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A experiêncianarrativa
Para quê um blá-blá-bláinterminável/
se os fatos são a nossamelhorficção.
WHAuden

Não é mais aqueleque tem a bombo maior que


levará aos conflitos de amanhã, mas sim
aqueleque apresentaro melhorhistória.
F Pisam·

Trata-se agora de afirmar a especificidade do discurso in-


formativo, distinguindo-o da ficção literária, mas sem
deixar de evidenciar o seu relacionamento tenso com a li-
teratura. O discurso como prática social de linguagem é
uma categoria importante para essa demonstração, assim
como os usos que a retórica jornalística faz da narrativa.
O campo fabulativo do feature e do fait-divers.
(pressão de tempo e espaço), diz não existir uma diferença técnica entre
os dois elementos, a não ser em "espécie e intensidade". O que acontece,
sustenta, "é que o plano do jornalismo é o de uma literatura para imedia-
to consumo - donde, muitas vezes, o seu caráter efêmero-, uma literatu-
Procurando simplificar ao máximo o cipoal terminológico que envol-
ra dotada de uma certa funcionalidade, onde a esquematização é, sob
ve a temática do discurso e da narratividade, podemos começar reiteran-
muitos aspectos, necessária" 3•
do que a notícia - considerada como uma construção textual paradigmáti-
ca da informação jornalística - é um gênero sociodiscursivo 1• Isto implica A atividade literária, como bem se sabe, sempre esteve ligada à práti-
dizer que o seu sentido depende diretamente de uma situação comunica- ca do jornalismo. No Brasil, isto sempre foi muito evidente, especialmen-
tiva inserida na experiência cotidiana, comum a um grupo de sujeitos lin- te a partir do Segundo Reinado, como frisa Pernambucano de Mello:
guísticos. Se ela apresenta marcas verbais que a levem a ser reconhecida "Mas ninguém dissesse então poder viver para as letras sem o concurso da
pela comunidade de leitores como um gênero ou como uma estratégia tex- , ocupação jornalística. Não seria verdadeiro. Os jornais faziam o nome
tual do jornalismo, não tem, entretanto, a mesma estabilidade formal do dos que pretendessem vender livros. E eram espaços riquíssimos de con-
que tradicionalmente se convencionou chamar de gênero literário, isto é, vivência. De comunhões. De solidariedades. Da formação de discípulos e
um fechamento em torno de elementos combinatórios e estruturais do até de escolas. A redação já não abrigava o panfletário do período regen-
texto, que ajudam a classificar hierarquicamente os temas. cial. Pacificara-se com o próprio Império, ao ritmo de uma pachorra imu-
ne aos ódios de facção, amiga, isto sim, do artigo doutrinário, a serviço da
Hoje é praticall\ente consensual entre os analistas da literatura que a
difusão de ideias, tônica do tempo" 4•
"ortodoxia dos gêneros" é algo a ser abandonado, uma vez que não mais
se sustenta - principalmente após a escrita literária de transição entre os Mas, assim como Amoroso Lima, Olinto não está fazendo referência
séculos XIX e XX e, atualmente, em meio à intersecção das modalidades à publicação de textos literários no jornal - logo, à possibilidade de que a
textuais - a classificação rígida das formas. Mas é igualmente consensual literatura aconteça no espaço topográfico do jornal, o que é certamente
o reconhecimento de uma fronteira entre jornalismo e ficção literária. viável ou possível - mas à própria possibilidade de configuração do fenô-
meno literário no discurso informativo ou em "gêneros" reconhecida-
Considerar o jornalismo como gênero literário era, porém, a posição
mente jornalísticos, como a notícia, a reportagem, a entrevista, etc. As
do crítico Amoroso Lima, para quem essa prática textual estaria inserida
avaliações desta natureza procedem de uma prática corrente no Brasil até
na literatura como "prosa de apreciação de acontecimentos", ao lado da
mais ou menos o fim da primeira metade do século passado em que, por
crítica ( apreciação de obras) e da biografia ( apreciação de pessoas). O
um lado, o jornalismo popular misturava, sem grandes medidas, informa-
critério da "realidade" não seria suficiente para demarcar o jornalismo da
ção e ficção, com os olhos sempre voltados para o extraordinário ou o sen-
ficção, uma vez que a ficção "não é o mundo da irrealidade, mas dos sím-
sacional; por outro, a imprensa mais elitista, empenhada em doutrinar ou
bolos, da estilização da realidade" 2• Posição análoga é assumida por Olin-
criticar o Estado e as próprias classes dirigentes, lançava mão de fórmulas
to que, mesmo ressalvando ser o jornalismo "literatura sob pressão"
nem sempre muito objetivas e frequentemente literarizadas. Esse jorna-

1. ABRIL, <l. Teoría !{eneral de la lnformación. [s.l.]: Cátedra, 1997, p. 239/246. 3. OLINTO, A Jornalismo e literatura. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, p. 19.
2.1.1MA, A.A. ()foma/ismo rnmo !{hlC'roliterário. Süo Paulo: Edusp, 1990. 4. DE MEU.O, F:P. A !{Uerratotal de Canudos. fs.l.]: A Girafa, 2007, p. 42.
lismo, genericamente conhecido como "literário", foi posto cm segundo blemas para a credibilidade pública dos enunciados e, em consequência,
plano pela profissionalização da atividade, que se encaminhou na direção relança a velha questão da especificidade jornalística.
do modelo norte-americano de texto normatizado, mais organizado e Seja como for, a questão tem alta relevância no âmbito da teoria danar-
conciso, sem adjetivações 5• rativa. E em princípio, o conceito de discurso oferece elementos para uma
O pensamento que identifica jornalismo e arte literária não é certra- demarcação preliminar e provisória entre as duas modalidades de escrita.
mente exclusivo do Brasil ou de países sul-americanos. Antes dos autores Preliminarmente, deve-se levar em conta que a prática jornalística compor-
citados, ingleses de grande repercussão no campo das letras, como T.S. 1
ta tipos diferentes de discursos e de gêneros, embora, quando se faça um
Elliot e Bernard Shaw partilhavam da mesma opinião, embora contrari- uso genérico da palavra "jornalismo", a referência implicada é o discurso
ando James Joyce, que sempre arguiu a irredutibilidade do literário. Nos informativo, isto é, aquele voltado para a construção e comunicação de
Estados Unidos - nação originariamente construída por publicistas e, acontecimentos, relativos a um estado de coisas no ordenamento social.
posteriormente, centro irradiador de técnicas modemizadoras do texto Ele pode coexistir no espaço do jornal com outras formações (didática, po-
de jornal - encontram-se posições semelhantes, a exemplo do escritor lítica, publicitária, literária), mas guarda a sua especificidade.
norte-americano Truman Capote, um dos grandes nomes da corrente de- Discurso, para linguistas e semiólogos 6, desde meados do século pas-
nominada New Joumalism. A seu modo de ver, "o jornalismo é a mais su- sado, é um objeto de conhecimento da produção de bens culturais ( des-
bestimada, a menos explorada das formas literárias". Era um parecer de textos verbais e escritos até gestos e imagens) e se refere ao que, na
também contrariado por William Faulkner, um dos maiores escritores língua, é histórico e socialmente prático. Não se confunde com texto,
norte-americanos de todos os tempos. portanto, uma vez que este se configura no âmbito científico como urna
Até alguns anos atrás, essa discussão parecia não ter consequências "unidade de análise", isto é, como a materialidade imediata da lingua-
·práticas para a atividade jornalística, porque no âmbito profissional eram ' gem, posta em som, letra ou formas. Discurso é mesmo, em linhas ge-
fortes as marcas de uma ideologia corporativa que destilava certeza quan- rais, o funcionamento da linguagem, portanto, o lugar da intersubjetivi-
to à objetividade histórica do texto de jornal e, portanto, quanto à sua ab- dade ou de formação do laço social. Ele é tanto a fala individual quanto
soluta ancoragem na produção do conhecimento de fato. Esta ideologia a malha de inserção do indivíduo na complexidade relacional do socius,
tentava sempre recalcar a persistência evidente do fabulativo ou do ima- ou seja, é também realidade em construção, geradora de sentido para o
ginário em determinadas técnicas retóricas da narração jornalística. Com que se apresenta como social e semanticamente fragmentado. Ao se di-
o advento da televisão e da internet, entretanto, diferentes modos de nar- zer que o d~scurso é por excelência o lugar de produção de sentido, es-
rar tomaram-se correntes no sistema informativo, o que traz alguns pro- tá-se admitindo implicitamente que o sentido resulta de um trabalhoso-
cial ( a semiose implicada na pluralidade de textos da cultura), e que todo
5. O que atualmente se entende como "jornalismo literário" é algo muito diferente dessa antiga , discurso é ideológico e heterogêneo.
identificação entre jornalismo e literatura, já que tem mais a ver com a prática do literary jouma-
füm - designação posterior do "novo jornalismo" norte-americano. Um site da internet (Texto
Vivo) é preciso a respeito: "Jornalismo literário é uma modalidade de prática da reportagem de
profundidade e do ensaio jornalístico, utilizando recursos de observação e redação originários da 6. São expoentes desta corrente autores como Roland Barthes, A.J. Greimas, Eliseo Verón, Mi-
(ou í11,-,;pirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, esti- chel Pêcheux, Zellig Harris, Oswald Ducrot e H.P. Grice. Michel Foucault não pode deixar de ser
l<l,fl'l'tçisão de dados e informações, uso de símbolos ( inclusive metáforas), digressão e humaniza- mencionado, com a ressalva de que o seu uso do conceito de discurso tem viés filosófico ("arqueo-
çfto. Modalidade também conhecida como jornalismo narrativo". lógico", em sua própria terminologia) e não estritamente linguístico.

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Por outro lado, discurso não diz respeito às proposições ou às frases sis- (r~lmances, filmes, determinadas reportagens, etc.)'\ É a mesma oposição,
temicamcnte consideradas (quer dizer, atinentes à língua enquanto estru- numa outra terminologia, entre o "demonstrativo" e o "fabulativo".
tura), e sim aos enunciados 7, inseridos num contexto, responsáveis pela co-
Se seguirmos, entretanto, o pensamento de Michel Foucault, o concei-
municabilidade, portanto, pela fala, pela ação concreta da linguagem, ação
to de discurso também se aplica à literatura, na medida em que esta pode
da história. Uma palavra na língua enquanto estrutura de linguagem tem
ser encarada como uma prática social, com hábitos e instituições histori-
significado, enquanto o enunciado num discurso tem significado e sentido,
camente determinados, produzida em relacionamento com o "co-texto",
isto é, tem valor semântico e valor sociocomunicativo (logo, tem significa-
isto é, o conjunto dos outros textos, literários ou não, em que o autor rea-
ções) o que faz do discurso um "fato social", dependente de situações mar-
cadas por tempo e espaço. liza a sua intervenção estilística. Só que a forma literária não é em si mes-
ma sociodiscursiva, no sentido de obrigar-se por inteiro às regras da co-
Aqui se torna pertinente o conceito de enunciação, para dar conta da municabilidade linguístico-comunitária, predominantes no contexto es-
complexidade de relações entre os polos atuantes no discurso, ou seja, fa- pacial e histórico, em que se produz, consome e circula um texto. O acon-
lante/ouvinte, escritor/leitor. A enunciação dá margem à diversidade de tecimento literariamente narrado não tem valor de realidade, equivalen-
interpretações segundo as diferentes circunstâncias de tempo, espaço, fa- te ao valor de realidade da notícia, por exemplo.
lante, ouvinte, escritor e leitor. A diversidade interpretativa diz respeito
Este valor é, 'aliás, a grande contribuição da notícia, enquanto "gênero"
ao valor de realidade do acontecimento, quer dizer, ao seu potencial de
jornalístico, para a demarcação conceituai das fronteiras entre imprensa e
descrição do real-histórico de uma ocorrência, seja esta um aspecto miú-
literatura. Do ponto de vista histórico, a diferença se torna nítida em mea-
do do cotidiano ou um fato de grandes proporções sociais. É a direta vin-
dos do século XIX, quando a "imprensa comercial" (ou newspapers, jorna-
culação com o real-histórico que dá margem para que o discurso possa ser
lismo de informação) se sobrepõe ao publicismo (viewspapers, imprensa de
pensado, não apenas como conceito sociolinguístico ou semiológico, mas
opinião ou de ideias), apresentando a notícia como sua principal mercado-
também como uma prática social de produção de textos, logo como práti-
ria - porque supostamente neutra e infensa às técnicas de manipulação da
ca institucional, assumida por um sujeito e regida por convenções origina-
das de estruturas sociais. verdade - e forçando a separação entre jornalismo e ficção, isto é, entre a
atividade de um tipo de especialista em saber prático (a logotecnia informa-
Esse vínculo com a realidade concreta leva alguns autores a fazer uma tiva) e a atividade do escritor, cujo material é a condição humana, proble-
distinção radical entre discurso e história. Para Volli, por exemplo, discurso matizada por uma intervenção especial na língua escrita. O jornal se define
é a descrição de um conteúdo da comunicação mais ou menos abstrato, em resumo como uma máquina logotécnica, isto é, um complexo de proce-
mais ou menos sistemático, mais ou menos organizado, mas desenvolvido dimentos discursivos centrados na informação pública.
de uma maneira não narrativa e sem personagens (textos acadêmicos, tra-
De um lado ficava, assim, a subjetividade do escritor, e do outro, a obje-
tados, artigos, etc.), enquanto que história é a narração de fatos organiza-
tividade jornalística, que consiste no fundo em uma estratégia retórica, des-
dos segundo uma ordem cronológica ou causal e atribuídos a personagens
tinada a garantir ao discurso do jornalista um reconhecimento de neutrali-
dade ou isenção frente à realidade descrita. Esta separação não implica o
7.,f,)~ue chamamos de "frase" designa, na língua, apenas o conteúdo de uma proposição e seus va-
lorcsMjicos, expressos na relação entre sujeito e predicado. O "enunciado", por sua vez, refere-se
8. Cf. VOLLI, U. li Libro delta communicazione: idee, strumenti, modelli. Milão: 11Saggiatore,
ao dito, mas com atenção ao,sentido.
1994.

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áfãsfame'nto físico, ou mesmo profissional, de escritores das redações de o ·gênero não tem limites traçados quanto ao conteúdo e à forma de desen-
jornais, nem o abandono de recursos da literatura na elaboração de textos volvimento do texto, sendo grande, portanto, a margem de autonomia do
jornalísticos. Mas se trata aí de empréstimos, de influências (às vezes, mú- autor, previamente autorizado pelo editor. Quem se dispuser a examinar
tuas), e não de equivalência de identidades. Quando um jornalista se com- as causas da evidente predileção brasileira por essa construção textual
porta como um narrador literário - por exemplo, usando linguagem pes- certamente notará que, ao lado do jornal, a crônica conheceu um desen-
soal ou coloquial, colocando a si mesmo na cena do acontecimento, dando volvimento muito particular na música popular, cujas canções, principal-
cores de aventura romanesca a seu relato, litig~ndo com as fontes de infor- mente os sambas compostos desde os anos 1920, podem ser descritas em
mação, etc. - não está "fazendo literatura", e sim lançando mão de recursos sua maioria como crônicas do cotidiano carioca.
da retórica literária para captar ainda mais a atenção do leitor. Na crônica jornalística, está quase sempre implícito um locucionário
Existe uma espécie de meio-caminho, uma particular formação de (um tu), com o qual o cronista estabelece uma relação de intimidade, per-
compromisso entre as duas margens, denominada crônica, que é um cadi- mitindo-se a digressões sobre qualquer tema, embora, na maioria das ve-
nho de experiências textuais para "escritores-jornalistas", principalmente zes, o tema importe menos do que a feitura densa ou sedutora do texto,
aqueles de língua brasileira e espanhola. Na verdade, o significado da pala- onde se deixa ver o estilo personalíssimo do autor. Não raro, a definição é
vra "cronista" pertence a uma tradição sisuda, que é o de narrar a história, construída encantatoriamente pelo próprio cronista, marcando uma opo-
basicamente a história sagrada. Os cronistas portugueses se comportavam sição aos outros gêneros jornalísticos, a exemplo de Joaquim Ferreira dos
como depositários da história, ao narrar os grandes feitos do passado. Santos: "Um cronista é de outra espécie. A vantagem do cargo é o despu-
dor, a admissão por seus pares de que é o espaço para confessar todos os
Mas no Brasil, desde a primeira metade do século XIX, a "crônica de
espantos, gritar os medos mais básicos e sussurrar alucinações. [...] Todas
costumes" dá os seus primeiros sinais de existência por meio de escritores
as verdades já foram ditas nas páginas anteriores do jornal. Uma crônica é
como Martins Pena e outros, bem continuados por literatos de grande fô-
lego como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Machado de o terreno baldio da dúvida e da especulação" 9•
Assis. As crônicas machadianas (mais de setecentas em cerca de 40 anos Do ponto de vista editorial, pode-se dizer que cronista é alguém que
de atividade) têm hoje estatuto pleno de boá literatura. E Machado che- recebe uma espécie de mandato editorial para exercer os dotes de enfo-
gou a refletir sobre a especificidade do gênero, numa época em que "cro- car, com visão singularíssima, um assunto qualquer, embora de presumi-
nista" era designado como "folhetinista", isto é, alguém que escrevia para do interesse público. Esse assunto pode assumir a simples forma de caso
(Fernando Sabino ), de conto (Nelson Rodrigues), de prosa poética (Pau-
consumo imediato no jornal. Consciente da redução da dimensão históri-
lo Mendes Campos) e assim por diante. Rubem Braga podia fazer crônica
ca nessa prática, ele via os cronistas como "beneditinos da história míni-
em forma de carta, de descrição de um objeto, de uma estrela. Apelan-
ma". Numa de suas primeiras crônicas (1859), descreve o gênero como
do-se para uma metáfora técnica, comparativa dos gêneros, é possível
"fusão do fútil com o útil" e o cronista como o "colibri", que esvoaça so-
aceitar que a notícia seja uma fotografia do acontecimento; a reportagem,
hre todas as flores no jardim.
um pequeno filme, e a crônica, um caleidoscópio, ou seja, a possibilidade
Dc.~dc o começo no Brasil, o cronista se impõe como uma moderna de uma visão multifacetada do cotidiano - impressões expressivas, har-
modalid:à<lcde narrador, embora sejam notórias as dificuldades de defi-
nição de "crônica". Já se chegou mesmo a dizer que é "tudo aquilo que o
autor chama de crônica" (Fernando Sabino ). A isto equivale afirmar que 9. SANTOS, Joaquim Ferreira dos. ln: O Globo, 05/05/2008.

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monização do subjetivo com o objetivo, não raro um exercício de humour, Um exemplo:


no sentido britânico do termo. Na crônica, o autor está quase sempre Seja professor. .. nos Estados Unidos- O escritor e acadêmico
aquém ou além do fato, mais preocupado com os seus limites na lingua- dom Camilo José Cela disse que a sociedade norte-americana
gem do que com a "estridência" ou a "agudeza" enunciativa do aconteci- considera a Universidade "como o aspecto mais nobre do
mento pela notícia. Aliás, faz parte da doxa jornalística a bem-humorada país. Ser ali professor é ser verdadeiramente alguém. Todos
definição de crônica por Rubem Braga: "Se não é aguda, é crônica". os respeitos e todas as admirações convergem para a ativida-
A partir dos anos de 1930, modernistas e pós-modernistas dedica- de universitária".
ram-se ao gênero, produzindo uma notável geração de cronistas, em que Podemos nós dizer o mesmo?
pontificaram nomes como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto A este respeito nos lembramos de um caso publicado em re-
Lara Resende, Nelson Rodrigues, José Carlos Oliveira, Cecília Meirelles, vista norte-americana. Tratava-se de uma escola superior de
Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Rachel de Queiroz, Fernando agricultura, custeada fundamentalmente pelos próprios agri-
Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e vários ou- cultores do estado norte-americano em questão. Alguns dos
tros. Na crônica de humor, destacam-se Millôr Fernandes, Stanislaw Pon- agricultores foram protestar junto ao diretor da escola por-
te Preta (Sérgio Porto) e Luís Fernando Veríssimo. A cada um destes é que os professores daquela instituição ganhavam mais do que
possível atribuir a autoria de textos capazes de fazer hesitar o mais severo eles mesmos, os que "financiavam" a escola. E o diretor- com
dos críticos quanto ao tópico da diferenciação entre jornalismo e ficção li- grande habilidade discursiva - respondeu, em estilo galego:
terária. Por isto, a expressão jornalismo literário pode eventualmente in- "Quando vocês compram um cavalo, não é verdade que aqui-
lo pelo qual pagam mais alto é o sêmen? (Ya, 1964)11•
cluir a crônica - assim como, de resto, outros gêneros que lancem mão de
recursos literários. Rubem Braga é paradigmático: as_crônicas de guerra Essa é uma prática textual hoje rara nos jornais brasileiros, com exce-
que escreveu diretamente do front italiano para o Diário Carioca consti- ção da Folha de S. Paulo, que diariamente publica sue/tos ao lado dos edi-
tuem um bilhete inequívoco de admissão ao cânone da boa literatura. toriais. De vez em quando, aparecem textos que podem figurar entre as
Uma variação é chamada pelos espanhóis de sue/to - que se pode tradu- melhores páginas da literatura, a exemplo do epitáfio escrito por Carlos
zir como "mini-crônica", embora possa eventualmente apresentar-se como Heitor Cony para "Mila", o seu animal de estimação:
um pequeno artigo-, aplicável ao texto destinado a comentar brevemen- Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das
te um acontecimento, uma pequena notícia ou até mesmo uma ideia. A pa- duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito
lavra evoca a expressão pliegos sue/tos, que designava os folhetos populares jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio
na Península Ibérica do século XV. Trata-se de um texto "solto" (no senti- nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela tam-
do de livre frente ao padrão factual da informação jornalística) e de execu- bém. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me funda-
ção apurada que, como a crônica, requer qualidades de concisão e densida- mente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.
de. J>tãofalta quem o veja como uma espécie de epigrama em prosa, tal Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noi-
como definido numa quadrinha anônima: "À abelha semelhante/ para que tes juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha
cause prazer/ o epigrama há de ser/ pequeno, fluente, cortante" 10• medo de vento. O que fazer contra o vento?

IO. VIVALDI, G.M. Generos periodisticos. Madri: Paraninfo, 1973, p. 163. 11. Ibid., p. 166.

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Amá-la - foi a resposta e também acredito que ela entendeu [...] Aparentemente jovens de classe média, eles estavam ten-
isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as cila- tando entrar clandestinamente na maior economia e no maior
das que se armani. E também contra aqueles que não aceitam sonho do mundo. Foram pegos, humilhados e serão deporta-
os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, soli- dos do sonho para a realidade de seu próprio país
dária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a mi- ' Não é só. Pelos relatos que vêm de lá, há uma espécie de var-
nha festa, não queria disputar ~spaço, ser maior do que a mi- redura para detectar e enxotar os ilegais, cada vez em maior
nha tristeza. número e mais diversificados. São asiáticos, africanos, latino-
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. -americanos. A brasileirada cai feito peixe na rede. E a rede
E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas está ficando superlotada.
filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a [...] E, segundo a BBC, a União Europeia também está fazen-
ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu do uma varredura para capturar imigrantes ilegais, especifi-
"fumos fidalgos", como o Dom Casmurro, de Machado de camente da América do Sul.[ ...] Até você explicar que não se
Assis. Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inunda- chama João, não mora em Niterói e não tem a menor inten-
da de sol e transportada por súditos imaginários. ção de ser imigrante, tudo pode acontecer. Até embarcarem
No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de você de volta.
mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou [...] Vida dura, essa de brasileiro. Se fica, o bicho da violência,
que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. do desemprego e da desesperança pega. Se corre, o bicho da
Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu pei- arrogância do Primeiro Mundo come - e devolve" (Folha de S.
to, levei-a até o fim. Paulo, 25/02/2007).
Eu me considerava um profissional decente. Até semana pas-
A frase final, com sua insinuação escatológica, é ácida e cortante,
sada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever
dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabi- como um epigrama. A jornalista sente-se livre para exercitar a sua verve,
nete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu uma vez que tanto a crônica quanto o suelto têm formato livre, oscilando
acabasse a crônica para ficar com ela. da argumentação à descrição e à narração, ora para informar, ora para di-
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me vertir, ou mesmo, chocar o leitor. Em outras palavras, não se definem
aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. como narrativas em sentido estrito e muitas vezes assumem a forma de
Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a sau- diário íntimo, a exemplo do que passou a acontecer nos blogs de jornalis-
dade (Folha de S. Paulo). tas na internet. Nesses diários eletrônicos, não raro o autor passa ao largo
O texto de Cony, excepcional, pode ser arrolado como um dos mais de acontecimentos de grande repercussão em favor de relatos orientados
C0ll)_ovcntesjá escritos sobre um animal. Em outros casos, são comentá- por sua sensibilidade pessoal.
rios i:~êr1.t.os
de densidade literária, mas que reiteram as boas marcas esti- Na verdade, a interface desse jornalismo "expressionista" com a lite-
lísticas do suelto, como, por exemplo, a colunista Eliane Cantanhede, co- ratura teve como precursor no Brasil o cronista João do Rio (pseudônimo
mentando a foto de 40 brasileiros presos ao tentar atravessar ilegalmente de Paulo Barreto) - autor de As religiões no Rio (1905),Alma encantadora
a fronteira dos Estados Unidos: das ruas (1907) e outros - que, já na primeira década do século XX, hibri-
dizava crônica, reportagem e entrevista, produzindo um tipo muito parti-

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cu lar de texto, marcadamente narrativo, sobre a vida e os costumes cario- e os críticos literários reclamam que meu estilo é muito jornalístico. O jor-
cas. Na segunda metade do século, notabilizou-se o jornalista e escritor nalismo ajudou a minha ficção porque me manteve em relação íntima
brasileiro João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço), assim como José com a realidade. Eu não teria escrito nenhum dos meus livros se não co-
Louzeiro (Lúcio Flávio - O passageiro da agonia), mas igualmente vários nhecesse as técnicas do jornalismo" 13•
dos jornalistas que trabalharam, desde o final dos anos de 1960, na hoje Posições análoga~ multiplicam-se entre prosadores e poetas brasilei-
extinta revista Realidade, lançada em abril àe 1966. Nessa revista, João ros, sem que deixe de ficar clara a diferença. Para alguns, aliás, a diferen-
Antônio exercitou, como poucos, uma forma híbrida de conto e reporta- ça podia ser fonte de um certo incômodo existencial, a exemplo do cronis-
gem, altamente valorizada por determinados setores da crítica literária ta e ficcionista Otto Lara Resende, um "homem de letras" (na acepção in-
de elite. Antes disso, mas nessa mesma linha de texto, faz-se menção mui- glesai "carlyliana", do termo, que fixa assim um sentido para o militante
to especial a Joel Silveira, correspondente (assim como Rubem Braga) de da escrita no espaço público), reputado como brilhante por contemporâ-
Os Diários Associados no front italiano da Segunda Guerra Mundial, cujos neos seus como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Nel-
relatos tiveram e têm largo reconhecimento no meio jornalístico. O volu- son Rodrigues e outras figuras expressivas da vida literária no Brasil.
meA milésima segunda noite da Avenida Paulista, nascido de uma reporta- "Escrever é de amargar", repetia Otto Lara. E sua frase assinala a distin-
gem sobre o casamento do conde Francisco Matarazzo Jr., só lhe fez am- ção entre literatura e jornalismo, uma vez que "escrever" está aí no lugar
pliar a merecida fama. de "fazer literatura", em oposição ao que lhe parecia mais espontâneo,
São vários os exemplos dessa ordem no panorama da imprensa lati- embora superficial - o jornalismo.
no-americana, mas se destaca em muito, por extensão e qualidade, a·ativi- Por sua vez, o poeta Carlos Drummond de Andrade não escondia
dade jornalística de Gabriel Garcia Márquez ( reportagens e crônicas, es- que, além da literatura, só o jornalismo profissional o satisfaria em ter-
critas entre 1948 e 1984), detentor do Prêmio Nobel e mundialmente co- mos de atividade. E uma função não atrapalharia a outra: "O jornalismo é
nhecido desde o romance Cem anos de solidão, um dos maiores clássicos escola de formação e de aperfeiçoamento para o escritor, isto é, para o in-
da literatura latino-americana 12 • Márquez assume plenamente a condição divíduo que sinta a compulsão de ser escritor. Ele ensina a concisão, a es-
de "repórter" em seus textos para jornal, mas sempre lançando mão de colha das palavras, da noção do tamanho do texto, que não pode ser nem
recursos típicos da literatura. Relato de um náufrago é paradigmático: muito curto nem muito espichado. Em suma, o jornalismo é uma escola
uma reportagem seriada reconstitui vividamente os dias de luta pela so- de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E pro-
brevivência no mar, por parte de um marinheiro colombiano, a bordo de porciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. Não
um precário artefato de madeira. admite preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. O texto pre-
Nesse texto como em praticamente todos os outros, Márquez pratica cisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer. Há páginas de jornal
o jóh,a!ismo como se fosse gênero literário, mas a consciência e a tensão que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se
da diferença transparecem em juízos avaliativos sobre seu próprio traba- ' não tivesse a obrigação jornalística" 14•
lho: "Os editores de jornal se queixam de que meu estilo é muito literário
13. Cf. PASSOS, J.M. ln: O Globo, 18/11/2006.
14. Cf. COSTA, C. Pena de aluguel - escritores jornalistas no Brasil, 1904 a 2004. São Paulo: Cia.
12.Cf. MÁRQUEZ, G.G. Obra jornalística (coleção)-Textos andinos, textos caribenhos, da Eu- das Letras, 2005, p. 108. Este livro, resultado de uma tese de doutoramento, apresenta um bom pa-
ropue da América, report~gens políticas e crônicas. Rio de Janeiro: Record, 2006, 3.696 p .. norama das relações entre literatos e jornalistas no Brasil.

150 151
Um outro exemplo de aproximação com o texto de jornal é dado por dade de trabalhar com rádio, com televisão e nunca quis. Preferi o bom
Clarice Lispector numa anotação em caderno, que deveria funcionar como jornal, aquele que suja as mãos" 16•
uma orientação de estilo para si mesma: "l) Ler tirando o excesso de adje- Além disso, é disseminada entre bons profissionais do texto a opinião
tivos brilhantes ("isso e isso", "isso e isso") ; 2) Ler tirando as palavras "mo- de que a literatura tem a aprender com o jornalismo. É bem o caso de Fer-
dernas", as soluções modernas, os modismos, as repetições que indicam nando Morais - autor de biografias, ou grandes perfis, que se tornaram
processos fáceis[ ...]; 3) Se puder, em alguns casos deixar os fatos indicati- best-sellers, como Olga (1985) e Chatô, o rei do Brasil (1994)-, para quem
vos, tirando a ideia; 4) Retirar paradoxos, pensamentos complicados; [...] romancear a realidade é uma questão de se dosar com equilíbrio a pesqui-
7) Tirar certo grandioso; 8) Modificar frases excessivamente ricas" 15 • sa, a tomada de testemunhos, e o acesso a documentos, recortes, vídeos e
Embora a escritora esteja fazendo referência à arte do romance, algu- . gravações, elementos que, no texto de ficção são tão determinantes para a
mas de suas orientações poderiam ser subscritas por qualquer manual de : qualidade quanto a preocupação estética. Diz: "Se você fizer trabalho de
estilo jornalístico. Provavelmente, não por qualquer outro autor literário, , campo exaustivo, minucioso, não deixando nada sem apurar e pessoas
já que em literatura, como reitera o peruano Mario Vargas Llosa, "há por entrevistar, a possibilidade de se esmerar esteticamente é infinita-
mais exceções do que regras". E no que diz respeito a adjetivos, a exceção mente maior. Quanto mais detalhada a pesquisa, e mais fiel a reconstitui-
é bem o caso de Raduan Nassar, um dos grandes escritores brasileiros do ção, melhor o texto será" 17 • Esta recomendação vale tanto para uma bio-
século XX, que adjetiva o quanto pode em Lavoura arcaica, sem que isto grafia quanto para uma obra pertencente à escola da ficção realista, mas
igualmente para o que convencionou chamar nos Estados Unidos deNew
impeça a obra de ser considerada, com justiça, uma obra-prima.
Joumalism, isto é, as reportagens caracterizadas por extensas pesquisas
Mas o que estamos querendo frisar é que o empenho na esc~lha da
de campo e pelas descrições detalhadas de ambientes e personagens.
palavra adequada ( aliás, uma das virtudes literárias de N assar) preside
São bastante conhecidos, desde a década de 1960, os estilos narrativos
tanto à atividade do jornalista quanto do escritor, o que leva tradicional-
do New Joumalism (Lílian Ross, Truman Capote, Joseph Mitchell, Tom·
mente este último à revisão obsessiva de seus próprios textos em busca de
Wolfe, Gay Talese) ou do criador do "jornalismo gonzo", o repórter Hun-
uma perfeição, às vezes paralisante. O paradigma literário dessa atitude
ter Thompson, que contava histórias à sua maneira, muitas vezes agredin-
talvez seja o personagem de Albert Camus (emApeste), que não conse-
do verbalmente seus entrevistados. Nesse estilo pontificou Norman Mai-
gue escrever por não deixar de revisar obsessivamente a sua primeira frase.
ler, festejado como romancista desde a publicação de Os nus e os mortos
Mesmo entre escritores de gerações mais recentes - que presenciam (1948), porém mais bem realizado como escritor em seus escritos ditos de
ora a raridade das grandes reportagens, ora os vaticínios de crise progres- "não-ficção", a exemplo de O super-homem vai ao supermercado, texto so-
siva do j9malismo impresso - a prática jornalística ainda é vista como bre a campanha presidencial de John Kennedy, encomendado pela revis-
'•'
uma oportunidade ou uma incitação ao exercício da escrita. Marçal Aqui- ta Esquire 18• Embora se nomeasse às vezes como "repórter", Mailer (ao
no,jornalista, roteirista e romancista premiado desde o início dos anos 1990,
afirma: "O que me interessa é o exercício da escrita, em qualquer instân-
16. Cf. a entrevista "O escrevinhador das ruas". ln: Panorama Editorial, ano 3, n. 30, maio/2007, p.
cia. Eu não faço jornalismo com infelicidade. Tanto que como tal nunca
16s. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro.
me interessei por outra mídia que não fosse a impressa. Tive a oportuni- 17. Cf. PEREIRAJR., L.C. ln: Estilo do cotidiano-Revista Língua Portuguesa, ano II, n. 14, 2!Kl(),
p. 13. São Paulo: Segmento.
l!'í.O< iloho, 22/04/2007. 18. Cf. MAILER, N. O super-homem vai ao supermercado. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, 352 p.

152 153
contrário de Garcia Márquez, que valorizava a sua condição de repórter) [...]. Perguntava por tudo e pelo banal: se usava batom, se era namoradei-
renegava a profissão de jornalista. Esta, para ele, seria apenas "um modo ra, essas coisas. Elas diziam que aquilo não tinha importância para a his-
promíscuo de ganhar a vida". tória com agá maiúsculo" 20 •
Apesar disso, são nítidas as semelhanças entre aspectos estilísticos de Mas a narrativa provocante, muitas vezes próxima da forma-conto,
Mailer - por exemplo, nas reportagens sobre as convenções democratas e não é realmente uma grande surpresa na história do texto de jornal. Já em
republicanas, as descrições físicas dos candidatos - e o estilo generalizado 1 1917, ano em que foi aceito como "foca" no Kansas City Star, Hemingway
do New Joumalism, por sua vez grandemente influenciado por Ernest He- confessava-se atraído pelo estilo claro e provocante daquele por ele con-
mingway. Nem todos são explícitos a este respeito, mas Lílian Ross, tida siderado "o melhor jornal dos Estados Unidos", que depois o enviaria
como uma das fundadoras do "romance de não-ficção" e sua represen- ' como correspondente tanto para a Primeira Guerra Mundial quanto para
tante na revista norte-americana The New Yorker, admite: "Eu tinha des- a Guerra Civil Espanhola (oportunidades que originaram dois romances
coberto desde Porlrait of Hemingway (1950) que era muito divertido e in- famosos:Adeus às armas e Por quem os sinos dobram). Na edição de 5 de
teressante usar diálogos, mostrar a relação entre as pessoas por meio da janeiro de 1918, a primeira página do jornal estampava uma reportagem
maneira como elas conversavam ou agiam" 19• policial de sua autoria:
Esse tipo de depoimento é valioso por indicar, para além de qualquer John M. Tully e Albert Reithel, policiais chegados de Saint
dúvida, o ponto intersticial na aproximação entre jornalismo e ficção lite- Louis, podem morrer, e dois detetives locais escaparam por
pouco de serem feridos, como resultado de um choque arma-
rária: a estética do realismo objetivo. Não se trata, portanto, de qualquer
do nascido de um caso de identidade errada. Tully e Reithel
estilo literário, nem mesmo do realismo clássico, como o de Balzac que,
faziam uma batida numa casa, Rua Mercier, 2.743, denuncia-
como bem se sabe, ensaiava uma espécie de "macrojornalismo" da totali-
da como ponto de encontro de viciados em drogas. Edward
dade social, intervindo como um demiurgo, por meio da filosofia social e Kritser e Paul Conrad, detetives locais, juntaram-se alguns
moral, no universo que descrevia. O realismo objetivo prescinde dessa or- minutos mais tarde a esta mesma missão. E os dois grupos de
dem de intervenções, desse narrador onisciente, em favor de fatos objeti- policiais se confundiram, cada um achando que os outros
vos, artisticamente selecionados como numa montagem cinematográfica eram os viciados.
e deixados à sorte da leitura. Fatos, gestos e diálogos passam de um su- Tully foi baleado na perna direita, no braço esquerdo e no
posto real-hisfprico para um real imaginado, com vistas à produção da- baixo ventre. Reithel foi ferido no abdome e no pulso esquer-
quilo que Rola~d,J3arthes chamou de "efeitos de real". do. Ambos devem se recuperar. Os dois detetives não se feri-
Ora, a busca dos pequenos detalhes, aparentemente irrelevantes para ram, mas ambos tinham buracos de balas nas suas roupas.
a informação, entretanto capazes de suscitar tais efeitos, é hoje corrente Hemingway narra todo o resto como se estivesse no centro dos acon-
entre os profissionais da narrativa de não-ficção. É como Fernando Mo- tecimentos, exatamente o que faria depois com seus textos literários. Os
rais relata a propósito da biografia Olga: "Eu perguntava às pessoas que vilões desta história real eram os viciados em drogas Rose Fuqua, William
conviveram com Olga Benário qual era o tom de voz dela, o tipo de cabelo Rogers e Richard Adams. Cada um dos envolvidos no episódio é por ele
usado num episódio; sua roupa, se gesticulava, se falava assim ou assado

19. Cf. entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 27/05/2006. 20. PEREIRA JR., L.C. Op. cit., p. 14.

154 155
entrevistado, e algumas das versões revelam pontos de vista contraditó- Mas, como observa Muggiati, "As regras do Star não eram nada dog-
rios sobre o acontecido, enquanto outras denotam consenso. O que a repor- máticas, e muitas pessoas que ali trabalharam afirmam que jamais viram
tagem põe realmente em primeiro plano é a ação dos personagens, rela- um livrinho de regras no jornal, ou souberam sequer da sua existência. [... J
tada de maneira enxuta, coerente e sem adjetivações. E conclui assim: No Star, a ênfase caía sempre sobre a originalidade e a inteligência de
As histórias contadas por Kritser e Rose Fuqua estavam de uma história. Diziam ali que a pessoa poderia escrever uma história de trás
acordo com a versão de Conrad. Rose Fuqua e Rogers esca- ' para diante, se soubesse fazê-la suficientemente interessante" 22 • Um exem-
param ao tiroteio, porém se entregaram mais tarde. plo da narratividade do Star era a "notícia-história-de-um-parágrafo", como
Buddie, o cachorro de Rogers, levou um tiro na perna e está a publicada na primeira página em março de 1918, quando se convocam
sendo tratado por um vizinho. Adams, Rogers e Rose Fuqua norte-americanos para a Primeira Guerra:
estão na central de polícia, detidos para investigação.
Uma jovem bem vestida entrou ontem no departamento de joias
Comenta Muggiati: "É interessante verificar como as regras de reda- de uma agência de penhores. Apresentou uma cautela amarro-
ção do Kansas City Star coincidem com o estilo de Hemingway. O primei- tada. Era a cautela de uma aliança, empenhada nove meses an-
ro parágrafo das normas do jornal, no ano de 1917, dizia: 'Use frases cur- tes. "Não pretendia voltar aqui para buscá-la", disse ela. "Não
tas. Use parágrafos iniciais curtos. Empregue uma linguagem vigorosa. i a usava e me considero uma mulher pouco sentimental. Mas
Seja positivo, não negativo"' 21 • Coincidem também com o que ainda hoje ; meu marido foi convocado e achei que era melhor ficar com a
aliança como lembrança, caso ele não volte mais".
se pratica em summary-leads, estes que resumem toda uma série de acon- '
tecimentos interligados. Por exemplo: Tempos depois, ainda aparentemente apegado à prática do Star, He-
Um assaltante foi morto por um comerciante, um camburão : mingway escreveria em seu livro Paris é uma festa (A moveable feast):
da Polícia Civil caiu num canal em Brás de Pina, um escrivão "Tudo o que você tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a
de polícia foi roubado e várias pessoas foram -assaltadas por frase mais verdadeira que você conhece". Em inglês, "verdadeiro" (true)'
um grupo que vinha agindo em Marechal Hermes, Deodoro, é a mesma palavra que se usa para "sincero". No caso da agência de pe-
Parada de Lucas e Penha e que foi perseguido por policiais. nhores, a "verdade" na frase da jovem esposa é a impressão de sinceridade
Os dois ladrões restantes conseguiram fugir, depois de tiroteio que ela transmite. O tom positivo e claro da frase sobre uma referência
'•, çom a polícia.
'4_. universal para os casais (a aliança) constrói a qualificação comunicativa
O fnorto é o motorista de táxi Raimundo Simão de Barros ir- do relato.
mão de um delegado, que trabalhava na Penha, na porta ' do
Isto não faz, entretanto, dessa notícia-história-discurso estilizado so-
Hospital Getúlio Vargas. Ele era um dos três homens que, ar-
mados e mascarados, assaltaram várias pessoas, ontem de ma-
bre um acontecimento real - um texto literário. Usar recursos consagra-
drugada. Morreu com quatro relógios nos braços, uma másca- dos na literatura para melhor realizar uma reportagem ou uma notícia
ra e uma saia preta presa à cintura (Jornal do Brasil, 1983). não implica produzir ficção literária. Na realidade, outras práticas textuais
descritivas do real-histórico valiam-se, mais ou menos nessa mesma épo-
ca, de recursos ficcionais. O célebre filme-documentário Nanook of the
21. MUGGIAITI, R. Hemingway e a reportagem-conto. [s.l.]: Bloch, 1968. Trata-se da tradução e
adaptação do artigo de Charles A. Fenton: "Hemingway's Kansas City Star Apprenticeship", pu-
blicado em New World Writing, 2 (New American Library, 1952). 22. Ibid.

156 157
North ( de Robert Flahcrty ), obra inaugural do gênero, é de 1922. Apre- a fim de coletar material por trás das câmaras. Seu método era colher deta-
sentado como uma descrição realista ( objetiva e imparcial) de uma famí- lhes "romanescos" - um determinado anel, a transpiração de alguém, um
lia esquimó do Alasca, o filme, segundo informações do próprio Flaherty, gesto típico, assim como faria um romancista".
hibridizava detalhes socioculturais com pequenos arranjos ficcionais, ti- À maneira de Hemingway, o repórter dava vazão a seu impulso de tor-
dos pelo diretor como necessários à montagem de uma narrativa. nar-se escritor, principalmente quando se considerava a produção literá-
Como se percebe, é possível traçar uma genealogia da apropriação do ria como um caminho para a ascensão social e ademais se sabia que ope-
literário pelo discurso factual, não necessariamente em termos de busca rários haviam conhecido outro destino por meio da escrita. Diferente-
de uma origem precisa, mas no sentido foucaultiano do método, ou seja, mente da Inglaterra e outros países onde a literatura era apanágio de
"genealogia" como desvelamento dos pontos de mutação de uma forma membros das classes socialmente elevadas, a realidade norte-americam1
determinada. A escrita jornalística ou literária de Hemingway é um mar- alimentava fantasias coletivas sobre as possibilidades da origem humilde
co a ser sempre assinalado. Mas embora a "literatização" do texto jorna- ! no sucesso literário. Fosse o indivíduo operário ou repórter de um peque-
lístico tenha ganhado relevo apenas nos anos de 1950, em coincidência no jornal, a literatura supostamente poderia promovê-lo a um outro sta-
com um certo declínio de prestígio do romance, uma nova maneira de es- tus: "Não havia lugar para jornalistas, a menos que ali estivesse no papel
crever já se esboçava em artigos do jornalista John Hersey desde 1944. de futuro romancista ou simples cortesão dos grandes. Não existia algç
Para Tom Wolfe, a grande reportagem intitulada Hiroshima, publicada corno um jornalista literário trabalhando para revistas ou jornais popula•
por Hersey numa edição inteira da revista The New Yorker (1946), com res. Se um jornalista aspirava a status literário, o melhor era ter o bom•
depoimentos de seis sobreviventes da bomba atômica, além de ser consi- senso e a coragem de abandonar a imprensa popular e tentar entrar pan
derada por muitos o texto jornalístico mais importante do século XX, já é a grande liga" 25 •
um prenúncio inequívoco do New Joumalism, evidenciado no início da Mas se um cineasta sentia-se suficientemente livre para admitir al$l
década de 1960. além da reprodução especular da realidade na elaboração de um documen·
Foi esse o período, segundo Wolfe, em que determinados profissionais tário ou se jornalistas decidiam incorporar sistematicamente os recursos d~
da imprensa (ele próprio e outros já mencionados) começaram a se dar ficção literária ao jornal, a notícia ou a reportagem é regida por um prind
conta de que seria "possível fazer jornalismo para ser lido como um roman- pio de objetividade, entendido como um conjunto de normas profissionais
ce"23.Narra: "Os jornal istas começaram a descobrir os recursos que deram destinado a apresentar um retrato (um "instantâneo") do estado present<
'•
ao romance realista é.t.scupoder único: construção de cenas; o registro dos de um fato, de um "acontecimento", portanto. Por isso, esse tipo de texto e
hábitos, dos costumes, das roupas das falas" 24• O New York Hera/d Tribune um "gênero" fraco sob o ângulo da classificação que a crítica tradiciona
representou, para ele, o mesmo que o Kansas City Star para Hemingway, impinge à literatura, mas, no entanto, uma forte estratégia de produção de
quarenta anos antes: um lugar de estímulo a textos criativos. Wolfe dá es- "veracidades", sujeita à apresentação de provas demonstrativas (desde da
pecial relevo à figura do colunista (e também romancista) Jimmy Breslin, dos documentais até as manifestações de fontes secundárias, como teste
que "adotou como prática chegar ao local muito antes do evento principal, munhas e especialistas) que corroborem os enunciados corno prioritaria
mente pertencentes à ordem do real-histórico. Trata-se de urna estratégi:

23. WOLFE, T. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 19.
24. Ibid. 25. Ibid., p. 18.

158 159
de natureza retórica, que busca fazer passar os procedimentos discursivos sentido alternativas àquelas reconhecidas como senso comum inerente
de apresentação do acontecimento ( as técnicas objetivistas do jornalismo, aos discursos sociais. O texto literário pode ficcionalizar tanto o aconteci-
voltadas para a sinalização acurada dos dados da realidade factual) como mento quanto a língua: o sentido da história surge dos próprios enuncia-
se fosse o próprio conteúdo da informação. dos, e não de uma exterioridade prática, regida pela prática de linguagem
Impõe-se esclarecer que ficção e literatura não são necessariamente a denominada "discurso social". A famosa batalha a que se refere Tolstoi
mesma coisa. O termo "literatura" não tem nenhum significado unívoco .: em Guerra e Paz é um fato histórico, mas "aquela" batalha descrita no ro-
ao longo de sua história moderna, podendo designar tanto um conjunto mance pertence à razão do texto.
de repertórios culturais escritos quanto obras poéticas ou ficcionais. Por Isso não implica que o enunciado literário se feche em termos absolu-
outro lado, há ficções no discurso jurídico, nos relatos históricos, em tex- tos sobre si mesmo, sem qualquer compromisso com a dimensão externa,
tos religiosos (na Bíblia, por exemplo) e em instituições sociais. No jorna- uma vez que a literatura é constituída historicamente também pelo que se
lismo, também. A este propósito, comentando a autobiografia de um situa fora dela: sabemos que Tolstoi e Balzac ( assim como outros roman-
ex-prisioneiro e apresentado como um dos criadores de uma conhecida ' cistas de todas as épocas) costumavam dramatizar situações reais. Nesta
facção criminosa do Rio de Janeiro, um jornalista observa: "Segundo trilha romanesca, o francês Roger Martin du Gard descreve em Os Thibáult,
William, o Comando Vermelho recebeu esse nome da imprensa e não de _
1
de modo quase historiográfico, eventos históricos marcantes do fim do
um grupo que resolveu estruturá-lo. Tudo indica que tenha acontecido ' século XIX até as duas primeiras décadas do século XX ( em especial, as
exatamente isso. Frustra-se quem imaginava uma reunião secreta, com ideias e as vicissitudes do movimento socialista), sem se afastar, contudo,
depoimentos e apartes, ata e assinaturas. O autor sugere que tenha sido da perspectiva do amor e da piedade para com os personagens - "razão
uma ficção alimentada para ser vista como realidade" 26 • do texto" característica do realismo naturalista.
São muitas as possibilidades de ficção, como se vê, sem_que isso nos O que se quer dizer é que se a história comparece à ficção literária, in-
leve a considerá-los como "literárias". É que a ficção literária produz-se clusive numa linhagem estilística que pretenda ser apenas pintura da rea-
no plano dos símbolos - logo, nas zonas de ambivalência semântica -, os lidade crua ( o naturalismo), o vivido histórico não é a medida de validade
quais se abrem para a pluralidade das significações, inventando aconteci- do que literariamente se narra. Na verdade, a alusão à experiência re-
mento e linguagem, desafiando o leitor à parceria na produção interpre- al-histórica pode mesmo imprimir força à imaginação literária, conforme
tativa do sentido. Assim, Paris é uma festa na imaginação de Hemingway, justifica um jovem autor norte-americano que lança mão frequentemente
mas a linguagem por ele usada para dizê-lo também é festa, quer dizer, é desse recurso: "Há algo de mágico em colocar elementos do nosso dia a
um jogo prazeroso para o leitor. Isso não quer dizer que enunciados ver- dia caótico num romance. A vida faz mais sentido na ficção. Na prática,
bais de romance ~àti-possam ser literalmente iguais ao de um texto jorna- todas as vidas têm narrativas. Mas tem algo a mais numa história contada.
lístico, e frequentemente o são. Mas a diferença se instala a partir da dis- com um ritmo certo. É como congelar o caos" 27 •
tinção dos contextos ou das situações comunicativas em que são recebi- É o que acontece geralmente com romances históricos ou biográficos,
dos tais enunciados, o que dá margem a construções de linguagem e de Um exemplo recente de sucesso editorial é o misto de ensaio, biografia,

26. SOUZA, P. Apud LIMA, W.S. Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho. 27. ELLIS, B.E., autor de Abaixo de zero (1986) e Lunar Park (2006), em entrevistíi a O Gloho
[s.l.]: Labortexto, 2001, p. 11. 12/08/2006.

160 161
ficção, em que um psicanalista francês procura reconstituir narrativa- Essa intervenção num vernáculo específico ("língua direta, mas muito
mente a relação entre a famosa atriz Marilyn Monroe e seu último analis- trabalhada") produz a forma, que pode se abrir para urna "universaliza-
ta28.Aí, os diálogos, as cartas, determinados acontecimentos e as sessões ção" de sentido. É a mesma abertura que permite à ficção literária enri-
de análise inventadas pelo escritor misturam-se a personagens reais, fatos quecer o pensamento e até mesmo transformar a realidade, ao tornar
verdadeiros e informações terapêuticas comprováveis. possível que o mundo e a representação dele feita pelo escritor se apre-
O público receptor (críticos profissionais e leitores comuns) não tem sentem como uma mesma imagem. Por isso, uma obra "nacional" pode
dúvidas quanto ao reconhecimento de uma obra como "romance notá- nascer de um modelo externo consagrado -por exemplo, Lucíola, de José
vel", apesar de todo o fundo real-histórico, de natureza jornalística, da de Alencar, claramente inspirada em A dama das camélias, de Alexandre
narrativa. Ou então, um mesmo escritor pode afirmar num instante algo , Dumas; O navio negreiro, de Castro Alves, afim a Das Sklavenschiff, de
como "sempre digo que a matriz dos meus textos são as ruas, as persona- Heinrich Heine, etc.- e ainda assim produzir efeitos originais pela inter-
gens, as cenas e as situações da vida real que uso para desenvolver a fic- venção do texto, em termos de referência sócio-histórica e linguística, não
ção" e logo depois ponderar: "Vejo muitos autores dizerem em entrevis- apenas em seu contexto específico, mas igualmente fora dele.
tas que não leem. É mentira, jogo de cena. Para mim, não existe autogê- Tudo isso nos impele ainda mais a tornar clara a diferença entre os
nese na literatura. Escritores só se formam lendo" 29• protocolos de reconhecimento do jornalístico e do literário. Vejamos,
Em outras palavras, há mimese da vida real na ficção literária, mas a para este propósito, um pequeno texto do escritor argentino Júlio Corta-
especificidade desta última se encontra no interior de um círculo discursi- zar, intitulado Tema para uma tapeçaria:
vo das obras que pode ser resumido pelo nome de "literatura", ou seja, o O general só tem oitenta homens, e o inimigo cinco mil. Na
literário nasce da literatura, sem deixar de prestar atenção ao vivido - tan- sua tenda, o general blasfema e chora. Então escreve uma
to ao que se vive no real-histórico quanto à vivência que se tem de uma proclamação inspirada, que pombos-correio derramam sobre
língua nacional em particular, com seu vernáculo e suas difere-Htesapro- o acampamento inimigo. Duzentos soldados aderem ao gene-
priações de classe social. Isto, que pode ser teoricamente demonstrado, ral. Ocorre então uma escaramuça que o general vence facil-
transparece com frequência em testemunhos de escritores sobre o seu mente e dois regimentos aderem ao seu comando. Três dias
próprio trabalho, a exemplo do argentino Juan José Saer (autor consagra- depois o inimigo só tem oitenta homens e o general cinco mil.
do em seu país por obras corno El Entenado, El Limonero Real e outras), Então o general escreve outra proclamação e setenta e nove
ao discorrer sobre sua matéria-prima, a língua coloquial, criada pelo homens aderem ao seu comando. Resta apenas um inimigo,
povo: "Interessa-me escrever em urna língua muito direta e, ao mesmo cercado pelo exército do general que aguarda em silêncio. A
tempo, muito trabalh~da, mas de sabor coloquial, e escrever coisas uni- noite passa e o inimigo não adere ao seu comando. O general
versais, se podemos di~er,.assirn. Uma língua que ao mesmo tempo seja blasfema e chora na sua tenda. De madrugada, o inimigo de-
a
nossa, que não tenha nada ver com o espanhol, nem o chileno, nem o pe- sembainha lentamente a espada e avança até a tenda do gene-
ral. Entra e olha. O exército do general debanda. Sai o sol31•
ruano, e sim com aqui, com o Rio da Prata" 3º.

28. Cf. SCHNEIDER, M. Marilyn, demieres séances. [s.I.]: Grasset, 2006.


29. AQUINO, M. Op. cit, p. 15. 31. CORTAZAR, J. Histórias de cronópios e de famas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998,
30. Cf. BePé. Comisión Nacional Protectora de Bibliotecas Populares, ano 1, n. 2, 2007, p. 49. p. 85.

162 163
Neste relato curto, apesar das aparências de objetividade informativa vro [literário J não se faz com ideias, e sim com palavras. E isto está muito
( a proclamação inspirada o efetivo das tropas, a escaramuça, etc.), nada é patente, por exemplo, na poesia. E, por meio das palavras, você provoca
informação histórica, tudo é ficção. Ou seja, nele se detectam aconteci- emoções, mais do que ideias. A adesão é emocional e afetiva em qualquer
mentos sem fatos, porque o escritor costuma buscar algo situado além da obra de arte. O melhor crítico de teatro é a bunda. Quando a peça não é
crueza factual das coisas, como deixa bem claro um personagem literário boa, ela começa a doer" 33 •
do romancista uruguaio Onetti: "Para mim, os fatos crus e nus não signifi- Já na explicação do filósofo, a diferença "provém inteiramente do fato
cam nada. O que importa é o que contêm ou o que acarretam; e depois ve- de que a ficção substitui a origem-eu do discurso assertivo, ela própria
rificar o que há por trás disso e por trás disso de novo até o fundo definiti- ' real, pela origem-eu dos personagens da ficção. Todo o peso da ficção re-
vo que nunca poderemos tocar" 32 • pousa na invenção de personagens, de personagens que pensam, sentem.
É bem o caso do texto de Cortazar que, embora com uma escrita pau- agem e que são a origem-eu fictícia dos pensamentos, sentimentos e
tada pelo discurso da comunicação, isto é, linearidade e clareza vocabu- ·, ações da história contada" 34 • Para ele, a narrativa literária afeta também ll
lar, não se presta ao que determinados filósofos da linguagem ( de linha- temporalidade do discurso, ao introduzir verbos que designam os proces•
gem wittgensteiniana) poderiam chamar de "jogo de linguagem comuni- sos internos de um sujeito fictício, cuja ação narrada, diferentemente dt
cativo". Nele se produz um regime de indistinção entre o discurso descri- ação assertivamente relatada de um sujeito real (com um passado e urr
tivo de realidades (a objetividade informativa) e o viés interpretativo de , presente efetivos), simplesmente não acontece.
fenômenos do mundo social. Encena-se assim uma linguagem de reflexão ' É forçoso, porém, obtemperar ao filósofo que a sua própria argumen•
filosófica ( com um fundo moral típico das parábolas ou dos apólogos ). tação sobre os tempos verbais deixa claro que a invenção de personagem
Mas apenas "encena-se", já que a linguagem não se atém pragmatica- não responde por "todo" o peso da narrativa literária, uma vez que aí im
mente à demonstração de um conceito, como na filosofia. Antes, se ofere- porta, e muito, aficcionalização ou a encenação da língua. A especificaçã<
ce, pela possibilidade de várias camadas interpretativas (histórica, alegó- de uma narrativa como "literária" não depende apenas da invenção dt
rica, ética, política), à contemplação estética. Os generais são sem nome, conteúdos fabulativos (personagens, ações) ou de procedimentos formai
os soldados são meros números, inexistem as razões de agir, o que de fato de texto (modos narrativos, temporalidade do discurso), mas principal
avulta é a metáfora, como num poema, da ambivalência do poder. O lei- ' mente da invenção de uma outra linguagem no interior de uma mesm:
tor pode concluir, quem sabe, pelo arbitrário e pela desumanização das língua comum, ou seja, de uma outra superfície expressiva, em que aspa
guerras, assim como pela fragilidade dos sistemas de poder, a exemplo lavras podem às vezes implicar o contrário do que significam no automa
das ditaduras, contra algumas das quais (a argentina e a chilena), aliás, se tismo comunicativo da língua comum. O literário não decorre de uma e~
bateu Cortazar na vida'r~.~i. sência universalmente artística, e sim de uma prática linguística que oh
,.
Essa encenação, que é propriamente uma ficção literária, realiza um , tém sentido pela diferenciação frente à prática comunicativa simples di
corte no funcionamento no discurso, ao separar o discurso assertivo ( de- idioma, graças a uma aliança com a ilusão (uma intervenção organizad
notativo da realidade histórica, comunicativo de fatos e ideias) da narrati- no imaginário), logo, a uma transformação de linguagem que Proust,
va de um imaginário. É como explica um romancista português: "Um li-
33. ANTUNES, Lobo. Entrevista à Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 12/08/2007.
32. ONETII, J.C. Matias, o telegrafista. ln: 47 Contos. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 306. 34. RICOEUR, P. Tempo e narrativa. T. II. Campinas: Papirus, 1995, p. 115.

164 165
propósito de Flaubert, chamou de subjetiva e teorizou com precisão críti- jornalismo só é hom quando é objetivo, a literatura só é boa na medida em
ca: "O subjetivismo de Flaubert exprime-se pelo emprego novo <lostem- que é subjetiva. E talvez o detalhe mais importante seja que o jornalismo
pos verbais, das preposições, dos advérbios, e os dois últimos têm quase parte do universal para o particular. E a literatura, não só a literatura, mas
'sempre na frase apenas um valor rítmico" 35• a arte em geral, faz o contrário: parte do individual para o universal. [...]
E aí está, por parte de um dos maiores escritores do século XX, um agu- Você pega a sua aldeia e a descreve. E por meio dela você atinge o univer-
díssimo direcionamento crítico para a compreensão da especificidade da , sal"36.Cony não hesita em distinguir os dois tipos de produção de texto:
ficção literária: a subjetividade do escritor enseja uma intervenção única no "Tenho 13 romances, apenas um tem, digamos assim, alguma coisa a ver
estado vernacular da língua nacional - o estilo é precisamente isto - , ficcio- com jornalismo. Foi o Quase memória. Escrevi esse título e coloquei em-
nalizando-a por meio de um tratamento particular de verbos, advérbios e baixo, num rasgo de honestidade: Quase romance. Quer dizer, não é bem
conjunções e assim criando uma temporalidade suscetível de investimento um romance. Aí, sim, entrou um pouco de jornalismo. Mas nos outros li-
pela criação imaginosa de personagens e situações. Veja-se, por exemplo, vros, eu não tenho nada de jornalista, não" 37•
Machado de Assis, que é possivelmente o maior dos ficcionistas na literatu- Em geral, cada escritor que faz questão de assinalar essa diferença
ra brasileira: em Dom Casmurro, uma de suas obras-primas, a linguagem se tem a sua própria argumentação. Philip Roth, tido como um dos autores
tece, em deslocamentos, por fragmentos, por ironia, sob a ótica ambígua de essenciais para o conhecimento da literatura norte-americana contempo-
um narrador pouco confiável, mas de tal modo que o "interior" da cons- rânea, assim se manifesta: "O jornalismo e a ficção são gêneros opostos.
ciência se exterioriza, desnudando os personagens. Ou então, Guimarães O jornalista quer narrar o que de fato aconteceu. O escritor tenta imagi-
Rosa, próximo de Machado em termos de realização estética: seu Grande nar o que poderia ter acontecido. Por isso, acho inútil buscar na ficção
sertão, veredas é a reinvenção de um universo pela subversão do vernáculo e ' algo que seja real ou autobiográfico, algo que tenha de fato acontecido.
pela ambivalência mítica de um narrador. [...] Mesmo a história pode ser mudada num romance. O escritor não tem
Numa comparação, o texto jornalístico apresenta-se bem distante dis- que respeitar os fatos" 38 • Clarice Lispector diz o mesmo, de modo mais
so que vimos chamando de literário. O "estilo" de um jornal (se tomamos sintético e mais poético: "Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nun-
a palavra "estilo" como uma marca diferencial) é, sobretudo, a maneira 1
ca existiu" (A paixão segundo G.H. ).
como cada veículo organiza os seus espaços e os seus modos de tratamen- O texto jornalístico pode ser retoricamente ficcional, mas não fictício,
to dos acontecimentos. Mesmo que um ou outro colunista pratique um enquanto o literário comporta o ficcional e o fictício. O ficcional e fictício
modo próprio de escrever, a regra é de adequação à norma culta do idio- pode até mesmo comportar a argumentação, principalmente neste ins-
ma, com inflexões coloquiais., ~s palavras servem aos padrões correntes tante histórico em que a hipertrofia dos simulacros midiáticos confunde a
da comunicação. distinção entre o imaginário e o real-histórico. No literário, porém, os ar-
Romancista e jornalista, Cony reitera, em outros termos, a posição de gumentos não se dão como logicamente prévios ao texto, ou seja, ao invés
Flaubert: "É preciso entender a diferença fundamental entre jornalismo
e literatura. O jornalismo tem de ser objetivo, a literatura tem de ser sub-
36. CONY, C.H, ln: Por trás da entrevista. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 123 [MÜHLHAUS, C.
jetiva. Isso, antes de mais nada. Outra diferença fundamental: enquanto o
(org.)],
37. Ibid., p. 124,
35. PROUST, M,À propos du style de Flauhert ln Joumees de Lecture, [s.n.t,], 1993, p, 117. 38. Cf. entrevista a Marília Martins. O Globo, 19/06/2008.

166 167
,......
de veicularem ideias previamente argumentadas, as palavras ganham Diferentemente da ficção literária strictosensu, a literatura é um siste-
uma outra "vida" e se atraem ou se catalisam mutuamente, gerando uma ma canônico de recepção e circulação das obras. Por isso, um texto origi-
fala polissêmica, plurissignificativa assentada num real próprio, virtual- nalmente não literário pode "literarizar-se" por efeito de uma leitura que
mente afinado com uma dimensão originária, constitutiva, possivelmente o inscreva no sistema da literatura. Disto dá prova modelar Os sertões,de
inatual. Esse real não é igual ao da história, mas ao mesmo tempo a inclui, Euclides da Cunha, do qual já se tornou lugar-comum classificá-lo em
na medida em que a mimetize: a mimese de que se trata (e que pode exis- verbetes como "um dos maiores livros escritos por um brasileiro". É uma
tir fora da ficção literária) não é a imitação de fatos colocados no re- ' obra, ao mesmo tempo, histórica, geográfica e sociológica, vazada numa
ai-histórico, mas o jogo da homologia entre suas funções e aquelas do tex- narrativa extraordinária, que foi originalmente publicada como uma série
to. Se entendermos a mimese aristotélica também como uma espécie de
1

de reportagens.
"jogo isomórfico", será talvez possível ver com mais nitidez como o literá- 1 Para a taxinomia jornalística, trata-se mesmo de uma grande reporta-
rio, sem copiar os enunciados ideológicos da história, relaciona-se, entre- gem sobre a condição humana do sertanejo - um avesso do paradigma ci-
tanto, com a sua própria exterioridade. E isso transcorre no quadro de vilizatório da Europa -, motivada pelo acontecimento da conflagração de
uma legitimação oferecida por instituições que orientam os repertórios Canudos. É clara a matriz jornalística da obra. Mas com recursos da retó-
culturais da sociedade. rica (figuras de linguagem, principalmente), regionalismos e neologis-
mos, o texto de Euclides da Cunha afirma-se como arte literária plena,
Mas tudo isso que se afigura como subjetivo-autoral depende de um
comprovada em praticamente qualquer trecho tomado ao acaso. Por
complexo processo relacional ou interativo, uma espécie de "entre-lugar"
exemplo, a seguinte descrição do sertanejo na caatinga:
mediador, que é a dinâmica da leitura ou da recepção. A leitura critica-
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para
mente autorizada opera o reconhecimento da literariedade do texto e 0
ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram jun-
classifica no sistema da literatura. Isto se torna criticamente mais claro a
tos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas di-
partir dos anos de 1970, quando se desloca a ótica de análise di produção ficuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mes-
para a recepção ou leitura das obras. A tradicional ênfase no fenômeno li- mos dias remansados.
terário como um "texto" isolado e investido de um sentido exclusivamen- O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradei-
te próprio não deixava ver as circunstâncias sócio-históricas responsáveis ras folhas; o araticum, ouricuri virente, a mari elegante, aqui-
pela formação dos contextos em que transcorre a leitura. As teorias da re- xaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palma-
cepção39não apenas contribuíram para integrar o leitor no objeto de aná- tórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numero-
lise, mas principalmente'hwstraram que o jogo da comunicação entre tex- sos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás -
to leitura torna obrigatória 'n incorporação de aspectos pragmáticos, se- sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura
gundo os quais o fenômeno literário implica um sistema social específico, para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se corda~
portanto, implica igualmente, de forma complexa, discursos sociais. flexíveis e resistentes ... E se é preciso avançar a despeito da
noite, e o olhar afogado no escuro apenas }obriga a fosfores-
cência azulada das cumanãs dependurando-se pelos galhm
como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender urr
39. Cf., p. ex.: JAUSS, H.R. Pour une esthétique de la reception. Paris: Gallimard, 1978. • ISER, W. ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantandr
The act of reading. [s.l.]: John Hopkins, 1978. as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante ...

168
r·· A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Antcu, in-
domável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos
seguida, o contexto sociossemiótico ou o conjunto das variáveis sócio-hi
tóricas (hábitos, cultura corporativa, etc.) que fazem do texto uma prúti,
exércitos. social, portanto uma intervenção capaz de influenciar e modificar rei
Como se vê, a literatura não precisa da ficção para existir. E nada tam- ções sociais concretas.
bém obsta a que a longa narrativa não-ficcional de Euclides da Cunha Por exemplo, uma notícia é, ao mesmo tempo, o resultado de uma té
possa ser considerada como um dos grandes instantes do discurso infor- nica de texto, de uma marcação temporal no fluxo dos fatos cotidianos, 1
mativo aprofundado. Assim, um livro de memórias, um compêndio de manifestação de um arbítrio corporativo-profissional, assim como un
correspondência entre escritores, até mesmo uma grande reportagem expressão institucional. Ela oferece ao leitor uma espécie de retra
jornalística - caso de Os sertões ou do já citado A sangue frio, de Truman "três-por-quatro" (passaporte, carteira de identidade) do fato. Movime
Capote, por ele mesmo apresentado como um "romance de não-ficção - tando-se o retrato, à maneira de um pequeno filme, chega-se de forn
podem converter-se em literatura. Modernamente, é a instituição acadê- mais característica a um fluxo narrativo que se pode chamar de report
mica ( escola e círculos de letras) que legitima a literatura. Dela partem os gem, palavra derivada do latim reportare com a implicação semântica 1

discursos críticos que estabelecem a classificação dos gêneros literários e levar alguém (no caso, o leitor) novamente à cena de um acontecimenl
zelam pela irradiação dos efeitos culturais da leitura dos textos. Daí, o recurso às figuras de estilo da retórica que dão margem a constr
Para especificar um gênero, conto é o nome que podemos atribuir a ções linguísticas atípicas ( atípicas no discurso comunicativo corrente, m
Tema para uma tapeçaria, de Cortazar, segundo o cânone ainda vigente típicas da literatura), destinadas a aprofundar a atenção do leitor p
para o sistema de recepção de textos ficcionais. Por quê? Porque se enqua- meio do apelo ao conjunto de sentidos perceptivos.
dra no modelo típico deste gênero: texto curto e suscetível de ser lido de Isto vale para qualquer meio de comunicação. É famosa na história i
uma só vez (como bem sugeria Edgar Allan Poe ), intriga r~zoavelmente jornalismo americano a reportagem radiofônica, transmitida ao vivo p,
simples e um final surpreendente. Gêneros literários obedecem tradicio- CBS, em maio de 1945, a partir de um campo de extermínio alemão. O 1
nalmente a uma hierarquização de temas e diferenciam socialmente os pórter (hoje tido como um dos pais do moderno jornalismo americar
seus leitores. O leitor preferencial do conto citado distingue-se por sua po- também famoso por seu corajoso combate aos métodos antidemocrátic
sição discursiva, que lhe faculta possibilidades de uma compreensão culta , do Senador McCarthy) chamava-se Ed Murrow. Com um microfone
do texto e, portanto, uma parceria implícita com o autor. Um texto desta mão, ele narrou para o mundo, sem esconder a emoção, tudo aquilo q
natureza faz exigênci~k.~ serem necessariamente respeitadas pelo leitor. estava vendo enquanto os soldados americanos entravam no campo
Exigências, por exemplo,\:ie retardamento do olhar sobre os enunciados concentração. Diz Colombo: "Num certo sentido, Murrow violou tO(
para chegar ao desfrute pleno do sentido, de maior disponibilidade de tem- as regras do jornalismo 'objetivo'. Num outro sentido, produziu uma e
po, de desejo de se prestar ao jogo, por vezes difícil, da interpretação. páginas do jornalismo mais alto que existe desde quando existe a pro1
Num gênero sociodiscursivo, por outro lado, não há hierarquia temá- são" 4º.Por sua vez, o efeito de dramatização das imagens televisivas, a,
tica, nem dignidades diferenciadas dos leitores, todos se nivelam demo- quado a mobilizar diretamente emoções coletivas, presta-se por excelc
craticamente no ato da leitura. Assim, para a narrativa jornalística, im- eia ao desenvolvimento das técnicas narrativas.
porta primeiramente o contexto retórico, entendido como o conjunto de
convenções linguísticas ou textuais que preside à descrição do fato. Em 40. COLOMBO, F. Ultime notizie sul giomalismo. Roma: Laterza, 1995, p. 23.

170 171
- . Na imprensa escrita, não raro a narrativa lança mão de recursos literá-
lhas. O guarda municipal de Sanary vinha trazer um papel de
tahclião para ser assinado pela mãe.
nos, sem ultrapassar, contudo, os limites discursivos do jornalismo.
"Mamãe está doente. O senhor não pode vê-la, porque é Jc-
Um exemplo francês: anne quem toma conta dela e saiu", responde a caçula. Mas o
Sanary, enviado especial guarda retorna e insiste. Sai então a mais velha.
Uma teia de ~ranha, prisão de mil pequenos insetos, agar- "Não, responde a mais velha, o senhor não pode vê-la. Aliás,
ra-se ao re~rov1sor.A capota do automóvel desabou para den- o doutor Spiegelblat veio examiná-la".
tro em me10 a ramagens apodrecidas e latas velhas. O Renault O Doutor Spiegelblat morreu há quatro anos.
de antes da guerra é apenas mais uma carcaça enferrujada em
"Sim, sim, ele vem vê-la sempre".
frente à propriedade das senhoras Barbaroux. No final desse
Palavra de guarda, há algo estranho! À tarde, aparece um ofi-
caminho de ervas secas nas colinas dessa região alpina, come-
cial da polícia judiciária. Manda os bombeiros forçarem a
ça um mundo muito estranho, muito antigo, onde nenhum vi-
porta. Jeanne corre e mostra sua a sua mãe enrolada num ca-
zinho se aventurou há anos.
pote: "Não toquem, ela está doente". É um esqueleto.
Os batentes do portal enferrujado rangem terrivelmente.
A casinha está desmoronando, as persianas rotas, as vidraças
- Há alguém? Há alguém? Eu me surpreendo gritando várias quebradas, a porta rachada- e segura por uma velha corrente,
vezes. No ar seco e elétrico, as cigarras pararam de cantar. Nin- os buracos rapados com tecido de colchão. Quando eu entre-
guém. Jeanne e Genevieve estão no asilo, o esqueleto de Héle- abro uma janela, um enxame de moscas me salta ao rosto.Um
ne anda com a morte. Quem poderia me responder? Ou ... fedor de fumaça e de podridão invade as minhas narinas.
As ir~ãs ~ar~aroux, 61 e 63 anos, viviam ali até terça-feira. Era um belo esqueleto. Brunido, preparado. Elas tiveram de
Mas ha d~1s dias, a polícia descobriu na casa delas o esqueleto defumá-lo para a conservação. Deviam amar a sua mãe, conta
de sua mae, morta sem dúvida há vários anos e conservada o inspetor Dufour. "Psicose", diz ele. O filme ou a realidade?
com amor. Elas vinham às vezes ao pequeno porto de Sanary No jardim, perto do poço, achas de lenha estão empilhadas.
fazer compras. Os moradores olhavam as "feiticeiras" com al- Um almanaque pende da parede: mostarda de Dijon, 1956.
gum.t,emor. Jeanne, 63 anos, e Genevieve, 61 anos, vestiam-se Nem água corrente, nem eletricidade na casa. O teto negro de
com tétt~os remendados, a cabeça coberta por um pedaço de fuligem despenca em lascas sobre um monte de roupas apo-
lençol, um colete de lã furado ou uma velha capa escura. Saí- drecidas e uma cômoda poeirenta. Num saco de aninhagem.
das do interior, elas pareciam personagens da pré-história. os policiais encontraram maços de dinheiro, algumas notas de
Quanto à mãe, que deveria ter 91 anos, não era vista havia antes da guerra. As duas irmãs ainda recebiam a pensão ma·
muito tempo. Talvez já tivesse sido esquecida. terna. Mas raramente saíam. Uma moça não anda sozinh,
Os passos rangem sobre as agulhas de pinheiros. Entre os ar- por aí, deve ter-lhes dito um dia a sua mãe. Quando? Doí:
bustos ressequidos, pequenas áleas de terra levam à cabana. anos pelo menos que ninguém tinha visto essa silhueta seca. P
Uma palmeira oferece um pouco de sombra. Ao redor cami- prefeitura não se lembra mais.
nhos e clareiras _parecem desenhar um jardim de crianças, A casa das Barbaroux parece ter sido abandonada. O gali
onde se pode brmcar à parte do mundo. Mas há dois dias nheiro está destruído, a caixa postal serve de ninho aos pássa
Emile perturbou definitivamente o sonho das duas velhas fi~ ros. O sonho acabou.

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...................... -·-·-····· --- -----------

Volto a fechar com cuidado o portal desconjuntado. Súbito,


diante de mim, voa um pedaço de papel de um montículo no
meio do caminho: fotos amarelecidas, artigos de jornais, uma
caixa de pó de arroz, um batom, retratos de manequins, de
modelos, de atrizes, de princesas e uma foto de mamãe ... E
outras fotos muito bonitas: "Imperatriz de uma noite, ela fi-
cou no baile até as quatro horas da manhã". A dançarina sor-
ri. Ela tem toda a vida para ela; isso poderia durar milhões de
anos (Libération, 04/08/1980).
Como se vê, o repórter Denis Brunetti, que assina a matéria, recorre a
uma certa retórica literária para tornar mais atrativo, pela tensão narrati-
va, um acontecimento já prefigurado pelo grande público, graças ao filme
Psicose, de Alfred Hitchcock, em que um filho mantém escondido o es- '
queleto de sua mãe, com quem dialoga imaginariamente, ao mesmo tem-
po em que se traveste para cometer assassinatos. Sua reportagem tem
ares de conto policial.
Frisamos "uma certa retórica", porque se trata de um estilo típico da
literatura "pré-modernà", por dar margem a um grau elevado de partici-
pação do autor nos efeitos de sua própria narrativa. O ângulo de narra-
ção, centrado primeira pessoa, enseja uma espécie de passeio cinemato-
gráfico pelas "locações" do acontecimento, concretizado nas descrições, '
no registro de detalhes e até mesmo nas impressões do repórter. Apesar ,
de tudo isto, o discurso facti,áf predomina sobre a criação literária: é uma
narrativa guiada por um padrão retórico, polJanto, por um modelo já far-
tamente experimentado, cuja palavra-chav/é "imitação" ou pastiche.
Aliás, adverte a profissional Lílian Ross sobre os exageros do new jouma-
lism: "Eles imitam os bons escritores, mas nunca realmente entendendo
ou gostando daquele trabalho. Eles estragaram tudo, porque tomaram li-
berdade com os fatos, descreveram o que as pessoas 'pensaram', etc. Sem-
pre acreditei que era possível mostrar o que as pessoas pensavam por suas
palavras e ações" 41 •

41. Ibid., 27/05/2Q06.

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