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“Venha ver o pôr do sol”: uma mulher entre a transgressão e a obediência (2010, p.

(2010, p. 67): “Na sua temática, uma das informações mais presente é o jogo
O leitor frequente dos contos de Lygia Fagundes Telles provavelmente já alternativo entre o amor e a morte”. Assim, temos, em “Venha Ver o Pôr do Sol”,
se deu conta da tendência que a escritora tem para a construção de narrativas a formação de um enredo que se desenvolve entre os percalços envolvidos em
envolvidas por uma atmosfera de mistério, em que tem lugar o aspecto sombrio, uma relação amorosa e a constância de signos que nos reportam à ideia de
lúgubre e obscuro de coisas, ambientes e acontecimentos. Essa constatação morte.
ganha força quando nos detemos nas considerações tecidas pelo crítico Fábio De forma sucinta, podemos dizer que a intriga se constitui em um relato
Lucas a respeito da obra da ficcionista, apontando como uma de suas do último encontro de um casal de ex-namorados, uma espécie de rompimento
características “o gosto da magia e do fantástico, algo do Romantismo, da novela definitivo do elo que existia entre os dois, o que é comum nos relacionamentos
gótica, da história de terror” (LUCAS, 1990, p. 62). Essa afinidade com as tramas amorosos. Porém, a leitura do conto nos mostra que o estado de coisas revelado
ligadas ao campo do horrendo é fruto de uma vocação manifestada ainda na pelo texto é bem mais complexo. De início, apresenta-se o encontro dos dois,
infância: Ricardo e Raquel, no local marcado: um cemitério abandonado. O lugar é
conhecido somente por ele, que, depois de muito insistir, conseguira convencer a
Pois bem: eu comecei contando para as outras crianças as histórias que moça a lhe “dar um fim de tarde” ao seu lado. A partir daí, sob o pretexto de que
ouvia das pajens. Mas sempre mudava um pouco o que tinha escutado e, lhe mostrará “o pôr do sol mais lindo do mundo”, o rapaz tenta persuadir Raquel
quando repetia, mudava de novo. A garotada protestava: “Não era
assim! A caveira tinha outro nome!” (caveira porque eu contava sempre a entrar no cemitério, e ela acaba cedendo. Eles iniciam uma caminhada “pela
histórias de terror). Quando eu finalmente aprendi a escrever, achei que longa alameda banhada de sol”, e o passeio é marcado, obviamente, pela
era importante “guardar” as histórias e aí passei a anotar tudo num presença de vários elementos que lembram a morte, além das frustradas
caderno (CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 1998, p. 28). tentativas da moça para convencê-lo de que devem ir embora. Finalmente, o
casal chega ao local de onde veriam o pôr do sol: o jazigo da família de Ricardo.
A capacidade inventiva da escritora, desenvolvida desde a mais tenra
Segundo ele, lá estavam sepultados seu pai, sua mãe e a priminha Maria Emília,
idade, aperfeiçoou-se ainda mais com a leitura de textos marcados por essa veia
cujos olhos, ele faz questão de frisar diversas vezes, eram iguais aos de Raquel. É
mórbida, conforme ela mesma declara em entrevista: “Eu li muito os nossos
esse o argumento utilizado pelo rapaz para atrair a moça e fazê-la descer até a
românticos ― Fagundes Varela, Álvares de Azevedo. Aquela fixação por
catacumba de sua família. Por causa de sua curiosidade em ver a foto da prima
cemitérios, taças feitas de crânio, tavernas, embriaguez, a vontade de sair do
com quem o ex-namorado tivera um romance de infância, ela acaba ficando presa
cotidiano” (CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 1998, p. 31). É com esse
no jazigo. Logo, só no final do conto, conhecemos a real intenção de Ricardo ao
anseio por se afastar da vulgaridade do dia a dia, que a Autora acaba indo além
propor um último encontro a sua amada: executar um plano que teria como
do gosto pelo gótico e nos faz mergulhar em narrativas que parecem tratar de
resultado a morte de Raquel.
assuntos triviais, mas, na realidade, revelam-nos os conflitos mais íntimos do ser
O desfecho da história é, com efeito, o que nos faz compreender todo o
humano sob uma aura de mistério. Essa perspectiva da ficção lygiana nos remete
desenrolar da trama. Antes de conhecer o final, inesperado, o leitor segue o
constante em seus textos, citada no seguinte fragmento de um depoimento da
enredo sem se dar conta do que o espera, concebendo o texto, simplesmente,
ficcionista: “Um perguntador me olha agora com desconfiança, quer saber por
como a descrição de um encontro em que conversam ex-namorados. No entanto,
que falo tanto na morte. Não sou inocente (o escritor não é inocente) e começo a
podemos dizer que Lygia Fagundes Telles aplica bem à sua escrita o que sugere
dourar a pílula substituindo a perda, enveredo para o mistério” (TELLES, 1997, p.
um de seus escritores “almas gêmeas”, o contista Edgar Allan Poe, a respeito da
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importância do remate do conto ― dénouement ―, para que este provoque a
A morte ocupa lugar privilegiado dentro do conto que vamos analisar. No
impressão pretendida pelo autor:
entanto, não é a única a habitar essa narrativa de mistério que, como já se é de
esperar, coloca o leitor diante de circunstâncias marcadas pelo antagonismo, as [...] todo enredo, digno desse nome, deve ser elaborado para o
quais provocam uma série de questionamentos. Integra a trama também outro desfecho, antes de se tentar qualquer coisa com a caneta. É somente
tópico recorrente na obra da escritora, como nos indica, novamente, Fábio Lucas com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um
enredo seu indispensável ar de consequência, ou causalidade, fazendo feminicídio, que designa “o assassinato de mulheres por razões associadas às
com que os incidentes e, principalmente, em todos os pontos, o tom relações de gênero” (FROTA & SANTOS, 2012, p. 48). O termo surgiu em 1976, no
tendam ao desenvolvimento da intenção [...]” (POE, 1846 apud GOTLIB,
2006, p. 36-37). âmbito do Tribunal Internacional de Crimes contra a Mulher, mas seu emprego só
É exatamente esse “ter em vista o desfecho” que permite a constituição se consolidou nos anos noventa, como forma de expressar a causalidade de
do texto como uma narrativa de mistério, já que, apesar de os indícios de uma episódios violentos que incidiam sobre os índices de mortalidade feminina. É
morte iminente estarem espalhados por toda a superfície textual, eles aparecem nesse período, mais especificamente, no ano de 1992, que o termo é aplicado,
de forma encoberta, apenas como manifestação do estilo gótico, indicado já pelo pela primeira vez, por Diana Russell e Jill Radford, constando em seu livro The
espaço em que se desenvolve a intriga. Além do cemitério abandonado, que se Politics of Woman Killing (FROTA & SANTOS, 2012, p. 48). Saindo da teoria para a
define como lugar ideal para a execução do plano de Ricardo, outros sinais vêm realidade apresentada pelos números, destacamos que pesquisas como a da
confirmar o destino que estava guardado para Raquel. A começar pelo título do professora Lia Zanotta Machado (2006, p. 15) mostram que os assassinatos com
conto, observamos que o convite feito pelo rapaz à moça está carregado de vítimas femininas são, em sua grande maioria, praticados por “esposos,
simbolismo: o pôr do sol remete-nos ao fim do dia e, por analogia, ao fim da vida, companheiros, amantes, namorados, noivos, ex-esposos, ex-companheiros, ex-
lembrando-nos da morte, marcada pela escuridão assim como a noite. A forma amantes e ex-namorados”, o que nos indica que o homicídio de mulheres
como ele se dirige à sua amada é outro elemento que aponta para o desfecho. geralmente está relacionado à dessimetria entre os gêneros e coloca o crime
Por diversas vezes, ele a chama de “meu anjo”, o que podemos relacionar ao apresentado pelo texto literário dentro das discussões levantadas pelo
“anjinho de cabeça decepada” que surge na alameda do cemitério e, também, à feminicídio.
concepção que temos dessa criatura divina, que habita uma outra dimensão.
Temos, ainda, o momento em que a própria jovem parece sentir o aviso da Disponível em:
morte: “Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. ― http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/13200/1/2015_dis_mssmartins.pd
Esfriou, não? Vamos embora” (TELLES, 1981, p. 208). Nesse trecho, tanto o frio, f
sensação térmica de um corpo sem vida, quanto o som emitido pelo pássaro são
índices típicos da presença da morte. Dessa forma, à maneira do conto
tradicional, “a ação e o conflito passam pelo desenvolvimento até o desfecho,
com crise e resolução final” (GOTLIB, 2006, p. 29). O conflito vai sendo tecido nas
entrelinhas do texto, e o leitor, inocentemente ou não, é conduzido, assim como
Raquel, até o ponto alto da narrativa. Essa abordagem que se concentra sobre as
pistas de um desenlace surpreendente nos leva à perspectiva central que
tomaremos para a análise do conto. Certos de que o epílogo da história traz à
tona toda uma gama de sentidos que se encontravam encobertos, consideramos
também que a cena do assassinato de Raquel, visto que ela praticamente foi
enterrada viva, lança luz sobre elementos do texto que manifestam a construção
de um discurso no qual estão envolvidas relações de poder entre o masculino e o
feminino.
Assim, por meio de um movimento regressivo, pretendemos identificar
as marcas textuais que revelam as causas do referido feminicídio e em que
sentido elas atestam uma situação de dominação. Partindo do ato em si que
provocou a morte da coprotagonista, utilizamos um conceito já bastante
difundido entre os estudos de violência contra a mulher: a ideia de feminicídio ou

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