arte de contar. En un tiempo se acudió a menudo,
calcinado, el fuego apagaba sus últimas llamas...”. como a un procedimiento eficacísimo, al comienzo
Comienzo del cuento: “Silbando entre las pa- del cuento en diálogo. Hoy el misterio del diálogo
jas, el fuego invadía el campo, levantando grandes se ha desvanecido del todo. Tal vez dos o tres fra-
llamaradas. La criatura dormía...”. ses agudas arrastren todavía; pero si pasan de cua-
De mis muchas y prolijas observaciones, he tro el lector salta en seguida. “No cansar”. Tal es,
deducido que el comienzo del cuento no es, como a mi modo de ver, el apotegma inicial del perfecto
muchos desean creerlo, una tarea elemental. “To- cuentista. El tiempo es demasiado breve en esta
do es comenzar”. Nada más cierto, pero hay que miserable vida para perdérselo de un modo más
hacerlo. Para comenzar se necesita, en el noventa miserable aun.
y nueve por ciento de los casos, saber a dónde se De acuerdo con mis impresiones tomadas aquí
va. “La primera palabra de un cuento – se ha dicho y allá, deduzco que el truco más eficaz (o eficien-
– debe ya estar escrita con miras al final”. te, como se dice en la Escuela Normal), se lo halla
De acuerdo con este canon, he notado que el en el uso de dos viejas fórmulas abandonadas, y a
comienzo exabrupto, como si ya el lector conocie- las que en un tiempo, sin embargo, se entregaron
ra parte de la historia que le vamos a narrar, pro- con toda su buena fe los viejos cuentistas. Ellas
porciona al cuento insólito vigor. Y he notado son:
asimismo que la iniciación con oraciones com- “Era una hermosa noche de primavera” y “Ha-
plementarias favorece grandemente estos comien- bía una vez...”.
zos. Un ejemplo: ¿Qué intriga nos anuncian estos comienzos?
“Como Elena no estaba dispuesta a conceder- ¿Qué evocaciones más insípidas, a fuerza de inge-
lo, él, después de observarla fríamente, fue a coger nuas, que las que despiertan estas dos sencillas y
su sombrero. Ella, por todo comentario, se encogió calmas frases? Nada en nuestro interior se violenta
de hombros”. con ellas. Nada prometen ni nada sugieren a nues-
Yo tuve siempre la impresión de que un cuento tro instinto adivinatorio. Puédese, sin embargo,
comenzado así tiene grandes posibilidades de confiar en su éxito... si el resto vale. Después de
triunfar. ¿Quién era Elena? Y él, ¿cómo se llama- meditarlo mucho, no he hallado a ambas recetas
ba? ¿Qué cosa no le concedió Elena? ¿Qué moti- más que un inconveniente: el de despertar terri-
vos tenía él para pedírselo? ¿Y por qué observó blemente la malicia de los cultores del cuento.
fríamente a Elena, en vez de hacerlo furiosamente, Esta malicia profesional es la misma con que se
como era lógico de esperar? acogería el anuncio de un hombre al que se dispu-
Véase todo lo que del cuento se ignora. Nadie siera a revelar la belleza de una dama vulgarmente
lo sabe. Pero la atención del lector ya ha sido co- encubierta: “¡Cuidado! ¡Es hermosísima!”.
gida por sorpresa, y esto constituye un desidera- Existe un truco singular, poco practicado, y,
tum, en el arte de contar. sin embargo, lleno de frescura cuando se lo usa
He anotado algunas variantes a este truco de con mala fe.
las frases secundarias. De óptimo efecto suele ser Este truco es el del lugar común. Nadie ignora
el comienzo condicional: lo que es en literatura el lugar común. “Pálido co-
“De haberla conocido a tiempo, el diputado mo la muerte” y “Dar la mano derecha por obtener
hubiera ganado un saludo, y la reelección. Pero algo” son dos bien característicos.
perdió ambas cosas”. Llamamos lugar común de buena fe al que se
A semejanza del ejemplo anterior, nada sabe- comete arrastrado inconscientemente por el más
mos de estos personajes presentados como ya co- puro sentimiento artístico; esta pureza de arte que
nocidos nuestros, ni de quién fuera tan influyente nos lleva a loar en verso el encanto de las grietas
dama a quien el diputado no reconoció. El truco de los ladrillos del andén de la estación del pue-
del interés está, precisamente en ello. blecito de Cucullú, y la impresión sufrida por estos
“Como acababa de llover, el agua goteaba aún mismos ladrillos el día que la novia de nuestro
por los cristales. Y el seguir las líneas con el dedo amigo, a la que sólo conocíamos de vista, por ca-
sualidad los pisó. barro de los zapatos”.
Esta es la buena fe. La mala fe se reconoce en Es natural y propio de un varón perder su
la falta de correlación entre la frase hecha y el sen- mano por un amor, una vida o un beso. No lo es ya
timiento o circunstancia que la inspiran. tanto darla por ver de cerca los zapatos de una
Ponerse pálido como la muerte ante el cadáver desconocida. Sorprende la frase fuera de su ubica-
de la novia es un lugar común. Deja de serlo cuan- ción psicológica habitual; y aquí está la mala fe.
do al ver perfectamente viva a la novia de nuestro El tiempo es breve. No son pocos los trucos
amigo, palidecemos hasta la muerte. que quedan por examinar. Creo firmemente que si
“Yo insistía en quitarle el lodo de los zapatos. añadimos a los ya estudiados el truco de la contra-
Ella, riendo se negaba. Y, con un breve saludo, posición de adjetivos, el del color local, el truco de
saltó al tren, enfangada hasta el tobillo. Era la pri- las ciencias técnicas, el del estilista sobrio, el del
mera vez que yo la veía; no me había seducido, ni folklore, y algunos más que no escapan a la mali-
interesado, ni he vuelto más a verla. Pero lo que cia de los colegas, facilitarán todos ellos en gran
ella ignora es que, en aquel momento, yo hubiera medida la confección casera, rápida y sin fallas, de
dado con gusto la mano derecha por quitarle el nuestros mejores cuentos nacionales...

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LA RETÓRICA DEL CUENTO* cuentista, es de inestable mi situación presente.
Cuanto sabía yo del cuento era un error. Mi cono-
Horacio Quiroga (1878-1937) cimiento indudable del oficio, mis pequeñas tram-
pas más o menos claras, solo han servido para co-
En estas mismas columnas, solicitado cierta locarme de pie, desnudo y aterido como una cria-
vez por algunos amigos de la infancia que desea- tura, ante la gesta de una nueva retórica del cuento
ban escribir cuentos sin las dificultades inherentes que nos debe amamantar.
por común a su composición, expuse unas cuantas “Una nueva retórica...” No soy el primero en
reglas y trucos, que, por haberme servido satisfac- expresar así los flamantes cánones. No está en
toriamente en más de una ocasión, sospeché po- juego con ellos nuestra vieja estética, sino una
drían prestar servicios de verdad a aquellos amigos nueva nomenclatura. Para orientarnos en su ha-
de la niñez. llazgo, nada más útil que recordar lo que la litera-
Animado por el silencio – en literatura el si- tura de ayer, la de hace diez siglos y la de los pri-
lencio es siempre animador – en que había caído meros balbuceos de la civilización, han entendido
mi elemental anagnosia del oficio, completéla con por cuento.
una nueva serie de trucos eficaces y seguros, con- El cuento literario, nos dice aquélla, consta de
vencido de que uno por lo menos de los infinitos los mismos elementos sucintos que el cuento oral,
aspirantes al arte de escribir, debía de estar ges- y es como éste el relato de una historia bastante
tando en las sombras un cuento revelador. interesante y suficientemente breve para que ab-
Ha pasado el tiempo. Ignoro todavía si mis sorba toda nuestra atención.
normas literarias prestaron servicios. Una y otra Pero no es indispensable, adviértenos la retóri-
serie de trucos anotados con más humor que so- ca, que el tema a contra constituya una historia
lemnidad llevaban el título común de Manual del con principio, medio y fin. Una escena trunca, un
perfecto cuentista. incidente, una simple situación sentimental, moral
Hoy se me solicita de nuevo, pero esta vez con o espiritual, poseen elementos de sobra para reali-
mucha más seriedad que buen humor. Se me pide zar con ellos un cuento.
primeramente una declaración firme y explícita Tal vez en ciertas épocas la historia total – lo
acerca del cuento. Y luego, una fórmula eficaz que podríamos llamar argumento – fue inherente
para evitar precisamente escribirlos en la forma ya al cuento mismo. “¡Pobre argumento! – decíase –.
desusada que con tan pobre éxito absorbió nues- ¡Pobre cuento!” Más tarde, con la historia breve,
tras viejas horas. enérgica y aguda de un simple estado de ánimo,
Como se ve, cuanto era de desenfadada y segu- los grandes maestros del género han creado relatos
ra mi posición al divulgar los trucos del perfecto inmortales.
En la extensión sin límites del tema y del pro-
*Extraído do site cedimiento en el cuento, dos calidades se han exi-
http://www.literatura.us/quiroga/retorica.html.
gido siempre: en el autor, el poder de transmitir verbal. El cuentista que “no dice algo”, que nos
vivamente y sin demoras sus impresiones; y en la hace perder el tiempo, que lo pierde él mismo en
obra, la soltura, la energía y la brevedad del relato, divagaciones superfluas, puede verse a uno y otro
que la definen. lado buscando otra vocación. Ese hombre no ha
Tan específicas son estas cualidades, que des- nacido cuentista.
de las remotas edades del hombre, y a través de las Pero ¿si esas divagaciones, digresiones y orna-
más hondas convulsiones literarias, el concepto tos sutiles, poseen en sí mismos elementos de gran
del cuento no ha variado. Cuando el de los otros belleza? ¿Si ellos solos, mucho más que el cuento
géneros sufría según las modas del momento, el sofocado, realizan una excelsa obra de arte?
cuento permaneció firme en su esencia integral. Y Enhorabuena, responde la retórica. Pero no
mientras la lengua humana sea nuestro preferido constituyen un cuento. Esas divagaciones admira-
vehículo de expresión, el hombre contará siempre, bles pueden lucir en un artículo, en una fantasía,
por ser el cuento la forma natural, normal e en un cuadro, en un ensayo, y con seguridad en
irreemplazable de contar. una novela. En el cuento no tienen cabida, ni mu-
Extendido hasta la novela, el relato puede su- cho menos pueden constituirlo por sí solas.
frir en su estructura. Constreñido en su enérgica Mientras no se crée una nueva retórica, con-
brevedad, el cuento es y no puede ser otra cosa cluye la vieja dama, con nuevas formas de la poe-
que lo que todos, cultos e ignorantes, entendemos sía épica, el cuento es y será lo que todos, grandes
por tal. y chicos, jóvenes y viejos, muertos y vivos, hemos
Los cuentos chinos y persas, los grecolatinos, comprendido por tal. Puede el futuro nuevo género
los árabes de las “Mil y una noches”, los del Re- ser superior, por sus caracteres y sus cultores, al
nacimiento italiano, los de Perrault, de Hoffmann, viejo y sólido afán de contar que acucia al ser hu-
de Poe, de Merimée de Bret-Harte, de Verga, de mano. Pero busquémosle otro nombre.
Chejov, de Maupassant, de Kipling, todos ellos Tal es la cuestión. Queda así evacuada, por bo-
son una sola y misma cosa en su realización. Pue- ca de la tradición retórica, la consulta que se me ha
den diferenciarse unos de otros como el sol y la hecho.
luna. Pero el concepto, el coraje para contar, la En cuanto a mí, a mi desventajosa manía de
intensidad, la brevedad, son los mismos en todos entender el relato, creo sinceramente que es tarde
los cuentistas de todas las edades. ya para perderla. Pero haré cuanto esté en mí para
Todos ellos poseen en grado máximo la carac- no hacerlo peor.
terística de entrar vivamente en materia. Nada más
imposible que aplicarles las palabras: “Al grano, al In: QUIROGA, Horacio. Idilio y otros cuentos.
grano...” con que se hostiga a un mal contador Montevideo: Claudio García, 1945.

BORGES E O CONTO* primeira vez no Brasil, em tradução de Charles Kiefer.

Jorge Luis Borges (1899-1986) Acabam de informar-me que vou falar sobre
meus contos. Vocês, com certeza, conhecem-nos
Este texto é a transcrição de uma conversa informal que melhor do que eu, já que eu, depois de tê-los es-
Jorge Luis Borges manteve, há alguns anos, numa casa do crito, tratei de esquecê-los. Para não desanimar,
bairro de Palermo, em Buenos Aires, com um grupo de estu- passei a outros. Em compensação, talvez alguém
diosos de sua obra. Entre eles, o jornalista peruano Américo
Cristófalo, que gravou a entrevista e a publicou no Diário de
de vocês tenha lido algum conto meu, digamos,
Marka. O “Suplemento Cultural de Unomasuno”, jornal duas vezes, coisa que não aconteceu comigo. No
mexicano, reproduziu-a em 1981. Em janeiro de 1987, Puro entanto, creio que podemos falar sobre meus con-
Cuento, n° 2, editada por Mempo Giardinelli, reproduziu-a tos, se lhes parece que merecem atenção. Vou ten-
em Buenos Aires. Ponto&Vírgula a trouxe a público, pela tar lembrar de algum e depois gostaria de conver-
sar com vocês que, possivelmente, ou sem possi-
* Extraído do site http://www.charleskiefer.com.br/oficina/. velmente, sem advérbio, podem ensinar-me muitas
coisas, já que não acredito, ao contrário da teoria misteriosas. Pensei na palavra inesquecível. Un-
de Edgar Allan Poe, que a arte, a operação de es- forgettable, em inglês. Detive-me, não sei por que,
crever, seja uma operação intelectual. Penso que é já que havia ouvido essa palavra milhares de ve-
melhor que o escritor interfira o mínimo possível zes, quase não passava um dia sem que a ouvisse.
em sua obra. Isto pode parecer estranho, mas não Pensei: que coisa extraordinária seria se houvesse
é. Em todo caso, trata-se, curiosamente, da doutri- algo de que realmente não pudéssemos nos esque-
na clássica. Nós a vemos na primeira linha, eu não cer? Que fantástico seria se houvesse, no que
sei grego, da Ilíada, de Homero, que todos lemos chamamos realidade, uma coisa, um objeto, por
na censurável versão de Hermosilla: “Canta, Mu- que não?, que fosse realmente inesquecível!
sa, a cólera de Aquiles”. Isto é, Homero, ou os Este foi meu ponto de partida, bastante abstra-
gregos a que chamamos de Homero, sabia que o to e pobre: pensar no possível sentido dessa pala-
poeta não é o cantor, que o poeta, ou prosador, dá vra ouvida, lida, literalmente inesquecível, unfor-
no mesmo, é simplesmente o amanuense de algo gettable, unvergesslich, inouviable. Foi um consi-
que ignora e que em sua mitologia particular cha- deração bastante pobre, como vocês podem ver.
ma de a Musa. Por outro lado, os hebreus preferi- Depois, pensei que se existe algo inesquecível,
ram falar de Espírito, e nossa psicologia contem- deve ser algo comum, já que se tivéssemos uma
porânea, que não sofre de excessiva beleza, de Quimera, por exemplo, um monstro de três cabe-
subconsciência, inconsciente coletivo, ou algo ças, uma cabeça, se não me engano, de cobra, ou-
assim. Mas, enfim, o importante é o fato de que o tra de serpente, outra de cão, não tenho certeza,
escritor é um amanuense, ele recebe algo e procura certamente recordaríamos isto. De modo que não
expressá-lo. O que recebe não são exatamente cer- haveria graça nenhuma num conto com um mino-
tas palavras numa certa ordem, como queriam os tauro, uma quimera, um unicórnio inesquecíveis.
hebreus, que pensavam que cada sílaba do texto Não, teria que ser alguma coisa bem comum. Ao
havia sido pré-fixada. Não, acredito em algo muito pensar nessa coisa comum, pensei imediatamente
mais vago do que isso, mas, em qualquer dos ca- numa moeda, já que são cunhadas milhares e mi-
sos, sempre é receber alguma coisa. lhares de moedas absolutamente iguais. Todas
Vou procurar, então, recordar um conto meu. com a efígie da liberdade ou um escudo, ou com
Enquanto me traziam para cá, fiquei pensando em certas palavras convencionais. Que coisa extraor-
um conto meu, não sei se vocês leram, e que se dinária seria se houvesse uma moeda, uma moeda
chama “El Zahir”. Vou lembrar como cheguei à perdida entre esses milhões de moedas, que fosse
concepção desse “conto”. Uso a palavra entre as- inesquecível. Pensei, assim, numa moeda que já
pas, já que não sei se é o que é, mas, enfim, o tema saiu de circulação, uma moeda de vinte centavos,
dos gêneros é o de menos. Croce acreditava não uma moeda igual às outras, igual à moeda de cinco
haver gêneros. Eu creio que sim, que os há, no ou à de dez centavos, um pouco maior. Que coisa
sentido de que há uma expectativa no leitor. Se extraordinária seria se, entre os milhões, literal-
uma pessoa lê um conto, lê de modo diferente de mente, de moedas cunhadas pelo Estado, houvesse
seu modo de ler quando procura um verbete na uma que fosse inesquecível. Daí surgiu-me uma
enciclopédia ou quando lê uma novela, ou quando idéia: uma inesquecível moeda de vinte centavos.
lê um poema. Os textos podem não ser diferentes Não sei se elas ainda existem, se os numismáticos
uns dos outros, mas se alteram segundo o leitor, as colecionam, se elas têm algum valor, mas, en-
segundo a expectativa. Quem lê um conto sabe ou fim, não pensei nisso naquele instante. Pensei nu-
espera ler algo que o distraia da vida cotidiana, ma moeda que, para os objetivos do meu conto,
que o faça entrar num mundo, não direi fantástico, teria de ser inesquecível. Isto é, uma pessoa que a
a palavra é muito ambiciosa, mas ligeiramente visse não poderia mais pensar em outra coisa.
diferente do mundo das experiências comuns. Depois, encontrei-me diante da segunda ou
Chego, agora, a “El Zahir”. Já que estamos en- terceira dificuldade. Perdi a conta das dificulda-
tre amigos, vou contar-lhes como me ocorreu esse des. Por que essa moeda viria a ser inesquecível?
conto. Não recordo a data em que o escrevi, sei O leitor não aceitaria tal idéia. Eu tinha de prepa-
apenas que era diretor da Biblioteca Nacional, que rar o inesquecível da minha moeda, e para tanto
fica no sul de Buenos Aires, perto da igreja de La convinha supor um estado emocional em que ele a
Concepción. Conheço bem esse bairro. Meu ponto via, tinha de insinuar a loucura, já que o tema de
de partida foi uma palavra, uma palavra que usa- meu conto é um tema que se parece com a loucura
mos quase todos os dias sem nos dar conta do mis- ou a obsessão. Pensei, como pensou Edgar Allan
tério que nela há, exceto que todas as palavras são Poe quando escreveu seu merecidamente famoso
poema “O corvo”, na morte de uma mulher bonita. gico para o conto. Depois é que surgem as tentati-
Poe se perguntou a quem poderia impressionar a vas do narrador de livrar-se de sua obsessão. Di-
morte dessa mulher bonita e deduziu que tinha de versos artifícios são utilizados: um deles é perder a
impressionar a alguém que estivesse apaixonado moeda. Leva-a, então, a outro botequim, distante
por ela. Daí cheguei a idéia de uma mulher, por dali. Usa-a para pagar, procura esquecer em que
quem, no conto, estou apaixonado, e que morre, o esquina o botequim se encontrava, mas isso não
que me deixa desesperado. Neste ponto, teria sido resolve o problema, ele continua pensando na mo-
fácil, talvez fácil demais, que essa mulher fosse eda. Chega a extremos um tanto absurdos. Por
como a perdida Leonor, de Poe. Mas, não. Decidi exemplo, compra uma libra esterlina, com São
mostrar essa mulher de um modo satírico, mostrar Jorge e o dragão, examina-a com uma lupa, procu-
o amor de quem não esquecerá a moeda de vinte ra pensar nela e esquecer a moeda de vinte centa-
centavos como um pouco ridículo. Todos os amo- vos, já perdida para sempre, mas não consegue
res o são para quem os vê de fora. Assim, ao invés livrar-se da lembrança. Até o final do conto, o
de falar da beleza do love splendor, converti-a homem vai enlouquecendo, mas pensa que essa
numa mulher bastante trivial, um pouco ridícula, mesma obsessão poderá salvá-lo. Isto é, haverá um
nem feia nem muito linda. Imaginei uma situação momento no qual o Universo já terá desaparecido
que ocorre com freqüência: um homem é apaixo- e o próprio Universo será uma moeda de vinte
nado por uma mulher, não pode viver sem ela, centavos. Então ele, e aqui produzi um pequeno
mas, ao mesmo tempo, sabe que essa mulher não é efeito literário, ele, Borges, estará louco, não sabe-
especialmente recomendável, digamos, para sua rá mais que é Borges. Já não será outra coisa a não
mãe, para suas primas, para a camareira, para a ser o espectador dessa perdida moeda inesquecí-
costureira, para as amigas. No entanto, para ele, vel. E conclui com uma frase devidamente literá-
esse mulher é única. ria, isto é, falsa: “Talvez por detrás da moeda este-
Isto me levou a uma outra idéia: a de que tal- ja Deus”. Ou seja, se alguém vê uma só coisa, essa
vez toda pessoa seja única e que nós não vemos o coisa única é absoluta. Há outros episódios que
extraordinário que fala a favor dessa pessoa. Às esqueci, alguns talvez que vocês recordem. Ao
vezes, penso que isto se dá em tudo. Senão, fixe- final, ele não pode dormir, sonha com a moeda,
mo-nos no fato de que na natureza ou em Deus, não pode ler, a moeda se interpõe entre o texto e
Deus sive Natura, como dizia Spinoza, o impor- ele, quase não pode falar senão de um modo me-
tante é a quantidade e não a qualidade. Por que cânico, por que realmente está pensando na moe-
não supor, então, que haja algo singular em cada da. Assim termina o conto.
formiga e que por isso Deus, ou a natureza, cria Bem, esse conto pertence a uma série em que
milhões de formigas. O que é falso. Não há mi- há objetos mágicos que a princípio parecem mara-
lhões de formigas, há milhões de seres diferentes, vilhosos e que depois se transformam em maldi-
mas a diferença é tão sutil que nós as vemos como ções, pois estão carregados de horror. Recordo-me
iguais. de outro conto que é essencialmente o mesmo e
O que é, pois, estar apaixonado? Estar apaixo- que está em meu melhor livro, se é possível falar
nado é perceber o que há de extraordinário em em livros melhores, “O Livro de Areia”, um livro
cada pessoa, singularidade essa que não pode ser impossível, já que não se pode ter livros de areia,
comunicada a não ser por meio de hipérboles ou já que se desagregariam. Chamei-o de livro de
de metáforas. Então, por que não imaginar que areia porque compõe-se de um número infinito de
essa mulher, um pouco ridícula para todos, pouco páginas. O livro tem o número da areia, ou mais
ridícula para quem está apaixonado por ela, que que o presumível número infinito de páginas, não
essa mulher morra. Depois, temos o velório. Esco- pode ser aberto duas vezes na mesma página.
lhi o lugar do velório, escolhi a esquina, pensei na Este poderia ter sido um grande livro, de as-
igreja da Conceição, uma igreja não muito famosa pecto ilustre, mas a mesma idéia que me levou a
nem muito interessante, e no homem que, depois uma moeda de vinte centavos no primeiro conto,
do velório, vai tomar um refresco num botequim. conduziu-me a um livro mal impresso, com ilus-
Paga, dão-lhe uma moeda de troco, e ele percebe, trações confusas e escrito num idioma desconhe-
em seguida, que há algo nela: foi riscada, o que a cido. Eu necessitava disso para o prestígio do li-
diferencia das outras. Ele vê a moeda, está muito vro, e chamei-o Holy Writ, escritura sagrada, a
emocionado pela morte da mulher, mas, ao ver a escritura sagrada de uma religião desconhecida. O
moeda, já começa a se esquecer de tudo e a pensar homem o adquire, pensa que tem um livro único,
somente na moeda. Eu tinha, assim, o objeto má- mas depois percebe o quanto é terrível ter um livro
sem a primeira página, já que se houvesse uma que não supor uma enciclopédia de um mundo
primeira, haveria uma última. Em qualquer parte imaginário?
que abra o livro, haverá sempre algumas páginas Essa enciclopédia teria o rigor que não tem o
entre aquela em que ele abre, o livro e a capa. O que chamamos de realidade. Disse Chesterton que
livro não tem nada de particular, mas acaba por é natural que o real seja mais fantástico que o
infundir-lhe horror e ele opta por perdê-lo e o faz imaginado, já que o imaginado procede de nós
na Biblioteca Nacional. Escolhi este lugar em es- mesmos, enquanto que o real procede de uma
pecial porque conheço bem a Biblioteca. Assim, imaginação infinita, a de Deus. Bem, vamos ima-
temos o mesmo argumento: um objeto mágico que ginar a enciclopédia de um mundo imaginário.
realmente contém horror. Mas antes disso, eu ha- Esse mundo imaginário, sua história, suas mate-
via escrito um outro conto, intitulado “Tlöon, máticas, suas religiões, as heresias dessas religi-
uqbar, Orbis tertius”. Não se sabe a que idioma ões, suas línguas, as gramáticas e filosofias dessas
Tlön pertence, possivelmente a uma língua germâ- línguas, tudo isso será mais ordenado, isto é, mais
nica. Uqbar sugere algo arábico, algo asiático. E aceitável para a imaginação que o mundo real em
mais duas palavras claramente latinas: Orbius Ter- que estamos perdidos, do qual podemos pensar
tius, Mundo Terceiro. A idéia era diferente. A que é um labirinto, um caos. Podemos imaginar,
idéia é a de um livro que modifique o mundo. então, a enciclopédia desse mundo, ou desses três
Eu sempre fui leitor de enciclopédias, creio mundos que se chamam, em três etapas sucessivas,
que é um dos gêneros literários que prefiro porque, Tlön, Uqbar, Orbius Tertius. Não sei quantos
de algum modo, oferece tudo de maneira surpre- exemplares eram, digamos, trinta exemplares des-
endente. Recordo que costumava ir à Biblioteca ses volumes que, lidos e relidos, acabam por su-
Nacional com meu pai. Eu era muito tímido para plantar a realidade. Já que a história real que narra
pedir um livro, então retirava um volume das pra- é mais aceitável que a história real que não enten-
teleiras, abria-o e lia. Encontrei uma velha edição demos, sua filosofia corresponde à filosofia que
da Enciclopédia Britânica, uma edição muito supe- podemos admitir facilmente e compreender: o ide-
rior às atuais, já que era concebida como livro de alismo de Hume, dos hindus, de Schopenhauer, de
leitura e não de consulta, era uma série de extensas Berkeley, de Spinoza. Suponhamos que essa enci-
monografias. Recordo que, numa noite especial- clopédia funde o mundo cotidiano e o substitua.
mente feliz, busquei o volume que corresponde ao Então, uma vez escrito o conto, aquela mesma
D-E e li um artigo sobre os druidas, antigos sacer- idéia de um objeto mágico que modifica a realida-
dotes celtas, que acreditavam, segundo César, na de leva a uma espécie de loucura; uma vez escrito
transmigração das almas. Pode ser um erro de Cé- o conto, pensei: “O que é que realmente aconte-
sar. Li outro artigo sobre os drusos da Ásia Menor, ceu?”, pois o que seria do mundo atual sem os
que também acreditavam na transmigração. De- diversos livros sagrados, sem os diversos livros de
pois, pensei em algo não indigno de Kafka: Deus filosofia.
sabe que esses drusos são muito poucos, que seus Esse foi um dos primeiros contos que escrevi.
vizinhos os assediam, mas que, ao mesmo tempo, Vocês observarão que esses três contos de aparên-
crêem que haja uma vasta população de drusos na cia distinta, “Tlön, uqbar, orbius tertius”, “O za-
China, que crêem também, como os druidas, na hir” e “O livro de areia” são essencialmente o
transmigração. Isso eu encontrei naquela edição, mesmo: um objeto mágico intercalado no que se
creio que do ano de 1910; depois, na de 1911, não chama mundo real. Talvez vocês pensem que eu
encontrei mais esse parágrafo, que possivelmente tenha escolhido mal, talvez haja outros que lhes
sonhei, embora creio recordar ainda a frase chine- interessem mais. Vejamos, portanto, um outro
se druses, drusos chineses, e um artigo sobre conto: “Utopia de um homem que está cansado”.
Dryden, que falava de toda a triste variedade do Essa utopia de um homem que está cansado é re-
inferno, sobre a qual o poeta Eliot escreveu um almente a minha utopia. Creio que nos enganamos
excelente livro. Isto tudo me foi dado numa noite. de muitas formas, e uma delas é a fama. Não há
Como sempre fui leitor de enciclopédias, refle- nenhuma razão para que um homem seja famoso.
ti, essa reflexão é trivial também, mas não impor- Para esse conto, eu imaginei uma longevidade
ta, para mim foi inspiradora, que as enciclopédias muito superior à atual. Bernard Shaw acreditava
que eu tinha lido se referem ao nosso planeta, aos que conviria viver trezentos anos para se chegar a
outros, aos diversos idiomas, às suas diversas lite- ser adulto. Talvez a cifra seja pequena, não lembro
raturas, às diversas filosofias, aos diversos fatos qual a que fixei nesse conto: escrevi-o faz muito
que configuram o que se chama mundo físico. Por tempo. Suponho primeiro um mundo que não é
dividido em nações como atualmente, um mundo suicídio. Ele queima toda a sua obra. Não há razão
que tenha chegado a um idioma comum. Vacilei para que o passado nos oprima, já que cada um
entre o esperanto e outro idioma neutro e logo pode e deve bastar-se. Para que esse conto fosse
pensei no latim. Todos sentimos saudade do latim. contado, faltava-lhe uma pessoa do presente. O
Recordo-me de uma frase muito linda de Brow- narrador é esta pessoa. Aquele homem presenteia
ning, que fala disso, Latin, marble’s language, o narrador com um de seus quadros, que regressa
idioma de mármore. O que se diz em latim parece, ao tempo atual, creio que contemporâneo a este
efetivamente, gravado no mármore de modo bas- nosso. Relembrarei aqui duas famosas fantasias,
tante lapidar. Pensei num homem que vive muito uma de Wells e outra de Coleridge. A de Wells
tempo, que chega a saber tudo o que quer saber, está no conto intitulado “The time machine”, em
que descobriu sua especialidade e a ela se dedica, que o narrador viaja a um futuro muito remoto e
que sabe que na sua vida os homens e mulheres desse futuro traz uma flor, uma flor em botão. Ao
podem ser inumeráveis, mas não se retira à soli- regressar, essa flor ainda não floresceu. A outra é
dão. Dedica-se a sua arte, que pode ser a ciência uma frase, uma sentença perdida de Coleridge, que
ou qualquer das artes visuais. No conto, trata-se de está num de seus cadernos de notas que só foram
um pintor. Ele vive solitariamente, pinta, sabe que publicados depois de sua morte, e que diz sim-
é absurdo deixar uma obra-de-arte à posteridade, plesmente: “Se alguém atravessasse o paraíso e lhe
já que não há nenhuma razão para que cada um dessem como prova de sua passagem pelo paraíso
não seja seu próprio Velasquez, seu próprio Scho- uma flor e ele despertasse com essa flor nas mãos,
penhauer. Chega, então, o momento em que ele então, o quê?”
decide destruir tudo o que fez. Ele não tem nome: Isso é tudo. Concluí desse modo: o homem
os nomes servem para distinguir os homens uns volta ao presente e traz consigo um quadro do fu-
dos outros, mas ele vive só. Chega o momento em turo, um quadro que não foi pintado ainda. Esse
que ele crê que é conveniente morrer. Dirige-se a conto é um conto triste, como o indica o título:
um pequeno estabelecimento, onde se administra o “Utopia de um homem que está cansado”.

UMA HISTÓRIA DO CONTO* contos para seus companheiros de caverna senta-


dos em volta de uma fogueira. O homem, como
Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista
é o único ser humano que faz contos. Esses contos
O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça
até mais, pois podem muito bem ter existido pri- perdido no encalço de um cervo branco com um
matas ancestrais que contavam contos feitos intei- chifre na testa. Os contos não perduraram nas pa-
ramente de grunhidos, que são a origem da lingua- redes da caverna, mas não se perderam: foram
gem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, reencontrados, contados, na memória coletiva.
melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim Séculos mais tarde, outro contista pegou o
nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. Mas mesmo conto, embelezou o cervo branco e o con-
antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos verteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a
inteiramente de prosa: um conto em verso não é experiência fosse alheia, tomou e fez seu o tema
um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde,
uma narração com métrica e talvez com rima: uma outro contista enfeitou com metáforas (isto é, em-
ocasião cantada, não contada, uma canção. belezou poeticamente) esse animal único com seu
Antes até que aquele anônimo artista de Alta- único chifre. Passados outros tantos séculos, o
mira pintasse seus minuciosos murais, deve ter homem que conta já havia aprendido a escrever (e,
existido um autor anônimo na região que contasse é claro, a ler), e outros animais e outros homens
que se transformavam em animais povoaram com
contos o que chamamos mitologia, mas que para
*Publicado na Folha de São Paulo, 30 dez. 2001 (Tradução de
Sergio Molina). eles era essa transcendência chamada religião.
Em outro século, quando outros homens já não literatura árabe depois do Corão. Suas histórias
acreditavam nessa religião de deuses tão humanos ("Ali Babá e os 40 Ladrões", "Aladim e a Lâmpa-
que se confundiam com os simples mortais, um da Maravilhosa" e "Simbá, o Marujo") são hoje
deles, um poeta chamado Ovídio, escreveu As tão populares como quando foram traduzidas aos
Metamorfoses. De religião, esses textos não ti- diversos idiomas europeus. Sua influência é per-
nham mais do que aqueles primeiros contos conta- ceptível desde Boccaccio e Chaucer. Mas, já antes
dos em volta de uma fogueira numa caverna. Isso deles, um extraordinário escritor espanhol, o in-
fez do conto o gênero literário mais antigo e mais fante d. Juan Manuel, incluiu em seu "Libro de los
protéico. Enxiemplos" mais de um conto árabe extraído de
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus "As Mil e Uma Noites", então reconvertidas em
grego que estréia na cena olímpica com a "Odis- tradição oral.
séia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de Ao contrário do que acontece com os contos
tudo, mas mudava de forma para não ser interro- contemporâneos na Europa, As Mil e Uma Noites
gado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, têm mil e um autores, e a esperta princesa Shera-
que nunca muda de forma, mas procura sempre ser zade é um autor coletivo que conta com voz de
interrogado: pela imprensa, pelo rádio e pela tele- mulher. São, em todo caso, contos de encanto, e
visão – e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessá- até seu título em árabe é encantador, encantatório:
rio frisar que Proteus era uma metamorfose feita "Alf Layla wa Layla".
deus. Proteus está muito perto de prosa, que é o Dessa vasta coleção de contos rastreou-se a
que os contistas cultivam. Protéico, prosaico – dá origem até o século 9º d.C. Sua última forma é do
na mesma. século 16. Isso quer dizer que, com seu feitiço
Os gregos, além de Homero e sua Odisséia, oriental, o livro cobre quase toda a Idade Média
cultivavam o conto, e um romancezinho, que é o cristã - embora diga, no início de cada conto: "...
que é Dafne e Cloé, publicado no segundo ano da mas Allah é mais poderoso". Em seguida vem uma
nossa era, foi seu provável precursor. espécie desconhecida de poesia que as infiéis e
Mas são contos os fragmentos que fazem do cruentas traduções não conseguiram aniquilar.
Satyricon, de Petrônio, um romance, e um de seus Sherazade é a mais poderosa máquina de matar o
mais memoráveis é aquele intitulado "A Viúva de tédio e a crueldade do rei que sempre assassinava
Éfeso", um conto perfeito e muitas vezes citado, a consorte de cada noite, à exceção da contista,
copiado até. Entre outros por Jean Cocteau, poeta uma mulher amena, apesar de ameaçada.
tão teatral que transformou o conto em peça, ga- Chaucer repetiu o esquema em seus Contos de
nhando-o para o teatro. Canterbury, mas em verso. Quem o conseguiu em
O conto, logo protéico, parece desaparecer na prosa foi Boccaccio, em seu imitado, inimitável
Idade Média, mas na verdade se veste com os ver- Decameron. É curioso que Cervantes, um artista
sos do romance, seja nos "romans courtois", onde supremo, tenha buscado inspiração nos contos
aparece como história de aventuras, seja no "Ro- italianos e não nos exemplos do infante d. Juan
man de Renart", em que serve a um fabulário, não Manuel, que, diga-se de passagem, deu a Shakes-
longe do zoológico de Esopo. Na saga arturiana peare seu "Relato de Mancebo que Casó con Mu-
(que não se deve confundir com a sopa asturiana, jer Brava". Acontece que Boccaccio é um contista
conto de favas), o romance adquire um tom mági- natural, tal como a contadora de histórias árabe.
co, quase místico, que lhe é exclusivo. Mas a his- Cervantes, que inaugurou o romance moderno, o
tória paralela do amor fatal de Tristão pela bela mais imitado, chamou o Quixote de livro e de
Isolda é, como quer Bédier, um conto de amor, de "novelas exemplares" seus contos, declarando que
loucura e de morte cuja aura mágica não fica nada "de modo algum poderás fazer", leitor, "mistifó-
a dever aos modelos gregos e romanos. rio". Mas revelou seu ofício e arte: "Meu intento
Mas o conto, sempre recomeçado, reaparece foi armar (...) uma mesa de carambolas". E acres-
onde menos esperariam os trovadores medievais: centou: "Onde cada qual encontre com o que se
no Oriente. entreter".
Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas
Os árabes, entre o harém e a areia Noites das Mil e Uma Noites, que o editor catalo-
ga como romance (os editores são capazes de
As Mil e Uma Noites é a mais monumental chamar de romance a lista telefônica, que pode
compilação de contos do final da Idade Média. não ter narração, mas tem uma porção de persona-
Esses contos são a mais traduzida (e conhecida) gens), esse escritor consciente, demasiado consci-
ente, tenta se tornar uma Sherazade assídua. Mas aparecia povoado de gângsteres sentimentais, jo-
fracassa em seu intento. O livro quer ser árabe e é gadores sementais e uma porção de mulheres de
apenas egípcio. moralidade duvidosa e um (pouco) siso legível
Por outro lado, Los Cuentos Negros de Cuba como sexo. O cinema e o teatro, onde ninguém lê,
são minhas mil e uma noites negras, contadas por criaram um Runyon ilustrado para iletrados.
uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entre- Runyon, que fazia rir, ia ao banco sempre rindo.
ter as noites em claro de uma amiga agonizante. Não foram só os contistas com humor que ti-
No final do livro, a doente já estava morta, mas os veram sucesso popular. A partir do século 19,
contos vivem na imortalidade da literatura. Eu os houve também quem cultivasse – e fosse popular
classifiquei, qualifiquei, como "antropoesia". por algum tempo – essa estranha e elusiva planta
A trama tecida noite após noite por Sherazade, chamada "conto fantástico". Na Inglaterra, onde se
Penélope contista com milhares de pretendentes, desperdiçara a tradição realista iniciada por Chau-
levou muitos escritores - desde d. Juan Manuel, cer, houve muitos autores de fantasias cujo objeti-
Boccaccio e Chaucer - a tentar uma imitação em vo não era induzir o sonho, e sim o pesadelo.
que diversos talentos buscam emular o encanta- Lembro, entre outros, Arthur Machen, Saki e Ro-
mento árabe. Poucos o conseguiram, mas um es- ald Dahl.
critor nosso contemporâneo, Manuel Puig, em seu Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lúci-
O Beijo da Mulher Aranha, é uma Sherazade ar- das, Sheridan le Fanu foi um contista de mistério e
gentina que a cada noite conta um filme inventado terror cuja coleção In a Glass Darkly (em Dublin,
para seu companheiro de cela, seu vizir cruel: cidade alcoólica, tomam o espelho, "glass", como
completamente surdo às dádivas orais que lhe ofe- copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") é
rece Puigrazade - assim como é cego a suas inves- um dos clássicos do conto de terror como horror.
tidas sexuais. Sua contrapartida foi mais tarde o norte-americano
Edgar Allan Poe inventou com três contos - H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica,
"Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério de Ma- gênero praticamente inventado por H.G. Wells na
rie Roget" e "A Carta Roubada" -, ele sozinho, a Inglaterra. A ficção científica encontrou no conto
literatura policial, que são o conto e o romance de sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale
mistério. Todos os cultivadores do gênero recém- registrar que todos os mestres do conto de horror
criado foram seus epígonos, de Arthur Conan anglo-saxão têm, também eles, em Poe seu ante-
Doyle, criador do insólito Sherlock Holmes, a cessor primordial.
Dashiell Hammett e Raymond Chandler, roman- É preciso abrir aqui um parágrafo para
cistas que foram também contistas e, de passagem, Rudyard Kipling, talvez o maior contista inglês de
renovaram o gênero. Uma epígona (se alguém todos os tempos. Kipling não fica nada a dever a
disse "jóvenas", eu posso muito bem dizer "epígo- Poe ou a Mark Twain, e é para a Inglaterra o que
na"), Agatha Christie, disse: "O conto é o domínio Maupassant foi para a França e Tchecov para a
natural da literatura de crime e mistério". Rússia: um contista natural. Começou publicando
Muitos contistas, quase todos anglo-saxões, fi- em jornais indianos e, quando afinal foi a Londres,
zeram do conto seu habitat, que era como uma então o centro do universo literário, tinha apenas
casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de 20 anos (Kipling é quase nosso contemporâneo,
Poe, que disse que o conto "é uma narração curta morreu em 1936). Deixara para trás a Índia, embo-
em prosa" e definiu o conto breve como uma peça ra fosse justamente seu lado muçulmano, mais do
literária que "requer de meia hora a uma hora e que o hindu, o que mais lhe interessava no subcon-
meia ou duas de leitura". Eis aí um importante tinente.
modo de usar, "com cuidado". Mas há - ah! - leito- Kipling cultivou todas as modalidades do con-
res descuidados. Para estes, a melhor maneira de to, do monólogo à conversa, sendo alguns de seus
ler é no avião - e um best-seller ou livro que se contos feitos inteiramente de digressões, como
compra porque se vende. queria Sterne, mas também de invenções memorá-
Os herdeiros de Mark Twain são tão numero- veis. E muito antes que Conrad ou Somerset
sos quanto os seguidores de Poe, mas os primei- Maugham descobrissem o mundo exótico do Ori-
ros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram ente. Com a diferença de que, para Kipling, nasci-
apenas para o lado luminoso da lua de Twain -sem do em Bombaim, aquilo era a vida vivida e vívi-
enxergar suas regiões de sombra e de penumbra. O da.
mais bem-sucedido deles foi Damon Runyon, com A França não teve um Chaucer, mas teve um
suas historietas em que o submundo de Nova York mestre do conto no século 18, tardio, mas nada
lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma uma obra-prima dolorosa e um dos grandes contos
inteligência incomum. Refiro-me a Voltaire, cuja escritos em inglês, quase um romance, por seus
obra-prima, Cândido, não é um romance, e sim personagens inesquecíveis e sua extensão. "The
uma fábula com uma moral em cada página. Os Dead" não é um precursor do Ulisses, e sim uma
franceses tiveram de esperar todo o século 19 para peça acabada em si mesma, de uma prosa milagro-
que, afinal, surgisse um dos maiores contistas de samente extraordinária.
todos os tempos, Guy de Maupassant, assombroso Não se poderia deixar de falar de um dos escri-
autor de sucessivas obras-primas do gênero. tores mais originais do século 20, Franz Kafka,
Maupassant teve Gustave Flaubert como mestre e inventor da fábula com moral teológica, ou seja,
Émile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, metafísica. Sua influência se faz sentir em muitos
embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, ou
contos memoráveis, conseguiu superar o discípulo genuinamente gentílicos como Milan Kundera,
nascido para o conto. Sua influência foi enorme que o reclama para a literatura tcheca, embora
em toda parte e teve seguidores (se não verdadei- Kafka tenha escrito em alemão e pertença à cultura
ros plagiários) na Inglaterra, nos EUA e na Rús- talmúdica. Felizmente para nós, que não somos
sia. nem tchecos nem judeus nem alemães, Kafka pode
É na Rússia que Maupassant encontrará um ri- ser lido com verdadeiro deleite literário.
val extraordinário, Anton Tchecov, que começou Um epígono de Kafka, judeu como Kafka,
contando anedotas e piadas na imprensa e acabou apareceu não na Tchecoslováquia, mas na Polônia:
transpondo seus principais contos para o teatro, Bruno Schulz, contista. Seu "Lojas de Canela" é
com uma arte inesperada. Tchecov, que podia rei- de uma originalidade delicada: uma visão da vida
vindicar para si Nicolai Gogol (autor de "O Nariz" judia numa cidadezinha da Polônia que oscila en-
e "O Capote", entre outros contos), era um admi- tre a magia e um doce realismo. Schulz, não po-
rador de Tolstói, que escreveu contos como relató- demos esquecer, foi assassinado por um tenente da
rios de guerra e foi contemporâneo de outro mes- SS nazista, castigo tremendo apenas por estar pa-
tre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. rado numa esquina sem fazer nada. Ao contrário
Mas a influência maior no autor de "A Dama do de Kafka, nunca nem sequer sonhou seu final. É
Cachorrinho" e "A Cigarra" é, evidentemente, que o totalitarismo é sempre inimigo da literatura.
Maupassant. De Tchecov derivam Górki e todos
os contistas russos do início do século 20, que Hemingway e Tarantino
pareciam brotar da terra russa - até que chegou
Stálin e, com seu cultivo forçado do realismo soci- O conto americano do século 20 nada deve a
alista, transformou a fértil literatura russa num Maupassant, mas sim a Tchecov. Seu renascimen-
deserto com tratores. to lembra mais Twain do que Poe e começou, co-
Outro seguidor de Tchecov foi, na Inglaterra, mo ocorrera com Twain, com uma literatura regi-
Somerset Maugham, mestre do conto inglês e onal que pulava as fronteiras do Meio-Oeste para
mundial. Foi, ainda é, um autor com uma popula- chegar a Nova York e daí ao mundo. Seu pioneiro
ridade que se estendeu aos palcos e às telas: várias se chamava Sherwood Anderson, patrocinador de
obras-primas do cinema, como "A Carta" (do dire- William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway.
tor William Wyler, de 1940), se baseiam em seus Seu livro Winesburg, Ohio (conhecido na América
contos. Maugham, em seus contos exóticos, foi do Sul e em Cuba como Las Novelas de lo Grotes-
influenciado pelas narrações dos "mares do sul" de co, embora não sejam romances, e sim contos, e
Conrad e, por sua vez, teve influência sobre outros essa história de grotesco seja gratuita, mas não
contistas, evidente sobretudo nos contos urbanos deixa de ser um título com gancho) continha uma
de John Cheever e John Updike, típicos produtos nova visão do mundo adolescente num lugarejo de
da revista "The New Yorker". Ohio, e sua linguagem, coisa bem importante, era
Se James Joyce tivesse morrido logo depois de entre ingênua e sábia.
publicar Dublinenses, ainda assim seria considera- Faulkner, que graças a Anderson publicou seu
do um escritor notável e um grande contista. Tra- primeiro romance, é famoso como romancista, ou
duzir é reescrever. Traduzindo Dublinenses, tive a melhor, como um poeta falastrão, mas escreveu
oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de meia dúzia de contos memoráveis. Hemingway,
Joyce mas também seus magistrais contos origi- por sua vez, é mais contista do que romancista: um
nais e sombrios e sua escritura cômica. artista que renovou a prosa moderna americana
"The Dead" (que traduzi como "El Muerto") é com seus diálogos sofisticados para conversar com
primitivos, que são de uma mestria ainda atual. ele nasceu e morreu, no mais profundo e racista
Seu conto "Os Assassinos", em que apenas com o Sul. Ao contrário de Fitzgerald e Hemingway,
diálogo se oferece uma amostra do mal sob a for- Faulkner era um reacionário público e um liberal
ma de uma conversa aparentemente casual, revela privado. Dessas tensões são feitos não apenas seus
uma violência latente que nunca se faz patente. romances mas os muitos contos que ele escreveu.
Desse breve conto partiu a renovação do ro- Alguns de seus romances, como Palmeiras
mance policial com Hammett e Chandler, que es- Selvagens, cujo belo título acaba de ser surrupiado
creveram primeiro contos de mentira e de morte. e estropiado pelo diretor Oliver Stone, e Desça,
Um filme recente, "Pulp Fiction", de Quentin Ta- Moisés, são feitos de contos mais ou menos lon-
rantino, com seus diálogos recorrentes, interminá- gos, entre os quais algumas obras-primas como "O
veis e perigosos, não teria lugar se antes não tives- Urso". Outras de suas narrações breves, como "A
se existido "The Killers". Seu título mesmo, direto Rose for Emily" e "Barn Burning", constam de
e brutal, serviu ao cinema desde que este começou todas as antologias e integraram a seleção feita
a falar: diálogos ditos com o canto da boca, que é pelo próprio Faulkner em suas Selected Stories.
como se lêem, sem mexer os lábios, as conversas William Faulkner chegou a publicar um livro de
de Hemingway. contos detetivescos. Chama-se Knight's Gambit, e
Dos grandes escritores americanos dos anos seu fio condutor é uma atividade que ninguém
20, Scott Fitzgerald é o único que frequentou a associaria ao narrador de "Enquanto Agonizo" e
universidade, mas nunca chegou a se formar. To- "O Som e a Fúria": o xadrez.
dos, portanto, foram autodidatas. Alguns, como
John Steinbeck e William Faulkner, exerceram as Steinbeck e John Ford
mais variadas atividades, quase sempre manuais.
Ernest Hemingway se dedicou ao jornalismo -que Tão contraditório quanto Faulkner foi John
é quase um trabalho manual. O único instrumento Steinbeck: primeiro, comunista; depois, liberal e,
que se tem de aprender a utilizar é a máquina de mais tarde, um dos defensores mais ferrenhos do
escrever, e Hemingway sempre foi um mau dati- presidente Johnson e da Guerra de Vietnã. Além
lógrafo. Todos eles eram contistas respeitáveis, de seus grandes êxitos novelísticos, como Vinhas
mas, à exceção de Hemingway, o cultivo do ro- da Ira (conhecido na Espanha por um título menos
mance ocultou essa qualidade. bíblico e mais vitícola, Las Uvas del Rencor), que
O exemplo mais evidente é o de Fitzgerald. é, apesar da opinião de certos críticos americanos
Todos vocês já leram ou sabem que se deve ler O como Mary McCarthy, uma obra-prima populari-
Grande Gatsby, festejado pela crítica, favorecido zada em todo o mundo por John Ford, Steinbeck
pelo cinema em produções coloridas e em preto-e- escreveu e publicou muitos contos, e seu segundo
branco, com Alan Ladd, o perdedor nato, e com livro, Pastagens do Céu, é uma coleção de contos.
Robert Redford, numa versão chocha de Alan Seu conto "O Cavalinho Vermelho" é uma peque-
Ladd. Alguns conhecem seu conto "O Diamante na obra-prima, e seus contos longos, como "Ratos
do Tamanho do Ritz", mas poucos sabem que faz e Homens" e "A Pérola", são obras-primas desse
parte de seu livro Contos da Era do Jazz, e nin- gênero, a novela, que parece ter sido inventado
guém sabe nada de suas coletâneas All the Sad pelos escritores americanos, de Henry James, com
Young Men e Taps at Reveille. Depois de sua A Volta do Parafuso, a Hemingway, com O Velho
morte, foram publicados dois volumes de contos, e o Mar.
Afternoon of an Author e The Pat Hobby Stories, Mas vim aqui falar do conto. Toda intromissão
uma compilação surpreendentemente leve para um de outros gêneros deve ser considerada uma di-
tema dolorosamente autobiográfico: as aventuras e gressão. E a digressão nunca deve ser considerada
desventuras de um escritor de aluguel em Hol- uma agressão. Como diz Laurence Sterne, é o sol
lywood, onde o autor morreu. que brilha sobre a conversa. Também, diriam vo-
Faulkner, como Fitzgerald, também foi alcoó- cês, sobre meu monólogo. Outro escritor contem-
latra e, como Fitzgerald, também foi a Hollywood porâneo desses autores artistas foi um jornalista
e serviu como tarefeiro de ouro (ou dourado), es- que era um contista nato: o risonho e frágil Ring
pecialmente para o diretor Howard Hawks. Mais Lardner, que influenciou todos os mestres do hu-
esperto ou mais duro de domar, Faulkner ia a Hol- mor americano que o sucederam. Lardner, embar-
lywood, mas, assim que recebia seu dinheiro, vol- cado numa missão impossível - criar o conto de
tava correndo para Oxford. Não a universidade humor absurdo -, se autodestruiu com o álcool.
inglesa, mas o pobre povoado do Mississippi onde Outro escritor agora esquecido, Erskine Cal-
dwell, que já foi considerado o melhor contista do conto espanhol que percorrerá o mundo em palcos
Sul selvagem, sabia mesclar o drama rural com e cinemas foi escrito por um francês. Estou falan-
uma sexualidade que, na época, era franca e atre- do de Carmen, cujo autor, Prosper Mérimée, situ-
vida, mas divertida. Agora, perto do que se vê no ou a ação na Andaluzia, mas o escreveu em Paris.
cinema, seus contos parecem se passar num con- Assim como ocorreu nos EUA com o conto
vento de freiras que fumam. escrito em inglês, o conto escrito em espanhol será
Lardner, contudo, teve colegas de mérito, co- escrito na América. Um crítico peruano chamou a
mo James Thurber, Robert Benchley e Dorothy América (referia-se antes à América hispânica) de
Parker, que apostavam tudo no humor. "romance sem romancistas". Estava enganado, é
Ao mesmo tempo, outros de seus colegas da claro, mas não teria errado se tivesse chamado as
revista "New Yorker" fiavam, mas não confiavam Américas de continente que contém contos. Pelo
no esquivo amor - que muitas vezes se escrevia menos, se o título não é exato, ele poderia ter tira-
ódio; outras, tédio. Talvez o maior mestre entre do algum proveito de minha aliteração.
eles tenha sido John O'Hara, que fez dos diálogos Thomas Colchie, tradutor norte-americano,
aprendidos de Hemingway uma espécie de sábia conseguiu organizar uma antologia intitulada A
sarabanda em que tudo se fiava à conversa, para Hammock Beneath the Mangoes (Uma Rede sob
revelar, mas muitas vezes ocultar, os conversantes, as Mangueiras ou sob as mangas), o que mais
conversos de uma religião atéia. parece a descrição do sutiã de, digamos, Sarita
Desde então não houve nenhum contista ame- Montiel.
ricano tão influente e tão lido - se excluirmos Mas é uma excelente coletânea de contos bre-
Raymond Carver. Ambos, O'Hara e Carver, são, à ves sul-americanos. Não poderia, no entanto, ter
sua maneira, epígonos de Hemingway. Há outro feito uma antologia similar de contos espanhóis
grande contista contemporâneo que não vem da chamada, digamos, Os Dotes de Rocío Jurado.
tradição americana, que não é americano, mas cria Por quê? Simplesmente porque haveria peitos
sua própria tradição na América, embora sua arte a conter, mas não contos a contar. Toda regra tem
singular não tenha seguidores. Além de seus gran- uma exceção lutando por vir à tona, e deve-se di-
des romances, escreveu contos perfeitos que, curi- zer que uma recente coletânea de contos de Javier
osamente, foram quase todos publicados pela pri- Marías, Cuando Fui Mortal, que contém contos
meira vez na revista "New Yorker". Seu nome, não imorais, mas sim imortais, poderia continuar a
claro, é Vladimir Nabokov. Acabaram de sair seus tradição inaugurada por d. Juan Manuel, que foi
contos completos, e entre eles há pelo menos meia neto e sobrinho de reis, adiantado do reino de
dúzia de obras-primas do gênero. Múrcia quando Múrcia era um reino. Mas não é o
Se Os Contos de Canterbury não tiveram con- escritor da nobreza o que nos interessa, e sim a
tinuadores (a não ser, é claro, no uso do inglês: nobreza do escritor - e sobretudo sua popularida-
Chaucer tem na literatura inglesa o mesmo papel de: em poucos meses, Marías vendeu perto de 50
crucial que Dante na italiana), é talvez porque os mil exemplares de seu livro de contos. Mas eu não
ingleses do século 16 e 17 não sabiam ler, embora vim aqui para fazer o elogio de Marías, e sim do
soubessem, sim, ouvir e apreciar a música das pa- conto americano ou hispano-americano, muito
lavras, que vinha de poetas dramáticos como Mar- embora três dos maiores contistas cubanos (Her-
lowe e Shakespeare e Ben Jonson. Todos, sobretu- nández Catá, Carlos Montenegro e Lino Novás
do Jonson e Shakespeare, grandes contistas. Algo Calvo) tenham nascido na Espanha: em Castela e
parecido ocorreu na Espanha, onde se preferiu o na Galícia, respectivamente. Lino Novás, outra
romance picaresco e a comédia ao conto. surpresa, foi o verdadeiro criador dessa coisa curi-
osa chamada realismo mágico. Aparece pela pri-
O conto espanhol da América meira vez num conto dele, "Aquella Noche Salie-
ron los Muertos", muito antes que Alejo Carpenti-
Cervantes, ninguém duvida disso, é um grande er formulasse sua teoria estética (tomada empres-
contista, tanto em suas Novelas Exemplares como tada de um surrealista francês) do "real maravilho-
em seus entremezes e em muitos dos contos que so".
retardam com passos certos os incertos passos do Horacio Quiroga é o primeiro contista qua
cavaleiro, ginete louco, e seu demasiadamente contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque
sensato escudeiro que segue a seu lado num burro. lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um
Todos sabemos que os séculos 18 e 19 fizeram da chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco
Espanha uma terra baldia literária e que o grande perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num aci-
dente de caça (caçava patos na fronteira do Uru- americano do século 19, que é também um contis-
guai com a Argentina: os dois países reivindicam ta extraordinário: sempre original, sempre na van-
sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco guarda de um homem só. Leiam, como aperitivo
depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas para o festim de um Trimalcião literário, seu conto
perder um padrasto me parece um descuido. "O Alienista".
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de O uruguaio Felisberto Hernández era o oposto
morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga ma- físico do cubano Virgilio Piñera. Não gostava de
tou seu melhor amigo, no que os juízes qualifica- homens magros, como Virgilio, mas de mulheres,
ram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito muitas, gordas e caras: casou-se quatro vezes. Ao
depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mu- contrário de Virgilio, que nunca foi musical, Fe-
lher a passá-la na mais densa selva brasileira), lisberto (podemos chamá-lo Felisberto: ninguém
quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se sui- se chama assim) era um músico profissional, que,
cidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro,
como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. mas não de palco, e sim no fosso, e não para
Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um acompanhar sopranos, mas fazendo música de
pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio. fundo para filmes mudos.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque Suas vidas opostas tiveram um final parecido,
parece uma violenta telenovela e é mais interes- mas diferente. Virgilio morreu reconhecido como
sante que sua ficção - que não é menos violenta. pederasta passivo, com passagens pela prisão,
Um de seus livros de contos se chama A Galinha condenado por invertido. Sua morte foi chorada
Degolada. No conto que dá título e tom ao volu- por poetas pederastas, mas seu cadáver desapare-
me, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma ceu do velório: as autoridades estavam convenci-
linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem - ou das de que seu corpo presente recriaria o ausente
melhor, observam - a madre degolar uma galinha com fins políticos. Felisberto morreu de leucemia
para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe muito mais jovem que Virgilio, mas seu corpo
da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha. inchou tanto que foi preciso procurar às pressas
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescên- um caixão adequado, uma coisa tão enorme que
cia e acreditei em todos. Eu era, como vocês já não pôde ser tirada pela porta da funerária e saiu
devem ter deduzido, mentalmente são, mas im- para a eternidade por uma janela.
pressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem Há um provérbio latino que propõe que se
com a expulsão deste encontro, eu não os leria chega ao final da vida conforme se viveu. Os res-
nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido tam- pectivos finais de Virgilio Piñera e Felisberto Her-
bém que Horacio Quiroga era dependente não só nández foram, se não vidas, mortes paralelas.
de morfina mas da literatura de Poe. Acho que não por acaso a editora americana que
Outro escritor de contos nascido na Argentina, publicou os Contos Frios de Piñera agora publique
mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy os contos completos de Hernández. Mas vale notar
Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis e anotar uma diferença notável: Felisberto estava
Borges só porque eram amigos e colaboravam em meio louco, Virgilio, ao contrário, sempre teve a
empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, cabeça bem assentada na guilhotina. Precisava
Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois apenas de uma revolução, e a teve.
da morte de Borges e foi cada vez mais individual Juan Rulfo chamou Guimarães Rosa de "o
e distinto, não apenas no porte mas na escritura. maior autor surgido nas Américas neste século".
Bioy escreveu a mais comovente história de amor Não se deve exagerar, mas Guimarães Rosa, que
da literatura em espanhol do século 20. Chama-se escreveu o melhor romance do chamado "realismo
A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem mágico", é um grande escritor. Para deleite de
de romance, é uma novela ou conto longo e, para vocês (já que sua obra-prima, Grande Sertão: Ve-
mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho redas é longa, complexa e metafísica), ele tem um
francês "cherchez la femme". volume de contos, mais zen do que sensacionais,
Agora uma breve interpolação para falar, bre- intitulado Primeiras Estórias, que em espanhol
vemente, embora ele mereça ensaios e tratados, ganhou o sugestivo título de um de seus textos, "A
desse grande autor: um americano que não escreve Terceira Margem do Rio". Há outros compatriotas
em espanhol e que não segue a tradição de sua de Machado de Assis que vale a pena citar, ainda
língua, porque está criando as duas. Refiro-me a que rapidamente. Murilo Rubião, com seu conto
Machado de Assis, o único grande romancista sul- "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", que é "sui
generis", como são os contos de João Ubaldo Ri- dos, devem ser considerados romancistas antes de
beiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da mais nada ou depois de tudo.
Matança do Porco" e o elusivo e alusivo Rubem Chegamos aqui à grande literatura não apenas
Fonseca, que com seu “Corações Solitários" criou regional ou continental mas mundial, universal
um escândalo internacional ao ser proibido pelas até. Agora vem, e com tudo, Jorge Luis Borges.
autoridades de seu país. Não houve no idioma um escritor maior desde que
O escândalo chegou aos ouvidos do presidente Calderón de la Barca morreu em Madrid em 1681.
Carter, mais conhecido como "el manisero", não Toda pessoa que tenha lido um único conto de
por causa da saborosa rumba havanesa, mas por Borges (e felizmente Borges só escreveu contos e
ter enriquecido cultivando amendoim. Há outra ensaios à maneira de contos) percebe que está di-
rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de ante de um escritor excepcional. Foi Borges quem
Maní" cujo título me leva a explicar aqui meu inte- disse de Quevedo que não era um escritor, mas
resse e até meu afeto pelos cariocas do conto. Não uma literatura. Com maior justiça se pode dizer o
há outro país na América que se pareça tanto com mesmo de Borges. Ele sozinho, em sua remota
a minúscula Cuba como o gigantesco Brasil: am- Buenos Aires, que depois dele sempre está perto,
bos têm sua musicalidade na música e na língua, aqui ao lado, virando a página, Borges sozinho fez
ambos são uma mistura de brancos ibéricos e ne- do conto toda uma literatura e até mais, uma teoria
gros africanos, ambos criaram uma nova religião, literária. Não preciso citar nenhum título, pois
que no Brasil se chama macumba e, em Cuba, vocês conhecem todos. Mas são contos não para
"santeria". ler, e sim para reler, recordar, memorizar e sempre
Todos acreditamos que o ritmo não está só na nos assombrar. Não só com sua cultura e seu hu-
música mas na fala, nos movimentos do corpo e mor, mas também com sua arte narrativa. O opor-
nesse balanço que em Havana se chama "el cami- tunismo político o privou do Prêmio Nobel que ele
nao". Este meu ensaio, por exemplo, foi escrito tanto almejou. Pior para o prêmio: não mereceu
como falam em Havana os "hablaneros". Borges. Mas todos os seus leitores, todos os dias,
Penso, ou sinto, não serem muito bons os con- lhe oferecemos o prazeroso desagravo da leitura,
tos de Rulfo, que me parecem parcos, mas primiti- pois ele é, argentino nobre que era, nosso prêmio.
vos. Em compensação, acredito que Pedro Páramo Não me escapa e, claro, não escapará a vocês,
é um grande romance em poucas palavras e o me- que fui parco em nomes e largo em adjetivos. Não
lhor romance mexicano já escrito - neste e em ou- era meu propósito compor aqui um guia de auto-
tros séculos. O contrário acontece com o defunto res, mas oferecer um panorama do conto mais ge-
Julio Cortázar: seus romances são para mim enfa- ográfico do que histórico. Depois de passear - co-
donhos exercícios de uma vanguarda que o tempo mo queria Anatole France que fosse a visão, não a
mandou para a retaguarda. missão, do crítico - por entre obras-primas, posso
Mas seus contos, sobretudo os contos de famí- chegar a uma conclusão, se é que chego. Talvez o
lia, são extraordinários, e um ou dois - por exem- conto requeira mais arte que verdade. Isto é, uma
plo, "O Perseguidor"; por exemplo, "A Auto- quantidade maior de ficção.
Estrada do Sul"- são admiráveis. O mesmo acon- Anatole France, aliás, deu uma aula sobre
tece com Alejo Carpentier, cujos últimos roman- memória histórica em seu magistral conto "O Pro-
ces são lamentáveis quando comparados aos ro- curador da Judéia". Em Roma, Pôncio Pilatos, que
mances que escreveu na Venezuela: O Reino deste fora procurador da Judéia, vai a uma festa romana,
Mundo, Os Passos Perdidos, O Cerco. Mas seu que vocês podem chamar orgia, e seu anfitrião lhe
conto "Viagem à Semente" é uma obra-prima do pergunta por "um judeu desordeiro" chamado Je-
gênero. sus. Pilatos, uma taça de vinho na mão, a toga im-
Também o é seu conto longo "Concerto Barro- pecável, o penteado à César, pensa por um mo-
co" - se esquecermos seu final, que eu não quero mento e diz: "Jesus? Não conheci ninguém com
esquecer. Também Gabriel García Márquez, Car- esse nome".
los Fuentes e Mario Vargas Llosa escreveram e Por favor, não me perguntem pelos autores que
publicaram contos. Mas, apreciados ou despreza- esqueci.

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