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1996
CADERNO CATARINENSE
SUMÁRIO
DE ENSINO DE FÍSICA
- A EPISTEMOLOGIA DE KUHN
Fernanda Ostermann .......................................................................................... 184
Demétrio Delizoicov
Depto. Metodologia de Ensino/UFSC
183 Editorial
A EPISTEMOLOGIA DE KUHN
Fernanda Ostermann
Instituto de Física, UFRGS
Porto Alegre Rs
Resumo
I. Introdução
185 Ostermann, F.
A seguir, discutiremos os conceitos centrais da teoria de Kuhn apresentados
na Fig. 1, mais detalhadamente.
II. Paradigma
187 Ostermann, F.
Uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire também um
critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, podem ser
considerados como dotados de uma solução possível. Os problemas - tipo quebra-
cabeça - são os únicos que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus
membros a resolver (Kuhn, 1978). Uma das razões pelas quais a ciência normal parece
progredir tão rapidamente é a de que seus praticantes se concentram em problemas que
somente a sua falta de habilidade pode impedir de resolver.
A imagem de ciência normal, concebida por Kuhn, é a de uma atividade
extremamente conservadora, na qual há uma adesão estrita e dogmática a um paradigma
(Zylbersztajn, 1991). Mas essa rigidez da ciência normal é, para Kuhn, condição
necessária para o progresso científico. Para ele, somente quando os cientistas estão
livres de analisar criticamente seus fundamentos teóricos, conceituais, metodológicos,
instrumentais que utilizam é que podem concentrar esforços nos problemas de pesquisa
enfrentados por sua área. Ao debater um possível critério de demarcação (critério que
distinguiria a ciência da pseudociência ou metafísica) com Popper, Kuhn (1979) coloca
que a ciência se diferencia de outras atividades por possuir um período de ciência
normal , no qual haveria um monismo teórico (existência de um único paradigma).
Segundo Kuhn (1979):
É precisamente o abandono do discurso crítico que
assinala a transição para uma ciência .
Alguns exemplos de ciência normal apresentados por Kuhn (1978) são: a
astronomia durante a Idade Média (paradigma ptolomaico); a mecânica nos séculos
XVIII e XIX (paradigma newtoniano); a ótica no século XIX (paradigma ondulatório);
a Teoria da Relatividade no século XX (paradigma relativístico).
Kuhn (1978) classifica ainda os problemas que constituem a ciência normal
em três tipos:
3. Articulação da teoria
Esta classe de problema na ciência normal é considerada por Kuhn (1978)
como a mais importante de todas. Consiste no trabalho empreendido para articular a
teoria do paradigma, resolvendo algumas de suas ambigüidades e permitindo a solução
de problemas até então não resolvidos. Algumas das experiências que visam à
articulação são orientadas para a determinação de constantes físicas. A determinação da
constante da gravitação universal (G) por Cavendish, na última década do século XVIII,
é um exemplo de articulação do paradigma newtoniano. Contudo, os esforços para
articular um paradigma não estão restritos à determinação de constantes universais.
Podem também visar a leis quantitativas: a Lei de Coulomb sobre a atração elétrica é
um exemplo. Existe, ainda, uma terceira espécie de experiência que tem o objetivo de
articular um paradigma. Freqüentemente, um paradigma que foi desenvolvido para um
determinado conjunto de problemas é ambíguo na sua aplicação a outros fenômenos
estreitamente relacionados. Com isso, investe-se na reformulação de teorias,
adapatando-as à nova área de interesse. Este trabalho leva a outras versões, fisicamente
equivalentes, mas mais coerentes do ponto de vista lógico e/ou mais satisfatórias
esteticamente. Um exemplo desta atividade, é a formulação analítica da mecânica
189 Ostermann, F.
clássica ou os trabalhos de Euler, Lagrage, Laplace e Gauss que visavam aperfeiçoar a
adequação entre o paradigma de Newton e a observação celeste (Kuhn, 1978).
191 Ostermann, F.
Por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre
paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da lógica e
de experiências neutras. Por ter esse caráter, ela não é e não pode ser determinada
simplesmente pelos procedimentos de avaliação característicos da ciência normal, pois
esses dependem parcialmente de um paradigma determinado e esse paradigma, por sua
vez, está em questão. Quando os cientistas participam de um debate sobre a escolha de
um paradigma, seu papel é necessariamente circular. Cada grupo utiliza seu próprio
paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma. Se houvesse apenas um
conjunto de problemas científicos, um único mundo no qual ocupar-se deles e um único
conjunto de padrões científicos para sua solução, a competição entre paradigmas
poderia ser resolvida de forma rotineira, por exemplo, contando-se o número de
problemas resolvidos por cada um deles. Mas, na realidade, tais condições nunca são
satisfeitas completamente. Aqueles que propõem os paradigmas em competição estão
sempre em desentendimento, mesmo que em pequena escala (Kuhn, 1978). Como,
então, são os cientistas levados a realizar a revolução?
Embora, algumas vezes, seja necessário uma geração para que a revolução
se realize, as comunidades científicas seguidamente têm sido convertidas a novos
paradigmas. Alguns cientistas, especialmente os mais velhos e mais experientes,
resistem indefinidamente, mas a maioria deles pode ser convertida. Ocorrerão algumas
conversões de cada vez, até que, morrendo os últimos opositores, todos os membros da
profissão passarão a orientar-se por um único - mas, agora, diferente paradigma.1
Assim, para Kuhn (1978), a natureza do argumento científico envolve a
persuasão e não a prova. Cientistas abraçam um paradigma por toda uma sorte de
razões que, em geral, se encontram inteiramente fora da esfera da ciência.
Kuhn acredita que o cientista que adota um novo paradigma precisa ter fé
na sua capacidade de resolver os grandes problemas com que se defronta, ciente apenas
de que o paradigma anterior fracassou em alguns deles. A crise instaurada pelo antigo
paradigma é condição necessária mas não suficiente para que ocorra a conversão. É
igualmente necessária a existência de fé no candidato a paradigma escolhido, embora
não precise ser, nem racional, nem correta. Em alguns casos, somente considerações
estéticas pessoais e inarticuladas fazem alguns cientistas se converterem ao novo
paradigma.
193 Ostermann, F.
Segundo seus críticos, a filosofia kuhniana tende a um relativismo. Uma
vez concebido o paralelismo que existe na tese da incomensurabilidade, é possível
concluir que ambos os paradigmas podem estar certos, ou seja, não se pode provar que
um deles está mais próximo da verdade .
KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1978.
____. Reflexões sobre os meus críticos. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. A crítica
e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo, Cultrix, 1979.
195 Ostermann, F.
MASTERMAN, M. A natureza de um paradigma. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE,
A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo, Cultrix, 1979.
I. Introdução
No dia 17 de setembro de 1994, aos noventa e dois anos de idade, faleceu
na Inglaterra o célebre filósofo Karl Popper. Austríaco de nascimento, imigrou nos anos
30, fugindo do nazismo; inicialmente esteve na Nova Zelândia, estabelecendo-se depois
na Inglaterra. Na London School of Economics foi professor de Filosofia da Ciência;
em 1964 recebeu o título de cavaleiro (Sir).
A filosofia de Popper, o racionalismo crítico, ocupa-se primordialmente de
questões relativas à teoria do conhecimento, à epistemologia. Ainda na Áustria, em
1934, foi publicado o seu primeiro livro, Logic der Forschung ( A Lógica da Pesquisa
Científica (Popper, 1985), na versão brasileira), que se constituiu em uma crítica ao
positivismo lógico do Círculo de Viena, defendendo a concepção de que todo o
conhecimento é falível e corrigível, virtualmente provisório.
O pensamento de Popper também abrangeu a esfera da política e da
sociedade. Em A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Popper, 1987b e 1987c) e A
miséria do Historicismo (Popper, 1980b) transpõe seus ensinamentos epistemológicos
para o campo da ação política racional. Como todo o nosso conhecimento é imperfeito,
estando sempre sujeito a revisões críticas, qualquer mudança na sociedade deverá
V. O critério de demarcação
Como é que se pode distinguir as teorias das ciências empíricas das
especulações pseudocientíficas ou metafísicas? (Popper, 1987a, p. 177). Este é um dos
problemas da filosofia da ciência para a qual Popper propôs uma solução.
A solução mais aceita tinha estreita relação com a questão do método: a
ciência se caracterizava pela sua base na observação e pelo método indutivo, enquanto
VIII. Conclusão
Podemos sintetizar os aspectos da epistemologia de Karl Popper abordados
nesse trabalho em algumas proposições:
a) A concepção segundo a qual o conhecimento científico é descoberto em
conjuntos de dados empíricos (observações/experimentações neutras, livres de
pressupostos) - método indutivo - é falsa.
b) Não existe observação neutra, livre de pressupostos; todo o
conhecimento está impregnado de teoria.
c) O conhecimento científico é criado, inventado, construído com objetivo
de descrever, compreender e agir sobre a realidade.
d) As teorias científicas não podem ser demonstradas como verdadeiras;
são conjecturas, virtualmente provisórias, sujeitas à reformulações, à reconstruções.
e) Todo o conhecimento é modificação de algum conhecimento anterior.
Deixamos para outro trabalho (vide neste mesmo exemplar do CCEF), no
qual apresentamos a epistemologia de Imre Lakatos - também um racionalista crítico -
as implicações dessas idéias para o ensino de ciências.
Resumo
I. Introdução
A epistemologia de Imre Lakatos (1922-1974) constitui-se em uma das
importantes reflexões na filosofia da ciência no século XX, interrompida bruscamente
com a sua morte prematura em 1974. Quando tinha quase quarenta anos de idade
Lakatos, saindo da Hungria por motivos políticos, entrou em contato com a filosofia de
Karl Popper:
"Minha dívida pessoal com ele é imensa: mudou minha vida mais
que nenhuma outra pessoa (...). Sua filosofia me ajudou a romper,
de forma definitiva, com a perspectiva hegeliana que eu havia
retido durante quase vinte anos, e, o que é ainda mais importante,
me forneceu um conjunto muito fértil de problemas, um autêntico
programa de pesquisa" (Lakatos, 1989; p.180).
1 - Quando alguma conseqüência lógica de um conjunto de hipóteses é dada como falsa, a lógica
dedutiva permite afiançar a falsidade de alguma(s) da(s) hipótese(s); essa é a "retransmissão da
falsidade" (para maiores detalhes, consultar o trabalho sobre a filosofia da Karl Popper neste
mesmo exemplar do CCEF).
3 - A suposição de que um conjunto de pontos em um plano é compatível com uma única curva é
falsa. Existem infinitas curvas que descrevem os resultados experimentais com o grau de
aproximação que se desejar. Para maiores detalhes, consultar Hempel (1981), Chomski e Fodor
(1987), Pinent e Silveira (1992).
Resumo
* O presente texto foi publicado, sob a forma de artigo, em Epistéme: Filosofia e História das
Ciências em Revista. Porto Alegre, v.1, n.2, 1996, p.61-78.
I. Anarquismo epistemológico
Feitas as considerações acima, comecemos esclarecendo o que cabe
entender por anarquismo epistemológico . Inicialmente convém lembrar que
anarquismo significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de
ordem, do que oposição a toda e qualquer organização. Na sua tradução metodológica,
não significa, portanto, ser contra todo e qualquer procedimento metodológico, mas
1 Assim, em que pesem as críticas de Popper ao indutivismo, podemos ver que compartilha o
empirismo deste, ao tomar a experiência como "o" árbitro para a aceitabilidade (via "falsea-
mento") de nossas teorias. Desse modo, podemos entender que Feyerabend chame o procedi-
mento que se oponha àquelas regras e aos preceitos do próprio racionalismo crítico de contra-
indução.
2 "E como regras e padrões são usualmente tomados como constituintes da 'racionalidade', infiro
que episódios famosos na ciência, admirados por cientistas, filósofos do mesmo modo que por
pessoas comuns, não foram 'racionais', não ocorreram de uma maneira 'racional', a 'razão' não foi
a força motora por detrás dos mesmos e eles não foram julgados 'racionalmente'" (Feyerabend:
1978, p.14).
3 Feyerabend explicitamente critica seu enfoque estático:"a idéia de um método estático ou de
uma teoria estática da racionalidade funda-se numa concepção demasiado ingênua do homem e
de sua circunstância social". (Feyerabend: 1977, p.34).
4 Não cabe aqui a crítica de que este princípio seria auto-destrutivo. Entendido como um meta-
princípio, poderia compreender sob si o princípio nem tudo vale como princípio de ordem infe-
rior, atinente a um particular contexto, enquanto tudo vale seria o único princípio que se aplicaria
a todos os contextos. Cabe igualmente ressaltar que a análise da ciência feita por Feyerabend,
com a crítica que elabora contra o "racionalismo", não depende da prévia aceitação desse
princípio ou de qualquer princípio que fosse universalmente válido, não pretendendo uma nova
6 Procedimento coerente com sua recusa a oferecer uma nova teoria da ciência.
Pois,
7 Lakatos concorda com a crítica de Popper, segundo a qual nenhuma teoria pode ser verificável,
mas vai além, criticando ao próprio Popper - contra Popper, defende o caráter histórico, retro-
spectivo dos chamados "experimentos cruciais" e a impossibilidade de refutar conclusivamente
qualquer conhecimento ou teoria.
8 Em uma nota de pé de página, defendendo-se de crítica que lhe é feita por Kuhn e Feyerabend,
Lakatos apela à necessidade - de resto presente, segundo ele, em todas as metodologias - de
valermo-nos do "senso comum" (isto é, de juízos de casos particulares que não se fazem segundo
regras mecânicas, mas que apenas seguem princípios que deixam algum Spielraum)" para aplica-
ção das regras (Lakatos: 1987a, p.36-37, nota 58).
9 Revestem de significação própria a paráfrase de Kant feita por Lakatos: "A Filosofia da Ciência
sem a história da ciência é vazia; a História da Ciência sem a filosofia da ciência é cega"(Lakatos:
1987a, p.11). Feyerabend refere-se a esse mútuo remetimento da reflexão filosófica e do material
histórico em termos da necessária combinação do argumento abstrato com o malho da história:
"O argumento abstrato é imprescindível porque imprime sentido à nossa reflexão. A história,
entretanto, é também imprescindível, ao menos no atual estágio da filosofia, porque dá força a
nossos argumentos" (Feyerabend: 1977, p.244).
10 "Na história da ciência, padrões de justificação proíbem, freqüentes vezes, formas de agir
provocadas por condições psicológicas, sócio-econômico-políticas e outras de caráter 'externo' - e
a ciência tão-somente sobrevive porque se permite que essas formas de agir prevaleçam" (Fey-
erabend: 1977, p.260).
11 Esse é um dos traços mais característicos da análise de Feyerabend e que o aproxima das
considerações de Thomas Kuhn (1979), parecendo afastá-lo de Lakatos.
12 Não se colocaria, por exemplo, para uma interpretação "instrumentalista", à luz da qual as
teorias são instrumentos para fazer previsões acerca do comportamento de fenômenos (supondo
uma linguagem comum de observação).
13 Sob esse enfoque ontológico, partilha a concepção de Whorff acerca da linguagem, como
"modeladora de eventos", trazendo classificações cosmológicas implícitas.
14 Feyerabend, em nota de pé-de-página (Feyerabend: 1981, p.154), diz que Kuhn ocasional-
mente descuida desse ponto.
15 Feyerabend refere-se igualmente à aprendizagem da língua materna pela criança, ou, mesmo,
ao seu aprendizado de outras línguas, que não se processa via "tradução", e pergunta-se, então,
porque os adultos também não poderiam aprender ou penetrar em novas teorias científicas sem
supor sua tradução ("comensuração") com outras teorias já conhecidas.
16 Essas condições sob as quais cabe falar de incomensurabilidade devem ser consideradas
quando essa questão é confrontada com a seguinte objeção: como falar da própria incomensura-
bilidade de duas teorias, caso ela exista, sem comensurá-las? A esse primeiro ataque, cabe lem-
brar as ressalvas de Feyerabend e ter em mente que não podemos dizer que diferentes teorias
sejam, por essa única razão, incomensuráveis, e que o sejam sob qualquer aspecto. Devem ser
teorias compreensivas, estabelecendo princípios ontológicos conflitantes, e ser interpretadas de
uma determinada maneira, realisticamente, atentando à constituição ontológica. Mesmo assim,
ainda podem ser comparadas, com os alcances e limites de uma tradução lingüística, como a de
um idioma nativo numa língua européia: "O que não quer dizer que essa língua, tal como falada,
independentemente da comparação, seja comensurável com o idioma nativo. Significará que as
línguas podem orientar-se em muitas direções e que a compreensão independe de qualquer par-
ticular conjunto de regras" (Feyerabend: 1977, p.376). Feyerabend (1979) e Kuhn (1979) exami-
nam detidamente a questão da incomensurabilidade em termos de "tradução de lingua-
gens".Assim, podemos situar-nos num patamar "fora" das teorias envolvidas e, procedida a inves-
tigação semântica nos termos do método antropológico preconizado, examinarmos sua comen-
surabilidade / incomensurabilidade. Essa é uma questão que se coloca quando nosso objeto é a
análise de teorias constituídas.
17 A sociedade moderna é 'copernicana', mas não porque a doutrina de Copérnico haja sido
posta em causa {...}; é 'copernicana' porque os cientistas são copernicanos e porque lhes aceita-
mos a cosmologia tão acriticamente quanto, no passado, se aceitou a cosmologia de bispos e
cardeais (Feyerabend, 1977 : p.456.)
18 No fundo, pouquíssima diferença há entre o processo que leva ao anúncio de uma nova lei
científica e o processo de promulgação de uma nova lei jurídica: informa-se todos os cidadãos ou
os imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de 'fatos' e preconceitos, discute-se o assunto e,
finalmete, vota-se (Feyerabend: 1977, p.457.)
KANT, I. Crítica da Razão Pura (1ª edição). São Paulo: Abril Cultural, 1974.
________. Reflexões sobre os meus críticos. In: Lakatos, I & Musgrave, A. A crítica e
o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1979.
________. Notas sobre Lakatos. In: Lakatos, I. Historia de las ciencias y sus recons-
trucciones racionales. Madrid: Tecnos, 1987.
________. Respuestas a las criticas. In: Historia de las ciencias y sus reconstrucciones
racionales. Madrid : Tecnos, 1987b.
Resumo
I - Introdução
Trata-se de uma tarefa extremamente ousada analisar a obra epistemológica
de Gaston Bachelard nos limites de um artigo. Para tanto, somos obrigados a escolher
um enfoque, uma linha de abordagem, que privilegia alguns conceitos e análises, em
detrimento de outros, não necessariamente menos significativos no conjunto da obra.
Corremos o risco de retratar a epistemologia bachelardiana como um sistema acabado,
quando sua marca central é exatamente o eterno recomeçar, a nos exigir uma constante
vigilância epistemológica. Por outro lado, a importância de tal propósito é considerável,
uma vez que, infelizmente, o conhecimento no Brasil sobre os trabalhos deste filósofo é
reduzido, não apenas entre professores e pesquisadores de ciências físicas, mas também
entre pesquisadores de ciências sociais. A despeito da atualidade de suas idéias, do
caráter polêmico que nos inspiram e da versatilidade de sua forma de pensar, os
educadores em ciências sofrem maior influência de autores associados ao positivismo
anglo-saxônico, corrente de pensamento de certa forma ainda hegemônica.
Muito desse desconhecimento certamente se deve ao fato de sua extensa
obra apenas recentemente haver sido traduzida, ainda que não completamente, para o
português. Por sua vez, o nem sempre bem compreendido caráter dual dos trabalhos de
2 - A expressão filosofia das ciências, em função de sua origem associada aos trabalhos de
Comte, tende a ser compreendida como expressão de uma problemática positivista, enquanto a
expressão epistemologia tende a ser associada a uma problemática não-positivista. Por isso, no
decorrer deste artigo, procuramos utilizar o termo epistemologia para as referências a Bachelard,
deixando a expressão filosofia das ciências para expressar os autores da matriz anglo-saxônica.
Para maiores desenvolvimentos sobre a origem dessas expressões diversas, ver Fichant (1995:
113-116).
3 - Estamos levando em conta, para essa afirmação, os trabalhos mais divulgados de Karl Popper,
não incluindo sua mais recente obra, na qual parece redimensionar aspectos de suas primeiras
obras.
4 - Bachelard, além de questionar os princípios dos filósofos que se baseiam na ciência do século
XIX - Descartes, Kant e Comte -, discute os pressupostos de seus contemporâneos, notadamente
Meyerson, Sartre, Freud, Bergson e Brunschvicg.
5 - Quanto à Biologia, Bachelard não viveu o suficiente para assistir às rupturas empreendidas
nesta área a partir do advento do enfoque molecular. O campo biológico era para ele mais
limitado do que a Física e a Química, justamente por ser o campo da reprodução e não da criação.
Será em Canguilhem, discípulo de Bachelard, que os biólogos encontrarão interpretações mais
pertinentes sobre as ciências da vida contemporaneamente.
6 - Para uma análise mais aprofundada sobre as contribuições de Bachelard para o ensino de
ciências, ver Lopes (1993a).
Contudo, relacionar ciência e verdade não implica dizer que todo discurso
científico é necessariamente verdadeiro. A ciência é um discurso verdadeiro sob fundo
de erro (Bachelard, 1986: 48); os erros compõem um magma desorganizado e as
verdades se organizam em um sistema racional. Em outras palavras, a ciência é o
processo de produção da verdade, é o trabalho dos cientistas - os trabalhadores da prova
- no processo de reorganização da experiência em um esquema racional.
Desta maneira, a ciência não reproduz uma verdade, seja ela a verdade dos
fatos ou das faculdades do conhecimento. Portanto, não existem critérios universais ou
exteriores para julgar a verdade de uma ciência. Cada ciência produz sua verdade e
organiza os critérios de análise da veracidade de um conhecimento. Mas a lógica da
verdade atual da ciência não é a lógica da verdade de sempre: as verdades são sempre
provisórias.
uma filosofia que procura explicar a natureza, a partir da inserção do homem nessa natureza: seus
propósitos e seus valores. Nesse sentido, as teorias de Dalton não são conseqüência das teorias de
Demócrito. Diferentemente, Dalton tinha por objetivo construir um modelo de átomo capaz de
explicar as relações de massa nas transformações químicas. Para maiores desenvolvimentos dessa
questão, ver Lopes (1990: 23, 29-31).
11 - Nessa vertente incluímos não apenas Comte, mas os positivistas lógicos de uma forma geral.
Quanto a Popper, precisamos ser mais cuidadosos na sua interpretação. Em suas obras mais
famosas, ainda que Popper questione os pressupostos do positivismo lógico e forneça
contribuições importantes para a filosofia das ciências, com sua crítica ao verificacionismo, não
avança na concepção filosófica de real. Para ele, as verdades científicas são provisórias porque a
qualquer momento podem ser abandonadas em função da experiência. Contudo, autores como
Japiassu buscam uma aproximação entre Popper e Bachelard, enquanto outros, com os quais
concordamos, colocam Popper no campo do positivismo, portanto em campo diverso ao de
Bachelard. Para maiores esclarecimentos, sugerimos confrontar: Japiassu (1991: 83-110) e
Mendonça (1984).
Por que nem tudo é real da mesma maneira ? Por que a existência não é
uma função monótona ? Porque há diferentes razões constitutivas de diferentes níveis
de realidade. A realidade de um objeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado,
que possui lugar e forma definidos, não é do mesmo nível de realidade de uma
molécula, a qual constitui e é constituída pela teoria molecular a ela subjacente.
Todavia, é necessário deixar claro que não se trata de uma distinção entre realidade e
idealização. Moléculas, átomos e elétrons não são idéias que podem ser utilizadas
enquanto os fatos assim o permitem, ou ainda abstrações racionais com as quais
É preciso haver outros conceitos além dos conceitos ' visuais' para
montar uma técnica do agir-cientificamente-no-mundo e para
promover a existência, mediante uma fenomenotécnica, fenômenos
que não estão naturalmente-na-natureza. Só por uma desrealização
da experiência comum se pode atingir um realismo da técnica
científica. (Bachelard, 1986: 137, grifos nossos)
sonhos apenas como reflexos de desejos inconscientes. Na psicanálise, as imagens são símbolos
que mascaram a realidade - daí ser necessária a metodologia da busca de seus antecedentes. Não
há espaço para a imagem por ela mesma, imaginante, capaz de ir além da realidade. Para maiores
desenvolvimentos, ver Pessanha (1994).
VI - Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. La formation de l'ésprit scientifique. Paris: J. Vrin, 1947.
Tradução por Estela dos Santos Abreu. A formação do espírito científico. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1996.
CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). O
olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 31-63.
JAPIASSU, Hilton. Para ler Bachelard. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
OLIVEIRA, Renato José. Ensino: o elo mais fraco da cadeia científica.. Dissertação
de Mestrado. Rio de Janeiro, IESAE/FGV, 1990.
PESSANHA, José Américo Motta. Cultura como ruptura. In: BORNHEIM, Gerd. et
al. Tradição / Contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / Funarte, 1987.