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RESENHA

Referência:

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
11ª ed. (Debates; 115). Capítulos 1-12, p. 29-218.
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Primeiramente publicada em 1962, uma das mais famosas obras de Thomas S. Kuhn, A
Estrutura das Revoluções Científicas ainda se mantém extremamente atual em termos de
discussões epistemológicas e estruturais da constituição das ciências. Epistemólogo, Kuhn
ingressou na academia como físico teórico, porém, mais tarde, enveredou-se à história da
ciência e à filosofia. Ao longo de investigações sobre teorias científicas, sob perspectiva
historiográfica, Kuhn percebeu que a concepção de ciência tradicional não era compatível ao
modo pelo qual a ciência realmente nasce e se desenvolve. Essa questão o conduziu à filosofia
da ciência e, logo, à concepção da mencionada obra, na qual propõe nova abordagem na
compreensão dos processos científicos e origens das ciências.
A obra divide-se à seguinte maneira: contempla primeiramente prefácio e introdução,
nos quais Kuhn (2011) elucida suas motivações e objetivos, demonstrando as influências no
processo de produção, e cita trabalhos que diretamente o influenciaram; depois, em doze
capítulos, apresenta suas ideias a despeito do processo científico – que serão tratadas a seguir,
nesse trabalho – e desenvolve toda sua argumentação. A partir de 1969, a obra passou a
contemplar também um posfácio, divido em sete partes, no qual o autor busca esclarecer
algumas das ideias por ele expostas que foram criticadas pela academia. Para fins do presente
trabalho, foi utilizado exemplar da edição de 2011, acima mencionado.
Em oposição ao que se pensava sobre as ciências, Kuhn (2011) agrega grande relevância
a sua obra ao afirmar que, além de serem construções humanas, as ciências são também, e
consequentemente, construções sociais e históricas. Para ele, o entendimento completo de uma
ciência deveria considerar sua integridade a partir do contexto da época em que ela se insere, e
não somente a busca por contribuições permanentes de uma ciência mais antiga, em que
normalmente a ciência é apresentada. Ainda que haja períodos de acumulação gradativa de
conhecimento pela comunidade científica, eles são interrompidos ou intercalados por períodos
de questionamentos e revisões – não há, por exemplo, conhecimento científico construído sobre
o que outrora foi considerado mito ou superstição, mas sim um rompimento e a construção de
conhecimentos sobre novas bases. Em geral, para o autor, as conquistas científicas são pautadas
pelo surgimento de paradigmas, ou seja, “realizações científicas universalmente reconhecidas

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que, durante algum tempo, oferecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência” (KUHN, 2011, p. 13).
Um paradigma é precedido por uma fase pré-paradigmática, definida por Kuhn (2011)
como uma espécie de pré-história de uma ciência. Tal período é caracterizado por ampla
divergência entre os pesquisadores sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o devem
ser, a partir de quais princípios teóricos, sob quais regras, métodos e valores, com quais técnicas
e instrumentos, entre outros. Quando há o reconhecimento de uma realização científica
exemplar pelos pesquisadores, a disciplina passa a constituir uma ciência genuína, madura, e
estabelece os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolverá suas atividades
– o paradigma. A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton, a química de Boyle e a teoria
da eletricidade de Franklin são exemplos de realizações dadas por Kuhn (2011) que fizeram
algumas disciplinas adentrarem a fase científica.
Um paradigma compõe-se de diversas partes: ontologia (objeto que constitui a
realidade), princípios teóricos fundamentais (leis gerais que regem o comportamento desse
objeto), princípios teóricos auxiliares (estabelecem a conexão das leis com os fenômenos e com
outras teorias, regras, padrões e valores), exemplos concretos de aplicação da teoria; etc. As
pesquisas que se assentem em um paradigma perpassam por dois estágios. O primeiro é
aparentemente estável e é denominado ciência normal, “baseada em uma ou mais realizações
científicas passadas [...] reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica
específica” (KUHN, 2011, p. 29). É a ciência determinada segundo as regras e modelos de um
paradigma ou de uma tradição de pesquisa científica; neste estágio, o trabalho dos cientistas é
basicamente esclarecer e elucidar conceitos fundamentais de maneira acrítica e doutrinária.
A ciência normal é, ao mesmo tempo, produto e produtor de um paradigma. Suas
pesquisas visam ampliar o conhecimento dos fatos significativos ao paradigma e aperfeiçoar a
teoria a partir da observação precisa dos fenômenos, adequando a realidade a teorias e conceitos
aprendidos pelos cientistas na sua formação. Ela é como um quebra-cabeças: a realidade seria
uma porção de peças que, ao serem corretamente unidas, nos daria uma visão real de como a
natureza ou os fenômenos estudados funcionam. Logo, tem-se que a comunidade científica sabe
como é o mundo, e as pesquisas servem para comprovar ou aperfeiçoar esses saberes.
Contudo, a ciência normal não está preocupada em criar novidades, mas em se
especializar naquilo que já está posto pelo paradigma vigente. Ela é uma ciência previsível.
Quem monta um quebra-cabeça, em geral, já conhece o produto final do encaixe das peças.
Enquanto as peças se encaixarem e puderem ser ajustadas, o cientista persiste tenazmente no

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compromisso com o paradigma. Estabelecer paradigmas acelera o curso da ciência e pressupõe
a continuidade entre as pesquisas de uma mesma disciplina, através do estabelecimento de uma
comunidade científica. Por isso, Kuhn (2011) afirma não ser possível ao cientista fazer
observações neutras, puramente científicas, como se acreditava. Sob a égide de princípios
teóricos e regras metodológicas específicas, estabelecidas pelo paradigma, o cientista não
precisa reconstruir a cada momento os fundamentos de seu campo, e pode iniciar sua pesquisa
a partir de princípios básicos já definidos, considerados relevantes pelos que o precederam.
Dessa forma, com o tempo, esses princípios vão perdendo sua capacidade de explicar a
realidade e não mais fornecem respostas satisfatórias às indagações levantadas, a ponto de
gerarem anomalias incontornáveis às formas tradicionais de conceber o processo e o produto
científico. Segue-se o segundo estágio do paradigma: um período de instabilidade, imprevisível
e revolucionário, denominado por Kuhn (2011) como a ciência extraordinária (ou anormal),
na qual o paradigmas entra em crise. É como um quebra-cabeças sem solução: as peças já não
se encaixam. As anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos esforços dos
melhores cientistas e incidem sobre áreas vitais das teorias, até que bases do paradigma já não
sejam sólidas e demandem substituição.
Revisões, rupturas e alianças com outras áreas são frequentes nessa fase, permeada por
investigações extraordinárias que levam pesquisadores em número crescente a buscar
alternativas ao paradigma vigente e revisar os fundamentos da ciência em questão, semelhante
ao que ocorre na fase pré-paradigmática – com a diferença de que, mesmo durante a crise, o
paradigma atual não é abandonado sem que surja outro que o supere. Através de mudanças
conceituais e procedimentais na pesquisa e na ciência, tais esforços acabam levando a “um
novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência” (KUHN, 2011, p.
25). Agrupadas, essas mudanças constituem o que Kuhn (2011) chamou de revolução científica
– abordagem que foi alvo de polêmicas entre os especialistas da área.
De acordo com Kuhn (2011, p. 25), as revoluções científicas são “os complementos
desintegradores da tradição à atividade da ciência normal”. Lideradas por determinado
pesquisador ou grupo de pesquisadores, elas persuadem a comunidade científica a rejeitar uma
teoria já consagrada em favor de outra totalmente nova, mas que se mostra mais aplicável à
realidade atual do desenvolvimento e do debate científico. Em todo o livro, Kuhn (2011) cita
exemplos de Copérnico, Lavoisier, Newton, Einstein, Maxwell, etc., grandes cientistas que
lideram revoluções e contribuíram ao rompimento de antigos paradigmas, após convencer a

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comunidade científica da necessidade e relevância da nova abordagem por eles desenvolvida.
Uma vez aceita, tem-se início uma nova ciência normal e, logo, um ciclo científico/paradigma.
Em suma, para Kuhn (2011), prevalece o esquema (CHIBENI, s.d., adaptado):

fase pré-paradigmática > ciência normal > crise/anomalias > ciência extraordinária >
revolução científica > nova ciência normal > nova crise/anomalias > nova ciência
extraordinária > nova revolução > (...)

Apesar de trazer nova abordagem à filosofia da ciência, o conceito de paradigma


desenvolvido por Kuhn também foi alvo de críticas, principalmente por parte de seu
contemporâneo austríaco Karl Popper (1902-1994). Na obra de Kuhn há 21 significados
diferentes para a palavra “paradigma”. De fato, isso faz com que o conceito seja mais bem
aceito pela comunidade científica, contudo, o torna suscetível a diversas interpretações. Uma
generalização conceitual exagerada pode incutir no problema que Sartori (1970) caracterizou
como conceptual-stretching, da ampliação conceitual resultante de sacrifício denotativo.
Popper, inclusive, acusa Kuhn de relativista. Outro ponto, Popper também direciona críticas
à ciência normal de Kuhn, pois acredita que o pensamento científico busca sempre refutar a si
mesmo e, logo, está em uma revolução permanente. Ademais, se o cientista é crítico por
natureza, a ciência normal não é a essência da atividade científica e o cientista não se apega tão
fortemente ao paradigma (GARCIA, 2012).
Nesse sentido, vale ressaltar a questão dos fatores internos e externos na concepção e
no processo científico, elucidado por Garcia (2012). Os fatores internos são gerados dentro da
própria teoria e os externos, para além dela (fatores sociológicos, psicológicos, etc.). Kuhn
prioriza os externos, ou seja, acredita que questões históricas, sociais e culturais influem sobre
o processo científico. Popper, por sua vez, valoriza os internos e, logo, levanta críticas quanto
à falta de racionalidade e de pensamento crítico dos métodos de Kuhn. Essa dualidade
caracteriza o que ficou conhecido como guerra das ciências: “uma disputa acirrada entre
aqueles que relativizam a autoridade da ciência como conhecimento acerca da natureza e
aqueles que reagem desqualificando tais estudos” (OLIVEIRA & CONDÉ, 2002, p. 143).
Em meados século XX, tem início um movimento entre os membros da academia de
rejeição ao desenvolvimento científico baseado única e exclusivamente em teorizações,
experimentos e argumentações sequentes, que reforçava a necessidade do estudo das
implicações históricas e sociais no processo. Nesse sentido, Kuhn é um divisor de águas,
tecendo críticas ao positivismo através da historiografia da ciência:

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Sua noção de paradigma [...] teria fomentado uma abordagem sócio-
construtivista das ciências, que procura compreender a prática e o
desenvolvimento científico como equivalente ao de qualquer outra instituição
social, isto é, como fruto de negociações e acordos entre grupos. [...] procura-
se entender o sucesso das explicações científicas como vinculado à trama
social, política e institucional na qual tais explicações são produzidas,
mantidas e alteradas (idem, p. 144)

De fato, Kuhn vai contestar a autoridade dos fatos científicos e o papel da argumentação
racional na história da ciência – sobretudo após o final dos anos 1960, quando se engaja em tal
movimento de contestação. Essa perspectiva foi, durante um bom tempo, tida como relativista,
contudo, Kuhn entendia que não era possível fazer uma ciência desvinculada da realidade,
realizada tão somente dentro dos laboratórios. Características como poder, autoridade e
interesse estão presentes em todas as práticas humanas e, logo, também na ciência, todos esses
elementos construídos em prol da organização social. Contudo, diferente do que entendem
muitos críticos, “afirmar que fatos não são descobertos mas construídos não significa que eles
sejam inteiramente construídos em função das negociações, interesses e forças sociais [...], pois
existem resistências naturais exteriores a tais negociações” (idem, p. 149)
Vale ressaltar que argumentos de que a abordagem de Kuhn estaria distanciando os
cientistas de seu comprometimento com a descoberta da verdade são levantados por nomes
como Popper. Para ele, na medida em que dada forma de ver o mundo desafia a convicção de
que a verdade é a meta ideal da atividade científica, a ideia de uma verdade objetiva é posta em
xeque, bem como sua possibilidade de falsificação. Se é possível avaliar um paradigma
somente através dos meios que ele fornece (fatores internos), considerando o contexto histórico
específico em que ele se insere (fatores externos), então as verdades das descobertas científicas
de trata Kuhn seriam relativizadas (GARCIA, 2012) e, por isso, sofrem forte crítica nesse
sentido.
Ademais, através de Denzin e Lincoln, e Clifford Geertz, Garcia (2012) também tece
críticas ao radicalismo de Kuhn quanto aos paradigmas. Kuhn os considera tão opostos uns dos
outros a ponto de se tornarem incomunicáveis e incomparáveis, o que é ainda reforçado pela
presença de fatores externos característicos de um período histórico específico. Nesse sentido,
não haveria qualquer confluência dos paradigmas ou, como chama Geertz, “obscurecimento
dos gêneros”. Nessa perspectiva, Kuhn teria sido incisivo em suas afirmações e desconsiderado
uma sobreposição de paradigmas.
Diversas outros pontos são debatidos a despeito da obra A Estrutura das Revoluções
Científicas, de Thomas S. Kuhn. Entretanto, dada a limitação de espaço da presente resenha,

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considerou-se abordar alguns dos pontos mais relevantes. Apesar das críticas, fica claro que as
teorias trazidas por Kuhn transformaram o pensamento científico no tocante à evolução da
própria ciência e de seus métodos, tanto que continuam relevantes no atual debate metodológico
da historiografia da ciência, mesmo após meio século de sua concepção. De fato, ainda hoje,
sua obra oferece clara contribuição à identificação e entendimento de dilemas que permanecem
sem uma compreensão satisfatória a partir das teorias e arranjos metodológicos vigentes.

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REFERÊNCIAS

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
11ª ed. (Debates; 115). Capítulos 1-12, p. 29-218.
CHIBENI, Silvio Seno. Síntese de “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de Thomas
Kuhn. Departamento de Filosofia, Unicamp. Disponível em: <http://www.unicamp.br/~chibe
ni/textosdidaticos/structure-sintese.htm>. Acesso em 10 mai 2018.

GARCIA, Janaina Pires. Embates teórico-filosóficos entre Thomas Kuhn e Karl Popper:
como pensar a atividade científica hoje. Publicado em 6 nov 2012. Disponível em:
<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/filosofia/0096.html>. Acesso em 10 mai
2018.

OLIVEIRA, Bernado J.; CONDÉ, Mauro L. L.. Thomas Kuhn e a nova historiografia da
ciência. Revista Ensaio, Belo Horizonte, v. 4, n. 2, p. 143-153, dez 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/epec/v4n2/1983-2117-epec-4-02-00143.pdf>. Acesso em 14 mai
2018.

vieiraktl@gmail.com

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