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e ) cjiscursodo acontecir11ento

N, f,co é:.; r,11cser,; m.-nc,,,nf,f('SSOnti!


1rn,,r,lll~ J~,qu,• h 1e

1~ropõen1-se aqui a ,narcaçiío sen1ióticae a pontuaçüo rít-


111icacon10 critérios para a resolução das dificuldades
práticas e teóricas na definição de 11otíçia.P1i11u:iran1e11-
re, a\tis1;,1çâoentre fato e aco11tecin1ento,~·ela-se ncces-
sâria à dc111011straç,10 de co1no o discu,:110 infonnatil·o
constrói e co1n1u1icanarrativanzenteas tran\j<1n11ações e
passagens 110 fluxo cotidiano. Depois, descrere,n-se as
tensôes entre verdade e credibilidad('suscitadas pela ace-
leraçiio tecnológica do te,npo, destacando-se as suas con-
sequências para a inscrição da factualidade na n1ídia.
inscreveu-se na tradição das r~daçóes de jornais como uma fórmula ade-
quada à prática profissional, orientada pelo valor de excepcionalidade, de
raridade ou <le ruptura <lo padrflo rotineiro de expectativas quanto aos fa-
ll)s sociai.!/. Por isso. aliás, a notícia do garoto que mordeu o animal, pcr-
"Um cfto da raça pithull foi atacado e mordido, ontem, em plena praia
dcn<lo um ucntc "canino", fala de uma '•invcrsào" da lógica.
de Ipanema, por um homem Lk meia idade".
O enunciado acima é um "factoide" ou um jogo simulativo - <lc que
!:' este
~uposto critério lógico de interesse tanto para o leitor como
para o jornalista - por isto, um "valor-notícia" ou "valor de notícia'·, tra-
nos valeremos como um n:cursn mdodológico para ohtcr, comparativa-
duçôcs possíveis da expressão ncws 1•a/11e - acrescentam-se os de arualida-
mente. um conceito - cnm o fato hipotético que h,í muito tempo serve de
cle( no exemplo citado. "ontem"), proximidade ("praia de lpam.:ma "), im-
paradigma para a definiçüo de notícia jornalística: ··o homem mordeu o
pacto (o cachorro i:m questão é mais forte que um indivíduo comum); it1-
cachorro'·. Não que um evento desta ordem seja absolutamente estranho
1ern.w! p1íhlico (tornou-se notória a agressividade da raça pith11/I).Outras
ü diversidade factual de uma cidade, corno mostra n exemplo:
ll'rminologias são possívcis:f1~cÍcvância e ~ntensidade.'por exemplo. Cial-
Belo I forizontc. Um menino Lie 11 anos da cidade de Sabará,
lung e Rose identificaram. numa pesquisa hoje muito citada, os seguintes
na região mdropolilana de Belo llorizonk. inverteu a hígica
valores: frequência. amplitude (intensidade absoluta e aumento de inten-
ao morder um cão. Gabriel Almeiua cstava nu quintal da casa
de um parc nlc quando foi a laca do por um cfw da raça pit-h11/I. -;idadc). clareza ou falta de ambiguidade, releváncia (proximidade cultu-
Ek chegou a gritar por socorro. mas. ao ser mnruido no bra- ral e destaque social). consonância/conformidade (previsibilidade e de-
ço, conseguiu agarrar o animal pcln pescoço e cravar uma manda), imprevisibilidade (raridade), continuidaue. composiçãn, rcfc-
tknlada. O menino usou lanla força que seu dente canino fi- r~11ciaa nações de elite. referência a pessoas <le elite. referência a pessoas
cou preso na pl'lc do animal. Com o braço enfaixado. clc fa- (personificação) e referência a algo negativo (negativismo)\
lou sobre o ataque:
Esta lista, datada de 1960 e voltada para o noticiürio internacional.
- Nüo tem probk:ma. É melhor perder um dente que rerd1.:r a se fez acompanhar de outras ao longo da scgunua metade do século pas-
vida (0 Gloho. 24/07/2008). sado, que podem variar a terminologia sem alterar basicamente os fato-
Mas o nosso factoide aumenta deliberadamente a anomalia do rato ( o re<;.Na prática. os valores que sustentam a noticiabilidadc de um fato -
ataque insólito do homem ao animal e, ainda por cima, a uma raça consi- 1H1 seja. a condição de possibilidade para que este venha a transfor-

derada muito agressiva), com vistas à ohtenção de um conceito consensual- ~ m;ir-sc cm notícia - pouem variar segundo o lugar do fato, do nível de
mente difícil: ·'Não obstante a importüncia da notícia no chamado impé- rL'conhecimento social das ressoas envolvidas, das circunstüncias ua
rio do jornalismo, ninguém conseguiu defini-la satisfatoriamente. Os teó- \H:orr~ncia. elasua importf111cia pública e da categoria editorial cio meio
ricos dizem como ela deve ser, mas não como realmente é'' 1• Com o pano
de fundo desta dificuldade, a frase do jornalista norte-americano Amw, 2. O //,,• ,\in1 }i11A.\1111, lund.1d11em 1~.13 0 o primLirn exemplo de· impren,a ma,siv,1 no, E,tad11,
Cummings, ex-editor do Tlzc New York Sun ("se um cachorro morde um 1 111<1\1:,. pda passagem do 1ornali,mo de not;1s snhrt· fato~ ,ociai, nu pnlítkos tk
1 oi 11:sp1111~;'1H'I
homem. não é notícia, mas. se um homem morde lllll cachllrro. é milícia") 1•,1,urdc rlllp(lt t:111n.1
pai a o de r1011c1.I',
cio f.l"11e10/11i1-d11·cn.
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'li 1111~1' 1%",p 1111 11
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de comunicação. Se um cachorro morde o presidente da república, ha- precariedade teórica. Na verdade, pode-se pôr cm questão a própria ne-
verá certamente notícia. cessidade teórica de uma definição, como acontece no ambiente profis-
Lsso nos permite dizer o que é uma notícia? -..ionaldo jornalismo, onde já se disse mesmo que as operaçóes de noticia-
hilidade são '"basicamente instinto··. Igualmente. um teórico pragmatista
Se partirmos daqueles c1itérios, consultando ao acaso um manual elejor-
questionaria essa indagação sobre "o que é" e optaria por saber ''o que se
nalismo, encontraremos definiçôes correntes de notícia no mundo do jorna-
l'az" - tanto os profissionais de imprensa quanto seu público leitor - com
lismo: "'Notícia é tudo o que o leitor precisa saber". "Notícia é tudo aquilo de
i-;so que se convenóonou chamar de "notícia". Seria admissível até mes-
que o público quer falar; quanto mais comentários provocar, mais valor
mo o critério da dignidade do fato. expresso no slogan cunhado cm 1896
tem". "'A melhor notícia é a que interessa ao maior número de leitores''•.
pdo editor norte-americano para o The New York Times. geralmente tido
São precárias as três c.kfiniçôcs. Na realidade. não são propriamente como o jornal mais influente do mundo: ··Ali the news that's fit to print",
definiçóes, mas descrições de uma prática profissional. O autor do texto, ou seja, "todas as notícias dignas de se publicar". Naturalmente. essa dig-
um profissional da n-!daçüo jornalística, diz preferir a primeira. Mas é, no nidade é definida pelo arbítrio profissional, como reconhece Beltrão:
fundo, uma preferência esteticamente orientada (subjetiva. afinada ape- '"Notícia é a narração dos últimos fatos ocorridos ou com possibilidade de
nas com o gosto prático), de escasso valor cognitivo, assim como muitas ocorrer, cm qualquer campo da atividade e que, no julgamento do jorna-
outras escolhas possíveis dentro desta mesma perspectiva, só que geral- lista, interessam ou têm importância para o público a que sc dirigem'''.
mente insuficientes para dar conta da essência desse gênero informativo. No entanto, cm meio à crise evidente das formas tradicionais de jor-
Geralmente essas ucfiniçües se distinguem pelo peso que cada uma nalismo diante da circulação de informaçôes através da internet cm tem-
<lclas atribui a um aspecto e.ianotícia. Pode-se, assim, privilegiar o próprio pn real e fluxo contínuo, o estatuto conceituai da notícia suscita conside-
ato comunicativo: "notícia é o relato de um fato, de uma ideia ou de uma iaçôes de ordem prática para a corporação editorial, inclusive a de saber
situação atuais na comunidade"; acentuar a frequência diária: "é o relato se.os tradicionais produtores do texto jornalístico ainda podem Jctcrrni-
de fatos que acmltcccram nas últimas vinte e quatro horas'"; também, a nar em última análise o que é ou não uma notícia, portanto, determinar se
factualidade: "Gênero jornalístico por excelência que dá conta, de um a corporação profissional a que pertencem ainda detém o controle abso-
modo sucinto, mas completo, de um fato atual ou atualizado, digno de ser luto sohre o produto básico do discurso informativo.
conhecido e divulgado, e de incgüvcl rcpcrcussüo humana"; senão, a no- Um bom começo de reflexão sobre o problema está cm retornarmos
vidade: "É tudo o que interessa e que não se sabia antes ..; ou então, a na- rnm o espírito da dúvida à história dopitbull, para que apareçam algumas
turcza do intcrcssc e do destinatário: "nova informação a respeito de um qucstócs significativas: Por que este falo e não outro? Por que o leitor pre-
assunto que possui algum interesse público e que é transmitida para uma âsa saber dele? Por que alguém nccessariamcntc/á/aria publicamente do
porção deste público". :,contcciclo? Por outro lado, no caso específico, sáo frcquenks, <lesde o fi-
A lista é grande, assim como a imprecisão conceituai. seja devido à di- 11altios anos 1990,as notícias na imprensa do Rio de Janeiro sobre pesso-
ficuldade incrente a critérios internos da prática profissional, seja pela :1satacadas por cüt:s daquela raça. Isto nos leva a concluir, contra Amus
<'111111l1i11gs.que. ·'cachorro mordeu o homem" lêimbém é notícia.

4. VI VAI 1>I. M,< l. ( 111


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Na tentativa de trazer alguma luz para a questão. vamos aceitar inici- ,/ade. Isto quer dizer que, mesmo lançando-se mão de uma fórmula retó-
almente uma evidência: a notícia é o relato de algo qucfai ou que será ins- rica. nela não predomina qualquer arcabouço lógico-argumentativo her-
crito na trama das relações cotidianas de um real-histórico determinado. dado dos clássicos, e sim o projeto "'psicológico'' de implicar o leitor no
Ted Turner, o fundador do primeiro canal internacional de notícias, a próprio processo de narrar o acontecimento, por meio de uma hierarqui-
CNN (Cuble Network News), alega ter-se deslocado, na era da globaliza- 1açâo dos enunciados que se destina a facilitar-lhe o acesso ao fato. eco-
ção, o tempo do passado ("aconteceu") para "algo que está acontecen- nomizando tempo.
do''. De fato. comenta Ford, "o desenvolvimento tecnológico tem permi- A notícia é mesmo uma forma incipiente da "economia da atenção"
tido nào apenas que se registre um awntecimcnto cm todos os seus as- que terminou caracterizando a mídia contemporânea. É, assim, um produ-
pectos, tanto auditivos como visuais, cinésicos e proxêmicos, ainda que a tP - e certamente caro, considerando-se o custo atual de sua produção na
partir de distâncias físicas consideráveis (microfones direcionais. zooms, l'sfera da grande mídia - cuja identidade mercadológica se configura a par-
infravermelhos. etc.). mas também que este seja tram,mitido simultanea- i II de meados do século XIX. no momento de transição do puhlicismo ou
mente a qualquer parte do globo"<>_ ' 1ornalismo de opinião" (caracterizado pela produção artesanal. pela perio-
Pois hem, algo socialmente significativo ocorreu ou está ocorrendo, dicidade irregular e por textos fortemente polêmicos) para a "imprensa co-
tenta-se reconstituí-lo com vistas à comunicação a um público determina- rncrcial", organizada cm bases indm,triais, logo voltada para um público
do e, para tanto. se lança mão de uma fórmula retórica, cuja origem re- lllassivo. suscetível de sustentar grandes tiragens e assegurar lucro.
monta tanto às regras do debate sofístico quanto a um recurso mnemo- A notícia-mercadoria desenvolve-se de rorma modelar na imprensa
técnico (Manual de retórica, de Quintiliano, datado de dois mil anos 7 ), 11ortc-amcricana. cuja liberdade é publicamente proclamada pelo poder
que consiste em responder a perguntas básicas dos e/ementa narrationis - político como garantia do direito civil de livre expressão e de representa-
quis, quid. quibus au.xiliis. quomodo, quando, ubi, cur, isto é, quern, o que. çüo da realidade cotidiana. Hoje, cm plena vigência da mídia eletrônica
como, quando, onde e por quê. Na retórica monástica. a fórmula transfor- de massa. tem-se consciência de que a notícia não apenas representa ou
mou-se num versinho menemônico (quis, quid, cur, contra/ Símile et para- "transmite'· aspectos da realidade - hipótese embutida no modelo funcio-
diwna testes). E finalmente, quem, o quê, como, quando, onde e porquê. as- 11alista- mas de que ela é também capaz de constituir uma realidade pró-
sinalados pdo poeta inglês Rudyard Kipling como sequência germinal ele 111ia. Isto não quer dizer que todo e qualquer acontecimento seja um
toda narrativa e estrutura constante da notícia moderna. 1111.:ro artefato midiático, independente da dinâmica social. e sim que a
Na verdade, a hipótese da "reconstituição" mnemotécnica não é um 1111dia também produz efeitos de real.
critério dos mais seguros, urna vez que a notícia não se estrutura simples- Dessa produçüo trata o modelo construtivista do newsmaking (noticia-
mente em função e.losconteúdos lógicos de um relato. mas principalmen- /,1/idadc, conceito trabalhado por pesquisadores como Gaye Tuchman 8 •
te em função dos mecanismos receptivo-cognitivos do público-leitor, isto l\laum WolL Michael Novak. Herbert Gans e outros), segundo o qual o
é, de sua atenção. o que implica estruturar-se cm função da comwzicahili-

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jornalismo não é reflexo, mas construção social de uma realidade especí- :,contecimento ainda por vir e por cujo poder de atração a narrativa pode
fica. Da cultura profissional dos jornalistas, da organização geral do tra- esperar, também ela, realizar-se "9 • Neste caso, a narrativa é uma .fi-mç-âo,
balho e dos processos produtivos. portanto, de uma rotina industrial atra- que cria aquilo mesmo que se narra. as~im como quando se escreve uma
\ vessada por uma polifonia discursiva, surgem os relatos de fatos significa- nbra de ficçào ou se faz um filme. Um incidente, um episódio, um aconte-
_tivos ( os "acontecimentos'') a que s1;dá o nome de notícias. Em todo esse cimento qualquer é representado, mas não tem de preexistir ao alo de nar-
processo, o jornalista é apenas parcialmente autônomo, já que tem de rar. ou seja, a sua rcalizaçüo cspácio-temporal não é condição sine qua
obedecer às regras de um planejamento produtivo. assim como a uma non para que se configure a narrativa. Nesta. o que se pensa predomina
concepção coletiva do acontecimento, que em pane o ultrapassa, fazendo ..,obre o que ocorre.
com que a seleção das ocorrências informe tanto sobre o campo profissio- Uma outra resposta aparece, entretanto, se nos ativermos à conccp-
nal do jornalismo quanto sobre o meio social a que se refere a notícia. çüo de Genette, teórico contemporâneo de Blanchot, segundo qual ··a
Ainda que a ficção literúria seja uma outra coisa, essa construção jor- narrativa é o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume
nalística de realidade produz efeitos (numa escala diferente) análogos a rclaçf10 do acontecimento ou de uma série de acontecimentos" 10• Esta
àqueles literariamente produzidos pela narrativa. Emhora a notícia de concepção pode ajustar-se ao caso do jornal, porque comporta a ideia de
jornal se distinga decididamente do texto litedrio (por ser gênero socio- um evento preexistente. que se destina a ser representado pelo texto. A
discursivo, logo historicamente atravessado por fatores espaciais, tempo- 11otíciaseria propriamente um enunciado ou uma sequência de enuncia-
rais, institucionais e políticos. sem a relativa autonomia formal da litera- dlls narrativos.
tura), nda se encontra o germe de uma nan ativa (ayuilo yut:, 11uutru con- Uma terceira posição aparece também em teorias da narrativa, basea-
texto semi ótico, poderia ser um conto, um romance ou um filme). Encon- das na estrutura linguística do texto, que privilegiam a referência, ou seja,
tram-se igualmente alguns dos elementos imprescindíveis ;1existência de aquilo a que se refere ou designa o enunciado. Real ou fictício, o aconte-
um enredo, não entendidos exclusivamente como partes estruturantes de L:imcnto é a referência apropriada por uma sequência de enunciados cro-
uma história, e sim como indicadores de campos problemáticos da expe- 11ologicamcnte ordenados, alterando-se a técnica de apropriação de acor-
riência. Uma notícia sobre as negociações de governo com representan- do com o gênero em que se manifeste a narrativa. Na notícia. que é uma
tes do Fundo Monetário Internacional sobre a dívida externa pode não se L'slratégia ou gênero discursivo essencialmente jornalístico, o aeontcci-
configurar como uma história narraua (com princípio, meio e fim), mas 111cntoreferido obriga-se a ser verídico ( real-histórico, portanto) e a obe-
certamente como situaçào problemática ao modo d<.:um enredo. decer à técnica corrente na prática do jornal. O real da notícia é a sua
Pode-se então afirmar que o relato normalmente implicado na notícia "l'actualidadc ", a sua condiçfto de representar um fato por meio do acon-
constitui uma narrativa? Não, pelo menos nos termos do jornalismo tra- 1,·nmcnto jornalístico.
dicional ( quando a imprensa ainda não produzia fatos sociais na mesma Então não são iguais os dois conceitos? O que é um fato? O que é um
escala das organizações de mídia), se adotarmos o ponto de vista de Blan- UL'OllléCÍlllClllO?() que é uma notícia?
chot. Para este escritor ( crítico, mas principalmente autor de notáveis ro-
mances irrealistas, corno Thomas f'Ohscur e L 'Arrêt de Mort). a narrativa
'"nfio é o rdato do acontecimento, mas o prt'>prioaco11tcri111l'1tln, a apro,i- '), Ili •\Nl 11<l 1, 1\1. 1 <.:hvt ~·1iwn11. 111:A111w.-//,•
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:, Sl' prrnh17ir, 10,UI Nl 111,, 1; / 11;111,'\ Ili l',111~ Srntl, lilP, p. 2\?
O fato ica1.;ãodo mundo, por consistir numa unidade de resistência
ul1 11111 à varia-
Para começar, Kant: "Os objetos para conceitos cuja realidade objeti- , ,111,11hcti.:rogeneidade, portanto, numa irredutibilidade.
va pode ser provada (seja mediante pura razão, seja por experiência, e no (> l'ato seria uma combinação dessas unidades de resistência, de coi-
primeiro caso a partir dos dados teóricos ou práticos da razão, mas em to- ,., 'ii'i que, acentuamos, não é a própria coisa. e sim uma objetivação
dos os casos por meio de uma intuição que lhes corresponda) sáo fatos"' 1. , 1111\.'citual da realidade dos fenômenos. Por isso, ao explicar que "mundo
É preciso ficar claro, portanto, que não se trata de objeto fora da faculda- t 111doque é rn.m", Wittgenstein observa que "o mundo é a totalidade dos

de representativa do homem, e sim de objeto do conhecimento. Desta l,11,,.,, 11:iodas coisas" 12. Essa totalidade uetermina o que acontece ("o que
maneira, são fatos as propril!dadcs matemáticas das grandezas, assim 1 ,1, uso) nu não. A palavra caso vem de casm (do 1atimcadere,cair), ter-

corno o objeto de qualquer experiência possível. irrente na antiga teologia moral, para designar um acontecimento
11111,l'L'I

Como se vê, uma "experiência possível'' comporta um objew. que q11l'iCdispôe à consciência para uma decisão. A maçá que cai do galho da
Kant entende como um grau diferenciado. um "momento" estabelecido é algo que acontece. mas não é necessariamente um caso, a mc-
11111l'll'ira
corno um correlato do sujeito. Isto não significa que de um lado esteja o 11,1sque tenha caído sobre a cabeça de Newton. como reza a mitologia so-
sujeito da consciência com suas representações e do outro esteja o "fa- h1c :1scin.:unstâncias da descoberta da lei da gravidade.
to-objeto" como uma ··coisa·, existente no mundo, em si, exlralinguística. ,\ssim, uma ocorrência da vida real que reclama do sujeito uma inter-
Os ··objetos" do conhecimento são. para o pensador. representações sen- p1et:iç:10 é um casusfacti (caso de fato), em oposição a qualquer caso su-
síveis interligadas e dependentes das relações de espaço e tempo, assim pns111nu imaginário (casus.fictn. Definir mundo como "tudo que é caso ..
como das leis da unidade da experiência, que as tornam comuns a todos. li•"'implica dizer que mundo é tudo que simplesmente acontece. pois o
Neste sentido, dizer objeto é o mesmo que dizer "fenômeno·'. A objetivi- 1 ,,s, 11equer que o acontecido realmente se disponha como objeto para a
dade - logo, a possibilidade de aplicação do adjetivo "objetivo·· - diz res- , 11,1..,ciéncia.A ocorrência, o ac..-ontecimento, implica uma passagem, uma
peito àquilo que tem idêntica validade rara todos os sujeitos e todos os 1,:111sformação no estado de uma coisa ou de uma pessoa. De repente, um
seus correlatos (objetos, fenômenos) numa experiência. Nela se baseiam Pl.11nido está aí diante de nós e pode manifestar-se sob diferentes formas
as ciências. a partir dela se constroem hipóteses e teorias. dt .,e, conforme a diversidade de plantas, pedras, fenômenos naturais.
O mundo dos fatos - a que podemos também chamar de ..estado de ,1111111:iis.
homens. O fato genérico é uma forma de !->Cr relativa a objetos e
coisas'' - é o mundo da experiência empírica. isto é. de relaçôes contin- enquanto o jato social é forma de ser relativa à eústê11cia hu-
ll 1111111c11os,
gentes. do fenômeno que pode acontecer ou não, fora de qualquer ordem ,n,111:1,
logo, atinente ao que se <lispôe ao estar-junto-com o outro.
necessária. Mas. diferentemente de Kant, Wittgenstein faz uma distinção l'ilo quer dizer que os aspectos constitutivos dos fatos são mutuamcn-
entre fato l! "coisa" ( ou objeto). A noção de coisa lhe serve para garantir a ll :1p1l·c11síveis,que os materiais dos acontecimentos manifestam-se si-
realidade objetiva dos conteúdos da consciência. Para o filósofo analítico, n111ll:111ea111cntcrelacionado<,. Assim, o que acontece (o caso, o fato) é
ela diz respeito a aquilo que resiste a qualquer relacionamento do sujeito 10111;1dopossivd pela cxisléncia de "estados de coisas", que por sua vez
(perceber, agir, ver), é aquilo de que o homem não pode pn.:scindir na 1,,111 entre roisas ou nhjelos. Nesta linha de raciocínio, são os fa-
,:1111l:x,ws
los que t11rn:1lll:1s proposições verdadeiras ou falsas. Dai o antigo entcn-

11.KANI l !'ntid1do1111 ,1,§ 111


dimento lógico de verdade como o acordo entre a proposição ( ou seja, ,11dnsensível, uma sensação, por exemplo, de modo que a intuição cmpí-
uma representação) e o fato, isto é, uma combinação que se estabelece 1ll',t ( a percepção imediata de tipo sensorial) torna-se a fonte de todo sa-
entre coisas. Verdadeiro será, portanto, o enunciado que concorde ( en- liL1, Descarta-se a ideia de essência. já que vale apenas o empiricamente
tendé.H,e: que seja capaz de figurar lógica e linguísticamente alguma coi- 11hscrvávcl. O jornalismo incorpora o senso comum sobre os fatos, mas
sa) com a realidade. incipalmcnte um senso moldado pelo positivismo. doutrina cujo auge
111
\lo uso comum, o significado de fato inclui:··( 1) ocorrências em geral , 111m:idecom a asccnsáo prestigiosa da imprensa burguesa. A elaboração
assim como açôcs; logo (2) o que~ o caso, se náo é uma ocorrência; logo l11..,11'irica
da ideia de "objetividade jornalística'' - segundo a qual o jorna-
( 3) o que se sahe ser o caso; Jogo ( 4) o que se sabe por obset1'açâo, mais do l1,11Hlinformativo deveria funcionar como uma espécie de espelho do
que por inferência; logo (5) os dados reais da experiência, opostos ao que 1111111doreal - é também urna dnutrina, de carálcr profissional-industrial,
inferimos, ampliando um ou mais dos sentidos acima, (6) as coisas que re- 1pc11assem garantias acadêmicas, como é o caso do positivismo.
almente existem, tais como pessoas e instituições, aparentemenk para Argumenta-se, por um lado, que a postura positivista ao que é dado
contrastá-las com ficções"'\ Estes aspectos do significado são comuns L1111111evidência restringe-se preconceituosamente aos fatos físicos, à per-
tanto às concepções que atrelam o fato ao fenômeno sensível, a algo que , q1<.:{10 sensível, ao passado que a ciência obriga-se a levar cm conta os
se apresenta como "puro" à percepção ( e, portanto, fazem derivar o saber l'illl's matemáticos e os valores são objetivos, sem serem fatos físicos. Por
da intuição empírica) quanto àquelas que consideram a visão objetiva de 11111m, no positivismo, observam-se os fatos empíricos e. por indução, bus-
algo como já sendo um conceito no horizonte de uma inteligibilidade. 1'.1111-se leis científicas universais, mas desconhecendo o condicionamento
Não só a ciência (na verdade, uma certa concepção de ciência), mas , "Pikio-tcmporal do observador, logo os c.:vidcnks impedimentos à uni-
também o senso comum orientam-se pelos fatos, que de algum modo con- H'r:-.ali;,:açãodas leis.
correm para definição da moderna consciência racional. simbolizada na Não pertence ao escopo deste trabalho a crítica do positivismo, extcn-
fala de Chuzzlewitt, personagem de Dickens: "Atualmente do que preci- •,1vamente feita pela filosofia e pelas teorias da ciência, que terminaram
samos sáo de fatos; nunca ensineis a estas moças e a estes rapazes senão ~011l'luindo pela impossibilidade <los fatos de garantir o necessário rigor
fatos. Na vida, só temos necessidade de fatos. Não implanteis outra coisa 11ncnnhecimcnto. Pretendemos apenas assinalar que há coincidências
em seu espírito: arrancai deles tudo quanto não se parecer com fatos: só lt111c:-.entre o espírito do jornalismo e o do positivismo 14• na medida cm
por meio de fatos podeis formar a inteligência do animal racional" (da q11cse adere dogmaticamente aos "fatos brutos" (isto é, o que se oferece
novela Martin Chuzzlewir, 1844). A fala do personagem é apenas parte do :i i11t11içüoempírica) como ponto de partida para o conhccimenlo de algu-
longo ataque de Dickcns ~1imprensa norte-americana. apresentada como 111:i eoba. Por exemplo, é um fato bruto que existe uma grande estátua do
banal, caluniosa e desinformativa. ( '11-,10Redentor no topo do morro conhecido como Corcovado, na cida-
Para o "espírito positivo'', o mesmo t.:mtorno do qual se ergueu a obra tl1.:d,i Rio de Janeiro. Mas como ou por que aquela estátua foi ali coloca-
de Augusto Comte, assim como a sua "lógica da realidade", fato é uma :1 sua escolha como urna das maravilhas do mundo são casos,
da, 1H1 L'.111:io
experiência sensível da realidade. A cada fato deve corresponder um

1l11n,:,p111t11mo ,·rn 1,·111c,


14, Sl'!'l!IHl11 11111 os 1111 os últi,nos po,i1ivi"ª' no mundo.
nah,1a, s1:rr:1111
1.\. ( 1. I{ 1ISSI· 1.1, O ,K. 111n.\1/\' "li fi1,11. 1\.I.I·(\•111<·1lcli lhl' \11uly 1111 ,111g11,1~<:
,111dlnlc,11111111 N,11,•,dul,11k, v,s,1 ,•sl11l,1«>Ll/'1'111:1,is l:iicl',, ~,·111111,11111c,
pn'11L11p.,çt1c:snrn1 H ,11,1~ohn:dc•1~1111i
n11 St.11110,d l l111v1:1,ilV,p. 10 d" 1o111111ti,11111
1,.,~.111lttsiCJ11u1 1 11p1<11d.11dt11l,1p1,11111por,11,~.1 clv e,11,11,.1111111111:
,1111t·1ic:111,1
11tc in111111i:11 iv11s. /\ i 111111111:11;n11I' 1111al
p1111·11l'i:tl111c tsf ll',1 p,11ll de oliJt.:IO'i , lll ll" L'llllllHl.., ' 1 O 111l'tmlo· ;11qm:olog1w" de I oucaull im
u1111h.1tc
p1i111a1iillllt.:nll..:
tidos l..'1)11111
1art ua1s, p:11:i 11htc1,por inter 1111.;d
111du :1ro11 1 uma hll..,l':t dl' ch1c1d,1~,1t1
1 1 1
d,1rn igmaricd,1dc de tatos do pm,sado, nao
, 1111, husca de 11111,1 u111rave1dadc rl:t1w,ped1va portanto. náo como
tecimcnto, alguma dareza :-.ohn:o falo s<>cio-hist{nil'o.Si') que a posi1iva-
ção do fato é ai associada a um funcionalismo de natureza industrial que 1,,,.l ,l d, 1111csma· v,trutura" da história :-.obrea qual se debruçam o~ his-
define a atividade informativa como mera produçao e distribuição de re- ' ,111dorl''i , e ...,111,como empenho de realçar a potência cx,...,tencialdos
latos referentes a uma realidade jü dada como pronta e acahada. 1 11ntll'llllCllto..,,Outros pem,adurc-;, como Derrid,1 e Ddt.:uze. cada um a
111ma111;;ll'a, ...,eaproxnnam de Foucault neste ponto.
O jornalismo implica. portanto, um tipo particular de "conhecimento
de fato", nos tt.:rmos da ddinição de Hobbes: "Há dois tipo..,d1.:conheci·
mento: um é o conhecimento c.lefato, e outro o conhecimento da conse- O acontecimento
quência de uma afirmaçf10a respeito de outra. O pnmeiro não\: outra coi- 1ncmporando a lk'finição kantiilml de fat, 1 como concâto para objetos
sa senão scnsaçüo e mcmúria. e é conhecimento absoluto. como quando , realidade
1111 1
pode -.cr prm ada - e, assim. como um espaço disponível ao
v1.:mosrealizar-se um fato ou recordamo.., o que se fez; deste gênero é o 11h,-.rvador para atribu1çüo de algum sentido i',oc1)rrência <;omoslcva-
conhecimento que requer uma testemunha. O último se denomina ciên- ihis a cncl)ntrar um outro termo para a rcprcscntaçao social du fato. cm
cia 1...j" 1\ O conht.:cimcnto dos fatos redunda. na verdade. cm história. ~ ,pccial para a informaçao jornali,;tica concretizada na notíci.i. r..ssc tcr-
cm torno da qual M:mpr1.:girou o jornalismo. mesmo sem pn:ti.:nsúes de llhl -ncin. para os norte-amcric,111os:fr,:11('11/l'llf. para os francesc'i: wn•-
cssC-ncia ou st.:qucrde sistcmatizaçfto de seus registros. O que os fato-.. cm , ,. p.irn 0 c;,espanhoi'> bem pode ser o aco11tcci111c11to. Na prática, pode
si mi:smos, nos transmitem sflo conhecimentos contingc.ntcs. isto é. qui.: 1 tomado como :-inônimo e.li:fato ...,1íc10-hisl<.>rico.
...,i: Mas 1.:nquantoo acon-
poderiam ser de outra forma, rclativlls, não ni.:ccssários. li:cimcnto se pauta pela c1ttmlidacle,isto por uma experiência singular na
l: importante. rntn:tanto. ressalvar a força dos fatos na elaboraçfü) de 1cmporahdadc do aq111e agora. o fato. mesmo inscrito na hii;;tôria,e uma
sistemas de pensamento awssos f1sgeneralidades da metafísica. Assim 1:l.1boraçãointelectual.
acontece com a filosofia de l'vlichel Foucault, tal como descrita cm livro Partt fins de comprc1.:nsüoda nutíria. é didática a d1stmção cstahclcci-
pi.:lohistoriador Paul Vi.:ync. que o conheceu de pt.:rto1h. Afirmam.lo qui.: d,1por Mouillaud: '·A hipótc'-e que '-Ustentamos é a de que o aconteci-
Fnucaull não acreditava cm nenhuma ideia geral. ma..,na verdade dos fo- m~nto J a somhra projetada de um conceito construido pelo sistL'mn da
tos. Veync sublinha: "O que nos faz '-Ofrer. o que nos causa indignaçüo. mformação, 0 conceito do fato" 1N F-;sa"sombra" responde, segundo fla-
isso existe. Por outro lado, o si.:ntido da história, a vocação da humanida- •icul, "a doí-; ou tr0s critérios: si11g11/aridadc,
uculc:11111/uladc.
improbahili-
de, o universalismo ... Todas as grandes ideias não sfto realidades. Ausch- dadc lcf. Morin]: umcu/adc. \Í11g1t!aridadc,dcsno [cf. Ricocur); proc1111-
witz J um fato. assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do st:ilinis- llhlcta, pregmincia [ cf. Thom 1,aos quaic;;alguns acrescentam a pcrccpçlio
mo, o colonialismo. as alas de alta s1.:gurançanas prisôes, o tratamento 111- eleuma 11wdifica(aO do c'itado do 11w11clo[cí. Charauclcau 1,implicitaml?n-
fligido aos loucos pdo sistema de asilos são fatos. Foucault nüo somenti: tc incluídos por outros na pregnf111cia.o que suscita uma reaçao de grande

17.ÇI. Mr\RO._Cill '. J -B Mt·t1.,1111goFnuc lllh. ln. l·ollra de S. f',111/0,30 0.31200SIRl.'~t·nh,1clu h•


l;,,.n.1.).
15. I IOBBl·S. T. f ,·1·íuth,111. p. 1>7. vro de l'aul\'cym ..1.
H1.\'EYNI~. P Fi,11ca11lt
sa p,·111,·,·
• .m 11cr,01111,·.
Pari,. t\lb1n l\lichd. 2(klK 18. :'IHHJll 1 ,\l lD, ;\I. () Jt1mt1f:J,1 fnrma an ,entido. Hras1ha llnB. 2002, r 51.
amplitude no sujeito'' 111• Fiageul privilegia os critérios de proeminência ,obre o que os historiadores chamarão o acontccimenlo
de Waterloo",
(no sentido de algo que tem forte visibilidade. que chama a atenção) e di1 o historiador Paul Vcyne 21. A unidade do acontecimento é, para ele.
pregnância (no sentido de significaçôcs e interesses concentrados) como u,11 "agregado nominal" de fatos agrupados sob uma mesma designação,

os únicos adequados ao universo midiático. São critérios que supôern a que varia segundo o sistema dassificatório adotado. O sistema jornalísti-
atcnçüo ou a percepção de um público. Sem "sujeitos Je p1;;rcepção", ine- agrega microfatos, diferentemente das grandes nominações feitas pe-
1."1>
xiste acontecimento. 11is historiadores.
Mas a generalização da cakgoria ··o acontecimento'' é problemática. Mouillaud faz uma distinção particular entre acontecimento (existen-
Como nbserva üuéré, é preciso atentar para a pluralizaçãn, poi-; "os ual) e inl"ormação (ou acontecimento midiáticn), assim como, guarclauas
acontecimentos" têm uma hierarquia e podem ser diferenciados '·cm fun- m, proporções. é possível diferenciar o momento existencial (kairôs. o
ção de seu poder de afetar os seres e de impregnar as situaçóes de quali- l1.:mpoda oporlunidade) do instante cronológico. O ac:ontecimcnto exis-
dades difusas que as individualizam'· 20• Há, assim, grandes e pequenos ll 11cialseria a modalidade transparente ( em oposição a uma suposta opa-
acontecimentos. hierarquizados em razão de sua previsibilidade dentro 1 idade) da informaçüo: "aquilo que, cntüo, aparece corno figura~ seu oh-

de um sistema determinado. Macroacontccimentos. por exemplo, são o 1t:10:os acontecimentos aos quais se refere a informaçüo formam o num-
assassinato do Presidente John Kennedy, a destruição por terroristas das do que se supõe real. Eis porque falamos de um status ·•realista" do acon-
torres gêmeas em Nova York. o tsunami no sul da Ásia. etc. J éÍ o assassina- lt:cimento"22. A distinção km suas raízes nu solo de claboraçáo filosófica
to de um cidadão comum por terroristas, um terremoto de pequenas pro- dessa categoria enquanto um fenômeno que encontra a sua especificida-
porçócs. etc. -.ão microacontccimentos. de na incleterminaçfto e na descontinuidade que fazem apan:rcr algo
A problematização é ainda mais complexa. Diz respeito ü própria uni- 11ovoe que, mantido o seu sentido existencial, desborda o cnquadramcn-
dade do acontecimento. uma vez que a ocorrência não é jamais apreendi- 1~1c a temporalidade midiáticos.
da direta e inteiramente. Um paradigma possível deste fenômeno é a per- Esse "existencial" do acontecimento só pode ser pensado no quadro
cepção que o personagem ''Fabrício" (Apud STENDHAL. A Cartuxa de de 11111a temporalidade viva. Para Baudrillard, ele se caracteriza pela "ir-
/>arma) tem da batalha d<;Waterloo. Presente nos locais. ele se entrega a , 11pç;iode algo improvável e impossível e por sua inquietante familiarida-
reflexões profundas sobre as coisas que lhe acontecem, mas é incapa1. de 1k ele aparece de chofre com uma evidência total. como se estivesse prc-
determinar se o que ele viu foi uma batalha t!. mais especificamente, aba- di.'-.l111ado.como se não pudesse não ter tido lugar. Há aí alguma coisa
talha de Watl..!rloo. f. que a batalha, enquanto multiplicidade de modos e qlll' parece vinda de outra parte. alguma coisa de fatal, que nada pode
açôes, comporta uma infinidade de pontos de vista e teskmunhos. "Mes- p, cn:11ir'" \ Um exemplo singularíssimo ~- a seu modo de ver, o alaque
mo se eu sou contemporâneo e testemunha de Waterloo, mesmo se eu ll'norista ao World Trade Centcr cm setembro de 200 l: diante da câmera
sou o principal ator e Napoleão em pessoa. cu só terei uma perspectiva di: vídeo de um amador. a pcrsislência banal do não-acontecimento em
Manhalt.in cxplodcjuntamcnte com as Torres Gêmeas. Neste caso, o or-
•>1, mat -jun/ 20110.p. h
19. FLA( i 1:U 1., A. Anaiomic: de I évétH.:menl. 1n: /)os.\ll'r.\ de /'A11dim'IS11t·I,
1',1rb: INA hdgar :'v1orin.Paul Ricocm, Rt·né Tlmm e l'airick Ch:1r:111dl':IU s,111 o, auto11.·, di.:que

ck Sl' vak pata t·k11rn1 n, diwrsos critérios dn ani111cl'inwnlll. 'I. VI, 'Ili· I' < (1111111,·111011e, 111/ lmt1111,· l'ar1\, S,·1111.
l'l'lh.

.!O.<)111•1{1, 1 l ·111Il' LKt11 l' ,,11t1d11:,1 d11:11idad1.·


dn ,1t'11111,,1111l'i1l11 l,1 I! ~1·,1,1 l1,11utr 1 1·, h, 1ílll.~ l2, IVII li Ili I !\t li> l\1 ( lp lll, ('. ',fl
1'· ~•1 I l ·( ,11,1 hdt, 10I I~ p ~•1 li 11\1 Pllll 1 \1\1>. I lç',11lt1,'lt'l l nrntrn,,1ll,I lll'(',tl11,11d, /'ll,111r', '1101,p '42
denamento rotineiro das coisas é abalado por uma espécie de falha ou de e visível de tratamento do fato, portanto, é uma construção ou uma
1111 :i

instante irracional na vivência individual de cada sujeito, que o leva a con- p1oduçüo de real, atravessada pelas representações da vicissitude da vida
..,iderar a emergência de uma desordem em suas rotinas interpretativas do H1Li:1l,o que equivale a dizer tanto pela fragmentação às vezes paradoxal
mundo. d,I',ncorrências quanto pelos conflito~ cm torno da hegemonia das n:pre-
Mesmo que ocorra na csfrra do possível, o acontecimento guardaria 1 l'11t;u,;ôcs.De modo análogo à elaboração filosófica. onde linguagem e
um momento e uma parte excessivos frente àquilo que o condiciona, logo, 111u11do se interrelacionam na síntese do acontecimento, a informação c o
algo maior do que o "fato" tal como normalmente se entende t.:tamhém que w.:ontcce são instâncias interdependentes. Sobre um material bruto
maior do que os esquemas retóricos prévios e inerentes à produção de no- disposto pela unidade factual do acontecimento, _ainformação constrói - a
tícia, prcsurnidamentt.: explicativos de um estado de coisas. Como adver- p,111ir de um conjunto de regras c convenções discursivas, assim como c.k há-

tem Dckuzc e Guattari, "o acontecimento não é ahsolutamente o estado h1tuse práticas sociais - um esquema narrativo, uma forma germinal de enre-
de coisas, ele se atualiza num estado de coisas, num corro, num vivit.lo, do ou u11rigaqm: transforma a factualidade da vida ( levando-a a se encar-
ma..,ele Lem uma parte somhria e secreta que não para de se subtrair ou 11.il'ou se efetuar nos corpos), uma vez que nesta não há propriamente cn-
de se acrescentar à sua atualização: ao contdrio do estado de coisas, ele 11 do, tüo-só repetições, coincidências e inesperados.
não começa, nem acaha, mas ganhou ou guardou o movimento infinito ao Num enredo, procura-se atribuir coerência espacial e temporal a dc-
qual dá a sua consistência'' 24. ll"I ,ninadas manifestaçôes factuais do real-histórico. Este é o caminho to-
É que, no àmbito do pensamento especulativo de linhagem estoica, mado pdo que Aristóteles entendia comQ '?1imese(!1iimcsisJ.ou seja, não
não se confunde o acontecimento "com sua dctuaçüo cspácio-tcmporal ,, '"1111itaçüo"da realidade. mas o aproveitamento de aspectos da realida-
num estado de coisas". Isto quer dizer que o acontecimento nüo deve ser de para produzir um discurso que lhe é semelhante ou homológico. Por
entendido como uma sucessão de dois estados de coisas (antes e depois), 111:1iurque seja a afinidade deste mecanismo com o da ficção, são coisas
e sim como a síntese dessa disjunção na linguagem. O que acontece não é d1ll're11tcs, porque a mímcse do discurso informativo se realiza cm função
mera proposição (atributo de linguagem), nem simples sucessão dos esta- de uma referência sócio-histórica, de algo que acontece num aqui e agora
dos de coisas (atributo de mundo). mas um diferenciador, tanto das signi- da vida social. E por força elo dispositivo técnico (suporte e matriz de sig-
ficaçôes quanto das coisas-cm outras palavras, sentido e de1frdas coisas. 111f1cal:tics)cm que se insere, a mimese informativa visihiliza o aeonlcci-
111c11to por mt:io de um rnq11adrw11e11to técnico: "(a) delimitando um cam-
Na elaboração filosófica, como se vê, é preciso distinguir o estado de
pt, c um fora de quadro; o quadro determina o que deve ser visto: (b) ro-
coisas-que se realiza ou é suscetível de urna realização potencial - daquilo
l ,tli1a1HI()a visão no interior de seus limites, ele a unifica cm uma cena; os
que se entende como um movimento infinito ou interminável. sem relação
do1closisolados pelo quadro tendem ü solidarizaçüo entre clcs''~5.
concreta com o corpo do sujeito, isto é. n acontecimento, uma cesura irre-
vogável da temporalidade. Mas relacionado à informação rnídiática, que é T:il enquadramento é o que os analistas norte-americanos têm cha-
t atualização de um estado de coisas, o acontecimento é uma modalidade 111,tdn de Jm111i11g
- uma rcinlêrpretação comunicacional de um conceito
'•lll 1ologico, n fiw11<'a,wly,·is, inlroduLido pelo canadense Goffman para
l'\plil-ai :1 mancirn crnno os indivíduos reagem às situaçücs sociais-, isto
24. DT:1.hUZb. (,. & (il 1/\Tf/\l{I. J,. {!11 ,·11 ,,. 11111·I// 11!11/rno11!111•'' l'1111. p.
1'11ri,; 1\.11111111,
147 l•lX Nl:'i~c li~n,. 111as1:1111hun c111/ o,;irn do ,,·11t1ll11 (S:io 1':111livl\.1spc1 t1v,1)(' ·\Ir/ f'/1110,(Stu1
l'.1uh•; 1 d 14) rnc,11111,1111•., l·,1,ct11l.11,,,,·,dc•·•11111<,1l··""'ll,'11111,11llu11nl11111 l'-,l\ltlllll 1 \l'll, \1 Op ui p li
..
é, o ajuste do fato a um quadro de referência. Para ele, ··toda definição de 1Hl11spela mídia, inclusive comparando-os com os despachos originais
situação se constrói segundo os princípios de organização que estruturam d:is agências noticiosas, o estudo disseca a variação dos modos de trat:1-
os acontecimentos - pelo menos os que têm um caráter social - e nosso IIIL'lllo específico do acontecimento cm funçüo dos diferentes perfis socio-
próprio comprometimento suhjctiyn".' 6 • O ''enquadre" constitui, assim, higicos dos públicos e principalmente mostra como discurso supostamen-
um sistema de referências (regras, esquemas interpretativos) que possihi- lL objetivo da informação desliza narrativamente para a retórica literária,
lita a atribuição de sentido a uma ocorrência nu uma situação qualquer, ,s ,ezcs incidindo mais sobre um objeto ficcional (por exemplo, o filme
de modo a organizar a experiência social. Seja de natureza política, ética \1111/rmncda China, que dramatiza um acidente nuclear e se achava em
ou estética, o enquadre afina-se evidentemente com a cultura de um gru- l,lrlaz na época do acontecimento em Three Milc lsland) do que sobre a
po específico, permitindo ao ator social descrever, interpretar ou catego- p1opria realidade do fenômeno.
rizar as situações que se lhe afiguram como probleméhicas. Por mein dele. I': esse ··ueslizarncnto" 4ue dá margem à "profecia autorrealizadora"
um problema social <:suscetível de converter-se em probkma público, d,, mídia. isto é, a manifestação da natureza njle'iira - no sentido de prnti-
dando margem ao surgimento de ações coletivas. l':11 e receber a ação ao mesmo templl - dos textos informativos. Por mais

A reflexão de Goffman não visa especificamente a imprensa. Ela está w1111que seja. a representação dos fatos põe em jogo crenças ou pressu-
centrada no problema da passagem de uma situação social a outra em p11stostendentes a validar essa mesma veracidade. De tal modo, o discurso
11,10 e meramente informativo, mas também a111<Jco1(fimwth'o, gerador de
função de ocorrências imprevistas, capazes de colocar os indivíduos dian-
te do imperativo coletivo de determinação do ocorrido. A ''situação'' de 11111acircularidade capaz de modificar os fatos que süo objeto da informa-
~•,11l. O discurso da informaçüo pública torna-se, cm consequência, operati-
que de fala pode estar inserida no âmbito de um partido político, de um
,1, e pcrformativo, ampliando a circularidade: a enunciação faz n que o
sindicato, de um;i associaçáo civil qualquer, sem se configurar como um acon-
1
tccimcnto midiático. Mas quando se trata de sua inscrição no i.:spaço pú- r111111ciado diz. Dá-se, assim. a profecia autorrcalizaclora, ou seja. uma su-
hlico, a mídia aparece 'como o dispositivo de conversão do social ao públi- p, ,1,1çaoou predição que. só pela t'mica razüo de ter sido feita. converk em
co, já que a midiatização é hoje o processo central de visihilização c pro- 11.•,il1dade o fato suposto, espt.:rado ou profetizado e, desta maneira, confir-
111aa sua própria "objctividadi.:". Em nosso jornalismo cotidiano, escrito e
• , dução dos fatos sociais na esfera pública. Por isto, o enquadramento mi-
ll kv1:-,1vo,esse mecanismo pode atuar na própria ddiniçüo do que seja
diático é a operação principal pela qual se seleciona, enfatiza e apresenta
11111:iquestão pública ou na implemcntaçüo de uma opiniúo dominante.
(logo, se constrói) o acontecimento.
M,1studo isso é possibilitado pelo envolvimento de um campo ··t.:xtra-
Uma demonstração bastante dara de como se realiza essa construção
111111:il1s1ico'' no processo. Em outras palavras, a construçüo do aconteci-
é feita por Veron, ao aplicar o rnétoJo da análise de disrnrsô ao tratamen-
mcnt11 11:10se efetua apenas no campo jornalístico, como bem ressalva
to dado pela imprensa francesa (audiovisual e impressa) ao acidente na
\, qut.:mhourg: "'Os acontecimentos são certamente fruto de um trabalho
central nuclear de Thrce Mile lsland (Estados Unidos), em 29 de março
,k· rrn1stituk::io coletiva, mas des imbricam também a participação de ato-
de 197927• Examinando minuciosamente os diversos tipos de texto produ-
ll'" L' de um p1'1hlicoque nüo é apenas uma massa de consumidores de in-
trn lllilÇoe-;'"~. <)u seja, us jornalistas são apenas uma das várias categorias
26. liOFl·MAN. !•. / <'-'rnilrc.,d, I np, 11-iem,·. Pari~: \l111uit, 1'1')1 p. 11)
1 ,1c,ulu11 t!, 1111,, l\l11LJ.l-,11d 1';111.~:
27.Cf VI l~ON, l·.<',111mui,,1 <'l'<'111•111n11 1,•,1111.:d1Jsl.'t ~H ,\I(! 11 1 Mil<li il(< ,, 1 1 (' Mv11i,de l',111d,11· 1c\1-.i1(' ln. /lu1111•n ,/,• / ,l11d111n1·111'i.10-1
1'1111111,1
111:-;
1 11.J,1r11 1lMI 1 )' Ili
tk llllHC'- 111nbih1i1da-; p:i1;1 a dl:ll'1111111ai;aodo:-. l11tos e •,u.i pu•,IL't1111 Ili", ll- ~l•gu 1, 111,, 1 dn l >N\ l (, do l.1111pl.!lo d1sc111-
t11q11111lia111c11111kl:111cu

1ra11-.Cormaçaoem acD111ec1111c1110 midial 1co. Alem ch,:(c-;l' dt suas 1111 , alísiir 11 ,esnlla, pot 1:111111,de 11111a111plncorn,cnsl>entre atorL'.Sc.x-
11111111
diências. ha principalmenlc um p11hlico,que pode ser entcncl1do como 11,11111dial ll.'(iS, que hem podem sL'I'vistos como pcrson:igcns de um enredo
uma .. ideosfcra", cm que i11Jivíduos particularmente atentos :10 qul.':'se l 111busca de vernssi111ilha11ça.
torna visível na cena de um esparo plÍblico. tomam posição ou se compro- P()r 011 tro Indo, 0 intercsSL' tanto das autoridades quanto cios jornal is-
metem com uma causa coletiva qualquer. Diferentemente de uma au- ,.,~ de reduzir a indetcrminaçfto dos fatos e aprcst:ntar uma forma c!ara e
1
diência, portanto. o público con-;titui-sc, ainda que provisoriamente, , sparentc Jo acontecimento não implica necessariamente ~1_iampul~ -
11 111
como um :-.ujcito coletivo e pode difratar-se ou diversificar-se cm torno de l.·'11dcsinformativn. A an:ílisc empreendida por Vcrón st~bre ll1rce 1H1le
experiências variadas. São v{irios. portanto, os públicos. 1,/mul deixa claro que em nenhum instanh~ se trata de talseamc_nto ou
Pouco menos lk um século e meio atnís. Marx tornava i-,-;ohem claro. ,c~mo desinformação deliberada, pois a construção Jo acontenmento
11
ao comcntur. cm artigo jornalístico ( 1861) o conflito do navio-correio in- unplicava no caso uma difícil. senüo impossíYel. traduçào jornalística do
glês Trent com o navio de guerra nnrtc-americano San ./aâ11to nas Baha- tutu: "É O discurso didático. especialmente na tckvisüo. que se cncarr~ga
mas. Ato contínuo à transmissão tdegrüfica sobre o inciJente, ..a bolsa de de transcrever a linguagem das tecnolog.ias na da informaçüo. Na medida
valores de Londres foi palco de tempestuosas ccn;1s, semelhante às da \;tilque as primeiras se tm:nam cada vez ~1ais. ~~m_~,I~x,~~:,
e invasivas, uma
0poca da proclamação da guerra italiana. Os preços de títulos do governo tradução dessa ordem arrisca ser cada dia 1ncusd1l1c1I -
c~uram três quartos de um por cento. Os mais dest:nfreados boatos corre- í~algo
difícil e desafiante. uma vc7 que. na infonnaçüo jornalística, o
ram por Londres. O embaixador americano, Adams. n:cehcra seu sal- , contecimento é necessariamente
1
casm facti. isto é. da ordem da compro-
vo-conduto. um embargo foi imposto a todos os navios americanos no Tâ- vaçfto objetiva ou realista. Embora o relato jornalíst_ico seja realmente
misa, etc. Ao mesmo tempo houve uma rcuniao de protesto de negocian- uma "construção". feita por uma subjetividade a partir de outros rclato_s
tes. na bolsa ck valores de Liverpool, para exigir medidas Jo governo in- (provindos das fontes), existe uma presunção de imparcial~d~de, garan~1-
glês no sentido de reparar a honra ofendida da bandeira britúnica. CaJa da pelo estatuto profissional do jornalista. Produz-se a nottern _com a pt e-
ingl[·s foi para a cama com a convicção de que iria dormir num estado de sunçüo de que O acontecimento adquira o estatuto pleno de fato, dando
paz, mas acordar num estado de guerra " 29• ,cntido ao que ocorreu e possihilidadcs de previsão quanto ao que amda
Isso mostra o acontedmcnto (que, aliás. se \;~ncerrou pacificamente) vai ocorrer. () poder do jornalismo, por mais frágil que poss~ pare_cer
como n:sultante da constrtH,;ão de um coletivo. cm que atores mi.o jorna- frente ao Estado e por menos que esconda a subjetividade de!
Jornahs_ta
listicos, constitutivos de um público específico, superavam os profissio- 110
cmhatc hegemónico, consiste cm sua cxposiçüo do fato social: t~u scJa,
nais. No caso dos atentados terroristas contra as Torres Gêmeas. os "ato- de uma unidade onde se entrecruzam outras táticas de poder ttp1cas da
res institucionais", n.:sponsüveis pelo "sentido"" ou pelo direcionamento sociedade civil em sua luta pela hegemonia das representações.
semúntico do acontecimento. compreendiam tanto as autoridades ou Por isso, 0 casus ficti ou inventado, quando se verifica, termina rece-
fontes oficiais cit.ida:-.pela mídia quanto toda uma cadeia menos visível de bendo a sanção negativa do campo profissional. sob a pecha de fraude, se-
atores instituídos no plano e.lodireito internacional, a exemplo do Conse- nüo de banimento moral ou contratual do autor. O neologismo nor-
1
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29. :'1-IAR\:,K. l.ihcrdadc de 1t11/ll'<•ma.Porto Akg,c L& PM. 2007. p. 148. 30. VERÓt,;, E. Op. óL p. 170.

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4J
te-americano factoid (foctoidc. algo que parccc, mas não constitui um ,k wrre de um pacto implícito entre o profissional da informação e o lci-
fato) é uma designação bem popular para este fenflmeno, recorrente na 1111.E um pacto induzido pda bandeira da objetividade. fincada no solo
imprensa anglo-saxónica desde o século XIX. F:cit;ível a notícia do 7he rl.i cultura jornalística desde meados do século XIX, quando se começa a
New York Sun sobre supostas "descobertas científicas'· que provariam a l,1lCruma distinçüo entre texto opinutivo e notícia, certamente como um
existência de vida na Lua. Denunciada a fraude por outros jornais, os lei- tl',c,tldll da fé iluminista no conhecimento objetivo garantido pela razão.
tores reagiram favoravelmente ao Sun, achando divertido o factoidc. M.is evidentemente ninguém de bom-senso atribui, hoje, motivaçôes
Mas esse bom-humor é raro, como se demonstra com exemplos de Jll\\1scológicas ao jornalismo. que tem sido sem dúvida até agora uma prü-
grandes agências noticiosas e grandes jornais norte-americanos. Uma fa- lll.;1 industrial com implicaçôes ético-políticas. Estas foram dchatidas por
mosa notícia falsa de agência (asisudaAssociatcd Press) foi a informacão 1ornalislas cm organismos internacionais, cm várias ocasiões. ao longo de
com circulação no mundo inteiro, de que o Vaticano teria sido vendicl~ a~ t11doo siculo XX. o que contribuiu para o direcionamento da ideia de ob-
hil ionário norte-americano Bill Gates. Quanto ao jornal, tornou-se famo- irtividade no sentido de um diráto humano, ou seja, direito que teriam os
so o caso do repórter Jason Blair (do The New Ymk Trmes) que, durante 111dividunsde "rcceb<.:r uma imagem objetiva da realidade".
três anos. inventou notícias e fabricou pnsonagens. causando um dos mai- Mas, para Colombo. a objetividade (e. naturalmente, a garantia di.:
ores danos à credihilidade do jornal em toda a sua história. \l'J'dade do fato) só é crível ou possível se o jornalista tem ·'uma identida-
Além disso, pode-se citar o evento da publicação pelo Thc New York di.: forte, ligada à definição naciona1''' 2• Isto nüo se entende como uma
T;mes (16/05/2004) de uma longa autocrítica à cobertura da guerra no Ira- 1dcntificação política com o governo do país a que pertence o jornalista,
quc. cm que os editores reconheciam ter encontrado vários casos na rea- ll1i1s como um scntim1:nto de rcsponsabilídack social que ultrapast-.a a cs-
valiação da cobertura. em que ·•nflo fomos tüo rigorosos como devería- h.:ra puramente técnica da informação para vincular-se ü totalidade do
mos". Tratava-se de reportagens com denúncias de que o regime de Sad- 1:111po nacional de onde de provém. Relações concretas com a!->fontes in-
dam I lussein disporia de armas <.ledestruição cm massa. algo _jamais com- tmmativas e interpretações atentas do material apurado fazem parte ne-
provado, mas que acabou scnindo de justificativa ao presidente George u•-;súria do pacto.
Bush para invadir o l raque. Admitiu o jornal que ",Lshistórias contadas Obcdecidas determinadas regras técnicas, o leitor dispôe-sc a crer na
por dissidente!'\ iraquianos nem sempre eram hem pesadas. devido ao for- vi:rsao ofcrecida pelo profissional. O sensacinnalisrno, a manipulação da
te desejo deles de ver a queda de Sacklam Hussein··. Em outras palavras. a propaganda disfarçada são como irrupçôcs maléficas na boa
1101,L"ia.
houve predomínio da enunciação na informação jornalística, comprome- jornalística. que nüo é imune üs enormes pressões da mídia
l onsciC·ncia
tendo a sua veracidade e. assim, a credibilidade do jornaP1. de cnlrdenimenlo, ao enfraquecimento institucional de seus mecanis-
A credihilidade- pedra de toque das relações de confiança entre O pú- 1111)~
de apuraçüo do fato e à consequente perda de rigor na transposição
blico e o jornal e. portanto. q principal capital simbólico do jornalista - do que j;í roi pactuado com o público-leitor como realidade ob_jetiva.
;[ \. ~/ . ,' J.
1\s vc1cs. o falsL":11nentoda informação pode resultar de uma ausência
31. bm maio de 2005. um comit.: formado por on1e editores do Ncw Viirk fí111n 1111 nou puhlil'o 11111 1k 1civi11dic:iç:íoda VL:nbd~ objetiva tlo!-1
fatos por parte do público-leitor.
relatório dt: 16 páginas ~obre o pmhlema. cm que se recc•nhcria nao ~i::rma,~ -.111,licnll! "d,zc, qui.:
:i cxen1pln do m·o11tecid1111:J
Argentina durante a Guerra das Malvinas. O
1111,,0 trabalho rc,ponlk- por rHSs. No ,1111[,icntc ela mulr.1 u11111l, 11;H1 dur ll''Pº't.,, 1· d,111m11" 11111 ;s,1
,·r,·diliilid.idc ·•. 1>.111c~p11,li1\ 1111plil·:i11a prn1 li'. 1que 1·d11111 \, ~ L , q hll" 11~ , 1,111 1 11111
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1{11111,1· li 11
1 1111
entusiasmo popular. estimulado por urna febre anti-imperialista que se p.1111a
é a mesma cm torno da qual discorrem os filósofos, algo scmelhan-
estendeu ü imprensa. gerava ilusões de onipotcncia nacional. alimentadas li' ,1 verdade na filosofia husserliana. definida como "una. idêntica a si
basicamente pela mídia. Diz Sarlo: ··Pela primeira vez. milhôcs de argcn- 111l·,mo.quaisquer que scpm os seres que a percebam: homens. monstros.
tinos víamos imagens do Atlàntico Sul onde navegavam. sob nossa bandei- 111110sou deuses" (p. 84). Certamente sim. se a pergunta é dirigida ~1cor-
ra, barcos de guerra em forrnaçáo de ataque. Cl'.US patagônicos sulcados poral:ão jornalística. que tem um comprnmisso histórico com o dcsoculta-
por aviões em voos rasantes. contingentes de :--oklados estacionados nas 111i:-11to
pLíblico dos fatos. portanto, com uma espécie de verdade pública.
hases cobertas dt: porta-aviões. e explosões de bombas disparadas por i,uscetívcl de c.xcrct:r efeitos político-sociais.
compatriotas e contra clcs".u. A rendiçáo de Puerto Stanley - o aconteci- h1trctanto. na televisão ou na rede cibernética. principalmente. sem a
mento concreto da derrota argentina - jogou por terra semanas de nntícias f,1rantia de um jogo correto das fontes, é e.ida vez mais difícil separar o
falsas. do real ou o wrdadciro
1111:t"imírio do fabo. Tradicionalmente, para con-
1;,

Mas toda esta questão. que parece c:-.:cepcional cm '>Ua incidência no t11111ar
os riscos da enunciação ( como na perspectiva dt: Blanclwt ). por-
cotidiano, vem-se tornando cada ve1. mais complexa com o desenvolvi- os riscos de deriva da narrativa
1,11110. para o imaginário. a micronarrativa
mento da infonnaçüo jornalística nas redes eletrônicas, onde é sempre ,ulcquada -seja a notícia cm suas dimensücs mais reduzidas ou no forma-
possível introdll7ir um novo material informativo. cuja fonte.: costuma ser 111 .impliado conhecido como repoI1age111-privilegia a instflncia do enun-
a impressüo ou a opiniüo do prôprio autor da matéria, quando não a dc- \.'i.ido. dele fozendl1 a n:prcscntaçüo dc um fato preexistente. Igualmente,
sinformaçüo deliberada. Tornou-se mundialmenh: conhecido. por oca- por ,cr "caso de fato"', a micmnarrativa produz um conhecimento situado
sião da primeira Guerra do Golfo, o episódio da ave cnbala de petróleo, ,1 meio caminho entre o .1e11so
co111tm1e o conhecimento sistemático.
exihido pela tckvisào como exemplo das consequências da invasão ira- Senso comum 1:um nome para o conhecimento daquilo que os gregos
quiana do Kuwait. Tratava-se, na verdade. de manipulação informativa: a l h,1mavam de doxa, i..,to1:uma expt:riência da realidade limitada à sensibili-
ave atingida era verdadeira, mas provinha do Alasca, suja de óleo derra- d:Hk, ús notas acidentais contingcntes e variáveis. às rcprcsentaçôcs sociais
mado pelo navio "Exon Vuldez··. Este tipo de manipulaçüo é, aliás. corri- q11creduzem a complexidade factual a imagens de hícil trf111sitocnmunica-
queiro: na última semana de maio de 2007, quando o presidente venezue- t1vo traduzida~ cm opiniiiu. É o tipo de conhecimento posto em suspeiçfw
lano I lugo Chávc, cancelou a rcnovaçüo da licença de f uncionamcnto da pela doutrina platônica das ideias, por estar confina<lo na t:sfera do visível e
Radio Caracas Tekvisión (RCTV), a emissora noticiosa CNN mostrava 1111ediato,do topos horatos. A liçf10 implícita do jornalismo. entretanto. é
na Espanha imagens de manifestaçôcs de proll:sto contra u ato, !->uposta- 11110:-.L'pmler fazer pouco caso do senso comum. por ser 1.:leestabilizador da
mente cm Caracas. Tratava-se mesmo Jc um protesto L'm Cancún (Méxi- l'n11sciência e mobilizador do pcrtencimento a comunidade.
co) contra o assassinato <le um jornalista naquela cidade. Por nutro lado. o conhecimento sistemático (metódico. objetivo. dcs-
Pode-se levantar uma dúvida: será que detalhes dessa natureza. essas v111c1dadodos valores. etc.) diz respeito ~1ciência. E, como disse o l'ísico
manipulaçôes-deliberadas ou nüo -dos fatos, realmente têm alguma im- Rnlicrt <>ppl:nllL'imcr, "ciência é senso incomum•·. Uma maneira célebre
portftncia para a questão da n::rdade'? Certamente mio, se a ··verdade'' cm de expfü:ai c-;sc tipo dt: conhecimento é a ck Karl Popper. que põe a "fal-
•,1rahílidadc" 110 centro de seu pensamento sobre a dctcrminaçüo do fato
<.1r1111ricn teoria torn:1-Sl' cit•11tífica se é falsific;ível, isto é. se
A-;sirn, u111:1
.IJ.S1\l{l()II ÂVt1llllll\crsalq11c1<1m •.1p:1111d,, 1 1n:l\ll)R/\l·S I• l,1111l,atrr,•111111•11H (J,;1111\;
1,d11.,1, 11111111111111.t,,~Ili 111•.c 1{111íll' l,111c1111 lku,ul, )IKJ I I' 1 1 1 pll'Vl' ,1possihllida1k d1.·L~xpc11l'.-11cirn,
c,1p:lll.:s de deslllellti 111.lst,, sera,
pelo método hipotético-dedutivo, que permite a formulação de hipóteses ;, 1ornal e seu leitor, figura a cláusula de que o discurso do jornalista deva
e a concepção de cxperiências capazes de falsificá-las. Em outros termos, ,cr crível para que o público lhe outorgue o reconhecimento da verdade.
o que se pf'le cm jogo nesse conhecimento sistemático ou científico é a 1 ,sa credibilidade não nasce simplesmente de uma lógica do enunciado,

possibilidade de validaçüo empírica dos resultados obtidos. Nada disso L' -.im de
uma hegemonia da enunciação, o que pressupôc uma luta ou um
pode ser feito evidentemente com o senso comum, nem com um saber L"mhatc dos enunciados, de acordo com a variedade dos atores jornalísti-
vinculado a valores, a exemplo do jornalismo, que não dispõe, como a ros e cxtrajornalísticos no acontecimento.
ciência, de uma unidade de contextos capaz de fundamentar enunciados Tome-se como exemplo o acidente aeronáutico ( o maior ocorrido até
verdadeiros. e11tão cm toda a América do Sul) que. cm julho de 2007, matou duzentas
Apesar de tudo, cm sua prática profissional e cm seus eventuais posi- pessoas no aeroporto de Congonhas, em Sán Paulo. O fato bruto do aci-
cionamentos doutrinários. os jornalistas costumam apoiar-se na presun- dtnte é incontcstúvel. mas a "verdade pública·· do acontecimento - a de-
ção de que expressam a verdade do cotidiano ou da vida social imediata. lerminação de sua causa - oscilava entre as condiçôcs precárias da pista
"'Verdade" é então entendida do modo mais familiar ao senso comum, di.:pouso ( o que responsabilizaria indiretamente o Estado), os problemas
que é a noçáo da correspondência do enunciado aos fatos do mundo: "'Sé ll:rnicos da aeronave e uma suposta imperícia do piloto. Por isto, no pri-
verdadeiro se S corresponde a um fato". Assim, a notícia "homem mor- lllL'iromomento, assim como nas semanas scguintcs à ocorr0ncia, cra hai-
deu o cachorro" é verdadeira se um homem efelivamentc mordeu um ca- ,a a taxa de, credibilidade das notícias, a despeito de sua multiplicaçüo em
chorro. Os lógicos e os filósofos da linguagem mio se cansam de demons- suportes informativos diversos. Pelo menos para os círculos técnicos.
trar que a noção "correspondcntista ·· não funciona em muitos casos. Mas como se infere da manifestação pública de um piloto e especialista cm as-
a partir deles próprios se pode salvar para o jornalismo urna definição de ver- suntos aeronáuticos: "'Tudo o que cu pude saber do acidente foi através
dade, desde que vinculada ao humano: "[tais teorias! têm o mérito de rela- da internet e de noticiários da TV, ou seja, a credibilidade dessas informa-
cionar o conceito de verdade aos interesses humanos, como linguagem, çocs 0 próxima de zero''.
crença, pensamento e ação intencional, e essas conexões é que tornam a ver- Evidentemente, premida pelo tempo veloz na produçüo diária da no-
dade a chave de como a menk apreende o mundo",i 1•
11ci;1,a mídia não pode deter-se cm questionamentos mais longos sobre
Na realidade, desde o antigo grego. existe o que se pode chamar de ludo o estatuto de um fato dessa natureza. O especialista não desconhe-
"verdade do necessário" (pertencente à lógica, à ciência) e "verdade do cia isto. mas sua era de que. ao cabo de alguns meses e do exame dos dis-
verossímil" (pertencente à retórica). Diferentemente da primeira - para positivos lécnicos da aeronave acidentada, sobreviesse a informa<;ão cor-
a qual a verdade do enunciado independe de quem a enuncia-, a segunda reia. Num caso desses, porém, é provável que causas múltiplas, com o
inclui o sujeito da enunciação, isto é, aquele que diz terem sua própria p:t1ll)de, fundo de um fato de crise de organização do sistema aéreo, tor-
fala uma conformidade com a verdade, portanto, uma verossimilhança. 111.·111indecidível a questão da verdade. Esta acaba se estabelecendo, en-
' Evidentemente, a ideologia do campo profissional procura sempre fazer l1l'l;111tn,pelo exercício de uma hegemonia da enunciação crível que tem
passar a ideia de que a verdade do jornalismo pertence ao enunciado, ao :1 fre111c
o siste,ma informativo.
invés da enunciação. A realidade, porém. é que, no pal'to implícito entre A cn·dihi/i,lod1· junto ao público leitor comum sustenta, portanto, o
l'01thl·ci111l!lllojornalístico. 11:io com a garantia da VL:rdadc lúgica. e sim
.1-4.1>/\VII >S<lN, 1>./ 11w111110/11,•a ,,•1tl11d,·js.11 1J111111,111,1, '00' I' 'li ru111 :i 1.•1111çm1da 1·,·rf1c1tl"'l1·,l'11tc11didat:oino vi:ros-.illlilhança 011 como
r
um apego, uma inclinaçüo, para a verdade consensualmente estabelecida l ·-.se vínculo provém de uma perspectiva filosófica e social. sem a qual
cm torno do fato - uma verdade ''prática", portanto, referente à ação hu- 1111, -,e fa7história. Claro, as fontes documentais constituem a base neccs-
mana llQ,,_t;;spaç.o
social. É uma ··verdade" sujeita a desconfianças, como a 111a,ma-; os fatos não brotam diretamente delas, e sim de seu cnquadra-
que Balzac manifestou cm palavras hoje clássicas: ''Para o jornalista, tudo 111llllt1 no sistema teórico do historiador, que evidentemente pertence ao
9 que é prov,ível é verda<lci-ro~.1.. credihilidadc decone muito provavel- j, 111popresente. Tradicionalmente, o estudo da história tem o passado
mente do lugar privilegiado que o jornalista ocupa como mediador entre , nmo objeto, mas à luz de uma inteligência do presente que se empenha
? cena do acontecimento e a sociedade global: o lugar da testemunha. , 111l'orrclacionar causal e finalisticamentc eventos isolados. O discurso
"Ser kskmunha é assistir a um acontecimento, ter cm consequência um 111111,d1stico, por sua vez, oblitera essa perspectiva teórica cm favor de
acesso direto, imediato ao que se está produzindo. O fato de estar presen- csp~cie <le irradiaçào realista do acontecimento, cm que este se
11111.1
te 110 lugar confere ü testemunha direitos morais e <lireitos à comunica- fragmentário, sem o fio da continuidade típico da história, mas
1p11.~scnta
3
ção " 5. Histor ( de onde deriva a palavra história) é como o antigo grego p1c1cnsamentc colado a um fato. Este, e não a totalidade histórica, é o ho-
designava a testemunha, aquele que, por ter visto o acontecimt.:nto, inves- 11,1111tc
semiótico do acontecimento jornalbtico.
tia-se do direito de narrar.
I ·. preciso kvar cm conta, entretanto. que os historiadores de hoje
Urn conhecimento não sistemático ou náo científico, sem conexões ló- iln1•111mão cada vez mais das grandes sínteses históricas em favor dos frag-
gicas de conceitos e expressões, pode comportar graus diferentes de apro- lllL'tltosou dm. detalhes, cm que comparece tanto o passado quanto o pre-
f une.lamento de um fato. É bem o caso do jornalismo. São vários os níveis 1 111e.Em determinados casos, não é cômoda a scparaçüo entre o trabalho
de significaçào possíveis de um fato: a escolha do nível superficial ou do d11111,;toriadore do jornalista, como se evidencia na obra Ascensüo e queda
profun~o depende do sistema ele produção de conhecimento a ele perti- 1lu f'crcciro Reich ( 1960), do jornalista
norlc-americano William L. Shircr.
nente. E útil aqui a comparação com o saber - sistemático - da história dita 11111cspondentc na Alemanha durante o regime nazista Emhora se dividam
de "longa duração", nos termos de um grande historiador contemporáneo, 1~opiniôes acadêmicas sobre a importância científica do trabalho - que é
Braudel. Ele propõe uma distinção da história cm três planos, que equiva- ,lt tato uma reportagem de mais de mil páginas, baseada cm experiências
lem a três diferentes temporalidades: no primeiro, a ·•história quase imó- 111 <;Soais e cm valiosas fontes documentais-, o livro tornou-se leitura obri-
vel" ( estrutura) : no segundo, "história lentamente ritmada" ( conjuntura) 1,,,i, ,ri:1para jornalistas e historiadores do mundo ocidental desde a época
e, no terceiro, ''história das dimensôes do indivíduo" (acontecimento)'". Os t1l i.,1ia puhlicaçüo. Bem escrito, nem sempre imparcial, o rdato oscila entre
acontecimentos, assim significados corno testemunhos dos movimentos 1 11,11rat iva jornalística e o panorama historiográfico.
profundos da história. evidenciam o vínculo entre estrutura e conjuntura,
1h' um modo geral. o sistema da informaçüo procura definir-se ou
contribuindo para a cornposiçüo de um todo narrativo que dá conta de um
1w,11ficar-sc por uma ideologia da transparência absoluta entre o cnun-
tempo que nós não fazemos ou um tempo em que não estamos.
' ,.ido e n fato. como se a linguagem funcionasse ao modo de uma pintu-
1 1 l l'.ilh,ta do mundo. Quando é o caso de um assunto controverso, a
p1,tlica profissional manda que se ·'ouçam todos os lados··, isto é, que se
35.SC/\NNl'L,I' üuclkr,·ali1cdu111alhcur"'ln:l>m,11,·1"/1'/',l11d101i\11,I 11111111
.i1•,.f'llo1.p 1-l
, ,1111pill:111 o 111:iiorní1m1.'.ro possível de vcrsües. Presume-se que cada
J(,.Cf BRAlJl>l·L. I' / ,1,..,,11,,(, /'/11/JJ•t••·II
11 .\ft',//1,·rr11111·,·,·1/,111n111f,,111c1/11cn,111t•r1111/ 1'1 "·
11111,1 d,.:las relativize o poder da interprctaçüo írnica e. assim, se possa
1
,-\1111,111d
<\ ,iin 1'ISO 1hq•,11 p111cu11se11soi111plícit11:t 11111:1 verd:1dc 1111, mais prccisa,ncnll:, iL
\!eracidadejornalística.Esta última. por sua vez. estú atrelada ao tempo A prnp6sito do exemplo da guerra do Iraque, um bom f111gulo de apre-
em que estamos. aquele dos acontecimentos. que náo toca o plano ela es- l'll'.'-àomais densa da con,iuntura é o exame da mitologia do ··excepciona-
tr.utura. mas permite "densificar'' a informação por via da conjuntura. li.,mo americano··. responsável pela sustentação de vários mov1mcntos
Normalmente. quando se fala em aprofundamento da informação, est.í palriôticos no século XIX, assim como pela retomada, no século XX. da
se fazendo referência ao desenvolvimento cognitivo da conjuntura. Ou- "doutrina wiboniana" isto 0, a doutrina pregada pelo presidente Woo-
tros sistemas de interpretação de fatos - por cxempk). a reflexão acadê- drow Wilson a partir de 1914. segundo a qual o progresso do mundo dc\'e-
mica - demandam um tempo mais knto de maturaçüo das verstlcs. que na ter por base os princípios da civilização americana, o que justificaria as
os levam a aproximar-se das estruturas. al.'ües dos Estados Unidos no sentido da ampliaçüo de suas f runteiras.
Ainda na primeira metade dn século passado. o jornafo,ta e sociôlogt, 1\ta ideologia tem ',Cf\'ldo de fio condutor ü política externa dos Estados
noru.:-americano Robert Ezra Park, mcmhro da Escola de Chicago. par- Unidos ao longo <lc "Lia história.
tindo tk uma distinção anteriormente feita pdo filôsofo pragmatista Wil- De fato. 14 anos antc!-i de Wilson. Theodore Roosevelt proclamava
liam James (k1wwledcgc of / knowlecfge ahoul). divisava dois tipos de co- q11e"a americanização do mundo é nosso destino'', enunciando assim a
nhecimento na notícia, a saber, acquaintance u·ith ("l'amiliaric.lade com'') "doutrina do destino manifesto·•, uma teologia da expansúo e uma estra-
e knowledge aho11t( "saber sobre"). distinguindo um do outrn pelo maior legia político-militar planetária. Manifc,tava-se aí uma linha de força his-
grau tk profundidadc 17 : o segundo i mais sistemático ou analítico. en- tl,rica cujos traços já são \'lsíveis nos ·'pais fundadores·• da naçüo nor-
quanto o primeiro é nf10-sistcrnático, fragmentário e comunitariamente ll.'•amcricana. a exemplo de David Ramsay que. cm 1778, também procla-
partilhado em maior extensáo. 111:iva em Um di.\'C111:w1:
·•Nós estabelecemo-. as hases de um novo império.
Como exemplo. vamos tomar a Guerra do Iraque. tal como tratada que permite aumcntar ainda mais as sua" vastas dimensões e dar felicida-
pela imprensa no começo deste sfruln. A "familiaridade com" por parte ,k a este vm,to continente. Agora é a nossa vez ele nm. impormos na face
do público leitor é propiciada pelas notícias curta, e L'Sparsas, que dão da terra e nos anais uomundo'', Produzia-se cntao um deslocamento. que
conta Lk in\'estida" militares, atentados terroristas. sequestros. pronuncia- implicava de fato uma inversüo de podl·r: a Inglatcrra começava a deixar
mentos políticos, etc. Por trás de to<la essa fragmentação informativa. há dl. rnnsiderada a naçüo mais poderosa do planeta, transferindo-se a sede
uma realidade histórica constante. que preside à política externa nor- do império para os Estados Unidos. com a concepçüo de rwnteira como
te-americana e que pode ,er jornalisticarncntc sistematizada por meio de ,tlgo movediço. elástico e in..,crito num plano divino.
1
um exame da conjuntura. de modo a constituir um "saber sobre''. Este sa- 1 ◄.sse
pano de fundo conjuntural que, devidamente sistematizado,
densa. qu~ se
iber pode ser tkfinido como u~,a modalid~c.lc~e _i11fom1_arii~ pndc constituir um "saber sobre" aspectos importantes da coexistência
entende como uma adcquaçao do conteudo mformat1vo as expectativas 1111ernacinnal(e ajuda a explicar o --publicamente inexplicac.lo" no ataque
de alguma formação cultural- além da pura e simples estridência do fato p1cvenlivo do presidente George Bush ao Iraque cm 2003) nào é. claro,
1
- por parte de determinados estralos do púhlico-leitor. 1·-.1r.111ho:1pr:ítica jornalística. Veja-se. por exemplo, a coluna em que um
111111:ihsta 'N cumcnla a recleiç.io de Bush com uma comparação sistemáti-
1'.i c11l1c a "do11t rina wilsoni:111:1"e a politica ele supremacia econômica e

37. CI P1\RK. I{ I· A 11otk111c111n11forma ú" "unhcl'i111l'11h•· d11trnilw


11m l 1pll11l,i-11 1111d111•111
l•llltlllll 111,\II INlll lt<,,( S [lllf,) '1t1md1 ( /l/l/ll/ll<tl\11,,,I, U1 , '1111'111l,1 ( ull11\ l 1171 Ili, ~f, 1v,1l l'l ll 11 1 t r J 1,/11/•oW•'IIJ,201111
militar dos neoconservadores norte-americanos. É verdade que aí se trata No entanto, são vários os editores e os analistas acadêmicos que ates-
ck "jornalismo opinativo". mas não há grande impedimento editorial. no tam a especificidade e a importância do conhecimento de fato na infor-
bojo das transformações atuais da imprensa. para que uma notícia seja maçao jornalística. Um exemplo no àmbito profissional é dado por Ruy
complementada por um texto gerador de um conhecimento mais sislemá- Mc..,quila-dirt:lor do jornal O Estado de S. Paulo e, portanto. herdeiro de
1il"o e, ainda assim. específico do jornalismo. uma das mais tradicionais empresas jornalísticas do Brasil, cujas origens
O que estamos chamando de ··conhecimento sistemático" é familiar à remontam ao Império - para quem "o destino da imprensa depende hoje
rctárica. pn:scntc como dispositivo rnnernúnico na técnica do lide e incren- mais Ja sua capacidade de completar a informação··w. Entenda-se a de-
lc, enquanto tccnolvgia de diw-urw. ú pntlica _jornalística como um todo. claração como um argumento no sentido de que o jornalismo. frente à
1)aí, a atualidade dessa antiga técnica grega de persuasiio, sistematicamen- profusfio das fontes informativa!'> nas novas tecnologias da comunicação.
te presente nas formas motkrnas do discurso social. tais como o jornalis- deve orientar-se pela produção Jc um conhecimento <.k fato mais sisle-
llH), a publicidade e as variadas expressôcs audiovisuais. Ora considerada mútico. E isto, para alguns jornalistas de reconhecida experiência no
como técnica argumentativa, ora como análise estilística, a retórica é obje- 111cmprofissional. ainda seria apanúgio da imprensa escrita, como susten-
to de interesse tcórico por parte de acadêmicos. norteados pela ideia Je ta Dines: "Essa lenga-lenga apocalíptica do fim da imprensa e sua transfe-
uma certa racionalidade do sensível. As abordagens contemporâneas - a rência imediata parn a virtualidade da internet revela um dcsconbeci-
"Escola de Bruxelas'', por exemplo. onde pontifica Chaim Perelman - não 111entodos desdobramentos e acomodaçües do processo histtÍrico. Con-
prescindem. entretanto. do ponto de partida aristotélico, cujo sistema \t:m àqueles 4uc nüo estão interessados cm tkscnvolvcr os fundamentos
apresenta uma imagem quadripartite da retórica: invenção, disposição, onginais do jornalismo - mantidos rnm muita vitalidadi.: e criatividac.k
l'lm:uçüo e pronunciação do discurso ou ação. Os meios postos ao alcance 1ias mais importantes publicaçôes do munJo. O jornalbmo impresso 11,10
do rccl< w ( o orador) para acionar esse esquema são o ethos ou caráter do su- foi afetado pelas diferença!'> idiomáticas e culturais, seus traços essenciais
jeito da fala. o luROSou argumentação e o pathos ou emoção do ouvinte. p,idcm ser identificados no:-, quatro cantos do mundo. testados diaria-
Ontem como hoje. os objetivos imediatos da retórica podem ser resu- mente na'-imais dramáticas circunstàncias''-111•
midos como discutir ideias ou ensinar (docerc. cm latim). provocaremo- E forçoso tamhém levar cm conta iniciativas atípicas no campo das
,uc.:s(co11101·er<')e deleitar (delectare). A imprensa sempre se pautou por puhlicaçües mensais, no sentido de dedicar mais tempo i1apuraçüo e n:-
L'Sll'snhjetivos. mas alternando os pesos de cada um deles. segundo os Jaçüo do conteúdo jornalístico, com vistas ao aprofundamento dos fatos.
prnpnsitos (comerciais ou políticos) do jornal. A imprensa de debates L 111 exemplo é a rcvü,ta Piauí. criada (2006) pelo documentarista João
at ribu1 um peso cl<.!vacloà discussão ele ideias ( de modo diferente <la esco- \foreira Salles. Concebida na contramao da oferta de notícias de última
la, onde o ensino formal tem a prevalência). enquanto que a imprensa po- hum ou de assuntos Sl!gmcntados, a revista dispõe-se como um espaço
p11larcsca acentua os objetivos de comover e deleitar. Com o advento da p,11a n:purtagcns longas, ensaios. perfis e. mesmo, textos ficcionais. A
1111dia clclrtmica e sua conexão mais estreita com a organização capitalis- possihilidacl~ de uma boa narrativa apresenta-se como condição editorial
1:i llu 111en:ado, um peso cxtraordinürio é também d:,do :1produção de h.t:;ica. E1nhora ressalve ser importante uma imprensa que "grite" (mctá-
L'll1t1ç:10 e de pr:w.!r junto ao público consumidor. Ncsft' 1,::i-.,,,diminui a
s1s1c1natin1ç:10cognitiva da in t'orrnaçao, e n j(,rnalis11111 ,cn11otica-
1>i1d11:1
\Ci,<J <,'lol•o,d(• 1,1UV'OO.~
a prod11ç.it1 de e11trc1e11i11u:11111.
111l-'llll.' <.0111
10,l>INI !', \ 111•.1H 1)h,i.1,.1t1111udJ l111prl'm,,,•li2 ll~-11"''007
fora para a urgência no "anúncio" noticioso). Salles tomou o rumo da in- para o âmbito das discussões públicas a suposta irnportüncia atribuída ü
formaçáo supostamente capaz de surpreender cognitivamente o leitor e mformação, por melhor que fosse a sua qualidade. Para eles. "a nossa
não apenas reconfortá-lo factualmenle. "Cu não queria uma revista para própria busca de informações confiáveis é guiada pelas questões que sur-
ficar gritando, urrando", argumentou. ~crn ao se discutir determinados acontecimentos. Só quando submctc-
A postulação de um conhecimento sistemático, presumidamenk ca- 11H>s
ao debate nossas pref crC:ncias e projetos~ que chegamos a compre-
paz de transcender a mera factualidade. não é uma posição incrente ape- cndcr o que sabemos e o que ainda temos que aprender.[ ... ] Só sabemos
nas a membros da corporaçfto jornalística. Ocorre-nos pensar em algo 1ealmenlc o que pensamos quando nos explicamos aos outros"➔.!.

como o "jormllismo transcendental". mcncinnado pelo francês Bernard Dewey, cm particular. respondia no seu livro The P11hlicmui its Pro-
I Icnri Lévy. misto de filósofo e jornalista. possivelmente inspirado pela hll'ms ( 1927) ü argumentação do famoso jornalista Walter Lippmann no
suspeita de que os fatos não substituem a inteligência: ou então. na ··re-. 'il'lltido de que a democracia não intcn~ssaria essencialmente o debate
portagem de ideias•·. sugerida pelo pensador M ichel Foucault a propósito publico, enquanto espaço de circulaçüo de meras opiniôcs, e sim o conhe-
de assuntos normalmcnk f1margem da pauta midiática. Diferentemente l'i1m:nto mctúdicn e especializado a ser transmitido por um jornalismo de
da notícia, a reportagem pode c.kscnvolver-se cm outros suportes técni- qualiuadc, guiado pelo ideal de objetividade profissional. Preocupado
cos. além do jornal. com a vinculação comunitária, Dewcy via. entretanto, a imprensa como
Mesmo a notícia pode ser ampliada cm termos reflexivos. Vink e cin- ·:,gente promotor de discussôes da cultura·· e nüo como mera transmisso-
co anos atrás, a Comis;süo Internacional para o Estudo cios Problemas da 1:i de informações que espelhassem a verdade como uma côpia da rea~
ComunicaçÜt\, instituída no flmbito da Unesco, já recomendava cm seu dadc. ··oconhecimento necessário a qualquer comunidade - seja de pcs-
famoso Relatório MacBride que "nos países cm desenvolvimento. consi- q11isadorescientíficos ou políticos-emergia apenas do •diálogo' e do ato
de 'dar e receber'" 1'.
dera-se necessário ampliar o conceito de notícia. com objetivo que englo-
ba não sô os ·~contecimentos', mas também os processos inteiros"~ 1• Para Esse tipo de imprensa foi deixado de lado pela imprensa moderna -
o grupo de intelectuais responsável pelo texto. uma !\ova Ordem lnfor- 111,se organizar cm fim, do século XIX como um campo de produção in-
maLiva Mundial - com uma concepção não cstritamen te c0mercial do d11strial-capitali'ita da cultura -. que pôs cm primeiro plano a tarefa de
produto informativo. capaz de eliminar as desigualdades nos fluxos inter- apenas informar o público, assim privilegiando a objctivic.lac.lc profissio-
nacionais da informaçào, <..lesuprimir os efeitos negativos dos monop61ios nal d.is técnicas de texto e o descnvolvimentn dos prnccssos mecânicos e
e concentrações excessivas. entre outros efeitos - daria margem à produ- lklrônicos de reprodução das mensagens. Em seus momentos mais ''cs-
çflo de uma •'imagem mais completa e mais equitativa do mundo". políti- ll,ucL:idos"da contemporaneidade. o jornalismo sempre aponta apenas
ca e culturalmente benéfica aos países cm desenvolvimento. p:11:t o rcfinamen to progressivo dos textos e das imagens, em resposta a
São divergentes, entretanto, as variadas posições sobre a natureza do 11111:i'-Uposta demanda do público leitor.
conhecimento jornalístico. Lasch chama a atenção para n fato <.k que os
pragmatistas John Dcwey e William James (deste último, nmwj:í vi111os,
valeu~sc Robert Park para a sua conhecida classific:içao) deslocavam
U.1 \')( 11, < A 1d1,•l11u, 1/1111/11,'11'1111111~110 ,/11d,•mp,·ntr-i,1.Rio 1k' .lancir,1: hlinurn. l 111J5,
p 1 /}
11,lh1d I' '110
Mas a predicação de Dewcy é atual para a imprensa que se intitula O aprofundamento <lo fato. que seria cm princípio um requisito cen-
"comunitária". ainda que o produto .jornalístico, cm termos concretos. . tral para o desenvolvimento Je uma "imprensa de qualidade'', revela-se.
possa ser materialmente precário, devido à escassez técnica e econômica. :,,..,im. um horizonte importante para a chamada ··grande imprensa''. Um
Neste caso. entretanto. ganham hoje espaço acadêmico e prático a ideia L-.pccialista como o editor Ruy Mesquita diz hoje nüo acreditar em cstra-
de ''comunicação comunitária'' ou ele ••jornalismo cidadão", que pôc cm ll'gia..,para atrair jovem, leitores. :-.euuzidospela internet, uma vez que a agi-
segundo plano a informação periodizada cm favor de recortes factuais lidaJc da nova mídia supre a demanda de informaçüo imediata, restando
afinauos com os interesses de grupos humanos diferenciados, cm geral :10 jtHnal o diferencial da opiniüo aprofundada. De fato, este ponto de vis-

segmentos de classe economicamente suhaltcrna, no interior da socieda- t:1coincide com as a'.aliaçt>es correntes snbre o comportamento dos jo-
de global. A pauta editorial orienta-se, assim, na dircçüo de temas mais ,ens cm tndo o mundo - especialmente aqueles nasciuos no começo da
diretamente antenados com o "comum" daqueles que se reconhecem dccilda ele 1990-. profundamente afetado cm tcrnws de informaçüo pdo
como membros de um grupo específico e que eventualmente se autointi- ll'turso ü tríaue tccnolúgica da tcv0/cclular/intcrnct. Para o editor, cm
tulam "comunidade". vc, Jc buscar atingir a grande parcela uapopulaçüo por meio de granues
tiragens. o jornal dcwria firmar-se pel,i prestígio, advindo de um presu-
Num horizonte editorial menos precário, pode-se conceber essa "co-
111idopacto de leitura com as ·'camadas dirigentes Lia sociL'.dade''.
municação cívica'" jornais e revistas hcbdnmadários ou mensais, progra-
A sugestúo de um pacto simbólico entre "jornal de papel" e a elite
(l
mas de rádio ou televisão diários, sites na internet, etc. - como um jorna-
(11111a espécie de retorno ao modelo jornalístico oitocentista, quandoº"
lismo voltado mais para o fato do que para o acontecimento. Isto signifi-
diarios eram mais caros e lidos por uma camada social mais instrnída), re-
ca: mais uma sequência contextualizada tk eventos, capaz de revelar uma
11w11t~, a um momento da história da imprensa cm 4uc os jornais se , iam
dada configuraçào de forças (hegemônica ou contra-hcgemônica) na so-
~,inw J1spnsitivos de educaçao das massas nu de dcsen\'olvimento dn
ciedade, e menos a irrupçfw, temporalmente demarcada, de uma ocor-
1wnsamento político, por exemplo, no sentido de preparú-las para o rcgi-
rência. Naturalmente, algo dessa ordem pode ocorrer também na mídia
llll' liberal que se prenunciava desde fins do século XVIII. Vale lembrar
corporativa. Um exemplo: a chegada de uma delegação do Fundo Mone-
l lrpolito da Costa, fundador do Correio Braziliemc (primeiro jornal brasi-
tário Internacional ao país é um acontecimento, que pode ser editorial-
k iro. 1808). para quem a cducaçüo do espaço público pela imprensa ga-
mente tratado comofato se o primeiro plano do assunto for ocupado pela
1.intina o bom func1011amcnto dos govcrnos 1·1. Tratava-se de uma publica-
contcxtualizai;ão das relações entre aquele organismo internacional e as
~ ,n, trancamentc doutrinária, com opiniücs independente:-.. razüo pela
autoridades financeiras nacionais, deixando-se transparecer o jogo histó-
rico das forças que atuam por trás da simples visita de uma delegação do
41 1 ,~l ,: lfllalrncnt,~ o •·spírito ,k' j,,rna1\ de a~iiaçfto polítu:a. a exemplo tk O 11uriciatl01
FMI. Suscitado pelo fato, o conceito de causalidade histórica que leva a
t 11-1;~ l!;."\11),10111al 1sa11d10,k onde pari iram a, dirdr11t:, i<lcol1\iica, - k,kralista,. Jc maior li-
uma retroprojcção temporal cm busca de causas para uma ocorrência 1 • i.1.,,1, .is pn,v111uas p,11,1 d Rcvoh1t./1t> Farrnuptlha ( 1Kl5- l 845 ), a mais longa da, in,urrci-;úc,
presente e a uma projeção para a frente, com vistas l1prcvisüo de consc 1 , -1l•'1r,1,1 01 am igu,1l111t·111c 1111t,1vci~ .,, .1t11,1çl1cs,k Jornais como C,mlf'Ílador lli11âro. Faml !'1111-
/1,111111 /)i,1r,o d, !'orlo. 1/rgli' e 0111ro~ na h11;1pela adoçao de uma Conslitu1,iío L.11:>cral no pais. A
quências-podcrá evidenciar a conexão, oculta na supcrfícic do aconteci-
11(1 1 l\',ll,10 M. 11pl1l,I ,1lClllC\1)1(1:10]Ili ll:11IC~p,rn,,1vclpela modcrniz,11,:aotccnica (graril"il C ICXlll-
mento rum e simpll's, entre agentes sociais difc-1c11ci.id11!-.,
i11cl11!-.ivc
o u
uli .J111111pK11~h1,,stl~1r,1 110, :in!ls ,k 111511O />11,,.,11<,1111w1111'>2X v,,.,v,,
!'Ih!'>).Sua 1.ri,,ç:10 ,1
pníprio leitnr do kxto. IJ" 1111" 1noh1t11u1,u1,1s J.1 ,\li.1111,1 1 1hl 1;d, 111t11·11 ,cnt" que tc11111n,maln,1111!0 t;c111li,1V:11R,"
Ili ('(llkl
qual era impresso em Londres (A Gazeta do Rio de Janeiro foi o primeiro a conheça ou não perceba claramente o seu alcance. Éo drama do pcrsona-
ser impresso no Brasil). gl'm (k Kafka cm O processo:a lei o aniquila, sem que ele saiba exatamen-
Esse modelo é hoje recorrente. quando cio pró-
analistas provindos te n porquê. A regra, não é algo de que necessariamente se partilha eco-
prio campo profissional juntam-se a estrategistas comerciais da indústria 11hcce, como num jogo qualquer. A lei é social. a regra é comunitária, ou
jornalística e a pesquisadores acadêmicos para se indagar sobre o futuro "CJ<l,mobiliza a consciência tanto cognitiva quanto sensivelmente. Assim.
dos jornais. A unanimidade quanto aos efeitos concorrenciais das novas 11a11se obedece à lei simpksmcnte por sua força socialmente coercitiva, e
mídias e do fluxo livre ou caótico de informação tem corno contrapartida •,im porque se partilha comunitariamcntc da regra de que não se deve vio-
o aparente consenso de que o antídoto para o veneno da crise estaria na l1r a norma jurídica.
qualidade da informaçüo, portanto, no aprofundamento da forma pró- O "singular" jornalístico mobiliza a aç:"iocoletiva. porque engendra a
pria de conhecimento jornalístico. ppss1bilidade de um "'dié.ilogo·' entre ki e regra, sociedade e comunidade.
Vem a propósito a hipótese formulada pelo jornalista Genro Filho no impessoal e particular. Mas se trata de uma opcraçün dü,cursiva, codificada
:--entido de que o jornalismo dispôe de uma forma própria de conhecimen- pela produção do jornal. A ocorr~ncia é interpretada em l"unçüo do código
to. construído a partir do que cada fato/fenômeno extraído da realidade que a transforma em acontecimento jnrnalístico, descontextualizando-se.
social tem Jc singular 1'. na filosofia hegeliana, singular. par-
Entenda-se: 1>i,Grossi: ··o processo infonnativo contribui para descontextualizar um
ticular e universal são momentos que constituem a realidade objetiva e o1contecimento. para destacar um acontecimento cio contexto cm que se
formam o concreto. O universal (a totalidade da vida) e o particular (por produziu e finalmente recontextualizú-lo nas formas informativas"~".
exemplo, cada homem determinado na diversidade dos seres humanos) Não se trata. portanto. de um mero singular. como descreve Genro Fi-
estfto contidos no singular, mas este último é o específico de urna classe lho com terminologia hegeliana, e sim de "singularizaçáo" (uma vez que i
(por exemplo. o membro destacado de um grupo). A notícia de um aci- de jornal mio é "reflexo" automütico de uma realidade singular), ou
1111111.:ia
dente de carro é singular, na medi<la cm que integra a "classe" dos aci- ,1.ja,a constmçiio de um singular pela interpretação de um grupo profissio-
1

dentes de automóvel, normalmente classificada corno uma ordem de 11,il, como acentuam as análises com,trutivistas do jornalismo .• Mas estas

acontccirrn:ntm, pelo sistema jornalístico. têm razão apenas parcial.jü que esquecem a diferença entre os fa•.
,111al1-;cs
Mas se trata de uma singularidade temporalmente marcada, num hrulns, objetos ela realidade
111s histórica indeterminada, e o acontccimenJ
1

--aqui e agora'' da existência cotidiana detiva e sensível. apreendida pelo h, 11,rnalbtico, que ocorre sempre depois dos fatos, isto é, quando se produ1;
código de construção do texto de jornal. O sensível é uma categoria im- 111r.il1alhologotécmco de determinação das circunstâncias-_ apuraçüo dos
portante para se entender essa npcraçào. uma vez que o local e o singular dd,ilhcs. realizaçüo de entrevistas. portanto, mobilização de parcelas do
induzem emocionalmente ü identificação do leitor com o acontecimento pulilico, que são também "atores" do acontecimento. Não raro, a determi-•
que, comunicado de forma apenas abstrata ou conceituai, poderia nfio 11i1ç:toele um fato se Jcve a avaliações de natureza ex1rc~fac1ual
(do tipo de
mobilizar a atenção pública. É algo semelhante à difl'rrnça entre a lei e a ,111.ili,csjundicas, políticas ou tecnológicas da situação em causa) e não a
regra: nüo há estado de direito sem lei, mas esta é se111pn: 11111:i ahs1r:içf10, 11111
"'-111g11l:,r"
supostamente inscrito no real-histórico.
uma forma va1ia ü qual o indivíduo ,kve se co111"01111:11,
111cs1110
que a <ks
li, ( tlU l\\l, l k~•.11111n;1nt111c·:
1 , l 111,11111,111,11w 1n :ipp1och111n 111cn ai moddi domin:1nti ln: ( o•
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11 H•llll,1 /\gii.·li l'JXI p 'H•I
É próprio da midiatização, entretanto. pautar a singularizaçúo do d,1., experiências) para serem cnfoixados no conceito de uma entidade
acontecimento pela atualidade. Atual. ddine Grangcr. é "esse aspecto racional e tclcologicamentc orientada no sentido do progresso.
111111,>r.
do real qu<.:se nos apresenta como se impondo ü nossa experiência sensí- I' 11a Hegel. o grande inventor de um sistema de pensamento cm que a
vel, ou ao nosso pensamento do mundo. como existência singular hic et desponta como motor do mundo, a razão opera de conformidade
111-;toria
nllnc••.n. A prcocupaçüo com a atuali<lade é um fenúmenu moderno. De w111 um fim. apreensível pelo conceito. Neste, a verdaue encontra o ele-

fato, é próprio da Modernidadt: m10apenas a transformaçào da experiên- de sua existência, cm meio a um novo mundo feito de transiçôes e
111c11lo
cia espacial por meio das técnicas de medição (métricas. topográficas, p,1ss:1gcns.onde a raLão é imanente ao-; acontecimentos cm si mesmos.
cartogníficas). mas tamb0m a reorganização da experiência temporal, 1)as ideias de "tempo novo" e de aceleração dos tempos históricos. in-
agora regida pela cronologia do relógio. orientada cm tcm10s <lescquen- 1 l11s1vepela revoluçáo. chega-se ao conceito do que a modernidade hegc-
cialidade, assim cDmo Lk circularidade, quando o "atual'' promove um ll,111adesigna como "atual". essa mesma temporalidack em que se vive
curto-circuito entre passado e prcscnk. 1q11i e agora. Como explica Habcrrnas, "a atualidade é entendida como
Na sociedade tradicional do Ocidente, monoteísta e histórica. era um I11,u,/>assagempara o 110\'U:ela vive na consciência da aceleração de cvcn-
grande acontecimento funda<lor que iluminava e dava unidade ao mun- 111shistóricos e na expectativa das diferenças do futuro. Por isso. o n:iní-
do. Por exemplo, a ideia c.k uma "nova era'', que serviria para assinalar o , l<l cpocal.que marca a ruptura do mundo moderno com o mundo da lda-
advento dos novos tempos, posteriores ao Juízo Final. Mas já entre os 1 IL' Mé<lia cristü e com n mundo antigo, repete-se. de certo modo, em
gregos. a historiografia ou tcchné narrativa. inaugurada por Heródoto, re- qu.rlqucr momento atual porta<lor de algo novo. A atualidad~. enquanto
latava acontecimentos passados no tempo do mundo. embora perpassa- 1ç111,v:rção continua<la. pacniza a ruptura com o passado''-!\ Na prática
dos pelo mito, e não apenas na temporalidade mítica. característica da 10111al1stica, o valor do novo fctichiza-sc como noâdadc cm gradaçôes di-
epopeia. Articulando narrativamente passado e futuro, as histórias de fei- k1 t't1tcs:maior o potencial de atualidade do novo/novidade, maior a pos-
tos exemplares eram transmitidas para eternizar na memória os grandes rliiliclack sua inscrição como acontecimento pertinente an nos.so cs.pa-
fcitos humanos. mas principalmente para fixar, pela sugestão <la continui- , n lt.:mpo cotidiano.
dade dos modos de vida, a ideia de humanidade como natureza. Os indiví- Na rL·ddinição da temporalidade se encontram efetivamente as cha-
dum, deveriam pautar as suas con<lutas pelos valores inscritos na exem- \\'S para (l entendimento de toda mutação cultural. f~cada vez mais pró-
plaridade das açôes heroicas do passado. Essa pedagogia da grandeza hu- p, 11> d:, Modernidade ocidental tomar n tempo como "'fonte para a sol u-
mana constituía o paradigma da historiografia na Antiguidade. i ,n dos problemas'', instituindo a atualidade como ponto de intersecção
No momento cm que se concebe a hipótese de um futuro diferente cio l llll'L' o
antigo e o novo. Na contemporaneidade, multiplicam-se e mistu-
passado, dá-se o rompimento com o mundo da tradição e das ordens ell.:r- 1,1111
se us grandes e pequenos acontecimentos, sempre em busca de al-
nizadas. Desde o Iluminismo, a história afirma-se como aspiração a uma csclare~imcnto
1111111 ou de uma unidade social explicativa no cotidiano da
unidade racional, distinta das histórias e.xemplares narradas, trahallrnda , 11l.1d,111i:1,
daí o prestígio dessa pretensa unidade dos microaspcctos sin-
pelos historiadores e pelos filósofos. Os acontecimentos deixam ck Sl'I' i1.rdos clu fato. denominada
1·,111.11 "notícia". Por meio do jornalismo. a an-
pensados no quadro de uma desordem ontolt'igk:a (a IH..:tcrogcne1Cl:11k l 11•.ipl11r:d1dadcde histôrias, cm geral tram,mitidas pela figura tradicional

Ili, li \Ili 1(1\1 \\, 1/1111,1•111111/1111,!111,1111111 11l11t1i,. 111~ 'l.1ill'i111lo ll'111p{lll1,1silc11n,,'Olh,p 1


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do narra<.lor, n;edita-sl! na singularização dos fatos noticiosos. mas agora ll produzida e compreendida nas suas relações de causalidade e condicio-
para mobilizar a consciência subjetiva dos indivíduo'.'\.itkolngicamente 11.i111cntos
históricos~ 1•

interpelados 11/ singuli na Modernidade. i\ compkxidadc do aluai é uma noção-chave: a ideia d<.!jornalismo
A matéria-prima jornalí-.;tica dessa singularização é ú falo bruto ou a uma forma de conhecimento prc'>prio. vC1ltadn para a atualidade do
1 1 11110

ue
ocorrência ( pon Lo parl ida <.loacon tt..:cime n to). sensorial me ntc percep- loto. ,cria capaz de revelar a especificidade de<.,sa prática profissional. O
tível e n:al, totalidade do que é dad() à intuição empírica. O singular re- pll'<i,uposto desenvolvido por Genro Filho (o jornalismo como visihiliza-
percute até o acontecimento. de modo amí.logo ao que ocorre nas regiões 1,10púhlica de um singular) direciona a forma da estrutura do SL'llprodu-
científicas da microfísica e da macrofísica. onde "os acontecimentos [... J, to húsico, a notícia. Por meio dela. a informação individualiza a situação
as coisas que se sucedem no universo se podem melhor comparar a um con- 1111lato apresentado. procurando cm -;eg:uida, quando for o caso, demom,-
tinuo jogo de dados. uc
modo que cada passo Jo acL1ntccl'r e como um 11.ir o quanto de universal existe. contextualizando-a na realidade circun-
novo lançamento do dado "·14_Concordemos que essa modalidade de co- 1l.111te(espacialidade) e pontuando-a com a realidadt: histórica que a
nhecimento não está na esfera da ciência, nem na superficialidade do sen- l1i11-,titui
(temporalidade).
so comum. onuc muito se Lenta situá-lo. nem mesmo em outras formas de I· nfto parte apenas do prôprio campo profissional essa reivindicação
conhecimento como o religioso. filosófico e ate o ilkológico. O conheci- ,ll 11mjornalis1110 consolidado comn forma aprofundacl.i de conhccirncn-
mento originado do senso comum apenas n:pdc as opiniôes L' prl'conccitos 111do atual. Desde o começo do século XIX, a atividade jornalística se as-
adquiridos no dia a dia, sem nenhuma preocupaçfto com sua justificativa e , <1tiava ~1racionalidade discursiva que. no século anterior. caracterizava a
anülise. c-,fera púhlica ... materializada cm cafi:-;, clubes e revistas. E tudo isso po-
De fato, senso comum é. para o crítico George Krutch, "'a aceitação dia ser descrito pelo termo genérico de "literatura'', uma vez que esta de-
de certos pressupostos, tradições e critérins de valor corrente que nunca 1,w,11.i's'fro
ainda não tinha se fixado definitivamente como uma "'l'xpressão
são pnslos cm dúvida. uma ve1 que o questionamt:nto de qualquer um dt..:- dt ..;uhjctividadc" concretizada
cm romance ou poesia. A imprensa de
lcs poderia equivaler à necessidade de uma revisão. muito mais l'xaustiva que fala Thomas Carlylc (autor de /1 Reml11çiio Fra11cesae um dos cxpo-
do que gostaríamos de imaginar. do governo. da sociedade e da conduta t llles intelectuais da Inglaterra oiloL'cntista) é o espaço onuc se movi-
individuar·,, .. Mas há sempre a possibilidade de se tentar criar um outro 1111.
nta o ''homem de letras", entendido como escritor profissional. mas
senso comum: Para os ideólogos da imprensa. que a veem como um ins- t,1111hé111como um inuivíduo investido de uma autnridade ideolôgica aná-
trumento superior Jc esclarecimento Lia atualidade. um .1ornalismo que a do s;íbio. Comenta Eagleton: ··Carlyle escreve sobre n poder que
1111!,a
não consiga ultrapassar. ainda que minimamente. a aparência estabiliza- a 1111pn.:nsade difundir a palavra do parlamento ('a literatura~ igual-
tt•111
da das coisas pelo senso comum. nàn possui outro papel além da tão criti- 111L11le 11osso par.lamento") e. sohrc o fato de a imprensa ter substituído
icada ratificaçüo declaratória da realidade. Jornalista seria, acima de tudo, l,1111011 púlpito quanto o senado"ª 2•
h intérprete qualificado de uma realidade que deve ser contl!Xtualizad,1,
--------- ----
~I 1 ,,l'~ p11.'•'"l""111, t'sl,111111,1i,
Jll'l"'l'lltc, holl' na :111\idadc e no cxcrêid11 do j11rnalismn ,omu-
49. RI l<'I ll•Nlli\C'I 1. 11 1\101110) t'll\lllo~ ( '1111CLJ1,·inn Íl'Íl:1 .1du,il d<
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111 l"h ll(l, <llll 11.•111
u11nn p1 lll" ,sih" 1111mi1:11111•,, t da 1rn11,111i,,ao. ;1 L·nnsck111i-
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Essa conccpçüo de imprensa, que abrangia jornais, revistas e livros e 111,
ifissional relativamente autônomo, a corporação jornalística. Mas Sar-
se c..kstinava a consolidar criticamente a opinião pública burguesa, mio é a lil' destacava explicitamente. além da função polêmica do jornal, a notí-
mesma que possuia,jú em meados do sendo XIX, um crítico vigoroso da l l.1 formatada como fait-divers ( o acontecimento miúdo, às vezes escanda-
atividade _jornalística como Honoré de Balzac. Ele localiza\'a o n(1cleo da lt1,11 ). recomendando aos jornais de esquerda que se dedicassem à "análi-
cri-;c precisamente na ic..kntificaçüo di.:'"publicismo,. com jurnal ismo: '"pu- •l' 1onolôgica da sociedade a partir dosfaits divers··. para não deixar a "im-
5
blicista. este nome outrora atribuído aos grandes e:--critores como Gnitius. prensa de direita" solta em sua exploração "da hunda e do sangue'" "1_

Puffenclorf. Bodin, tvtontesquieu, Blablom:, lkntham, Mably, Savary, /\tualmenlc, pensadores como o italiano Gianni Vattimo e o nor-
Smith, Rousseau. tornnu-sc o de todos os cscrcvinhadorl'.S quc/ázem po- ll ,11m::ricanoRichard Rorty insistem em seus livros, artigos e conferências
lítica. De generalil;adnr sublime, de profeta, d~ pa:-.tor das ideias que era 11111na presumida função fortemente esclarecedora da comunidade, por
outrora. o publicista t.:agora um homem m:upado com º" compassn::, 11u- p,11te do jornal. É verdade que agem a contrapclo de uma determinada
tuantes c..laatualidade. Se alguma espinha aparece na superfície do corpo IJ':rdiçào intelectual de desprezo. ou pelo menos de atitudes ambíguas,
político, o Publicista a coça, a desdobra, a faz sangrar e tira ddc um livro l1e11k ao jornalismo. Karl Marx, que muito atuou (por alegados proble-
que, quase sempn:, é uma mistificaçao. O publicismo era um grande espe- 1111,,enmômicos) como jornalista - tanto para imprensa alemã (Gazela
lho conc0ntrico: os puhlicistas de hoje o quebraram e têm todos um peda- /\1'11a1111.Nora Gazeta Re11a11a) como a inglesa, e a norte-americana (Ncw
ço qur.: eles üw:m brilhar ao:-.olhos da mui! iclüo'''\ ) nrk Trihtme)-. deixou claro algumas vezes o seu julgamento do jornalis-
O jornalista, cm todas as suas variedades. seria um desses "'pedaços", 1111,1in1 como prática inessencial. ora como algo cansativo que o desviava

mas Balzac fazia uma rc..,salva positi\a para o "'pedaço·· identifü.:aJo como ,k s<.:uverdadeiro trabalho. Deve-se levar em consideração que o seu
/llll(/lctúrio, identificado como o lugar da opnsiç~10. do polemista talento- pL•n,;amcnto social, voltado para a transformaçãll do mundo e para a ins-
so. eventualmente mais poderoso dn que o jornal. Disto tornou-se para- 1,tmaçào de uma nova ordem humana, implicava uma ruptura com todo
digma o escritor Émilc Zola. au publicar o texto intitulado ".!'Acuse'' u111modo de pensar hegemônicu, logo, com o sen~o comum cspt.:lhado na
(L:Aurorc. janeiro de 1898). cm defesa de Andrê Drcyfus, oficial do exér- p1,1licade imprensa corrente. Mas grande parte de seus textosjornalísti-
cito francês, de origem judaica. injustamente condenado por traiçào. A lll'- de crítica social - e eram efetivamente "jornalísticos'", ao juntarem
atuaçao de Zola. que comoveu civicamenlc a naçao e mudou O'.-. rumos do opiniúo fartamente documt:nlada e análise - inspirava-se cm matérias de
processo, foi rcconh,xidamentc superior ü dimensão pública do jornal. 1111
n:1is. Além disso, os textos mais contundentes e polêmicos de Marx, a
A valorizaçào do polemista no jornal é ratificada um século depois 1 ,c111ploc..loA!anf{estuduPartido Cu111wlista,süo atravessados pela retóri-
1,1 jurnalistica.
pelo e<;critor e filcísofo francês Jean-Paul Sartre. ao se pronunciar sobre o
jornalismo. Em pleno século XX. a lügica da produçüo de mercadorias ja l lojc, porém. no ocaso da metafísica ela revolução (entendida como a
havia prnvocadn a divisào do trabalho intelectual que separaria Jornalis- ll'Vdaç:io de um owro mundo). o pern;amento social abandona progrcs~i-
mo da genérica "'literatura'', instituindo a notícia como uma cmn1110di1y, v.1111c11tc :,s sua~ pretensões de pní:âs transformadora.
em favor da produ-
isto é. um produto da indlístria textual, ~ujdto ;1s regras de um campo \ .in de desci içm:s confi;íveis do mundo ou então de novos esquemas heu-
11•,t1~11spi11 :i uma melhor curnprccns:"io da realic..lade tal e qual se aprcscn-

~).111\1 / 1\( 11 í /\ J<11l!l1lt11," M11n11g1u[1a d., 1111prt 11·.. 1 p,111 u 11 , !{,,, til l,111, 1111 hl11111111,
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ta. Em certos aspectos, m, ciências sociais de hoje aproximam-se bastante maior esclarecimento e revelação do valor <lotempo presente. Há eviden-
do jornalismo dito "de qualidade''. A associação destas duas práticas, an- temente uma enorme distância entre a inclinaçüo nietzscheana sobre o
tes muito difen:rn.:iadas. ensejaria uma conexão mais estreita da comuni- presente e o trabalho jornalístico em torno da temporalidade do aqui e
dade com a complexa realidade social. como preconiza o antropólogo t1,!!lira.capturada pela fomrn-notícia e seus desdobramentos técnicos. O
Clifford Geertz: "Aplicar as ciências humanas a um fcnômt.:nu, no mo- pen..,amento nietzschcano smpcita da ama/idade ( ou seja, da mesma que
mento em qut.: cst;í se desenvolvendo sob nossos olhos. permite que esca- faz a glória da filosofia hegeliana), mais precisamente, suspeita do mnra-
pemos aos limites da obsnvação distanciada cm benefício do imediatis- l1smne uo conformismo das represcntaçôcs normatizadas do real ineren-
mo dos aconll:cirnentns instantüneos"''. te-. ao discurso da atual idade, ao passo que o jornalismo, ct>mo regra gc-
Sugestões desta natureza podem ser ampliadas até um possível maior 1;11.compactua com os cstcrcútipos do senso comum. Até mesmo numa
ponto de aprnximaçüo entre o trabalho noticioso e a atividade rellexiva. o imprensa caractcrizadamentc polí:mica. -;ão diferentes os nívt.:isde inquie-
que implicaria uma rl..'lomada e.larazüo dialôgica pela retórica jornalística. taçüo ou de int<;mpcstividade fn:nk ao mundo. Mas se pode conceber a
bto é estimulado pelo desenvolvimento da tecnologia ektrônica e pode ser hípútêse de que. num jornalismo capaz de se dem,ificar reflexivamente
visualizado no CAR (Computer-,-1ssisri.:dRcporting ou "Reportagem auxilia- u111111 forma de conhecimento, o acontecimento se revck como uma
da por computador··). m0todo de anülisc de grandes volumes de dados que ,1prcc1i--;10 coktiva da foctualiuadc, com grandes possihiliJaJes de apro-

aplica os procedimentos de pesquisa das ciência~ sociais, com vistas a ade- l11ndamcnto do empenho de conhecer o mundo presente.
quar a manipulação de informações ü prática jornalística corrt.:ntc. Isto nüo implica uma assimilação das ciências !->Ociais
pelo jornalismo.
A informática acelera a passagem do discurso das ciências sociais ao Na realidade, para Ouéré,".as ciências sociais falham ao avaliar o acontc-
jornali-;mo ou, pelo menos, de um certo tipo de discurso cm que úS dados umento na estruluraçélu da experiência individual e coletiva. por conce-
quantitativos e a,; tabelas ilustrativas tomam o lugar da argumentaçüo es- hl·-lo apenas como integrante da categoria do fato ( predomínio da causa-
peculativa e polêmica. que ainda sohrl'vivia no cspaçn público como resí- lidade) L:mvez de encará-lo como um fcnúmeno com potencial hermc-
duo do velho debati: de natureza filosófica. Como se sabe. o valor racional 1H.;11lico
próprio. Isto sigmfica que n fenômeno evidenciado pdo aconteci-
da arourncntação
~ ,
científica e filosófica consolidou-se na Modernidade 111cntopode ter um alcan<:e interpretativo maior do que as '.-Iliaspossíveis
sobre as ruínas das fórmulas retóricas que regiam a cnunciaçüo da razão 11Hitivaçües racionais.

filosófica (as regras do debate e as circunstàncias da interlocução, que re- Na verdade. isso vak ak mesmo para a sistc111ati1.açãoracionalista do
servava um lugar~ polêmica), cm favor da estrutura interna dos enuncia- pcnsamcnto, como observa Heiucggcr: "A filosofia tem a curiosa aspira-
dos. Ao racionalismo teôrico ~ indiferente aquilo que mobiliza a ativida- ,,111aso deixar valer como genuíno conhecimento aquilo que, por alguma
de informativa, isto é, o ato receptivo ou a atençüo do público. \ta de tipo argumentativo, foi demonstrado racionalmente, de maneira
Não foi esta. entretanto. a posição de um pensador da magnitude - l' que deixa lk prestar atenção à instância que representa uma visão ime-
de renovada atualidade nl.'ste início de século - de Nietzsche, que lançou di:it;i das coisas precisamente nessa imediatez'"". Ou seja, trata-se de <lar
mão da polêmica (enunciada tanto cm aforismos qu:1nln na..,diatribcs di~ .i dcvid:1 i111po1tf111ci;1
a que o knômcnosc 11wstresimplesmente, atJ mes-
rigiclas conlra velhas formulaçfics rnlturais) c1111111
C\l1111égi11
crilic:i p,1n1
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f1l,11o•/111
mo em sua máxima trivialidade. antes que se formule um problema geral. t,,tl>urna analogia, mas igualmente uma importante diferença. É que Clas-
Não há certamente nenhuma solução para o conhecimento nesse simples 11cs está analisando sociedades arcaicas cm que inexiste o Estado enquanto
mostrar nu aparecer. ou mesmo na descrição detalhada do fenômeno, 1:1imrolcseparado ou especializatlo do poder: "'Na sociedade primitiva, na
mas é essencial assegurar-se de sua realidade antes <lese argumentar de ,(1nedade sem Estado, não é do lado do chde que se encontra o po<ler: daí
modo explicativo sobre o mesmo. 11.:sultaque sua palavra não pmle ser palavra de poder, de autoridade. de
No caso do acontecimento, o 4ue se sugere aqui é que ele deve ser l'umando"i. Para os indígenas. um chefe silencioso não é mais um chefe,
1
•.

compreendido (hoje mais do que nunca, na era das imagens e dos dígi- 11o1nporque sua palavra se_japlena de significado, e sim exatamente por-
tos), para além do registro simbólico, nn registro afc:til'Odo mwulo. Quer quL' é vazia. É seu dever gerar essa fala separa.tia da palavra forte. cheia de
dizer, não se pôe em jogo apenas a lógica argumentativa das causas, mas ,e11tido, para que fique claro que a chefia está separada do eixo do poder,
principalmente o scnsírel de uma situação, com sua irradiação junto aos q11cc-;h: recai sobre o corpo da sociedade çomo um todo.
sujeitos e a revelação intuitiva do n~al que daí poder._í advir. Assim. em vez ~: certamente muito diferente o caso de Fidel Castro, chefe di.: um
da mera transmissão de 11mconteúdo factual. se trata da conformaçfüi so- l stado forte. Em ambos os exemplos, entretanto, a fala do líder é um acon-
cialmente estética de uma <lfitude.Por um lado se pode aventar a hipótese 1ccimcnto, na accpçflo de um fenômeno qut.: afeta a existência coletiva,
de que a comunicação do acnntecimentn pelo sistema informativo visa 111csmoque não se busquem motivaçõt:s, nem um sentido maior. Quer di-
mais a i1~/711e11ciar
ou controlar por recursos tecnoperceptivos do que pro- 1cr, do ponto de vista estritamente semântico, a fala tem significados, mas
priamente informar. Por outro. sugerir que a vida acontece também, para 11t.:nhumafunção designativa, nenhum logos apoplwnti/..:vs(termo aristo-
além da dimensào discursiva, na movimentação dos corpos, nos embates télico para <.kscrcver a prnposiçfto, ou qualificar o cliscur-.o que permite :1
coletivos e em signos indiciais, cm que mais vigora a potência afetiva dos i.'01saaparecer no que ela é. falsa ou verdadeira). Em outras palavras, o
grupos do que a razão esclarecedora dos argumentossK_ L'llllllciador não "designa" nada ao enunciat:irio. H,1,porém, no fenômc-
Náo é confortúvel traduzir cm termos práticos essa argumentação, 1111,uma parte excessiva. impermeável à lógica causal, embora hermencu-
mas podemos começar tentando com o exemplo do <lepoimcnto de uma 1icarnente potente, porque abre um amplo leque interpretativo em ter-
cubana. por ocasião da doença de Fidel Castro, a propósito dos famosos 11Hisde ações, gestos e sentimentos. Trata-se, sem dúvida. de exemplos
longos discursos (alguns costumavam exceder dez horas) do dirigente cu- rxlrcmos, mas teoricamente indicativos de uma outra lógica pertinente
bano: "Quando vejo Fidcl discursando, é como se estivesse vendo meu bi- "', .icontccimento.
savô, falando sem parar e sem nenhum motivo especial. Ele não tem mais Em princípio. é difícil associar essa argumcntaçüo por- ao jornalismo,
nada a dizer. .. O povo ainda o respeita, mas não o ouve""' 1
• q111.:habituados que estamos a consumir o discurso informativo como
Urna situação análoga é descrita pelo antropólogo Pic1-re ('lastres cn111 unia ohjctiví.H/10 dos fatos da atualidade cotidiana, deixamos de perceber

referênciaaos indígenassul-americanos,que obrigariam o chefe da tribo il


q11i.: ali M.:constitui igualmente uma narrativa <las práticas humanas, cuja
falar durante horas. sem, no entanto, lhe prestar qualquer :1tc11ç.io.1-1:ídt• 11111\:10 maior 6 chamar a atenção da coletividade para o modo como tai~
p, .it ic:1s"L' organizam ou devem organizar-se dentro de uma delimitação

58. Vule ., pr opo,iln' 'iCli lRI•, 1\1 1.1 ,·.111a1,·~1,11·1,·mwn1.' ,1k lo, 1111d111
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temporal. de uma periodização. Assim, pode muito hem acontecer que a n111c;111ews of thc day, constitui-se corno o relato (micronarrativo) de um
midiatização de aspectos críticos de uma determinada realidade social 1, @ll:cimcnto factual, ou seja, inscrito na realidade histórica e, logo, sus-

deixe o público cm geral pouco informado sobre o que realmente está 1 t 1\cl de comprovação. Como este conceito tem alguma dasticidadc e
ocorrendo (e isto é cada vez mais frequente cm virtude das flutuações da 1911dc <.;eraplicado a relatos de maior amplitude, não nectssariarncntc co-
atençáo e da memória coletivas sob o influxo da mídia), mas ainda assim 111111k11tcs com o que se costuma praticar nas redações de jornais, convém

essa precária memória midifüic.:a é capaz de fazer emergirem novos atores 1•1~ Lisarque essa ncws vfthe day se entende como 11otíciajúctual.Esta im-
sociais no espaço público, sejam eles os imigrantes ou os favelados nas pe- 1•lll'il a rnnstruçüo do acontecimento si.:gundo os parâmetros jornalísticos
riferias das megalópoks ocidentais. Ou seja, o que avulta corno social- il1 1.-atamento do fato, ou seja, uma prática que comporta apunH;:°IOde
mente crítico não é o conteúdo racional e argumentativo dos textos sobre il,1dosc informaçües, entrevistas, redação e cdiçáo tk textos. A dimensão
realidade em qucstê.lo. mas o "sensível" de vozes antes silenciadas. 1 ouslrntivista .. dcixa ver qut: se trata mesmo de urna inlt'tpretaç-âo si11g11-

f.,111unte do fato - um processo ordenado de vcrsôcs - cm funçáo da "cul-


Para melhor entendimento, pode-se pensar na ligação entre mobili-
1t11,•" jornalística, isto é, B do conjunlo dl' regras, hábitos e convcnçocs
dade espacial e husca de conhecimento nos tradicionai-; relatos de via-
qlll estruturam o campo profissional da imprensa.
gem. Neste caso, não é tanto a precisão histórica dos falos que está em
questão, e sim os modos de representar a experiência humana. O relato Parle-se do ·•fato em bruto .. ( ou "fato bruto") isto é, das qualidades
ele viagem é, antes de tudo, urna prática de ··tradução" intercultural, por- 1111d.1111<.lif erenciadas de uma ocorrência. para transformá-lo em "aconte-
tanto. um modo de ver. ser visto e ouvir. incrente i1narrativa antiga. Esk , 11111:nto" por meio da interpretaçüo cm que implica a "notícia'', esse mi-
··modo"',ain<laque recalcado pela ideologia objetivista da notícia, perma- ' 11J11elato que, dc.::sdohrado ou ampliado, nos dará possibilidades de accs-
nece miticamentc latente no discurso informativo e pode ser mobilizado ,1 ,11gumentativo ao "fato social". Um modelo mais esc.1ucmútico dessa
como um recurso estilístico sempre que a produção do texto jornalístiw 1 • lll.'!'IL'.; ü emergência da ocorrência ou fato em bruto. segue-se a busca

abdica Ja urgência da publicaçáo ou da utilidade imediata do conheci• , 1r1,dde sentido para ela e, finalmente, a sua neulrali/açüo explicativa
mento do rato cm favor da t..:laboração mais lenta e reflexiva do relato. I'· 111llilrrativa do acontecimento. A narrativa noticiosa restaura uma fa-
Mas também quando abdica da noção quantititativista de informação pÚ• 111 1 l confirma a previsibilidade da ordem por mciu da inscriçüo do ocor-

blica ( quanto mais dados e detalhes, maior o conhccimen to) em favor da 11110 11a causalidade do fato social.
quela di1m:ns{w scmfrcl, que possibilita ao leitor urna compreensão do l r111amaneira ainda mais acadêmica de compreender essa dinúmica é
acontecimento mais pcrn:ptim do que intelectiva. Isto pode implicar ou 11 t 11rrcra(i C(mccito de semiose, de Charles Sanders Peircc, tomado como
tras possibilidades de compreensão do acontecimento, para além de Sllll 1111 •ddo genérico do processo de comunicaçãoh 1. Peirce parte de trb, catc-
redução ao horizonte do fato tal como é tradicionalmente definido pelo IIIII.is fcnumcnológicas - primeiridade. secundidade e terceiridade -
dispositivo jornalístico. I' H.i tk,;;crl'ver ··tudo o que aparece à mente, seja real ou não", mas que
, , It.1I11eI1te wnstitui um signo ou "meio de comunicação". Na primeiri-
A notícia ,1.idL·, o fet11}1llt:110 0 simples possihilidade. um ohjeto, ainda vago ou indi-

Mas como hem se pmk inferir, o aco11tcci111c11to. 111Hlt'1ialiwd,, 1111


forma noticiosa padr:io, é o vetnr parn 11111:1ti..:Pri:t d,1 lll'-l,111t:rnl'i1L1de
1111
foi 1 1 '-IJ\N 1 '\I 1 1 A, 1 l I,·umI i;c1,,/ ,lns IIgI111s. ~.-m111s,· e ,t11logcra-;,111.San Paulo: AllL'a. JlJ\J5.
d:i tcmporalidadl..' s111g11l:1ri1ad:1 fato so~ 1:d 1\•.~•11111
1111 """' 111, a .111~
1 h1 ',;1
• , \Pl,JI AI 11 \, 1 8:. I\J() 111.\\' S,·1111011u1, cP/lllllllCf/\1111. ls,I l 11,1d,\'1, .111114
ferenciado; na secundidade, essas qualidades primeiras se particularizam análogos ao do "homem mordeu cachorro". do ponto de vista dos critérios
ou se atualizam por meio de um signo mediador, também chamado repre- 1nrnalísticos correntes. eles acabam pertencendo à mesma categoria classi-
smtamen, que cria por sua vez um novo signo ou interpretante, responsá- ltcatória, a do imprevisto, que rompe o ordenamento rotineiro dos fatos
vel pela representaçâo do objeto. Agora, vejamos: o objeto determina o l'ntidianos e provoca um certo impacto sensorial sobre o público.
signo, que cktermina o interpretante, que representa parcialmente. por (~ isto o gue leva jornalistas e u maioria dos estudiosos a dizer que "'o
sua vez, o objeto que originariamente o determinou. É um processo de .,wntecimento significa uma ruptura em qualquer âmbito. privado ou pú-
desdobramento, como se infere. blico. que se destaca sobre um fundo uniforme e constitui uma diferença.
Analogamente, na semiosc jornalística, o fato cm hruto ( o ·'ohjeto tlelinindo-sc pelos efeitos no tempo e no espaço cm que ocorre"'<>\ Esta as-
atual") determina o acontecimento. desdobra-se por meio de uma inter- ,e,tiva pode ser classificada como ·'stmântica'' por se referir ú significaçào
pretação cm notícia, que é uma estratégia ou um gênero discursivo susce- do acontecimento. Uma explicação ·•sintática'', embora diga praticamente
tível de representar a ocorrência factual primeira e, eventualmente, des- ., mesma coisa, pode ser buscada na teoria (matemática) da informação,
dobrar-se cm novas interpretações. Mas sào diversos os tempos e os mo- l'11mol'a.1Epstcin ao refletir sobre a medida do inesperado c.leum evento:
dos c.k ocorrência implicados na notícia. Levando-se em conta essa diver- ' Um fato pode se transformar cm notícia quando é raro e. portanto, incs-
sidade, pode-se classificá-las como "'(a) previstas - aquelas que nos per- pcrndo, c este atributo a notícia é comum ao conceito de ·quantidade de in-
mitem um conhecimento antecipado, anunciado com antecedência; (b) formação' oriundo da teoria da informação (TI). Trata-se Je um atributo
imprevistas - as de caráter inesperado, como crimes, incidentes, incên- 1;111tático tanto da notícia como da quantidade de informação (TI), porque
dios. etc.: (e) mistas- as que reúnem. numa sú informação. o previsto e o concerneà sua frequência relativa e não ao seu significado"ll•1• A rcdundân-
imprevisto ''1> 2. n,1 do esperado seria, assim, o grau zero do valor-notícia.
Assim, a chegada de uma delegação do Fundo Monetário Internacio- No entanto, a prática jornalística evidencia que um fato incidente so-
nal ao país é uma ocorrência prevista no quadro das negociações da dívi- hre aspectos importantes da vida rotineira comum a todos os membros de
da externa ( o resultado já está na pauta dos possíveis do relacionamento 11111grupo social - ainda que previsto ou esperado-, a exemplo de um
financeiro entre um país e outro) e a necessária notícia jornalística d.í lll:ordo sobre a dívida externa do país (evento sem grande impacto senso-
conta desta evidC:ncía. Já o episódio do homem que morde o cachorro 11:il,segundo o código corrente de produção jornalístico), não pode dci-
pertence ~t categoria dos imprevistos. A terceira categoria poderia combi- x,11de se transformar cm notícia. A realidade i: que grande parte dos
nar a chegada da dclcgaçüo com um incidente qualquer no aeroporto. do 11c1111ll'cimcntos,no jornalismo impresso ou no televisivo, transcorre em
tipo "cachorro morde a perna ele um cios recém-chegados". pn111a-.nu roteiros já fortemente codificados pela produção midiátíca. As'
Às vezes, os fatos imprevistos podem interferir com grande alcance nn 1'1.1111lcs
cerimônias oficiais, as competições esportivas, as entrevistas po-
movimento histórico, dando ensejo à percepção de uma mudança no c:;t;1- l11icas, nH:-..mocom a possibilidade de que um evento inesperado qual-
do correntt: do mundo. Os fatos e as notícias ligados à morte do presidente q11c1tran..,grida a ordem do enquadramento, são relatadas ou transmiti}
1
norte-americano John Kennedy constituem um hum exc,nplo distn. Pm
maior que seja a diferença entre acontecimentos dc.,s,1onk:111e élqueks
(,1, M1\l( 11"-JI,S l't'r1od111110, 11011,·1,1 \' 110/1, 111l>rf1dud. ls.l1:N<11111,1, .!11011,p. lll,
r, 1 1 I'\ 11 1~. 1 1 h1111td1111111 l.11(>s,• 11.,11~1,
11111;lcm 1101 u 1a 110 ior11;if1~111, 1 e 11;1C1t'1K1;1. 1n: <'1111111111
, 1u111,l \,,,1,,/1111<,,1111118,n 11,)IKIT p Ih/, ~,111lll111.1r.l.1<10<'1111p11, ll111t••p
das ao vivo a partir de uma "gramática" de antecipações logo técnicas - l,111lena linguagem ocorre entre o nâo-marcado e o marcado", ou seja, um

uma retórica. cm suma• destinada produzir uma narrativa.


:1
h:rnw qualquer (um fonema, um signo) t: tido como marcado quando se
11.:vcla
conceitualmente mais complexo (fortemente determinado) do que
Nesses casos, inexiste "anormalidade" ou "'ruptura·•, já que o previsí-
11111outro correlato, indeterminado. logo nüo-marcado. O scmiólogo
vel pode se localizar tanto em aspectos do fato bruto quanto nos esque-
1 ''"'h..aexplica: "Nas oposições semânticas, o termo nào-marcado pode
mas narrativos montados a priori pela retórica midiática. Pode-se con-
•,1g11ificarou a categoria genérica ou o membro 1:spccífico da categoria,
tra-argumentar com a mençfto à '•diferença" ( entre um estado e outro do
wmo, por exemplo. l.'m inglês, onde ·homem· pode significar ou 'Homo
fato), mas então será preciso levar em conta que todo e qualquer evento,
\tl/1imv· ou 'Homo sapie11smacho·. 'Mulher' refere-se. cm seu uso tradi-
notici,ível nu não. implica uma diferença. Por isso. é preciso buscar uma
l 11rnal.só a ·Homo sap,ens fêmea "<>5• Logo, nesta oposi1'ão. mulhcç.i o tcr--
outra maneira de bem compreender a especificidade do acontc:cimento
noticioso.
u1u marcado. " / ~y 4'{~ f
Interessa-nos aqui apenas assinalar que o termo marcado apresenta, no
Queremos deixar claro que o "paradigma do cachorro'' - o da pura e
qu:idrode uma determinada cultura. um desenvolvimento mais complexo
simples ruptura da normalidade quotidiana ou, cm último caso. a ,moma-
l1Jrn<1ndo-scpor isso suporte dç urna carga maior de valoração simbólica
lia - nflO é teoricamente suficiente para tkfinir uma notícia. A hip6tesc
do homem que mordeu o pitlm/11? curiosa ç tipifica o modelo sugerido
l1
do que o não-marcado. Assim, o lfllC chamamos de acm1tenmen10.1ornoJ[,;;-

pelo jornalista Amus Cumrning:-.. Mas no contexto da cídadc do Rio de Ja- marcado. f)Ot/01110. mais determinado /}{/f"(l O .'iistemada i,~(or- r
f/((1 (; /1111fato

neiro, do final dos anos de 1990 em diante, resulta sempre em notícia o 1/W(aO púhlica do que outros c~ristentes,tidos como 11üo-marc1ulospara a for-
fato do pitbull que ataca alguém. Em princípio, não deveria: é amplamen- 11111(·,io de um conhcc11nento sohrc a cotidianidade urhana.
te !-labidoque os cães dessa raça süo extraordinariamente fortes e, eventu- t\ marcação define a noticiahil idade de um fato por critérios, concebi-
almente, muito agressivos. Na medida cm quç aumenta o seu nümero nas dos como valores adequados ao acontecimento: os valores-notícia (!1ews
ruas de uma grande cidadç. aumentam também as chances de ataque, 1•a/11es). Estes se constituem como tais, não por serem únicos, incompará-
logo. a margem de prçvisão e de banalidade - nada de "ruptura de uma vl'i-,ou irrepetíveis, mas por determinarem singlllarmenfc categorias de or-
ordem·', portanto-quanto ?1ocorrência do fenômeno. Não se pode negar l'tlflizaçüo ou controle dosflnws (econômicos, sociais. políticos) que atu-
que algo se romp1:. do ponto de vista institucional e da sociabilidade p(1• ,1111no espaço urhano por meio de representaçôcs, normas, comporta-
blica, no episódio da mortL: de Kennedy ou na destruição das Torres Gê- 111rntos e afetos. Evidentemente. há fatos brutos que provocam um efeito
meas cm Nova York. Mas aí entramos na cat1:goria e.lacatástrofe. o que di: choque por contrariarem a lógica da expectativa do púhlico frente aos
não é o caso dos outros dois exemplos de notícias. ll t1úmenos rotineiros do cotidiano. De uma maneira geral, porém, há nas
Para nós, o verdadeiro traço em comum entre o homem que morde o pil 11c1111G11cias jornalisticamente marcc1veisum sinal ou um índice (no senti-
l>ulf,u pitbu/1 que morde o hornern, a chegada de uma delegação do FMI"'' d11 pcirceano do termo) que a marcação jornalística identifica como fonte

país e o assassinato de Kennedy é a marcação (semiótica, rnltura/) do Júto. dl: 11111valor-notícia, logo, como origem de uma possível narrativa. Não é,
Esta é uma categoria oportuna para a compreensão do ,,adrao ,·alomtirn tio JiPI t.11110, qualqul.'r choque ou ruptura que pode gerar um valor-notícia, e

que constitui o 11otfcia.


Jê110,
De qlll: se trata cx;it :imenti..!'! Pndc•sc c11111<.:ç.11 '1'1iisl a e, 11110
UH n 11111111 (,~, 11",/1 /\, 1 1 /Ir,- 11111,,.r,,
0{1111·1/t 11, ril,l,ii ,111dy\>Ísymhol, l~.1.1:
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R1111w11.l:1h..11h:,011,p:11 ;, q11c111 "a d1i,ti11ç.111 n1,11-.p11111111v.,l' 111ah, i111po1 I IJ;.CJ,p h
sim aquck previamente codifiq1.do pela rotina produtiva do sistema in- . 111cnte;cm segunJo, podc ser mitificada como força primitiva. em fla-
formativo como uma inscrição potencial junto ao púhlico-leitor. grante contraste com a normalização <loscües dóceis ou domésticos: ter-
Nn rg_tina das pautas profissionais, destacam-se como valores-notícia ~ciro, pode sL:rassociada à ferocidade de seus donos mais habituais, arrua-
6 novidade (marca de atualidade), a imprevisihilidade (sinal para a singu- lCiros e praticantes de lutas. conhecidos como "pithoys'': quarto, cm tcr-
larização do relato) o p1.:so social (sinal indutor de atençüo coletiva). a mns de informação estritamente jornalística, a notícia do pitlm/1 é "situa-
proximidade geográfica do fato (índice contextual que facilita a identifi- donal", isto é, adverte para um estado de coisas ou uma situaçüo potcncial-
cação do público com os figurantes da notícia) a hierarquia social elos per- mcntc pcrigosé1.
sonagens implica<los (sohrcvalor atribuído ü identidade de famosos) a '·Marca-se" o pitbull pela sua possih;/;dadc de instaurar uma 11arratira. E
quantidade de pessoas e lugares envolvidos ( magnitutk do fato), o prová- uq11ifica mais claro o porquê de a notícia implicar a singularização do
vel impacto sobre o público-leitor e as perspectivm, de cvolução do acon- í.ito: ~ que o singular. o caso isolado, pode propiciar uma boa história''('.
kcimcnlo. São valores-notícia na medi<la em que há algum consenso so- !'.ira cntejar esta perspectiva com um fato menos trivial, vamos tomar
bre eles <.:ornocritérios de localizasão e descrição <le fatos, marcado" cm rumo exemplo um aspecto do tratamento jornalístico sohn: a campanha
função das exigências gestionárias da cidade. E cssa1.,exigências dizem dcitoral nos Estados Unidos em 2008. Em meio à diversidade de argu-
respeito tanto ao real-histórico quanto ao imaginário social, o mesmt> que 111cntose proposiçôes dos dois principais oponentes democratas (Hillary
dinamiza a:-.narrativas. Fatos não-marcados não significam fatos sem im- ( linton e Barack Ohama). chamaram fortemente a atençfw <.k observa-
porlfincia social, e sim fatos não imediatamente relevantes para o cânone dores duas imagens contrastantes numa primeira p5gina de jornal (O
tia cultura jonwlfHirn. São, portanto, normalmente <lesconsidcra<los pela <:toho, 09/01/2008) : a primeira, no Quênia, a avô de Ohama, que debu-
man.:açfu.)(pauta) da grande mídia, embora tenham alguma drnn<.:c de llrnva milho numa aldeia de seu grupo étnico: a segunda, nos Estados
aparecer em veículos alternutivos ou serem objeto de anülise cm publica- l lnidos. llillary. chorando <lc emoçãn. Amhas as imagt:ns são noticiosas,
ções de maior pcriodicidade. ditas ·'de qualidade".
p111qucsingularizam - num tempo e espaço localizados, dando margem à
No cxcmplo da mordida canina, pode-se considerar como termo 11,1r1ativadas difcren<;as entre o localismo queniano e o cosmopolitismo
nào-marcado o ronjunto dos cãcs domésticos, a menos que um deles seja .1111ericanu - o fato do embate pré-ckitoral entre candidatos de um mes-
hidrôfobo, isto J, atacado de raiva patológica e ainda que se saiba da gran- lllll partido. Como assinala Romano, ··contar urna história é muito impor-
de prohabilidadc de qut:: alguém possa ser atacado por cachorros de qual- lo1111c, mesmo para uma competição de golfe, onde se passam muitas coi-
quer raça num grande espaço urbano, como o Rio de Janeiro, onde se re- ,,s a11mesmo tcmpo. É também capital antecipar, gra<;as à esn1ta do que
gistram cm média 20 mil ataques caninos por ano. l di/'h'. Na antecipação. podem mesclar-~e elementos do imaginário
Por que "marcar" o pitbu/1'! l, 1111º" d.i realidade sociais. e assim começar uma história, dando ênfase a
Uma explicação plausível é que essa raça canina presta-se, pelas ca- 1p1.ilqucr uma das funções que caracterizam urna narrativa.
racterí:-.ticas especiais da força e da agressividade, à determinação cnk:ti-
va quanto ao seu comportamento e à dramatização incrcnlc üs narrativas "''· 1l1rlh ,1ncdo1:i s, ,hrr JIJInah,ra, e <?,l.il1,1ict1se ha,IJntc .:,dan:.:cdora: '"~e passam dez 11111 boi,
que costumam catalisar as alcnçôes do grande pt'1hlic11.Em pri1m:irn 111• 111111<·1111,1h1 de 1..klc111ll, ,1 csl.it1,11n> l,v :1 r111il'a, llrn a llll'tl1a, e o ritho de ckianll'. d..:,aparccc.
1•,l,1puhlic.i· •1li ,i 1cm I aho ,k ck l,1ntc. i: a n1lpa c d11t;on•rno' · hn 0111r:i~ p;il:1,ra\, o
1 ( ,, 111111,il
gar, é urna raça rda1ivamc11tc rerenti..; 1111 país, logl, p11dc q:, c1111t1tad11
11111ql1·,11111~l ul1111C'lll,1d.i narrnt11 ,1 p111lr.l\ cio ,1111!111.ir
cn11H1 "algl1 que vc111de 1111:t'',cs1n111li:i.q11l' 11110 •,t u111hl'\l' •.. 11tsl;i1011:1 f,/ HOM,\N() ( / / 1•,11,·,111·111cr/,•1r•111111
l'1111s l'lfl, )í)l)lJ
As vezes. o acontecimento torna-se marcado por uma analogia com Os mesmos critério~ de narratividade sfln aplicáwis à fotografia jorna-
narrativas já testadas cm outros meios de comunicaçüo. Por exemplo, ··o ll·i11u1.particularmente o llagrante. cm que parece '·explodir'' diante da
holandês Che1ynel Gregôrio. ck 36 anos, está vivendo os momentos mais pl 1c:l!pçüodo leitor a literalidade do acontecimento. Um exemplo é a foto
estranhos de sua vida. Si:m dinheiro para pagar uma taxa de embarque 1k uma belga de origem congolesa. que teve recusado o pedido Jc lic~n~a
que custava 45 euro!-.(cerca de RS 135), ek mio pôde embarcar de volta p,,ra<1hriruma loja: cm pleno centro de Luxemburgo, a mulher se imola.
para Amstcrdam e há cerca de 15 dias está morando no Aeroporto Inter- ,lrnndo fogo ao corpo 69 • Scgundn o jornal. a foto, que teve "o mais alto ín-
nacional de Fortale1.a. depois de ter passado oito dias de férias na cidade,. il1cc de aceitaçüo dos leitores". foi eleita a "mais importante por 71•.:vr;""11.
(O (;/oho, 15/10/2004). Assim começa uma longa notícia cm muito seme- ,\ respeito deste tipo dt; imagem, Banhes comenta uma cena de t.:xc-
lhante a O Terminal, film1.:de Steven Spielhcrg, que narra a hist(lria de um
1 lli.;,IO de comunistas guatemaltecos (publicada na revista l'aris J\Jatch)
viajante retido por problemas de passaporte num aeroporto americano.
q11c"a fotografia não é de modo nenhum terrível cm si mesma, o horror
O filme. por sua vez, teria sido inspirado pela situaçiio real de um iraniano
p111vcmdu lato de que nô~ a ulhamos de dentro de nw,sa liberdadc'' 71.
que estaria vivendo há anos no aeroporto Charks de Gaulk:, cm Paris.
11,,rthes está sugerindo que n chocante nf10 está na aul0ssufici0ncia da-
I lá algo em comum entre o pitb11/Idos jl)rnais e o tuharüo no!-.filmes ljllCl,1 imagem para representar - e impl1citamcntc narrar- a n.:ali<.lade.e
de Hollywood. A narrativa jornalística sobre essa espécie canina é scmio- 1111na mobilização perceptiva do leitor por uma fraçüo crnnolt·lgica. o
licamcnte análoga f1quda sohre a fera marinha, cuja primeira funçfw se- lll'il:111tc, que púe em primeiro plano a dimensão espacial e enseja a com-
ria a agrl's.\ÜO. com a!-.conse4uentes reaçôcs humanas. a saber. cxposiç:10 e p,11,1çúo entre dois lugares (o da cena e o da contemplação), com o conse-
fuga ao perigo. Daí se deduzem outras funções dramMicm,. Uma análise
q11e11ll! efeito Je horror.
mais acurada dessas notícias pode mostrar que niio se trata tanto de infor-
E precisamente esse sentimento qu1.: mobilizou a opiniün pública
mar, isto é, de apenas comunicar um o lfllt~ sobre o animal, e sim de inse-
11n11lllial diante da imagem - captada pelo fotógrafo norte-americano
ri-lo numa narrativa autocentrada, turnando-o personagem de uma histó-
1 dd1c Adams - da execução a sangue frio (em 196t,;)de um oficial vict-
ria de medo. sob as aparência<.; da virtude jornalbtica de proteger, por
' nngue capturado por Nguyen Ngoc Loan, chefe ela polícia de Saigon. O
meio da informaçiio acurada, a íntegridade dos cidadfios. Se "homem
l n111entáriovale para a foto da imolação da congole,;a, que é igualmente
morde o pitlm/1" fos-.e um fato, portanto um acontedmcnto real. a notícia
t ll(lc:,nte t.'111sua literalidade e. assim como a da execução dos comunistas
pertenceria ao gênero que os franceses chamam de fait-dii·ers. os nor-
1111do oficial vietcongue, resultante de um ato reflexo du fotógrafo edis-
te-americanos incluem no genérico.fá1ture. e os espanhóis assimilam asu-
li1111cda suposta "'normalidade .. do leitor. O instante -portanto, a exprcs-
ceso, ou seja. uma notícia caracterizada por uma micronarrativa fechada
sobre si mesma. mobilizadora da ideia de destino (ao invés de hbtória) e ,m de uma unidade temporal flagrada pela consciência - capturado pelo
intemporal. no sentido de que pode despertar o interesse do leitor cm lntugrnfn d,í margem :'tconstruçào. pelo senso Cl)ITlUlll, de outras narrati-
qualquer épocah~. O .f<lit-dil'ers é tão só uma potência elevada da narrativi- \ ,l',, 11n1i111difL·renles üs vezes da interpretação oferecida pelo jornalista

dade existente de modo germinal na notícia comum, o qui: equivale adi-


zer, com maior potencial de aguçamento da pcrcepçflo do leitor.
1,IJf I C,/0/,11, 11hr10:2004
,,, ( >l111ts,·11~,•
qu,1111,, ,t Íi11p,11l,tm 1,1d,, an1111cdmc11tola, pa11l', n•nlll ,e inl'i.:n:,da paula de nc•
c,M.I· hastanlc c"nl11.:c1doo 111tir.o de Rol.ind Ha, lhes ,nhrc c,ll' ,l\',1111111
( \1t111 llllr ,/11 '"'' ,/11, /\) hl\ ,, , 111rl' o 1m11,1Ie o seu puhh~•• 1.. ,1111
, , 1111~ li• ,1, , 111
c·rn /· n111,,,1111,111,·1
l',1111,SLuil thoc, 111 \htli11l11J{111l'.111•, St111I l'l~l. p 11'1 Ili
11 li \IU 111',, lt 1'1111l(1.
na kgenda. Nesse instante fotográfico. inexiste "tcn1po ", logo não há nar-
rativa. e si,n o seu potencial. que fica a cargo do lcilor.
Niio é, assirn, "l'erdade "nua e cnw "da fotografia que nos 111ohiliza.
,nas
o potencial 11an·ath·opresente 110 contcúcloda i1nagen1.E con1 mais razão na
contemporaneidade da tecnologia digital. quando nada nos assegura
quanto à verdade dos referentes fotográficos. Na realidade, desde o final
dos anos 20 do século passado, Man Ray- que fazia da fotografia o eixo
de seu trabalho plástico-punha crn dúvida a crença de que o real pudesse
ser plenamente capturado pda image1n fotográfica. Aco1npanhava, na
verdade, as mesn1as dúvidas formulada~ por gênios da pintura con10 Pi-
casso e Braque.
O digital veio abalar dcfinitivan1cnte as suposições quanto à verdade
referencial da in1agen1. E os diagnósticos neste sentido tornam-se corren-
tes. Por cxen1plo, o artista e pcsqui-;ador britânico l)avid 1-lockney. em
entrevista ao jornal Tlw Oai~vTclegraph. sustenta que a fotografia pode
estar "perdendo o crédito conto espdho da verdade'·. Citando a contrafa-
ção do Daily Mi rror ( o tabloide havia publicado na capa lHnafoto crn que
un, suposto soldado inglês urinava no rosto de um prisioneiro iraquiano,
n1as depois se descobriu que se tratava de tuna 111ontagçm). ele afirma
que '•nós nüo sahcmos rnais con10 olhar para uma foto··. Para o pesquisa-
dor, o coeficiente de inverdade da fotografia aun1enta com a i111agcn1 digi-
tal, a tal ponto que ''daqui a algurn tr1npo. vai ser in1possívcl acreditar no
que estamos vendo nos jornais" 72.

A pontuação rítmica
O segundo traço crn co1nun1(alén1 Jo ''n1arcado") dos acontecimentos
acin1a arrolados é a po11tuaçâorí11nicano fluxo temporal dos fatos cotidia-
nos. Este fluxo não é algo ''naturar·. e sim a resultante de unia sensação ou
uma percepção das intcrrupçôes e passagens da cxpcri(·ncia cotidü1na, cl:i•
horadas na consciência dos sujeitos sociais. En, tern1os a~l•onômicos, é oh

72. O (iloho (l',06:2001

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