Você está na página 1de 2

Uma ponte entre dois reinos

No dia em que a menina nasceu, a mãe mandou afiar a tesoura.


— Cabelo comprido dá muito trabalho— disse.
E na primeira noite de lua nova, um a um, cortou-lhe todos os cachos.
A partir de então, sempre que a noite trancava a lua em sua boca escura, a mãe
tosquiava o tanto que havia crescido. Nem adiantava o choro da menina pedindo tranças.
— É para dar força — resmungava a mãe entre fechar de lâminas.
Passados os anos, porém, percebeu que cada vez mais difícil se fazia sua tarefa.
Cega a tesoura, lutava duramente para podar a brotação das mechas. Comprou tesoura
maior, mais resistente. Que logo perdeu o corte e a resistência. Em vão tentou faca, facão,
machado. Nada mais parecia capaz de cortar aqueles fios brilhantes como aço.
E noite chegou em que, negro o Céu, os cabelos da moça puderam enfim crescer
livremente. E crescer. E crescer. Batendo nos ombros. Descendo pelas costas. Passando
pela cintura, Tocando o chão. E no chão se arrastando como manto.
Só ela podia tirar fios de seus cabelos. Escolhia um bem bonito, com os dedos
seguia seu caminho até a raiz. E delicadamente o colhia, como a uma flor. Mas a cada fio
colhido emanava da cabeça uma gota de sangue, vermelho brilhante que ia rolando pelos
cabelos, enrijecendo-se em transparências, até chegar no chão, precioso rubi.
Vendo a riqueza cair a seus pés, a velha não se cansava de pedir fios e mais fios.
Chorosa, falava que a roupa lavada fugia ao vento, sujava-se sem ter onde Secar. E
a filha, compreensiva, escolhia o mais forte dos fios, para estendê-lo em varal, prendendo
as brancas asas dos lençóis.
Lamentosa, reclamava da velhice: tão surda estava que já não ouvia o canto da
cotovia ao amanhecer. Talvez, se a tivesse mais perto... E a filha, compassiva, extraía o
mais flexível dos fios para trançá-lo em viveiro e aprisionar o pássaro da manhã.
Queixosa, afirmava que, sem ter onde crescer, a glicínia, na certa, morreria. E a filha,
concessiva, extraía o mais comprido dos fios , e com ele armava a pérgula em que a glicínia
deitaria suas flores.
Fio após fio, rolavam os rubis, que a velha rapidamente escondia em seus bolsos.
Fio após fio, espalhava-se a fama daqueles cabelos, que pessoas vinham de longe para
admirar. Fio após fio, a fala da moça única acabou chegando ao palácio, onde o rei, há
muito desejoso de estender uma ponte até o reino vizinho, pediu que a trouxessem até ele.
—Pode ir — disse a mãe à filha quando os mensageiros reais chegaram à sua casa,— mas
não tire um único fio longe de mim.
E estando afinal a moça parada diante do trono, extasiou-se a corte com a cachoeira
de cabelos que ondulava ao menor movimento, escorrendo atrás dela pelas salas.
Extasiou-se ainda mais o rei, logo pedindo alguns fios para unir os dois penhascos sobre o
rio.
— Amanhã vos darei— respondeu ela numa mesura.
De volta ao seu quarto, colheu sem hesitar o primeiro fio, que emendou no segundo,
que no terceiro emendou. E pela porta foi empurrando aquele cabelo mais que corda,
aquele fio mais que cabo, serpente atravessando a soleira, seguindo pela rua, cruzando a
praça, passando por fontes e jardins, até chegar ao portão do palácio.

[...] E naquele mesmo dia tiveram início os trabalhos da ponte. Nos bolsos da velha,
mais três rubis haviam ido se juntar ao tesouro já acumulado. Passado algum tempo, e
estando pronta a ponte, novamente o rei mandou chamar a jovem. lriam até o penhasco,
atravessar pela primeira vez para o outro reino.
— Pode ir — disse a mãe quando os mensageiros reais chegaram à sua casa —,
mas só se for atrás de mim.
E empavonada saiu rumo ao palácio, seguida pela filha.
Em festa reuniu-se a corte. Que rodeada pelo povo, entre cantos e danças, chegou
finalmente ao penhasco, e de lá, agitando braços e estandartes, saudou a corte vizinha do
outro lado.
Já o rei avançava para dar os "primeiros passos sobre a ponte, quando a velha se
adiantou roubando-lhe o caminho.
— Serei eu a primeira, mãe dessa filha tão preciosa!
E sem esperar, seguiu sobre o vazio.
Mas seus passos são duros para a ponte tão delgada que balança ao vento, e
pesam demais os rubis amontoados nos bolsos. Súbito, o pé resvala, pende o corpo, a mão
sem força não encarava apoio, e, perdida toda a altivez, a velha despenca em direção ao
rio, enquanto no escuro da roupa as pedras de sangue tilintam umas contra as outras.
Debruça-se acorde na beira do penhasco. Debruça-se a curte vizinha que espera do
outro lado. Lá embaixo nada aparece.
Então o rei oferece sua mão e apoiando-se nela de leve a moça avança pela ponte, unindo
os dois reinos, sobre aplausos das cortes.

Colasanti, Marina. Doze Reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo, Global, 2006
p.66-72.

Você também pode gostar