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ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS - THOMAS KUHN -

CAPÍTULO 1

Marcos Rodrigues da Silva

Este texto contém apenas notas de aulas

___________________

Introdução. A análise metacientífica tornou familiar, no período anterior a


Thomas Kuhn, o procedimento filosófico de estabelecer o significado de certos
conceitos que revelariam, de forma inequívoca, o modo como as teorias
científicas se estruturam, se sustentam e se desenvolvem; os proponentes desta
análise – os positivistas lógicos, Karl Popper e seus colaboradores – sustentavam
a crença de que a ciência seria compreendida a partir da investigação dos
elementos centrais das teorias científicas: seus conceitos, suas leis, suas
sentenças de observação, seus termos teóricos, seus termos de observação, sua
fixação de condições de experimentação e observação, as relações lógicas entre
suas leis e as sentenças de observação etc. Sem entrarmos aqui no mérito desta
tradição metacientífica, se faz necessário compreendermos o quê, exatamente,
significa uma novidade na filosofia da ciência de Thomas Kuhn; ou seja, em que
sentido sua abordagem – a abordagem historiográfica – se opõe à uma poderosa
tradição metacientífica iniciada pelos positivistas lógicos e desenvolvida por
Popper? A oposição se situa antes no âmbito formal do que propriamente no
material; isto é, a abordagem kuhniana se apresentará como distinta de suas
predecessoras a partir da escolha de um nível de análise totalmente diferente do
que era tomado por aquelas; pois, se as filosofias da ciência positivista e
popperiana tomavam como núcleo de sua análise os conceitos científicos, leis
científicas etc, isto não será o caso de Kuhn, para quem a ciência deve ser
compreendida em função de outros parâmetros; estes outros parâmetros, por
sua vez, podem ser sintetizados (simplesmente por uma questão de
ordenamento conceitual e metodológico) no conceito metacientífico mais
importante da filosofia da ciência de Kuhn: o conceito de “paradigma”. A
pergunta inicial é: por que a alteração? Por que Kuhn não poderia, mesmo com a
utilização de um novo conceito explicativo, manter o padrão metacientífico
vigente?1 Será que não seria possível uma análise dos mesmos constituintes
fundamentais (conceitos, leis, teorias etc), porém no ambiente de uma análise
que privilegiasse categorias como “paradigma”? Neste texto procurarei responder
a esta pergunta a partir da importância dada por Kuhn a outro conceito
(extremamente relacionado ao conceito de “paradigma”): o conceito de ciência
normal. Na primeira seção argumentarei que a novidade do projeto de Kuhn se
situa exatamente em seu tratamento acerca da ciência normal; no entanto sua
novidade possui algumas conseqüências que, no entender de Popper, gera um
outro problema; assim, tendo por base o artigo “A Ciência Normal e seus
Perigos”, de Karl Popper, tentarei estruturar a crítica de Popper a Kuhn.
1. O significado da ciência normal. O que torna uma pesquisa orientada por
um paradigma diferente de uma pesquisa sem esta mesma orientação? Para
responder a esta pergunta, Kuhn lança mão do conceito de “ciência normal”; a

1
Sobre este ponto, é importante conferirmos o artigo de Lakatos (1979).

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ciência normal seria um período da história de uma determinada ciência no qual
a pesquisa seria baseada em uma (ou mais) realização científica pretérita (cf.
Kuhn 1995:29). No entanto, enunciado desta forma, o conceito ainda parece
demasiadamente vago; posto desta forma, nada nos impediria de considerar a
moderna teoria atômica como “baseada” no atomismo de Demócrito, por
exemplo. A questão é: pesquisa baseada no quê? Prossigamos com o próprio
enunciado de Kuhn: baseado em realizações científicas anteriores; porém,
persiste ainda a dúvida: que realizações seriam estas? Para Kuhn, realizações
que, por algum motivo, monopolizaram os tópicos do domínio em pauta; ou seja,
realizações científicas (e já as denominaremos de “paradigmas”) que
providenciaram as melhores (em relação a suas rivais) ferramentas conceituais
para lidar com certos aspectos da natureza. Vejamos um exemplo: até a década
de quarenta do século passado persistia, na comunidade dos biólogos, a dúvida
acerca do material hereditário fundamental: seriam as proteínas ou o dna? Em
1953, os pesquisadores James Watson e Francis Crick construíram um modelo (o
modelo da dupla-hélice) que propunha que o material genético seria o dna; com
a aceitação do modelo, todas as pesquisas no campo genético foram conduzidas
baseadas no modelo da dupla-hélice.2 Podemos dizer então que a pesquisa
genética (pense-se num exemplo bastante contundente e visível: o projeto
genoma) está baseada numa realização científica passada específica e
determinada (num paradigma). (Na verdade, está baseada em mais de um
paradigma, mas isto não importa agora.) No entanto, compreender a ciência
normal é uma tarefa que exige a articulação de um outro conceito: o conceito de
“pré-ciência”; para dar conta deste conceito prossigamos no nosso exemplo.
Antes da construção do modelo da dupla-hélice, tanto o dna quanto as
proteínas eram candidatos ao papel de agente hereditário fundamental; neste
sentido, qualquer evidência colhida por um partidário de um ou outro seria, por
assim dizer, uma evidência cientificamente válida. Não havia, por parte da
comunidade dos biólogos, o consenso em relação ao agente hereditário
fundamental e por isso seria legítimo, da parte dos pesquisadores da época, a
reivindicação de uma ou outra hipótese (e portanto o direcionamento da
pesquisa para um ou outro lado). Neste período da história da biologia existiria o
que Kuhn põe sob a rubrica “pré-ciência”; neste momento, não existe o consenso
característico que veremos ocorrer na ciência normal e, por ausência deste
consenso nem sempre uma experiência, por exemplo, possui uma receptividade
marcada pela unanimidade (de fato ela não receberá)3. Quando Oswald Avery e

2
Ver Latour (1997:11-36).
3
É interessante percebermos que o eixo central da ciência normal (e, de resto, da própria
metaciência de Kuhn) - o paradigma - já se coloca embrionariamente neste período, por meio das três
características centrais dos candidatos a paradigma: i) a ênfase num conjunto particular de
fenômenos; ii) elaborações ad hoc; iii) o legado dos problemas não resolvidos para as gerações
futuras. Entretanto, se as escolas articulam-se em sua busca ao estatuto de um paradigma, isto não
significa a presença do mesmo, e a razão disto é muito simples, e se resume na existência da
competição estabelecida entre as escolas, o que, de acordo com Kuhn, desqualificaria o período pré-
científico: não há a autoridade científica ditada pelo paradigma, o que significa que os esforços dos
pesquisadores são dispendidos de forma não convergente. Um fenômeno salientado pela escola A
pode ser completamente estranho à moldura ontológica da escola B; da mesma forma, um
instrumento utilizado pela escola B talvez fosse descartado pela metodologia empregada pela escola
A; em função destas divergências, as pesquisas efetuadas pelos grupos não se afirmam como
conhecimento científico, característica esta reservada às realizações vigentes através do reinado da
ciência normal.
Kuhn, no Postscript de 1969, aponta para a possibilidade desta leitura, que enfatiza a presença de
elementos configuradores do paradigma já no período de pré-ciência. Giere (1999:35) chega a falar
deste período como “multiparadigmático”. Para von Eckardt (1993:353), “(...) Kuhn descreve o que
une membros de uma ‘escola’ durante os períodos de ciência imatura de um modo muito similar ao
por ele descrito como o que une uma comunidade de pesquisa durante os períodos de ciência

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seus colaboradores, em 1944, apresentam à comunidade científica os resultados
de um experimento que comprovava que o dna era o agente da transformação
bacteriana4 (e, por isso, agente hereditário fundamental5), nem todos os biólogos
se convencem da importância deste experimento; e por que não o fazem? Pela
simples razão de que, deslocado de uma teoria mais ampla, o experimento só
fazia sentido aos que estavam previamente convencidos (ou no mínimo que
tinham alguma suspeita) do papel do dna para o problema em questão; o
problema é que antes de 1953 não havia esta teoria mais ampla (que se tornaria
o paradigma) – a propósito, exatamente a teoria que forneceria o consenso;
portanto neste período, ao contrário do que ocorre desde 1953, não poderíamos
descartar uma teoria que estivesse baseada na pressuposição de que as
proteínas seriam o agente hereditário fundamental; e assim a competição que
existia na pré-ciência deixa de existir quando vigora, na ciência normal, um
paradigma capaz de reunir todos os membros de uma comunidade em sua volta.
De acordo com Karl Popper (1959: cap. 1), instâncias negativas (extraídas
da experiência) de uma teoria são evidências robustas o suficiente para
abandonarmos (inclusive com autoridade lógica) a teoria que até então julgamos
crível; assim, no caso do experimento mencionado, deveríamos abandonar a
hipótese de que as proteínas seriam o agente hereditário fundamental; o
problema, entretanto, é que a hipótese não foi abandonada. De acordo com
Rudolf Carnap (1995: cap. 24), quando se postula a existência de uma certa
entidade – como o dna -, se postulam também regras (as chamadas regras de
correspondência) que conectam estas entidades com a realidade fenomênica;
portanto, se alguém deseja afirmar que o dna é a base da hereditariedade, então
deve haver ao menos uma regra que indique que as experiências de Avery são
válidas não apenas para as bactérias, mas também para organismos
biologicamente mais complexos; porém, esta regra não existia. O que se quer
sugerir, com o que foi exposto acima, é a diferença (e não a superioridade ou
inferioridade) entre a abordagem de Kuhn e as abordagens positivista e
popperiana; se quer mostrar, com esta diferença, que as abordagens positivista
e popperiana não exploram a desconfiança (para dizer o mínimo) da comunidade
científica com relação ao papel do dna antes de 1953; ou seja, para Kuhn,
estabelecido que a história da ciência nos revela o que se passou num
determinado período (quer dizer, estabelecida a confiabilidade das fontes
históricas), segue-se que o conceito de paradigma (e seu associado, o conceito
de ciência normal) é essencial para explicarmos o desenvolvimento de um certo
período histórico (e, com isso, explicarmos o desenvolvimento da própria ciência
que nos ocupa). Portanto mesmo que uma análise de um experimento seja
essencial para a compreensão do desenvolvimento de uma teoria, uma tal

normal”. Mas vale a pena registrar que o consenso não está presente no período pré-científico; sendo
assim, ainda que a menção aos paradigmas já possa ser feita, estes possuiriam um caráter
extremamente regional - o que sem dúvida comprometeria, por definição, seu estatuto de realização
científica aceita. Desta forma, concordo integralmente com Hoyningen-Huene (1993:169), que apoia a
distinção estabelecida por Kuhn entre a normal science e os outros períodos a partir do
estabelecimento do consenso: “A ciência normal é assim simultaneamente distinguida dos outros dois
estágios da ciência, ou formas de prática científica. Por um lado, ela se distingue da forma de prática
científica típica de campos nos quais a condução da pesquisa não tem sido ainda sustentada por
algum consenso universal. (...) A ciência normal é também distinta de fases de fundamental
dissensão dentro de uma ciência em seu estágio maduro, dissensão resultante do colapso de um
consenso prévio universal. Kuhn chama esta forma de prática científica ‘ciência extraordinária’ ou
‘ciência em crise’ “ (Hoyningen-Huene 1993:169).
4
Conferir, sobre isto, o próprio artigo de Avery, MacLeod & McCarty (1979).
5
Para entender a perplexidade acerca da passagem dos experimentos sobre a transformação
bacteriana para a construção de um modelo para os organismos biologicamente mais complexos, ver
McElheny (2003:13).

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análise precisa ser conduzida com o auxílio de certos instrumentos conceituais
desenvolvidos por Kuhn (e que não existiam nas antigas abordagens). Porém, a
sugestão de Kuhn possui certas conseqüências; e nem todos estão de acordo em
assumirmo-las; vejamos um filósofo que não aceita as conseqüências da
proposta de Kuhn.

2. Uma crítica a Kuhn. Karl Popper não acredita que a ciência normal, como
descrita por Kuhn, explique adequadamente o progresso científico; para ele, um
conceito como “ciência normal” é totalmente desnecessário uma vez que a
ciência poderia muito bem ser explicada a partir da lógica da pesquisa científica.
Retomando o exemplo da história da biologia, Popper consideraria irracional o
cientista renitente que não aceitasse a conclusão de que o dna era o agente
hereditário fundamental, considerando a força da evidência experimental
disponível; portanto, por considerar que existe a possibilidade de nem todos os
cientistas aceitarem a força evidencial da base empírica, Kuhn estaria,
perigosamente, abrindo as portas da ciência para o irracionalismo, o
psicologismo etc. Ainda de acordo com Popper, o método crítico da ciência –
exposição de conjecturas (teorias) e teste empírico posterior destas conjecturas
– teria validade atemporal, o que tornaria inócua a divisão de períodos de uma
ciência: pré-ciência, ciência normal etc. E este ponto merece uma consideração.
A pesquisa genética possui uma natureza, a partir de 1953, bastante
diferente da “mesma” pesquisa na década de quarenta por exemplo. Mas isto
não é o caso para um filósofo como Popper; para ele, o método crítico é vigente
antes e depois de 1953, pois a natureza da pesquisa seria rigorosamente a
mesma – uma experiência é uma experiência antes ou depois de 1953; a
interpretação de uma evidência experimental, de acordo com seu método crítico,
não pode ser alterada pelo curso do desenvolvimento de uma teoria6. Portanto
qual o ganho explicativo da introdução de um conceito como “ciência normal”?7
Será que não explicamos o desenvolvimento científico a partir do método
científico? Para Popper, se um paradigma impõe restrições à avaliação da
evidência (avaliação da experiência) – ou seja, se o paradigma impede a
utilização de seu método crítico – então é a própria noção de paradigma que
deve ser abandonada, ao invés de se abandonar o método crítico. Pois
suponhamos que consigamos descobrir, após o estabelecimento do modelo da
dupla-hélice, evidências de que o dna não seja de fato o material hereditário
fundamental; neste caso deveríamos começar a trabalhar numa outra hipótese;
porém, de acordo com Kuhn, isto viola as regras8 da ciência normal9. Mas
vejamos: violar as regras da ciência normal, portanto, é rejeitar a força das
evidências; além disso pretende-se que uma ciência empírica, como a biologia,
seja generosa no trato com a experiência; portanto, que monotonia empírica
seria esta de uma ciência que, pelos critérios de Kuhn, ainda assim se
conservaria empírica?

Conclusão. O objetivo deste texto era mostrar que a filosofia da ciência de Kuhn
se configurou como uma novidade filosófica pelo fato de ter modificado o nível da
análise metacientífica. Em seguida, após termos visto que novidade seria esta,
apresentou-se uma crítica ao procedimento kuhniano. Por fim, a partir desta
crítica deixou-se em aberto o problema de sabermos como – em se aceitando a

6
Sobre este ponto é interessante conferir Popper (1992:24-33).
7
Ronald Giere denomina a teoria de Kuhn “stage theory of science”, pelo fato da divisão da história
de uma teoria em estágios (cf. Giere 1999:34-35).
8
Estou a utilizar o termo “regra” no sentido de senso comum, e não no sentido técnico que Kuhn
utilizará adiante.
9
Para uma crítica à forma atual de condução da pesquisa genética ver Lewontin (1991).

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perspectiva de Kuhn – se operacionaliza a pesquisa na ciência na ciência normal,
sobretudo o fato de como se lida com a evidência.

Referências Bibliográficas
Avery, O., MacLeod, C., McCarty, M. (1979) “Studies on the Chemical Nature of
the Substance Inducing Transformation of Pneumococcal Types” in The Journal
of Experimental Medicine, v. 149. (Originalmente publicado na mesma revista,
v. 79, em 1944.)
Carnap, R. (1995) An Introduction to the Philosophy of Science (ed. Gardner,
M.). New York: Dover.
Eckardt, B. von (1993) What is Cognitive Science? Cambridge: MIT Press.
Giere, R. (1999) Science Without Laws. Chicago: The University of Chicago
Press.
Hoyningen-Huene, P. (1993) Reconstructing Scientific Revolutions. Chicago:
Chicago Press.
Kuhn, T. (1995) A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva.
Lakatos, I. (1979) “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa
Científica” in A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento (org. Lakatos, I.
& Musgrave, A). São Paulo: Cultrix.
Latour, B. (1997) Ciência em Ação. São Paulo:Unesp.
Lewontin, R. (1991) Biology as Ideology. New York: Harper Perennial.
McHelheny, V. (2003) Watson and Dna. Cambridge: Perseus Publishing.
Popper, K. (1959) The Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson.
Popper, K. (1992) O Realismo e o Objetivo da Ciência. Lisboa: Dom Quixote.
Popper. K. (1979) “A Ciência Normal e seus Perigos” in A Crítica e o
Desenvolvimento do Conhecimento (org. Lakatos, I. & Musgrave, A). São
Paulo: Cultrix.

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