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O ÓBVIO E O OBTUSO

Roland Barthes. um dos pioneiros no estudo


0
da Semiologia. diferenciou-se dos demais
semiólogos es1nnun1listas seguidores de
Ferdinoml de Saussure por uma
p.irticularidade: à noção acadêmica de signo,
Banhes acrescenta a noçiio de sujei LO. Para
ele. o :;igno. já carregado de se,uido cultunil, O ÓB YlO E O OBTUSO
recebe um recoohecimenio particular por
pane do suJei10. sendo. portanto, susce1ívcl
de criar prazer.
Esta propo~içfü) tomou~se mai!-. níl ida em
1973com a publicação de O PRAZER DO
TEXTO e. em seu último livro publicado em
vida- A CÂMARA CLARA-. o ensaísta
francês 10ma bem óbvia esta dualidade.
mosm1ndo que. sem a imervenção pessoal.
subjetiva. do observador-que p()de ver
num signo muito mais que um regisiro
realista. ou a mensagem codificada-.
a fowgrafia fic-aria limi1ada ao registro
documental.
Antes de morrer prenuuuramcnte cm l 980.
Roland Barthes mallifestou desejo de
publicar cin livro seus ensaios críticos
dispersos. que apresentam reflexões sobre os
semidos dos signos. Em O ÓBVIO E O
OBTUSO, fortun reunidos os estudos s<>brc
a c~criturado visível (fotografia, cinem,L,
pintura e teatro) e outros sobre música,
obedecendo-se sua Ordem cronológica.
Assim, o leitor podo acompanhar a evolução
do pensamento do autor. que caminha de uma
teoria dn escritura em direção a umH escrittu·a
da palxão.
Banhes parte de um questionamento sobre
o conteúdo da mensagem fotográfica
discorre com originalidade sobre o que ela
apresenta cm tem1os de conotação e
denotação e chega aos conceitos de óh,•io e
ob//c<o a partir da análise de fotogramas
de fllrnesde Eiscnstein.
Em seguida, no ensaio --o Espírito da Leu-a··,
tece elogios ao livro de Nassim. que paro ele
é uma bela encicl(1pédia de informações e
11nagen~~ e. pílrtindo das ob~ervações sobre
\

ROLAND BARTHES

O ÓBVIO
E O.OBTUSO
ENSAIOS CRÍTICOS UI
. -4. _

---
'frad11ção de
L ~A N OVAES

3' imprcss~v

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cnucos lll. cr!11eos Jll. cnucos lll.
CDD 844 CDD 84·1
CDl/ 6~0·4 C:DlJ 6~0-4
LEITURAS. O TEXTO LEITURAS. O TEXTO LEITUR,

A PlNTURA É UMA LJNGUAGEl'vP. 135 A PINTURA É UMA LJNGUAGEM?, 135 APlNTl


SEMIOGRAFIA DE ANDRÉ MASSON , 139 SEMIOGRAFIA DE ANDR É MA.SSON, 139 SEMIOC

LElTURAS· O GESTO LElTURAS: O GESTO LEITUR,

CY TWOMBLY ou NON MULTA SED MULT CY TWOMBL Y OUNON MULTA SED MULT CYTWC

LEITURAS: A ARTE LEITURAS: A ARTE LE!TUR;

SABEDORIA DA ARTE. 161 SABEDORIA DA ARTE, 161 SABEDC


WlLHELM VON GLOEDEN, 177 WlLHELM VON GLOEDEN, l 77 WlLHEL
ESTA COISA ANTIGA , A ARTE ..., 181 ESTA COISA ANTIGA, A ARTE ... , 181 ESTA CC

O CORPO O CORPO O CORPc

RÉQUICHOT E SEU CORPO, 189 RÉQUICHOT E SEU CORPO, 189 RÉQUIC

2. O CORPO DA MÚSICA, 215 2. O CORPO DA MÚSICA, 215 2.0CORPC

AESCUTA, 217 A ESCUTA, 217 AESCUl


MUSICA PRACTICA, 231 MUSICA PRACTICA, 23 1 MUSICA
O GRAO DA VOZ, 237 O GRAO DA VOZ, 237 OGRAO
A MÚSICA, A VOZ, A LÍNGUA, 247 A MÚSICA, A VOZ, A LíNGUA, 247 AMÚSIC
O CANTO ROMÂNTICO. 253 O CANTO ROMÂNTICO. 253 OCANTC
AMAR SCHUMANN, 259 AMAR SCHUMANN, 259 AMARS•
RASCH, 265 RASCH, 265 RASCH, :

EM APÊNDICE .4 PRIMEIRA PARTE EM APÊNDICE .4 PRIMEIRA PARTE EMAPÊA

DENTRO DOS OLHOS, 277 DENTRO DOS OLHOS. 277 DENTRO


mos. pois. assumir a responsabilidade, be111 como o 1íiulo. tomado
do ar1igo sobre Eiser1S1ein -q11e nos parece ahrrmger iodo ovo-
lume, em seu movimemo que vai da organização simbólica de suple-
mento euigmâtico. "sem significado". ao 'Jalso movimento" sub-
versivo da significância.
É necessário. també111. assumir a re,ponsabilidade pela ordem
escolhida: no que 1oca à disposição e a algumas grandes separações
aqui propos1as. pode111os afirmar, quase com certeza, que 11âo cor- 1
respondem às que escolheria Roland Barlhes - si111plesme111e
porque o 1rabal/w de orde11oçâo,na criaçâo hemhesiano. apareceu
sempre (poro quem a aco111pa11hou ao longo do 1empo) w mo o que
há de mais imprevisfvel: pois que ordenar eslá entre o que há de 111ais A ESCRITURA
irredutfvel na originalidade dessa obra- na coesão de uma escri-
tura compleu1, onde nada permite distinguir emrea invençâo do con-
DO VISÍVEL,
ceito. a escolha da imagem-chave, o fraseado e o ritmo do discurso.
Pareceu-nos que.pelo menos, conseguiríamos respeitar.de maneira
geral. a ordem cronológica. de 111odoo permitir a capl(Jçâo ea evo-
lução do pemamemo, bem como as reapropriações do es1ilo.
Recordemos, parafinalizar, que Roland Barthes, cuidando com
o maior esmero dos mínimos de1alhes de tudo o que se relaciona com
a a1ividade do escritor, redigiu se111pre. ele mesmo, o essencial do
prie re d'insérer de seus livros, w11w assim que escolheu ser o(wlor
do Roland Banhes de Écrivains de 1oujours; é necessário ainda
acrescemar que esta in1e,wmçâo co11s1range o editor. obrigado a
intervir aqui. como se es1i11esse procedendo a uma rasura inopor-
tuna 11a criação única do discurso.1
F.W.

1
Houve um caso cm que a regra barrh.esiana de não confundir o escrito com o
oral foi transgredida: na conferência sobre Charles Panzéra.. pronunciada cm
Roma. em 1977; ocorreu <_1ue. djspúnhamos de um texto inteir::unerue redigido
e que nos parecia impona.1Hê. tanto porque complernvà obras anteriores sobre
a mCisici,. quanto por seu grande alcance bibliog-ráfico.
No tampo da pi1m1ra, todos os 1rab::ilbos escritos por R.B. - l'el:uivumeme
C~rde - pod~tiam ter sido incluídos neste volume, graças à aquiescência dos
diferentes editores. ínfelii mentc isso não foi possível devido:, 111n texto consa-
grado :i Steinberg. encomendado há virios anos e incluído r1a lÍltima produção
de Barrhcs - ::i dos fragmemos. A publicação desse livro para o qual o texto de
R. O. havia sido entregue desde 1877 ,cm sido sucessiv::1mcnte adi.lda até a
presente data.

8
AIMAGEA1

A MENSAGEM FOTOGRÁFICA

A foto/(rafia jornalística é uma mensagem e. como tal, é consti-


tuída por uma fonte emissora. um canal de transmissão e um meio
receptor. A fonte emissora é a redação do jornal. seu grupo·de téc-
nicos, dos quais alguns fazem a foto, outros a selecionam, a com-
põem ê retocam eou1rns, enfim.a intitulam, a legendam, a comentam.
O meio receproré o público que lê o jornal. E o canal de 1tansmissão
éo próprio jomal,ou, maisexatameme, um complexo de mensagens
concorrentescujocentro é a fotografia; os complementos que a cir-
cundam são o texto, o título, a legenda, a diagramação e. de maneira
mais abstraia mas não menos ''informa111e". o próprio nome do jor-
nal (este nome constitu indo um saber que pode exercer grande in -
íluência sobre a leitura da mensagem 1iropriamente dita: uma foto-
grnfia pode ter sentidos diferentes se publicada no/' Aurore ou no
/' Humanité). Estas constatações são pertinentes, pois vemos que as
três partes tradicionais da mensagem compo11am métodos de inter-
pretação diferentes: a emissão e a recepção da mensagem são de
ordem sociológica: estudam grupos humanos, definem motivos e ati-
tudes e tentam relacionar o comportamento destes grupos à socie-
dade total de que fawm parte. Mas, no que se refere à própria men-
sagem, o método deve ser diferente: quaisquerque sejam sua origem
e finalidade. a fotografia não é apenas um produto ou um caminho.
é 1ambém um objeto. dotado de autonomia estrulllral; sem pretender
absolurameme separareste obje10 de sua fiJlalidade. faz-se necessário
prever um método particular. anterior à próptia análise sociológica,
e que só poderá ser a análise imaneme dessa estrutura original que é
tuna fotografia.

li
. É ev idente que, mesmo sob a ótica de uma análise pnramente Surge, assim , o estatuto próprio da imagem fotográfica: é uma men-
1ma11enre, a cs1nuura da fotografia não é uma estrnmra isolada: iden- sagem sem código; proposição de que se deduz imediatamente um
tüica-se, pelo menos, com uma outra estrurura, que é o tex to (título, importante corolário: a meJ\Sagem fotog(áJ'ica é uma mensagem
legenda ou ,migo) que acompanha !Oda fotografia jornalística. A contínua.
Lotahdacle da mfo1111ação está, pois, apoiada em duas estruturas di- Existirão outras mensagens sem código? À primeira vista, sim:
ferentes (uma das quais lingüística); essas duas estruturas são con- são prccisameme todas as reproduções analógicas da realidade: de-
correntes. mas, tendo unidades heterogêneas. não se podem con fun- senhos, pinturas. cinema. tealfo. Mas. oa verdade. cada uma dessas
dir; no text?· a substância da mensagem é constituída por palavras: mensagens desenvolve, de maneira imediata e ev idente. além cio pró-
na fotograha. por linhas, superfícies, matizes. Além disso, as duas prio conteúdo analógico (cena, objeto, paisagem), tuna mensagem
estruturas da mensagem ocupam espaços separados, contiguos, mas suplementar.queéoquecomumentescchamao es1i/odareprodução;
não"homogeneizados". como.porexemplo,em um réhusque funde traw-se de um sentido segundo. cujo signi fic,mteé tun ce110 "trata-
em uma única linha de leitura palavras e imagens. Assim, embora mento" da imagem sob a ação de seu criador e cujo significado-
não haja fotografia jornalística sem comentário escrito. a análise deve estético ou ideológico - rcmctc a uma certa "cuJ n,ra" da sociedade
focalizar, em primeiro lugar, cada estrutura isolada; somente após que recebé a imagem. Em suma, todas essas "anes" imitativas com-
ter-se esgotado o estudo de cada estrutura é que se poderá com- ponam duas mensagens: uma mensagem denotada que é o próprio
preender a maneira como as estruturas se completam. Das duas ã11alogon. e uma mensagem conorada que é a maneira~a qual a
estruturas, wna _já é conhecida, a da língua (mas. é bem verdade. oão socieélade õferece ã leitura. denu·o de uma cena medida, o cn1e ele
a da " li_teramra" que constitui~ palavra do jomal: sobre esse ponro pensa. Essa dualidade de mensagens -é evideme em todas as repro:
há um u~enso tr~balho a ser feito); a outrn, a da fotografia propria- duções não fotográficas: não há desenho, por mais ·'exato" que seja,
mente dua, é mais ou_n~enos conhecida. Limitar-nos-emos, aqui, a cuja exatidão não represente, ela própria, um estilo ("verista"); não
defimr as pnme1ras d1f1cuJdades de uma análise estrut1m1lda men- há cena fi Imada cuja objetividade não seja Lida como o próprio signo
sagem fotográfica. da objetividade. O estudo dessas mensagens conotadas está ainda
por fazer(seria fundameotal e necessário decidirse o que chamamos
obra de a11e pÕéleser reduzido a um sistema de significações); pode:
O PARADOXO FOTOGRÁFICO se apenas prever que, para todas essas artes imiiat i vãs. quando são
comuns. o código do sistema conotado é provavelmente constituído,
Qual o conteúdo da mensagem fotográfica? O que transmite a seja por uma simbologia universal. seja por uma retórica de época.
fotografia? Por clefioição. a própria cena. o literalmente real. Do em suma. por uma reserva de estereótipos (esquemas. cores. grafis-
objeto à sua imagem há,na verdade, nmaredução: de proporção, de mos, gestos, expressões. agrupamentos de elementos).
perspectiva e de cor. No entanto, essa redução não é, em momento Ora. em princípio. não é o caso da fotografia, pelo menos 110 que
algum. uma transformaçâo(nosentido matemáúco do tem10): para diz respeito à fotografia jornalística, que nunca é uma fotografia
passar do real à sua lotografia, não é absolutamente necessário di- ·'artística". A fotografia, considera ndo-se como um análogo
vidir est~ real em u,~idades e trnnsformar essas u11idades em signos mecânico do real, traz ltma mensagem primeira que, deceno modo.
substancialmente_ diferentes do objeto cuja leitura propõem: entre preenche plenamente sua substância e não deixa lugar ao desen-
esse obJeto_ e sua ,mage~ não é absolu1a111ente necessário interpor volvimento de um a mensagem segunda. Em suma, .dl:-.!2das as
um rela,.~, 1s10 é, um código; é bem verdade que a imagem não é o e:stmturas de infonnação,' a fotografia seria a única a ser exclu-
real, mas é, pelo menos. o seu analogon perfeit0. e é precisim,ente siVãmenteconstitu íâa por uma mensagem .rdenotacla 11 que esgotaria
esta perfeição analógica que. pfüa o senso comum, define a fotografia. totalmente seu ser; diánte de uma fotografia. o sentimeruo de ''de-

12 13
no1ação", ou de plenitude analógica, é tão fone, que a descrição ele pode, pois. a fo1ografia ser, ao mesmo tempo, "objetiva" e ''inves-
uma fotografia é, ao pé da letra, impossível; pois que descrever tida" (deou1 ros significados), natural e cultural? É captando o modo
consiste precisamente em acrescentar à mensagem denotada um re- de imbricação das mensagens denotada e conotada que se poderá,
lais ou uma segunda mensagem, extraída de um códigoqueé a I íngua. ialvez, responder a essa perguma. Mas, para empreender esse tra-
e queconstitui, fa1almente, qualquer que seja o cuidado que se tenha balho. é necessário lembrar que, na fo1ografia. a mensagem deno-
para ser exalo, uma conotação em relação ao imálogo fotogrMico: tada, sendo absolu1amen1e analógica. istoé. lmpossibilirada de recor-
~ er. p~tanto, não é somente ser lnexaro ou i'!_comple10; é rera um código. sendo comfnua. não cabe procurar as unidades sig-
mudar de estrurura. é s1gnificar uma coisa diferente-daqy ilo .91ieé nilicativas da primeira mensagem; ao contrário. a mensagem cono-
mos1rado.· - - tada comporta um plano de exp1-essão e um plano de conteúdo, sig-
Ora, esse estatu10 puramente "deno1ante" da fo1ografia, a per- nifican1es esignificados: obriga, assim, a uma verdadeira decifração.
feição e a plenirude de sua analogia, isto é, sua "objetividade", tudo Essa decifração seria ainda prematura, pois, para isolar as unidades
isso corre o risco de ser mítico (são as carac1erísticas que o senso significantes e os temas (ou valores) signlficados, seria necessário
comum atribui à fo1ografia): pois há, de fato, uma grande probabil i. pl'oceder-se (talvez por testes) a leituras dj rígidas, fazendo variar ar-
dacle (e isto setá uma hipótese de trabalho) de que a mensagem foto- tificialmente certos elementos da fotografia, de maneira a observar
gráfica (pelo menos a mensagem jornalíslica) seja,ela também, cono- se essas variações de fonna conduzem a variações de sentido. Pelo
tada. A conotação não se deixa apreender imediatamenle ao nível menos, podemos, desde já, prever os principais planos de análise da
da própria mensagem (é, ao mesmo tempo. invisível e at iva, clara e conotação fotográfica.
imp líci1a). mas já podemos atribuir-lhe certos fenômenos que se
passam ao nível da produção e da recepção da mensagem: por um
lado. uma fotogra fia jornalística é um objeto trabalhado, escolhido, OSPROCEDJMEl,tTOSDECONOTAÇÃO
composto. construído, tratado segundo normas profissionais.esté1i-
cas ou ideológicas, que são outros 1antos fato,-es de conotação; por A conotação, isto é, a imposição de um sentido segundo à men-
out ro lado, essa mesma fotografia não é apenas percebida e recebida, sagem fo1ográfica propriamente dita,elabora-se nos dife1-entes níveis
é hda, vinculada, mais ou menos conscientememe, pelo público que de produção da fotografia (escolha, processamento técnico, enqua-
a consome, a uma reserva tradicional de signos; ora, todo signo dramen10, diagramação): é, em suma, uma codificação do análogo
pressupõe um código. eé esse código (de conotação) que se deveria fotográfico; é, pois, possível depreender os procedimemos de cono-
tentaresiabelcccr. O p<LI-adoxo fotográficoconsis1iria, então. na co- tação; mas, é necessário lembrar que esses procedimentos nada têm
ex istência de duas mensagens: uma sem código (seria o análogo a ve,· com as unidades de significação que uma análise posterior -
fotográfico)eaoulracodificada (o que ser ia a "arte" ou o tratamento, do 1ipo semânlico - possibilitará, talvez um dia, definir: não fazem
ou a "escritura", ou a retórica da fotoorafia)·1 eslntturalmente· t o
~
propriamente parte da estrutura fotográfica. Esses procedimentos
pamdoxo Dão é, sem dúvida. a conjunção de uma mensagem c-0no- são conhecidos; limitar-nos-emos a traduzi-los em tennos es1rutu·
rada: aí esrá oesrawio provavelmente falai de Iodas as comunicações rais. A rigor, seria necessário separar os três primeiros (trucagem,
de massa; équca mensagem conotada (ou codificada) desenvolve- pose, objetos)dos trêsúhimos (fotogenia,esteticismo,simaxe). uma
se, aqui, a partir de urna mensagemsem código. Esse paradoxo estru- vez que, nesses tTês pri meiros procedimemos, a conotação é pro-
tural coincide com um paradoxo éúco: quando queremos ser "neu- duzida por urna mod ificação do próprio real, isto é, da mensagem
tr·os, objetivos", esforçamo-nos por copiar minuciosameme o real, denotada (não é, evidentememe, um procedimento específico da
como se o analógico fosse um fator de resistência ao invesiimento fotografia); se os incluúnos, porém, nos procedimentos de conotação
dos valores (6. pelo menos, a deliniçãodo '·realismo" estético): como fotogrMica. é porque 1ambém se beneficiam do prestígio da denota-

14 15
ção: a fotografia permite ao l'o1ógmfo evi1ar a preparação que ele tipadas que constituemelementos cristaliza~os designifi~ação (º !~os
impõe à cena que vai reproduzir; mesmo assim, do ponto de vista de voltados para o céu, mãos postas); uma · gramática hJStónca da
uma análise es1111rural posterior, não é certo que se possa levar em conotação iconográfica deveria. pois, procurar seu material na pin-
conta o material trazido por esses procedimentos. tura, no teatro, nas associações de idéias. nas metáforas usuais etc.,
isto é precisamente na "cultura". Como já foi dito, a pose não é um
proc;dimen10 especificamente fotográfico, mas é difícil não men-
1. Trucagem ciomi-la,já que seu efeito resulta do princípio analógico que é a base
da fotografia: a mensagem , aqui , não é "a pose", mas "Kennedy
Segundo se conia, em 195 J, uma fotografia largamente difundida rezando", o leitor recebe como uma simples denotação o que é, na
na imprensa americana custou o cargo ao Senador Millard Tydings: verdade, uma estrutura dupla, denotada-conotada.
a forografia representava o senador conversando com o líder comu-
nista Earl Browder. Tratava-se. na realidade, de u111 rruque foto-
gráfico que aprox imava a,tificialmente os dois rostos. A 1rucage111 3. Ob,ietos
caracteriza-se por imervir, sem prevenir, no própriofoteriordo plano
de denotação: utiliza a credibilidade inerente à fotografia, que, como É necessário atribuir uma i.mpo11ância especial ao que se poderia
vimos, consiste em seu extraordinário poder de denotação, para chamar a pose cios objetos, pois o sentido conotado surge, então, dos
apresentar co1110 simplesmente denotada uma mensagem que, na objetos fotografados (seja porque esses objetos lenham sido ,~·tifi-
verdade, é fortememe conotada; em nenhum outro procedimento a cialmeme dispostos diante da obJeuva - se o fotógrafo dispos de
conotação incorpora tão completamente a máscara "objetiva" da 1empo para isso - seja porque, entre vái'ias fotos, o d iagramador te-
denotação. Naturalmente, a significação só se toma possível quando nha escolhido a foto de tal ou tal objeto). O interesse está no fato de
há reserva de signos. esboço de código: aqui. osignificanre é a ali[U- que esses objetos são indutores co~rnns de associações de id~ias
de de coJwersação dos dois personagens: notar-se-á que esta ati rude (biblioteca= intelectual} ou,de maneira menosev,dente, verdadeiros
só se coma signo para uma certa sociedade, isto é, somente sob a símbolos (a po11a da câmara de gás de Chessmann remete à porta
influência de certos valores: é o anricomunismo intransigente do rúnebre das amigas mitologias). Esses objetos constituem excelen-
eleitorado americano que I ransforma os gestos dos i111erlocu1ores em tes elementos de significação: por um lado. são descontínuos e
signo de uma familiaridade condenável: o que significa que o código compleros em si mesmos, o que, para um signo, é uma qualidade
de conotação não é nem artificial (como em LU11a língua verdadeira}, rísic:L; e. por outro lado, remetem a significantes claros. conhecidos:
nem natural: é histórico. são, pois, elementos de um verdadeiro léxico, estáveis a ponto de se
poder faci lmente estabelecer sua sintaxe. Aqui está, por exemplo,
uma ·•composição" de objetos: uma janela aberra sobre um telhado,
2. Pose uma paisagem de vinhedos: diai1te da janela, um álbum de foto-
grafias. uma lupa, um vaso de flores; estamos, portanto, no campo,
Uma fotografia jornalística foi amplamente difundida po,· oca- ao sul do Loi re (vinhedos e telhas), em uma residência burguesa
siãodas tíllimaseleições americanas: o busto do Presidem~ Kennedy. (flores sobre a mesa), cujo morador idoso (lupa} revê suas lembranças
visto de perfil. olhos voltados para o céu, mãos postas. E a própria (álbum de fotografias): é François Mauriacem Malagar (em Paris-
pose do modelo que sugere a leitura dos significados deconoração: March): a conotação "emerge'' de alguma maneira de todas essas
juveotude, espiritualidade, pureza: a fotografia, evidentemente, só unidades sigoificao1es, ·'captadas'', no entanto, como se se tratasse
é significante porque nela ex iste um conteúdo de atiludes estereo- de uma cena imediara e espontânea, isto é, insignificante: está ex-

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1>licitada no 1cx ro. que desenvolve o tema das ligações terrenas de mence) à própria idéia de quadro (o que é contrário a ioda verdadeiJ-a
MaLLriac. O objeto talvez não possua mais umaforça, mas possui. pintura). e, por outro lado, a composição significa, aqui, de maneira
certamente. um sentido. clara, uma certa espiritualidade estática, traduzida precisamenteem
tem10s de espetáculo objeti vo. Isto nos leva à difere.iwa_eJ]J.r~ !J {Q[O:
grafia e a pintura: no guadro_~e um Primitivo, a "espiritualida?e'
4. Forogenia ·não é absoluiamente um s1g1l1ficado. mas, se podemos dizer assun,
ó próQrio.sê;·lfajmJ!g~E"; realmente. pode haver. em ceitas pinturas.
A teoria da fotogeniajáfoi elaborada (EdgarMorinem leCinéma elementos de código, figuras de retórica, símbolos de época; mas
ou/' Homme imagi11aire), e não cabe, aqui, analisarosignificado tota l nenhuma unidade significante remete à espiritualidade, que é uma
desse procedimento. Bastará defi nir a fotogenia em termos de estru- maneira de ser, não o objeto de uma mensagem estruturada.
tura info1111ativa: na fotogenia, a mensagem conotadaes1á na própria
imagem, "embelezada" (isto é, em geral, subl imada) por técnicas
de iluminação, impressão e tiragem. Essas 1écnicas deveriam ser 6. Simaxe
recenseadas. pois que a cada uma delas corresponde um significado
de conotação suficientemente constante para ser incorporado a um H falamos aqui de uma leitura discursiva de ob_jetos-signos no
léxico cultural dos --efeitos'' técnicos (por exemplo, o Jlou de mou- imerior da mesma fotog.rafia: naturalmenie, várias fotografias po-
vemenr ou filé. lançado pela equipe do Dr. Steinert para significar o dem formar uma seqüência (caso comum nas revistas ilusn-adas); o
espaço-tempo). Esse recenseamento seria. aliás, uma excelente significante de conotação, neste caso, não se encontra mais ao nível
ocasião para distinguir os efeitos estéticos dos efeiws significantes de qualquer dos fragmentos da seqüência, mas ao nível (supra-seg-
- com a condiç<lo de reconhecer, ~!~~?,,.9,!!P., en} f.orog!'.llfia, con- mcnrn l, diri am os lingü istas) do encadeamento. Eis quatro ins-
tr~ ~ às ere~~f2!~~os ~ exyosição, nuncahát1r1e, tantâneos de uma caçada presidencial em Rambouillet; a cada 1iro,
~1as, sempre, um .~ ntid9- ~ e o_poria. finalmente, segundo um o caçador (Yincent Auriol) aponta sua arma para uma direção im-
<2:itéri~eciso, a boa pintura (ainda gue fortemence figuraúva'[[. prevista, com grande risco para os guardas, que fogem ou se jogam
fotografia. · ao chão; a seqiiência (e só aseqüência)dá à leitura uma comiddade,
que p,·ovém,segundo um procedimento bem conhecido, da repetição
e da variação das atitudes. Obse,'Vamos, a esse respeito, que a foto-
5. Esrerismo gra l'ia solitária é muitO raramente (isto é. di ficilmente) cômica,
contrnriamente ao desenho: à comicidade é necessário o movimento,
Pois. se podemos falar de csteúsmo em fotografia, será, ao que isto é, a repc1 ição (o que é possível. no desenho), sendo impossíveis
parece, de mm1eira ambígua: quando a fotografia se faz pintura. isto essas duas "conotações" na fotografia.
é, composição ou substância vis ual del iberadamente tratada ·•na
palhern", é para significar-se ela própria como "arte" (caso do "pic-
torialismo" do início do século). ou para impor um significado ha- O TEXTO E A ll\1AGEM
bitualmente mais sutil e mais complexo do que aqueles permitidos
por outros procedimentos de conotação; Cartier-Bresson assim cons- São esses os principais métodos de conotação da imagem foto-
tru iu a recepção ao Cm·deal PaceU i 1>elos fiéis de Lisieux. como um gráfica (repito, traia-se de técnicas, não de unidades). A eles pode-
quadro de amigo mestre: essa fo1ografia. porém. não é absolutamente mos acrescetHar. de uma ma11eira consiame, o próprio texto que
urn quadro: por um lado, sua estética exposta remete (mal iciosa- acompanha a fotografia jornalística. Cabem, aqui, três observações.

18 19
Em primeirn lugar: ~ lo é uma mensagem earasita, dcsLinada estrutura à ouu·a, elaboram-se. farnlmeme. signi ficados s_cgundos.
a conotar a imagem. isto é...insuflar-lhe" um ou vários significados
Qual a relação desses significados de co~1otaçã~ com a unagem?
segundos. Melhor dizendo (e trata-se de uma importante inversão
Trara-se aparentemente de uma exphc11l\çao, isto e, dentro de certos
histórica), a imagem já não jj11!ftr(1 a palavra;_§a palavra que. estrut0-
limites, de uma ênfase; na maioria das vezes o texto lun!ta-se a
ral01ente, ! parasita c!,t imagenJ; essa inversão tem seu prcço:íios
ampli.ir um conjunto de cono1ações já incluídas ~a fo1ograf1_a; ~as,
moldes traillcionais de "ilustração'", a imagem funcionava corno uma
volta episódica à denotação, a panir de uma mensagem principal por vezes, também O lCXIO produz (1nven_la) ums1gruficado mte1ra-
mente novo. que é. de certo modo, proJetado retroativamente na
(o texto), que era sentido como conotado, já que necessicava pre-
ima!!em, a ponto de nela parecer denotado: ·'Es1iveram muiro per/o
cisamente de uma ilustração; J1ª rela_ção atualL a i11Jl\gem já níio
da ,;,one. suas.fisionomias o demousrram"~ diz a manchete, e, na
~~=.!_arec~r ou...'.J:~alizar" a Qalavra; ! a palavra que vem su-
focoo rafia, ~ê-se Elisabeth e Philip descendo do avião: no entanto,
blimar, patet izarou racionalizara imagem; mas, como essa operação
no n~omento em que a fotografia foi feita, os dois personagens amda
é feita a título acessótio. o novo conjunto infonnati vo 1>arece fun-
damenlado sobretudo numa meusagem objetiva (denotada), da ignoravam tudo sobre o acidente aéreo do qual_acabavam de esca-
par. Por vezes. a palavra pode chegar a contradizer a imagem, pro-
qual a palavra nàoémaisdoque uma espécie de vibração secundária,
duzindo uma conotaçãocompensadora; uma anáhsede Gerbner (The
quase inconseqüeme: ontem, a imagem ilustrava o texto (tornava-o
social a,wromy of1he romance co11fessio11 cover-girl) mostrou que,
mais claro); hoje, o texto toma a imagem mais pesada, impõe-lhe
em certas revistas românticas, a mensagem verbal das manchetes
uma cultura, uma mornl, uma imaginação: no passado, havia redução
da capa (de conteúdo dramático e angustiante) vinha sempre acom-
do texto à imagem; no presente, há uma amplificação recíproca: a
panhada da imagem de uma radiante cover-girl; aqui! as duas men-
conotação não significa mais uma ressonância natural da denotação
sagens entram em acordo; a cono1ação tem uma funçao regu !adora,
fundamental, constituída pela analogia fotográfica; estamos, pois,
preserva o jogo irracional da projcção-idcm ificação.
diante de um processo caracterizado de naturalização cuJluraJ.
Outra observação: o efeito de conotação é provavelmente dife-
reme conforme o modo de apresentação da palavra; quanto mais
A INSIGNIFICÂNCIA FOTOGRÁFICA
próxima está a palavra da imagem, menos parece conotá-la; devo-
rada, de uma certa forma. pela mensagem iconográfica, a mensagem
Vimos queocódigo de conotação não em, na realidade, nem "natu-
verbal parece participar de sua objet ividade: a conotação da Iingua-
ral", nem H:1rtificia1'', mas histórico, ou "cuJturaJH; código em que
gem "purifica-se•· através da denotação da fotografia; é bem vetdade
os signos são gestos, a1i t1.1dcs, expressões. cores ou efeitos, dotados
que nunca sedá uma incorporação verdadeira, pois que as substâncias
das duas estruturas (aqui gr,rnca, lá icônlca) são ÍITedutíveis: mas, de certos semidos em virtude dos usos de uma determ rnada so-
ciedade: a li.,ação entre o significante e o significado, isto é, a signi-
provavelmente, haverá uma gradação na amálga_
ma; a legenda tem,
ficação pro,;;_iamente dita, é aqui, se não imotivada, pelo menos in-
provavelmente, um efeito de conotação menos evidente do que a
teirameme histórica. Tudo o que podemos dizcréq1.1c o homem mo-
manchete ou o 1U1igo; útulo e artigo separam-se sensivelmente da
imagem, o título por seu de,5raque. a imagem por sua distância; um derno projeta na leitura da fotografia sentimentos e valores carac-
teriais. ou·"eternos", isto é, infra- ou trans-históricos, que a signi fi-
porque del imita, outro porque afasta o conteúdo da imagem; a
legenda. ao contrário. por sua própria disposição, por sua extensão cação é sempre elaborada por uma sociedade ou por 1'.ma história
defin idas: a signi ficação é, em suma, o mov.,mento d,aléuco que
limitada, para duplicar a imagem, is1oé. participa,·desuadcnotação.
resolve a contrad ição emre o homem cultural e o homem na'.u,-aL
É, noentanto, impossível (e esta seráa última observação sobre o
Graças a seu código de conotação, a leitura da fotografia e, pois,
texto) à palavra ··duplicar" a imagem; pois, na passagem de uma
sempre histórica; depende sempre do '·saber" do lei1or, tal como se
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fosse uma verdadeira língua, inteligível apenas para aqueles que árabes, ao centro um homem de gandoura etc.; a leitura, aqui. de-
aprenderam seus signos. Afinal, a "linguagem" fotográfica não deixa pende de minha cultura, de meu conhec imento do mu ndo; e é
de recordar algumas línguas ideográficas em que se mesclam provável que uma boa fotografia jornalística (todas o são, porque
~nidades ana.lógicas e signaléticas. com uma pequena diferença: o selecionadas} jogue com o suposto saber de seus lenores, escoU1endo
1de~grama é mterpr~rndo coroo um signo, enquanto a "cópia" foto- as cópias que b·agam a maior quantidade possível de info1mações
gráJJca pode ser considerada a denotação pw,1 e simples da real idade. desse tipo. de modo a iornar a leitura mais agradável; se fowgrafar-
Reencontrar esse código de conotação seria, pois. isolar, recensear mos Agadir destruída. será melhor dispormos de alguns sinais carac-
e estruturar tod~s.os_ elementos "históricos" da fotografia, rodas as terísticos de ·'arabicidade'·, e01 bora a "arabicidade" nada tenha pro-
partes dasuperflc1e fotográfica que retiram sua própria descontinui- priamente a ver com odesastre; pois a conoraçãoque deriva do saber
dade de um ce110 saber do leitor, ou de sua condição cu ltural. ~ sempre uma força tranqüilizadora: o homem ama os signos e os
Ora, nessa tarefa, será, talvez, necessário ir muito mais lon2e. Nada quer claros, evidentes.
indica que existam, na fotografia, partes "neutras"; pelo 1~enos a Conotação perceptiva. conotação cogn itiva: resta o problema da
tota l ins ignificância da fotografia talvez seja absolutame,;te conotação ideológica (no sentido rnais amplo do termo) ou ética,
exc_epcional; para resolver esse problema. seria necessário. em pri- aquela que introduz na leitura da imagem razões ou valores. É urna
meiro Jogar. esclarecercomplehunenteos mecanismos de leitura (no conotação forte, exige um significante muilO elaborado. freqüente-
senti~o físico e mais semântico do cermo), ou, sedesejam1os, de per- menie de ordem sintárica: encontro de personalidades (como vimos
cepçao da fotografia; ora, sobre esse assunto, não sabemos muita a respeito da trucagem). desenvolvimento de atitudes, constelação
coisa: como lemos uma fotografia? O que percebemos? Em que de objetos; o fiD10 do xá do Irã acaba de nascer: vê-se na fotografia:
ordem. segundo que itinerário? Se, segundo certas hipóteses de realeza (berço adorado por uma mullidão de servidores que o cer-
Bruner e P1aget, não há percepção sem categorizaçào imediata, a cam), riqueza (várias amas), higiene (unifonnes brancos, teto do
fotografia é verbalizada no exato momento em que é percebida; ou. berço em plaxiglas), e a condição irremediavelmente humana dos
melhor amda: só é percebida se verbalizada (ou, segundo a hipótese reis (o bebêcbora), enfim, todos os elementos contraditórios do mito
deG. Cohen-S&tt sobre a percepção fflmica, se a verbalização é lenta. principesco, tal como hoje é consumido. Trata-se, aqui, de valores
há d_esordem de percepção, interrogação. angústia do sujeito. trau- apolíticos, cujo Léxico é rico e Lransparente; é possível (mas é ape-
matismo). Nessa perspectiva. a imagem.captada imediatamente por nas uma hipótese) que, ao courrário, a conotação política seja, mais
uma meralingi,agem interior, que é a língua. não conheceria, re- freqücnremeote, confiada ao texto. já que as escolhas políc icas são
?l meme. nenhum escado denotado: só existiria socialmente. se sempre feitas. se assim podemos dizer, de má-fé: cada fotografia per-
imersa. pelo menos, em sua primeira conotação. a conotação das mite-me fazer uma leittU'a de direita ou de esquerda (ver a esse res-
categorias da lú1gua: e sabemos que toda Iíngua impõe-se às coisas. peito uma pesquisa do IFOP. publicada em Les Temps Modemes,
conota o real. ainda que mais não fosse para recorrá-lo; as conotações 1955); a denotação, ou sua aparência. é uma força impotente para
da fotografia coincidiriam. pois, grosso modo, com os <>randes pla- moei ificar as opiniões políticas: fotografia aiguma jamais convenceu
nos de conotação da linguagem. " ou desmenti u quem quer que seja (mas pode "confirmar"), na me-
, Assim, além da conotação "perceptiva", hipotética. porém pos- dida em que a consciência política talvez inexista fora do logos;
s1vel, enc~nt:rnríamos, então, modos decol)otação mais pa,1 iculares. polít ica é aqui lo que permite rodas as linguagens.
Em pnme1ro lugar, uma conotação "cognitiva", cujos significames Essas observações constituem um esboço, uma espécie de quadro
senam esc_ollúdos_, localizados i:m cerras panes do a11alogo11: diante diferencial das conotações fotográficas; podemos ver que a cono-
<!e ~eterllllnada vista de uma c,dade, sei que estou em um país da tação vai muito longe. Isto equivaleria a dizer que ,una pura deno-
Afnca do Norte. porque vejo. à esquerda, um c,1rraz em caracteres tação, algo aquém da linguagem, é impossível? Se existe, talvez não

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fosse uma verdadeira língua, inteligível apenas para aqueles que árabes, ao centro unJ homem de gondoura etc.: a leitura. aqui. de-
aprenderam seus signos. Afinal, a "Iinguagem" fotográfica não deixa pende de minha coltura, de meu conhec imento do mu ndo: e é
de recordar algumas línguas ideográficas em que se mesclam provável que uma boa fotografia jornalística (todas o são, porque
'."1idades an~lógicas e signaléticas, com urna pequena diferença: o selecionadas) jogue com o suposto saber de seus leitores, escolhendo
ideograma é mterprerado coroo um signo, enquanto a "cópia" foto- .is cópias que tragam a maior quantidade possível de info1111ações
gráfica pode ser considerada a denotação pura e simples da realidade. desse tipo. de modo a 1ornar a leitura mais agradável; se fotografar-
Reenconrrar esse código de conotação seria, pois, isolar, recensear mos Agadir destruída. será melhor dispormos de alguns sinais carac-
e estruturar todos_os elementos "históricos'' ela fotografia, rodas as terísticos de "arabicidade'', embora a "arabicidade" nada tenha pro-
partes da superfície fotográfica que retiram sua própria descontinui- priamente a ver com odesastre; pois a conotação que deriva do saber
dade de um ce1to saber do leitor, ou de sua condição cultural. é sempre uma força tranqüilizadora: o homem ama os signos e os
Ora. nessa tarefa, será. talvez, necessário irmuiro mais longe. Nada quer claros, evidentes.
indi.ca que existam, na fotografia, partes " nemras": pelo menos. a Cono1ação perceptiva, conotação cogn itiva: resta o problema da
rota i i1)s ignificância da fotografia talvez seja absol uta mente conotação ideológica (no sentido mais amplo do termo) ou ética,
e.~c_epc1onal; para resolver esse problema. seria necessário. em pri- aquela que introduz na leitura da imagem razões ou valores. É uma
meu·o lngar, esclarecer compleuunenteos mecanismos de lcit ura (no conotação forte, exige um significante muito elaborado, freq üente-
senti~o físico e mais semântico do tenno), ou, sedesejaonos. de per- mente de ordem sintácica: encontro de personalidades (como vimos
cepçao da fotografia; ora. sobre esse assunto, não sabemos muita a respeito da trucagern), desenvolvimento de atitudes, constelação
coisa: como lemos uma fotografia? O que percebemos? Em que de objetos; o filho do xá do Irã acaba de nascer: vê-se na fo1ografia:
ordem. segundo que itinerário? Se, segundo certas hipóteses de realeza (berço adorado por uma multidão de servidores que o cer-
Bruner e P1aget, não há percepção sem categorização imediata, a ci1n1), riqueza (várias amas), higiene (unifom1es brancos. teto do
fotografia é verbalizada no exato momento em que é percebida; ou, berço em plaxiglas), e a condição irremediavelmente humana dos
melhor awda: só é percebida se verbalizada (ou, segundo a hipótese reis (o bebêcbora), enfim, todos os elementos contraditórios do mito
deG. Cohen-Séa! sobre a percepção fíJmica, se a verbalização é lenta. principesco, tal como hoje é consumido. Trata-se, aqui, de valores
há d_csordem de pe1·cepção, interrogação. angústia do sujei10, trau- apolíticos, cujo léxico é rico e Lransparente; é possível (mas é ape-
matismo). Nessa perspectiva, a imagem.captada imediatamente por nas uma hipótese) que, ao comrário, a conotação política seja, mais
uma me1alinguagem interior, que é a língua. não conheceria, re- freqiieo1emen1e, confiada ao texto. já que as escolhas polít icas são
?lmcnie, nenhum estado denotado; só existi ria socialmente, se sempre fciias. se assim podemosdi.zer,de má fé: cada fotografia per-
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unersa. pelo menos, em sua primeira conotação, a conotação das 111i1e-me fazer urna leitura de direita ou de esquerda (ver a esse res-
categorias da lú1gua: e sabemos que toda Iíngua impõe-se às coisas. peito uma pesquisa do IFOP. publicada em Les Temps Modemes,
co~o1.a o re~I, ainda q~e. mais não fosse para recortá-lo; as conotações 1955); a denotação, ou sua aparência. é uma força irnpo1eme para
da fotografia comc,dmam. pois, grosso modo, com os grandes pla- modificar as opi1úões políticas: fotografia alguma jamais convenceu
nos de conotação da linguagem. ou desmentiu quem quer que seja (mas pode "confirmar"), na me-
, Assim, além da conotação "perceptiva", hipotética. porém pos- dida em que a consciência política talvez inexista fora do logos:
s,vel, encontraríamos, então, modos de conotação mais pa11 iculares. polít ica é aqui lo que pennite rodas as linguagens.
En: prune1ro lugar, uma conotação "cognitiva", cujos significantes Essas observações constituem um esboço. uma espécie de quadro
senameswlh idos, localizados em cerras p.uiesdoa11a/ogo11: diante diferencial elas conotações fotogl'áficas; podemos ver que a cono-
qe ~etermrnada vista de uma cidade, .fei gue estou em um país da tação vai muito longe. Isto equivaleria a dizer que uma pura deno-
Afnca do Norte. porque vejo, à esquerda, um canaz em caracteres tação, algo aquém do linguagem, é impossível'? Seexiste, !aivez não

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seja ao 1úvel do que a linguagem corrente chama o insignificame, o fonnas que nossa sociedade util iza para uanql\ilizar-se, e, assb~1,
nemro. o objelivo, mas, ao cotllrário, ao nível das imagens propria-
captar a med_·c1l a ceita
' , os desvios e a função• profunda desse
• ,, • esforço
b
mente traumáticas: o trauma é precisameme aquilo que interrompe .. ·1· ador· per<pecúva a1raeme comod,ssernos no m,c,o,
1ranqu1,z . º ' .' . . . 1so re-
b
a linguagem e bloqueia a sign ificação. É cen o que as situações oor- tudo no que diz respeito à fotografia, po,s que elasedese~vo vc so
malmeme traumáticas podem ser captadas em um processo de sig- a fonna de um paradoxo: aquele que faz de um O~J~lo 11~:ne_ ~.m~
nificação fotográfica; mas. cmão, são assinaladas por um código liJiguagem e que transforma a incultura de uma arlc mecamc,t nd
retórico, que as disumcia, as sublima, as abranda. As fotos propria- mais social das insri1ui9ões.
mente traumáticas são raras, pois na fotografia o trauma é. na ver-
dade, a conseqüência da ce11eza de que a cena realmeme aconteceu: 196 1. C(mumuri('a,io,rs,
o fo1óg rafo tinha q"e estar lá (é a definição míti ca da denotação);
mas. isto posto (o que, na verdade.já é uma conotação), a fotografia
rraumática (incêndios. naufrágios. catástrofes, mortes violentas.
tomadas "ao vivo") é aquela de que nada se tem a dizer: a foto-choque
é, estruturalmente. insignificante: nenhum valor, nenhum saber. em NOTAS
última análise, nenhuma caregorização verbal pode influir sobre o
processo institucional da sigoificação. Poderíamos imaginar uma ITr~mi-se, evidcntcmenie. de cstrut1.1ras "culrurnis'' ou "c.uh.ural~za~as" e _não d~
estniiu~lSoperacionais: a matemática. por exemplo. cons111m uma C:-itrutura d~no
espécie de lei: quanto mais direto é o trawna, mais difíci l a cono- , d::l se~~ uai uer conotação: mas. se :1 ~ocíedadc de massa dela se ~pr~pna~ e
tação; ou ainda: o efeito ·'mitológico" de uma fotografia é inversa- tu , , porcxcmp
coloc,\r q , q lo. uma fôrm,,la al•ébrica
< ~ em um anig_o co,,sagrado
- a EmS1C
.. •lll.
mcme proporcional a seu efeito traumático. essa me.nsagcm. puramente matcmá1ica na origem. assume uma conow.ç;to mu110
Por quê? Sem dúvida porque, como toda significação bem estru- >es·ida pois <iuc ~·ignifica a ciênchl.
turada. a conotação fotográfica é uma atividade institucional; cm to- !0 ~,;;cr;ver um d~scilho é mais fáciJ. pois que se n~1a: en1s~ma. ~.e descrc:vcr un~a
esirumrajáconoiad:1. uabalhadacomvis1as a umas1g:111ficaçaococ,ijicado.' E, 1alve7~
da a escala social, sua função é de integrar o homem, isto é. de dar- ~r essa r~ão que os testes psicológicos u1iliz:un muitos desenhos e nw 1t0 poucas
lhe segurança; todo código é simulta.ne1Uneote arbitrário e racional: fotog,rnfi::1.s.
todo recurso a um código é. portanto. uma maneira de que o homem
dispõe para provar-se. para pôr-se à prova, através de uma raz.10 e
de uma liberdade. Nesse sentido. a anál ise dos códigos talvez per-
mi1a definir 11is1oricamente uma sociedade. rnais facilmente e com
mais segun1nça do que a 1U1álise de seus significados, pois estes
podem, muitas vezes, ap1U·ecercomo trans-históricos. fazendo parte
mais de um fundo antropológico do que de uma história verdadeira:
Hegel definiu melhor os antigos gregos através da maneira pela qual
~~gnifiéav]..mJ.1,1iãtüiezã, do que através da descriçã<?_do conjuni'Õ-de
seus "sentimentos e cren_ças" com relação à naturéza. Támbém oós,
possivelmente, temos algo de melhor a fazer do que recensear di-
retamente os conteúdos ideológicos de nosso tempo; pois, ao 1entar
reconStruir, em sua estrutura específica. o código de conotação de
um meio de comunicação tào abrangente quamo a fotografia jor-
nalística, podemos esperar encontrar. em sua própria astúcia. as

24
25
,
A RETORICA DA IMAGEM

~e11und_o ur12a.fil!!!ga etim<2J2.gia, a_p1!Javraimagem deveria e.@


ligada à raiz de imitari. E chegamos, imediatamente, ao cerne do
problema mais importante que se possa apresentar à semiologia das
imagens: a representação analógica (a "cópia") poderá produzir
verdadeiros sistemas de signos. e não mais apenas simples agluti-·
nações de símbolos? Será concebível um "código" analógico - e
não mais digital? Sabe-se que os lingüistas eliminam da linguagem
toda comunicação por analogia, da "Unguagem" das abelhas à "lin-
guagem" gestual, pois que essas comunicações são duplamente
articuladas, isto é, definitivamente fundamentadas sobre uma com-
bÍl\ação de unidades digitais, como são os fonemas. Os lingü.istas
não são os únicos a suspeitar da natureza lingüística da imagem; a
opinião geral também considera-confusamente-a imagem como
um centro de resistência ao sentido, em nome de uma certa idéia
mítica da Vida: a imagem é representação, istoé,ressurreição, esabe-
se que o inteligível é tido como antipático ao vivenciado. Assim, de
ambos os lados, a analogia é considerada como um sentido pobre:
uns ~sam q!)~ gem é um sl sieroa_n:w.!!2..rudimentar_!m_re-_
fãção à línfil!?: <!_1!troS,$1U~ª significação nãopode esgotar a riqu~~
fügig:í~eJ_da, i~ ru:ç,m. Ora, mesmo - e sobretudo- se imagem é,
de uma certa maneira, limite do sentido, permite-nos, no entanto,
voltar a uma verdadeira ontologia da significação. Como o sentido
chega à ima~em? Onde termina o sentido? E, se termina, oqueexiste
além dele? Ea pergunta que gostaríamos de propor, submetendo a
imagem a uma análise espectral das mensagens que pode conter. Ten-
taremos, inicialmente, facilitar - e muito: estudaremos apenas a

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imagem publicitária. Porquê? Porque, em publicid;1de, a significação nos usos de uma civilização mui to ampla,em que "fazersuas próprias
da imagem é, certamente. intencional: são certos atributos do pro- compras no mercado" opõe-se a uma forma mais prática e inde-
dutoquefo~mam a priori os significados da mensagem publicitária, pendente de abastecimento (conservas, congelados), característica
e estes significados devem ser transmitidos tão claramente quanto de uma civilização mais "mecanizada". Um segundo signo é quase
possível; se a im_agem contém signos, teremos certeza que, em pu- tão evidente quanto o primeiro; seu significante é o conjunto formado
blicidade,esses signos são plenos, fonnados com vistas a uma melhor pelo tomaree pelo pimentão e a correspondente combinação tricolor
leitura: a mensagem publicitária éfi·anca, ou pelo menos. enfática. (amarelo, verde, vermelho) do cartaz; seu significado é a Itália. ou
antes, a italianidade; este signo está em relação de redundância com
o signo conotado da mensagem lingüística (a assonância italiana do
AS TRÊS MENSAGENS nome Panzani); o saber mobilizado por esse signo já é mais
específico: é um saber tipicamente "francês" (os italianos não per-
Temos aqui uma publicidade Pa11za11i: pacotes de massas, uma ceberiam a conotação do nome próprio, tampouco a italianidade do
làta, tomates, cebolas, pimentões. um cogumelo. rodo o conjunto tomate e do pimentão), baseado no conhecimento de cel'tos
saindo de uma sacola de compras entreaberta, em tons de amarelo e estereótipos turísticos. Continuando a explorar a imagem (o que não
verde sobre fundo vermelho.' Vamos tentar selecionar o que há de significa que ela não seja límpida desde o primeiro momento), des-
melhor nas diferentes mensagens que contém essa publicidade. cobrimos, facilmente, pelo men.os dois outros signos; em um deles,
A imagem revela imediatamente uma primeirn mensagem. cuja a presença compacta de objetos diferentes transmite a idéia de um
su_bstância é lingüística; seus suportes são a legenda, marginal e as serviço culinário completo, como se, por um lado, Panzani fome-
euquetas, que são inseridas no natllfal da cena, como en abíme· o cesse todos os ingredientes necessários a um prnto variado, e, po.r
eódlgo que expressa a mensagem é a língua francesa; para co~- outro lado. o molho de tomate concentrado da lata igualasse em
preendê-,la, pois, é apenas necessário que se saiba ler e que seco- qualidade e frescura os produtos naturais que o cercam, a cena es-
nheça o francês. Na realidade, a própria mensagem pode, ainda, se tabelecendo, dece.rta maneiia, a ligação entre a origem dos produtos
decompor, pois o signo Pa11Za11i não se li.nJ.ita a informar o nome da e seu e,~rágio fioal; no outro signo, a composição, evocando a lem-
firma, como também, por sua assooância. tem um significado suple- brança de tantas representações de alimentos, remete a um signifi-
memarqueé a "italianidade": a mensagem lingüística é, assim, dupla cado estético: é a "natureza-morta", ou, como émelhorditoem outras
(pelos men.os nesta imagem): denotação e conotação; no entanto, línguas, o still living;' aqui, o saber necessário é essencialmen.te
como há, aqui, apenas um signo rípico,2 o da linguagem articulada cultural. Podeóamos sugerir que, a esses quatro signos, venl1ajus-
(escrita). consideramos que há apenas uma mensagem. tar-se uma última iJJformação, que nos diz que aqui se trata de um.a
.Deixando de _lado a mensagem lingüística. resta a imagem pura publicidade proveniente, ao mesmo tempo, da localização da ima-
(amda que as e11quetas dela façam !?arre, a título anedótico). Essa gem na revista e da repetição das etiquetas Panzani (deixando de lado
imagem apresenta, em seguida, uma série de si"nos descontínuos. a legenda); esta última iJJformaçãoé, porém, extensiva à cena; foge,
Inicialmente (esta ordem é indiferente, já que o: signos não são li- de certa maneira, à significação, na medida em que a natureza publi-
neares), a idéia de que se trata, na cena representada, de uma volta citária da imagem é e-ssenciabnente funci.o.nal: expressar alguma
do mercado; esta significação contém dois valores positivos: o bom eoisa não significa forçosamente: eu falo., salvo em sistemas deli-
estado,_a frescura dos produtos e a refeição puramente caseira a que beradamente reflexivos, como a literatura.
se destmam; seu s1gmf1cante é a sacola entreaberta, o que faz com Temos, pois, quatro signos para essa imagem, formando pre-
que os produtos, sem embalagem, espaJ.bem-se sobre a mesa. Para sumivelmente um conjunto coerente, pois são rodos descontínuos,
ler este primeiio signo bastará um saber de certa forma implantado exigem um saber geralmente cullural e remetem a significados

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globais (por exemplo, a ita/ia11idade), impregnados de valores eufóri- se faz espontaneamente ao nível da leirura corrente: o espectador da
cos: seguindo-se à mensagem lingüística, veremos uma segunda imagemrecebeaomesmotempoamensagem perceptivaeacultural..
mensagem, de natureza icônica. Será tudo'1 Sereliram1os todos esses e veremos mais adirulle que esta confusão de leitura corresponde à
signos da imagem, restará, ainda, um certo material informativo; função ela imagem de massa (de que tratamos aqui). Adistinção rem.
privado de rodo saber, continuo a "ler" a imagem, a •·compreender" no entanto, uma validade operatória, análoga àquela que permite
que ela reúne, em um mesmo espaço, um cerro número de objetos disünguir no signo lingüístico um significante e um significado,
idenlificáveis (nomeáveis) e não somente formas e cores. Os signi- embora, oa realidade, ninguém possa separar o "vocábulo" de seu
ficados dessa terceira mensagem são formados pelos objetos r~ais sentido sem recorrer à metalinguagem de uma definição: se a
da cena, e os significances por esses mesmos objetos fotografados, distinção permite descrever a estrutura da imagem de maneirn coe-
pois é evidente que, na representação analógica, a relação entre a rente e simples, e se a descrição assim feira prepara uma explicação
coisasign.ificada ea imagem significante, não sendo mais "arbiü'ária" do papel de imagem na sociedade, nós a consideramos justificada.
(como é na língua), dispensa ore/ai de um rerceiro tem10, sob a forma É, pois, necessário rever cada ripo de mensagem, explorando-a em
da imagem psíquica do objero. O que especifica essa terceira men- sua generalidade, sem esquecer que buscamos compreender a estru-
sagem é, na realidade, que a relação do significado edo significante 1ura da imagem em seuconjun10,is10 é. a relação final das rrês men-
é quase taurológica; sem dúvida, a fotografia implica uma cerra or- sagens e11tre s.i. Todav.ia, uma vez que já não se 1ra1a de uma análise
ganização da cena (enquadramento, redução, acharamenro), mas essa "ingênua". e sim de uma descrição estrutural,' modificaremos um
passagem não é uma transforma:ção (como pode ser uma codifi- pouco a ordem das mensagens, invertendo a mensagem cultutal e a
cação); h,í aqui uma perda da equivalência (característica dos ver- mensagem literal; das duas mensagens icônicas, aprimeiraestácomo
dadeiros sistemas de signos) e a posição de uma quase identidade. que gravada sobre a segunda: a mensagem lireral aparece como
Em outras palavras, o signo dessa mensagem já não provém de uma supone da mensagem "simbólica". Sabemos que um sistema que
reserva institucional, não é codificado, e trata-se de um paradoxo adota os signos de outro sisrema, para deles fazer seus significantes.
(ao qual voharemos adiante) de uma mensagem sem c6digo.• Esta é um sistema de cono1ação;6 podemos, pois, desde já afirmar que a
particularidade é reenco1\trada ao nível do saberinveslido na leitura lmagem literal é ·denotada, e a imagem simbólica é co1101ada. Es-
de uma mensagem: para ''ler" este últ.imo (ou este primeiro) nível tudaremos sucessivamente a mensagem lingüística, a imagem de-
da imagem. não necessitamos apenas o saber que esrá ligado à nossa notada e a imagem conorada.
percepção: não é nulo, pois que devemos sabe.ro que é uma imagem
(as crianças só o aprendem porvoha dos quatro anos) e o que são um
1oma1e, uma sacola de compras, um pacore de massas: trata-se, no A MENSAGEM LINGÜÍSTICA
entanto, de um saber quase a111ropológico. Esra mensagem corres-
ponde, de certa forma, ao sentido da imagem, e vamos chamá-la A mensagem lingüística será constante? Haverá sempre texto no
mensagem literal, por oposição à mensagem precedenre, que é uma inrerior, abaixo ou à volta da imagem? Para encontrar imagens sem
mensagem simbólica. palavras. será.talvez, necessário remontar a sociedades parciaJmeore
Se nossa leitura é satisfatória, a forografia analisada propõe-nos, analfabetas, isto é, uma espécie de estado pictográfico da imagem;
enrão. três mensagens: uma mensagem li.ngüistica, uma mensagem na verdade, desde o aparecimenro do livro, a vinculação texto-
icônica codificada e uma mensagem icônica não codificada. A imagem é freqüenre, ligação que parece rer sido pouco estudada do
mensagem lingiiísrica dislingue-se facilmente das duas outras, mas, ponto de vista estrutural; qua.l é a esrrutura significante da " ilus-
tendo a mesma subsrância (icônica), até que pomo é líciro separá- rração"? A imagem duplica cerras infonnações do texto, por um
las? É verdade que a disrinção emre as duas mensagens icônicas não fenômeno de redundância, ouéo rextoque acrescenta à imagem uma

30 31

...
iofonnação inédita? O problema poderia ser formulado em tennos da nomenclatura; diante de um prato (publicidade Amieux), posso
históricos com relação à época clássica, que teve verdadeira paixão besitar em identificar as formas e os volumes; a legenda ("arroz e
pelos livros ilustrados (não se poderia conceber. no século XYIIl. atum com cogumelos") ajuda-me a escolher o bom nível de per-
as Fábulas de La Fontai.ne sem ilustrações), época em que autores, cepção; permite-me adaptar não apenas meu olhar, mas também
como Méne11trier, estudaram as relações entre.a imagem e o discur- mioba intelecção. Ao nível da mensagem "simbólica' ', a mensagem
sivo,' Hoje, ao nível das comunicações de massa, quer-nos parecer lingüística orienta não mais a identificação, mas a interpretação,
que a mensagem lingüística está presenteem todas as imagens: como constitui uma espécie de barreira que impede a proliferação dos
·título, como legenda, como matéria jornal.ístfoa, como legendas de sencidos conotados, seja em direção a regiõe,5 demasiadamente in-
filme, como ji,meuo; como se vê, questiona-se hoje o que se cha- dividuais (isto é, .limita o poder de projeção da imagem). seja em
mou a civilização da imagem: somos ainda, e mais do que nunca, direção aos valores disfóricos; a publicidade das conservas d' Arcy
uma civilização da escrita/ porque a escriia e a palavra são termos mos ira frutas espalhadas à volla de uma escada de jardim; a legenda
carregados de estrutura infonnacional. Na verdade, só a presença ("como se você 1ivess~ percorrido seu pom(lr") afasta um signifi-
da mensagem lingüística é importante, pois, nem seu Jugar,nem sua cado possível (parcimônia, colheita pobre), o que seria negativo, e
extensão parecem pertinentes (um texto longo pode ter apenas um orienta aJeitura para um significado lisonjeiro (caráternatural e pes-
signi.fica'do global, graças à conotação. e é esse significado que se soal dos frutos do pomar particular); a legenda atua, aqui, como um
relaciona com a imagem). Quais são as funções da mensagem antitabu, combate o mito ingrato do a,ti1icial, comumente ligado às
lingüística em relação à mensagem icônica (dupla)? Parece-me que conservas. É evidente que, fora da publicidade, a fixação pode ser
há duas relações: deflwção e de re/(lis. ideológica, e esta é, sem dúvida, sua função principal: o texto con-
Como veremos mais adiante, toda imagem é polissêmica e duz o leitor por entre os significados da imagem, fazendo com que
pressupõe, subjacente a seus significaotes, uma "cadeia tlutuante" se desvie de alguns e assimile outros; através de um disparching,
de significados, podendo o leicor escolher alguns e ignorar outros. muitas vezes sutil, ele o teleguia em direção a um sentido escolhido
A polissemia leva a uma interrogação sobre o sentido; ora, essa in- a priori. Em todos es~es casos de fixação, a linguagem tem, eviden-
terrogação aparece, sempre, como uma disfunção, mesmo que essa temente, uma função elucidativa, mas esta elucidação é seletiva;
disfunção seja recuperada pela sociedade sob a forma dejogo trágico traia-se de uma metalinguagem aplicada não à totalidade da men-
(Deus, mudo, não permite escolher entre os signos) ou poético (é o sagem icónica, mas unicamence a alguns de seus signos; o texto é
frissor1 du sens - pi\nico- dos antigos gregos; no próprio cinema, realmente a possibilidade do criador (e, logo, a sociedade) de exer-
as imagens traumáticas estão ligadas a uma incerteza (a uma inquie- cerum controle sobre a imagem: a fixação é um controle, detém uma
tação) sobre o sentido dos objetos ou das atitudes. Desenvolvem- responsabilidade sobre o uso da mensagem, frente ao poder de pro-
se. assim, em todas as sociedades, técnicasdiversas destinadas ajix(lr jeção das ilustrações; o texto tem um valor repressivo'º em relação
a cadeia tluruantedos significados, de modo a combater o te1rnr dos à liberdade dos significados da imagem; compreende-se que seja ao
signos incertos: a mensagem Jingüistica é uma dessas técnicas., Ao nível do texto que se dê o investimento da moral e da ideologia de
nível da mensagem literal, a palavra responde, de maneira mais ou uma sociedade.
menos direta, mais ou menos parcial, à pergunca: o que é? Ajuda a A fixação é a função mais freqüente da mensagem lingüística; é
identificar pura esi.mplesmente os elementos da cena ea própria cena: comumente encontrada na fotografia jornalística e na publicidade.
trata-se de uma descrição denotada da imagem (descrição muitas A função de relais é mais rara (pelo menos no que concerne à imagem
vezes parcial) ou, na temlinologia de Hjelmslev. de uma operação fixa); vamos encootrá-la sobretudo nas charges e nas histórias em
(oposta à conotação).? A função denominativa corresponde a uma quadrinhos. Aqui a palavra (na maioria das vezes um trecho de
fixação de todos os sentidos possíveis (denotados) do objeto, através diálogo) e a im.agem têm uma relação de complementaridade; as

32 33

(§s-SISTEMA DE BIBLIOTECAS \
palavras são, então, fragmentos de um sintagma mais geral, assim "composição de natureza-mona''); esieestado privativo corresponde
como as imagens, e a unidade da mensagem é folia em um nível naturalmente a uma plenitude de virtualidades: trata-se de uma
superior: o da história, o da anedota, o da diegese (o que confirma ausência de sentido que contém todos os sentidos; é também uma
que a diegese deve ser tratada como um sistema a_utônomo). 11 Rara mensagem suficiente, pois tem, pelo menos, um sentido ao nível da
na imagem fixa, essa palavra-re/a,s corna-se muno unportante no identificação da cena representada; a letra da imagem correspo!lde,
cinema, onde o diálogo não tem uma função de simples elucidação, em suma, ao primeiro grau do inteligível (aquém desse grau, o leitor
mas faz realmente progredir a ação, colocando, na seqüência das perceberá apenas linhas, formas e cores), porém esse inteligível
mensagens. os sentidos que a imagem não contém. As duas funções permanece vinual em razão de sua própria pobreza, pois, quem quer
da mensagem lingüística podem, evidentemente, coexistir em um que seja, oriundo de uma sociedade real, dispõe sempre de um saber
mesmo conjunto icônico, mas o predomínio de uma delas certamente superior ao saber antropológico e percebe além da letra; simultane-
não é indiferente à economia geral da obra; quando a palavra tem amente privativa e suficiente, compreende-seque, em uma perspec-
um valor diegético de relais, a informação é mais difícil, pois que tiva estél ica, a mensagem denotada possa aparecer como uma espécie
pressupõe a aprendizagem de um código digital (a língua); quando de estado adâmico da imagem; utopicamente liberada de suas cono-
a imagem tem um valor substitutivo (de fixação ou de controle), é tações, a imagem tomar-se-ia radicalmenteobjetiva, isto é, inocente.
ela que detém a carga informativa e, como a imagem é analógica, a Este caráter utópico da denotação é consideravelmente reforçado
informação é, de uma certa forma, mais "preguiçosa": em algumas pelo paradoxo já enunciado, que faz co.m.que a fotografia (em seu
histórias em quadrinhos destinadas a uma leimra "rápida", a diege- estado literal), e em razão de sua natureza absolutamente analógica,
seéconfiada sobretudo à palavra, cabendo à imagem as infonnações pareça constituir uma mensagem sem código. Todavia, a análise
atributivas, de ordem paradigmática (estatuto estereotipado dos per- estrutural da imagem especifica-se aqui, pois, de todas as imagens,
sonagens): faz-se coincidir a mensagem difícil e a mensagem dis- só a fotografia possui o poder de transmitira informação (literal) sem
cursiva, de modo a evitar ao leitor. apressado o incômodo das "des- a compor com a ajuda de signos descontílluos e regras de transfor-
crições" verbais, aqui confiadas à imagem, isto é, a um sistema menos mação. Deve-se, pois, opor a fotografia, mensagem sem código, ao
"trabalhoso". desenho, que, embora denotado, é uma mensagem codificada. A
natureza codificada do desenho aparece em três 1úveis: inicialmente,
reproduzir um objeto ou uma cena através do desenho, obriga a um
A IMAGEM DENOTADA conjunto de transposições regulamenradas; não existe uma natureza
da cópia pictórica, e os códigos de transposição são históricos (so-
Vimos que, na imagem propriamente dita, a distinção entre a bretudo no que tange a perspectiva); em seguida, a operação de
mensagem literal e a mensagem simbólica era operatória; nunca se desenhar (a codificação) obriga imedia1amente a uma certa divisão
encontra (pelo menos em publicidade) uma imagem literal em es- entre o significante e o insignificante: o desenho não reproduz wdo,
tado puro; mesmo que conseguíssemos elaborar uma imagem intei- freqüentemente reproduz muito pouca coisa, sem, porém, deixar de
ramente " ingênua". a ela se incorporaria, imediatamente, o signo da ser uma mensagen1 fone, ao passo que a fotografia, se por um )ado
ingenuidadee a ela se acrescentaria uma terceira mensagem, sim- pode escolher seu tema, seu enquadramento e seu ângulo, por outro
bólica. Os caracteres da mensagem literal não podem, pois. ser lado não pode in1ervir no interior do objeto (salvo trucagem); em
substanciais, mas sim relacionais; é, inicialmente, uma mensagem outras palavras, a denotação do desenho é menos pura do que a
privativa, constituída pelo que resta na imagem, quando apagamos denotação fotográfica, pois nunca há desenho sem estilo: fillalmeote.
(menta!mente) os signos deconotação (retirá-los não seria realmente como todos os códigos, o desenho ex ige uma aprendizagem
possível, pois podem impregnar toda a imagem, como no caso da (Saussure atribuía grande importância a esse fato semiológico). Terá

34 35

..,I
a codificação da mensagem denotada conseqüências sobre a men- (poucos testes psicológ.icos recorrem à fotografia, muitos recorrem
sa"em conotada? É certo que a codificação da letra prepara e facili- ao desenho): isro foi investe contra o sou eu. Se essas observações
ta; conotação, pois a primeira já dispõe de uma certa descoo.tinui- procedem, seria, então, necessário vincular a fotografia a uma pura
dade na imae:em: a "feitura" deum desennojáé uma conotação; mas, consciência "espectatorial" e não à consciência ficcional, mais pro-
ao mesmo t; mpo, à medida que o desenho exibe sua codificação, a jetiva, mais "mágica", de que depeoderia, grosso modo, o cinema;
relação entre as duas mensagens é profundamente modificada; já oão poderíamos, assi.m, estabelecer, entre o cinema e a fotografia, não
é uma relação entre uma natureza e uma cultura (como no caso da mais uma simples diferença de grau, mas uma oposição radical: o
fotografia), é a relação entre duas culcuras: a "moral" do desenho cinema não seria fotografia animada: nele o ter estado aqu.i desa-
não é a moral da fotografia. pareceria, substituído por um estar aqui do objeto; isto explicaria à
Na fotografia, pelo menos ao.nível da' mensagem literal, a relação existência de uma história do cinema, sem uma verdadeira ruptura
entre os significados e os significantes não é de "transformação", com as artes anteriores da ficção, eoquanto a fotografia, de UJJ1a certa
mas de "registro", e a ausência de código reforça, evidentemente, o forma, afastar-se-ia da história (apesar da evolução das técnicas e
mito do "natural" fotográfico: a cena est6 aqui, captada mecani- das ambições da arte fotográfica) e representaria um fato antro-
camente, mas não humanamente (o elemento mecânico é, aqui , pológico "sem brilho" ao mesmo tempo absolutamente novo e defi-
garantia de objetividade); as intervenções humanas na fotografia (en- nitivamente inultrapassável; pela primeira vez em sua história, a
quadramento, distância, luminosidade, nitidez,ftlé etc.) pertencem, human.idade conheceria mensagens sem código; a fotografia não
na verdade, ao plano da conotação; tudo se passa como se houvesse, seria, pois, o último termo (melh.orado) da grande família das
no início (mesmo utópico). uma fotografia bruta (frontal e 11ítida), imagens, mas corresponderia a uma mutação capital das economias
sobre a qual o homem disporia, graças a certas técnicas, os signos da informação.
provindosdo códigoculrural. Aoqueparece,sóaoposiçãodocódigo Ainda assim, a imagem denotada, na medida em que não implica
cultural e do não-código oatural pode traduzir o caráter específico código algum (é o caso da fotografia publicitál'ia), desempenha, na
da fotografia e permitir avaliar a revolução antropológica que ela estrurura geral da imagem icõrtica, um papel específico que se pode
representa na história do homem, pois o 'tipo de consciência nela começar a precisar (voltaremos a esse problema quando aludirmos
implícita é realmente sem precedentes; a fotografia instaura, na à terceira mensagem): a imagem denotada naturaliza a mensagem
verdade, não uma consciência do estar aqui do objeto (o quequalquer simbólica, inocenta o artifício semântico, muito denso (sobretudo
cópia poderia fazer), mas a consciência do rerestado aqui. Trata-se, em publicidade), da conotação: embora. no cartaz Pa11za11i, haja
pois. de uma oova categoria de espaço-tempo: local-imediata e muitos "símbolos", permanece, no entanto, na ,fotografia. uma
temporal-anterior. na fotografia há uma conjunção ilógica entre o espécie de esrar aqui natural dos objetos, a mensagem literal sendo
aqui e o amigamente. É, pois. ao nível dessa mensagem denotada, suficiente: a natureza parece produzir espontaneamente a cena repre-
ou mensagem sem código, que-se pode compreeodcr plenamente a sentada; uma pseudoverdade substitui sub-repticiameote a simples
irrealidade real da fotografia; sua irrea!.idadeéa irrealidade do aqui, validade dos sistemas abertamente semânticos; a ausên.cia de código
pois a fotografia nunca é vivida como uma ilusão, não é absolu- dcsintelectualiza a mensagem, porque parece fundamentar innarura
tamente uma presença, e é necessário aceitar o caráter mágico da os signos da cultura. É. sem dúvida, um importante paradoxo
imagem fotográfica; sua realidade é a de ter estado aqui, pois há, hfatórico: quanto mais a técnica desenvolve a difusão das infor-
em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isro acon- mações (especialmente das imagens), mais fornece meios de mas-
teceu assim: temos, então, precioso milagre, uma rcaljdade da qual carar o sentido construído sob a aparência do sentido original.
estamos protegidos. Essa espécie de ponderação temporal (ter esra-
do aqui) diminui, provavelmente, o poder de projeção da imagem

36 37

.;
A RETÓRJCA DA IMAGEM signos e mais classificáveis: o que pode haver de mais sistemático
do que as lei1uras de Rorschach? A variabilidade das leituras não
Como vimos, os signos da terceira mensagem (mensagem pode, pois, ameaçar a ''língua" da imagem, se admi1innos que essa
"simbólica", cultural ou conotada) são descontínuos; mesmo quando língua é composta de idioletos, léxicos ou subcódigos: a imagem é
o significante parece abranger toda a imagem, é, ainda assim. um in1eiramente ultrapassada pelo sis1ema do sentido, exatameo1e como
signo separado dos outros: a '·composição" tem um significado o homem ar1icula-se até o fundo de si mesmo em linguagens distin-
estélico, bem como a entonaç-ão, que embora supra-segmentai, é um tas. A 1.íngua de imagem não é apenas o conjunto de palavras emiti-
·significante isolado da linguagem; trata-se, pois, aqui, de um sistema das (por exemplo, ao nível do combinador dos signos ou criador da
normal, cujos signos são extraídos de um código cu.lrural (mesmo mensagem), é também o conjunto das palav,·as recebidas: " a língua
que a li gação dos elementos do signo pareça mai s ou menos deve incluir as "surpresas" do sentido.
analógica). O qúe constitui a originalidade desse sistema é que as Outra dificuldade ligada_/, análise da conotação é que à particula-
possibilidades de leitura de uma mesma lexia (uma imagem) é ridadedeseus significados não corresponde uma linguagem analítica
variável segundo os indivíduos: na publicidadePanzani,jáanalisada, panicular; como nomear os significados de conotação? Para um
encontramos quatro signos de co.ootação; haverá provavelmente deles, a,'(iscamos o tenno italianidade, ma.~os outros somente podem
outros (a sacola de compras, por exemplo, trançada como uma rede.* ser designados por vocábulos originários da linguagem corren1e
pode representar a pesca miraculosa, a abimdância etc.). A diversi- (preparação culinária, naturfza-morw, abundância): a metalin-
dade das leituras não é, no entanto, anárquica, depende do saber guagem que os assume quando da análise não é especial. Isto cons-
investido na imagem (saber prático, nacional, cultural, estético); ritui uma dificuldade, pois esses significados têm uma natureza
esses tipos de saber podem ser classificados em uma tipologia; tudo semântica particular; comosema de conotação, "a abundância" não
se passa como se a imagem se expusesse à leitura de muitas pessoas, tem exatamente o mesmo co.oteúdo semâmico que "a abundância"
e essas pessoas podem perfeitamente coexistir em um único no sentido denotado: o significante de conotação (neste caso a pro-
indivíduo: a me!n,a lexia mobiliza léxicos diferentes. O que vem a fusão eo acúmulode produtos) é como o algarismo essencial de todas
ser um léxico? E uma parte do plano simbólico (da linguagem) que as abundâncias possíveis, ou, melhor dizendo. da idéia mais pura da
corresponde a um conjunto de práticas ede 1écnicas; 12 é exatamente abundância; a palavra denotada nunca remete a uma essência, pois
o ca.50 das diferentes leituras da imagem: cada signo corresponde a é sempre representada por uma palavra contingente, um sintagma
um conjunto de "alitudes": o turismo, a vida doméstica, o conheci- contínuo (o discurso verbal), orientado no senlido de uma certa tran-
men10 no campo da arte, um mesmo indivíduo não possuindo, sitividade p.rática da linguagem; o sem a "abundância", ao comrário,
forçosamente, todas elas. Há, em cada pessoa, uma pluralidade, uma é um conceito em esiado puro, separado de qualquer sintagma, pri-
coexistência de léxicos: o número e a identidade desses léxicos vado de qualquer contexto; corresponde a umaespéciedeestado tea-
formam o idioleto de cada um.'3 A imagem, em sua conotação, seria, tral do sentido, ou melhor ainda (pois que se trata de um signo sem
assim, constituída por uma arquitetura de signos provindos de uma sintagma), a um sentido exposto. Para apresentar esses semas de
profundidade variável de léxicos (de idioletos), cada léxico, por mais conotação, seria, pois. necessário uma metalinguagem particular;
.1
"profundo" queseja, sendo codificado, se,como se pensa amalmente, arriscamos iwlianidade; são barbarismos desse tipo que melhor
a própria psichê é articulada como uma linguagem; quanto mais se poderiam traduziros significados de conotação, pois que o sufixo -
"desce" à profundidade psíquica de um indivídoo, mais raros são os tas (indo-europeu, *-tà) serviria para extrair do adjetivo um sobs-
1amivo abs1raro: a italia11idade não é aJtália, é a essência conden-
sada de tudo que possa ser italiano, doespaguete àpintura. Ao aceitar
·Filet em francês quer dizer rede: porex1ensão, chama-seji'/er à sacolade compras
feita de fios entrelaçados. (N. do T.)
classificar artificialmente - e, se necessário, de modo primilivo-

38 39
a designação dos se mas de conotação, facilitaríamos a análise de sua dade, é provável que, entre as metáboles (ou imagens desubstituição
forma; 1s esses semas organizam-se, evidentemente, em campos as- de um significante por outro)19 seja a metoními~ a fornecer à imagem
socia tivos, em articulações paradigmáticas, talvez mesn10 em o maior número de seus conotadores; nas parataxes (ou figuras de
oposições, segundo certos percursos, ou, como disse A. J. Grei mas, sintagma), domina o assíndeto.
segundo certos eixos semânticos: 16 italianidade pertence a um certo O mais i.mpo11ante, todavia - pelo menos por enquanto-. não
ei.xo das nacionalidades, ao lado de "francidade", germanidade ou é inventariar os conotadores, é compreender que constituem, na
hispanidade. A reconstituição desses eixos -que, aliás. podem vir imagem total, traços descomínuos, ou melhor, erráticos. Os cono-
a opor-se entre si- não será evidentemente possível, a não ser que tadores não preenchem toda a lexia. sua leitura não a esgota. Ern
se possa proceder a um iovemário maciço dos sistemas de conotação, outras palavras (e isto seria uma proposta válida para a semiologia
não apenas da imagem, mas também de outras substâncias, pois, se em geral). nem todos os elementos da lexia podem ser transforma-
a conotação tem signifi<lantes típicos confom1e as substâncias utili- dos em conotadores, resta sempre, no discurso, uma certa denotação,
zadas (imagem, palavra, objetos, comportamentos), essa mesma sem a qual o discurso simplesmente não mais seria poss.ível. Isto nos
conotação coloca todos esses significados em comum: são os mes- remete à mensagem 2, 011 i,magem denotada. Na publicidade Pan-
mos significados que encontraremos na imprensa escrita, na imagem zani, os legumes mediterrâneos, a cor, a composição, a própria
ou no gesto do comediante (razão pela qual a semiologia só pode ser profusão surgem como blocos erráticos, simultaneamente isolados
concebível em um quadro, por assim djzer, total); esse domínio e inseridos em uma cena geral que tem seu espaço próprio, e, como
comum dos significados deconotaçãoé o da ideologia, que teria que vimos, seu "sentido": estão "presos" em um sintagma que não o seu
ser absolutamente único para uma sociedade e uma história dadas, e que é o sintagma da denotação. Trata-se de uma proposta impor-
quaisquer que sejam os significantes de conotação a que recorra. tante, pois permite-nos e-stabelecer (retroativamente) a distinção
À ideologia geral, correspondem, na verdade, significantes de estrutural da mensagem 2 ou füeral, e da mensagem 3, ou simbólica,
conotação que se especificam conforme a substância escolhida. e precisar a função naruralizame da den.otação em relação à cono-
Chamaremos a e,5ses significantes conotadores e, ao conjunto dos tação; sabemos agora que é exatameme o siruagma da mensagem
conotadores, uma ret6rica: a retórica aparece, assim, como a face denotada que ·'11at11raliza." o sistema da mensagem conotada. Ou
significante da ideologia. As retóricas variam fatalmente em razão ainda: a conotação é apenas sistema, não se pode definir senão em
de sua substãucia (aqui, o som articulado, Já, a imagem, o gesto etc.), termos de,paradjgma; a denotação icõnica é apenas sintagma, asso-
mas não forçosamente pela forma; é provável que ex.ista uma única cia elementos sem sistema: os conotadores desconúnuos são liga-
forma retórica comum, por exemplo, ao sonho, à literatura e à dos. atualizados, "falados" através do sintagma da denotação: o
imagem." A retórica da imagem (isto é, a classificação de seus mundo descontínuo dos símbolos mergulha na história da cena
conotadores) é, assim, especifica na medida em que é submetida às denotada como em um banho lustral de inocência.
imposições físicas da visão (diferentes, por exemplo, das imposições Concluímos que, no sistema total da imagem, as funções estrutu-
forradoras), mas geral, na medida em que as "figuras'' nunca são mais rais são polarizadas; há, por um lado, um espécie de condensação
do que relações formais de elementos. Essa retórica só poderá ser paradigmática ao nível dos conotadores (ou seja, grosso nwdo, dos
constituída a partir de um inventário suficientemente vasto, mas símbolo~). que são signos fortes, erráticos e, poder-se-ia dit er,
pode-se prever desde jáque neleencontraremos algumas das imagens "reificados"; e, por outro lado. " moldagem" simagmá6ca, ao nível
descobertas outrora pelos Antigos e pelos Clássicos; 18 assim, o da denotação; não se pode esquecer que o sintagma está sempre muito
tomate significa, por metonímia, a italianidade; a seqüência de três próximo da palavra, e que é o "discurso" icónico que naturaliza seus
cenas (café em grão, café em pó, café aromático) libera, por simples súnbolos. Sem querer passar Jogo da imagem à semiologia geral,
justaposição, uma certa relação lógica, como um assú1deto. Na ver- podemos, no entanto. dizer que o mundo do semMo total está dividido

40 41
internamente (estrnturahnente) entre o sistema como cultura e o 1JC(. Elémems ... op. cit.. p. 96.
sintagma como natureza: todas as obras de comunicação de massa Na persJX!(tiva !>aussureana. a. fala é sobretudo aquilo que.é cmiljdo pela língua ou
•·1

reúnem, por meio de dialéticas diversas e diversamente perfom1an- dela extraído(cons1i1uindo-a1 em co01rapanida). Hoje, é necessário ampliar a noção
de língua.sobrc.mdodoponto de vista semântico: a lú,gua é a''abs1ração1otalizante''
tes. a fascinação de uma natureza, que é a natureza da narrativa, da das mensagens emitidas e recebidas.
diegese, do sintagma, e a inteligibilidade de uma cultu(a, refugiada 15Forma. no se1 uido preciso que lhe dá Hjelmslev (cf. Elémeurs... op. cit.. p. 105).
em alguns símbolos descontínuos, que os homens "dectinam" sob a corno organizaç-ão funcional dos significados entro si.
11•.A..J.Greimas. Cour.ç de sémautique, 1964, cadernos mltneografados pela Écolc
proteção da palavra viva.
.Normale Supérieure de Saint-Clood.
17Cf. E. .Oe.rweni-ste. ''Remarques sur la fonction du langage dans la découvertc
1964, Comuumic:áfions, freudicnne", in La Psychanal)'se. l, L956. p. 3-16: retomado em Problemes tle
/i11guistique générale, Paris, Gallimard. 1966, cap. Yfl.
13A retórica clássica deverá ser repensada cm 1crn1os estruturais (objc.io de um trn..
balho em curso) e. talvez., então, seja possível estabelecermos uma relórica geral ou
NOTAS lingi.iísticados significames de conotação. váfjda para o som articulado. a imagem.
ogestoetc. (Cf.A11cü.m11erllirorique(Aidemémoire),inCommwricmions. l6.1910,
1A descrição da fotografia é. fei1.a com ct1u1cla. pois.já constitui, em si, uma meca· NdE .)
191.)eixaremosdc lado a oposição dcJakobson enrre a metáfora e a me1ooímia, pois,
Jinguagem.
2Chamaremos sig110 tfpico o signo de u.r.n sis1cma,.na medida em que é suficiente- sca metonímia é, pol' sua origem, uma figura de conligüidade. não deixa, também,
méntcdcfinido por suasubstância: o signo verbal. o sjgno icônico e o signo gescual de arnar como um substituto do significa.me. isto é, como uma metáfora.
são outros tantos signos típicos.
JEm francês, a c-xpressão "natureza-monan refere-se à presença original em cenos
quadros, de objetos fúnebres como. por exemplo, um crSJljo. '
"Cf. ''Le rnessagc photogrnphique''. acima mencjonado.
5
A a1lálise "ingênl•a" é uma enumeração de elemencos~ a descrição esLruturaJ quer
captara relação entre esses elementos em vii:tude do prindpiodesolidariedadcentrc
os tem)os de,uma estrulúra: se um elemento muda. mudam também os outros.
5Cf. Elémems de sémiologie. in Communlcations. 4, L964. p. J30.
' L'Artdcseml)/imes. 1684.
8A imagem-sem palavras existe. sem dúvida, mas. com uma intenção paradoxal. em

aJguns desenhos humorísticos~ aausência da palavra encobre sempre uma i.nteoção


cc;i.igmática.
• cr. Elémc111s... op. cit. p. 131/132.
1
10
lsto é bem visível no caso paradoxal em que a imagem é construída segundo o texto
e o.ode. conseqüentemente, o controJe pareceria inútil. Uma publicidade que quer
1ra11smüir a idéia de que o aroma é "prisiooei.ro" de um dctenninado café em pó. e
de que todoesse aroma estará presente em e.ada xícara. mostra, acima do texto, uma
lata de café rodeada por uma cadeia fechada com um cadeado; aqui. a metáfora
Jingüfstica (prisioneiro)é tomada ao péda letra ( procedimento poé.lico muito usado);
mas. na realidade, é a imagem que é l.ida em primeiro lugar, e o texto que a formou
acabasendosimplesescolha~e um significado enrreou1ros: a repressão. no circuito,
assume a fonna de uma banalização da mensagem. ·
1
t Cf. Claude Brernorad, '"Le message narratif', i,1 Commmli,.:ations. 4, 1964.
12
C~. A. J. Grei.mas. "Les problêmes de .ta description mécanographique" in
Ca/11er., de lexicologie, Bcsançon, 1. 1959, p. 63.

42 43
O TERCEIRO SENTIDO

Notas de pesquisas sobre


alguns fotogramas de S. M.
Eisenstein

para Nordine Sarl,


diretor do Cinbna 3

Eis uma imagem de Ivan o Terrível (1) 1: dois cortesãos, dois ser-
vidores, dois comparsas (pouco importa se este detalhe da história
me escapa) derramam uma chuva de ouro sobre a cabeça do jovem
1, czar. Parece-me que há, Jlesta cena, três níveis de sentidos:
l. Um nível informativo que reúne todo o conhecimento que me
é trazido pelo cenário, vestuário, personagens, as relações eotreeles,
sua inserção em uma trama que conheço (ainda que de maneira vaga).
,, Este é o nível de comunicação. Seria na primeira semiótica (aquela
da "mensagem") que eu iria buscar um modo de análise, se necessário
fosse encontrá-lo (mas aqui não mais trataremos dessa semiótica oem
desse nível).
2. Um nível simbólico: é o ouro derramado. Este nível estáestcati-
ficado. Há o simbolismo referencial: é o ritual imperial do batismo
com ouro. Há, em seguida, o simbolismo'diegético: éo tema do ouro.

45
da riqueza (supondo-se que exista) em Ivan o Terrfvel, cuja in- oposição aos dois primeiros níveis, o da comunicação e o da signifi-
1erveoção, aqui , seria significan1e. Há, ainda, o simbolismo cação, este terceiro nível - mesmo que a leitura seja ainda arris-
eisensteiniano -se um crítico se aventurnsse a afirn1ar que o ouro, cada - é o da significância; esta palavra apresenta a vantagem de
ou a chuva, ou a cortina, ou a desfiguração, estão contidos em uma aludir ao campo do significante (e não o da significação) e de levar,
rede de deslocamentos e de substituições, característica de pelo caminho aberto por Julia Kristeva, que propôs o termo, a uma
Eisenstein. Há, enfim, um simbolismo histórico se, de man.eira ainda semiótica do texto.
mais ampla do que anteriormente, pode-se demonstrar que o ouro Apenas a significação e a significância - e não a comu,úcação
induz a un1 jogo (teatral), a uma cenografia que seria a cenografia da - interessaram-me aqui. Devo, pois, nomear, tão economicamente
troca, revelável psicanalítica e economicamente, isto é, semiologi- quanto possível, o segundo e o terceiro sentidos. O sentido simbólico
camente. Este segundo nível, em seu conjunto. é o da significação. (o ou.ro derramado, o poder, a riqueza, o rito imperial) impõe-se a
Se_u ~odo de análise seria uma semiótica mais elaborada do que a meu espírito por uma dupla determinação: é intencional (é o que quis
pnmelfa, uma segunda semiótica ou o.eo-semiótica aherta não mais dizer o autor) e é tomado de uma espécie de léxico geral, comurn,
à ciência da mensagem, mas às ciências do símb~lo (psicanálise, dos símbolos; é um sentido que me procura, a mim, destinatário da
economia, dramatúrgica). mensagem, sujeito da leitura. um sentido que pane de S. M. E. e que
3. É tudo? Não, po!s ainda oão me posso desprender da imagem. vai à minha freme: evidente, é claro (o outro também o é), mas de
Leio_ e (talvez em pnme1ro lugar) sou tomado por um evidente, uma evidência fechada, presa em um sistema completo de desti-
erráuco e teimoso terceiro sentido.2 Desconheço seu significado, pelo nação. Proponho denominar este signo completo o se111ido óbvio.
menos não consig_o_dar-lhe um nome, mas posso distinguir os traços, Óbvio quer dizer: que vem à frente , e é exatamente o caso deste
?S acidentes s1gmftcantes que compõem esse signo, no momento, sentido, que vem ao meu encontro; em teologia, como nos ensinam,
mcompleto: é uma cena espessura na maq ui!agem dos cortesãos, por o sentido óbvio é aquele "que se apresenta naturalmenteaoespírito",
vezes pesada, marcada, por vezes lisa. dislinta; é o nariz "bobo" de e, também aqui, é o caso: a simból.ica da chuva de ouro sempre me
um deles, é o fino arco das sobrancelhas de outro, sua louridão sem pareceu dotada de uma clareza "natural". Quanto ao outro sentido,
brilho, sua tez branca e sem vida, o penteado impecável que denota o terceiro, aquele que é "demais", que se apresenta como um suple-
a peruca, a amálgama de base ressecada e pó-de-arroz. Ignoro se a mento que minha intelecção não consegue absorver bem, simulta-
lerrura desse terceiro sentido está correta -se pode ser generalizada neamente teimoso e fugidio, proponho chamá-Jo o semido obtuso.
-, ~as parece-me que seu significante (os traços que mencionei e Esta expressão vem-me facilmente ao espírito e, ao verificar sua
tentei descrever) possui uma individualidade teórica; pois, por um etimologia, encontro já uma teoria do sentido suplementar; obrusus
lado, esse significante não se pode confundir com o simples esrar lá quer dizer: que é velado, de forma arredondada; ora, os traços que
da cena, extrapola a cópia do motivo referencial, impõe uma leitura mencionei (a maquilagem, a palidez, a peruca etc.} não serão como
interrogativa (a interrogação incide precisamente sobre o sionifi- que um véuque tolda um sentido demasiadamente claro, demasiada-
cante,nãosobreosignificado, sobre a leitura, nãosobrea intele~ção: mente violento? Não emprestam ao significado óbvio como que uma
é.uma captação "poética"); e, por outro lado, tampouco se confunde redondeza pouco preensível, não colaboram para que minha lei tum
com o sentido dramático do episódio: dizer que esses traços reme- resvale? Um ângulo obtuso é maior do que um ângulo reto: ângulo
tem a um "ar" significativo dos cortesãos. aqui distante, aborrecido, obwso de l 00°, djz o dicjonário: também o terceiro sentido parece-
lá aplicado ("Cumprem apenas seu papel de corresãos"), não me me maior do que a perpendicular pura, reta, cortante, legal, da nar-
s~11sfaz plenamente: algo, nesses dois rostos, vai além da psicolo- rat.iva: parece-me que o terceiro sentido abre o campo do se11tido
gia, da trama, da função e, para resumir. do sentido. sem no entanto totalmente, isto é, infinitamente; admito até que este terceiro sen-
limitar-se à teimosia que faz com que o corpo hum.a no;steja lá. Po; tido tenha uma conotação pejorativa: o sentido obtuso parece

46 47
desdobrar suas asas fora da cul- · é polissêmica: é ele quem esco-
iura, do saber, da informação: lhe o sentido, quem o impõe, o
anali1icamente, tem algo de ir- subjuga (se a significação é in-
risório; porque leva ao infinito vadida pelo sentido obtuso, nem
da linguagem, poderá parecer por isso é negada, confusa); o
limitado à observação da razão sentido eisensteiniano fulmina a
analítica; pertence à classe dos ambigüidade. De que maneira?
trocadilhos, das pilhérias, das Acrescentando um valor esté-
despesas inúteis; indiferente às tico, a ênfase. O "cenarismo" de
categorias morais ouestéticas (o Eisenstein tem uma função eco-
u trivial, o fútil, o postiço e o pas- 1v nôm.ica: o artista prefere a ver-
tiche ), enquadra-se na categoria do carnaval. Obtuso convém, pois, dade. Observem. a imagem IV: de maneira clássica, a dor manifest'a-
perfeitamente. sc pelas cabeças curvadas, pelos rostos sofridos, pela·mão que dis-
simula o soluço de dor: mas, rudo isso dito, e de maneira bem clara,
um traço decorativo o repete: a superposição das duas mãos, e.steti-
O SENTIDO ÓBVIO camente dispostas em uma ascensão delicada, maternal, floral, contra
o rosto <Jue se curva; no detalhe geral (as duas mulheres) ou1ro de-
Algumas palavras sobre o sen1ido 61Yvio, embora não seja o ob- talbe vem-se inscrever "en abíme"; vindo de uma ordem pictórica
jeto da presente investigação. Eis aqui duas imagens que o apresen- como um cilação dos gcs1os de íco11es e de pietà, oão atenua o sen-
tam em seu es1ado puro. As quatro figuras da imagem II "simboli- tido, ao contrário, o enfatiza; esta ênfase (característica de toda arte
zam'' três idades da vida , a unanimidade do luto (Funeral de realista) tem, aqui, uma certa ligação com a "verdade": a verdade do
Vakoulintchouk). O punbo ce,rrado, na imagem lll,.em "detalhe" Po1emki11e. Baudelaire falava da "verdade enfática do gesto nas
pleno, significa a indignação. a cólera dominada, canalizada, a de- grandes circunstâncias da vida"; aqui, é a verdade da ''grande cir-
terminação para ocomba1e; metonimicamenteligado a toda a história cunstância proletária" que exige a ênfase. A estética eisensteiniana
Poremkin, "simboliza" a classe operária, sua força e sua vontade; não constitui um nível independente: faz parte do sentido óbvio, e,
pois, milagre da inteligência semântica, esse punho visto ao con- na obra de Eisenstein, o sentido óbvio é sempre a revolução.
trário, mantido por seu dono em uma espécie de clandestinidade (é
-~ amãoque inicia/memecai natu-
ralmente ao lado da calça e que O SENTIDO OBTUSO
em seguida se fecha, se contrai,
p ensa si multaneamente seu A certeza do sentido obtuso veio-me, pela primeira vez, diame
combate futuro, sua paciência e da imagem V. Uma pergunta impunha-se a meu espírito: o quê, nessa
sua prudência) oão pode ser lido velha mulher que chora, suscita o problema do significante? Rapi-
como o punho de um al'ruaceiro, damente me dei coma de que não eram, embora perfeitos, nem a ex-
eu diria até, de um fascista: é pressão, nem o gestuário da dor (olhos fechados, boca contraída,
imediatamente um punho de mãos no peito): tudo isso pertence à significação plena, ao sentido
proletá1io. O que nos mostra que óbvio da imagem, ao realismo e ao cenarismo eisensteinianos. Eu
Ili a "arte" de S. M. Eisenstein não sentia que o traço penetrame, inquietante como um convidado que

48 49
de ouro do velho K. S. Gillet.te:
uma leve meia-volta por trás do
ponto-limite (nº 219).
O semido obtuso tem, pois,
pouco a ver com o disfarce. Ob-
servem a batbicha de Ivan, na
imagem VII, promovida, se-
gundo creio, ao sentido obtuso:
não nega que é postiça, mas nem
por isso renuncia à "boa fé" de vrr
V Vl seu referente (a figura histórica
do czar): um ator que se disfarça duas vezes (uma vez como ator da
se obstinaem pe,manecercaladoonde sua presença nãoéoecessária, trama, uma vez como ator da dramaturgia), sem que um disfarce anule
devia situar-se na região de fronte: o lenço, amarrado na cabeça à o outro; lâminas superpostas de sentidos que sempre deixam trans-
guisa de penteado, desempenhava seguramente um papel. Na P?Iecer o sentido precedeme,.como em uma formação geológica;
imagem VI, todavia, o sentido obtuso desaparece, resta apenas uma dizer o contrário sem renunciar ao que se contradiz: Brecht teria
mensagem de dor. Compreendi, então, que essa espécie de escândalo, amado esrn dialética dramática (com dois termos). O postiço
de'5uplemento ou de desvio imposto a esta representação clássica e,senstemiano é simultaneamente postiço dele mesmo. isto é
da dor, provinha precisamente de uma relação sutil entre o lenço q~e pastiche, e postiço irrisó1'io, já que não esconde seu corte e sua su'.
cobria toda a testa, os oll\os fechados e a boca convexa; ou, mais tum: o que se vê, na imagem VII, é a junção, logo a disjunção r,révia,
precisamente, para retomar a distinção do próprio S. M. E. entre "as da barbicha ao queixo. Que a parte superior da cabeça (parte mais
trevas da catedral" e "a cai.edrál encenebrecida", de uma relação entre "obtusa" d~ s~r humano), que apenas um coque (na imagem Vill)
a "baixura" do lenço, excessivamente próximo das sobrancelhas possa constituir a expressão da dor, é um detalhe ínfimo - para a
como um disfarce cujo objetivo é dar um ar bobo e ingênuo, as ve- expressão, não para a dor. Não há, pois, paródia: neohum traço de
lhas e desbotadas sobrancelhas circunflexas, a curva pronunciada burlesco: a dor não é falsa (o sentido óbvio deve pem1anecer revo-
das pálpebras baixadas, mas convergentes, e a linha da boca encrea-
berta, correspondendo à linha do lenço na cabeça e à linha das lucionário, o luto geral após a morte de Vakoulinrchouk tem um sen-
tido histórico), e, no entanto, "encamada" nesse coque, traz um corte,
sobrancelhas, no estilo mecafórico "como um peixe fora d'água''. uma recusa de contamioação; o
Todos esses traços (o lenço sutil , a velha. as pálpebras que conver-
gem, o peixe) têm, como vaga referência, uma linguagem um tanto populismo do fichu de lã (sen-
vulgar, aquela de um disfarce bastante lastimável; ao'lado da dor tido óbvio) pára no coque: aqui
majestosa do sentido óbvio, formam um dialogismo tão tênue, que nasce o amuleto, a cabeleira, e
não se pode ter certeza da intencionalidade. Na verdade, este terceiro como que um escárnio não-ne-
gai6rio da expressão. Todo o
sentido caracteriza-se - pelo menos na obra de S. M. E. - por
esfumar o limite que separa a expressão do disfarce, mas também, sentido obtuso (seu poder de per-
por representar esta oscilação de uma maneira sucinta: uma ênfase turbar) está na massa dos cabe-
efüica, se assim se pode dizer: disposição complexa, muito astuta los; observem ourro coque (oda
(pois implica uma temporalidade da significação), que é perfeita- mulher [X): contradi.zo pequeno,
mente descrita pelo próprio Eisenstein, quando cita comjúbilo a regra punho erguido e o atl'ofia, sem

51
50

..,I
IX

quecsta redução renha o mcnorvalorsimbólico (intelectual); prolon- como cambém o é o monge da imagem XIV, mas esta obtusão vai
gado por cachos,dando ao rosto um aspect? ovino, empresta à mulher além da trama. toma-se o abrnndamemo do sentido, seu desvio: há
um as~to comovedor (como uma certa sLmphcidade g_cnerosa), ou, no sentido obtuso um erotismo que inclui o contrário do belo e o pró-
ainda, sensível; estas palavras desusadas, pouco pohtJcas, pouc_o prio exterior da contradição, isto é, o limite, a inversão, o mal-estar
revolucionárias, rnlvez mitificadas, devem, no entam.o. ser assumJ· e, talvez, o sadismo: observem a inocência apática das Er!fams dans
das: creio que o sentido obtuso contém uma certa emoção; pari e do la Fournaise (XV), os cachecóis ridícula e caprlchosaniente ergui-
disfarce, esta emoção nunca é viscosa; é uma emoção que dos até o queixo, o tom de leite azedo da pele (dos olhos, da boca
simplesmeote designa o que se ama, o que se quer defender: é uma contra a pele) que Fellini parece haver retomado para o andrógeno
emoção-valor, uma avaliação. Todos, creio eu, concordam que a de Saryricon:o mesmo teria dito Georges Bataille no texto deDocu-
emografia prolecária de S. M. E., fragmentada ao longo do f1inera1 ments que, oo meu enrender, situa uma das regiões possíveis do
de Vakoulintchouk, tem, constantemeote, algodeamoroso (a palavra sentido obtuso: O dedo do pé da rainha (não me lembro do título
é aqui usada sem especificação da idade ou de sexo): matemo,_ cor- exato).3
dial e viril, ''simpáüco'' sem recom:r a cstereóupos, o povo e1sen- Cominuemos (se é que ~ses exemplos bastam para introduzir
steii1iano éessencialmentc amável: saboreamos, amamos os dois gor- algumas observações mais teóricas). O semido obtuso não está na
ros redondos da imagem X, somos seus cúmplices e os compr~nde- língua (mesmo em se tratando da língua dos símbolos): se suprimido,
mos. A beleza pode, sem dúvida, intervir como um sentido obtuso: a comunicação e a significação permanecem, circulam, passam; se,rn
é o caso da imagem XI, onde o
senlido óbvio, muito denso
(mímica de Ivan, simplicidade
inocente do jovem Vladim ir)
está fixada e/ou desviada pela
beleza de Basmanov: mas, o ero-
tismo compreendido no sentido
obtuso (ou melhor: que esse sen-
tido traza tiracolo) não tem acep-
ção estética: Eufrosina é feia,
XI "obtusa" (imagens XIl e X.lll),

52 53

..,
diante dessas imagens, pennanecemos, vocês e eu, no nível da lin-
ele, posso dizer e ler; mas, tampouco está na palavra: é possível que
guagem a.nicu lada- is1oé, de meu próprio texto-, o sent.ido obtuso
exista uma·certa constante 'do sentido obtuso eisensteiniano, mas
nã_o.consegttirá exi_stir, não conseguirá enlrar na metalinguagem do
então 1rata-se de uma palavra temática, de um idioleto, e este idi-
cnnco. Isto quer dizer que o sentido obtuso está fora da linguagem
oleto é provisório (empregado simplesmente por um crítico que
(articulada), mas no entanto, no interior da interlocução. Pois, se ob-
escreveria um livro sobre S. M. E.); pois, sentidos obtusos existem,
servarem as imag~1_1s que?,igo,_verão este se1nido: sobre elas, podere-
não em iodo lugar(o significante é coisa rara, representi,ção de fu.
mos nos entender a custa da lmi,'llagem aruculada: grnças à imagem
turo). mas em algum lugar: em outros autores de filmes (1alvez). em
(estát,ca, é verdade: voltaremos a tocar nesse ponto), e mais ainda:
uma cerca maneira de ler a "vida" e, logo, o próprio "real" (esta pa-
graças ao que, na_imagem, é puramente imagem (e que, na verdade,
lavra quer dizer, aqui, a simples oposição ao fic1ício intencional):
é multo pouca coisa), podemos passar sem a palavra e continuamos
nesta imagem do Fascisme ordinaíre (XVl), imagem _documental,
a nos entender.
,_,,,-=: - ··si• - leio facilmente um sen1ido
Em suma, o que o sentido obtuso perturba. esteriliza, é a meta-
· - . ~" ' óbvio, o do fascismo (estética e
linguagem (a crítica). Por algumas razões: inicialmente, o sentido
- -:-' Jt ·• simbólica da força, da caçada
o_btusoé d4:.scontí1~uo, fr1diferente à história e ao sentido óbvio (como
1eatral), mas leio, também. um
s,gmficaçao da h1s16na); esta dissociação 1em um efeito de coo-
suplemento obtuso: a ingenoi-
dade loura, disfarçada (roais tranamreza ou, pelo menos, de distanciamento em relação ao refe-
uma vez) do jovem que carrega reme (do "real" como natureza, instância realista). Eisenstein teria
as flechas, a falta de energia de provavelmenteassumido esrn in-congruência, esta impertinência do
significante, elequenos diz, a respeito do som e da cor (n2 208): "A
suas mãos e de sua boca (não
descrevo, não o conseguiria, an_e começa a partir do.momento em que o rnído da bota (no som)
cai em um plano visual diferente e suscita, assim, associações cor-
xv1 apenas constato), as unhas qua-
respondeoces. O mesmo se pode dizerem relação~ cor: a cor começa
dradas de Goering. seu anel de camelô (já no limite do sentido óbvio,
naquele ponto em que não corresponde mais à coloração natural. .."
bem como a mediocridade hipócrita do sorriso tolo do hómem ele
Em seguida, o significante (o terceiro sentido) não é preenchido; fica
óculos. ao fundo: visivelmenteu11) "bajulador"). Em outras palavras.
em esiado de permanente dep/eçâo (termo lingüístico que designa
o sentido obtuso não-está situado estruturalmente, um semamolo- os verbos vazios, que servem para tudo, como, cm francês, o verbo
gista não e.stará de acordo com sua existência objetiva (mas. o que é
fazer); poder-se-ia dizer tamb.é m que, ao contrário - e seria
uma leitura objetiva?), e. se a mim esse sentido é evidente, isio se
1gualmente·corre10-, esse mesmosignifi.cantenão se esvazia (não
deve mais uma vez (por enquanto) à mesma "aberração" que obri-
consegue esvaziar-se); mantém-se em estado de perpétuo eretismo;
gava Saussme. e apenas ele, a ouvir uma voz enigmática, vinda não
nele o deseJo oão chega a esse espasmo do significado, que, habitu-
se sabe de onde e obsecante, a voz do anagrama. no verso arcaico.
aJn1:me, _mergulha volupiuosamenre o sujeito na paz das desig-
Sou presa da me.~ma insegurança quando se trata de descrever o
naçoes. _Fmalmcnte. o sentido obtuso pode servisto como uma ênfase,
&entido obtuso (dar uma idéia de para onde vai, qual é seu destino);
a própna forma de uma emergência, de uma dobra (até uma falsa
" o sentido obtuso é um significan1e sem significado: daí a dificuldade dobra) que marca o pesado manto das informações e das sion.ifi-
para nomeá-ló: minha leitura fica suspensa entre a imagem e sua
cações. Se pudesse ser descrito (cooiradição nos 1ermos). t;ria o
descrição, entre a definjção e a aproximação. Se não se pode des-
mesmo corpo cio lwicai japonês: gesto anafórlco sem conteúdo
crever o sentido obtuso. é que; ao contrário do sentido óbvio, não
significativo, espécie de ríctus de que se suprime o sentido (o desejo
copia nada: como descrever o que não representa nada? O ''traduzir"
de um senlido); seria, para a imagem V:
piciórico das palavras é, aqui, impossível. A conseqüência é que se,

55
54

..,r
Boca contraída, olhos fechados que convergem desempenhado por Eiseustein. Em sua obra, a história (a represen-
Fronte coberta tação diegética) não é anu.lada, ao contrário: haverá história mais
Ela chora. bonita que a de Ivan, que a do Potemkine? .Essa dimensão da narra-
tiva é necessária para que possa ser compreendida por uma sociedade
Esta ênfase (cuja natureza é simultaneamente enfática e elítica) que, não podendo resolver as contradições da história sem percor-
não passa para o sentido (como no caso da hisreri~),.não teatraliza (o rer um longocaminhopolítico, recorre (provisoriamente?) a soluções
cenarismo eise,1steiniano pertence a um outro mvel), nem chega a míticas (narrativas); o problemaa111al não é destruir a narrativa, mas
marcar um outro lugar do sentido (outTo,conteúdo, acrescido ao sim confundi-la: a tarefa de hoje consistiria em dissociar a subver-
sentido óbvio), e sim o desfaz - confunde não o conteúdo, mas a são da destruição. e S. M. E., quer-me parecer, e-stabelece esta
totalidade do seotido. Pro.cedimento inovador, raro, sustentado distinção: a presença de um terceiro sentido suplementar, obtuso -
contra uma práüca majoritária (a da significação), o sentido obtuso mesmo em apenas algumas imagens, mas como assinatura im-
surge, fatalmente, como um luxo, umadespesasem retomo; esse ~u.xo perecível, como um selo que avaliza toda a obra - esta presença
ainda não faz parte da política de hoje, mas já faz parte da poht1ca opera uma profunda mudança na dimensão teórica da trama: a
doamauhã. . história (a diegese) não é apenas um sistema forte (sistema narra-
Resta-me dizer uma palavra sobre a responsabilidade sintagrnáuca tivo milenar), mas é também, e conrraditoriamente, um simples
desse terceiro sentido: que lugar ocupa na trama, no sistema lógico- espaço, um campo de permanências e de permutações; é esta con-
temporal, sem o qual, ao que parece, não é possível fazer com que a figuração, este palco cujos falsos lim.ites multiplicam o jogo permu-
"massa" dos leitores e dos espectadores compreendam uma narra- tativodo significante; éeste vasto traçado que, pela diferença, obriga
tiva. É evidente que o sentido obtuso é a própria conrranarrativa; a uma leitura vertical (termo empregado por S. M. E.); é esta ordem
disseminado, reversível. preso à sua própria duração, pode --~ apenas
. falsa que permite inverter a seqüência pura, a combinação aleatória
inaugurar outro corte, diferente daquele dos planos, sequencias e (o acaso é apenas um mero significante, um significante barato) e
sintagmas (t.écnicos ou narrativos): um corte desconhecido, an- chegar a uma estruturação que se esvazia em seu próprio interior.
tilógico e, no entanto, "verdadeiro". Imaginem "acompanhar''. não Po,· isso. pode-se dizer que, com S. M. E., é necessário in,•erter o
a maquinação de Eufrosina, nem mesmo o personagem (coroo enti- clichê segundo o qual quanto mais gratuito é o sentido, mais aparece
dade diegética ou como figura simbólica), nem mesmo o rosto da como um simples parasita da história narrada: é esta história, ao con-
Mere Méchante mas observar apenas, nesse rosto, esse c.ontomo, trário, que se toma, de urna certa maneira, paramétrica do signifi-
esse véu negro,~ opacidade pesada e feia: terão orna temporalid~de cante, do qual é apenas o campo de deslocamento, a negatividade
nemdieoética nem onírica, terão um outro filme. Tema semvanaçoes constitutiva, ou então: a companheira de caminhada.
nem de_~nvolvirnento (o sentido óbvio é temático: existe um tema Em suma, o terceiro sentido estrutura o filme de owra maneira,
- do Funeral), o sentido obtuso aparece e desaparece, é seu único sem confundir a história (pelo menos em S. M. E.); e, talvez por esta
movimento; esse jogo de presença/ausência desintegra o ~ers':na- razão, éao nível do filmequef.in.almentesurge o ''fílmico·•. O fílmico
gem, reduzido a um simples conJ,u_nto de fa~ems: essa dtsJunçao é é o que, no filme, não pode ser descrito, é a representação que não
!,,,
enuncJada pelo própno S. M. E.: E caractensuco que as dJf~rentes 1>ode ser representada. O fíhnico nasce exatamente onde cessam a
posições do mesmo czar ... sejam representadas sem que haJa uma linguagem e a metalinguagem articulada. Tudo que se pode dizer
passagem de uma posição a outra." . sobre /11011 ou sobre o Poremkine pode ser dito em um texto escrito
O problema que se coloca é o seguinte: a indiferença, ou hber- (que se chamaria Ivan o Terrfvel ou O Couraçado Potemkine), salvo
dade de posição do significante suplementar em relação à narrativa, o que const itui o sentido obtuso. Posso comentar todos os detalhes
permite si tuar com precisão o papel histórico, político, teórico, de Eufrosina, salvo a qualidade obtusa de seu rosto: o fílmico en-

56 57

.,. f
contra-se, pois, exatamente aí, nesse ponto em que a linguagem ar- de um catálogo de uma grande loja. Esta explicação apenas repro-
ticulada é apenas aproximativa, e onde se inicia uma outra linguagem duz a opinião corrente que se tem do fotograma: um subproduto
(cuja "ciência" não poderá, pois, ser a lingüística, ~ue será abando- distante do filme, uma amostra, um meio de atrair a clientela, uma
nada como um foguete propulsor). O terceiro sentido, que se pode cena pornográfica e, tecojcamente, uma redução da obra pela imo-
situar teoricamente, porém não se pode descrever, aparece, então, bilização do que se considera como a essência sagrada do cinema: a
como a passagem da linguagem à significância, e o ato fundador do imagem em movimento.
próprio fíl.mico. Forçado a emergir de u~a c.ivilização do signifi- Todavia. se o p.róprio fílmico (o fílmico de futuro) não se encon-
cado, não é surpreendente o fato de que o f1lm1co (apesar da quanti- tra no movimento, e sim em um terceiro sentido, inarticuJável, que
dade incalculável de.filmes já feitos no mundo) seja ainda raro (alguns nem a simples fotografia nem a pintura figurativa podem assumir
momemos na obra de S. M. E.; na obra deoutros, talvez?), a tal ponto porque falta-lhes horizonte diegético, a possibilidade de configu-
que se poderia afirmar que o filme, assim como o texto, ainda não ração de que falamos," então o "movimento" que consideramos a
existe: há apenas "cinema", isto é, linguagem, narrativa, poema, por essência do filme não é animação, fluxo, mobilidade, "vida". cópia,
vezes muito"modemof' º traduúdosn por"imagens"ditas "anima-
1 mas apenas a armadora de um desdobramento permutativo, e faz-se
das"; tampouco ésurpreendentequesó possamos depreendê-lo após necessária uma teoria do fotogram.a, da qual.algumas possíveis so-
haver feito a travessia- analítica - do "essencial", da "profundi- luções vou tentar expor para concluir.
dade'' e da "complexidade" da obra cinematográfica: todas as ri- O fotograma nos dá o demro do fragmento; seria necessário reto-
quezas que são apenas aquelas da linguagem articulada, com as quais mar aqui, deslocando-as, as formulações do próprio S. M. E., ao
a constituímos e pensamos esgotá-la. Pois o fíl.nuco é diferente do enunciaras novas possibilidadesdamontagem audiovisual (n• 218):
filme: o fümico está para o filme como o romanesco para o romance "... o centro de gravidade fundamental... transfere-se para dentro do
(posso escrever romanescamente, se,nnunca escrever um romance). fragmento, dos elementos incluídos na própria imagem. E o centro
de gravidade já não é o elemento 'entre os planos' - o choque, mas
o elemento ' dentro do plano' -a ênfase no interior do fragmento ..."
O FOTOGRAMA Sem dúvida, não há nenhuma montagem audiovisual no fotograma;
mas a fórmula de S. M. E. é geral, pois que inaugura um direito à
Pores ta razão, em uma certa medida (que é a de n.ossos balbucios disjunção sintagmática das imagens, e requer uma leitura verricÓI
teóricos), o fílmico, paradoxalmente, não pode ser apreendido no da aniculação. Além disso, o fotograma não é uma amostra (noção
fiJJne "em situaç.ãoº, ªem movimento º ao natural'', mas apeoast
1
',
que suporia uma espécie de natureza estatística, homogênea, dos
repito, nesse artefato maior que é o fotograma. Há1uui.to tempo esse elementos do filme), mas sim uma citação (é conhecida a importância
fenômeno desperta minha curiosidade: interessar-me ou até demo- atual deste conceito na teori.a do texto): o fotograma é, pois, simul-
rar-me na contemplação das fotografias de filmes (à porta do cine- taneamente paródico e disseminador; não é uma pjtada quimi-
ma, nos Cahiers); e perder tudo o que dizem essas fotografias (não camente retirada da substância do filme, mas, melhor dizendo, é a
.,. apenas a captação, mas a lembrança da própria imagem) ao entrar
na sala de projeções: mutação que pode levar a uma total inve~são
marco de uma distribuição superior dos traços dos quais o filme
vivido, animado, seria, em suma, apenas um texto, entre outros. O
de valores. Inicialmente atribuí esta atração pelo fotograma à mmha fotograma é, eotão, fragmento de um segundo texto cujo ser nunca
falta de cultura cinematográfica, à minha resistência ao filme; pen- 11/rrapassa o fragmento ; filme e fotograma encontram-se em uma
sava, então, se,·como essas crianças que preferem a "ilustração'' ao relação de palimpsesto, sem que se possa dizer que um é o em cima
texto, ou como esses clientes que, não podendo adquirir o objeto que do outro, ou que um é extrato do outro. Finalizando, o fotograma
cobiçam (demasiadamente caro), contentam-se com a contemplação suprime a imposição do tempo fílm.ico; esta imposição é forte, ainda

58 59
teórica e colocam cm cena um novo significanie (com algo em comum com o sen-
cria obstáculos ao que se poderia chamar o nascimento aduho do tido obtuso); é um fato reconhecido! no que concerne à hiscória em quadrinhos;
filme (nascido tecnicamente, por vezes até esteticamente, o filme todavia.sou tomado pores te leve trauma da significânciadiante de certas fotonove-
ainda não nasceu teoricamente). O tempo de leitura dos textos escri- las: "sua piegulce me comove" (está poderia ser uma certa definição do sentido
tos é livre, a não ser que sejam muito convencionais, engajados a obtuso)~ haveria. pois, uma verdade de futuro (ou de um passado moiro remoto)
fundo na ordem lógico-iemporal; o tempo de leitura do filme não o ocs.sas fonnas irrisórias. vulgares, tolas, dialógic-as. da subcultura de consumo. E
haveria uma "arte" (um ''texton) autônomo. o do picwgrama (imagens "anedoti·
é. já que a imagem não pode ir mais rapidamente nem mais len- 1.adas··, sentidos obtusos colocados ecn um espaço dicgético); esta ane traria a tira.
tameme. ou se perderia até seu contorno perceptivo. O fotograma, c?lo produções histórica e culcuralmcnte hcteróclims: pictogn1.mas cenográficos,
ao instituir uma leitura simuJtaneamente instantânea e vertical, v1trms, á Lenda de S,m,a Úrsula de Carpaccio, figu.riohas~ fotonovelas. histórias
despreza o tempo lógico (que é apenas um tempo operatório); em quadrinhos. A inovação l'epl'eseotada pe.lo fotograma (em relação aesses outros
aprende a dissociar-a imposição técnica (a "rodagem") da essência pict0gramas) seria que o fílmico (por e1econstitufdo) seriaduhlado poroulJ'Otexto.
o fibne.
fílmica, que é o sentido "indescrit/vel". Talvez fosse a leitura desse
outro texto (aqui fotogramático), quereivindicasseS. M. E .. quando
dizia.que o filme não deve ser apenas visto e ouvido. mas que é
necessári.o escrurá -lo com atenção total (n• 2-18). Este ouvir e este
olhar não postulam apenas uma simples aplicação do espirito (exi-
gência banal), mas sim uma verdadeira mutação da leitura e de seu
objeto, texto ou filme: grande problema de nossos tempos.
' 1,
J 970, Cahiers du cinéma.
1,

NOTAS
1Todos os f9tograma$ de S. M. Eisen$cein gue vou me11cionar são cx.craidos dos
números 217 e 2J8 dos Cahiers du Cinéma. O fotograma de Romm (Le Fascisme
ordinaire) foi 1irado do número 219.
2 No paradigma clássico dos cinco sentidos, o terceiro é a audição (o primeiro em
importância nn Idade ]\·fédi:l)~ é uma feliz coincidência. pois trata-se. na verdade.
de uma escuta; primeiramente porque as observações de Eisens1cin queciraremos
I·' ..,. nes1e artigo nasceram de uma reflexão sobre o advenco do "audilivo" no cinema;
em seguida porque a escuta (sem referência 'àphoné única) contém potencialmente
a metáforaquemelhorscadcqua ao ·11extual"; a orquestração (cxprc-ssãodeS.M.E.),
o contraponto, a estereofonia.
'Cf. desde"Lessortiesdu 1ex1e", in Bataiile, "l0/18", Paris, 1973. (N. do E.)
' Há outras "artes'' que combi11am o fotograma (pelo menos o desenho) e a história,
adicgcse.; são as fotonovelas e as histórias em quadrinhos. Estou persuadido de que
essas "artes'\ nascidas oo bas.[ond da grande c.utmra, possuem uma qualificação

60 61

.,,I
A REPRESENTAÇÃO

O TEATRO GREGO

No fi.m do século vn a. C., o culto a Dionísio havia dado origem,


sobretudo na região deCorintoe deS(cion, no país dório, a um gênero
florescente, meio-religioso, meio-literário, constituído pw coros e
danças, o ditirambo. O ditirambo teria sido introduzido na Ática por ·t
volta de 550 a. C., por um poeta lírico, Téspis, que organizava re-
presentaçõesditirâmbicasdea.ldeia em aldeia, tr'dllSportando seu mà-
terial em uma carroça e recrutando in loco os elementos do coro. Há
quem diga que foi Téspis quem criou a tragédia, ao inventar o pri-
meiro ator; segundo outros, foi seu sucessor, Fríl)ico. O drama novo
foi rapidamenteconsagnido nas grandes cidades; foi adotado por uma
instituição propriamente cívica, a competição: o primeiro concurso
ateniense de tragédia ter-se-ia realizado em 538, sob Pisístrato, que
desejava enfeitar sua tininia com festas e cultos. Sabe-se o que se
passou depois: o teatro instala-se em um espaço consagrado a Dio-
nísio, que será sempre o patrono do gênero; grandes poetas (seria
melhor dizer grandes empreendedores de teatro), quase contem-
porâneos uns dos outros, dão à representação dramática sua estru-
tura adulta, seu sentido histórico pro(undo; este desenvolvimento
coincide com o triunfo da democnicia, a h.egemo1úa de Atenas, o nas-
cimento da Histó.ria e a estatuária de Fídias: é o século V, o século de
Péricles, o século clássico. Em seguida, do século IV até o fim da
época alexandrina, salvo alguns ressurgimentos de que pouco se sabe
(Menandro e a comédia nova), é o declínio: mediocridade das obras,
com seu conseqüente desaparecimento, abandono progressivo da
estrutura comi, que foi a estrutura específica do teatro grego.
Tal como é, esta história tem algo de mílico. Há pontos obscuros,

63
pelo menos hipotéticos: Qada se sabe ao certo sobre a maneira pela mot1ôniios dionisíacos); e as audições timélicas, mais concertos do
qual deve ser feita a conexão entre o teatro grego eo culto a Dionísio; que representações, espécie de oratórios cujos executantes ficavam
e não se pode esquecer que se perdeu quase todo o repertório: gêneros na orchesrra, à volta da 1hymé/é, ou espaço consagrado a Dionísio.
inteiros, o ditirambo, a comédia siciliana, a comédia de Epicanno, o O ditirambo originou-se de certos episódios do culto a Dionísio
drama satírico, de que quase nada nos resca: centenas de obras: de no século Vll a. C., provavelmente perto de Corinto, cidade co:
várias gerações de autores dramáticos, conhecemos apenas três me,:cianteecosmopolita. Rapidamentedua~formas desenvoJveram-
poetas trágicos e um poeta cômico: Ésquilo, Sófocles, Eurípides, se: uma forma literária e uma forma popular na qual o texto era (em
Aristófanes; a obra de cada um desses autores é ancológica (por grande pan~). improvisado. Levado para Atenas por Téspis, o diti-
exemplo, sete tragédias das seteota escritas por Ésquilo), além de ran1bo adqumu su~ fonna reg~lar, sem que o ílorescimentodo gênero
estar mutilada: todas as trilogias trágicas estão incompletas, salvo a dramá11co (tragédia e comédia) lhe fizesse concorrência; as repre,
Oréstia de Ésquilo; como não conhecem.os o Prome1e11 Libertado, semações ditirâm.bicas ocupavam os dois primeiros dias das Dioni-
ignoramos o desenlace dado por Ésquilo ao conflito entre o homem síacas, antes dos dias consagrados aos concursos de tragédia e de
e os deuses. Outros traços, mais conhecidos, são, no entanto, defor- com~dia._Ei:a uma espéc,ie de drama lírico cujos temas, mitológicos
mados pela imagem da sincronia clássica: em seu período de esplen- ou h1stóncos, lembravam os temas da tragédia. A diferença (capi-
dor, no século V, o teatro grego dispõe apenas de técnicas rudimen- tal) era que o ditirambo era representado sem atores (embora hou-
tares: sua materialidade aperfeiçoa-se e multiplic-a-se (IJlelbor di- vesse solos) e, sobretudo, sem máscaras e sem vestuário. O.coro era
zendo, complica-se); precisamente quando as obras tornam-se me- numeroso: cinqüenta executantes, crianças (de menos de dezoito
díocres; além disto, esse teatro continuou a ter um grande sucesso anos) ou homens. Era um coro cícl.ico com danças na orchesrra, à
público durante todo seu período de declínio. de maneira que, se o volta da thymélé, e não de frente para o público, como na tragédia. A
analisássemos à luz de crité.rios sociológicos, e não mais estéticos, música tinha características orientais e era de significação tumultu-
toda a perspectiva histórica seria alterada. osa (por oposição ao peãapo(íneo); essa música foi-se tomando cada
O mito do século V é, pois, uma imagem que necessitaria muitos vez 111ais importante do que o texto, o que aproxima o ditirambo de
retoques. Esta imagem ter,i, pelo menos, uma verdade: mostra que nossa ópexa. Não nos resta nenhum desses ditirambos,salvo alguns
esse teatro é formado por um conjunto organizado de obras, de ins- fragmentos mutilados de Pfodaro.
tituições, de protocolos e de técnicas, esse teau:o possui uma estr.u· . Pouco se conhece do drama satírico; ignorância constrangedora,
tura. Eessa estrutura é aqui fundamental,jáque a especialidade desse Já que esse gênero acompanhava obrigatoriamente toda trilogia
teatro foi precisamente a síntese, a coerência dos diferentes códigos cláss1ea. Temos apenas Os Cãe-5 de Caça de Sófocles, O Ciclope de
dramáticos. Ao imobilizar o teatro grego no século V, perde-se, sem Eurípides e alguns fragmentos de Ésquilo (ecentemente encontra-
dúvida, uma dimensão histórica; mas, ganha-se1Jma verdade estrutu- dos. Igualmente oxiginário do país dório, o drama satírico teria sido
ral, isto é, uma significação. int(oduzido em Atenas por Prátinas, na época em que Ésquilo ini-
ciava sua carreira; foi rapidamente incorporado ao complexo trágico
(três tragédias representadas sem interrupção), convertido, desde
AS OBRAS eJJtão, em tetralogia. Ód(ama satírico aproxima-se rnuitoda tragédia;
'' a estrutura é a mesma e o tema é mitológico. O que dela o diferencia
Na época clássica, o espetáculo grego comportava quatro gêneros e, por conseguinte, o constitui, é que o eoro é obrigatoriamente com-
principais: o ditirambo, o drama satírico, a tragédia, a comédia, aos posto por Sátiros, conduzidos por seu chefe Sileno, pai adotivo de
quais ~e pode acrescentar: o cortejo que preludiava a festa, o cômos, Dionísio (em Atenas dizia-se, também, drama silênico). O coro tem
provável sobrevivência das procissões (ou, mais exatamente, dos • uma grande importância dramática. é ele o ator principal, que dá 0

64 65
tom ao gên.ero e o transforma em uma "tragédia divertida"; pois, refratada atr~vés ~e modos intermediários de exposição, que, ao
os Sátiros são "velhacos", "patifes", são eles que dmgem a brmca- comá-la. a distanciam; narrações (de batalha ou crime). confiadas
deira, são e]es que lançam os lazzi (o drama satírico termin~ bem}; ao Mensageiro, ou cenas de contestação verbal, que, de certa forma,
suas danças têm um caráter grotesco; apresentam-se fantasiados e remetem a ação à sua superfície conflitual (estas cenas agradavam
mascarados. muito aos gregos e é quase certo que eram apresentadas cm leituras
Nesse teatro, toda obrn iem uma estrutura fixa, a alternância das públicas, fora da própria representação). Vemos surgir, aqui, o
partes é regulamentada, as variações de ordem são mínii:rias. Uma princípio de dialética. formal que é a base desse teatro: a palavra
tragédia <>rega compreende: um prólogo, cena expositiva pre- exprime a ação, mas serve-lJle 1ambém de 1ela: o "o que acontece"
paratória (monólogo ou diálogo); aparodos, ou canto de entrada do tende sempre ao "o que aconteceu".
coro; episódios bastante semelhantes aos atos de nossas peças Esta ação recitada é periodicamente suspensa pelo coral, o que
(embora de dimensões muito variadas) , separados pelos cantos obnga o pübJico a refazer-se de maneirn simultaneamente lírica e
dançados do coro, chamados stasima (met~d_e do coro ~amava as intelectual. Pois, se o coro comenta o que acaba de acontecer diante
estrofes, a outra metade as antiestrofes}; o ultimo episódio, consh- de seus olb.os, esse comentário é essencialmente uma interrogação:
tuído, freqüentemente, pela saída do coro, chamava-se exo~os. A ao "o que aconteceu" dos recitadores, responde o "o que vai aconte-
comédia reproduz uma alternância análoga de cantos corais e de cer" do coro, de maneira que a tragédia grega Oá que é sobretudo
recitação. Sua estruturn é, no entanto, um pouco diferente: em re- dela que se trata} é sempre represen1ação tríplice: de um presente
lação à tragédia, comporta dois elementos ongma1s_: imcialm~nre_ o (assiste-se à transformação de um passado em futuro), de uma liber-
agôn, o combate; esta cena, que cor_responde ~o pnme,ro episódio dade (que fazer?) e de um sentido (a resposta dos deuses e dos
da tragédia, é obrigatoriamente uma cena de disputa no fim da _qual homens}.
o ator que representa as idéias do poeta vence seu ad_versáno (a Tal é a estrutura do teatro grego: a alternância orgânica da coisa
comédia ateniense ilustra sempre uma tese); e, em seguida, apará- interrogada (a ação, a cena, a pala'l'ra dramática} e do homem inter-
base, trecho que é uma seqüência do agôn; os atores saem (proviso- rogante (o coro, o comentário, a palavra lírica). E esta estrutura
riamente) de cena, os elementos do coro tiram se~s mantos e avançam "suspensa" é a própria distância que separa o muodo das perguntas
em direção aos espectadores; uma parábase (ideal) compunha-se que lhe são feitas. A mitologia havia já' sido a imposição à natureza
de sete partes: um canto muito curto, o ko~1át1011; os ª!1apesr?s, de um vasto sistema semântico. O teatro apodera.-se da resposta mi-
discurso do corifeu (ou chefe do coro) ao publico; o pnegos (difi- tológica e a utiliza como uma reserva de 1Jovas perguntas: pois, in-
culdade de respirar}, longo lrecho recitado sem respirar; finalmen!e, 1errogar a mitologia era interrogar o que havia sido, em seu tempo,
quatro.trechos simétricos, de estrutura estrófica. Nem na tragédia, resposta plena. O teatro grego, interrogação ele próprio, roma, as-
nem na comédia (menos ainda na comédia) eram necessánas as sim, lugar entre duas outras interrogações: uma, religiosa, a mitolo-
unidades de tempo e de lugar (muito embora houvesse uma gia; outra leiga, a filosofia (no século IV a. C.). E é verdade que esse
rendência}: em As Mulheres do Ema, de Ésquilo, a ação deslocava- teatro constitui uma via de secularização progressiva da arte: Sófocles
se quatro vezes. . • . . é menos "religioso" do que Ésquilo, Eurípides do que Sófocles. A
Quaisquer que sejam suas vanaçoes (históncas ou segundo o interrogação tomando formas cada vez mais .intelectuais, a tragédia
autor), esta estru1ura tem uma constante, ,sto é, um sentido: a al- evoluiu na direção do que hoje chamamos drama, até comédia bur-
ternância do que é falado e do que é cantado, da narrativa e do guesa, baseada em conflito de caracteres, não em contJito de desti-
comentário. Talvez fosse-melhor dizer "narrativa" do que "ação"; nos. E, o que marcou esta mudança de função, foi precisamente a
na tragédia (pelo menos) os episódios _(nossos ª!os) n_ão repre~en- progressiva a1rofia do elemento interrogador, isto é, do coro. Na
tam ações, isto é, modificações imediatas de snuaçoes; a açao é comédia, a mesma evolução; abandonando o questionamento da so-

66
67
ciedade (mesmo que essa contestação fosse regressiva), a comédia edificado em um espaço dedicado a Dionísio. A consagração do
política (ade Aristófanes) tomou-se comédia deintriga, de caracteres espaço teatral acarretava a consagração de tudo o que af se passava:
(com Filemon e Menandro): tragédia e comédia tiveram, desde então, os espectadores usavam a coroa-religiosa, os executantes eram sa-
como objeto a "verdade" humana; o que equivale a dizer que, para o grados, e os delitos mmsformavam-seem sacrilégios. Nesse espaço
teatro, o tempo das interrogações.havia passado. consagrado: dois lugares testemunhavam de maneira mais precisa
oculto rendido ao deus: naorchestra, provavelmente dominada pela
estátua de Dionísio, pom_posamente trazida no início da festa, a
AS INSTITUIÇÕES rhymélé; o que era a rhymélé? talvez um altar, talvez uma vala desti-
nada a receber o sangue das vítimas. mas um lugar de sacrifício; e na
Teatro religioso ou teatro civil? Ambos, éevidente: não podia ser cavea. isto é,no eonjunto de arquibancadas, certos lugares, reserva-
de outra maneira em uma sociedade que desconhecia a idéia de lai- dos ao clero dos diferentes cultos atenienses (clero sempre ocasional,
cidade. Mas. os dois elementos não têm o mesmo valor: a religião com.o se sabe, já que se chegava ao sacerdócio por eleição, sorteio
(melhor seria dizer o culto) domina a origem do teatro grego, está ou compra, nunca por vocação); o direito a esses lugares de honra
ainda presente nas instiruições que regulamentam sua fase adulta; chamava-se proedria e estendia-se aos altos dignitários e a certos
é, no entanto, a cidade que lhe dá seu sentido: seus caracte.res ad- convidados.
quiridos constituem seu ser, mais do que seus caracteres inatos. E, Trata-se, como vemos, de instiruições marginais: uma vez lançada
deiJ<;ando de lado, por enquanto, a questão do coro (que é, ahás, um a representação, nenhum elemento cultural podia intervir em seu
elemento religioso transposto), o culto dionisíaco está presente nas desenvolvimento (salvo, talvez, algumas evocações de mortos, cer-
coordenadas do espetáculo·(tempoe espaço), não em sua substância. tas invocações divinas). Atribui-se,noentanto, freqüentemente, uma
Como se sabe, as representações teatrais somente podiam realizar- origem religiosa à própria substância do espetáculo grego, manifes-
se três vezes por ano, por ocasião das festas em honra de Dionísio; tamente secularizada na época clássica. Qual é, exatamente, a ver-
eram, por ordem de importância: as Grandes Dionisíacas, as Lene- dade? Essa origem não se presta à discussão; o que é hipotétieo, é o
anas as Dionisíacas Rurais. As Grandes Dionisíacas (ou Dionisíacas modo de filiação. A hipótese mais conhecida é a de Aristóteles: a
Urb~as) eram uma grande festa ateniense (a hegemonia de Atenas tragédia teria nascido do drama satírico, e o drama satírico do diti-
deu-lhe rapidamente um caráter pan-hclênico), que se realizava na rambo; a comédia teria seguido um caminho diferente, teria \<indo
entrada da primavera, no fim do mês de março; durava seis dias e dos cantos fálicos; Aristóteles não trata da ligação entre o ditirambo
comportava, habitualmente, três concursos ( ditirambo, tragédia, e o culto de Dionísio, esse laço que os Modernos esforçaram-se, du-
comédia); foi nas Grandes Dionisíacas que tiveram lugar as pre- rante muito tempo. por explicar. Mas, a filiação interna dos três pri-
miêres de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. As Leneanas realizavarn- meiros gêneros será exata? Hoje chega-se a duvidar; acredita-se que
seemjaneiro; eram festas exclusivamente atenienses, mais simples apenas o ditirambo, o drama satírico e a comédia deve.m estar liga-
do que as Grandes Dionisíacas: duravam apenas três ou quatro dias dos a Dionísio (a tragédia constituindo um caso à parte), e que cada
e não havia concurso de ditirambo. As Dionisíacas Rurais reali- gênero tem uma filiação direta: em uma palavra, como dizia Aris-
zavam-seno final do mês de dezembro, nosdemes (burgos) da Ática; tóteles, a revelação progressiva de uma essência (a da imitação séria).
os burgos pobres honravam o deus com um simples cortejo, os mais O culto a Dionísio comportava elementos orientais ecompreendia,
ricos organiiavam concursos de tragédia e de comédia; mas, eram como se sabe, danças em que o tíaso do deus (sua confraria) e símbolo
sobretudo reprises, salvo nos burgos ricos, como o Pireu, onde se de seu cortejo era verdadeiramente "possuído". A dança cíclica do
realizou, como conta Sócrates, uma preq1iere de Eurípides. ditirambo reproduziria as danças em círculo coletivas dos possuídos,
Para'todas essas festas, o teatro (isto é': o lugar de onde se vê) era presas da mania divina; sabe-se que, nos cosrumes orientais ainda

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em vigor no século passado no Islã, essas danças de roda ou vira- tal", mesclando e resumindo estados intermediários, até contra-
voltas eram simultaneamente expressão e exorcismo da histeria ditórios, enfim, uma conduta harllloniosa de "desaI?Qssamento", ou,
coletiva. O drama satírico teria uma dupla hereditariedade cultural: para empregar um termo mais insosso, porém mais moderno de
por um lado suas danças, em que saltos desordenados reproduziriam dépaysemem. '
a ma11io individual (e não mais coletiva), comparada ao grande ataque E a tragédia? Paradoxalmente, este gênero, o mais prestigioso dos
convulsivo de Charcot; por outro lado, o disfarce (os Sátiros estão gêneros patrocinados por Dionísio, nada iria dever, pelo men0s di-
fantasiados e mascarados) viria de carnavais muito antigos, consti- retamente, ao culto do deus: através dos gêneros propriamente dio-
tuídos por máscaras de cara de cavalo (o cavalo era, então, animal nisíacos, a cidade teria simplesmente sido receptiva para com uma
do inferno). Finalmente a comédia, pelo menos em sua parte inici.al nova forma dramática, elaborada por seus poetas; a tragédia seria,
(parodos, agôn e parábase), teria sido o prolongamento dos cômoi, em sua essêneia, uma criação propriamente ateniense, a que o deus,
espetáculos ambulantes animados porjovens mascarados que abriam· sunplesmente por razões de vizinhança, teria coo.cedido seu teatro e
as cerimônias do culto. seu patrocínio. Em sendo assim, não se buscará mais uma relação
Resumindo, o laço que une o culto dionisíaco a esses três gêneros de caráter entre Dionísio ea tragédia (relação que sempre foi forçada).
seria, por assim dizer, de ordem física: é a "posse", ou, para ser mais Dionísio é um deus complexo, dialético; é ao mesmo tempo um deus
preciso, a histeria (cuja relação de natureza com os comportamen- infernal (do mJJndo dos mortos) e da renovação; éo próptiodeus desta
tos teatrais é conhecida), a dança sendo simultaneamente satisfação contradição. E verdade que, ao sedvitizarem, isto é, ao passarem à
e liberação. Será, talvez, neste ~ontexto que se deva compreender a categoria de instituições civis, os gêneros dionisíacos (ditirambo,
catharsis teatral; sabe-se_que esta noção, tomada de Aristóteles, foi drama satírico e comédia) purificaram, simplificaram, apaziguaram
o tema da maioria dos debates sobre a finalidade da tragédia, de o temperamento inquielantedodeus: era uma questão de ênfase. Mas,
Racine aLessil)g. A função da tragédia será "purgar"todas as paixões no queconcemea tragédia, a au1ooomia é flagrante: nada, neste gêne-
do homem, suscitando nele temor e piedade; ou tão-somente libertá- ro, pode vir do irracional dionisíaco, sejaeledemoníacoou grotesco.
lo deste temor e dessa piedade? Muito se tem discutido sobre a Tudo isto leva a sublinhar enfaticamente o .caráter civil do teatro
natureza dessas paixões, objeto e fim da imitação teatral. Aprópria grego, sobretudo no que diz respeito à tragédia: foi a cidade que lhe
noção de catharsis permanece, no entanto, ambígua: trata-se de "ar- deu sua essência. A cidade, isto é, Atenas, a polis, ao mesmo tempo
rancar" a paixão (como disse Corneille) ou, mais modestamente, cidade e Estado, municipalidade e nação, sociedade fechada e
purificá -la, sublimá-la, eliminando apenas sua insensatei,(Racine)? "mundial". O espetáculo insere-se nesta sociedade através de três
Seria vão retirar deste debate toda a autenticidade que lhe deu a instituições: a coregia, o théôricon e o concurso.
história; mas, do ponto de vista histórico, é, sem dúvida, inútil; O teatro grego era oferecido legalmente aos pobres pelos rkos.
Corneille, Racine ou Lessing não poderiam ter idéia do contexto, A coregia era uma liturgia, isto é, uma obrigação oficialmente im-
simultaneamente místico e médico que, provavelmente, dá seu posta pelo Estado aos cidadãos ricos: o corego devia instruir e equi-
verdadeiro sentido ànoção de catharsisdramática; em termos médi- par um coro. O número de cidadãos cujas fortunas eram tributadas
cos, a catharsis é o desenlace da crise histérica; em termos místicos, com uma liturgia (havia outras, além da eoregia) era, na época
é simultaneamente posse e liberação do deus, posse com vistas à clássica, de cerc~ de mil e duzen1os - dos quarenta mil cidadãos
liberação; é difícil expressar esses tipos de experiências através do que formavam a Atica; entre esses mil eduzentos, oarconteescolhia
vocabulário cientista de hoje, sobretudo se é necessário associá-las os coregos do ano, lantos quantos coros fossem concorrer. Os en-
a uma representação teatral (embora o psicodrama e o sociodrama cargos financeiros eram pesados: cabia ao corego alugar a sala de
lhes ~mprestem uma certa atualidade); diremos apenas que o teatro ensaios, pagar pelo equipamento, fornecer bebida aos executantes,
antigo, originando-se de Dionísio, constituía uma "experiência io- pagar a remuneração diária dos artistas; uma coregia trágica ficava

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cm cerca de vinte e cinco minas, uma coregia cômica custava cerca va-se, também, da tista dos poetas que iriam concorrer (o poeta havia
de quinze minas (a mina correspondia aproximadamente a cem dias sido, inicialmente, autor e ator, em seguida o próprio poeta passou a
de salário de um operário não especializado). Com o empobreci- escolher seus atores, e um concurso de trágicos chegou a ser insti-
mento do Estado (no fim da guerra do Peloponeso), dois cidadãos tuído nas Grandes Dionisíacas); a reunião dos coregos (e de seu coro)
associavam-se em uma única coregia, formando uma sincoregia. Em por um lado, e dos poeias (e de sua trupe) por outro lado, era feita
seguida a coregia desaparece e dá lugar à agonotesia: uma espécie por sorteio, democraticamente, isto é, na Assembléia do povo. Havia
de comissariado geral de espetáculos, cujo orçan1ento é, em princípio, t.rês concorrentes para a tragédia (cada um apresentava uma tetralo-
de responsabilidade do Estado, mas, na verdade, pelo menos par- gia) e três (depois cinco) para a comédia. Cada obra era represen-
cialmente, de responsabilidade do próprio comissário (designado por tada uma única vez, pelo menos no século V; mais tarde houve re-
um ano). Pode-se, evidentemente, estabelecer uma relação entre o prises: todo concurso passou a ser precedido pela representação de
empobrecimento progressivo dos ricos eo desaparecimento do coro. · um clássico (sobretudo Eurípides).
A entrada do teatro era, em princípio, gratuita para todos os cida- O julgamento, que se seguia à festa, era confiado a um júr,i de
dãos; mas, como havia uma enorme multidão, estabeleceu-se um cidadãos, escolhidos por sorteio (não se deve esquecer que para os
direito de entrada de dois óbolos por dia de espel'áculo (um ter~ do gregos, através do sorteio, manifestava-se a vontade dos deuses), em
salário diário de um operário não qualificado). Esse direito, pouco dois níveis: no momento da constituição do júri (dez cidadãos), isto
democrático, pois que lesava os pobres, foi rapidamente abolido e é, antes das representações, e após a votação, quando um novo sorteio
substituído por uma subvenção do Estado aos cidadãos pobres; esta escolhiadefinitivamenteapenascincosufrágios. Haviaprêmios,para
·subvenção, de dois óbolos por pessoa (diobeUa), foi instituída por o corego, para o poeta, e, mais tarde, para o protagonista (tripé ou
Cleofonte, por volta de 4 iO, e recebeu o nome de théôricon. coroa). O concurso era encerrado com a elaboração de uma ata ofi-
Coregia e rhéôrico11 asseguram, pois, a existência material do cial gravada em mármore.
espetáculo. Uma terceira instituição-não menos importante-vai É dfücil imaginar instituições mais sólidas, laços mais fortes
garantir o controle da democracia sobre o valor do teatro (não se deve entre uma sociedade e seu espetáculo. E, porque essa sociedade era
esquecer que o controle de um valor é sempre uma censura ide- democrática precisamente,no momento em que a arte do espetáculo
ológica): o concurso. É conhecida a importância do agôn, da com- atingiu seu ponto mais alto, o teatro grego 10,nou-se o modeJo do
petição, na vida pública dos antigos gregos; praticamente incom- teatro popu.lar. Não se deve, porém. esquecer que, por mais admirável
parável com nossas instituições e-s!)Ortivas. Do ponto de vista da que tenha sido, a democracia ateniense não correspondia nem às
sociedade, qual é a função do agôn? E,sem dúvida, de mediatizar os condições nem às exigências de urna democracia moderna. Era urna
conflitos sem os censurar. A competição permite manter a pergunta democracia aristocrá.tica: deixava de fora metecos e escravos: havia
dos antigos duelos (quem é o melhor?), dando-lhe, porém, um sen- apenas quarenta mil cidadãos entre os quatrocentos mil habitantes
tido novo: quem é o melhor em relação às coisas, quem é o melhor da Ática; esses cidadãos podialll participar livremente das festas
para dominar não o homem, mas a natureza? A natureza, aqui, é a desde que outros homens trabalhassem para eles. Mas esse grupo
arte, isto é, uma representação completa de valores religiosos e restrito, onde todos se conheciam, uma vez constitu(do - e é o que
históricos, morais e estéticos, o que é, senão singular, pelo menos ainda opõe a democracia ateniense à nossa - caracterizava-se por
raro: poucas vezes a arte foi submetida a um tal regime de compe- uma noção de responsabilidade c(vica cuja força, hoje, dificilmente
tição desinteressada. se concebe; o cidadão ateniense não se limitava a participar dos
O mecanismo dos concursos drnmáticos era complexo, os gre- negócios públicos: ele governava, inteiramente imerso no poder,
gos e~am muito exigentes com relação à sinceridade de suas com- graças às numerosas assembléias de gestão de que participava. E-
petições. O arconte, como vimos. designava os coregos; encarrega- nova singularidade - esta responsabilidade era obrigatória, eons-

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tante, unânime; era a própria essência da mentalidade, nada se po- que anunciava o início do espetáculo propriamente dito. Os festi-
dia fazer,semirou pensar fora de um horizonte cívico. Teatro popu- vais da Grécia antigaeran1, pois, verdadeiras·"sessõcs" (as Grandes
lar? Não. Mas teatro cívico, teatro da cidade responsável. Dionisíacas durava.rn se.is dias, e cada manhã "trágica", cerca de seis
horas, da aurora até meio-dia, os espetáculos eram reiniciados na
parte da tarde), durante os <Juais a cidade vivia teatralmente, desde a
OS PROTOCOLOS máscara que era usada para assistir à procissão inaugural, até a mi-
mesis do espetáculo propriamente dito.
Este quadro de iostituições deve, necessariamente, ser comple- Contrariamente ao nosso teatro burguês, no teatro grego não havia
tado com um quadro dos costumes, pois um espetáculo só adquire ruptu.ra física entre o espetáculo e seus espectadores; essa continui-
sua significação no momento em que se articula com a vida material dade era assegurada por dois elementos fundamentais. que nosso
dos que dele usufruem. teatro tentou recentemente reencontrar: a circularidade do espaço
O teatro grego é um teatro essencialmente festivo. Nasce de uma cênico e sua abertura.
festa anual que dura vários dias. Ora, a solenidade e a extensão de A orchestra do teatro grego era perfeitamente circular (cerca de
uma tal cerimônia trazem dyas conseqüêocias: inicialmente, uma vinte metros de diâmetro). As arquibancadas, geralmente apoiadas
suspensão do tempo; sabe-se que os gregos não conheciam o repouso na encosta de uma colina, representavam pouco mais do que um
semanal, noção de origem judia; somente não trabalhavam quando hemiciclo. Ao fundo, uma construção cujo ioterior servia de cama-
das festas religiosas, é verdade que bastante numerosas. Associado rim e o muro frontal ondeeram colocados os cenários:· a skéné. Onde
ao fim do tempo de trabalho, o teatro instalava-seem um outro tempo, representavam os executantes? Inicialmente, sempre na orchesrra,
um tempo do mito e da consciência, que podia ser vivido como um coroe atores n1.isturados (os atores talvezdispusessem de um estrado
lazer, mas também como uma outra vida. Pois esse tempo suspenso, baixo, de alguns degraus, colocado diante da skéné); mais tarde(no
por sua própria duração, tomava-se tempo saturado. final do século IV), diante da skéné foi colocado um proskénio11,
Esses dias de festa eram dias muito cheios. Antes da festa pro- estreito, porém alto, oode a ação se concentrou, ao mesmo tempo
priamente dita, havia o proagô11, espécie de desfile em que eram cm que o coro perdia sua importância. Toda a edificação eJa, ini-
apresentados àmullidão os poetasdesignadosesua trupe. O primeiro cialmente, de madeira, e o piso da orclrestra, de terra batida; os pri-
dia era consagrado a uma procissão destinada a tirar de seu templo a meiros teatros de pedra datam de meados do século IV. Como ve-
estátua de Dionís.io e instalá-la solenemente no teatro; durante a mos, o que hoje chamamos de palco (conjunto da skéné ou do
procissão havia uma hecatombe de touros, cuja carne, grelhada, ern proské11io11) não teve, no teatro grego, uma função verdadeiramente
distribuída à multidão. Seguiam-se dois dias de representações di- orgânica: como base da ação, foi um apêndi.ce tardio. Em nossos
tirâmbicas; um cômos ou cortejo, na tarde do segundo dia; em teatros, o palco é toda a frontalidade da ação, a distribuição fatal do
seguida, três dias de representações dramáticas: toda manhã, uma espetáculo,avessoedireito. Noteatroantigoo espaçocênicoéamplo:
tetralogia (três tragédias e um drama satírico, separados por meia há uma analogia, comunhão de vivência entre o "fora" do espetáculo
hora de intervalo) e, toda tarde, uma comédia. Antes da represen- e o "fora" do espectador: o tealIOantigo é um teatro liminar, repre-
tação propriamente dita, havia outras solenidades, isto é, 'O utros sentado no limiar das tumbas e dos palácios: e.sse espaço cônico. que
espetáculos: a entrada dos que eram honrados com a proedria; a se alarga para cima, aberto ao céu, tem a função de ampliar o deslino
exposição, na orchestra, do tributo em ouro pago pelas cidades ali- e não sufocar a trama.
adas; o desfile dos "paladinos da nação", em suas armaduras com- Acircularidade constitui o que se poderia chamar de uma dimen-
pletas; a proclamação de honrarias concedidas a alguns cidadãos; são "existencial" do espetáculo aotigo. O ser represe11tado ao ar livre
uma lustração, feita com o sangue de um porco; e o toque de clarim constimi outra dimensão. Podemos imaginar o caráter pictórico deste

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tea1ro matinal. deste teatro da aurora: a multidão multicolorida (os relegada a intermédios (balés); ora, o que define a choréia é a igual-
espectadores usavam seus trajes de gala, as cabeças coroadas como dade absoluta das linguagens que a compunham: são todas, se as-
em qualquec_cerimônia religiosa); a púrpura e o Ollro do vestuário sim se pode dizer, "naturais", isto é, provindas do n)esmo quadro
de cena, o bnlho do sol, o céu da Atica (as Dionisíacas realizavam- mental, moldado por uma educação que, sob o nome de "música";
se mais no inverno-ou no fim do inverno-do que na primavera). compreendia as letras e o canto (os coros eram naturalmente com-
O sentido do ar livre é sua fragilidade. Ao ar livre, o espetáculo não postos de amadoresfacilmente recrutados). Para se ter uma imagem
pode ser um hábito, é vulnerável, logo, insubsiituível: a imersão do verídica da choréia, será, talvez, necessário pensar no sentido da
espectador na polifonia complexa do·aP livre (sol que se desloca, educação grega (pelo menos, tal como o defi.niu Hegel): através de
vento que se levanta. pássaros que voam, ruídos da cidade) restitui uma representação completa de sua corporalidade (canto e dança),
ao drama a singularidade de um acontecimento. Da sala escura ao ar o ateniense manifes1a sua liberdade: a liberdade de transfonnar seu
l.ivre, o imaginário não pode ser o mesmo: o primeiro é um imagi- corpo em órgão do espírito.
nário de evasão, o segundo de participação. Sabemos que a poesia, ou antes, a própria palavra-jáquese trata,
O púbHcoque lota as arquibancadas-como nos nossos espetácu- apenas, de definir uma técnica- tinha três modos de emissão: uma
los esporuvos - 1transfonnado por seu próprio volume; o número expressão dramática, falada - monólogo ou diálogo - em tríme-
de lugares é considerável,sobretudo se comparado ao total do número tros iâmbicos (a cataloguê); uma expressão lírica, cantada, escdta
de cidadãos: cerca de quatorze mil lugares em Atenas (a sala do em metros variados (omélos, ou canto); e,finalmente, umae-xpressão
palácio de Chailtot tem cen;;a de dois a três mil lugares). Esta massa intermediária, a paracataloguê, composta em 1etrihnetros: mais
era estruturada, ao contrário de nossas salas de espetáculos ou de enfátiea do que a pane falada, mas não tão melódicll como o canto.
nossos estád.ios: além dós lugares proédricos, que não se limitavam a paracatalogue era, provavelmente, uma declamação melo-
forçosamente à primeira fila, os lugares comuns eram freqüente- dramática, em tom alto, mas recto tono, acompanhada (como o
mente reservados, por setores, a certas categorias de cidadãos: aos mélos) pela flauta.
membros do Senado, aos efebos, aos estrangeiros, às mulheres (que, A músic.a era monódica, cantada em uníssono ou em oitavas dife-
em geral, sentavam-se na parte mais alta das arquibancadas). Estabe- rentes, acompanhada apenas (e também em uníssono) pelo aulos,
lecia-se, assim, uma dupla coesão: maciça, em escala do teatro como espécie de tlauia de dois tubos, tocada por um músico que se sen-
urn todo; particular, em escala de grupos homogêneos pela idade, tava na rhymélé. O ri1mo - era este um dos aspectos nobres da
sexo ou função -sabemos como a integração de um grupo fortalece choréia - era tota)mente baseado na métrica: cada medida cor-
suas reações e estrutura sua afetividade-. Havi.a uma verdadeira respondia a um pé, cada nota a uma sílaba, pelo menos na época
"ins1alação" do público no teatro; a tudo is10 é necessário acrescen- clássica; Eurípides já utiliza um estilo floreado. com vocalizações,
tar o último dos protocolos de "posse": a comida; no teatro grego os o que obr.igará o poeta a contratar um compositor profissional. Essa
espectadores comiam e bebiam, e os coregos generosos faziam cir- música foi quase inteiramente perdida (temos apenas um fragmento
cular vinho e doces. do coro de Orestes. de Eurípides); o que a diferencia da nossa é que
sua expressividade é codificada. como se sabe, por iodo um léxico
de m.odos musicais: a música grega era emiJJentemente, abertamente
l'" AS TÉCNICAS significante, de uma significação baseada mais na convenção do que
A técnica fundamental do teatro grego é uma técnica de síntese: oo efeito natural.
a choréia. ou união consubs1an.cial da poesia, da música e da dança. Nachoréia, adançaéoquenosémaisdifícili111aginar. Verdadei-
Nosso 1eatro, mesmo lírico, não consegue dar uma idé.ia da choréia, ras danças ou simples evoluções ritmadas? Sabe-seapenasquehavia
pois'nele predomina a música em detrimento do texto e da dança. uma distinção entre os passos (phorai) e as figuras (schemata), que

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podiam. sem dúvida, chegar à pantomima: com as mãos e com os vergen1e: diminuição das forcunas e do sentimento cívico (como já
dedos (quironomia); uma delas era célebre: foi criada pelo chefe de vimos), isto é, hesi1ação dos ricos em assumir a coregia; redução da
coro de Prátinas. para Sete comra Tebas e descrevia a batalha "como função coral a simples interlúdios; aumento do número de atores e
seescivéssemos lá". Também aqui, o que é notável éa expressividade, dos papéis que de.sempenhavam. evolução da interrogação trágica
isto é, a conscicuição de um verdadeiro siscema semâncico cujos em direção à verdade psicológica.
elementoseramperfeitamenceconheeidosportodososespectadores: Todos os executanies. coro e atores, apresentavam-se mascara-
podia-se "ler" uma dança: sua função inceleetiva era quase tão im- dos, cxce10 no ditirambo. As máscaras são feitas de tecido estucado.
portante quamo sua função plástica ou emotiva. recoberto de gesso e pintado, e prolongadas poruma peruca e, even-
Eram esses os diferentes "códigos" da choréia (vimos como o 1Ualmente, por uma barba postiça; a fronte é quase sempre exces-
elemento semântico era importante). Não havia executames "espe- sivamente alta: é o onkos, alta proeminência frontal. A expressão
cializados" para cada um deles. É cerco que o coro nunca recitava dessas máscaras tem uma história, que é a própria história do rea-
(ao contrário do que é fei10 nas rccons1ituições modernas). sempre lismo antigo; na época de Ésquilo a máscara não tem uma expressão
camava; os atores eo corifeu, no entanto,embora dialogassem quase determinada, é uma superfície neutra cujo único traço expressivo é
sempre. podiam também camar e até, a pare ir de Eurípides, dançar; uma pequena ruga na fronte; ao contrário, na época helenística, na
utilizavam comumente a paracatalogui!, isso é certo; não se deve tragédia, a máscara é exageradamente patética, os traços extrema-
esquecer que os "personagens" (noção, aliás, moderna, Racine mente crispados; outros traços (cor dos cabelos, pele), sobretudo na
11 chamava "atores" a seus personagens) saíram pouco a pouco de uma comédia, classificam as máscaras por tipos, cada umcorrespondendo
1
massa anônima, o coro, A função de mestre do coro ( exarchl}n) era a uma função, a uma idade, a uma disposição: são máscaras de caráter.
uma preparação para um ator; Téspis ou Frínico deram o primeiro Qual era a função das máscaras? Podemos enumerar funções super-
passo e inventaram o primei,ro ator, transformando a narrativa em ficiais: revelar os traços a distância, esconder a diferença dos sexos,
imitação: nascera a ilusão 1eatral. Ésquilo criou o segundo ator e já que os papéis femininos eram desempenhados por homens. Sua
Sófocles o terceiro (dependendo ambos do protagonista); como o função profunda, porém, mudou conforme as épocas: no teatro
número de per,sonagens era, por vezes, maior do que o número de helenístico, por sua tipologia. a máscara está a serviço de uma me-
atores, o mesmo atpr devia desempenhar papéis sucessivos: assim, tafísica das essências psicológicas; não oculta, exibe; é o verdadeiro
cm Os Persas, de Esquilo, um ator era a Rainha e Xerxes, outro era antepassado da maquilagem moderna.Na época clássica, no entanto,
o Mensageiro e a sombra de Dario; devido a essa economia o teatro essa função parece ser oposta: confundir, inicialmente, censurando
grego articula-se sem esforço em cenas de contestação, em que são a mobilidade do rosto. expressões, sorrisos, lágrimas, sem substi-
necessários apenas dois personagens. tuí-la por nellhuma outra; em seguida, alternando a voz, que setor-
O número de participan1es do coro não mudou durante a época nava profunda, cavernosa, estranha, como se viesse de um outro
clássica: doze a quinze coreutas para a tragédia, vinte e quatro para mundo: mescla de iounamidade e humanidade, a máscara é, então,
a comédia, inclusive o corifeu. Em seguida, o papel do coro passou uma função capital da ilusão trágica. cuja missão é revelar a comu-
a Ler menos imporcância: no início, dialoga com o ator pela voz do nicação entre os deuses e os bomens.
corifeu, coloca-se à sua volta, para apoiá-lo ou para interrogá-lo; Idêntica função tem o vestuário de cena, ao mesmo 1empo real e
participa sem agir, porém comentando; em resumo, é a coletividade irreal. Real, porque tem aestru1ura do vestuário grego: túnica, manto,
humana confrontada com o acontecimemo, buscando compreendê- clâmide; irreal, pelo menos em sua versão trágica, porque esse ves-
lo; 1odasessasfunçõespoucoapoucoforaroseatrofiando,easpanes tuário é o próprio vestuário do deus (Dionísio), o.u, pelo menos, de
cor?iS terminaram por ser apenas intermédios sem qualquer laço seu grande sace(dote, de uma riqueza (cores e bordados) desconhe-
orgâoico com a própria peça; há, aqui, um triplo movimento con- cida na vida (o ves1uário cômico é menos irreal: uma túnica curta,

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deixando ver o falo de couro que exibiam os personagens mascuJj. andar") possibilitava aos atores a comunicação com o telhado ou com
oos). Além desse ve.stuário básico, llavia alguns "emblemas" par- o andar superior do edifício que ficava ao fundo (sobretudo no teatro
ticulares, isto é, o esboço de um código vestimemar: o manto púrpura de Eurípides e de Aristófanes); e, finalmente, alçapões, escadas sub-
dos reis, a longa malha de lã dos adivinhos, os farrapos da miséria, o terrâneas e até elevadores tornavam possível o aparecimento dos
negro do luto e da dor. O coturno, como calçado de sola alta, é um deuses do inferno e dos mortos. Apesar de sua diversidade, esta
apêndice tardio. da época heleoística; o aumento da estatura do ator maquinaria tem um sentido geral que é "mostrar o interior" dos in-
acarretou um aumento a1:tificial de sua corpulência: ventre e tórax fernos, dos palácios do Olimpo; a máquina tenta desvendar um
postiços, mantidos sob a toga por uma malba, exagero do onkos. segredo. aumenta a analogia, suprime uma distância emre o
O cunho realista - já que é essa pergunta que nós, modernos, espetáculo e o espectador; é, poi.s, lógico que ela se tenha desen-
fazemos a essas técnicas - foi muito mais rápido no que toe.a ao ce- volvido paralelamente ao "aburguesamento" do drama antigo: sua
nário. No inicio, é apenas uma construção de madeira, representando função não-foi apenas realista (noiiúcio) ou feérica (no fim), mas
de maneira rudimentar um altar, uma tumba ou umarocha. Sófocles também psicológica.
- seguido por Ésquilo em suas últimas peç<1s-introdu.z o cenário Rapidamente es~ teatro P-!5SOu a conter o germe do teatro rea-
pintado sobre uma tela móvel colocada contra a skéné: pintura me- lista para o qual tendia desde Esquilo, apesar de que numerosas ca-
díocre, mas logo confiada a desenhistas especializados, os cenó- racterísticas desse primeiro teatro trágico o distanciassem, ainda,
grafos. A esse cenário central (e frontal}, foram acrescentados, no dessa tendência: impersonalidade da máscara, eonveocionalidade
fim do século V; dois cenários laterais, os periactos: eram prismas do vestuário, simbolismo do cenário, pequeno número de atores, im-
giratórios, mont~dossobre pinos, de maneira que, quando necessário, portância do coro; não se pode, porém, e-5quecer que o realismo de
uma das faces vmha se Wlir ao cenário central. A partir da Comédia uma arte não se pode definir senão pelo grau de creduLidade de seus
nova, o cenário da esquerda (do ponto de vista do espectador) era espectadores, pois remete fatalmente aos quadros mentais que a
uma prolongação convencional do espaço distante(em Atenas, o lado recebem. Técnicas alusivas so.madas a uma credulidade grande
da campina ática)~ o cen?rio da direita prolongava a vizinhança constituem o que se poderia chamar um "realismo dialético", onde
1medlata (na d1reçao do Pireu). Rapidamente surgiu uma ripologia a ilusão teatral acompanha um incessante vaivém entre um sim-
sumária dos lugares representados: paisagem silvestre para o drama bolismo intenso e uma realidade imediata; co.nta-se que os especta-
satírico, casa de família para a comédia, templo, palácio, renda de dores da Oréstia fugiram aterrorizados no momento da chegada das
campanha, paisagem rústica ou marinha para a tragédia. Não havia Erínias, porque Ésquilo, rompendo com a tnidição da parodos, as
cortina diante desses cenários, até o teatro romano, por vezes ape- havia feito aparecer uma a uma; essa reação recorda o susto dos
nas uma tela móvel destinada à preparação de certas cenas. primeiros espectadores do cinema quando uma locomoriva entrou
Este grande impulso reaLista toma-se mais complex.o à medida na estação de La Ciotat: em ambos os casos, o que o espectador
que se sucedem as gerações, e logo passa a contar com o auxílio de absorve não é nem a realidade nem sua cópia; é uma "surrealidade",
uma técnica preciosa: a maquinaria. Na época helenística esSsas o mundo dublado de seus signos. Este foi, sem dúvida, o realismo
~ ... máquinas eram muito complicadas; uma delas era destinada a ex-
teriorizar as tenas interiores de assassinato, a ekkykléma, plataforma
do primeiro teatro grego, o teatro de Ésquilo, e, talvez, também, o
de Sófocles. Mas, técnicas analógicas (expressividadedas máscaras,
r~lante que transportava os cadáveres parn forndas portas do palácio, complexidade da maquinaria, atrofia do coro) somadas a uma credu-
diante dos olhos dos espectadores; outra, a-méchané, fazia com que lidade se não enfrnquecida, pelo menos mais consciente, compõem
deuses e heróis pudessem voar: era uma grua cujo cabo, pintado de um realismo inteiramente diferente; foi, provavelmente, o realismo
cmz.a, a tomava mvisfvel; quando imóveis, em sua morada, os deuses de Eurípides e de seus sucessores: aqui, o signo não remete mais ao
apareciam porcin1adaskéné, nothéologeion: adistegia (ou "segundo mundo, e sim a uma interioridade; a própria materialidade do espe-

80 81
táculo torna-se, em seu conjunto, um cenário. e quando a choréia hoje em dia, levado à cena sem que haja uma preocupação com as
desapa(ece, seus elementos transfonnam-se em simples "ilustra- convenções elisabe1anas, ou se representa Racine sem recorrer à
ções". das quais se exigeque sejam plausíveis: o que se passa no palco dramaturgia clássica, a sombra de celebração antiga es1á sempre
já não é signo da realidade, é cópia da realidade; compreend:-se por presente, exercendo seu fascínio: nostalgia de um espetáculo total,
que foi Eurípides o escolhido por Racine para reiomar o d1alog.o, e violentamente físico, ao mesmo tempo desmedido e humano, vestí-
por que o academismo teatral do século XlX estava mais próximo gio de uma reconciliação jam,ús vista entre o teatro e a cidade. Uma
de Sófocles do que de Ésquilo. coisa, no entanto, é ce(ta: esta reconstituição é i.mpossível; porque a
A verdadeéqueesse teatro nunca deixou de estar presente, nunca arqueologia nos dá infonnações incompletas, sobretudo no que diz
deixou de nos interessar nos últimos quatro séculos. Desde o Renas- respeilo à função pláslica do coro que é a pedra fundamental de todas
cimento, os músicos, os poetas e os amadores da Camera Bardi, cm as encenações modernas; em seguida, e sobretudo, porque os fatos
Florença, inspiram-se nos princípios da choréia para criar a ópera. revi vidos pela erudição traduziam sempre as funções de um sistema
Nos séculos XVIleXVlll ,como se sabe, a principal fonte dos drama- total, que era o contexto mental da época, e porque no plano da to-
turgos é a obra dramática dos antigos gregos: não apenas os tex!os, talidade, a História é ia-reversível: na ausência desse contexto, desa-
mas os próprios princípios da arte trágica, seus fins e seus met?s; parecem as funções, os fatos isolados transformam-se em essências,
sabe-seque Racine es1udou detalhadamente as passagens da Poétrca adquirem, queiramos ou não, uma significação imprevista, e o fato
da Aristóte,lesconsagradas à tragédia, e que, mais tarde, co.mLessing, literal rapidamente se transfonna em contra-senso. Por exemplo: a
foi retomada a querela da catharsis. O que Aristóteles trazia ao tea- música grega era monódica; mas, para nós, modernos, cuja música
tro moderno era mais uma técnica decomposição, baseada na razão, é polifõnica, toda monodia resulta exótica: é uma significação fatal,
do que µma filosofia trágica (é o senti.do das artes poéticas da época): certamente não desejada pelos antigos gregos. Há, pois,noespetáculo
da poética arist0télica desprendia-se uma espécie de prax_is.trágica grego, tal como nos é mostrado pela arqueologia, fatos perigosos,
que confirmava a idéia de um artesanato dramáuco: a tragedia grega característicos do contra-senso: são precisamenre os fatos laterais,
tomava-se o modelo, o exercício e a ascese de toda a criação poética. os fatos substanciais: o fonnato de uma máscara, o tom de uma
Nos séculos XIX e XX, é a própria materialidade do teatro grego- melodia, o som de um instrumemo.
dei.xada de lado por nossos clássicos-que provoca mais-reflexões; Há, 1ambém, funções, relações, fatos estruturais: por exemplo, a
inicialmente, no plano da filosofia e da etnologia, de Nietzsche a distinção rigorosa entre o que é falado, cantado ou declamado, ou a
George Thomson, há uma indagação intensa sobre a origem ea natu- plástica fron1al, maciça, do coro (Claudel falava justamente de can-
reza desse teatro, simultaneamente religioso e democrático, primitivo tores atrás das es1antes), sua função essencialmente lírica. São essas
e refü1ado, "surreal" e realista, exóticoeclássico; .volta, de{lo,s, a ser oposições que devemos e, creio, podemos reencontrar. Porque es-
levado ao palco (desde meados do século XlX) como um teatro bur- tamos implicados nesse teatro, não por seu exotismo, mas por sua
guês mais pomposo (são as primeiras "reconstituições" da Comédie verdade, não apenas por sua estética, mas por sua ordem. E essa
Françoise), e, em seguida, em um estilo mais bárbaro e mais his1órico verdade só pode ser uma função . a relação que solda nosso olhar
de que é necessário dizer algumas palavras à guisa de conclusão, pois, moderno a uma sociedade muito ant iga: esse teatro nos toca por sua
1' 11,
a partir de algumas medi.lações de Copeau no Vieux Colombier e da distância. Já não se trata mais de assimilá-lo nem de desenraizá-lo:
represen1ação de Persas pelos estudantes do Grupo de Teatro An- trata-se de compreendê-lo.
tigo daSorbonne, em J936, as experiências contemporâneas são nu-
merosas e baseiam-se em princípios freqüentementecontraditórios. Ex1raído de Histoire des spectacles,
publicação dirigida por Guy Dumur.
Isto porque ainda não se conseguiu decidir definitivamente se esse Encyclopédiede la Pléiade.
teatro deve ser reconstituído ou adaptado. Enquanto Shakespeare é, © Edições Galtimard, 1965.

82 83
DIDEROT, BRECHT, EISENSTEIN

ParaAndréUchiné

Imaginemos que uma afinidade, de estatuto e d~ história, une,


desde os antigos gregos, a matemática e a acústica; imaginemos que
este espaço propriamente pitagórico tenha sido um tanto reprimido
durante dois ou três milênios (Pitágoras é o herói epônimo do Se-
creto); imaginemos, enfim, que, a partir desses mesmos gregos, outra
ligação tenha seestabelecido diante da primeira, que sobre esta tenha
lri unfado, tomando sempre a dianteira na história das artes: a ligação
entre a geometria e o teatro; o teatro é, na verdade, esta prátiea que
calcula o lugar olhado das coisas: se o espetáculo é colocado aqui, o
espectador verá isto; se é colocado ali, não verá nada, e, aproveitando
este "esconder", poder-se-ia tirar proveito de uma ilusão: o palco é
essa linha que vem cortar o feixe ótico, desenhando o fim e como
que a fronte de seu desenrolar: assim se ergueria, contra a música
(contra o texto), a representação.
Arepresentação não se define diretamente pela imitação: se aban-
donarmos noções de "real", de "verossímil", de ".cópia", haverá
sempre" representação", enquanto alguém (autor, leitor, espectador)
dirigir seu olhar para um horizonte e nele recortar a base de um
triângulo de que seu olho (ou sua mente) será vértice. O Organon da
Representação (que já é possível escrever porque outra coisa se
adivinha), este Organon terá como duplo fundamento a soberania
do recorte e a unidade daquele que recorta. Pouco importará, pois, a
substância das artes; o teatro e o cinema são, certamente, expressões.
diretas da geometria (salvo se procederem a alguma pesquisa rara

85
sobre a voz, a estereofonia), mas o discurso literárioclássico (legível), mais, o teórico dessa dialética·do desejo; no artigo "Composição",
abandonando há muito tempo a prosódia, a música, é, também ele, diz o seguinte: " Um quadro bem composto é um todo concentrado
um discurso representativo, geométrico, pois que recorta trechos para em um único ponto de vista, em que as partes concorrem para um
pintá-los: discorrer (teriam dito os clássicos) é "pintar o quadro que mesmo objetivo e formam, por sua correspondência mútua, um
se tem na mente". O palco, o quadro, o plano, o teatro, a pinrora, o conj unto tão real quanto o conjunto dos membros em um corpo
cinema, a literatura, isto é, todas as "artes" exceto a música e que se arlimal; assim como um 'quadro' onde figuras dispostas ao acaso,
poderia chamar: artes dióptricas. (Para provar: nada perm.ite desco- sem proporção, sem inteligência e sem unidade, não merece o nome
brir um quadro no texto musical semsubjugá-lo ao gênero dramático; de verdadeira composição. tan1pouco merecem o nome de retrato
nada permite descobrir ·no texto musical o menor fetiche sem de- ou até de figura humana estudos isolados de pernas, olhos, bocas,
gradá-lo com a utilização do refrão banal.) reunidos na mesma folha de um bloco de desenho." Eis o corpo ex-
Toda a estética de Diderot repousa, como se sabe, sobre a identi- pressamente introduzido na idéia do quadro, mas todo o corpo; os
ficação da cena teatral e do quadro pictórico: a peça perfeita é uma órgãos, agrupados e como que imantados pelo recorte. funcionam
sucessão de quadros, isto é, uma galeria, uma exposição: a cena em nome de uma transcendência, a transcendência da figura, que
oferece ao espec1ador "tantos quadros reais quantos momentos há, recebe toda a carga fetiche ese transforma em substituto sublime do
na ação, favoráveis ao pintor". O quadro (pictórico, teatral, literário) sentido: este sentido é que é "fetich.izado". (Não seria d.ifícil encon-
.. éum recorte puro, de limites precisos, irreversível, incorruptível, que
remete ao nada tudo que o rodeia, inominado, e promove à essência,
trar, no teatro pós-brechtiano e no cinema pós-eisensteiniano, di-
reções marcadas pela dispersão do quadro, pelo retalhamento da
à luz, à ~ista, tudo o que entra em seu campo; esta discriminação de- "composição", pelo.deslocamento dos "órgãos parciais" da figura,
miórgica implica uma reflexão profunda: o quadro é.intelectual, quer enfim. pela supressão do sentido metafís,ico da obra, como também
dizer algo (de moral, de social), mas diz também que sabe como é de seu sentido político - ou, pelo menos, à ti:ansferência desse
necessário dizê-lo; é simultaneamente significativo e propedêutico, sem ido para uma outra política.)
impressivo e reflexivo. emocionante e consciente dos caminhos da
emoção; são cenas postas (como se diz: a mesa está posta), que * * ·*
correspondem perfeitamente à unidade dramática cuja teoria foi
exposta por Diderot: muito reconadas (não esqueçamos da tolerância Brecht enfatizou que, no teatro épico (que procede por quadros
de Brecht com respeito à cena à italiana, seu desprezo pelos teatros sucessivos), toda a carga significante e aprazível incide sobre cada
imprecisos: ar livre, teatro redondo), exaltando um sentido, mas cena, não sobreoconjunto; ao nível da peça, não há desenvolvimento,
manifestando a produção desse sentido, realizando a coincidência não há amadurecimento, há um sentido conceptual, certamente (até
do recorte visual e do recorte das idéias. Nada separa o plano eisens- mesmo em cada qnadro), mas não há um sentido final, são apenas
tein.iano do quadro greuziano (a não ser, é claro, a intenção, aqui recortes, cada um com suficiente forçademonsti:ativa. Também para
moral, lá social); nada separa a cena·épica do plano eisensteiniano Eisenstein, o filme é uma contigüidade de episódios, cada um deles
(a não ser que Brecht oferece o quadro à crítica do espectador, não à absolutamente significante, esteticamente perfeito; é um cinema de
sua adesão). vocação antológica: o próprio filme oferece, em linhas pontilhadas,
O quadro (já que surge de um corte) será, então, um objeto feti- ao fetichista, o trecho que deverá recortar para saborear lentamente
che? Sim aoníveldosentidódas idéias(o Bem,o Progresso,aCausa, (dizem que um trecho do filme Couraçado Potemkin- seguran1ente
o advento da boa História). não ao nível de sua composição. Ou, mais a cena do carrinho - foi roubado de algumas cinematecas, prova-
exatamente, é a própria composição que permite suprimir o termo velmente por um apaixonado, como se rouba uma trança, uma luva,
fetiche e situar mais longe o efeito do recorte. Diderot é, uma vez um lenço de mulher'). A força primária de Eisenstein deve se ao 0

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valor ideal; basta, pois, queoator"destaque" a produção desse valor, No teatro, no cinema, na literatura tradicional, as coisas são sempre
a tome sensível, visível intelectualmente, pelo próprio excesso de vistas de algum lugm·, éo fundamento geométrico da representação:
suas versões: a expressão significa, então, uma idéia-o que a toma para recortar esse quadro é necessário um tema fet'ichista. Esse lugar
excessiva - . não uma natureza; estamos longe das expressões do de origem é sempre a Lei: lei da sociedade. lei da luta, lei do sentido.
Actor' s Studio, cujo "controle" tão celebrado tem um único sentido: A partir daí toda arte militante só pode ser representativa, legal. Para
a glória pessoal do comediante (remeto, por exemplo. às expressões que a representação seja realmente privada de origem e ultrapasse
de Brando em O Último Tango em Paris}. sua natureza geométrica sem deixar de ser representação, há um
enorme preço a pagar: nada menos do que a motte. Em Vampyr. de
* *. Dre)'er, a câmara passeia entre a casa e o cemitério e capta o que vê
o morro: este é o ponto limite, o ponto que bloqueia a representação:
O quadro terá um ''tema" (inglês: topic)? Absolutamente não; tem o espectador não pode mais ocupar um lugar, pois não pode identi-
um sentido, não -um tema. O sentido começa no gestus social (no ficar seus olhos com os olhos fechados do morto: é um quadro sem
momento pleno}; fora do gestus, tudo é vago, insigniijcante. "De uma início, sem apoio, vazio. Tudo o que se passa aquém desse limite (e
certa maneira, diz Brecht, os temas são sempre um tanto ingênuos, é o caso de Bfecht, de Eisenstein) é legal: afinal,, é a Lei do Partido
falta-lhes qualidades. Vazios, bastam-se, de certa forma, asi próprios. que recorta a cena épica, o plano fílmico, éessa leiqueolha, enquadra,
,~ Só o ges1us social (a crítica, a astúcia, a ironia, a propaganda etc.} focaliza, enuncia. E aqui, mais uma vez Eisenstein e Brecht vão ao
introduz o elemento humano": e Diderot acrescenta (se assim se pode encontro de Diderot (promotor da tragédia doméstica e burguesa,
dizer}: a criação do.pintor ou do dramaturgo não está na esco.lha de assim como seus dois sucessore,s foram promotores de uma arte
um tema, está na escolha do instante pleno, do quadro. Pouco im- socialista). Diderot distinguia, na pintura, práticas maiores, de al-
porta, afinal, que Eisenstein tenha ido buscar seus "temas" no pas- cance catártico, visando a idealidade de um sentido, e práticas
sado da Rússia e da Revolução, e não, "como deveria ter feito'' menores, puramente imitativas, de enredo; de um lado, Greuze, de
(dizem-lhe aqueles que atualmente o censuram}, no presente da outro Chardin; em outras palavras, em período ascendente, toda física
construção socialista (exceto para laLigne générale}, pouco impor- da arte (Chardin) deve coroar-se com uma metafísica (Greuze).
tam o couraçado ou o czar, são apenas " temas" vagos e vazios, Chardin e Greuzecoexisten,em Brecht, em Eisenstein(Brecht, mais
importa apenas o gestus, a demonstração crítica do gesto, a inscrição astuto, encarrega seu públicodeser o Greuze do Chardin que lhe mos-
desse gesto, a qualquer época que pertença, em um texto cuja maqui- tra): em uma sociedade que ainda não encontrou a paz, como poderia
nação social é visível; o tema não acrescenta nem retira nada. Quan- a arte deixar de ser metafísica, isto é: significativa, legível, repre-
tos filmes há, hoje. "sobre" a droga cujo "tema" é a droga?Trata-se, sentativa? Fetichista? Quando chegará a vez da Música, do Texto?
porém. de um tema vazio; sem gestus social, a droga é insignificante,
ou ames, sua significância é vaga e vazia, eterna: "a droga leva à ***
impotência" (Trash}, "a droga leva ao suicídio" (Abse11ces répétées).
O tema é um falso corte: porque este tema e não aquele? A obra só Brecht, aoq ue parece, quase não conhecia Diderot (apenas, tah•ez,
..... começa no quadro, quando o sentido é posto no gesto e na coorde- o Paradoxe}. Foi, no entanto, autori,zada por ele a conjunção tripar-
nação,dos gestos. Por exemplo, Mere Courage: enganam-se, se tite que acaba de ser proposta. Por volta de J937, Brecht teve a idéia
pensarem que seu "tema" é a Guerra de Trinta Anos, ou mesmo a de fundar uma Sociedade Diderot. local de reunião, de troca de ex-
condenação geral da guerra; não: seu gesrus está na ilusão da co- periências e de estudos teatrais, sem dúvida porque via em Diderot,
merciante que crê viver da guerra e que dela morr.e; mais ainda, está além da figura de um grande filósofo materialista, um homem de
na visão que eu, espectador, tenho dessa ilusão. teatro cuja teoria visava dispensar igualmente o praze, e o ensi-

90 91
namento. Brecht elaborou o programa dessa Sociedade e o imprimiu LEITURAS: O SIGNO
em um folheto. A quem imaginou endereçá-lo? A Piscator, a Jean
Renoir, a Eisenstein.
1973, Revue d' es1hétique.

O ESPÍRITO DA LETRA

O livro de Massin é uma bela enciclopédia, de infonnações e de


imagens. Trata-se de uma enciclopédia da Letra? Sim, sem dúvida:
a letra ocidental, tomada em seu contexto, publicitário ou pictórico,
eem sua vocação de metamorfose figurativa. Mas, acontecequeeste
objeto, aparentemente simples, fácil de identificar e de enumerar, é
um tanto ou quanto diabólico: insinua-se em toda parte, e, princi-
palmente em seu próprio contrário: éo que se chama um significante
contraditório, um enantiosema. Pois, por um lado, a Letra edita a Lei
em nome da qual toda extravagância pode ser controlada ("Atenha-
se, por favor, à letra da lei''), mas, por outro lado, e há muitos sé-
culos, como demonstra Massin, libera incessantemente uma profusão
de símbolos; por um lado, mantém "cativa" a linguagem, toda a
linguagem escrita, na golilha de-seus vinte e seis caracteres (para nós,
franceses), e esses caracteres nada mais são do que a combinação de
[ algumas retas e de algumas curvas; mas, por outro lado, é o ponto de
partida de um enonne conjunto de imagens, vasto como uma cos,
mografia; significa, por um lado, a censura extrema (Letra, quantos
,. crimes são cometidos em teu nome!), e, por outro lado, o extremo
prazer (toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra); diz
respeito simultaneamenteao grafista, ao filólogo, ao pintor, aojurista,
ao publicitário, ao psicanalista e ao estudante. A letra mata e o espírilo
vivifica? Seria simples, se não existisse precisamente um espírito da
letra, que a vivifica; ou ainda, se o símbolo por excelência não fosse
a própria letra. É precisamente esse trajeto circular da letra, que nos
mostra Massin. Seu livro, comO<toda enciclopédia bem-feita (eesra
é ainda mais preciosa porque éconstituída j)Orcerca de mil imagens),

92 93
força-nos a rever alguns de nossos precouceit<~s; é un_i livro leve Gá relação simplesmente proporcional, e não exausli vamenteanalógica,
que tratá do signi.ficante}, mas é também um !Jvro crtt,co. . entre a letra e o mundo, como, em geral, os caligramas ou poemas
Antes de mais nada, ao percorrer essas centenas de letras figura- em forma de objetos, de que Massin nos dá uma coleção valiosa
das, vindas de todos os séculos, dos ateliês de cópia da Idade Média (porque se fala muito em càligramas, mas não se conhece senão os
ao Submarino Amarelo dos Beatles, toma-se evidente que letra não deApollinaire). Em seguida, a natureza polissêmica do signo-ima-
é som; segundo a lingüística, a linguagem provém da palavra, cuja gem: liberada de sua função lingüística (fazer parte de uma palavra
escrita seria apenas uma organização; o livro de Massin protesta: o singular}, uma letra pode dizer absolutamente tudo: nesta zona bar-
de-venir e o por-venir da letra (de onde ela vem, e para onde deve, roca onde o sentido sucumbe sob o sfmbolo, a mesma letra pode
incansável e infinitamente, ir) independem do fonema. Essa impres- significar dois contrários (há, na língua árabe. esse tipo de sig,úfi-
sionante proliferação de letras-imagens prova que a palavra não éo cantes contraditórios, esses ad' ddd aos quais J. Berque e J. P. Char-
único contexto, o único resultado, a única traoscendêncla da letra. nay consagraram um livro importante): Z, para Hugo,é o relâmpago,
As letras servem para compor palavras? Sem dúvida, mas também é .Deus, mas. para Balzac, é a letra perversa, a letra do erro. l1tfe-
para algo mais. O quê? abecedários. O alfabeto é um sis_tema lizme~1tc, Massin não faz uma recapitulação de todo o paradigma,
autônomo, aqui provido de predicados suficientes para garanur-lhe mund,al e secular, de uma única letra (teria como fazê-lo): iodas as
a individualidade: alfabetos "grotescos, diabólicos, cômicos, novos, possibilidades figurativas do M, por exemplo, dos três Anjos do
encantados" etc.; em suma, é um objeto que a função e a posição Mestre gótico aos dois picos nevados de Megeve-trata-se de uma
'" técnica não esgotam: é uma cadeia significante, um sintagma ei,te- publicidade - passando pela forquilha, peJo homem deitado -
rior ao sentido, mas não exterior ao signo. Todos os artistas citados coxas erguidas, traseiro ao vento- pelo pintor e seu <.avalete, e pelas
por Massin, monges, grafistas, litógrafos, pin1ores. fecharam o c~- duas donas-de-casa que se preparam para estender um lençol.
minho que parece levar, naturalmente, da pr1m~1ra à segu?da art~- Pois - e é o terceiro capítulo desta lição em imagens sobre a
culação, da letra à palavra, e tomarnm outro cammho, que e o cami- me1áfora - é evidente que, à força de extra-vagâncias, de extra-
nho não da linguagem, mas da escrita, não da comunicação m_as d_a versões, de migrações ede associações, a letra já não é. a letra não é
significância: aventura que se situa à margem das pretensas fmah- a origem da imagem: toda metdfora é i11origi11ada, do ~omento em
dades da linguagem, e, justamente por isso, no centro de sua ação. que se passa do enunciado à enunciação, da palavra à escrita; are-
Segundo objeto de meditação (e dos mais importantes) a que nos lação analógica é circular, sem preexcelência; os termos de que.se
leva o livro de Massin: a metáfora. As vinte e seis letras de nosso apodera são flutuantes: nos signos propostos, quem começa? o
alfabeto, animadas, como diz Massin, por centenas de artistas ao lon- homem·ou a letra? Massin penetra na metáfora através da letra: in-
go de todos os séculos, entraram em relação metafórica com algo felizmente. é necessário que nosso livros lenham um "tema"· mas'
,.. mais além da leira: animais (pássaros, peixes, cobras, coelhos, por
. . )

sena perfei1amente possível começarpela outra extremidade, e-fazer


vezes uns sendo devorados por outros para formar um D, um E, um da leira uma es1,écie de b.omem, de objeto, de vegetal. A letrn, no
.,1 . K. um L etc.), homens (silhuelas. membros, posturas), moostros, fundo. não passa de uma cabeceira de ponte paradigmática,arbi1rária,
vcge1ais (flores, folhas, troncos). instrumentos (tesouras, foices, ÓCU· porque é preciso que o discurso comece (imposição ainda pouco ex-
1.os, tripés etc.): iodo um catálogo dos produtos naturais e humanos plorada), mas esta entrada podeconverter-seem uma saída, se, como
vem duplicar a curta lista do alfabeto: o mundo inteiro incorpora-se os_ poetas e os mistagogos, <.oncebermos que a letr-a (escrita) dá
à letra, a leira toma-se imagem na tela do mundo. ongem ao mundo. Atribui.r uma origem à expansão metafórica é
Alguns aspectos constitutivos da metáfora são, assim, ilustrados, sempre uma opção, metafísica, ideológica. .Daí a importância das
esclarecidos, expostos. Inicialmente, a imporiãncia do que Jakob- mversões de origem (como faz·a psicanálise com a própria letra).
son chama o diagrama. queé uma espécie de analogia mínima, uma Na verdade, e Massin o diz a1ravés de suas imagens, o que existe são

94 95
cadeias flutuantes de significantes que passam umas pelas outras,
que se traspassam: a escri1ura está 110 ar. Observem a relação entre
a letra e a imagem, que esgota toda a lógica: 1) a letra é a figura, este
ré uma ampulheta; 2) a-figura está na letra, inteiramente contida em
sua malha, como estes dois acrobatas entrelaçados em um O (Erté
utilizou -muita imbricação, em seu magnífico alfabeto, que, infe-
lizmente, não é citado por Massio); 3) a letra está na figura (é o caso
de todos os rébus): se não fixamos o símbolo é porque ele é reversível: ERTÉ
rpode remeter a uma faea, mas a faca, por sua vez, éapenas um ponto
de partida, ao cabo do qual (a psicanálise o dem.onstrou) podemos
encontrarum r(em uma determinada palavra relacionada com nosso
AO PÉ oºX LETRA
inconsciente): no fundo, tudo são a varares.
Tudo isto mostra que o livro de Massin traz muitos elementos para A VERDADE
a abordagem atual do significante. A escrita é feita de letras. É uma
evidência. Mas as letras, de que são feitas? Podemos procurar uma Para tomarem-se conhecidos, os artistas devem passar po,r um
.,, resposta histórica-desconheeida, no que se relaciona ao alfabeto;
mas, podemos igualmente utilizar a pergunta para desviar o problema
pequeno purgatório mitológico: é necessário que possamos associá-
los maquinalmente a um objeto, a uma escolha, a uma moda, a uma
de origem, pensar em u,pa conceptualização progressiva da relação época de que são, como se diz, os precursores, os fundadores, as
flutuante, cujafixação deterrninanos sempre de maneira abusiva. No testemunhas ou os símbolos; em uma palavra, é necessário que
Oriente, nessa civilização ideográfica, o que é traçado é o que está possamos, sem esforço, classificá-los, reduzi-los a um nome comum,
emre a escrita e a pintura, sem que uma prevaleça sobre a outra: o como uma espécie a seu gênero.
que permite desmentir esta absurda lei de filiação, que é nossa lei, O purgatório de Ené é a Mulher. Ou melhor, as mulheres. Ené
paterna, civil. mental, científica: lei segregacionista em nome da qual desenhou centenas de mulheres, na verdade, não desenhou senão
separamos grafistas de pintores, romancistas de poetas; mas, a escrita mulheres, como se delas não se pudesse separar (alma ou acessório,
é uma: o descontínuo que é sua característica maior ~az de tudo o obsessão ou comodismo?), como se a fina assinatura de cada um de
que escrevemos, pintamos, traçamos, um único texto. Eo que prova seus desenhos fosse ali colocada por uma mulher. Observem uma
r,
o li.vro de Massin. Cabe-nos não censurar este vasto material, não das grandes composições de Ert~ (são poucas): o emaranhado deco-
,. reduzir essa prodigiosa soma de letras-figuras a uma galeria de ex- rativo, a exuberância precisa e barroca, a transcendência abstrata que
travagâncias e de sonhos: a margemqueconcedemos ao que se pode dirigem as linhas, nos dizem, à maneira de um rébus: "Cherchez lo
t chamar o barroco (para que os humanistas possam nos compreem- Femme". E sempre a encontramos; está sempre presente, minúscula,
' der) é o próprio espaço onde o escritor, o pintor e o grafista. em uma se necessário, exposta no centro de um motivo que, tão logo visto,
palavra, o criador de textos, deve trabalhar. desloca e faz convergir a totalidade do espaço para o altar em que a
mulher é adorada (se não supliciada). Esta prática constante da fi.gu-
J970, lo Quinzaine littér(lire. ra feminina resulta, sem dúvida, da vocação modelista de ):lné; mas,
esta própria vocação desenvolve a consistência mitológica do artista,
pois é na Moda que melhor se pode ler o espírito da modernidade,
suas experiências plásticas, eróticas, oníricas. Ora, Ené, durante.meio
século, ocupou, sem interrupção, o território da lvfoda (e do Espe-

96 97
táculo, que muitas vezes o inspira ou deledepende); e esse território vencional (objeto de um pacto social), que é puro obje10 de comuni-
constitui de direito, institucionalmente (isto é, beneficiando-se da cação, informação precisá, passagem para o inteligível e não ex-
aprovaç-ão de toda a sociedade), uma espécie de parque oaciooal, de pressão do sensível: essas inúmeras mulheres não são o reflexo de
reserva zoológica, onde é conservada, transformada, aperfeiçoada, uma idéia. não são tentativas de wn fantasma, mas, ao contrário. são
através de experiências controladas, a espécie Mulher. Na verdade, a volta de um morfema idêntico, que vem ocupar um lugar na língua
raras vezes a si mação de um artista(mistode prática, função e talenro) de uma época, e que nos permite dizer essa época (o que constitui
foi mais clara: Ené éum personagem puro e completo, histori.camente um grande benefícjo) porque cons1itui nossa memória lingüística:
simples, total e harmoniosamente incorporado a um mundo ho- pQCleríamos falar sem uma memória dos signos? E não nos é ne-
mogêneo, fixado em seus pontos cardeais pelas grandes atividades cessário um signo da Mulher, a Mulher como signo, para falar de
de sua época. a Aventura, a Moda, o Cinema e a Imprensa, represen- outra coisa? füté deve ser homenageado como fundador de signo,
tadas por seus mediadores mais prestigiosos, Mata Hari, Paul Poiret, criador de linguagem, à semel.bança do Logoteta que Platão com-
Hollywood, o Harper's Bazaar; e o centro desse mundo é uma das parava a um deus.
datas ma.is fortemente individualizadas da história dos estilos: 192S.
A mitologia de Ené é tão pura, tão total, que já não sabemos (nem A SILHUETA
indagamos) se ele criou a Mul.her de sua época ou se soube captá-la
com genialidade, se é testemunha ou fundador de uma história, herói Para construir esse signo feminino. é necessário sacrificar algo
ou mitologista. de enorme - o corpo (como mistério, espaço fundador do inc-0ns-
" No entanto: trata-se realmente da Mulher nesta figuração obses- cien1e). Evidentemente, é impossível fazer total abstração (transfor-
siva da Mulhei:'l'É á Mulher o objeto primeiro e último (já que todo mar em signo puro) de uma representação do corpo humano: a cri-
espaço significante é circular) dessa narrativa feita p"or Ené, de de- ança consegue sonhar até diaotc das ilustrações anatômicas de uo1
senho em desenho, durante mais de cinqüenta anos, do atelier de Paul dicionário. Assim, a despeito de sua castidade elegante (porém
Poiret (porvoltade 1913) à televisão nova-iorquina ( 1968)? Um traço contínua), a semântic~ de Erté, o que se poderia chamar sua somato-
de estilo faz-nos pensar: Erté não huscaa Mulher; ele a entrega, ime- grafia, comporta algumas partes-fetiches (na verdade, raras): o dedo,
diatamente, repetida e como que duplicada na perspectiva de um separado do corpo (é característi.co do fetiche) e designado, então,
espelho fiel que multiplicasse infinitamente o mesmo rosto; através pelajóia em que está encastoado (usualmente a jóiao envolve),como
desses milhares de mulheres, nenhum trabalh·o de variação sobre o um curativo fálico (castrador), no surpreendente "Bijou pour ""
r. corpo feminitro, que testemunharia sua densidade e seu enigma doigr" (o quinto dedo: originalmente bisbilhoteiro, em seguida pro-
simbólicos. A Mulher de Ené tem, pelo menos, uma essência? Abso- movido à categoria de emblema social significando a classe supe-
r lutamente não: o modelo de Moda, de onde deriva a iconografia de nor, entre os-povos que deixam crescer desmedidamente a unha do
Erté (e isto não a desfavorece). não é uma idéia baseada na natureza dedo mínimo, que nenhum trabalho manual deve romper); o pé, é
ou na razão, não é um segredo descoberto e-figurado ao cabo de uma claro, designado uma única vez, mas de maneira exemplar (trans-
longa investigação filosófica ou de um drama da criação, ·mas fo~ar um objeto em rema de uma pintura, não é feüchizá-lo?) pelo
1'""'"'•' apenas uma marca, uma.inscrição proveniente de uma técnica e nor- dehc10so sapa10, ao mesmo tempo d.iscreto e refinado, incisivo e
malizada por um código. A Mulher de Erté tampouco é um símbolo, etéreo, oblíq!JO e ereto, que é apresentado sozinho, perli.lado como
a expressão renovada de um corpo que preservaria em suas formas u_m navio ou uma casa, acolhedor como esta, elegante como aquele;
os movimentos fantasmáticos de seu criador ou de seu leitor (como finalmente o quadril, enfatizado pela causa que dele cascateia (na
é o.caso da Mulher romântica dos pintores e dos escritores): é ape- letra_R do Alfabeto escrito por Ené), porém mais freqüentemente
nas um caractere, um signo, remetendo a uma feminilidade con- esqu Ivada (e, logo, sobre-significada) pelo deslocamento degenera-

98 99
dor que lhe é imposto pelo artisia, que a faz partir não mais dos rins, Na obra de Erté, não é o corpo feminino que está vestido (vesti-
mas dos ombros, como na Mulher-Guadalquivir. Estes são alguns dos,fourreaux, cri no li.nas, caudas, abas, véus, jóias e mil bagatelas
fetiches comuns, que o artista utiliza "en passam"; mas, o que é barrocas, cuja graça é inesgotável, cuja invenção é infinita), éo traje
seguramente fetiche para Erté, que dele fez a especialidade de sua que é prolongado em corpo (não preenchido por ele, pois, nas figu-
obra, é um lugar do corpo que escapa à elássica coleção dos órgãos- ras de Erté, na verdade irrealistas, só importa o exierior: tudo é poe-
fetiches, um lugar ambíguo, um limite do fetiche, símbolo a contra- ticamente inventado, subs1ituído. desenvolvido na superfície). Tal
gosto, muito mais francamente signo. produ10 mais da ane do que éa função da silhueta de Erté: criar e propor um objeto (um conceito,
da natureza: fetiche, sem dúvida, pois que pemúte ao leitortocarfan- uma forma)queseja unilário, um misto indissociáveldecorpoetraje,
tasmalicamente o corpo da mulher, aprisioná-lo quanto quiser, ima- de maneira que não se possa despir o corpo nem esquecer o traje:
giná-lo no futuro, em uma cena adaptada a seu desejo e que a esse Mulher inteiramente socializada pelo adorno, adorno obslinada-
desejo satisfaria, e, no entanto, negação do feliche, porque, ao invés meme corporificado pelo contorno da Mulher.
de resultar do retalhamento de um corpo (o fetiche é, por definição,
um pedaço), é a forma global, total desse corpo. Esse lugar (essa
forma) intermediário entre o feliche e o signo, visivelmente privile- A CABELEIRA
giado por Erté, que o representa constantemenie, é a silhueta.
, ,11'1' ' A silhueia, quanto mais não seja por sua elimologia (pelo menos Po,· que esse objeto (que, na falta de um melhor teT11,10, chamou-
,, em francês), é um objeto, simuhaneamente anatômico e semântico: se silhueta)? A que leva essa invenção de uma Mulher-Traje, que já
é o corpo tomado explicitamente desenho, um lado oposto à luz, o não 1em mais nada em comum com a Mulher da Moda? Antes de
outro totalmente na sombra. Esse corpo-desenho é essencialmente sabê-lo (e para sabê-lo), é necessário dizer como é tratado por Erté
(por função) um signo social (foi o sentido que os desenhadores do esseelemen10 do corpo feminino que é precisamente, em sua natureza
Controlador Geral das Finanças, Silhouete, deram a seu desenho); a e em sua própria hisiória, como que uma promessa de traje, ou seja,
sensualidade (e seus substitutos simbólicos) inexiste; uma silhueta, a cabeleira; seu rico simbolismo é conhecido.
mesmo substitutivameme, nunca está nua: não se pode despi-la, não An.tropologicamente, por uma amiga metonímia vinda do início
·1
1
por excesso de mistério, mas porque, contrariamente ao verdadeiro dos 1empos, pois que a religião ordena que as Mulheres a escondam
desenho, ela é apenas um traço (signo). As silhuetas de Erté (não (a dessexualízem) ao entrar na igreja, a cabelei(aé a própria Mulher,
apenas esboçadas ou deljneadas, mas de admirável finitude) estão em sua diferença fundamental. Poeticamente, é uma substância to-
no limite do gênero: são adoráveis (também desejáveis) e, no en- tal, próxima ao grande meio vital, marinho ou vege1al, oceano ou
tanto, i.nteiramente imeligíveis (são signos admiravelmente preci- floresia, por excelência o objeto-fetiche onde o homem se perde
sos). Digamos que essas silhuetas remetem a nova relação entre o (Baudelaire). Funcionalmente, é a parie do corpo que, de repente,
corpo humano e o vestuário. Hegel observou que o traje assegura a
,· 1
passagem do sensível (o corpo) ao significante; a siltmeta ertiana (in-
pode iransformar-se em traje, não tanto pelo que esconde do corpo,
Ilias porqueculllpre,sem preparação, a missão neurótica de todo traje
--
....
finitamente mais elaborada do que a figura de Moda provoca o
movimento contrário (muiio mai.s raro): toma o traje sensível e o
que, ia) como a vermelhidão que ruboriza o rosto que se quer escon-
der, deve, ao mesmo tempo, velar e exporo corpo. Simbolicamente,
corpo significante: o corpo ex.isie (marcado pela silhueta) para que enfim, é "aquilo que pode ser trançado" (como os pêlos do pdbis):
o traje exista; pois não se pode pensar um traje sem corpo (sem fetiche que Freud coloca na origem da tecedura (institucionalmente
silhueta): o 1raje vazio, sem cabeça e sem membros (fantasma reservada às mulheres): a trançasubsiirui o pênis ausente (é a própria
esquizofrênico), é a morte, não a ausência neutra do corpo, mas o definição do fetiche), de tal sorte que "coriar a trança", seja sob a
corpo decapitado, mutilado. forma de brincadeira dos meninos comsuas innãs, seja agressão so-
100
101
cial entre os anligos chineses para os capuz, laços, pente sevilhano,
quais a trançá era apanágio fálico dos chapska , psche111 etc.), são menos
senhores e iuvasores mandchus, é um penteados (não se concebe que alguém
ato castrador. Ora, quase uão há cabe- possa usá-los, isto é, til'.á-los; tampouco
leiras nas giuecografias de Erté. A se concebe como esses penteados
maioria de suas mulheres - caracte- "equilibram-se") do que membros
rística da época-tem cabelos curtos, suplementares destinados a formar um
~ortados "à lagarçonue", calota negra, novo corpo inscrito no penteado, sem
graciosamente ondulanie ou me- romper a.bannoniadesua fonnaessen-
fistofélica, simples assinatura gráfica cial. Pois que a função desses pen-
da cabeça; em certos desenhos, os ca- teados quiméricos é submeter o corpo
belos são imediatamente transformados em owra coisa: em plumas, feminino a uma idéia nova (<!e que falaremos a seguir) e, por
derramando-sedas figuras para formar uma cortina de peuachos, em consegumt~, de-formar esse corpo (llo sentido não pejorativo da
pérolas (dodiademadequatro voltasdeDali/a jorram, brotam brace- palavra). se1a porque o penteado, espécie de flor meio-vegetal meio-
letes e até a corrente dupla que mantém Sansão a seus pés), em este- solar, repete-se na parte inferior do corpo e irrealiza assim o sen-
tido comum da figura humana, seja porque, muito ~ais freqüente-
...... las, no jogo em que se alternam Louras e Morenas (Cortina de
mente, prolonga a estatura para multiplicar seu poder de extensão e
,, Manhattan Mary), onde só são mostradas ao público as trança&
onduladas. Erté sabe porém, perfeitamente (simbolicamente), o que de articulação; o rosto é, então, apenas o proscênio impassível desse
é uma cabeleira: em um de seus desenhos, do rosto adormecido de .
penteado desmedidamente alio onde se situam o possível infinito das
uma mulherjorra uma cascata de longas mechas aneladas, duplicada formas e, por um deslocamento paradoxal, a própria agressividade
(eéo sentido do objeto) por uma malha devolutas negras, como se da figura: se a mulher da A11w1ciação tem os cabelos "em pé sobre a
a cabeleira fosse devolvida ao seu meio natural, à efervescência, à cabeça", é por~ue seus cabelos são também a sobrepeJizdo anjo que,
vida (a cabeleira não permanece intacta após o desaparecimento do na p_ane supenor da composição, abre as asas em apoteose. A dupli-
·I. corpo?); para Erté, porém, em seu sistema (que aqui tentamos des- caçao supenor do rosto pelo penteado de tal maneira fascina Erté
' crever), a cabeleira cede lugar a um apêndice menos simból.ico e mais que ele a transforma na célula de um movimento infinito: sobre~
~lto pschem da Pharaom,e está pinmra en abtme outra Pharao11ne;
~ semântico (ou, pelo menos , cujo simbolismo já não é vegetal,
r.. orgânico): o penteado. tnstalada no topo de uma pirâmide de adoradores, a Cone.rã triun-
~ penteado (enquanto apêndice do traje, e não enquanto arranjo
fante usa uma tiara alta que, por sua vez, é uma mulher: a mulher e
.-·. capilar) é tratado por Erté de uma maneira que chamaríamos im- seu penteado (deveríamos poder dizer: o penteado e sua mulher)
,._ placável: Tal como Johann Sebastian Bach, esgotando um motivo . mod1f1ca_m-se, assim, ~eciprocamente, sem cessar. Esse gosto pelas
< ••
,. em todas suas invenções, cânones, fugas, ricercari e variações constrnçocs em ascensao(além dos penteados "em andaimes", como
possíveis, Erté faz brotar da cabeça de suas mulheres todas as deri- o da pmrcesa Boudou.r ai Badour, no alto de seu palanquim, sobre a
vações imagináveis: véus horizontais, tremulando como bandeiras cabeça um~_armação infinitan1ente.aérea; ou a du Barry, em cuja
nas hastes dos braços erguidos, grandes cilindros de tecido (ou cabe- cabeça equdrbram-se dois an3os quesustentam os colares) mereceria,
l~s?) que, em nonnes volutas, chegam ao chão, cimieiros, penachos, t~l_vez, uma psicanálise, como as que fazia Bachelard; mas, como já
7
diademas mulnplos, auréolas de todas as formas e dimensões dissemos, a verdade de nosso anista não está desse lado do símbolo·
apê"ndices extravagantes (mas elegantes) destronando o model~ para Erté o tema da ascensão é, antes de mais nada, a designação d~
histórico de que são a reminiscência barroca e desmedida (colback, um espaço possível da linha que, partindo do corpo, possa possibili-

102 103
tar seu poder de significação. O penteado, acessório maior (tem seus maneira mais.intensa, a Letra empresta à Mulher sua abstração: ao
substitutos menos nas echarpes, caudas, colares, pulseiras, tudo o figurar a letra, Erté infigura a mulher (permitimo-nos este barba-
que parre do corpo}, é aquilo através do que o artista ensaia sobre o rismo, necessário pois que Erté despe a mulher de sua figura - ou,
corpo feminino as transformações de que necessita para elaborar, pelo meoos, a evapora - sem a desfigurar): as figuras de Erté são
como um alquimista, um objeto novo, nem corpo nem traje, partici- tomadas por um incessaote "transforma-se", letrns tornam-se
pando, no entanto, de ambos. mulheres, mas igualmente (nossa própria língua reconheceu esse
parentesco), pernas transformam-se em Irastes (jambes emjam-
bages). Compreende-se, agora, a importância da silhueta na arte de
A LETRA Erté (ai udimos a seu sentido ambíguo: símbolo e signo, fetiche e men-
sagem); a silhueta é um produto essencialmente gráfico: faz do corpo
Esteobjetonovo criado por Erté, tal uma quimera metade Mulher, humano uma letra cm potencial, que pede para ser lida.
metade penteado (ou cauda}, é a Letra (palavra a ser entendida ao pé Esse ecumenismo da letra, na obra de Erté, leva a uma salutar
da letra). O alfabeto de Erté é célebre. Sabe-se que, nesse alfabeto, retificação de uma opinião corrente: que a Moda (figuração estili-
cada uma de nossas vinte e seis letras é .composta (salvo algumas zada de inovações no vestuário feminino) conduz. naturalmente, a
exceções de que falaremos na conclusão} de uma ou duas mulheres, uma certa filosofia da Mulher: todos acreditam (modelistas e jor-
posturas e adornos inventados em função da letra ou algarismo que nalistas) que a Moda está a.serviço da Mulher eterna, como uma sa-
....... devem figurar ou a que se submetem. Quem viu o alfabeto de Erté cerdotisa que se consagra a uma reJigião. Os costureiros não são eles
"' não o esquece. Esse alfabeto não apenas atua sobre nossa memória poetas que, ano a ano, estrofe a estrofe, escrevem o canto de glória
de maneira bastante misteriosa (o que nos leva a não esquecer essas ao corpo feminino? A relação erótica entre a Mulher e a Moda não é
Mulheres-Letras?}, mas também, por uma metonímia natural evidente? Assim,.cada vez que a Moda sofre uma mudança radical
(inevitável}, impregna de seu sentido toda a obra de Erté: por trás de· (passando, por exemplo, do longo ao curto}, vemos os cronistas inter-
cada mulher de Erté (figura de Moda, maquete de teatro) há como rogarem os psicólogos, os soeiólogos, para saber que Mulher nova
que um espírito da Letra, como se o alfabeto fosse o espaço natural nascerá da minissaia ou do tubinho. Na verdade, total perda de tempo:
·I originário do corpo (eminino, e que a mulher só o deixasse proviso- ninguém pode responder: deixando de lado os estereótipos, nada
' riamente, temporariamente para, depois dessas férias, reintegrar seu
abecedário nativo: observem Sansão e Dalila: nada têm a ver com
pode ser dito sobre a Moda, desde que considerada como exvressão
simbólica do corpo; essa recusa obstinada é no,·mal: ao escolher pro-
um alfabeto; os dois corpos, no entanto, vivem no mesmo espaço, duzir o signo daMullier (ou a Mulher como signo), a Moda é inea-
, .. como duas iniciais enlaçadas. As mulheres criadas por Erté conti-
nuam letras, mesmo fora do alfabeto; são, no máximo, letras desco-
paz de percorrer, aprofundar, descrever sua capacidade si1ubólica;
ao contrário do que tentam fazer-nos crer (exceção feita aos pouco

. (

~
nhecidas, letras de uma língua jamais ouvida, que nosso particula-
rismo não nos deixaria falar; a série de pinturas sobre placas metáli-
cas (obra pouco conhecida) tem a homogeneidade, a riqueza de
exigentes}. a Moda não é erótica; busca a clareza, não a volúpia; a
cove,--gir/ não é um bom objeto de fantasmas: está demasiadamente
ocupada em fazer-se signo: é impossível vivec (imaginariall\ente)
variações e o espfrito formal'de um alfabeto inédito, que gostaríamos com ela. é necessáriç,, apenas, dec(frá-la, ou mais exatamente (pois
de recitar. São pinturas não figurativas e é essa característica que as não há nela nenhum segredo) inseri-la no sistema geral dos signos
consagra ao alfabeto (mesmo um alfabeto desconhecido}, pois a letra que, faz com que nosso mundo nos seja inteligível, isco é, vivível.
é o espaço onde convergem todas as abstrações gráficas. E, pois, de certa forma, ilusório acreditar que a Moda é obcecada
No alfabeto generalizado de Erté há um intercâmbio dialético: a pelo corpo. A Moda é obcecada por essa outra coisa que Erté desco-
M1Ílher parece emprestar à Letra sua figura; em contrapartida, e de briu, com a lucidez última do artista. e que é a Letra, inscrição do

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corpo em um espaço sistemático de signos. Erté pode haver inaugu- é precisamente a recusa de engajar-se em um processo de signifi-
rado uma Moda (a de 1925), no sentido contingente do termo. To- cação): o espírito (oposto à letra) tornou-se, pois, o valor fundamen-
davia, o que é muito mais impqrtante, é que, em sua obrn (mesmo tal das ideologias liberais; o direito à interpretação es1á cenaroente
aqui, como todo inovador, teve poucos seguidores) reformou a idéia colocado a serviço de uma verdade espiritual, porém esta verdade é
de Moda, ao desprezar a ilusão feminista que tanto agrada à opinião conquistada comra sua aparência (contra o estar aqui da coisa), além
corrente (a de cultura de massa, por exemplo) e ao ~eslocar tenden- dessa aparência. traje que é necessário despir e esquecer.
cial.mente o campo simbólico, da· Mulher à Letra. E evidente que a Através de uma segunda iove~ão, no entanto, a modernidade volta
Mulher está presente na obra de Erté (e mesmo onipresente); mas, é à letra - que já não é roais, evidentemente, a letra da filologia. Por
apenas o tema dessa obra, não seu espaço simbólico. Interrogar as um lado, ao retificar um postulado da lingüísticaque,sujeitando roda
Mulheres de Erté não conduziria a nada; apenas sua imagem falaria, linguagem.à sua forma falada, faz da letra simples u-anscrição do som,
pouco loquaz (simbolicamente) quanto um léxico, que nos dá a a filosofia (com Jacques Derrida, autor de um livro que se intitula
definição (em suma tautológica) de uma palavra, e não seu futuro precisamente De la grammatologie) opõe à palavra um ser da escri-
poético. É característico do significante ser um ponto de partida (de tura: a letra, em sua materialidade gráfica, toro a-se, então, uma ideali-
outros significantes); e o ponto de partida significante, na obra de dade irredutível, ligada às roais profundas experiências da huma-
Erté, não é a Mulher (que é apenas seu penteado, é simples caractere nidade (como no Oriente, onde o grafismo detém um verdadeiro
da feminilidade m(tica),.é a Letra. poder de civilização). Poroutro lado, a psicanálise (em suas pesqui-
.. sas mais recentes) mostra que a letra (como traço gráfico, embora
de origem sllnora) é uma grande encruzilhada de símbolos (verdade
A LETRA, O ESPÍRITO, A LETRA pressentida por toda uma literatura barroca e por toda a arte da cali-
grafia), ponto de partida e de encontro de incontáveis metáforas.
Durante muito tempo, a partir de um aforismo célebre do Ainda es1á por ser descrito o império desta nova letra, esta segunda
Evangelho, a Letra (que mata) opôs-se ao Espírito (que vivifica). letra (oposta à letra literal, aquela que mata): desde que a humanidade
Desta Letra (que mata), nasceram em nossa civilização um grande escreve, de quantas coisas não foi a letra o ponto de partida! (:lbser-
número de censuras assassinas (quantas mortes, em nossa história, vem urna letra: verão seu mistério aprofundar-se (e nunca terminar)
começando pela morte de nossa religião, por um sentido?), que ao longo de associações (metonímias) infinitas em que encontrarão
poderíamos agrupar sob o nome genérico de filologia; guardiã tudo sobre o mundo: sua história, nossa história; seus grandes
implacável. do sentido "verdadeiro" (unívoco, canônico), esta Letra símbolos, a filosofia de nosso próprio nome (por suas iniciais) etc.
desempenha todas as funções do superego, cuja primeira, dene- AntesdeErté(mas é uma época nova, de tal maneirnéesquecida), a
gatória, é, evidentemente, recusar qualquer simbolismo: e, aquele Idade Média depositou um tesouro de experiências, de-sonhos. de
que pratica essa Letra assassina, será acometido por uma doença fatal sentidos, no trabalho de seus unciais; e a arte gráfica - se con-
da linguagem, a assimbolia (mutilado de toda atividade simbóliea, seguíssemos sacudir o jugo empirista de nossa sociedade, que re-
o homem morre em seguida; e, seo assimbolista sobrevive, é porque duz a linguagem a simples instrumento de comunicação - deveria
,- a denegação que apregoa é, também ela, uma atividade simbólica ser a arte maior, em que se transcende a opinião fútil do figurativo e
que não se atreve a dizer seu nome). do abstraio: pois uma letra, ao mesmo tempo. quer di.zer e nada quer
Opor a essa letrn assassina os direitos do espírito era, pois, uma dizer, não imita, porém simboliza, dispensa simultaneamente o álibi
medida vital. Espírito, aqui, não é espaço do símbolo, é apenas es- do realismo e o álibi do estet.icismo.
paço do sentido: o espírito de um fenômeno, de uma palavra, é sim-
plesmente seu direito a começara significar (enquanto a literalidade

106 107
R.T. dada uma espécie dearte escriturai, de onde a linha podedesprender-
se infinitamente.
Saussureé conhecido por seu Curso de lingiiíscica geral, de onde
provém boa parte da lingüística moderna. Começa-se a adivinhar,
no entanto, pela publicação de alguns fragmentos , que o grande O ALFABETO
objetivo do sábio genebrino não era fundar uma lingüística nova Erté compôs um alfabeto. Aprisionada no alfabeto, a letra toma-
(Saussure valorizava pouco seu Curso), mas desenvolver e impor se primordial (no alfabeto, a letra é, geralmente, maiúscula); apre-
aos outros sábios (bastante céticos) uma descoberta que havia feito senrnda em seu estado princeps, reforça suaessênciade letra: é, aqui,
e que foi uma obsessão em sua vida (muito mais forte do que a a letra pura, protegida contra qualquer tentação que a encadearia e a
lingüística estrutural): ou seja, que existe, tecido na malha dos versos diluiria na palavra (isto é, em um sentidocontingeote). Claudel d.izia
das antigas poesias (védica, grega, latina), um nome (de deus, de que a letra chinesa possuía um ser esquemático, une pessoa escritu-
herói) ali colocado pelo poeta de maneira um pouco esotérica-e, rai. Através de seu trabalho poético, Erté transfonna cada uma de
no entanto, regular, esse nome sendo percebido através da seleção nossas letr~s ocidentais em ideograma, isto é, em um grafismo que
sucessiva de algumas letras privilegiadas. A descoberta de Saussure se basta a s1 próprto, que dispensa a palavra; viria a alguém a idéia de
resume-se no fato de que a poesia é dupla: fio sobre fio, letra sobre escrever uma palavra com as letras de Erté? Seria como que um
_.. letra, palavra sobre palavra, significantesobre significante. Havendo contra-senso: a única palavra, _o único sintagma composto por Erté
,.. desco.berto esse fenômeno agramático, Saussure o via em todo lugar; com suas letras, é o seu próprio nome, isto é, ainda uma vez, duas
estava obcecado por ele; não podia ler um verso sem ouvir, no letras. No alfabeto de Erté há uma escolha que nega a frase, o dis-
murmúrio do primeiro sentido, um nome solene, fom1adopelajunção curso. Claudel, uma vez mais, ajuda-nos a sacudir essa preguiça que.
de algumas letras aparentemente dispersas ao longo do verso. nos faz crer que as letras são apenas elementos inertes de um sentido
Dividido emre sua razão de sábio e a certeza desta segunda escuta, que surgiria tão-somente de combinações e acumulações de formas
Saussure viveu um tormento: temia ser considerado louco. No neutras; ajuda-nos a eo1npreender o que pode ser uma letra solitária
entanto, que admirável verdade simbólica! O sentido nunca é sim- (cuja solidão nos é garantida pelo alfabeto):'' A letra é, por essência,
,..
·1 ples (exceto em matemática), e as letras que compõem uma pala-
vra, embora sendo cada uma racio11alme111e insignificante (a
a~_alfüca: toda palavra que constitui é uma enunciação sucessiva de
aftrmaçôes que o olho e a voz soletram: à unidade, ela acrescenta,
lingüística fartou-se de repetir que os sons formam unidades sobre urna mesma linha, a unidade, e o vacábulo precário, em per-
distintivas, e não unidades significativas, ao contrário das pala- pétua variação, constitui-se, modifica-se". A letra de Erté é uma afir-
vras), buscàm em nosso espírito, incessantemente, sua liberdade, a mação (embora amena), coloca-se à frente do precário da palavra
liberdade de significar outra coisa. Talvez não seja por acaso que, (que se desfazde,combinações em combinações): sozinha, procura
no início de sua carreira, Erté haja tomado as iniciais de seus dois dese~volver-se não em direção às suas irmãs (ao longo da frase), mas
• • nomes e com elas composto outro nome, que se tomou seu nome em dtreção à metáfora sem fim de sua forma individual: caminho
de artista: tal como Saussure, Erté ouviu esta duplicação, tecida, verdadeiramente poético, que não leva ao discurso, ao logos, à ratio
sem que ele o soubesse. na malha do enunciado corrente, mundano, (sempre siotagmática), mas ao símbolo infinito. Tal é o poder do al-
de sua identidade; este procedimento anunciava já o objeto per- fabeto: redescobriruma espécie de estado natural daletra. Pois a letra,
manente de sua obra, a letra: a letra, onde quer que esteja (por razão quando sozinha, é i11ocente: o erro, os erros começam quando ·
maior, em nosso próprio nome), faz sempresigno, como essa mulher alinhamos as letras para com elas compor palavras (não há melhor
que, um pássaro em cada mão, faz, com os braços erguidos, o F do rn?neira de pôr fim ao discurso do outro do que fazê-lo voltar à letra
alfa6cto eniano: a mulher faz o sinal e o sinal faz o signo: está fim- prunordial: 11 , a.-. o, não).

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Permitam-me, aqui, fazer uma breve digressão pessoal. O autor ram a mutação de Mulher em Letra) não têm apenas um papel for-
destas linhas sempre ficou muito descontente com ele mesmo pelo mador (através de seus complementos, suas correções, ajudam a criar
fato de nuoca haver conseguido impedir os mesmos erros de datilo- eeometricamente a letra), mas também conjuratório: permitem, ao
grafia, ao recopiar um texto à máquina. Esses erros são banais omis- ;ecordar um objeto gracioso ou cultural, exorcizar a letra perversa
sões ou adições: diabólica, a letra é demais ou de menos; o erro mais (porque as há): T é um signo funesto: é um patíbulo, urna cruz, um
traiçoeiro (que deforma perfidamente a palavra), o mais freqüente, sup!Jcio; Erté o transforma em ninfa primaveril, floral, o corpo nu, a
também, é a metátese: quantas vezes (m.ovido, talvez, por uma irri- cabeça coberta por um véu esvoaçante; onde o alfabeto literal diz:
tação inconsciente contra palavras que me eram familiares e das braços em cruz, o alfabeto simbólico de Erté diz: braços abertos,
quais, por conseguinte, $entia-me prisioneiro) não escrevi esrurtura que se oferecem em um gesto ao mesmo t.empo casto e convidativo.
(por esm,rura), susbrituir (por substituir) ou trasncrição (por trans- Ené faz com a letra o que o poeta faz com a palavra: um jogo. O jogo
crição)? Cada um desses erros, à força de repetir-se, toma uma fi. de palavras baseia-se em um mecanismo semântico muito simples:
sionomia bizarra, pessoal, malévola, mostra-me que algo em mim um único e mesmo significante (urna palavra) toma simultaneamente
resiste à palavra e a castiga desfigurando-a. De uma certa forma, com dois significados diferentes, de tal sorte que a "escuta" é dividida: é
a palavra, com a seqüência inteligível das letrns, éo mal que começa. a dupla escuta. Instalado no campo simbólico, Erté pratica o que
Ass.im, anterior ou exteri.or à palavra, o alfabeto é uma espécie de poderíamos chamar a dupla visão: vemos, conforme quisennos, a
,,+· .. estado adâmico da linguagem: é a linguagem antes do erro, porque mulher ou a letra, e, também, o elo entre as duas. Observem o alga-
..
, éa linguagem antes do discurso, anterior ao sintagma, e, no entanto,
pela riqueza substitutiva da letra,já inteiramente aberto aos tesouros
rismo 2: é uma mulher de joelhos, é um longo penacho em forma de
um ponto de interrogação, é 2; a letra é uma forma total e imediata
,, do símbolo. Por tudo isso, além de sua graça, sua invenção, sua que, se analisada (conforme a teoria da Gestalt), perderia seu sen-
qualidade estétiGa, ou antes, em razão dessas qualidades, que não tido próprio, mas é, simultaneamente, uma charada, isto é, urria com-
vêm empanar qualquer intenção do sentido (de discurso), as letras binação analítica de-partes, cada uma tendo já um sentido. A seme-
de Erté são objetos felizes. Tal coroo a fada que, tocando a criança lhança do processo empregado pelos poetas barrocos ou pelos pin-
com sua varinha de condão, fazia com que de sua boca uma chuva tores "superimpressivos", como Arcimboldo, o procedimento de Erté
·1 de rosas acompanhasse as palavras (ao invé.s dos sapos provocados é astucioso; coloca em ação os sentidos a níveis racionalmente
' .. pela bruxa), Erté nos traz, como um dom, a letra pura, aioda virgem contraditórios (porque aparentemente independeotes): o nível do
..,,.j' de qualquer ássociação, ainda protegida contra qualquer possibili· tudo e o nível de cada parte; Erté tem, se assim podemos dizer, esse
L-1 dade de erro: graciosa e incorruptível. coup d' esprir que, com um único gesto, abre o mundo do signifi-
~ ... cante, o mundo do jogo.
;:· ,' Este jogo é feiro a partir de algumas formas simples, arquefor-
A SINUOSA mas (toda letra as pressupõe). Relendo Claudel: 'Toda escrita ini-
cia-se pelo 1raço ou linha que, uno em sua continuidade, é o signo
--· A matéria com que Erté faz a letra, já o dissemos, é om misto de puro do indivíduo. Ou a linha éhorizon1al como tudo que, unicamente
mulher e de adorno; o corpo e o traje complementam-se; o no paralelismo a seu princípio, encontra uma razão de ser suficiente;
prolongamento da roupa evita uma postura acrobática da mulher e a ou vertical como a árvore e o homem, indica e instala a afirmação;
transfonna cm letra sem que ela nada perca de sua feminilidade, como ou, oblíqua, marca o movimento e o sentido." À luz dessa análise,
sea letra fosse ''naturalmente" feminina. Os operadores de letras são Brté parecerá pouco claudeliano (era de esperar). Há, em seu alfabeto,
numerosos e diversos: asas, caudas, cimieiros, penachos, cabelos, muito poucas horizontais (duas asas ou pássaros, no Ee no P, uma
ecliarpcs, volutas de fumo, cintos, véus; esses " mutantes·• (assegu- revoada de cabeleira no 7, uma perna no A); Brté é pouco telúrico,

110 111
pouco fluvial, osarcanosdacosmogo- finada, civjlizada, socializada, que o
nia religiosa não o inspiram, o prin- Lema feminino pem1ite "cantar" (como
cípio extra-humano não é seu forte. se dizia da antiga poesia; o que quer
Quanto às ven icais. não têm para Erté dizer: tema em que a Mulher pe1111 ite
osentidootimista, voluntarista, huma- falar, a mulher abre cam inho à palavra
nista que o poeia católico emprestava gráfica): como va lor culru,·al (e não
a essa linha, para ele marcada poruma mais " natural''), a femi ni lidade é si-
"inviolável retidão"'. Observem o l : nuosa: a arqueforma do S permite
essa mu lhereretaem seu bocal tem, ao descrever o Amor, o Ciúme, a própria
que parece, algo de primordial, como dialética do sentimento vital, ou, para
se nascer fosse encarnar-se inicial- empregar um termo mais·psicológico
mente na simplicidade primeira da linha reta; mas, no I que está (e, no entanto, também material): a duplicidade. Bsta filosofia da
próximo. a mulher está decapitada, o pingo do I separada de seu s111uos1~a~eéex pressa na Máscara (le Mystere du Masque,.dizuma
tronco: às letras rerns e nuas, d ir-se-ia faltar o arredondado da vida; compos,çao deErté): além ele estar a Mulher. se assim podemos dizer,
são, por tendência. letras mo11as; esse scot ido écorroborado pordm~s sobre.31Máscara (seu corpo mcrusta-se nos olhos e no nariz cujas
alegorias explícirns: a Tristeza e" Indiferença são, para Erté, vem- asas sao a_s faces do rosto), toda a Másca.ra é como um tecido onde se
cais excessivas, paroxísticas: oqueét:riste, o que desagrada. é a linha inscreve. à maneira chinesa, um S duplo, simétrico e invertido, suas
demasiadamente reta. exclusivamente reta: boa intuição psicológica: quatro volutas terminais olhando quem as olha (não se diz: o olho
a reta vertical é aquilo quecorta, éo fio. o gume, o que produz a fenda da volut:a?): pois o olhar só é direto por uma abstração ót ica: olhar é
separadora (schizeir, quer dizer em gregofer1der) que marca (e de- também ser olhado, é estabelecer um circuito, uma volta, é o que
fu1e) o esquizofrênico, tJ"iSte e indiferente. H"á oblíquas no alfabeto dizem o S do olho e a Máscara, tela que nos olha.
de Erté (como rraçar letras sem barras?); a obliqüidade leva Erté a
invenções inesperadas: véu transversal do N. corpo projetado para
t.rás do Z, corpo quebrado e expulso do K: mas, esta linha. de que PAR'ITDAS
Claudel fazia o símbolo natural do movimento e do sentido. não é a
preferida deErté. E então? Duas linhas indLferentes(a horizont.al e a • A~ letra~deErté ~ão "poéticas''. O qtiequer isto djzer? O "poético"
oblíqua) e uma linha perversa (a vertical): onde está, então a fe- nao e uma 1mpressao vaga, uma espécie de valor indefinível, a que
licidade de Erté (e a nossa)? A esLruLura responde, corroboraodo a se aludia por substração do "prosaico". O "poético'' é exatamente a
evidência: sabe-se que, cm Iingüística, o paradigma ideal comporta capacidade simbólica de urna forma; esta capacidade só tem valor
quatro teimos: dois Lermos polares (A.opõe-se a B). um tem10 misto se pennite 11 fo~1na "partu-" para um grande número de djreçõcs e
(ao mesmo tempo AeB) eum tennoneutroou zero (nem A nem B): manifestar, assim, potencialmente, o infinito caminho do símbolo,
as linhas prin10rdiais da escritura enquadram-se sem dificuldade de que nunca se pode fazer um significado último e que é, em suma.
nesse paradigma: os dois tem1os polares são a horizontal e a verti- sempre o significante de um outro sig11ific,mte (razão pela qual o
cal: o teimo misto éa oblíqua, compromisso das duas primeiras; mas, verdade!ro ,Ullônimo do poético não é o prosaico e sim o estereoti-
e o quarto tem10. o tem10 neutro. a li11ha que recusa ao mesmo tempo pado). E, pois, inútil tentar es1abelecer uma lista canônica dos
a horizontal e a vertical? Esta é a preferida de Erré. é a sinuosa: esta s(mbolos liberados por uma obra: apenas as banalidad~s justificam
linha é para Erté o emblema da vida. não da vida bruta. primária. um inventário, pois são finitas . Não se trata de reconstituir uma
nóção metafísica estranha ao universo de Erté, mas sim a vida re- temática de Erté: basta a6nuar a força de panida de suas foro1as-

112 113
que é. também. uma força de volla. a criação simbólica é um combatecomra os es1ere6tipos. Ertédesfaz
porque o caminho simbólico 6 circu- o sentido primeiro de certas lea·as. Observem o E(importame,jáque
lar, e que esse em direção ao que nos faz parce deseu nomeescrilO); graficameme, é uma leu-a considerada
leva Erlé é talvez a 111e1m1a realidade aberta, os três braços abertos à palavra que se segue; é uma letra qrnr
a1mvés do que nasce a invenção da caminha para a frente; sem desfigurá-ta, Erté inverte seu tropismÕ;
letra: o O é. evidentemente, uma boca, a baste vertical do E torn a-se sua parte diante ira. e os braços
mas os dois acrobatas que a fonnam esgarçam-se para a direita como se compelidos por um vento con-
acrescentam-l he o signo do esforço, trário. Observem o Q, letra que soa mal em francês, e, po,· con-
isto é. da abert ura que o homem im- seguinle, de uma cena maneira, wbu: é mria das mais graciosas
prime à linha cerrada de seus lábios. se imaginadas por Erté: dois p,lssaros formam um círculo, dos bicos
quer viver: o zeroé. tarnbém. uma boca unidos lL extremidade das caudas que se cruzam para fomiar essa
e. nessa boca, um cigarro. podendo ela, assim, coroar-se metonimi- vírgula da letra que a diferencia do O. Além dessa$ marcas eufóri-
ciunente com outra boca formada pela fumaça que une uma 11 outra cas,Erté écauteloso com a mitologia da let.-.i que, por sertão poética,
as comissuras dos lábios: dois pontos de partida que levam à mesma é muito conhecida: como a que Rimbaud nos legou em seu soneto
forma; K, oclusiva. faz partiras duas hastesobl íquas de seu grafismo das \loyelles: o A, para Erté. não é um golfe d' Ombre, um noir corset
de uma espécie de ..claque .., i,1diretamente imposta pela haste verti- ve /u, mas é o arquear dourado de dois corpos cujas pernas, em
cal de sua linha principal ao corpo da mulher (aqui é explorado o esquadro, dão à acrobacia uma idéia de tensão construtiva; e E,
foneti smo da leLra, "claque" sendo uma palavra onoma1opaica: angélico e fern inino. não 6/a lance des glaciersjiers: nol, se a cabeça
verdade lingüística. pois agora sabemos que ex iste um simbolismo separada do corpo modesto e bern-comporrado acrescenta à sua re-
fonético. e mesmo. para cenas palavrns, uma semãmica dos sons); tidão, como já dissemos, um quê de inqu ietação, não é, no entanto,
L. é o laço (ou a liana). mulher que r.raz, presa 11colcu:a, uma pantera púrpura (ou oca há sangue na obra de Erté); o U,cujos braços abrigam,
deitada,mulher-pantera. mito da submissão fatal: Dé Diana. noturna, como vasos comunicames, duas mulheres/auves, não é a marca
1unar. musical e caçadora: mais sutilmcnte, no N. que é a leu·a especu- cícl ica impressa pela alquimia nos grandes espíritos estudiosos; eo
lar pÓr excelência. porque. vista no espelho, seu traço oblíquo in- O de Erté, linha desenhada no ar como a figura de dois acrobatas,
verte-se sem que sua figrna seja modificada e sem que deixe de ser não é osuprême clairo11 plein de srride11rs étranges, não é o ômega,
legível, duas estclas, dois bustos siméu·icos e, unindo-os, um véu que, cemro do Rayo11 vilole1de Ses Yew;, mas tão-somente a boca. aberta
ao despir uma mulher, veste a outra. Assim são as let ras de Erté, ao sorriso, ao beijo, à palavra. É que, para Erté, o espaço do alfabeto.
simultaneamente mulheres. ado mos, penteados, gesrose 1inhas: cada mesmo que a letra recorde seu fonetismo. não sonoro. mas gráfico.
uma é simultaneamente sua própria essência (para figurar uma letra trata-se principalmente de um sim boi ismo das lilll1as. não dos sons:
é necessário captar seu arguétipo) e a partida para uma avemura é a letra que '·pa,1c'·. e não o fonema: ou, pelo menos. Ei1é sempre
simbólica cm que o leitor (ou o amador) deve deixar-se levar. busca junto à linha, ao traço. unidade gráfica, esseiúgo quc,antes de
identificar-se a um som claro, é um ges10 museu.lar, miu·cado em nós
por movimentos de oclusão, de concentração e de repouso (é o tra-
M balho do acrobata, figurado no O. no A. no X, no Y e no 4); seu
simbolismo é com ido, mas pelo menos reergue uma arte abandonada
Sabe-se, no entanto, que produzir símbolos nunca é um ato por nossa grande cultura -a arte tipográfica. Emaizada nessa arte,
espontâneo: a afirmação poética apóia-se sobre denegações.de.~men- a leira, separada de seu som, ou pelo menos, subjugando-o. incor-
tidos'i mpressos pelo artis1a no semi do banalmente culrural da forn1a: porando-o a suas linhas, Libera um simbol ismo próprio cujo media-

114 115
dor é o corpo feminino. Concluiremos
com quatro letras de Erté que a-aduzem
de maneira exemplar esse desen-
volvimento metafórico, onde se en-
trelaçam o som e a linha.Ré fonetica-
mente um valor"gordo" (é uma exce-
ção o fato de ser o R escamoteado pe-
los parisienses e pelos franceses de
ARCIMBOLDO
uma maneira geral): R éum som rural. , ou
terreno, material: o R rola (segundo RETORICO E MÁGICO
Crátilo, o deus logoteta havia feito do
Rum som nuvial); por trás de uma mulhernua,exposca sobrcossaltos
altos, apesar do gesto meditativo da mão erguida, brota um caudal Oficialmente, Arcimboldo era o retrat ista de Maximi liano. Sua
de tecido (o,, de cabelos: não se pode nem se deve djstinguir), cuja atividade, porém, foi muito além da pi111ura : compôs brasões.armas
curva gorda, nascendo das nádegas e forrrnmdo as duas volurns do duca,s, desenhos de vura,s. tapeçaria, decorou caixas de órgãos e
R, a faz casta e despudorada. A mesma materialidade (sempre ele- chegou a propor um método colorimétrico de transcrição musi-
gante) encontramos no S: é uma mulher sinuosa. enroscada no con- cal, segundo o qual " um método podi a ser representado por
torno da letra, constituído por uma espécie de efervescência rosa; pequenas manchas de cor sobre o papel"; mas, foi sobretudo um
dir-se-ia que esse corpo jovem nada em alguma substância primor- divertidor de príncipes, um inventor de brincadeiras: organ izou
dial, borbulhante e Lisa ao mesmo tempo, e que a letra, em seu con- e dirigiu jogos, uwent_ou torneios (_gias1re). As cabeças co;;postas,
junt,o, é como um hino pri maveri l à excelência da sinuosidade. linha que, durante vm_te e cmco anos, fabricou na corte dos imperadores
de vida. Inteiramente diferente é sua vizinha, irmã gêmea e. no en-
tanto, inimiga do S: o Z; o Z não é um S ao contrário e anguloso, isto
d: Al~manha, tt_~_ham , _no fundo, un:a função ~e jogos de salão.
Na mmha infânc,,t, no Jogo das Fam,lJas, cada Jogador, nas mãos
é, um desmenrido? Para Erté, é uma letra doleme, crepuscular, ve- u_n~a ilustr~ção. devia_ pedir a cada comp_anheiro de jogo as figu-
lada, azulada, em que a mulher inscreve ao mesmo rempo sua sub- ,as da fam1ha que dev,a reunir: o Sals,che,ro. a Salsicheira, o filho,
missãoesuasuplica (também para Balzac. o Zé uma lerra perversa, a filha. o cão etc.; diante de uma cabeça composta de Arcimboldo,
como expl ica na novela Z. Marcas). emprego o mesmo procedimemo para reconstituir a família do In-
E há, finalmente, nesta cosmografia alfabé1icade Erté, wna letra verno: vou_1:>e?indo: aqui um tronco, ali uma folha de hera, um cogu-
singular, a única, c,·eio eu, que nada deve à Mulher ou a seus subs- melo, um Limao, um capacho. até que tenha diamc dos olhos todo o
titutos favoritos, o anjo e o pássaro. Esta lem, inumana (pois que já ternado inve'.no, toda a "fam ília'· dos produtos da estação fria. Com
não é antropomorfo) é feita de chamas Jauves: é uma porta que Arc,mboldo Jogamos, 1ambém, esse jogo que denominam "retrato
queima, devorada pelas chamas: a letra do amor e da morte (pelo chinês'·: alguém sai da sala. e os outros decidem qual o personagem
menos nas línguas latinas), a letra da negra Tristeza. fulgura sozinha que esse alguém deverá adivinhar. e quando volta o inquiridor, deve
em meio a tantas Mulheres-Letras (como se diz: Menina-Flor). como r~solveroenigma pelojogo paciente das metáforas e das metonímias:
a ausência mortal desse corpo que Ené conve,1cu no mais belo ob- Se foss~uma face,oquese,fa? -Um pêssego.-Sefosse umagola?
jeto que se possa imaginar: uma escritura. - Es~c~as d_e trigo maduro. -Se fosse um olho? - Uma cereja.
-Ad,vmhe,: é o Verão.
Erté,
© 1973. F. M. Ricci cd.. Milão.

11 6 117
* **
Na figura do Outono. o olho (terrível) é uma pequena ameixa.
Ou seja (pelo menos, em francês), a ameixa (pr111u:lle, botfu1ica)
transforma-se em pupi la (prunelle, ocular). Dir-se-ia que, como
um poeta barroco, Arcimboldo explora as "curiosidades" da língua,
joga com a sinonímia e com a homonímia.Sua pintura tem um fundo
lingüístico, sua imaginação é propriamente poética: não cria sig-
nos, mas os combina, os permuta, os desvia - exatamente o que
faz o operário da língua.

***
Um dos procedimentos do poeta Cyrnno de Bergerac consiste
em tomar uma metáfora banal na língua e ex.pi orar infinitamente
seu sentido literal. Se a língua diz "morrercle tristeza", Cyrano
imagina a história de um condenado para quem os carrascos LOcam
músicas tão lúgubres que o condenado acaba por morrer da tris-
teza de sua própria morte. Arcimboldo faz o mesmo que Cyrano.
Se o discurso comum compara (o que é freqüe,uc) um penteado
a um prato. Arcimboldo toma a comparação ao pé da letra. dela faz
uma identificação: o chapéu transforma-se em tigela, a tigela em ca-
pacete (uma ''salada", celata). O processo desenvolve-se em dois
tempos: no momento da comparação, o bom-senso escolhe o que há
de mais banal. uma analogia; mas, em um segundo tempo, a analo-
gia enlouquece, porque é rnclicalmente explorada, é levada até
destruir-se a si mesma enq uanro analogia: a comparação toma-se
metáfora: o capacete não é como uma tigela, é uma tigela. No en-
tanto. última sutileza, Arcimboldo mantém separados os dois ter-
mos da identificação, o capacete e a tigela: de um lado leio wna
cabeça, do ouLro, o conteúdo de um prato: a identificação dos dois
objet0s não se origina da si multaneidade da percepção, mas da ro-
tação da imagem, apresentada como reversível. A leitura. assim, gira
sem cessar; apenas o titu lo a fixa, faz do quadro o retrato de um Co·
zi11l1eiro, porque, da tigela, infere-se mctonimicamente o homem que
com ela trabalha. E, em seguida, novo movimento do sentido: por
que esse cozinheiro cem esse ar zangado, esse aspecto de soldado
rude de .pele cor de cobre? É que o metal da tigela leva à armadura,

ll8
ao capacete; e as carnes cozidas. ao bronzeado da pele de qui:m vi_ve abobrinha à guj sa de nariz; o pescoço de um terceiro era feito de um
ao ar livre. Aliás, soldado baseante singular. que adorna o mtenor bezerro deitado etc. Por trás da imagem, como uma le mbrança, a
do capacete com uma delicada rodcJa de Iimão. E assim por _diante: ins.iscência de um modelo, há a vaga presença de um conto ma-
a metáfora <>ira
b
sobre si mesma, mas obedece

a um movunemo rav ilhoso: parece que ouço Perrauh descrevendo a metamorfose
centrífugo: há iofinitos salpicos de sentido. das palavras que brotam da boca da meni na boa e da menina má
após o enco,iu-o com a fada: cada frase pronunciada peta mais oov~
* ** é acompanhada de rosas. pérolas. diamantes. cnquamo que, com
as palavras da mais velha, saltam dois sapos e duas cobras. As partes
O prato faz o chapéu, o chapéu faz o homem. Curiosamen te, da linguagem são transmuradas em objetos; da mesma maneira,
esia ,íltima proposta serve de título a uma colagem de Max Ernst Arcimbo ldo n ão p intà propriamente as co isas. mas a ntes sua
(J 920). onde as si lhue tas huma nas resu lta m de um acúmulo ar- descrição falada. feita. por um ·'contador" maravil hoso: ilustra o
ticulado de c hapéus. Ma is uma vez. a representação barroca gira que. no l'u ndo. é a cópia lingiiística de uma história s urpreendente.
sobre a Jú1gua e s uas fónnulas. Sob o quadro. a música vaga das
frases feicas: o estilo é o homem; o estilo é o aljcliate (Max Emsl);
pela obra se conhece o operário; pelo prato se conhece o cozi11/!eiro * **
e tc. A língua serve de referência discreta e sensata a essas p111ru- Va mos tecordar, ainda uma vez. a estrutura da linguage m
ras apa rencemente fantasistas. A arte de Arcimboldo não é ex- l1umana: é duplamente articu lada: a seqüência do discurso pode
travagante; mantém-se sempre no lim ite do bom senso, no limite ser recortada em palavras. e as palavras. por sua vez, podem ser
do provérbio; era necessário fazer com q ue os príncipes a q uem recortadas em sons (ou cm letras). Todavia, há uma grande diferença
se destinavam essas obras nelas se reconhecessem e com elas se entre essas duas articu lações: a prime ira p roduz unidades que já têm
surpreendessem: daí essa maravi.U1osa origem das propostas usuais: um sentido (são as palavras) : a segunda produz unidades in signi fi-
o cozinheiro prepara os pratos. T udo é e laborado no campo das cantes (são os fonemas: um fonema, em si, não significa nada). As
metonímias banais. ,ules visuais não têm essa mesma estrutura; é perfeitamente possível
decompor o ..d iscurso., do quadro em fom,as (linhas e pontos), mas
*** essas formas nada signi ficam antes de estare m reunidas: a pinlura
tem apenas uma wticulação. Isso penn ite-nos compreender o para-
Existe uma re lação dessas imagens com a l.íngua. mas também doxo .::s1ru111rnl elas composições arc im boldescas.
com o d iscurso: no conto popular, por e xemplo: é o mesmo pro- Arcimboldo erans forma a pintura em uma verdadeira língua.
ced imento de descrição. Mme. d'Au lnay diz de La ideronnette. dando-lhe dupla articulação: a cabeça de Calvino recona-se, uma
imperatriz dos Pagodes ("peq uenas fig ura~ grotescas de cabeça primeira vez, em formas quej6 são objetos nomeáveis-cm outros
móvel"): "Ela desp iu-se e entrou no banho. 1med1aiamente peque- termos. palavras: uma carcaça de frango. um p ilão. um rabo de
nos pagodes começaram a cantar e a tocar seus instrumentos: alguns peixe:esses objetos. por sua vez. decompõem-se em fonnas que nada
rocavam tiorbas fei tas de uma casca de noz: outros tocavam vio - signilicam: reencomramos, assim. a dupla esca la das palavras e dos
las Feitas de uma casca de amêndoa: os insm,mcntos deviam cor- sons. Tudo se passa como se Arcimbolclo rompesse a ordem do sis-
responder ao tamanho dos personagen~." As Cabe~as Co~postas tema pic tórico, o desdobrasse abusivamente. hipenurofiasse sua
de Arcimboldo têm alo-o de conto de fadas: podenamos dizer de virtualiclade significante, analógica. c riando. assim. uma espécie de
seus personagens a legóricos: este tinha um cogumelo à guisa de monsu·o estrutural. fomedesuti I mal-estar (porque intelectual). ainda
láóios, aquele. um limã(l à g uisa de pe11de11tif: outro tinha uma mais penetrante do que seria se o horror proviesse de um simples

120
121
exagero ou de uma simples mis1ura de elcmemos: é porque nela tudo ***
significa, em dois níveis. que a pintura de Arcimboldo funciona como
a negação, de uma cer1a fonna ate1Tadora. da lfngua piclórica. A retórica e suas figuras: desta maneira o Ocidente, durante
mais de dois mil anos, meditou sobre a linguagem: surpreendendo-
* * :f< se sempre com o faio de haver, nas Iínguas. rransferências de
sentidos (metáboles). e com o fato de que essas mc1ábo les pu-
No Ocidente (ao comrário do Oriente), há pouca relação entre dessem ser codificadas a ponto de poderem ser classificadas e
a pintura e a escrita; a letra e a imagem só se comunicaram em um nomeadas. À sua manei ra, também Arcimboldo é um retórico:
espaço um pouco del irante da criação. fora do classicismo. Sem a1ravés de suas Cabeças, lança no discurso da Tmagem um grande
lançar mão de nenhuma letra, Arcimboldo aproxima-se sem ces- número de figuras de retórica: a tela 1ransfon11a-se em um ver-
sar da experiência gráfica. Seu amigo e admirado,·. o Cônego dadeiro Iaboratório de tropos.
Caomanini. via nas Cabeças Compostas uma emblemática (o que Uma concha vale por uma orelha, é uma Melá/ora. Um cardume
é cm suma. a ideografia chinesa): enrrc os dois níveis da llnguagem u-ansfom1a-sena Água- onde vivem os peixes- , é uma Metonímia.
a:·c imboldesca (o da figura e o dos traços significamos que a O fogo m111sfom1a-se em cabeça flamejante, é uma alegoria.
compõem), há a mesma relação de atrito, de rangido, que se en- Enumerar frutos, pêssegos, pêras, cerejas. framboesas. espigas,
contra em Leonardo da Vinci, entre a ordem dos signos e a or- para traduzir o Verão. é uma Alusão. Repetir o peixe que aqui vale
dem das imagens: No Tra11a10 dei/a Pitwra, a escrita inverlida é. por um nariz. ali é uma boca. é umaAnta11aclase (repetição de uma
por vezes, enu·ecortada de cabeças de velhos ou pares de velhas: palavra fazendo-a mudar de sentido). Evocar um nome através
escrita e pinrura estão .mutuamente fasci.aadas. devoram-se uma de outro cuja sonoridade é idêntica ·'Tu és Pedro (Pierre), e sobre
à outra. Também diante de uma cabeça composta de Arcimboldo, esta pedra (pierre) ..." é LL111aA110111i11ação: evocar uma coisa através
tem-se uma vaga impressão de que ela está escrita. No emanto, de outra cuja fon11a é idêm ica (um nariz pelo quadril de um coelho)
não há nenhuma letra : é resultado da dupla articulação. Como na é fazer uma anominação de imagens etc.
pintura de Leonardo, há uma duplicidade de grafos, meio-imagens.
meio ..sjgnos.
***
*** Rabelais utilizou com freqiiência as linguagens brejeiras. arti -
íicialrncmc - mas sistematicamente - elaboradas: são as forge-
Uma cabeça composta é feita com "coisas" (frutos. peixes, ries: de uma ceita forma. paródias da própria Iinguagem. Havia. por
crianças, 1ivros etc.). Mas, essas "coisas" que servem para compor a exemplo. o baragouin (algaravia) ou linguagem cifrada através da
cabeça não são desviadas de outrn uso (salvo, talvez, no Cozinheiro, substituição de elementos: havia o clwrabia, linguagem cifrada
onde o animal, que "é" a cabeça do homem. é feito para comer). As através da transposição (Queneau conseguiu efeitos cômicos.
coisas estão nos quadros enquanto coisas. como se viessem. não de escrevendo. por exemplo: Kékcékça por "Qu' ésr-ce que t' est que
um espaço caseiro, usual. mas de uma mesa onde os obje1os se_riam t;<i'1" Okekeíço? por O que que é isso?); hav ia fina lmentc. mais louco
defu1idos por sua analogon figurativa: aqui está o Tronco, aqu, está que as demais linguagens cifradas, o lamemoi.1·, conjLL11to de sons
a Hera. aq uj está o Limão, aqui está o Capacho etc. As "coisas" são absolutamente inéompreensível. crip1ograma cuja chave se perdeu.
apresen1adasdidaticm11eme, como em um .livro infantil. A cabeça é Ora. a arte de Arcimboldo é a arte de forjar. Há urna mensagem a
composta de unidades lexicográficas vindas de um dicionário. porém 1ransmitir: Arcimboldo quer significar a cabeça de um cozinheiro.
de um dicionário de imagens. de um camponês. de um reformador. ou o verão. a água. o fogo: essa

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mensagem é ci frada pelo anis1a; cifrar quer dizer esconder e, ao u1 Wzar· a mesma metáfora) a campainhas de flores, a erv ilhas ali-
mesmo tempo, não esconder; a mensagem é "escondida" porque o nhadas na vagem: esses objetos diforemes têm fom1as em comum:
olhar é desviado do sentido do conj unto pelo sentido do detalhe; são parcelas de matéria, reconadas, iguais e arrumadas em uma
inicialmente vejo apenas frutos ou animais amontoados dim11e dos mesma linha; o nariz assemelha-se a uma espiga, com sua forma
meus olhos: é necessário um recuo, uma mudança do nível de per- oblonga e arqueada; a boca.carnuda, parece um figoentreabe1tocujo
cepção, para que eu possareceberuma outra mensagem, um aparelho interior esbranquiçado ilumina o cone vermelho da polpa. No en-
hipennérrope que me pennira perceber. de repente. o sentido global, tamo, mesmo analógica, a metáfora arcimboldesca vai. se assi m
o sentido Hverdadeiro''. podemos dizer. em um único sentido: Arcimboldo nos faz acreditar
Arcimboldo util iza. pois. um sistema de substituição (a maçã que o nariz recorda 1w1111·almenre uma espiga, os dentes lembram
substin,i a face. como. em uma mensagem cifrada, uma letra ou grãos, a carnadura do fruto nos faz pensa,· em lábios: mas ninguém
uma sílaba mascaram ou tra letra ou outra sílaba e, da mesma diria nawralmenre o contrário: a espiga não é um nariz, os grãos não
maneira, um sistema de transposição (todo o conjunto é, de certa são demes, o figo não é uma boca (a não ser por alu~ão a um outro
forma, puxado pari, trás levm1do ao detalhe). O que há de notável, órgão feminino, como prova a metáfora populm· que encomramos
no entanto, nas Cabeças Compostas - e esta é uma característica em várias línguas). Em suma, mes mo justificada, a metáfora de
de Arcimboldo - é que o quadl'O hesita cnue a criptação e a de- Arcimboldoexige um esforço. A arte de Arcimboldo nãoéindecisa.
criptação: porque. apesar de havennos deslocado a tela da subs- segue um caminho basLante claro: trata-se de uma lingua muito afir-
tituição cda transposição para melhor captar a cabeça composta como inac iva.
um efei10, nossos olhos não se desprendem dos detalhes dos senti-
dosµri meiros que produziram esse efeito. Dizendo de ourra maneira. •* *
de um pomo de vista lingüísrico - que é, na verdade. o seu - .
Arcimboldo fala uma língua dupla, simultaneamente clara e con- Freq üentemente, também , o trabalho metafórico é tão audaci-
fusa: expressa-se em baragouí11, em c/1(1rabia, mas essas algaravias oso (como os versos de um poeta muito precioso ou muito moder-
são perfeiwmente claras e inteligíveis. Resumindo. a tínica exua- no) que nenhuma relação "natural'' existe enrre a coisa representada
vagância que Arcimboldo nào se permite é uma língua totalmente e_sua representação: como nádegas ou pernas de crianças podem
incompreensível como é o ti1r11emois: a arte de Arcimboldo não é s1gm fica,· uma orelha (Herodes)'! Como um vulgar rato de porão pode
demente. representar a fronte de um homem (o Fogo)? Esse procedimento
requer analogiasextrnmamente sofisticadas: o laço analógico esgota-
*** se (toma-se raro, precioso): assim ,é a cor amarela da cera que recorda
a pele lisa da fronte, parte pouco irrigada, e onde um amontoado de
Reino triunfante da metáfora: na obra de Arcimboldo iudo é barbantes vem figuraras rugas humanas. Pode-se dizer que. nessas
metáfora. Nada é de11owdo. pois que os traços (linhas. formas. metáforas extremas, os dois termos da merábole não estão em re-
volutas)quccompõem umacabeçajá têm um senrido, eesscsenrido lação d~ equivalência(de ser), mas verdadeiramentedej<,zer: acame
é desviado para ourro sentido, como que projetado para além de do pequeno corpo despido Jaz (fabrica, produz) a oreD1a do tirm10.
si mesmo (é o que quer dizer. et imo log ica mente, a palavra Arcimboldochamaaatençãoparaocaráterprodwivo, rransi1 ivodas
·'metáfora"). As metáforas de Arcimboldo são muitas vezes sen- meráforas; suas metáforas, pelo menos, não são simples constatações
sa1as. Ou seja: entTe os dois termos da transpos ição, subsiste um de afinidades. não aludem a analogias virtuais existentes na natureza,
traço comum, uma '·ponte·•. uma certa analogia: os dentes asseme- equecaberiaaos poetas expressar: desfaz.em objetos familiares para
lham:se ''espomaneameme". ou '·comumeme" (outros poderiam com eles produzir novos objetos. estranhos. resuliado de um ver-

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dadeiro ct)up de force, que é o rrabalho do visionário (e não apenas sas que conhecemos: trata-se quase sempre de plantas. comestíveis,
sua aptidão para captar semelhanças). porque se trata principalmente de tigt1.ras sazonais da Tcrl'a-Mãe;
mas, apenas o contexto limita a mensagem; a imaginação, esta é
*** infinita, possui um poder de acrobacia cujo dom ínio é Lal que parece
apoderar-se de todos os objetos.
A maior audác ia. talvez. não es teja nessas metáforas im-
p,·ovávcis. e sim naquelas que poderíamos chamar desenvolras. A
desenvolcura, aqu i. consiste em não metaforizar o objeto, mas ***
apenas mudá-lo de lugar: ao substituir os dentes do personagem fabricar imagens revo.:rsíveis foi uma moda de época: invel'ti-
que rcprcsema a água pelos dentes de um esqualo. Arcimboldo dos. o papa transforma-se cm bode, Calv ino em louco perigoso;
não modi fica o objeto (conünuam sendo dentes), mas. sem preve- esses tipos de jogos caricaturavam os pai1idários ou os adversários
nir, razcom que passede um reino a outro; amet{úoraé.assim,apcnas da Refonna. Arcimboldo compôs um cozinheiro reversível, cozi-
a exploração de uma identidade. até mesmode uma cautologia (dentes nheiro cm um sentido, simp les prato de carnes, em outro. Em
são demes). que simplesmente se deslocou e mudou de pomo de retórica. esta figura chama-se paifndromo: o verdadeil'O palíndromo
apoio (de contexto). Esse leve desequi líbrio produz uma enonne nada muda na mensagem. que, apenas. é lida de maneira idêntica
estranheza. Magrine o compreendeu muito bem e chamou a uma de nos dois sencidos: Roma tibi subiro motibus ibir amor. diz Quin-
suas composições, cujo procedimento assemelha-se ao ·'salto·• ar- tiliano; a frase, colocada diante de um espelho - a partir do fim
cimboldesco. a \fio/ação (1934): trata-se de uma imagem dúplice. do verso -será exatameme ii?.ual; o mesmo acontece com as figu-
simultaneameme-e de acordo com o lingulo do olhar -cabeça e/ ras de um bara lho: o espelhÕ corta, reperc, mas não desnat ura.
ou busto de mulher: se assim o decide o leitor, os seios ocupam o Ao inverter uma imagem arcimboldesca, ao contrário. haverá. cer-
lugar dos olhos, e o u,nbigo, o lugar da boca. abandonando o reino tamente, um sentido (por isso há pa líndromo). mas esse sentido
da nudez pelo reino da cerebralidade - e isto basta para criar um resultante do movimento de iJ1versi\o mudou: o prato tTansforma-
objeto sobrenaturnl. à semelhança do andrógino aristofanesco. se em cozinheiro. "Tudo é sempre idêntico", diz o verdadeiro pa-
líndromo; qualquer que seja o senrido em que co loquemos os
*** objetos. a verdade permanece. ·'Tudo pode tomar um sentido con-
trário'', diz Al'cimboldo; isto é: tudo 1e111 sempre um se111ido, qual-
Como '·poeta", isto é, fabricante, operário da linguagem. a verve quer que seja o tipo de leitura, porém esse sentido nunca é o mesmo.
de Arcimboldo é continua: os sinônimos são lançados sem cessar
sobre a tela. Continuamente, Arci mboldoemprega fom1as diferen-
tes para dizera mesma coisa. Quer dizer: nariz? Sua reserva de sinô1.ú- ***
mos põe à sua disposição um ramo, uma pêra. uma abóbora. uma Tudo significa e, no entan to, tudo é sul'preendente. Com o
espiga, um cálice de flor. um peixe, um pernil de coelho, uma car- "muito conhecido" Arcimboldo fabrica o fantásrico: a soma não
caça de frango. Quer dizer: orelha? Basta-lhe ir buscar elementos C011'esponde à adição das partes: é mais bem o restante. É necessário
em um catálogo heteróclito de onde extrai um ITonco de árvore, um compreender essa estranha matemática: é a matemática da analo-
cogumelo, a inflorescência de uma espiga, uma concha, uma cabeça gia; não devemos esquecer que, etimologicamente. analogia quer
de animal. Quer criar um personagem barbudo? ]mediatamente se dizer proporçao: o sentido depende do nível em que o leitor se
apresentam um rnbo de peixe. antenas de camarão. Este repertório é coloca. Olhando uma imagem de pen.o. veremos apenas frutos e
infinito? Não. se nos limitamos às alegorias. no fondo pouco numero- legumes; a uma certa distância, veremos apenas um homem de

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rnovi~enio, nada perderá do semi do eesrará sempre em relação viva
com am1agem. Para consrmiJ composições móveis, Calder anicu-
lava ' " 'remente os volumes; ArcimboJdo obtém um resu ltad o
análogo sem se afastar da cela: é o leitor que se deve deslocar, não 0
suporte. Escaopção,_ talvez "divertida" (no caso d~Arcimboldo), não
deixa de ser audacwsa, ou, pelo menos, mu ico ''moderna". pois
implica uma relat,vJZação do espaç<> do sentido: ao incluir o olhar
do leitor na própria esu-umra da tela, Arcimboldo passa vinualmence
de uma pintura newtoniana,_baseada na fixidez dos objetos repro-
duzidos, a uma ane e1senste1111ana. em que o deslocamento do ob-
servador faz parte do estawto da obra.

* **
olhar ameaçador, vestido de um gibão côte/é de gola edçada, que
compõe o Verão: o distanciamento e a proximidade são geradores Arci mboldo é movido por uma energia de deslocamento tão
de senlido. Não está aqu i o gr,mde segredo de toda scmfunica viva? fort~que, se.dá várias versões de uma mesma cabeça, produz, ainda
Tudo provém de um esca/onamemo das articulações. O sentido nasce aqm, mudanças s1gmf1ciu11es: a cada versão a cabeça toma sentidos
de uma combinatória de elementos insignificantes (os fonemas, as dJfere111es. Estamos, então, em plena música: há um tema central
linhas); não basrn, porém, com binaresseselememos em um primeiro (? Verão, o O'.1tono, Calvino), mas cada variação tem um efeito
grau para esgotar a c,iação do sentido: os elementos combinados chferente. Aqm, o Homem ~azonal acaba de morrer, o inverno ainda
formam agregados que podem combinar-se nova me nte. uma cem vestígios da púrpurn d<> outono: a figura é exangue, mas as
'1 segunda, uma terceira vez.. Um artista engenhoso poderia tomartodas pálpebras, ainda viva~, acabam de cerrar-se; ali (e pouco impo11a
as Cabeças Compostas de Arcimboldo. dispô-las. combiná-las com se_essa segunda versao antecede a primeira), o Homem-inverno
viscas a um novo sentido, e fazer surgir desta nova disposição u111a é_Já um cadáver em estado adiantado de decomposição; o rosto é
paisagem, uma cidade. uma floresta: recuar a percepção é gerar um c111i;emo. devastado; no lugar dos olhos. apesar de fechados, uma
novo sentido; talvez seja o único princípio do desfile histórico das cavidade escura; a língua está Jívida. Há, igualmente, duas Prima-
formas (ampliar 5 cm2 de Cézanne é, ele uma certa forma, "chegar" v~ras (lU11.a, ainda túnida. descolorida; a outra, de cores fortes, anun-
a uma cela de Nicolas de Stael) e das ciências humanas (a ciência cia a prox1m1dade do verão) e dois Calvinos: o Calvino de Bérgamo
histórica mudou o sentido dos acontecimentos combinando-os em é arrogante, o da Suécia é hediondo: dir-sc-ia que, de Bérgamo a
um 0111ro 11íve/: as batalhas. os tratados e os reinados- nível cm que Estocolmo. a fi_g~ra foi-se tomando dclcri<>rada, prostrada, acinzen-
se detém a história trad icional - submecidos a um recuo que dimi- tada; os oihos. m1c1almen1e cméis, tomiuu-se mo,10s, lolos: o ríctus
nuiria seu sentido, foram apenas os signos de uma nova língua. de da boca acentua-se; o papel que serve de gola passa de pergaminho
uma nova iJ1teligibilidade, de uma nova história). amarelecido a papel sem cor; a impressão é como que asquerosa.
porque a cabeça é composta de substâncias comestíveis: toma-se
** * encã?, literalmente. incomfvel: o frango e o peixe Lransfonuam-s~
cm lixo. em sobras de um mau restaurame. Tudo se passa como se,
Em suma, a pin1ura de Arcimboldo émó,·el: diz ao leitor se deve a cada vez, a cabeça oscilasse entre a vida maravill10sa e a morte
aproximar-se ou afastar-se, garantindo- lh e qu e, com esse hon-ivel. As cabeças compostas são cabeças que se decompõem.

12& 129
*** de umacabeçacompostadeArcimboldo, digo não apenas: leio,adi-
vinho,descubro.compreendo, mas também:gosto,não gos10. Omal-
Voltemos, ainda uma vez, ao procedimento do sentido - pois, e_-;tar, o medo, o riso, o desejo partic ipam da festa.
em suma, é o que interessa, fascina e inquieta na obra de Arcim-
boldo. As "un idades" de uma Língua estão presentes na te la; ao ***
comrário dos fonemas articu lados, têm já um sentido: são os ob-
jetos nomeáveis: frutos, flores, ramos, peixes, ramalhetes, liv~os, Sem dúvida, o próprio afeto é c ulrnral: as máscaras dogôs pro-
crianças etc.; combinadas, essas, unidades produzem um sentido vocam e m nós, ocidentais. um certo pânico, porque, para nós, são
unitário; mas, esse sentido segundo. na ve rdade, desdobra-se: de exóticas, isto é, desconhecidas; nada percebemos do sim bolismo
um lado, leio uma cabeça humana (leitura suficiente, pois posso que as impregna. não estamos ligados a e las (não somos re ligio-
nomear a fo1ma que percebo, fazer com que e la venha j umar-se ao sos); o efeito que produzem sobre os dogôs é, sem dúvida, to-
léxico de minha própria língua, ondeexisrea palavra "cabeça"), mas, tal me nte d iferente. Assim as cabeças de Arcim bo ldo: é no inte-
do outro lado, leio, ao mesmo tempo, um semido inte irame nte dife- rior de nossa própria c ultura que s uscitam o sentido afetivo, que
re nte, pro venieote de uma região diferente do léxico: "Verão", "In- se deveria c hamar, segundo a e timologia, o sentido patético; pois
verno", ''Outono", ·~Primavera"1 HCozinheiro .,, hCaJvinoH, "Água", não podemos classificar algumas dessas cabeças como "perver-
''Fogo"; ora. só possoconceberesse sentido propriamente alegórico sas e tolas" sem nos referir, através de u ma educação do corpo-da
referindo-me ao senúdo das primeiras unidades: são os frutos que linguagem-a ioda uma soc ialidade: enquanco "expressões". a tolice
fazem o Ve rão, os troncosnus que fazem o Inverno, os peixes que fa- e a perversidade fazem parte de um ce,10 sistema de valores históri-
zem a Água. São já três sentidos de uma mesma imagem; os dois cos: diantede umacabeçade Arcimboldo, um aborígioeda Austrá lia
primeiros são, se assim podemos dizer, denotados, pois, para pro- ta lvez nãoexperimenteesse vago temorq ueessa cabeça me inspira.
duzir-se.necessitam apenas o trabalbo da minha percepção. enquanto
se articula imediatamente sobre um léxico (o semido denotado de ***
uma palavra é o sentido dado pelo dicionário, e o dicionário pode
fazer-me le r, segundo o nível de minha percepção, aqui peixes, lá A a rte de Arcimbold o, por vezes, exerce sobre nós um efei to
uma cabeça). Inteiramente difere nte é o terceiro sem ido, o sentido de repulsa. Observem o Inverno: esse cogumelo entre os lábios
alegórico: para que e u le ia cabeça do Verão ou de Calvino, já não parece um órgão hiperatrofiado, canceroso, hediondo: vejo o rosto
me basta a cultura do dicionário; necessito uma c ultura metonímica, de um homem que acaba de morrer, uma pêra introduzida na boca,
que me faça associa,· cenos frutos (e não outros) ao Verão, ou, de como se o as fixiasse. Esse mesmo Inverno, composto de folhas
maneira ainda mais suúl, a fealdade austera de um rosto ao purita- monas, tem o rosto coberto de pústu las, de escamas. como se
nismo calvinista: e do momento em q ue abandonamos o dic ionário acomelido por uma asq uerosa doença de pele, piliríase ou psoríase.
das palavras por um conjunto de sentidos c ulturais, por associações O rosto cio O utono é um amontoado de tumores: a face tu rges-
de idéias, enfim, pela e nciclopédia das idéias recebidas. entramos cente, vinosa é um imenso órgão inflamado, cujo sangue, escuro,
no campo infinito das conotações. As conotações de Arcimboldo são parece não circula r. A carne arcimboldesca é sempre excessiva:
simples, são estereóúpos. A conotação abre o caminho dos sentidos: ot1destruída, ou escorchada (Herodes), ou intumescida, ou sem
a partir do senúdo a legórico, outros sentidos tomam-se possíveis. vida, mona. Mas, não há uma cabeça graciosa? Sim, evidentemente,
não mais "culturais", mas oriundos dos movimentos (de atração ou a Primavera está cobe11a de flores; mas, pode-se dizer q ue Arcim-
repulsa) do corpo. Além da percepção eda significação (lexical ou boldo dcmistifica a flor, pois que (escânda lo lógico) não a figura
culiural, e la própria) desenvolve-se todo o mundo do valor: diwte na terra: ver uma flor, um buquê. urna campina florida é, sem dúvida,

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um prazer primaveril; porém, reduzida a uma superfície, o conjunto vermes, fetos, vísceras, que estão no lim ite da vida, ainda não nasci-
de flores transforma-se facilmente em eflorescência de um estado dos e, no eotanco,já putrescíveis.
ma is turvo da matéria; a decomposição produz pulveru lências
("flores" de enxofre) e boloresc1uescasscmelham a flores; as doenças ***
de pele muitas vezes lembram flores tatuadas. Assim , também a
Primavera de Arcimboldo encarna-se em uma grande figura líVida, O sécu lo de Arci mbo ldo considerava o monstro uma coisa
acometida por uma doença sofisticada. O quefaz com que as cabeças nutravilhosa. Os Habsbusgo. senhores do pintor, tinham galerias
deArcimboldo produzam um certo mal-estar é, precisamente, porque de arte e cw·iosidadcs (Kunst und Wunderkammem), oode havia
são "compostas": quanto mais a forma do objeto parece provir de objetos estranhos: acidentes naturais, efígies de anões, de gigan-
um primeiro impulso. rnaiséeufórica (sabemos que uma grande parte tes. de homens e mulheres cabeludos: tudo o "que surpreendia e
da art.e oriental favoreceu a feitura ai/a prima); há. na forma imedi- fazia pensar''; essas galerias, como se conta, assemelhavam-se aos
ata e, se assim podemos dizer. incomposta. o prazer de uma unjdade laboratórios de Fausto e de Caligari. Ora. a "maravi lha" - Oll o
sobrenatural; alguns musicólogos relacionaram a melodia romântica. "monstro" - é essencialmente aqui lo que transgride a separação
caracterizada precisamente por seu surgimento unitário, com o dos reinos. não distingue entre animal e vege1a l, animal e humano;
mundo da Mãe, onde desabrocha, para a criança, a alegria da fusão: é o excesso, na medida cm qlle muda a qualidade das coisas a que
poderfamos atribuir o mesmo efeito simbólico à "bela fonna" gra- Deus deu um nome: e a meram01fose, que faz a transferência de
vada pelo artista sobre o pape), a 1ela, em um primeiro impulso.ai/a uma ordem para outn1; enfim , é a transmigração (contan1 que, na
prima. A arre de Arcimboldo é a negação dessa felicidade: não ape- época de Arcimboldo, circulavan1 pela Europa miniaturas índias,
nas a cabeça figurada é o resultado de um trabalho, como também é representando an imais fantásticos cujo corpo era feito "de um mo-
a complicação. o que faz com que o tempo de trabalho esteja repre- saico de formas humanas e animais entrelaçados: músicos, caça-
sentado: pois, antes de "desenhar'' a Primavera, é necessário "de- dores, namorados, raposas, leões, macacos, coelhos"; cada animal
senhar'' cada flor que a compõe. É, pois, o próprio processo da composto - camelo, elefante, cavalo- representava o reagrupa-
·'composição" que perturba. desagrega, desarranja o surgimento mento simultâneo de encarnações sucessivas: o heterócli10 aparente
unitário da forma. Tematicamente, por exemplo, o que há de mais remetia. na verdade, à doutrina hindu da unidade interior dos seres).
liso e unido que a Água? A Água é sempre um tema maternal, a As cabeças de Arcimboldo são o espaço visível de uma transmigração
fluidez é uma alegria; mas, para figurar a alegoria da Água, Ar· que, d ,ante de oossos olhos. leva do peixe à água, da lenha ao fogo,
cjmboldo imagina formas contrárias: a Água, para ele, são peixes, do limão ao pe11de111if. e. finalmente, de todas as substâncias à figu-
crustáceos, um amontoado de formas duras, descontínuas, agudas ra humana (a menos que se queira fazer o caminho em sentido in-
ou arqueadas: a Água é realmente monstruosa. vcrsoe descer do Homem-lnvemoao vegetal que lhe está associado).
O princípio dos "monstros" arcimbo ldescos é, em suma, que a
*** Natureza não pára. Observem a Primavera; é normal que venha
representada por uma mulher com um chapéu florido (esse tipo de
As cabeças de Arcimboldo são monstruosas porque todas chapéu existiu na época deArcimboldo); mas, Arcimboldo cominua:
remetem, qualquer que seja a graça do tema alegórico (Verão, as flores descem do objeto ao corpo, invadem a pele,/azem a pele: o
Primavera, Flora, Água), a um mal-estar de substância: o fervilhar. rosto, o pescoço, o busto são tomados por uma lepra de flores.
Essa mistura decoisas vivas (vegetais, animais, crianças), dispostas Ora. o exercício de uma imaginação desse tipo não depende apenas
em desordem cerrada (ames de alcançar a inteligibi lidade da figura da '_'arte'', mas também do saber: captar metamorfoses (o que fez,
final), evoca uma vida larvária, a confusão dos seres vegetativos, vánas vezes, Leonardo da Vinci) é um ato de conhecimento; todo

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saber está ligado a uma ordem classificadora: expandir ou simples- LEITURAS: O TEXTO
mente mudar o saber, é experi mentar, através de audac iosas
operações, aquilo que subverte as classificações a que estamos ha-
bituados: esta é a função nobre da magia, '·soma da sabedoria natu-
ral'" (Picco Della Mirandola).
Arcimboldo passa, assim, do jogo à grande retórica, da retórica
à magia, da magia à sabedoria.

Arcimboldo. A PINTURA É UMA LINGUAGEM?


@ t978, F. M. ed .. Milão.

Desde a grande expansão da Jingüística. que todos conhecem,pelo


menos, desde que o autor destas linhas manifestou seu interesse pela
semiologia (e lá se vão uns doze anos). quantas vezes lhe foi feita
esia pcrgunt_a: a pintura é uma linguagem? Até hoje, porém, nenhuma
resposta: não se conseguia fom1ular nem o léx ico nem a gramática
geral da pintura a separar, de w11 ladoos significantes do quadro, de
outro seus significados, bem como sistematizar suas regras de subs-
limição e de combinação. A semiologia, enquanto ciência dos sig-
nos, não tinha poder sobre a arte: bloqueio funesto, pois que essa
carência reforçava a idéia segundo a qual a criação artística não pode
ser "reduzida" a um sistema: o sistema. como se sabe, é considerado
um inim igo do homem e da arte.
Na verdade, perguntar-se se a pintura é uma linguagem, coloca já
um problema moral, que pede uma resposta moderada, uma resposta
neutra, quesalvaguardeos direitos do indivfduo criador(oartista) e
aqueles de uma universal idade humana (a sociedade). Como todo
inovador, Jean-Louis Schefer não responde às perguntas astuciosas
da a,t c (de sua fi losofia ou de sua história); e as substitu i por uma
pergunta aparentemente marginal, cuja distância, no entanto, o leva
a constituir um campo inédito cm que a pintura e sua relação (como
se diz: uma relação de viagem), a estrutura. o texto, o código, o sis-
tema, a represemação e a figuração, todos esses termos herdados da
sem iologia. são distribuídos segundo uma nova topologia, que
constitui "uma nova maneira de sentir, uma nova maneira de pen-
sar". Esta perguma é mais ou menos a seguinte: qual é a relação entre
o quadro e a linguagem de que fatalmente aos servimos para lê-lo

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- isto é, para (implicitamente) escrevê-lo? Essa relação não co11s- ~do sistema). através da análise de 11111 único quadro; escolheu Une
1i11,i o próprio q1wdro'? partie d' échecs, do pintor veneziano Paris 13ordone (e nos d,1
Não se trata. ev identememe, de restringir a escrita do quadro adm iráveis " transcrições" que quase nos fazem esquecer o crítico
à crítica profissional de pintura. O quadro, qualquer um o pode e aplaudir o escl'itor): seu discurso rompe de maneira exempl ar
escrever, só existe na narrativa que o "escritor" lhe dá: ou ainda: com a dissenação; a análise não dá seus "resultados", comumeote
na soma e na organização das leituras que dela se pode fazer: um estabelecidos a panir de uma soma de levantamentos estatísticos:
quadro nunca é mais elo que sua própria descrição plu ral. Vemos, está cm co111ínuo aro de linguagem, pois. segundo o princípio de
ass im, como está si multaneamente próxima e distante de uma Schefer, a própria prática do quadJ·o é a própria teoria do quadro.
pintura suposta linguagem, esta travessia do quadro pelo texto de O discurso de Schefer at ualiza. não o mistério. a verdade dessa
que o const ituo; como diz Jean-Louis Schefer: "A imagem não rem Panie d' échecs. mas apenas (e necessariamente} a atividade pela
uma es1rw11ra a priori, 1em es1n11uras rexruais ... das quais ela é o qual se estrutura: o trabalho de lei tura (que define o q11adro)
sistema": já não é, pois, possível (e é onde Schefer faz sair a semi- identifica-se radicalmente (até a raiz) com o trabalho da escritura:
ologia pictórica de sua trilha) conceber a descrição de que é cons- já não há mais crítica. já não há nem mesmo um escritor falando
tituído o quadro, como um estado neutro, literal, denotado, da lin- de pintura; há o grammógrafo, que escreve a escritura do quadro.
guagem; tampouco como pura elaboração mítica, o espaço infini- O livro de Schefer constitu i, dentro do que co mumente se
lamentedisponível de investimentos subjetivos: oquadro não é nem chamou estética ou crítica de arte, um trabalho princeps; é ne-
um objeLO real nem um objeto imaginário. Certamente, a identidade cessário, porém, observar que Schefersó pode realizar esse trabalho
do que está "representado" é incessantemente remetida. o signifi- mcdian1e a subversão do quadro de nossas disciplinas, da ordenação
cado sempre deslocado (pois não passa de uma seqüência de no- do objetos que definem nossa "cultura". O texto de Schcfer abso-
meações. como em um dicionário), a anál ise sem fim; mas, esse lu tamente independe desse famoso ·'interdisciplinar", rarre à la
caráter infinito da linguagem constitu i, precisamenie. o sistema do creme* da nova cultura uni versitária. Não são as disciplinas que se
quadro: a imagem não é a expressão de um código, é a variação de devem intercambiar. são os objetos: não se tn ta de "aplicm·" a
wn trabalho de cod ificação: não é o depósito de um sistema, e sim lingüística ao quadro. de injetm· um pouco de sem iologia na história
geração de sistemas. Piu-afraseando um título célebre, Schefer teria da arte: rrata-se, sirn , de anu lar a distância (a censura) que separa
podido intitular seu livro: /' Unique er sa Srructure; e essa estrutura institucionalmente o quadro eo texto. Assistimos ao nascimento de
é a própria estruturação. alguma coisa, algo que anulará não só a " literatura", como também
Constatamos a incidência ideológica: todo o esforço da semiótica a ''pintura'' (e seus correlatos metaliogüísticos, a crítica e a estética),
clássica tendia a consti tuir ou a postular, frente ao heteróclito das substit ujndoessas velhas di vindadescul Lurais por uma ·'ergografia"
obras (quadros, mitos, narrações), um Modelo. em relação ao qual generalizada, o texto como trabalho, o trabalho como texto.
cada produto poderia ser definido em termos de distanciamen-
tos. Com Schefer, que. neste ponto, continua o trabalho de Julia 1969. ú1 Quin:llint Jitthâire.
Kristeva, a semiologia afasta-se ainda mais da era do Modelo. da
Norma. do Códi.go, da Lei - ou. se preferirmos: da teologia.
Este desvio. ou esta inversão. da lingüística saussuriana exige
a modificação do próprio djscurso da análise, e esta conseqüência
extrema é, talvez. a melhor prova de sua vaiidez e de sua novidade.
Schefor só pod ia anunciar o deslocamento da estrutura para a • 1Uneã I{, cri!me: fórmula. va1,iac prc1cnsiosapelaqual se pre1cndeenconlrJ.ruma
estnlturação. do Modelo distante. imóvel, estático, para o trabalho resposta para tudo. (N. do T.)

136 137
SEMIOGRAFIA
DE ANDRÉ MASSON

De repente, os semiogramas de Masson, por uma espécie de


precursão inesperada, "retomam" as principais propostas de uma
teoria do texto, inexistente há vinte anos, e que, hoje, constitui a
miu·ca distintiva da vanguarda: o que prova que é a circulação das
"artes'' (o~, em outro campo, das ciências) que faz o movimento:
a "1iinmra" abre cam inho à " literatura'', pois parece ha·ver anteri-
ormente postulado um objeto inaudito, o Texto, que suprime, de
m,mei.ra decisiva, a separação das "artes". Masson tinha cinqüenta
e quatro anos quando iniciou seu período asiático (que me agra-
daria mais chamar: textual); os atuais teóricos do TexLO. em sua
maioria, acabavam de nascer. Eis as propostas textuais (e atuais)
:. que já se encontram nessa pintura de Masson (emprego a palavra
"pi ntura" para simplificar: seria melhor dizer "semiografia").
Inicialmente, Masson deliberadamente estabe lece o guc se
chama um interrexto: o pintor circula entre dois textos (no mínimo):
de um lado. o seu (isro é, da pimura, de suas práticas, de seus gestos,
de seus instrumentos) e, do outro lado, o texto da ideografia chinesa
(isto é, de uma estrutura localizada): como deve ocorrer em toda
verdadeira intertextualidade, os signos asiáticos não são modelos
inspiradores," fontes". e sim condutores de energia gráfica,citações

"
... ~ ·"
deformadas, localizáveis coofonne o traço, não conforme a letra; o
que se desloca a partir daí é a responsabi lidade da obra: já não é
consagrada por uma propriedade limitada (de seu criador imediato),
mas viaja em um espaço cultural aberto, sem limites, sem separações,
sem hierarquias. onde encontraríamos igualmente o pastiche. o
plágio, até mesmo a imitação. resumindo. todas as formas de "cópia"
- prática que caiu em desgraça pelas mãos da arte dita burguesa.

139
A semiografia de Masson nos diz oscguime (capital na atual 1eoria desperd ício barroco dos sis temas ideográficos? Bela testemunha
do Tex to): q ue aescrin,ra não se pode reduzir a uma pura função de desse e tnocentris mo impenitente que o riema até a própria c iência
comLm icação (de transcrição). como pretendem os historiadores da de nossa cul!ura. Na verdade, se. ao Ocidente. recusamos o ideogra-
linguagem. O rrabalho de Masson, durante esse período. demonstra ma, é porque te ntamos incessantemente s ubstituir o reino da palavra
que a idemidade do traço desenhado e do traço escrito não é conlin- pelo reino do gesto; por razões que se devem a uma história verdadei-
gemc. marginal. barroca (evideme apenas na ca ljgrafia - prática, ramente monumemal, te mos imeresseem acreditar, sust~ntar, afir-
aliás, ignorada por nossa civilização), mas é. de uma certa forma mar c ientificame nte que a escritura não passa da "t ranscrição'' da
teimosa, obsessiva, englobando ao mesmo tempo a origem e o pre: linguagem articulada: o insuu mento de um instrumento: cadeia ao
sente perpétuo de qualque r rraçado: há uma prát ica única, extensiva longo da qual o corpo desaparece. A semiografia de Masson, cor-
atodafüncionalização: a prática do grafismo indiferenciado. Graças rig indo mi lê nios de história escriru.-al, remete-nos, não à origem
à mag1s tr~ demonstração de Masson, a escritura (imag inada ou real) (pouco importa a origem). 111as ao corpo: impõe-nos, não a forma
surge, e ntao, como o e.rcedeme de s ua própria função; o pimor ajuda- (proposrn banal de todos os pinwres), mas a figura. isto é,aanulação
nos a compreender que a verdade da escritura não se encontra nem elítica de dois sig:nificmnes: o gesto que, na base do ideograma. é
em suas mensagens. nem no siste ma de transmissão q ue ela comu- uma espécie de traço figurativo evaporado, e o gesto do pi mor, do
meme constitui , e menos ainda na expressiv idade psicológica que calígrafo, cujo corpo faz mover-se o pincel. Eis o que nos diz o tra-
lheempresta uma c i.ê ncia suspeita, a grafologia. comprome tida com balho de Mas.soo: para que a escrirura seja manifestada em sua ver-
seus interesses tecnocrát icos (peritagens, testes), mas sim na mão dade (e não c m s ua instrnmentalidade). é necessário que ela seja
que apóia. Lraça e se dirige, isto é, no co,po que vibre, (que goza). ilegível: o semiógrafo (Masson),sabiamence, através de uma e labo-
Por essa razão (continua Masson), a cor não deve absolutameme ser .-ação soberana, produz o ilegível : separa a p~lsão da escritura do
compreendida corno um fundo contra o qual se viriam "destacar'' imagináriodacomunicação(da legibi lidade). E. também . o objetivo
certos caracteres, mas antes como o espaço toial da pulsão (é conhe- do Te xto. Mas, enquanco o texto escrito deve debater-se ainda, e
cida a natureza puJsiona l da cor: como prova, o escândalo provo- incessante mente contra uma substância aparem emente siguificaliva
cado peJa liberação dofauve) : no LrabaJJ10 semfográficodeMasson, (as l)alavras), a semiografia de Masson, vinda di retamente de uma
a ~or luta para tirar a escritura de seu meio mercanti l, comábil (é a prática in-significante (a pu1tura). realiza. no ato,,, utopia do Texto.
ongem que se atribui à nossa esctitura súio-ocidcntal). Se há a loo
de "comunicado" na escritura (e de maneira exe mp lar nos semi~ - Sémiographie d'André Masso,,·,
g ramas de Masson), não se trata de comas, de uma ''razão" (o que, caL11ogo de uma exposição de Masson. na
galeria facques Davidson. em Toun,;
e timologicamente, é a mesma coisa), mas sim de um desejo.
1973
Enfim, voltando-se (principalme nte) para o ideograma chinês.
Masson não se limita a constatar a s urpreendente beleza dessa
escritura; demonstra, ra mbém. a ruptu ra que o caractere ideo-
gráfico provoca no que se poderia chamar a tranqüi la consciência
escritura i do Ocidente: não estamos sobe rbarnence convencidos
de que nosso a lfabeto é o melhor? o mais raciona l, o mais eficaz?
Nossos mais ilustres sábios não afirmam , como fato "evidente"
. '
qu 7a inve nção do alfabeto consonâlllico (de tipo sírio), seguida
da mvenção do alfabeto vocálico (de tipo grego), constituíra.111 pro-
gressos irreversíveis. conquistas d a razão e da econo mia sobre o

140 14 1
LEITURAS: O GESTO

CYTWOMBLY
ou
NON MULTA SED MULTUM
para Yvo11.
para Renaud e para William
Quem é Cy Twombly (que, aqui, chamaremos TW)? O que faz?
Coifro dar um nome ao que faz? Palavras surgem espontaoeamente
("de-senho't, "grafismo", urabiscos", gauche, Hinfanti l"). E, aqu i,
nos encontramos diante de um problema de li ng uagem : essas
palavras (o que é bastante estranho), não soam falso nem bem; pois,
por um lado, a obra de TW coincide plenamente com sua aparência,
e é necessário atrever-se a afirmar que é uma obra banal: mas, por
outro lado - e aqui reside o enigma - , esta aparência não coin-
cide com essa linguagem , que deveria despe11ar senümemos de
simplicidade e inocência naqueles que a contemplam. "lnfa.otis",
1
os grafismos de TW? Sim, e por que não? Mas. não apenas infan-
"• tis: há algo de mais, ou de menos, ou algo paralelo. Dizem: esta
tela de TW é isto, é aquilo; mas, trata-se ames de algo de muito
diferente, a partir disto ou daquilo: em uma palavra, ambígua
porque literal e metafórica. é déplacée.
Percorrer a obra de TW com os olhos e com os lábios é, pois,
um permanente negar aquilo que parece ser. É uma obra que não
,, exige que se contradiga as palavras da cultura (a espontaneidade
do homem é sua cultura), simplesmente que se as desloque, que
se as destaq ue, q ue se lhes dê outro enfoque. TW força, não a
recusar, ,nas - o que é, talvez, mais subversivo- a traspassar o
estereótipo estético; enfim. obriga-nos a wn trabalho de linguagem
(e não é exatamente esse trabalho - nosso trabalbo - que dá seu
valor a uma obra?).

143
ESCRITURA
;
/
A obra de TW-outros já o d isseram - e escritura, tem uma ce11a
relação com a caligrafia. Não é, no e ntanto, uma relação deimiiação,
tampouco de inspiração: uma le ia de TW é apenas o que se poderia
chamar o campo alusivo da escritura (a a lusão, figura de retórica. II
- I -
consiste em dizer uma coisa com a intenção de fazer com que o
receptor compreenda outra coisa). TW faz referência à escritura ..
(como alude também , freqüentemente. à cu ltu ra, através das
paJavras: Virgil. Sesosrris). e, depois, passa a outra coisa, v,ü para
ourro lugar. Para onde? Precisamente para longe da caligrafia, isto
é, da escritura formada, desenhada, apoiada, modelada. do que se
chamava, no séculoXVíl l. mão de artista (lo bel/e main).
TW diz à s ua maneira que a essência da escri tura não é nem
urna forma nem um uso, mas apenas um gesto, o gesro que a produz,
deixando-a correr: um rabisco 1 quase LU11a manchal uma negligência.
Tentaremos raciocinar por comparação. Q ual é a essência de uma '
calça (se há alguma)? Não é. seguramente. esse objeto afetado e •
reliüneo que vemos pendurado nos cabides. nas grandes lojas de
... deparramentos; é mais bem essa forma de recido, que a mão de lembrança de uma cultura morta, cujo vestígio é, constituído por
a lgumas pa lavras. Chateaubriand: "Nas ilhas da Noruega estão
um ado lescente amonioa no chão, ao desp ir-se, cansado,
pregu içoso, indiferente. A essência de um objeto tem a lguma dese nterrando a lgumas u rnas gravadas com caracteres in-
relação com o q ue dele resta: não obrigatoriameme o que dele decifráveis. Aquemperte ncemessascinzas? Os ventos não sabem."
resta depo is de muito usado, mas o que é Jogt1do porque não se A escrirurade TW é a inda mais vã: é decifrável, não é interpretável;
q uer mais usm. Assim, também,sãoasescri1uras de TW. São restos nem por isso de ixa de ter a função de traduzir esse '·vago", q ue
.. de uma preguiça, conseqüentemente, de extrema elegância; como impediu TW, no exérciro, de ser um bom decifrado,· de códigos
se, da escrimra, ato e rótico desgastante, restasse o cansaço amo- mi litares(/ was a /iu/e roo vague for thm). Ora, o vago, parado-
roso: essa ro upa c aída. a tirada a um canw da folha. xalmente. exclui qua lquer idéia deeoigma; o vago não combina com
a morte; o vago está vivo.
*** ***
A letra. feiia por TW - o oposto de uma leu:ina - . é uma letra
traçada sem capricho. No en1an10, não é infanti l, pois a c rian,ça Da escritura, TW retém o gesto, não o produ to. Mesmo que
capricha, faz um esforço, morde a poma da língua; trabaJha com seja possível consumir esteticamente o resultado de seu trabalho
afinco para dominar o código dos aduhos. TW, ao contrário, dele (o que se chama a obra, a leia}, mesmo que as produções de TW
se afasta, s ua mão arrasta-se, é sem e nergia, parece entrnr em façam pane (e não podem furtar-se) de uma História e de uma
levitação; di r-se-ia que a palavra foi escrita com a poma dos dedos, Teoria da A,te, o que é mostrado por TW é um gesro. O que vem
não por asco ou tédio, mas por uma espécie de fantasia aberta à a ser um gesto? Algo como o comp lemento de u m ato. O ato é

144 145
transitivo, objetiva apenas suscitar um objeto, um reSLLItado;já o gesto não quer absolutamente dizer: comar irrecoabccível; nos textos de
é a soma indetemlinada e inesgotável das razões, das pulsões, das Mallarmé a língua francesa é reco1thecida, funciona - em certos
preguiças que envolvem o ato em urna atmosfera (no sentido as- trechos, é verdade. Também nos grafismos de TW a escritura é
tronômico do termo). Façamos a distinção entre a mensagem, que recoohecida; chega a apresentar-se como escri tura. As letras
quer produ7.ir uma informação, o signo, que quer produzir uma in- fom1adas, no emanto. já não fazem parle de nenhum código gráfico,
telecção, e o gesro, que produz todo o restante (o "suplemento") sem assi m como os grandes sintagmas de Mallaro1é já não fazem parte
querer obrigatori amente produzir alguma coisa. O artista (utilizare- de nenhum código retórico - nem do código da destruição.
mos ainda essa palavra um pouco kirsch) é, por estatuto, um opera-
dor de gestos; quer e, ao mesmo tempo, não quer produzir um efeito; *.,.
os efeitos que produz não são obrigacoriamente iocencionais; são
efeiws inversos. derramados, que lhe escaparam, que voltam a ele e Não há nada escri to em uma determi nada tela de TW, 1to en-
provocam, então, modi ficações. desvios, leveza do traço. No gesto canto essa superfície parece ser o receptáculo do escrito. Assim
é, assim, abolida a distinção entre a causa e o efeito, a motivação e o como a escritura chinesa nasceu, dizem. das ranh uras de uma
objetivo, a expressaoe a persuasão. O gesto do artista -ou o artista carapaça demasiadamente aquecida de tarcaruga, também o que
como gesto - não rompe a cadeia motivadora dos atos, aquilo que há de esc ritu ra na obra de TW nasce da própria super fíc ie.
o budista chama o karma (não se trata de um santo, de um a~ceta), Nenhwna superfície é virgem: wdo já nos chega áspero, descontámo,
mas a confunde, a retoma aténão maisencontrarseu sentido. No zen desigual, marcado por algum acidenle: o grão do papel, as manchas,
Uaponês), a esta rupt11ra brusca (por vezes muito lênue) de nossa a trama. o entrelaçado de rraços, os diagramas, as palavras. Ao cabo
lógica causal (simplifico)chamam: um sarori: por uma circunstância desta enumeração, a escritura perde sua violência; o que se impõe
.... ínfima, irrisória, aberrante, bizarra, o sujeito desperra para uma nega- não é tal ou cal escrirura, nem mesmo o ser da escrirura, e sim a idéia
tividade radical (que já não é uma negação). Considero os "grafis- de uma textura gráfica: "para escrever", diz a obra de TW. como,
mos" de TW pequenos satoris: partindo da escrirura (campo causal, em outras circunstâncias, se diz: ·'para levar", "para comer".
-. talvez: escrevemos, dizem, para comuokar), são como estilhaços
inúteis, que nem chegam a ser letras interpretadas. que vêm anular o
ser ativo da escritura, a malha de suas motivações, mesmo se est.é- CULTURA
ticas: a escritura já não habita nenhum espaço, é totalmente demais.
Não é neste limite extremo que começa verdadeiramente a "arte", o Ao longo da obra de TW, os germes da escritura vão da maior
"texto", todo esse "para nada" do homem, sua perversão, seu esforço? escassez até a mul tiplicação delirante: é como um prurido gráfico.
A escri1ura, por tendênc ia, coma-se, então, cultura. Quando a
** * escrilllrn pressiona, explode, comprime-se até as margens, leva à
idéia do Livro. O Livro que está virtualmente presente na obra de
TW foi comparado a Mallarmé. Mas, o que motivou essa apro- TW é o velho Livro. o Livro anotado: uma palavra acrescentada
ximação, ou seja, uma espécie de estetismo superior que os urúria, invade as margens, as entrelinhas: é a glosa.
não existe em TW nem em Mallarmé. Criticar a linguagem, como QufU1do TW escreve e repete uma única palavra - Virgil, isso
fez Mallarmé, implica uma intenção séria e perigosa - diferente já consútui um comentário sobre Virgíl io, pois o nome, escrito a
do objetivo da estética. Mallannéquis desconstruir a frase, veículo mão, nos traz toda uma idéia da cultura antiga, e atua como uma ci-
secular (para a França) da ideologia. Lentamente, arrastando-se. tação: de um lempo antigo, de estudos desusados, calmos, pre-
se assim podemos dizer, TW desconstrói a escritura. Desconstruir guiçosos. discretamente decadentes: colegas ingleses. versos lati-

146 147
nos, carteiras, escritos a lápis. Assim é a cultura para TW: um bem- manual, exceção feita à impressão, o trajeto da mão-e não a per-
estar, uma lembrança, uma ironia, uma postura, um gesto dandy. cepção visual de sua obra-é o ato fundamental pelo qual as letras
são definidas, estudadas, classificadas: esse ato dirigido é o que se
chama,em paleografia, od11c111s: a mãoconduz o traço (de cima para
"GAUCHE" baixo, da esquerda para adireita,girando, apoiando, interrompcodo
etc.); evidentemente, é na escrita ideológica que o ducws é mais
Atg·uém disse que TW parece desenhado, traçado com a mão importante: rigorosan1ente codificado, permite classificar os carac-
esquerda. A língua francesa é desu·a: a tudo o que se desloca sem teres de acordo com o número e a direção das pinceladas, cria a
firmeza, que dá voltas, que é desajeitado, inábil. chama gauche. e própria possibilidade do dicionário para uma escritura sem alfabeto.
fez desse gauche - noção ética, julgamento, condenação - um O ductuJ impera na obra de TW: não suas regras, mas seus jogos,
termo físico, de pura denotação, que substitui abusivamente a velha suas fantasias, suas indagações, suas preguiças. Em suma, é uma
palavra "sinistro" e designa tudo que está à esquerda do corpo: escrita de queapenasrestaria a inclinação, a cursividade; no grafismo
aqui, o subjetivo, ao nível da ffngua, cria o objetivo (como, também antigo, cursivo nasceu da necessidade (econômica) dee.5crever mais
em nossa língua francesa, uma metáfora sentimental dá seu nome rapidamente: erguer a pena custava caxo. Na obra de TW, éo exato
a uma substância inteiramente física: o apaixonado que se inflama, contrário: cai como chuva miúda, deita-se como capim ao vento,
o amado, paradoxalmente, empresta seu nome a toda matéria apaga-se por falta do que fazer. como se quisesse tornar visível o
condutora de fogo: o amadou). Esta llistória etimológica mostra- tempo, a vibração do tempo.
nos que, ao produzir uma escritura que parece gauche (canhota),
TW desarruma a ética do corpo: ética das mais arcaicas, pois que
assimila a "anomalia" a uma deficiência, e a deficiência a um eno. ***
O fato de serem seus grafismos, suas composições como que
"gaucbes", coloca TW na lista dos proscritos, dos marginais-onde Muitas composições lembram, e isso já foi dito, os scrawls das
1 .,;
vai encontrar, éevidente, as crianças, os doentes: o ga11che (canhoto) crianças. A criança é o infans, aquele que ainda não fala; ·mas, a
é uma espécie de cego: vê mal a direção e o alcance de seus gestos; criança que guia a mão de TW. esta já sabe falar, é wn menino de
,1'
é guiado apenas por sua mão, pelo desejo de sua mão, e não pela escola: papel quadriculado, lápis de cor, caderno de caligrafia, letras
aptidão instrumental dessa mão; o olho é a razão, a evidência, o repetidas. pequenos arabescos, como a fumaça que sai da loco-
empirismo, a verossimilhança, tudo o que serve para controlar, motiva nos desenhos infantis. No entanto, ama vez mais; o este-
coordenar, imitar, e, como ane exclusiva da visão, toda nossa pin- reótipo ("o que isso parece ser") inverte-se sutilmente. A produção
tura passada foi submetida a uma racionalidade repressiva. De uma (grMica) da criança nunca é ideal: une, sem intermediário, a maxca
certa maneira, TW libera a pintura da visão; pois o gauche (canhoto) objetiva do instrumento (um lápis, objeto comercial) e o id do
.•' desfaz o laço existente entre a mão eo olho: desenha no escuro (como pequeno ser que se iJJclina. apóia, insiste sobre a folha. Entre o ins-
fazia TW, no exército). trumento e a famasia, TW interpõe uma idéia: o lápis de cor trans-
forma-se em cor-lápis: a lembrança (do menino de escola) faz-se
*"'. signo total: do tempo, da cultura, da sociedade (tudo isto está mais
TW, contrariamente a tancos pintores atuais, mostra o gesto. perto de Proust do que de Mallarmé).
Não nos pede para ver, pensar, saborear o produto, e sim para rever.
identificar. e, se assim podemos dizer, "gozar" o mov imento que
re·s ulta do gesto. Ora, desde que a humanidade pratica a escrita

148 149
Agaucherie (falta dejeilo) rarnmenteé leve; na maioria das vezes. necessário que seja intensa, violema, rica, ou mesmo delicada, re,
gaucltir é apoiar; a verdadeira inabilidade insis1e, obsiina-se, quer finada, rara, ou ainda imóvel. pastosa, fluida etc.; enfim, não é ne-
ser amada (assim como a criança quer mostrar o que faz, exibe, cessário que haja afirmação, instalação da cor. Basta que apareça,
radiante, seu 1raba.lho à sua mãe). TW freqüentemente inve,te essa que esteja presente, que se inscreva como \lm traço vago no caoro
ga11cherie astuta a que já aludi: o 1.raço não é apoiado. ao contrário. dos olhos (metáfora que, em As Mil e Uma Noites, designa a ex-
esfuma-se, não dissimulando a marca sutil deixada pelo borracha: a celência de wna narração), basta que instaure a ruptura de alguma
mão traçou algo que seria uma JJor e, em seguida. pôs-se a pl'eguiçar coisa: que passe diante dos olhos, como uma aparição, pois a cor
sobre as linhas tl'açadas; a flor foi escriLa e, depois, desescrita; os dois é como uma pálpebra que se fecha, um leve desmaio. TW não pinta
movLrne.ntos, porém, continuam vagamente superpostos; é um pa- a cor: no máximo, colore: mas é um colorido raro, interrompido,
limpsesto perverso: Lrês 1extos (se acrescearamos essa espécie de como se experimentasse a qualidade de um lápis. Esta cor escassa
assinatura, de legenda ou de ciiação: Sesostris) estão diante de nós, faz-nos ler, nãp um efeito (menos ainda uma semelhança), mas
um 1endendo a apagar o outro, mas com o único objetivo de fazer um gesio, o prazer de um gesto: é ver brotar da ponta dos dedos,
com que possamos ler esse apagai': verdadeira filosofia do tempo. dos olhos, algo que é ao mesmo tempo esperado (sei que o lápis
Como sempre. é necessário que a vida (a arte, o ges1.o, o trabalho) com que Lraballto é azul) e inesperado (não só não sei que tom de
testemunbe sem dese.~pero seu inelutável desaparecimento: ao en- azul vai produzir, mas , ainda que o soubesse, ficaria surpreso. pois
trelaçal'-se (como esses a encadeados, resultado de um único e mesmo a cor, à semelhança do acor,1ecime1110, renova-se sem cessar: é pre-
gesto da mão. repe1ido, traduzido), ao mostrar seu nascimento (o que cisamente o gesto que faz a cor, como faz, também, o prazer).
foi, outrora. o sencido do esboço), as fom1as (pelo menos as de TW)
já não canram as maravilhas da criação. oem as mo mas esterilidades
da repetição; d ir-se-ia que lhes cabe unir, em um únicoestado. aquilo
***
'. que aparece e aquilo que desaparece; separara exaltação da vida do
medo da morte é banal; a utopia, cu,ia linguagem pode ser a arte, mas Além disso. como podenlos imaginar, a cor já está no papel de
a que resiste roda neurose humana, é produzir um único afeto: nem TW. pois que este já eslá maculado, alterado, tomado por uma
Eros, nem Tanato, mas Vida-Morte, com um único gesto, um único luminosidade que não se pode classificar. Apenas o papel do
,. escritor é branco, "limpo", e esse papel imaculado não é o menor
pensamento. Aarcedc TW aproxima-se mais dessa utopia. para mim,
pelo menos, do que a arte violenta ou a arte fria; essa arte de TW. de seus problemas (a página em branco, porvezes, provoca pânico:
impossível de se classificar. porque une. com um traço inimiiável. como "maculá-la"?); o infortúnio do escl'itor, sua difel'ença (em
a inscrição e o apagar. a infância e a cultura, a deriva e a invenção. relação ao pin1.or, e sobretudo ao pintor de escritura como TW),
é que o grafite lhe é proibido: TW é, em suma, um escrilor que
teria dil'eito ao grafite, de pleno direito e abercamenie. Como
sabemos, o que faz o grafite não é, na verdade. nem a inscrição
SUPORTE? nem sua mensagem. é a parede. o fundo, a mesa; é porque o fundo
já tem existência total. enquanto objeto que já viveu, que a escri-
TW parece ser um "anticolorista". Mas , o que é a cor? Vm tura, sobre esse fundo, toma-se suplemento enigmáLico: o que
prazer. Este prazer existe em TW. Para compl'eendê-lo, é ne- perturba í1 ordem é o que esrá demais, em demasia, fora de seu
cessário lembrar-se de que a cor-é wmbém uma idéia (uma idéia lugar; ou ainda: é porque o fundo não é próprio.* é impróprio ao
sen~ual): para que haja cor (no sentido de prazer). não é necessário
• Em Francês propre quer dizer: próprio, lin'IJ)O. (N. do T.)
que a cor seja submetida a modos enfáticos de existência; não é

150 15 1
pensamento (ao contrário da página branca do filósofo), e logo in-
teiramente próprio a tudo o que resta (a arte, a preguiça, a pulsão, a
sensual idade, a ironia, o gosto: tudo o que pode ser percebido pelo
intelecto como catástrofes estéticas}.

***
Como em uma operação c irúrg ica extremamente delicada, tudo
acontece (na obra de TW) nesse momento inlinitesimal em que
a cera do lápis LOca o grão do papel. A cera, substância mac ia, adere
a pequenas asperezas do ca mpo gráfico, e o traço leve de TW é
como que feito pelo rastrn desse vôo leve de abelhas. Singular i1
aderência, que contradiz a própria idéia de aderência: é como uma 1 .,/
carícia cujo valor estaria apenas na le mbrança que deixou: mas,
esse passado do traço pode ser igualmente definido como seu futu-
ro: o lápis, de ponta fina ou grossa (não se sabe o q ue vai produ-
zir), vai tocar o papel: tecnicamente. a obra de TW parece conju-
gar-se no passado e no fururo. nunca verdadeiramente no presente;
'
\,·

dir-se-ia que há, apenas, a lembrança ou o anúncio do traço: sobre


o papel - e devido ao papel - o tempo está e m perpétua inceneza.

***
,, Tomemos um desenho de arquiteto ou engenheiro, a épora de
um aparelho ou de algum projeto imobiliário; o que vemos não é
1 absolutamente a materialidade do grafismo: e sim o sem ido . total-
mente independentedodesempe nhodo técnico; e m suma, não vemos
·• nada, salvo uma espécie de inteligibi lidade. Vamos, agora, descer
um grau na matéria gráfica: diante de uma escritura traçada a mão, o \
..
que consumimos é, mais uma vez, a inte ligibilidade dos signos,
' porém elementos opacos, insig nificantes - ou antes, de uma outra
significância - retêm nosso olhar (e. já, nosso desejo): o traçado

!
, •.J-
nervoso das letras, o entre laçado das hastes, todos esses acidentes
desnecessários ao funcionamento do código g ráfico e q ue, con-
seqüemememe, já constituem s up lementos. Afastemo-nos ainda
mais do sentido: um desenho clássico não oferece à le itura nenhum
signo constitu ído; já não passa nenhuma mensagem funcional; vou.
então. investir meu desejo no desempenho da ana logia. na perfeição

152
da feitura, na sedução do estilo, enfim. no estado final do produto: é fata lidade: meu corpo nunca será o teu. Desta fatalidade- em que
realmente um objeto que é oferecido à minha comemplação. Nessa se resume uma certa infelicidade humana - só Luna possibi lidade
cadeia, que vai do esquema ao desenho, e ao longo da qual o sentido de escape: a sedução: que meu corpo seduz.a, transporte ou per-
pouco a pouco se evapora, para dar Iugar a um "'lucro" cada vez mais 1urbe outro corpo.
inútil, TW ocupa o termo extremo: signos, por vezes, mas. em-
palidecidos,gauches(como já dissemos). como se fosse indiferente ***
a TW que os decifrássemos, porém sobretudo. se assim podemos
dizer, o último estado da pintura, seu chão: o papel ("TW confessa Ern nossa sociedade. o menor trnço gráfico, desde que vindo desse
ter mais o senr-ido do papel do que da pintUia"). Produz-se, no en- corpo inimitável,dessecorpoceno, vale milhões. Oqucéconsumido
tanto, uma estranha inversão: o desenho pode reaparecer, absolvido (pois que se 1ra1a de uma sociedade de consumo) é um corpo. uma
de toda função técnica, expressiva ou estética, porque o sentido foi ·'individualidade" (is10 é: que tampouco pode ser dividida). Em
esgotado, porque o papel tomou-se o que somos obrigados a chamar muras palavras, é o corpo do artista que está preso à sua obra: uma
objero do desejo; em certas composições de TW, o desenho do ar- 1roca em que não se pode deixar de reconhecer o contrato de prosti-
quiteto, do ebanista, ou do medidor volta, como se livremente reto- tuição. Será este contrato característic.o da sociedade capilalista?
mássemos a origem da cadeia. purificada. doravante liberada das ra- Poder-se-á dizer que esse corpo define especificamente os usos
zões que. há séculos , pílreciam justifica,· a reprodução gráfica de um comerciais-de nossos meios artísticos (freqüentemente chocantes
objeto reconhecível. para muitos)? Na China Popular vi obras de pintores rurais cujo
trabalho era, em princípio, livre de qualquer troca: ora, ocorria, então,
,,. CO RPO
uma curiosa troca de lugares: o pintor mais aplaudido hav ia pro-
duzido um desenho correto e banal (rerrato de um funcionário lendo):
::;:,,.:'
no traço gráfico, nenhum corpo. nenhuma paixão, nenhuma preguiça,
O traço - rodo traço inscrito na folha - desmente o corpo nada a não ser a intenção de uma operação analógica (fazer "pare-
importante, o corpo de carne, o corpo de humores; o traço não cido", expressivo); em contrapartida, havia na exposição um sern-
i
nos leva à pele nem às mucosas; o que diz o traço é o corpo que número de outras obras, de estilo dito 11aif, nas quais. a despeito do
ammha, que roça (podemos até dizer: que faz cócegas); pelo traço, terna realista. o corpo deliranredo artista amador insistia, explodia,
' ,-; a arte desloca-se; seu centro já não é o objeto do desejo (o belo gozava (pelo arredondado voluptuoso dos traços, o desenfreado da
•• corpo imobilizado no mármore), mas o sujeito desse desejo: o 1raço. cor. a repetição embriagadora dos motivos) . Dizendo ele outra
por leve ou incerto que seja. remete sempre a uma força, a uma maneira: o corpo vai sempre mais além da rroca em que está en-
direção: é um energo11, um trabalho, que oferece à leitura o que volvido: nenhum comércio, nenhuma vir1ude polí1ica podem esgo-
ficou de sua pulsão, de seu desgaste. O trabalho é uma ação visível. tar o corpo: há sempre um ponto extremo em que o corpo entrega-se
por11ada.
' ,,
,, ***
*"*
O traço de TW é ini mi1ável (tentem imitá-lo: o que farão não
será de vocês nem dele; será nada). Ora, o que é, na verdade. i,ü~ Estu manhã, prática fecunda - ou, pelo menos, agradável:
mitável é o corpo; nenhum discurso. verbal ou plástico - exceção folheio lentamente um álbum em que estão reproduzidas obras
fei\a ao discurso rude da ciência anatômica - , pode reduzir um de TW. e. muitas vezes, imerrornpo a contemplação para ten1ar,
corpo a um outro corpo. A obra de TW oferece à leitura a seguinte rapidamente, fazer. eu mesmo, alguns rabiscos: não im iro dire-

154 155
tamente TW (de que serviria?), im ito o 1racing que deduzo, senão através da oposição e1iu-e o game Uogo estritamente reguJamemado)
inconscieotemenre, pelo menos pensativamente, de minha leitura; e o play Uogo que se desenvolve livremente). TW. é evidente, está
não copio o produto. mas a produção. Tento encontrar o mesmo do lado do play, não do game. Mas isto não é 1udo; em um segundo
passo da mão. tempo de seu raciocínio, Winnicort passa do play, aioda muito rígido,
ao playi11g: o real da criança- e do artista-é o processo de ma-
nipulação, não o objeto produzido (Winnicott c hega a substituir
*** sis tema tic amen te o concei to pelas formas verba is q ue lhe
Poisque(pelo menos para meu corpo),assim éaobradeTW: uma corresponde m:far,rasying, dreaming, living, holding ele.). Tudo isto
produção, delicadamente prisioneira, encantada nesse produ10 aplica-se muito bem a TW: sua obra não depende de um conceito
estético a que c hamamos rela, desenho, cuja coleção (álbum .expo- (trace), mas de uma atividade (rracing), dizendo melhor: de um
sição) é apenas uma aniologia de vestígios. Essa obra obriga o leitor campo (a folha), enquanto aí se desenrola uma atividade. Para
de TW (digo: leitor, embora nada haja a decifrar) a uma crítica Winnicon, o jogo é assimilado pelo espaço que ocupa; para TW, o
fi losófica do tempo: deve contemplar retrospectivamcote um mo- ''desenho" desaparece e cede lugar ao espaço que habita, mobiliza,
vimento. o antigo devenirda mão; mas, aprutirdesse momento, revo- trabalha, sulca - ou d ilui.
lução salutar, o produto (todo produto?) parece como que um engo-
do: toda arte, enquanto annazenada, consignada, publicada, é de-
nunciada como sendo imaginária: o real, a que nos leva, sem ces- MORALIDADE
sar, a obra de TW. é a produção: a cada traço, TW faz explodir o
Museu. O artista não te m uma moral, mas uma mf)ra/idade. Há. em sua
'
'
- obra, algumas perguntas: o que represer,ram os muros para mim?
Como devo desejá-los? Como sarisfazer seus desejos? Como viver
*** enrre eles? Ao enunciar sempre uma "visão sutil do mundo'' (as-
Há uma forma do traçado que poderíamos chamar sublime. sim diz Tao), o artista compõe o que é invocado (ou recusado) por
sui1 cultura, e o que clama seu próprio corpo: tudo aquilo que é
' porque desJ)rovida de qualquer rabisco, de qualquer lesão: o ins-
trwnento que traça (pincel. lápis), que desce sobre a folha, nela evitado, que é evocado, que é repetido, ou ainda: proibido/desejado:
aterrissa - o u alunissa: há simplesmente um p ousar: à rareficação eis o paradigma que, como duas pernas, faz com que o ariista
quase oricnral da supe rfície um pouco manchada (que é o objeto). caminhe enquamo produz.
responde a extenuação do mov imento que nada ca pta, apenas
deposita. ***
Como produzir um traço que não seja tolo? Não basta ondulá-
*** lo um pouco para torná-lo vivo: é necessári o - já o dissemos -
.- . Se a distinção e ntre prod1110 e produção, na qual. a meu ver, gauchir o traço: há sempre um pouco de gaucherie na inteligência.
repousa toda a obra de TW. pode parecer um pouco sofisticada. Observemos essas duas linhas paralelas traçadas por TW: acabam
pensemos no esclarecimento decisivo que certas Qposições ter- por unir-se, como se não tivessem podido "agüe ntar" indefinida-
minológicas trouxeram às atividades psíquicas. à primeira vista, mente a separação o bstinada que ma1ema1icamente as define. O
confusas: o psicanalista inglês D. W. Winnicott mostrou o quanto que parece intervir no traço de TW e conduzi-lo ao limite dessa
e ra falso reduzir o jogo da criança a uma pura atividade lúdica. misteriosa disgrafia que faz sua arte, é uma cet1a preguiça: é pre-

156 157
c isamenceo que permite o "dcsenho",mas não a '·pintura" (toda cor que são respeitáveis ... pois que a mais bi1..arra de todas. bem anal isada,
abandonada. desprezada, é violenta), nem a escritura (Ioda palavra leva sempre a um princípio de delicadeza"). Enquan10 princípio, a
nasce in1eira, voluntária. annada pela culmra). Essa "preguiça" de delicadeza não é nem moral, nem cultural; é uma pulsão (porque a
TW é, no entanto, tática: permite-lhe evitar a banalidade dos cód i- pulsão seria, de direito, violenta, grosseirn?), uma certa exigência
gos gráficos, sem se pres1ar ao confomlis mo das destruições: é. em do wóprio corpo.
rodos os sentidos da palavra, wto.
***
***
24 short pieces: há, aqui, a lgo de Webern e do haicai japonês.
O traballlo de TW, coisa rara, não tem nenhuma agressividade Trata-se. nos três casos, de uma arte paradoxal, q ue seria provo-
(como já fo i dilo por a lguém . é o que o diferencia de Paul Klee). can1e (se não fosse delicada), porque a conc isão frnstra a profun-
Creio conhecer a razão desse efeito 1ão contrário a toda arte em didade. De maneira geral, tudo o que é breve parece resum ido.
que o corpo está engajado: TW parece proceder à maneira de certos A escassez gera a densidade, e a densidade gera o e nigma. Encon-
pintores ch.ineses. que devem lograr o traço, a fonna, a figura, com tramos na o bra de TW os dois desv ios: há um certo silêncio. ou,
o primeiro gesto, sem possibilidade de con-ig ir-se, devido à fragi- para ser mais exato, um 1ênue crepitar da folha, mas esse fundo é,
lidade do pape l. da seda: é pintar a/la prima. També m TW parece em si mesmo, uma força positiva; se invertemos a re lação habitual
1raçar seus grafismos a/la pri11UJ: mas, enquanro o gesto chinês traz da feiiura clássica, poderíamos di1..e r que o traço. a hachura. a forma,
em si um grande perigo. o perigo de "pôr a perder" a figura (por enfim, o acontecimento gráfico, é o que pemiite que a folha exista.

...-
falta ele analogia). o traçado de TW é absoluLamen1e seguro: é sem signifique, goze. ("O ser, diz Tao, oferece possibilidades, e é pelo
..... ,,
.,
,, objetivo. sem modelo, sem instfmcia; é sem te/os, e, por conseguinte, não-ser que seas utiliza.'') O espaço traiadojá não é mais enumerável,
sem riscos: por que "con-igir-se", se não há mestre? Daí se con- sem deixar, no entanto, de ser plura l: não é de acordo com esta
c lLLi que toda agressividade é, ele uma certa forma, inútil. opos ição quase insus tentáve l, pois que exclui simultaneamente o
número e a unidade, a dispersão e o cemro, que se deve interpretar a
*** dedicatória de Wcbcm para Alban Berg: "Non mulw, sed m11/tam"?
.,,
O valor que TW deposita em sua obra está no que Sacie chamava ***
; o princípio do delicadeza ("Respeiio os goscos. as fantasias ... acho
Há pinturas nervosas. possessivas, dogmáticas; impõem o
produto. emprestam-lhe a tirania de um conceito ou da violência
de uma cobiça. A arre ele TW-enisto está s ua moralidade - bem
como sua extrema singularidade histórica- não quer captar nada;
equilibra-se, flutua, oscila e ntre o desejo - que, sutilmente, anima
a mão-e a delicadeza, que a Iibera; se fosse necessário referiF essa
obra a a lgo, esse a lgo teria que vi.rde muito longe. de fora do domínio
da pintura, de fora do Ociden1e, de fora cios séculos his tóricos, quase
no limite do sentido, e dizer com Tao Tó King:

158 159
Produz sem apropriar-se, LEITURAS: A ARTE
Trabalha sem nada esperar.
A obra tem1inada, esquece-a,
e porque a esquece,
a obra perm,mecerá.
E.·-arMdo de Cy Twomb/y: caralogM!
raisonné des ccuvres sw· papler. por
Yvon Lambert.
© 1979, Jvfulthipl3 cd.. rvti1ão. SABEDORIA DA ARTE

Quaisquer que sejam os avaiares da pintura, quaisquerq ue sejam


o suporte, a moldura, fazemos, sempre, a mesma pergunta: o que se
passa aqui? Sobre tela, papel ou parede, trata-se de uma cena em
que algo acontece (e. se em algumas formas de arte, o artista, deli-
beradamente, quer que nada aconteça, é, também, uma aventura}.
Há que se abordar o quadro (mamemos esse nome cômodo. embora
, antigo} como uma espécie de teatro 11 italiana: abre-se a cortina,
esperamos, recebemos. compreendemos; e, tenn inada a cena, de-
-- saparecido o quadro, recordamos: e já não somos os mesmos que
ames: como no teatro antigo, fomos iniciados. Eu gostaria de inter-
rogarTwombly sobre a relação com o Acontecimento.
O que se passa na cena proposta por Twombly (tela ou papel}
é algo que participa de vários tipos de acontecimento, que os gregos
dis1inguiam mu ito bem em seu vocabulário: há um fato (pragma},
um acaso (ryché}, um fim (telos}, uma surpresa (apodes1011) e uma
ação (drama).

Há, ames de mais nada ... lápis, óleo, papel. tela. O instmmento
da pintura não é um instrumento. É um fato. Twombly impõe o
marériaux. não como aqui lo que va i servir para algo, mas como
matéria absoluta, manifestada em sua glória (o vocabu lário te-
ológico diz que a glória de Deus é a mani festação de seu Ser}. O
matériaux é maréria-prima, como para os Alquimistas. Maréria-

160 161
prima é o que existe ameriom1enteà divisão do seniido: monumen- modus li): não se trata de tachismo: Twombly dirige a mancha, a
tal paradoxo, pois, na ordem humana, nada chega ao homem sem conduz. como se usasse os dedos; o corpo está, pois, contíguo,
estar acompanhado de um sentido, sentido dado por outros homens, próximo à tela, não por projeção, mas, se assim podemos d izer,
e assim pordiante, voltando ao infinito. O poderdemiw·gicodo pintor por um conta10. um leve tocar; não se tTata de a nu lação (por
está no fato de que fazexistiromatériauxco mo matéria; mesmo que e,,emplo, Bay ofNaples); seria, talvez, melhor dizer mácula e não
a tela surjado sentido, o lápis e a cor continuam sendo "coisas". s ubs- "mancha"; pois nem toda mancha é mácula: diz-nos a etimologia
tâncias teimosas, c uja obstinação em ·'estar aqui", nada (nenhum que mácula é a mancha na pele, a malha de uma rede, o que recor-
sentido posterior) pode desfazer. daria o malhado de certos animais; as maculae de Twombly são. na
A arte de Twombly consiste e m mostrar as coisas: não aquelas verdade. da ordem da rede; 3) a s1ijidade: é como chamo os rastros,
que representa (este é outro problema), mas aquelas que manipula: de cor ou de lápis, e por vezes de matéria indefinível, com que
essa ponta de lápis, esse papel quad riculado, esse tom de rosa, essa Twombly parecerccobifrcertos traços. como se os quisesse apagar,
mancha escura. O segredodessaarteé, de maneira geral, nãodeexibir sem, na verdade, querer, já que esses traços permanecem visíveis
a substância (carvão, óleo, tinta). mas la laisser trafner. Poder-se-ia sob a camada que os recobre; é uma d ialética sutil: o artista finge
pensar que, para d izer o lápis, é necessário calcar, apoiar, tomar seu haver "posro a perder" um trecho da tela e o quer apagar; mas esse
traço negro, intenso, espesso. Twombly pensa de maneira oposta: é apagar não lhe sa i bem; e esse apagar sobre apagar, $upe rpostos.
controlando a pressão da matéria, deixando-a pousar-se como que produzem uma espécie de pal impsesto: e mprestam à tela a profun-
indolentemente, de maneira que seu grão se disperse um pouco, que didade ele um céu onde nuvens leves passam à frente uma das outras,
a matéria vai revelar sua essência. afirmar a cert.eza de seu nome: é sem se escondere m (View, School ofA1hens).
lápis. Se quiséssemos filosofar um pouco. d iríamos q ue o ser das Pode-se observar que esses gestos, c uja finalidade é instalar a

.... coisas está não em seu peso, mas em sua leveza; o que equivaleria. matéria como um fato, têm, todos, uma relação com a s ujidade.
..... talvez, a irdeencontro à propostadeN ietzsche: "O que é bom é leve'': Paradoxo: o fato, cm s ua pureza, define-se melhor por não ser
limpo. Tomemos um objeto usual: não é seu estado de novo, virgem,
nada, na verdade, é menos wagneriano do que Twombly.
Trata-se, pois, de fazer aparecer. sempre, em todas as circuns- que melhor 1raduz sua essência; é mais bem seu estado de resíduo,
tâncias (em qualquer obra que seja). a matéria como um fato um pouco desgastado, um pouco abandonado: é no resíduo que
(prasma). Para tanto, Twombly dispõe, senão de proced imentos se lê a verdade das coisas. É no seu rasa·o que está a verdade do
1
1 • (e, assim mesmo, os teria, já que em arte o procedimento é nobre), verme lho: é na tênue marca de um traço que está a verdade do
~

pelo menos de hábitos. Não nos vamos perguntar se outros pin· lápis. As idéias (no se111 ido platônjco) não são figuras metálicas e
tores tiveram esses hábitos: é. em s uma, a combinação, a repar- bri lhantes, rígidas como conceitos, mas sim macuJaturas um pouco
tição, a dosagem desse hábitos que compõem a arte original de "tre midas'', tênues sobre fundo vago.
Twombly. Também as palavras pertencem a todos: mas, a frase. É o que eu tinha a dizer sobre o fato pictórico (via di porre).
esta pertence ao escritor: e as "frases" de Twombly são inimitáveis. Mas. há mais. na obra de Twombly: há os fatos escritos, os Nomes.
Também os nomes são fatos: estão em pé sobre o palco, sem
... ~·
Eis os gestos através dos quais T'wombly e nuncia (poderíamos
dizer: soletra?) a matéria do traço: 1) o rabisco: Twombly rabisca <:;enário, sem acessórios: Virgil. 0,71heus. Mas sua glória nomina-
a tela com uma confusão de linhas (Free Wheeler, Criticism, Olym- !•sta (~penas o Nome) é, também ela, impura: o grafismo é um pouco
pia); o gesto é um vaivém da mão, por vezes inienso, como se o tnfant,I, irregular: gauche; nada tem a ver com a tipografia da arte
artista "t.ripud iasse" o traçado, como o operá1fo que, entediado conceptual; a mão que traça dá a esses nomes todo o ''sem-jeito"
~m uma reunião sindical, rabiscasse. com traços aparentememe , de alguém que tenta escrever: e, 1alvez aqui, apareça mais nítida
insignificantes, o papel q ue está à sua frente: 2) a mancha (Com· ,1 verdade do Nome: a criança não aprende copiando o nome.

162 L63
diligentemente? Ao escrever Virgil sobre a tela, é como se Twombly são tenninal: ao jogar, sei o q ue faço, mas não sei o que produzo. O
res umisse cm sua mão toda a e nonnidade desse mundo virgiJjano, "jogado" de Twombl y é elegante, flexível, "longo", como se diz em
tudo o que esse nome simboliza. Por essa razão, não se deve bus- cenos jogos e m que se deve l.mçar uma bola. Em seguida - isto
car, nos títulos de T wombly. nenhuma indução de analogia. A tela sendo conseqüência daquilo- uma aparência ded ispersão: em uma
chama-se The ltalions, no entanto, não se deve procurar por itali- te la (ou papel) de Twombly, muito espaço separa os elementos uns
anos, a não ser no nome. Twombl y sabe que o Nome tem um poder dos outros: e, aqui, têm uma afinidade com a pintura oriental. de que,
de evocação absoluto: escrever Os fral ionos é ve·r todos os itali- aliás, se aproxima Twombly, ao recorrer a essa mescla freqüente de
anos. Os Nomes são como essas jarras das Mil e Umt1 Noires, em escrita e de pintura. Mesmo quando os acideoies - os acontecimen-
um dos contos, não me lembro qual: os gênios moram lá demro; tos- são fortemente marcados (BayoJNaples), as telas de Twombly
abrindo ou quebrando a jarra, o gênio sai, sobe, transforma-se em continuam fortemente arejadas: e esta aeração não é apenas um valo!'
fumaça: quebrando o título, toda a tela se esvai. plástico; é como uma e nel'gia sutil que pennite respirar melhor: o
A mesma pureza é encontrada na dedicatória. Algumas dedi- efeito que a tela exerce sobre mim é o que o filósofo Bachelard
catóriasdeTwombly: To Volery, To Tatlin. Ainda uma vez,há,aqui, chamava uma imaginação "ascensional": flutuo no céu, respiro no
apenas o ato gráfico de dedicar. Pois "ded icar" é um dos verbos ar (School of Fo11rainebleau). Ligado a esses dois movimentos (o
que os lingüistas, depois de Austin, c hamaram "pe,formativos", "jogar" e a dispersão) e presente em todas as telas deTwombly, há
porque seu sentido con funde-se com o próprio ato de enunciá- um estado: o Raro. Rarus quer dizer em lati m: q ue apresenta inter-
los: "dedico" tem apenas o sentido do gesto afeti,•o com que ofe- valos, imerstícios, que é espaçado, poroso, esparso; é exatamente o
reço o que produzi (minha obra) a alguém que amo 011 admiro. É espaço de Twombly (ver sobretudo Unlitled, 1959).
exatamente o que faz Twombly: receptáculo apenas da inscrição da Como podem essas duas idéias, de espaço vazio e acaso (ryché),
..:""=..
'•,.
· ,1
dedicatória, a tela,de uma certa maneira, se anula: só é dado o ato de
dar - e algo escrito para d izê-lo . São te las-limites, não porque não
relacionar-se? Valéry (a q uem um desenh o de Twombly está
dedicado) ajuda-nos a compreender. Durante uma aula no Collêge
comportem nenhuma pintura (ouLTOS pintores tentaram esse limite), de France (5 de maio de 1944), Va!éry analisa os dois casos e m
..
l
'~: mas porque nelas a própria idéia de obra é suprimida- mas não a que se r>ode e nconrrar o criador de uma obra: no primeiro caso, a
obra responde a um plano determinado; no segW1do, o artista preen-
' relação do pintor com aquilo que ama.
che um re rângulo imaginário. Twombly preenche seu retângulo
segundo o princípio do Raro, isto é, do espaçamento. Esta noção é
2 capital na estética japonesa, que desconhece as categorias kantianas
de espaço e tempo, mas conhece a categoria mais sutil de intervalo
Tyché, em grego, é o acontecimento que sobrevém por acaso. (em japonês: Ma). O Mo japonês é, no fundo, o Rarus latino, e é a
As telas de Twombly parecem te r sempre uma certa força do acaso, arte de Twombly. O Retângu lo Raro remete, assim. a duas civili -
uma Boa Sorte. Pouco importa que a obra seja, na verdade, o zações: por um lado, ao "vazio" das composições orientais. simples-
..,., resultado de um cálculo minucioso. O que conta é o efeito de acaso, mente acentuado, aqui e ali, por uma caligrafia; e por outro lado. a
um espaço medi te rrfuleo, que é o espaço de Twombl y; curiosamente,
ou, de uma maneira mais sutil (pois a arte de Twombly não é
aleatória): de inspiração, essa força criadora q ue é a felicidade do VaJéry (mais uma vez) traduziu perfeitamemeesseespaço raro, não
acaso. Dois movimentos e um estado traduzem esse efeito. ao falar do céu ou do mar (como se suporia inicialmente), mas das
Os mov imentos são: inicialmente, a impressão de "jogar": o velhas casas meridionais: "Esses grandes quartos do Midi, bons para
!Tlaterial parece haver sido jogado sobre a tela e no ato de "jogar'', uma meditação-esses móveis grandes e perdidos. O grande vazio
inscrevem-se. ao mesmo tempo, uma decisão inic ia l e uma indeci- encerrado-onde o tempo não importa . O espírito quer habitá-los

164 165
todos." No fundo, as telas de Twombly são grandes quartos medi- The /ta/ians? Saara? Onde estão os italianos? Onde está o Saara?
te tTâneos, quentes e luminosos, e m que os elementos se perdem, e Procuramos, e, e vidente mente, nada encontramos. Ou, pelo menos
que o espírito quer habitar. -eai começa a arte de Twombly-. o que encontramos-a própria
tela, o Acontecimento em seu espleodoreseu enigma- éambfguo:
nada "representa" os italianos, o Saara, nenhuma figura aoalógica
3 desses referentes, e, no entanto, vagamente adivinhamos que nada,
nessas telas . está em conu·adição com uma certa idéia do Saara,
Mars tmd1he Ar1is1 é uma composição aparentemente simbólica: dos ital ianos. Em outras palavras, o espectador tem o pressen-
na parte superior, Marte, isto é, uma batalha de linhas e de púrpu- timento de uma outra lógica (seu olhar põe-se a traba lhar) : em-
ras, na parte inferior, o Artista, isto é, uma ílor e seu nome. A tela bora he rmética, a tela tem um fim; o que nela se passa está em
func iona como um pictograma, o nde se combinam os e le me ntos conformidade com um 1elos, uma certa finalidade.
figurativos e os elementos g ráficos. É um sistema muito claro. e, Essa fina.lidade. não a encontramos inicialmente. Em um pri-
e mbora excepcional na obra de Twombly, sua pl'ópria clareza meiro te mpo, o título como que bloqueia o acesso à tela, pois, por
re mete-nos ao problema conjunto da figuração e da sign ificação. sua precisão, sua inteligibi lidade, seu classicismo (nada de estranho.
Apesar de que a abstração (nome mal escolhido, como sabe- nada de s urrealista) leva-nos a um cam inho analógico que logo
mos) esteja em ação há muito tempo na história da pintura (desde se revela bJoqueado. Os tículos de Twombly têm uma função li-
Cézanne, dizem). todo artista novo debate-se com ela: em arte. biríntica: depoi s de havermos percorrido a idéia que s ugerem,
os problemas de linguagem nunca são realmente resolv idos : a somos obrigados a voltar atrás para tomar outro caminho. Algo
linguagem volta sempre sobre si mesma. Não constitui, pois. uma permanece, todavia. de seu fantasma, que impregna a tela. Cons-
.. ,. ingenuidade (apesar das int imidações' da cu lmra, e sobretudo da tituem o momento negativo de toda iniciação. Essa arte de fómmla
··:.. c ultura especial izada) perguntar-se, diante de uma tela, o que ela rara, simultaneamente muito intelectual e muito sensível, obriga,
~",I
~ ·J repreJema. O se111ido engana o homem: mesmo quando quer criar sem cessar. à prova da negatividade, à maneira desses místicos que
·~
1 .~

1
o não-sentido o u o sem-sentido, o homem acaba por produzir o
próprio sentido do não-sent ido ou do sem-sentido. É, assim,
chamamos "apofáticos" (negativos), pois ex igem que se percorra
tudo o que oão é, para pe rceber, nesse vazio. uma luz que vacila,
'l procedente voltar sempre ao problema do sentido. único problema mas brilha, porque essa luz não mefl/e.
que constitui um obstác\llo à uni versalização da pintura. Se tan- O que produzem as telas de Twombly (seu 1elos) é muito simples:
tos homens (devido às d iferenças de cultura) têm a impressão de é um "efeito". palavra que deve. aqui, ser e ntendida no sentido
"nada e ntender" diante de uma tela, é porque nela procuram um muito técnico que te ve nas escolas literárias francesas do final do
sentido, e a tela (pensam eles) não lhes oferece nenhum. século XlX, do Pamaso ao S im bolismo. O "efeito" é uma impres-
Twombly aborda francamente o problema: a maior parte des uas são geral sugerida pelo poema - impressão e minentemente sen-
telas tem um título. E, porq ue têm um tírulo, essas telas colocam sual e freqüe ntemente visual. T udo isto é banal. Mas, o carac-
o hoi:1em d iante do cha mariz de u ma sign ificação. Na pi ntura terístico do efeito é que sua generalidade não pode ser verdadei-
clássica a legenda de um quadro (essa linha de pa lavras que os ramente decomposta: não pode ser reduzido à soma de detalhes
visitantes de um museu Jêem antes de contemplar o quadro) dizia localizáveis. Théophile Gautier escreveu um poema, Symphonie
claramente o que a te la re presentava: a a nalog ia da pintura era e11 blanc ma,ieur. c ujos versos conco1Tem. insistente e difusamente,
dublada pela analog ia do título: a signi ficação parecia e xaustiva. ~om a instauração de uma cor. o branco, q ue se imprime em nós.
afiguração era esgotada. Ora, é impossível, diante de uma tela de independente me nte dos objetos que const ituem seu s uporte.
Twombly. não experimentar esse reflexo: procuramos a analogia. Também Paul Valéry. cm seu período simbolista, escreveu dois

166 167
sonetos, ambos intitulados Féerie. cujo efeito é uma certa cor; mas, luzes que transcorre entre a terra e o mar. A arte ini mitável de
como do Pamaso ao Simbolismo a sensibilidade tornou-se mais Twombly consiste em haver logrado o efeito·Mediterrâneo a partir
refinada (sob a iofluêocia, aliás, dos pintores), essa cor não pode de u111 matériaux (rabiscos. sujidades. marcas, pouca cor, nenhuma
ser d ita com um nome (como o branco de Théophi le Gautier); é, forma acadêmica) que não tem ne nhuma relação analógica com
sem dúvida. o prateado que domina, através de ourras sensações a grande luminosidade med iterrânea.
que o diversificam e o reforçam: luminosidade, transparência, le- Conheço a il ha de Procida, diante de Nápoles, onde Twombly
veza, brusca acuidade.frieza: palidez lunar, seda de plumas, brilho viveu. Passei alguns dias na velha casa o nde morou a he roína de
do diamante, irisação do nácar. O efeito não é, pois, um "truque•· Lamartine, Graúella. Lá. encontram-se tranqüilamente a luz, o
retórico: é uma verdadeira categoria da sensação, definida por um céu, a terra, rochedos. um arco ogival. É Virgílio e é uma tela de
paradoxo: unidade indecomponível da impressão (da "mensagem") Twombly: ao fundo de todas as telas, esse vazio do céu, da água e
e complexidade das causas, dos elementos: ageoeralidade não é mis- esses leves indícios te rrestres (uroa barca. um promontório) que
teriosa (imeiramenteconfiada ao poder do artista), mas é, no entanto, nelas flutuam (apparent rt,ri 110mes): o azul do céu, o cinzento do
irredutfvel. Trata-se de uma outra lógica, uma espécie de desafio feito mar, o róseo da aurora.
pelo poeta (e pelo pintor) às regras ruistotélicas da estrutura.
Embora muitos elementos separem Twombly do Simbo lismo
francês (arte, história, nacionalidade), algo os aproxima: uma certa 4
forma de cultura. E essa cultura é clássica: Twombly não apenas
se refere diretamente a fatos mitológicos rransmiridos pela litera- O que se passa em oma tela de 'Twombly? Orna espécie de efeito
, tura grega ou latina, mas outros "autores" (aucrores quer dizer: mediterrâ neo . Esse efeito, no e ntanto, não é "congelado" na
• os responsáve is) q ue introd uz em sua pi ntu ra são o u poetas pompa, na austeridade, no drapeado das obras humanistas (até
humanistas (Valéry, Keats), ou pintores impregnados de antigui- os poetas de inteligência üwulgru·, como Valéry, são prisioneiros
dade (Poussin , Rafael). Uma única cadeia, incessantemente figu- de uma espécie de decência superior). No acontecime nto, Twombly
rada. conduz dos deuses gregos ao arlista mO<lemo - cadeia c ujas introduz freqüentemente uma surpresa (apodesron). Esta surpresa
malbas são Ovídio e Poussin. Uma espécie de triângulo de o oro toma a ap,uência de uma incongruência, de uma zombaria. de uma
une os antigos, os poetas e o pintor. É significativo que uma tela calmaria, como se a magnitude humanista bruscamente perdesse
de Twombly seja dedicada a Valéry . sobretudo porque esse en- a força. Em Ode 10 Psyche, uma discreta graduação, a um canto
contro aconteceu, sem dúvida, à revelia de Twombly - uma tela da tela, vem "quebrar" a solenidade do lítu lo. E m Olympia, há,
do pintor e um poema do escritor têm o mesmo título: Naissance por vezes. uro motivo "desajeitadamente" traçado, como os que
de Vénus; as duas obras têm o mesmo "efeito": de surgimento do produzem as crianças quando querem desenhar borboletas. Do
mar. Esta convergência. aqui exemplar, dá-nos, talvez, a chave do ponto de vista do ·'estilo", valor supremo que mereceu o respeito
"efeito" Twombly. Quer-me parecer que esse efeito, presente em de todos os clássicos, nada mais distante do Voile d' Orphée do q ue
todas as telas de Twombly, mesmo naquelas q ue precederam sua essas linhas infru1tis deaprendizdeagrimensor. Em Umirled( 1969),
., ... iost.a lação na Ct{úia (pois. como diz Valéry, o futuro pode moti- que 10111 de cinza! Como é bonito! Dois finos traços brancos es-
var o passado). é o mesmo. bastante geral. que traduziria, e m todas tão obliquamente suspensos (sempre o Rarus. o Ma japonês);
as d imensões possíveis. a palavra '·Mediterrâneo". O Mediterrâneo poderia ser muito zen, não fossem dois algarismos, quase ilegíveis,
é um enom1e complexo de lembranças e sensações: das línguas. que, dru1çando sobre os traços, remetem a nobreza desse cinza a
grega e latina, presentes nos títulos de Twombly, de uma cultura. uma folha de cálc ulo.
histórica, mitológica, poética, toda essa vida das formas, cores e A menos que ... seja, precisamente por essas surpresas. que as

l69
168
te.las de l'wombly possuem o mais puro espírito zen. Há na atitude se espera da ""mão de artista'· de um pintor: como se dizia do copista
zen uma experiência, buscada sem método rac ional. que é de funda- do sécu lo XVTI. E, quem poderia escrever me lh or que um
mental importânc ia: é o saiori, palavra imperfeitamente traduzida pincor'? Essa "ía lca de jeito" da esc rita (no e nta nto, in imi táv~I:
(devido a nossa tradição crist.ã) por " ilumi nação'': por vezes, uma tentem imicá-lo) te m,segmamence.naobrade Twombly. Luna funçao
tradução já melhor: "despe nar": crata-se, até onde profanos como plástica. E aq u i, o nde,não fa lamos d~ l'wombly segu ndo ~s
nós podem ter uma idéia. de uma espécie de choq11e me ntal. que regras da linguagem cnttca de arce, ins ,st,remos em s ua funçao
pernüte ascender. e não pelos caminhos intelectuais conhecidos, à crÍ!ica. Por in termédio de seu g rafismo, T wombJy ,m roduz fre-
" verdade'' budista: verdade vazia, desconectada das formas e das q üentemen cc u ma con trad ição em s ua tela: o "co itado '·. o
causalidades. O que é imponame, para nós, é como se c hega ao sa- ·'desajeitado", ga11che unem-se ao "Raro". atuam como ~orças que
tori:atra vés de técnicas surpreendentes, não a penas irracionais, mas rompem a tendência ela cultura clássica a fazer da antigu idade uma
também, e sobre tudo, incongrue ntes, desafiando a seriedade q ue reserva de fonnasdccorativas: a pmeza apol(nea da referência grega.
emprestamos às experiênc ias re ligiosas: é por vezes uma resposta sensível na luminosidade da tela, a paz auroreal de seu espaço. são
"sem pés nem cabeça•· a uma pergunta metafísica, por vezes um gesco "sacudidas" (é o tem10 exaio do satori) pela ingratidão dos grafis-
surpreendenteque vem quebram sole nidade de um rito (como o pre- mos. A tela parece luca r contrn a c ullura, c ujo discu rso enfático
gador zen, que, no me io de seu sem1ão, parou. tirou as a lpargatas. ignora, para deixarpassarapenas a beleza. Foi d ito que. ao contrário
colocou-as sobre a cabeça e saiu da sala). Tais incongruências, esse n- da arte de Pául Klee. a arte de Twombly não tem nenhuma agres-
cialmeme desrespeitosas, podem abalar o espírito de seriedade que sividade. É verdade. se concebermos a agressividade no sentido
freqücntementeempresta sua máscara à cranqüil idade deconsciência ocidenta l, como ex pressão nervosa de um corpo aprisionàdo q.u e
_,, de nossos há bitos mentais . Sem q ualquer ligação com uma perspec- explode. A arte de Twombly é mais,\ arted~choque d?que da vio-
tiva religiosa (evidcnce mente ), há, cm certas te las de l'wombly, essas lência. e. freq üe ntemente. o choque é 111a1s s ubversivo.do q_ue a
impertinências, esses c hoq ue~. esses pequenos saiori. violência: é precisamente esca a lição de certos modos on e111a1s de
Encre as surpresas suscitadas por Twombly. figura m todas as conduta e de pensamento.
intervenções de escrita no campo da ce la: cada vez que Twombly
produz um g rafis mo, há um abalo do natura l da pim ura. Essas
intervenções são de três tipos (s impl ificando). lnic iahn enre. há 5
as marcas de graduação, os algarismos . os peq uenos a lgoritmos.
tudo o q ue leva a uma contradição entre a soberana inutilidade Drama. e m grego. está e cimologica111ente ligado à idéia de
da pinmra e os sig nos ulili tários do cálculo. Em seguida, há as te las "fazer". Drama é. simu ltaneame nte, o q ue se faz e o que se re-
em que o ún ico acontecimento é uma palavra manuscrica. F i- presenta sobre a tela: sim. um "drama", por que não? Vejo. na obra
nahn ente, extensiva a esses dois tipos de intervenção, a constante de Twombly. duas ações, ou urna ação em dois graus.
·'falta de jeito" da mão; a lerrn de Twombly é o oposto da le trina A ação do pri 111ei ro tipo consiste cm uma espécie de encenação
ou do cipograma; parece traçada sem capric ho, e, no entanto, não d.i cultura. Tudo o que acontece são "histórias" q ue vêm de um
é realmente infantil, porq ue a criança capric ha, calca. arredonda saber. como já d issemos, e do saber c lássico : c inco d ias de Bac-
o trnço, morde a ponta da l!ngua; trabal ha com afinco para domi- chanalia. o nascimento de Vênus. três diálogos de Platão, uma ba-
nar o código dos adultos; TW. ao contrário. de le se distancia. sua talha etc. Essas ações h istó ricas não estão representadas: são
mão arrasta-se, sem energia, sem pressa. parece levitar: dir-se-ia evocadas - pelo poder do Nome. Em suma, o q ue está represen-
q ue a palavra foi escrica com a ponta dos dedos. não por asco ou tado é a própria c ultura. ou, como se diz atualmente. o inte11ex10,
tédio, mas por uma espécie de fantasia que vem decepcionar o que que consiste na presença dos texios anterio res (o u co ntem-

170 17 1
porâneos) na mente (ou na mão) do artista. Esta representação é Há. pois, vários sujeis que contemplam Twornbly (e o mum1uram
absolutamente explícita quarldo Twombly toma obras passadas (e em voz baixa, cada um em sua mente).
consagradas como sendo altamente cullurais) e as coloca en abíme !-fá o sujei da cultura - Poussin ou Valéry - , aquele que sabe
em algumas de s uas telas: inicia lme nte. os tít ulos (The School of como nasceu Vênus: é um sujei e loqüente, que pode dizer muita
A1he11s, de Rafael), e m seguida nas figuras. aliás. quase irreco- coisa. Há o suje, da especialidade, que conhece bem a história da
nhecíveis. colocadas em um canto, como imagens c uja referência é pinru1a e sabe discorrer sobre o lugar que nela ocupa Twombly.
importante, mas não é importante o conte údo (Leonardo, Poussin). Há o sujet do prazer, aquele que se alegra diante da tela. e xperi-
Na pintura clássica, '·o que se passa" éo "tema" da tela; esse tema é, menta. ao descobri-la. um certo júbilo. que, a li ás, não sabe dizer;
freqüentemente, anedótico (Judileestrangu!ando Holofemes): mas, é O sujei mudo; só é capaz de exclamar: "Como é bonito! " e rcpe-
nas relas de Twom bly, o " te ma" é um conceito; é o texto clássico rir: Como é bonito! Este é um dos peq uenos tormentos da lin-
''em si" - oonce iro, na verdade, estraoho, poisqueédesejável,objeto guagem: nunca somos capazes de explicar por que achamos bonita
de amo,·, talvez de nostalgia. uma coisa: o prazer gera uma certa preguiça da palavra, e, se que-
Em francês, te mos u!lla a!llbigüidade preciosa de vocabulário: remos falar de uma obra, temos que nos valer de d iscursos indire-
o sujei de uma obra é ou seu " objeto" (aquilo de que fa la, ou o tos, racionais- na esperança de que o le itor saiba ne les ler a feli-
que propõe à reflexão. a quaes1io da a ntiga retórica), ou o ser cidade q ue nos proporcionou a tela de que falamos. Há ainda um
humano que e ntra cm cena na obra. ne la fi gura como autor im- quarto suje,: é o da memória. Em uma tela de Twombly, esta man -
plíc ito do que é dito (ou pintado). Na obra de Twombly, é evidente cha parece-me feita à pressa, malformada, inconseqüente: não a
que o sujei é aquilo de que a tela fala; mas. como esse suje1-obje1 compreendo: mas, à ,ninha revelia, a mancha faz um caminho e m
~r não passa de uma alusão (escrita), toda a força do drama trans- minha meme; desprezada. voha. faz-se lembrar com te nacidade: e
:..... ~·• fere-se para aque le q ue a produz.: o sujei é o próprio T wombly. tudo muda. a tela proporciona-me um prazer retroativo. No fundo, o
Esta viagem do suje, não pára, porém, por aqu i: porque a arte de queconsumo. e m estado de felicidade, é uma ausência: proposta não
Twombly parece comportar tão pouco sabe r técnico (evideme- paradoxal, se nos lembrarmos q ue Mallarmé dela faz o próprio
me nte, apenas uma aparênciá). o sujei da Leia é, também, aquele princípio da poesia: Jedis: u11ejleur et ... musicalemefll se leve, idée
que a conte mpla: vocês. eu. A "simplicidade" de Twombly (que même e1 suave, /' a.bseme de tous bouquets.
' O quimo "sujet" é o da produção: aquele que tem vontade de
já aoalisei sob o nome de "Raro" ou de ' 'Desajeitado") solicita.
atrai o espectador. que quer a lcança,. a tela, não para cons umi-la re-prod uzir a te la. Assim, neste3l dedezembrode 1978, es1á ainda
esteticamente, mas para produzi-la, por sua vez ("re-produzi-la"), escuro (é de manhã) , cbove, tudo é silêncio. quando me sento à
te ntar uma feitura cujo despojamento e gaucherie o fazem crer minha mesa de trabalho. Contemplo Nérodiade ( 1960) , e nada
c m uma incrível (e falsa) ilusão de facilidade. tenho a dizer. senão a mesma banalidade: como me agrada! De
.. Talve:i seja necessário precisar que os sujeis q ue contemplam repente. porém, s urge algo novo, um desejo: o desejo de fazer a
mesma coisa: d irigir-me à outra mesa de trabalho (não a mesa da
...., ........ a te la são diversos, e que, desses tipos de s1ije1s, depende o dis-
curso (interior) diante do objeto contemplado (um sujet - como escrita), e pintar. traçar. No fundo, a pergunta de pintura é: ·'Voei!
a modernidade nos ensinou - é constituído apenas por sua lin- tem vontade de fazer Twombly?"
guagem); é e vidente que todos esses sujeis podem falar ao mesmo Enquanto sujei da produção. o espectador da tela vai, então,
tempo d iante de uma tela de Twombly (que seja dito e11 passam, explorar sua própria impotênc ia - e, simu ltaneamente, é c laro ,
a estética, como disciplina. poderia ser a ciência que estuda, não como que cm relevo, o poder do artista. Antes mesmo de haver
~ obra e m si, mas a obra tal como o espectador. ou o leitor, a ouve Le ntado 1raçar o que quer que seja, constato que esse fundo (ou o
e m sua me nte: uma tipologia dos di scursos, de uma cerra forma). que, pelo menos. parece-me ser fundo), nunca serei capaz de fazê-

172 173
lo: nem consigo descobrir como é feiro. Eis Age ofA!exander: ah espaço rra1ado já não écnumerável, se!" · por isso, deixa~de ser plural:
esse solitário rasrro rosado ... ! Nunca poderia eu fazê-lo tão leve' não é segundo esta oposição quase msustentável, pois que exclui
rarefiar o espaço em que caminha; não seria capaz nem de pamr d~ simultaneamente o número e a unidade, a dispersão e o centro, que
preencher, de continuar, enfim, de "pôr a perder'': e, a panirde meu se deve interpretar a dedic,uória de Wcbern para Alban Berg: Non
próprio . erro, consigo entender ludo o que há de sabedoria no <>esto ~ multa. sed mulcum?
do arr1s1a: controla-se para não querennuito:seu rriuiúo 1em relação Há pinturas nervosas. possess ivas, dogmfüicas; impõem o
com a erótica de Tao: um prazer imenso vem da contenção. O mesmo prod uto e emprestam-lhe a tirania de um fetiche. A arre de
problema e?1 View ( 1959): 11unca saberia eu manejar o lápis, is10 é, Twombly - e nisto es1á sua moralidade e. também. sua grande
calcar, dcshzar levemente, e nem seria capaz de aprendê-lo, porque sinoulariclacle histórica - 11ão quer copra r 11adc1: equilibra-se. flutua.
essa arte não é dirigida pornenhum princípio de analogia, e o próprio oscila entre o desejo-que, su1ilmenrc, ao ima sua mão-e a deli-
ducrus (mov imcnw do copista da Idade Média ao traçar a letra cadeza, que é a discreta liberação dada a todo desejo de captura.
obedecendo sempre ao mesmo movimemo) é, aqui, absolutamente Se quiséssemos siruarcssa moralidade. deveríamos ir buscá-la muito
li vre. .E,oqueé inacessível ao nível do traço,éainda mais inacessível lon"e, fora do do mínio da pintura. fora do Oc idente, fora dos
ao rúvel da superfície. Em Panorama (1955). todo o espaço crepita séc~los históricos, quase no limite do sem ido, e dizer, com Tao
como uma tela, ames que nela venha inscrever-se a imagem; ora, eu To K ing:
não seria capaz de lograra irregularidade da repan ição gn\fica; pois,
se tentasse fazer algo desordenado. resultaria algo absolutamente Produz sem apropriar-se,
rolo. Eentão compreendo que a obra de Twombl y é uma inces_5ante Traba lha sem nada esperar,
,
- vitória sobre a to)ice dos traços: fazer um traço ime/igeme é privi- A obra term inada, esquece-a,
, ..
légio do pintor. E, em mui ias outras telas. eu não conseguiria fazer e porq ue a esquece,
,, essa dispersão, esse "jogar", a descentralização das marcas: nenJ1um a obra permanecerá.
..
:! traço parece obedecer a uma direção intencional, e, no entanto,
todo o conjumo é misteriosamente dirigido . Extraído de Cy Twomb!y, Pai11tilrgsand /Jra wings 54-77
P~ra conclui r. volw a essa noção de " Rarus" ('·esparso"), que © 1979. WJ-ütocy Museum or Amedcan An. Nova forque.
. considero como a chave da obra de Twombly.' Esta arte paradoxal
seria provocante (se não fosse delicada}, pois sua concisão não é
solene. De maneira geral, tudo o que é breve parece resLUnido: a
escassez gera a densidade, e a densidade gera o en igma. Na obra
de Twombly produz-se outro desvio: há, certamente, um silencio,
ou , para ser mais exato, um 1ênue crepitar da folha. mas esse fundo
é, em si. uma força positiva: invertendo a relação habitual da foi-
lura clássica, poderíamos dizer que o traço, a hachura, a forma,
enfim, o acomecimemo gráfico, é o que perm ite que a folha ou a
1ela ex isram, signifiquem, gozem ("O ser, diz Tao, oferece possi-
bilidades, e é pelo não-ser que se as u1iliza"}. A panir de então, o
1
Cf. Cy Twombly. J>. 159, acima. (Foram mantidos trechos que, nosdois rex1os, são
repetidos.)

174 175
WILHELM VON GLOEDEN

Será ele camp . esse Barão vo n Gloeden? Visto por Warhol,


talvez: mas é, sobrecudo, kitsch. O kitsch implica, na verdade, o
reconhecimento de um alto valor estético, mas acrescenta que esse
gosto pode s_cr mau gosto, e desta contrad ição nasce um monstro
fascu,antc. E exatamente o caso de von G!oeden: interessa, fas-
cina. distrai , surpreende, e percebe-se que todo o prazer vem de
um acúmulo de contrários, como acontece em toda festa carna-
valesca.
Essas contrad ições são "heterologias", atritos de linguagens
diversas, opostas. Por exemplo : von Gloedcn toma o código da
.. Antiguidade. o sobrecarrega. e o exibe, pesado de efebos, pastores,
lianas, pa lm as, ol iveiras, parras, tú1iicas, colunas, estelas; mas
(primeira distorção), miSlLLra os signos da Antigu idade, combina
a Grécia vcgccal. a estatuária romana e o "nu antigo" vindo das
Escolas de Be las Artes: sem nenhuma iron ia, ao que parece ,
considera magnífica a mais desgastada das lendas. Mas isso não é
tudo: a Antiguidade assim ex ibida (e, por indiferença, postulado,
assim, o amor dos efebos), von Gloeden povoa a Antiguidade com
corpos africanos. Talvez ele tenha razão: o pintor Delacroix dizia
que o drapeado a,uigo era encontrado entre os árabes. Tudo isco
não impede que a con tradição seja agradável, entre essa para-
fernál ia literária de uma Antig uidade de versão g rega e esses
corpos negros de pequenos gigolôs paysans (se resta algum deles,
peço-lhe perdão, não se trata de uma ofensa), de olhar sombrio,
como é sombrio até o azu l brilhante do corselete dos insetos
calcinados.

177
O meio a que recorre o barão, ou seja, a fotografia, enfatiza até o Gloeden.sem pensar nessa mislllra. nela trabalhou incansavelmente.
delírio esse caniaval de contradições. É bastante paradoxal, pois, Daí a força de sua visão, que ainda nos surpreende: suas ingenui-
afinal, a fotografi a é considerada uma arte exata, empírica, intei- dades são grandiosas como proezas.
ramente a serviço dos fortes valores positivos. que são a autenti-
Extrafdo de \Vi/helm w>11 G/oeden.
cidade, a realidade. a objetividade: em nosso universo policial, a
© 1978. Amclio editore, Náp0les.
fotografia não constitui aprova invencfvel das idem idades, dos fa-
tos, dos crimes? Ademais, a fotografia de von Gloeden é "artística"
pela encenação (poses e cenários), não pela técnica: pouca im -
precisão, poucas iluminações trabalhadas. Muito simplesmente, o
corpo está lá; e nele confundem-se a nudez e a verdade, o fenômeno
ea essência: as fotografias do barão são do gênero implacável. Toda
a sublime imprecisão de lenda entra, assim, em colisão (única pala-
vra que traduz nosso assombro e, talvez. nosso júbilo) com o rea-
lismo da fotografia; pois, uma foto assim concebida, o que mais é,
senão uma imagem onde se pode ver tudo. uma coleção de deta-
lhes sem hierarquia, sem "ordem" (grande princípioclássico)? Esses
pequenos deuses gregos (já contradi tórios, porque negros) têm

.
~

.....
,
mãos de camponeses um pouco sujas, unhas malco11adas, pés mal-
tratados e tampouco limpos, prepúcios bem visíveis, inchados,enão

.• .
estilizados, isco é, afilados, menores: são todos incircuncisos, e
, I ' ...
,,
isso salta à vista: as fotos do barão são simultancamcnre sublimes e
") anarômicas .
1'•• .. !i• E.is a razão pela qual a arte de von Gloeden é uma aventura do
sentido: porque essa arte produz um mundo (um ·' homi nário",
deveríamos dizer, já que há bestiários) ao mesmo tempo verdadeiro
e inverossímil, realista e falso (e como!). um contra-onirismo, mais
delirante do que o mai s delirante dos sonhos. Proponho que se
pense em como uma tentativa desse ripo, apesar do abismo "cultural",
está próxima de certas experiências da arte contcrnporãnea. Mas.
como a arte é um can1po de recuperação (é um fato inegável: a arte
recupera sua própriacomestaçãoe dela faz uma nova arte), mais vale
, . ... -- reconhecer, nas fotografias do barão, antes uma força do que uma
arte: essa força débi l e forte, que faz com que resista a todos QS
confonnismos, os conformismos da arte, da moral e da polít ica (não
devemos esquecer as confiscações fascistas), e que podemos cha-
marsua ingenuidade. Hoje, mais do que nunca, é uma grande audácia
simplesmente misturar, como fez o barão, a cultura mais ·'culturl\1''
e o erotismo ma is luminoso. Sade. Klossowski o fizeram. Von

179
178
ESTA COISA ANTIGA, A ARTE ...

Todos sabemos, porque está registrado em todas as enciclopédias,


que, nos anos c inqüenta, os anis tas do/nstitute ofContemporary Ans,
em Londres, foram os defensores da cultura popular da época: as
histórias e m quadrinbos, os filmes, a publicidade, a ficção científica,
a música pop. Essas manifestações diversas não se relacionavam com
1 o que se chama, geralmente, a Estética: eram apenas produtos da
- '1 cultura de massa e não faziam parte da arte; havia, simplesmente,
-
...,, '. . artistas. arquitetos, escritores que se interessaram por eles. Ao

·--' ..
:: •J cruzarem o Atlântico, esses produtos forçaram a barreira da arte;
) adotados pelos artistas americanos, tomaram-se obras de arte, cuja
cultura não constituía mais o ser, mas apenas a referência: a origem
anulava-se em benefício da citação. A arte pop, tal como a conhe-
' l
cemos, é o teatro permanente dessa tensão: por um lado, a cultura
popular da época nela está presente, como uma força revolucionária
que contesta a arte: e, por outro lado, a arte nela está presente, como
uma força antiga que sempre volta, irresistivelmente, à economia
das sociedades. Há duas vozes, como em uma fuga - uma afirma:
"Isto não é Arte", a outra diz ao mesmo tempo: "Eu sou a Arte."
,. _,. .,d ***
A arte é algo que deve ser destruído- proposta comum a muitas
experiências da Modernidade.
A arte pop inverte os valores. "O que caracteriza a pop é, an-
tes de mais nada, o uso que faz de tudo o que é desprezado"
(Lichtenstein) . As imagens de massa, consideradas vulgares,

181
islO é, em suma. a Aventura - está excluído. o sujeito warholiano
indignas de uma consagração es1ética, voltam na atividade do anis1a
(já que Warhol é um ha/Jirué dessa_s repetições) nele supri me o
a títulodemarériaux, levemente tratados. Eu ch:u11ariaa esta inver;ã~
patético do 1cmpo, porque esse patéuco está sempre ligado ao sen-
o "complexo de Clovis": como Saim-Rénú dirigindo-se ao chefe
tioienlO de que algo surgiu. vai morrer, cque só se poderá lutar coorra
franco, o deus da arte pop diz ao artista: "Queima Iudo oqueadoras1e
sua morte transfonmu1do-o em um segundo algo que não se asse-
ad~ra ludo o que queimas1e. ''Por exemplo, a fo1:ografia teve, durant;
mm10 tempo, fascinação pela pi mura, de que, ainda hoje é consi- Jllelhe ao primeiro. Para a arte pop, é importante que as coisas sejam
"icrminadas'· (bem delineadas, nada de.evanescências). mas, J1ão é
derada a "prima pobre"; a arte pop acaba com esse prec~nceito: a
irnpo11ame tem1iná-las. dar à obra (e será uma ob~a'?) a organização
fotografia, freqüen1emen1e. origina as imagens apresentadas pela arte
intemadc um destino (nascimento. vida, morte). E. pois, necessário
pop: nem pmtura de arte, nem fotografia de a1tc, mas um misto sem
desaprender o tédio do ·'sem fi m" (um dos primeiros filmes de
nome_. O_utro exemplo de inversão: nada é mais contrário à arte do
Warhol. Four Stars, durava vinte e cinco horas: Chelsea Girls tem
que a 1dé1a de ser o s1mplesrnflexodascoisas representadas; a própria
três horas e meia de duração). A repe1ição i11comoda a pessoa (esta
fotografia recusa esscdestmo; a a11e pop. ao contrário, aceita ser uma
en1id,1de clássica) de uma oui:ra maneira: ao multiplicar a mesma
1magene, u~a cole9ão de reflexos, constituídos pela reverberayão

b:u1al meio amb:em: americ~no: banida da grnnde arte, a cópia
imagem.a pop vai aoencom rodo1emadoDuplo,doDoppelganger;
é um 1cma mítico (a Sombra, o Homem. a Mulher sem Sombra); nas
retoma. Es!a mversao naoécap_nchosa, não procede de uma simples
produções da me pop, o Duplo é, no entanto, inofensivo: perdeu todo
degeneraçao de valor: de uma simples negação do passado; obedece
seu poder maléfico ou moral: não ameaça nem fiscaliza: é Cópia e
a um progressohis1ónco regular; como havia observado Paul VaJéry
não Sombra: está ao lado e não atrás: é um Duplo banal, insignifi-
(em P,eces s11r /' art), o surgimento de novos meios técnicos (neste
caso, a fotografia, a serigrafia) modifica não apenas as formas da cante, logo irreligioso.
ane. mas seu próprio conceito.
** *
** * A repetição do retrato leva a uma alteração da pessoa (noção
simultaneamente civil , moral , psicológica, e, evidentemente,
. A repetição é uma característica da cultura. Quero dizer com
histórica). Foi 1ambé111 dito que a arte pop 1oma o lugar da máquina;
1s_so que se pode utilizar a repetição para propor uma certa Lipolo-
uti liza. sobretudo, procedimentos de reprodução mecânica; por
g1a das culturas. As culluras populares ou extra-européias (de-
exemplo. imobiliza a vedete (Maiilyn, Liz, Elvísem sua imagem de
penden~o de uma etnografia) a ad mitem. essa repetição dá-lhes
vedete): já não há al ma, apenas um estatuto, propriamente ima-
wn senudo e as _tr:u,sformaem fonte de prazer (como, hoje. a música
ginário. já que o ser da vede1cé o ícone. O próprio objeto, que, em
repet1t1va e a discoteca); a culrura sábia do Ocidente, não (mesmo
nossa civil ização quotidiana, personalizamos sem cessar, incor-
que, mais do que se crê, tenha recorrido à repetição, na época
porando-o ao nosso mundo individual, o objeto. segundo a arte
... barroca( A a_rte pop repet~ espetacu larmente; Warhol propõe
uma _séne de imagens 1dên.1Jcas ( White Buming Car Twice), ou
diferindo apenas poruma_ínfima variação de cor (Flores, Maryli11).
pop, não passa do que resta de uma subtração: tudo o que resta
de uma lata de conserva. depois que dela suprimimos seus temas
e suas possíveis utilizações. A arte pop sabe perfeitamente que a
O obJet1"..o dessas repetições (ou da Repetição como procedi-
expressão fundamemal da pessoa é o estilo. Bu ffon dizia (frase
mento) nao é apenas a destruição da arte, mas 1ambém (O que é
célebre que 1odos os estudantes franceses conheciam): "O estilo
um resultado) LLma outra concepção do ser humano: a composição.
é o homem." Suprim ido o estilo, desaparece o homem singular.
na_verdade, dá acesso a uma iemporalidade diferente: onde o sujeito
A idéia de es1ilo, em todas as anes, esteve sempre ligada a um
oc1den1al ressente a ingrntidão de um mundo de onde o Novo-
183
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humanismo da pessoa. Tomemos um exemplo inesperado, o estereótipo: aqui lo que todo muodo vê, que todo mundo consome.
grafismo: a escritura ma nuaJ, durante muito tempo impessoal A arie pop situa a unidade de suas apresentações na conjunção
(durante a Antigu idade e na Idade Média), começou a individu- radical dessas duas fonnas, ambas levadas ao extremo: o estereótipo
al izar-se no Renascimento, aurora da época moderna; mas hoje, e a imagem. Taiti é um Fato, na medida em que uma opinião uoâoirne
época em que a pessoa é uma idéia que morre. ou pelo menos está des igna esse lugar como um conjunto de palmeiras, flores nos
ameaçada, sob a pressão de forças gregárias que animam a cul- cabelos, longas cabeleiras, maiôs e olhares sed utores e langoro-
tura de massa, a personalidade da escritura desaparece. Existe, sos (Lia/e Aloha. de Lich1enstcin). A ane pop produz. ass im,
creio eu, uma cena relação entre a arte pop e o que se denomina imagens radicais: À força de ser imagem , o objeto é despojado
o scripr, esta escrita anôni ma ensinada às crianças disgráficas, de todo símbolo. Eis um movimento audacioso do espírito (ou da
porque se inspira em traços neutros e como queelemcncares da tipo- sociedade): já não é o fato que se transforma em imagem (o que
grafia. Dizendo de maneira mais clara: a arce pop despersonaliza, vem a ser o movimenLo da metáfora. com que, durante séculos, a
mas não leva ao anonimato: nada mais idencificável doqueMarilyn, humanidade fez a poesia), é a imagem que se transfonna em fato.
a cadeira elétrica, um pneu ou um vestido, vistos pelaa,1e pop; e são A arce pop introduz, assim, urna qualidade filosófica das coisas, a
apenas isso: imediatamente e exaustivamente identificáveis, mos- Jacricidade: facrício é o caráter daquilo que existe enquanto fato
U1\Jn, por isso mesmo, que a identidade não é a pessoa: o mundo futuro e é desprov ido de qualquer justifi cação: os objetos representa-
corre o risco de ser um mundo de identidades (pela generalização dos pela a11e·pop são não apenas factícios, mas encamam o próprio
mecânica dos fichários de polícia), mas não um mundo de pessoas. conceito da facticidade - e, ass im, à sua revelJa, recomeçam a
significar: significam que nada significam.
~**
**-*
Último traço que I iga a arte pop às experiências da Modernidade:
a co11formidade inexpressiva da represencação com a coisa repre- Porque o sentido é ast ucioso: expulso, volta a galope. A arte
seotada: "Não quero, dizia Rauschenberg, que uma tela se pareça pop quer destru ir a arte (ou, pelo menos, passar sem ela), mas a
com o que não é. Quero que se pareça com o que é." É uma pro- arte vai ao seu encontro: é o contra-sujeito de nossa fuga.
posta agressiva, na medida em que a arte sempre permitiu um desvio Quis-se abolir o significado, e, por conseguime, o signo: o sig-
inevitável pelo qual deveríamos passar para traduzir a verdade do nificante, porém, subsiste, mesmo se não remete. ao que parece.
objeto. A arte pop propõe-se a dess imbol izar o objeto, empres- a nada. E o que vem a ser o significante? Digamos, para resumir:
tar- lhe a palidez e a teimosia obmsa de um fato (John Cage: "O a coisa percebida, ampliada por uma certa operação mental. Ora.
objeto é fato, não símbolo"). Afinnar que um objeto é assimbólico na arte pop, esse suplemento exis!e-corno existe em todas as artes
é negar-lhe um espaço de profundidade ou vizinhança, que per- do mundo.
mite ao seu surgi mento propagar vibrações de sentidos: o objeto Em primeiro lugar, e mu ito freqüentemente, a ane pop muda
da arte pop (e isto é uma verdadeira revolução da linguagem) não o nível de percepção: reduz, amplia, afasta, aproxima, aumenca o
é nem metafórico nem metonímico: entrega-se mutilado do que objeto dm1do-lJ1e as dimensões de um panô, ou o dilata como se
o precede e do que o envolve. O artista não se coloca arrás de sua visto através de uma lupa. Ora, do momento em que são muda-
obra. e não há um espaço atrás do artista: o artisia é apenas a das as proporções. a arte surge (basta pensar na arquitetura, que
superfície de seus quadros: nenhum signi ficado,nenhuma intenção, é a arte do wm(mha das coisas): não é por acaso que Lichtenstein
em nenhum lugar. Ora, na cultura de massa, o fato já não é mais reproduz uma lu pa e o que ela amplia: Magnif)•ing g/ass é como
u'm elemento do mu ndo natura l; o que aparece como fa!O é o que o emblema da arre pop.

184 185
Em seguida, em muitas obras da ane pop. o fundo sobre o qual se A arte pop é urna arte porque, no momento em que _parece
destaca o objeto. ou atédequeesseobjetoéfeito. tem uma ex istência renunciar a todo sentido. admitindo apenas reprodu1Jr as coJsas e!n
potenre (como tinham as nuvens na pintura clássica): há urna im- sua banal idade, põe cm cena. obedecendo a proces~os que lhe s_ao
portância ela trama que darn, talvez. das primeiras obras de Warbol: própriose queconstimem Lunesu lo: ~m obJetoquenaoé ne~ aco,sa
as serigraCias jogam com o tecido (tecido e trama é a mesma coisa): nem seu senlido, mas que é: seu s1g1~il1cante. o_u antes: o S,gmficam.e.
di r-se-ia q uc a mais moderna das modern idades encanta-se com essa A arte. qualquer que seja, da poesia à lustóna cm quadnnhos ou à
manifestação da tn\ma, que é ao mesmo tempo a consagração do erótica, aanc existe a partir do momento em que un~ olhar '.cm como
material banal (grão do papel na obra ele Twombly) e mecanização objeto O Significame. Evidentemente, nas produçoes art,sucas. há
da reprodução (l inhasem icroquaclricul ado dos retratos por compu- nonnalmcntes,om ficado (aqu, , a cultura de massa). mas esse s1gm-
tador. A trama é como uma obsessão (uma temática. teria dito, ficad<>. no fund;, surge indiretamente: a tiracolo, seassün podet~os
outrora. a crítica); fazem-na pa11icipar de jogos diversos: invertem dizer; e mnto é verdade que o sentido, os movimentos do senudo.
sua função perceptiva (no aqu{u·i o de Lichtenstein, a água é com- sua supressão. seu retomo. Ilido isto não passa de uma questão de
posta de grandes pingos): ampliam-nade maneira (voluntariamente) fllgar. Aliás, não é apenas porque o artislll pop coloca em cena o
iJ1fantil (a e~ponja, ainda de Lichtenstein . é feita de orifícios. como Signiftcanie, que sua obra está ligada à arte: é também porque essa
um pedaço degruyere) : imitam exemplannente o en!Tecruzado dos obra é olhada (e não apenas vista); em vão tentou a pop desperso-
fios (Large spo/1, mais uma vezLichtcnstein). O elemento atrativo. nalizar o mundo, banal izar os objetos, inumanizar as imagens,
aqui, parece estar em tudo o que deveria ser insigni ficante. substituir o artesanato tradiciona l da tela por uma maquinaria. o
Outra ênfase (e, por conseguinte, novo re1omo da arte): a cor. sujet permanece. Ques14e1? Aquele que olha, se não_pode ser aquele
Naturalmemc. 1udo o que vem da natureza, e. por uma razão maior, que faz. Pode-se perfeitamente fabricar uma máquina, mas aquele
tudo o que vem do mundo social, tudo é colorido; mas se esse tudo que a contempla não é uma máquina: deseja, teme, goza, entecl,a-se
fosse objeto factício, como resultiu·ia de uma verdadeira destruição etc. É o que acontece com a arte pop.
da arte, seria necessário que tudo Livesse uma cor qualquer. E não
é o caso: as co1·es da arte pop são pensadas, e, pode-se até afirmar
(verdadeiro desmentido): submetidas a um estilo; são pensadas: ***
( inicialmente porque são sempre as mesmas e têm. pois. um valor te-
mático: em seguida. porque esse tema tem valor de sem ido: a cor
pop é declaradamente quÚlüca; remete agressivameme ao artifício
E vou mais além: a pop é uma arte da essência das coisas. é urna
arte "antológica". Observem como Warbol conduz suas reperiçõcs
da química. em sua oposição à Naturcw. E, se adm it imos que, no - inicial mente concebidas como um proced imento destinado a
campo plástico, a cor é geralmente o espaço da pulsão. esses acr[li- destruir a arte: repete a imagem de maneira que o objeto pareça
cos, essas cores lisas. esses laqueados,enfirn, essas cores que nunca estremecer diante da objetiva ou do olhar; e, se estremece, é porque
são matizes, pois q ue o meio-tom é banido, querem anular o desejo. busca a si mesmo: busca sua essência, 1enta colocar essa essência
a emoção: poder-se-ia dizer, em últiJna amílisc. que essas cores têm diame de nós· em outras palavras, esse estremeci mento da coisa
' .
um sentido moral, ou pelo menos.que jogam sistemacicamentecom atua (e este é seu efeito-sentido) como uma pose: anugamente,
uma certa frustração. A cor e a própria substância (laca. gesso) dão díante do cavalete do pintor ou da câmara fotográfica. a po~e não
à ane pop um sentido e. por conseguinte. dela fazem uma arte; prova ~~a a afirmação ele uma essência de indivíduo? Marilyn: Li;, El-
disso é que os artistas 1>op definem geralmente suas telas pela cor v,s, Troy Donahue não são mostrados segundo sua cont111genc1a,
pos objetos representados: 8/ack girl, hlue wall. red door (Segai).. mas segundo sua ident idade eterna: todos eles têm um "'eidos",
Two b/(lckish robes (Dine). que a pop tem por missão representar. Observem Lichtenstein: não

[86 187
repete, mas a missão é a mesma: reduz, purifica a imagem para captar O CORPO
(e oferecer) o quê? Sua essência retórica: aqui, todo o trabalho da
a11e consiste, oão e m di ssimularos artifícios estilísticos do discurso
como se fazia ourrora. mas. ao contrário, e m reti rar da imagem tud;
o que, nela. não é retórico: o que deve ser expulso, como núcleo vital
éª.essência do código. O senüdo fi losófico desse trabalho é que~
co isas modernas têm apenas a essênc ia do código social que as
manifesta - para que, no fundo, nunca mais sejam "produzidas''
(pela Natureza), mas imediatamente "reproduzidas": a reprodução RÉQUICI-IOT E SEU CORPO
é o ser da Modernidade.

***
.te ne saispasc'q1Ji m'quoi.
Fecha-se o círcu lo: não apenas a pop é uma arte, não apenas
essa arte é antológ ica, mas, além disso. sua referência é, afinal - O CORPO
como nos bons tempos da arte clássica: a Natureza; evidentemente
não mais a Natureza vegetal, paisagística, ou humana, psicológica; De111ro
a Natureza, hoje, é o social absoluto. ou, dizendo melhor (pois não
se trata diretamente de política), o Gregário. A pop assume essa no- Muitos pintores reproduziram o corpo humano, mas repro-
va Nanireza, e, mais do que isso, q uerendo ou não, ou antes dizendo duziam sempre o corpo de um outro. Réquichot pinta apenas o
o u não. a arte popa critica. Como? Ao impor a seLLolhar (e, por seu próprio corpo: não esse corpo e xterior que o pintor copia
conseguinte. ao nosso) uma distância. Mesmo que todos os artistas olhando-se de lado, mas seu corpo por dentro; seu inrerior vem à
pop oão tenham lido uma relação privilegiada com Brecht (como tona. mas trata-se de wn o utro corpo c ujo ectoplasma, violento,
foi_o caso de Warhol, nos anos sessenta), todos têm, com relação ao surge bruscamente através do CO!lfronto das duas cores: o branco
obJe to - depos,táno da relação social-, uma espécie de "distan- da tela e o negro dos olhos fechados. O pintor é acometido como
ciamento" q ue tem um valo r crít.ico. Todavia. menos ingênua ou
1 menos otim ista do que Brecht, a pop não formula nem Tesolve sua
crítica: colocar o objeto á piai (horizontalmente, em sua posição
que de uma revul são generalizada, que não exibe vísceras ou
músculos, mas apenas uma maquinaria de movime ntos repulsivos
e "volupi:ivos"; éo momento e m que a matéria (oma1éria11x) absorve-
normal), é colocá-lo a distânc ia, mas é também recusar-se a dizer se, anu la-se na vibração, pastosa ou superaguda: a pintura (conLinu-
como essa distância poderia ser corrigida. Uma fria inquietação aremos a empregar esta palavra para todos os tipos de tratamentos)
instala-se na consistência do mundo gregário (mundo "de massa"); toma-se um rufe/o ("O extremo agudo do ruído é uma forma de
a comoção do olhar é tão "sem brilho" quanto a coisa representada sadismo"). A esse excesso de maie riaLidade Réquichot chama o me.-
- e. tal vez por isso, ma is terríve l. Por imermédio de todas as (re) rame.111al. Omeiamenta l é aqui loque nega a oposição teológica entre
produções da arte pop, uma pergunta ameaça. interpela: What doyou o corpo e a alma: é o corpo sem oposição, e. logo, privado de sen-
mean? (título de um posrer de Al len Jones). É a perguma milenar Lido; é o denrro aplicado, como uma bofetada, ao ímimo.
dessa coisa tão antiga: a Arte. A partir daí, altera-se a re presentação e também a gramática: o
Extraído do e.atá logo Pop Art para uma exposição
ve,bo "pintar" adquire uma c uriosa ambigüidade: seu objeto (aquilo
no Palazzo Grassi de Veneza, Elec1a cd .. t 980. que é pimado) é ou aqu ilo que é olhado (o modelo), ou aquilo que é

188 189
recoberto (a tela): não há. na pintura de Réquichot. acepção do ob-
jeto: este interroga-se ao mesmo tempo que se altera: pi nta-se à
maneira de Rembrandt, pinta-se à maneira do Pele-Vermelha. O
pintor é simultaneamente um anista (que representa alguma coisa)
e um selvagem (que risca e escarifica seu corpo).

Os relicários

Caixas em cujo interior há algo para se ver. os Relicários, no


entanto, assemelham-se a máquinas c ndoscópicas. Não é o magma
interno do corpo que está lá. na mira do nosso o lhar. como um
campo profundo'' Um pensamento fúne bre e barroco não deter-
mina a exposição do corpo anterior, aquele amerior ao espelho?
Os Relicários não são ventres abertos, cúmulos profanados ("Tudo
que nos toca profundamente não se pode tornar público sem
prc)fanação'')?
Não. Esta estérica da visão e esta metafísica do segredo aite ram-
se logo. ao pensarmos que Réquichoí não gostava de mostrar sua
pintura, e sobretudo, q ue levava anos para compor um Relicário.
O que quer dizer que, para ele, a caixa não era o quadro de ucna
exposição, mas antes uma espécie de espaço temporal. o recinto
onde seu corpo 1rabalhava. trabalhava-se: cntti.ocbeirava-se. acres-
centava-se, e nrolava-se, exibia-se, descarregava-se: gozava: a caj xa
é um relicário, não de ossos de sai11 os o u de anima is, mas dos
prazeres de Réquichot. Na costa do Pacífico podemos e ncontrar
antigos túmulos peruanos onde o morto está cercado de estatuetas
de terracota: J\ão representam nem seus parentes, nem seus deuses.
mas apenas suas maneiras preferidas de fazer amor: o que a morte
leva não são seus bens, como em tantas outras religiões, mas os
vestígios de seu prazer.

A língua

Em cenas colagens (por volta de 1960), focinhos. goelas, línguas


de animais são muito freqüentes: angúst ia respirac6ria, diz um
·crícico. Não. a língua é a linguagem: não a palavra civilizada, pois'

190
E11soias soóre fotrr;rajia. ai1ema.
pi11/ura. lealme mtíska. Do 111es1110
autor de A CÃMARA CLARA.
... ..... ...• ... ... ... .... .... ...... ... .... ... .... ..... .... ...

"Parece-me que há três níveis de sentido a distinguir.


Um nível informativo; este é o nível da comunicação. Um
nível simb6lico, e este segundo nível, em seu conjunto, é o
da significação. Étudo? Não,. Leio e sou tomado por um
evidente, errático e teimoso terceiro sentido. Desconheço
seu significado, pelo menos não consigo dar-lhe um nome;
este terceiro nível é o da significância.
O sentido simbólico impõe-se a meu espírito por uma
dupla determinação: ele é intencional (é o que quis dizer
o autor) e é tomado de uma espécie de léxico geral, comum,
dos símbolos; éum sentido que vai àminha frente. Proponho
denominar este signo completo o sentido óbvio. Quanto ao
outro sentido, o terceiro, aquele que é' demais ', que se apre-
senta como um suplemento que minha intelecção não con-
segue absorver bem, simultaneamente teimoso e fugidio,
eu proponho chamá-lo o sentido obtuso."

Ro!n11d Bnrthes
N.Cham. 840-4 B28So
Autor: Barthes, Roland,
Título: O óbvio e o obtuso : ensaios críticos m.
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