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Cad.Cat.Ens.Fís. Florianópolis vol. 13 n. 3 p. 178-276 dez.

1996
CADERNO CATARINENSE
SUMÁRIO
DE ENSINO DE FÍSICA

- EDITORIAL ....................................................................................................... 182

- A EPISTEMOLOGIA DE KUHN
Fernanda Ostermann .......................................................................................... 184

- A FILOSOFIA DE KARL POPPER: O RACIONALISMO CRÍTICO


Fernando Lang da Silveira ................................................................................. 197

- A METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA: A EPISTEMO-


LOGIA DE IMRE LAKATOS
Fernando Lang da Silveira ................................................................................. 219

- FEYRABEND E O PLURALISMO METODOLÓGICO


Ana Carolina Krebs Pereira Regner .................................................................. 231

- BACHELARD: O FILÓSOFO DA DESILUSÃO


Alice Ribeiro Casimiro Lopes ............................................................................. 248
EDITORIAL

Sobre a produção do conhecimento científico

Se há a certeza que o domínio das teorias físicas, enquanto produtos da


Ciência, é condição necessária para a atuação do professor de física, cada vez mais tem
sido enfatizado que esta condição não é suficiente para a docência. O professor precisa
também conhecer o processo de produção das teorias, enquanto um dos seus
instrumentos para o trabalho educativo.
Por outro lado se as teorias físicas precisam ser apropriadas pelos
estudantes para uma interpretação científica dos fenômenos naturais, isto não significa
que o ensino de física, especialmente no segundo grau, se reduza à simples aplicação
de algorítmos matemáticos que relacionam as grandezas físicas que, de modo geral, são
utilizados para a solução de problemas. Também para estes estudantes, sobretudo
aqueles que não serão cientistas e os que sequer farão cursos universitários, a
abordagem do processo de produção do conhecimento científico tem sido apontada
como de fundamental importância para compreender a Ciência, e a Física
particularmente, como uma atividade humana historicamente contextualizada.
São múltiplas as dimensões a serem consideradas para uma compreensão
deste processo. Elas incluem, entre outros aspectos, os financiamentos para a pesquisa,
definidos como parte de políticas estratégicas governamentais; a formação e
constituição da comunidade científica; a prática cotidiana de obtenção de dados
empíricos, de suas interpretações, bem como as formulações teóricas; a publicação e
aceitação da produção elaborada. No que diz respeito à relação estabelecida, neste
contexto da produção, entre o cientista, enquanto sujeito do conhecimento, com seus
objetos de conhecimento, temos a Epistemologia que auxilia a compreender esta
dimensão do processo, qual seja a da relação entre sujeito e objeto na constituição do
conhecimento.
Pois foi com a intenção de contribuir para a divulgação e reflexão
epistemológica contemporânea que este número do Caderno foi organizado. Os
professores de Física encontrarão as posições de cinco renomados pensadores que,
muito embora apresentem distintas interpretrações da dimensão epistemológica do
processo, estão de acordo quando se trata de negar uma concepção de Ciência que
supõe uma produção de conhecimento linear, cumulativa, obtida através de um método

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cientifico, com o qual se descobre a realidade dos fenômenos a partir única e
exclusivamente deles próprios.
É nesta perspectiva anti-empirista que Thomas Kuhn, Karl Popper, Imre
Lakatos, Paul Feyerabend e Gaston Bachelard propõem, através de seus respectivos
modelos interpretativos para o ato gnosiológico, uma compreensão epistemológica da
Ciência que algumas vezes tem sido denominada de construtivista. Negando a
supremacia do objeto do conhecimento, caracterísitca da concepção empirista, como
também a do sujeito do conhecimento, característica da concepção idealista, o
pressuposto básico por eles compartilhado é que a ocorrência do conhecimento é fruto
da interação não neutra entre sujeito-objeto.
Se forem devidamente consideradas as proposições destes autores, pelo
menos duas interpretações muito difundidas na prática educativa sofrem profundas
alterações. A primeira diz respeito ao status do conhecimento científico: ele passa a ser
concebido como uma verdade histórica e não mais como a verdade extraída dos
fatos. Portanto, desmistifica a visão de Ciência pronta, acabada e imutável. A segunda é
que a apropriação de conhecimentos científicos pelos alunos não ocorre por simples
transmissão dos conceitos, modelos e teorias, uma vez que esta perspectiva
epistemológica tem como pressuposto a construção de conhecimento também pelo
aluno a partir das suas interações não neutras com objetos de conhecimento. É crescente
a parcela de professores e de pesquisadores em ensino de Física que não mais concebem
os alunos como uma espécie de vácuo cognitivo que só se apropriam de conhecimentos
físicos a partir da fala do professor, do livro e mesmo da atividade experimental, ou
no dizer de Paulo Freire, como se fossem vasilhames vazios nos quais deve haver o
depósito de conteúdos . Estes autores, de distintas maneiras, podem auxiliar - e em
algumas pesquisas vêm sendo utilizados - para a busca de uma melhor compreensão das
construções que fazem os alunos para explicar fenômenos e situações físicas.
Também por isso a leitura destes epistemólogos pode contribuir para a
árdua tarefa educativa do professor de Física.

Demétrio Delizoicov
Depto. Metodologia de Ensino/UFSC

183 Editorial
A EPISTEMOLOGIA DE KUHN

Fernanda Ostermann
Instituto de Física, UFRGS
Porto Alegre Rs

Resumo

Neste trabalho, é apresentada a epistemologia proposta por Kuhn, a


partir de alguns conceitos principais de sua teoria: paradigma, ciência
normal, revolução científica, incomensurabilidade. O modelo kuhniano
encara o desenvolvimento científico como uma seqüência de períodos
de ciência normal, nos quais a comunidade científica adere a um
paradigma. Estes períodos, por sua vez, são interrompidos por
revoluções científicas, marcadas por crises/anomalias no paradigma
dominante, culminando com sua ruptura. A crise é superada quando
surge um novo candidato a paradigma. Ao comparar o antigo e o novo
paradigma, Kuhn defende a tese da incomensurabilidade. Algumas
implicações de suas idéias para o ensino de Ciências são também
discutidas.

I. Introdução

O trabalho de Thomas Kuhn (1977, 1978) é um marco importante na


construção de uma imagem contemporânea de ciência. Suas idéias sobre o
desenvolvimento científico são precursoras - a primeira edição de seu primeiro livro A
estrutura das revoluções científicas é de 1962 - época na qual autores como Lakatos
(1989) e Feyerabend (1989) ainda não haviam publicado suas obras principais, e
Popper (1972) não tinha sido traduzido nos países de língua inglesa.
Ao propor uma nova visão de ciência, Kuhn elabora críticas ao positivismo
lógico na filosofia da ciência e à historiografia tradicional. Em síntese, esta postura
epistemológica superada pelo modelo kuhniano acredita, entre outras coisas, que a
produção do conhecimento científico começa com observação neutra, se dá por
indução, é cumulativa e linear e que o conhecimento científico daí obtido é definitivo.
Ao contrário, Kuhn encara a observação como antecedida por teorias e, portanto, não
neutra (apontando para a inseparabilidade entre observações e pressupostos teóricos),

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acredita que não há justificativa lógica para o método indutivo e reconhece o caráter
construtivo, inventivo e não definitivo do conhecimento. Esta posição, mais tarde,
configurar-se-á como o que existe de consenso entre os filósofos contemporâneos da
ciência. Em verdade, nos dias de hoje, assistimos a um rico e controvertido debate entre
os diferentes modelos de desenvolvimento científico (modelos como o de Popper
(1972), Lakatos (1989), Feyerabend (1989), Toulmin (1972), Laudan (1977), entre
outros), mas, ao mesmo tempo, podemos reconhecer que cada um, a seu modo,
representa uma oposição à postura empirista-indutivista.
Em particular, para Kuhn a ciência segue o seguinte modelo de
desenvolvimento: uma seqüência de períodos de ciência normal, nos quais a
comunidade de pesquisadores adere a um paradigma, interrompidos por revoluções
científicas (ciência extraordinária). Os episódios extraordinários são marcados por
anomalias / crises no paradigma dominante, culminando com sua ruptura.
Um possível esquema para o modelo de ciência kuhniano seria o seguinte:

Fig. Erro! Argumento de opção desconhecido.: O modelo kuhniano

185 Ostermann, F.
A seguir, discutiremos os conceitos centrais da teoria de Kuhn apresentados
na Fig. 1, mais detalhadamente.

II. Paradigma

Certamente, paradigma é o conceito mais fundamental de sua teoria. No


entanto, após a publicação do Estrutura das revoluções científicas , grande polêmica
instalou-se em torno de seu significado. Em 1965, quando é realizado o Seminário
Internacional sobre Filosofia da Ciência em Londres - evento marcante para a
discussão do tema - Kuhn recebe várias críticas.
Masterman (1979), por exemplo, constatou a ambigüidade apresentada pela
palavra paradigma na sua primeira obra: o termo fora utilizado por Kuhn de vinte e
duas maneiras diferentes. Reconhecendo as confusões induzidas pela apresentação
original, Kuhn esclarece seu significado no Posfácio - 1969 (Kuhn, 1978).
O termo paradigma tem um sentido geral e um sentido restrito. O primeiro
foi empregado para designar todo o conjunto de compromissos de pesquisas de uma
comunidade científica (constelação de crenças, valores, técnicas partilhados pelos
membros de uma comunidade determinada). A este sentido, Kuhn aplicou a expressão
matriz disciplinar . Disciplinar porque se refere a uma posse comum aos praticantes
de uma disciplina particular; matriz porque é composta de elementos ordenados de
várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada (Kuhn,
1978, p. 226). Os principais tipos de componentes de uma matriz disciplinar são:
generalizações simbólicas: assemelham-se a leis da natureza. Algumas
vezes, são encontradas sob a forma simbólica. Por exemplo, F=ma; outras vezes, são
expressas em palavras - a uma ação corresponde uma reação igual e contrária .
modelos particulares: são modelos ontológicos ou heurísticos que
fornecem as metáforas e as analogias aceitáveis. Por exemplo, as moléculas de um gás
comportam-se como pequenas bolas de bilhar elásticas movendo-se ao acaso .
valores compartilhados: são valores aos quais os cientistas aderem -
predições devem ser acuradas; predições quantitativas são preferíveis às qualitativas;
qualquer que seja a margem de erro permissível, esta deve ser respeitada regularmente
numa área dada. Existem também valores que devem ser usados para julgar teorias
completas: devem ser simples, dotadas de coerência interna, plausíveis, compatíveis
com outras teorias disseminadas no momento.
exemplares: este último tipo de paradigma refere-se ao sentido restrito
desta palavra ao qual Kuhn atribuiu grande importância. Exemplares são as soluções de
problemas encontrados nos laboratórios, nos exames, no fim dos capítulos dos manuais
científicos, bem como nas publicações periódicas, que ensinam, através de exemplos, os

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estudantes durante sua educação científica. Descobrindo, com ou sem assistência de seu
professor, uma maneira de encarar um novo problema como se fosse um problema que
já encontrou antes, o estudante passaria a dominar o conteúdo cognitivo da ciência que,
segundo Kuhn, estaria não nas regras e teorias, mas antes, nos exemplos compartilhados
fornecidos pelos problemas. Uma ilustração deste ponto de vista é dada por Kuhn
através de uma generalização simbólica - a segunda Lei de Newton - F=ma (Kuhn,
1978, p. 233). Os estudantes aprendem, quando confrontados com uma determinada
situação experimental, a selecionar forças, massas e acelerações relevantes. Isto ocorre
à medida que passam de uma situação problemática a outra e enfrentam o problema de
adaptar a forma F=ma ao tipo de problema: queda livre, pêndulo simples, giroscópio.
Uma vez percebida a semelhança e reconhecida a analogia entre dois ou mais
problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos e aplicá-los
à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado eficácia. A forma F=ma
funciona como instrumento, informando ao futuro cientista que similaridades procurar,
e sinalizando o contexto dentro do qual a situação deve ser examinada. Dessa aplicação
resulta a habilidade para ver a semelhança entre uma variedade de situações, o que faz
com que o estudante passe a conceber as situações problemáticas como um cientista,
encarando-as a partir do mesmo contexto que os outros membros do seu grupo de
especialistas.

III. Ciência normal

Ciência normal é a tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos


limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma, ou seja,
modelar a solução de novos problemas segundo os problemas exemplares . A ciência
normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade,
aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos
(Kuhn, 1978). Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a
articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. A ciência
normal restringe drasticamente a visão do cientista, pois as áreas investigadas são
certamente minúsculas. Mas essas restrições, nascidas da confiança no paradigma,
revelam-se essenciais para o desenvolvimento científico. Kuhn (1978) faz uma metáfora
que relaciona a ciência normal à resolução de quebra-cabeças. Quebra-cabeça é uma
categoria de problemas que servem para testar a engenhosidade ou habilidade do
cientista na resolução de problemas. Para ser classificado como quebra-cabeça, um
problema deve não só possuir uma solução assegurada, mas também obedecer a regras
(ponto de vista estabelecido; concepção prévia) que limitam tanto a natureza das
soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las.

187 Ostermann, F.
Uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire também um
critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, podem ser
considerados como dotados de uma solução possível. Os problemas - tipo quebra-
cabeça - são os únicos que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus
membros a resolver (Kuhn, 1978). Uma das razões pelas quais a ciência normal parece
progredir tão rapidamente é a de que seus praticantes se concentram em problemas que
somente a sua falta de habilidade pode impedir de resolver.
A imagem de ciência normal, concebida por Kuhn, é a de uma atividade
extremamente conservadora, na qual há uma adesão estrita e dogmática a um paradigma
(Zylbersztajn, 1991). Mas essa rigidez da ciência normal é, para Kuhn, condição
necessária para o progresso científico. Para ele, somente quando os cientistas estão
livres de analisar criticamente seus fundamentos teóricos, conceituais, metodológicos,
instrumentais que utilizam é que podem concentrar esforços nos problemas de pesquisa
enfrentados por sua área. Ao debater um possível critério de demarcação (critério que
distinguiria a ciência da pseudociência ou metafísica) com Popper, Kuhn (1979) coloca
que a ciência se diferencia de outras atividades por possuir um período de ciência
normal , no qual haveria um monismo teórico (existência de um único paradigma).
Segundo Kuhn (1979):
É precisamente o abandono do discurso crítico que
assinala a transição para uma ciência .
Alguns exemplos de ciência normal apresentados por Kuhn (1978) são: a
astronomia durante a Idade Média (paradigma ptolomaico); a mecânica nos séculos
XVIII e XIX (paradigma newtoniano); a ótica no século XIX (paradigma ondulatório);
a Teoria da Relatividade no século XX (paradigma relativístico).
Kuhn (1978) classifica ainda os problemas que constituem a ciência normal
em três tipos:

1. Determinação do fato significativo


Com a existência de um paradigma, fatos empregados na resolução de
problemas tornam-se merecedores de uma determinação mais precisa, numa variedade
maior de situações. Como exemplos de determinações significativas de fatos, Kuhn
(1978) cita: na Astronomia - a posição e a magnitude das estrelas, os períodos dos
eclipses das estrelas duplas e dos planetas; na Física - comprimentos de onda e
intensidades espectrais, condutividades elétricas. As tentativas de aumentar a acuidade e
extensão do conhecimento científico sobre certos fatos ocupam uma fração significativa
da atividade dos cientistas no período de ciência normal. A invenção, a construção e o
aperfeiçoamento de aparelhos são também atividades realizadas para tais fins. Os

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aceleradores de partículas (como o existente no Fermilab - E.U.A.) são um exemplo de
até onde os cientistas estão dispostos a ir, se um paradigma os assegurar da importância
dos fatos que pesquisam.

2. Harmonização dos fatos com a teoria


Basicamente, esta atividade no período de ciência normal consiste da
manipulação de teorias levando a predições que possam ser confrontadas diretamente
com experiência e do desenvolvimento de equipamentos para a verificação de predições
teóricas. Na história da ciência temos, como ilustração, a máquina de Atwood,
inventada quase um século depois dos Principia , para fornecer a primeira
demonstração da segunda Lei de Newton. Mais recentemente, a construção de
aceleradores para a detecção de partículas subatômicas (como o quark-top) previstas
teoricamente (pelo Modelo Padrão). Este tipo de trabalho científico consiste em buscar
um acordo, cada vez mais estreito, entre a natureza e a teoria. É interessante observar
que a existência de um paradigma coloca o problema a ser resolvido. A concepção da
aparelhagem capaz de resolver o problema está baseada no próprio paradigma, isto é,
sem os Principia , por exemplo, as medidas feitas com a máquina de Atwood estariam
vazias de significado.

3. Articulação da teoria
Esta classe de problema na ciência normal é considerada por Kuhn (1978)
como a mais importante de todas. Consiste no trabalho empreendido para articular a
teoria do paradigma, resolvendo algumas de suas ambigüidades e permitindo a solução
de problemas até então não resolvidos. Algumas das experiências que visam à
articulação são orientadas para a determinação de constantes físicas. A determinação da
constante da gravitação universal (G) por Cavendish, na última década do século XVIII,
é um exemplo de articulação do paradigma newtoniano. Contudo, os esforços para
articular um paradigma não estão restritos à determinação de constantes universais.
Podem também visar a leis quantitativas: a Lei de Coulomb sobre a atração elétrica é
um exemplo. Existe, ainda, uma terceira espécie de experiência que tem o objetivo de
articular um paradigma. Freqüentemente, um paradigma que foi desenvolvido para um
determinado conjunto de problemas é ambíguo na sua aplicação a outros fenômenos
estreitamente relacionados. Com isso, investe-se na reformulação de teorias,
adapatando-as à nova área de interesse. Este trabalho leva a outras versões, fisicamente
equivalentes, mas mais coerentes do ponto de vista lógico e/ou mais satisfatórias
esteticamente. Um exemplo desta atividade, é a formulação analítica da mecânica

189 Ostermann, F.
clássica ou os trabalhos de Euler, Lagrage, Laplace e Gauss que visavam aperfeiçoar a
adequação entre o paradigma de Newton e a observação celeste (Kuhn, 1978).

IV. Revoluções Científicas

Há períodos nos quais o quebra-cabeça da ciência normal fracassa em


produzir os resultados esperados. Os problemas, ao invés de serem encarados como
quebra-cabeças, passam a ser considerados como anomalias, gerando um estado de
crise na área de pesquisa - o chamado período de ciência extraordinária. Mas, por que a
ciência normal - um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio
tende a suprimi-las - pode ser tão eficaz para provocá-las? Kuhn (1978) responde a esta
questão colocando que a ciência normal por sua rigidez conduz a uma informação
detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia
ser atingida de outra maneira. Sem os instrumentos especiais, construídos sobretudo
para fins previamente estabelecidos, os resultados que conduzem às anomalias
poderiam não ocorrer. (Somente sabendo-se com precisão o que se deveria esperar é
que se é capaz de reconhecer que algo saiu errado.) Quanto maiores forem a precisão e
o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias
e, conseqüentemente, de uma ocasião para a mudança de paradigma.
A emergência de novas teorias é, geralmente, precedida por um período de
insegurança profissional, pois exige a destruição em larga escala do paradigma e
grandes alterações nos problemas e nas técnicas da ciência normal. Kuhn (1978) dá três
exemplos, na história da ciência, de crise e emergência de um novo paradigma:
1) Fim do século XVI: fracasso do paradigma ptolomaico (modelo
geocêntrico) e emergência do paradigma copernicano (modelo heliocêntrico).
2) Fim do século XVIII: substituição do paradigma flogístico (Teoria do
Flogisto) pelo paradigma de Lavoisier (teoria sobre a combustão do oxigênio).
3) Início do século XX: fracasso do paradigma newtoniano (mecânica
clássica) e surgimento do paradigma relativístico (Teoria da Relatividade).
Kuhn (1978) observa, nestes três exemplos, que:
a nova teoria surgiu somente após o fracasso caracterizado na atividade
normal de resolução de problemas;
a nova teoria surge uma ou duas décadas depois do início do fracasso;
a solução para cada um desses exemplos foi antecipada em um período no
qual a ciência correspondente não estava em crise. Tais antecipações foram ignoradas,
precisamente por não haver crise.
Os cientistas não rejeitam paradigmas simplesmente porque se defrontam
com anomalias. Uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente

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é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. As
teorias não são falsificadas por meio de comparação direta com a natureza. Decidir
rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro. A transição para
um novo paradigma é chamada por Kuhn de revolução científica.
Uma revolução científica, na qual pode surgir uma nova tradição de ciência
normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do
velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos
princípios, que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do
paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações.
A emergência de um novo paradigma é, para Kuhn, repentina, no sentido
de que pode ocorrer no meio da noite , na mente de um homem profundamente imerso
na crise. Como o indivíduo inventa (ou descobre que inventou) uma nova maneira de
ordenar os dados é uma questão que Kuhn considera não investigável (inescrutável, em
suas palavras) e acredita que assim seja permanentemente. Em geral, segundo este
filósofo da ciência, os homens que fazem essas invenções fundamentais são jovens ou
novos na área em crise, isto é, menos comprometidos com o velho paradigma.
Durante o período de transição, o antigo paradigma e o novo competem
pela preferência dos membros da comunidade científica, e os paradigmas rivais
apresentam diferentes concepções de mundo. Se novas teorias são chamadas para
resolver as anomalias presentes na relação entre uma teoria existente e a natureza, então
a nova teoria bem sucedida deve permitir predições diferentes daquelas derivadas de
sua predecessora. Essa diferença não poderia ocorrer se as duas teorias fossem
logicamente compatíveis. É nesse sentido que Kuhn emprega a expressão
incomensurabilidade de paradigmas, cujo aspecto fundamental é que os proponentes
dos paradigmas competidores praticam seus ofícios em mundos diferentes. A idéia de
incomensurabilidade está relacionada ao fato de que padrões científicos e definições são
diferentes para cada paradigma (Kuhn, 1978). Para sustentar a tese de que as diferenças
entre paradigmas sucessivos são ao mesmo tempo necessárias e irreconciliáveis, Kuhn
dá como exemplo a revolução científica que substitui o paradigma newtoniano pelo
relativístico. Esta transição ilustra, segundo ele, com particular clareza a revolução
científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas
vêem o mundo. Para o autor, devemos superar a concepção de que a dinâmica
newtoniana pode ser derivada (como um caso particular) da dinâmica relativista
(comumente esta é a abordagem dos livros e das aulas nos cursos universitários de
Física). Kuhn argumenta, entre outras coisas, que os referentes físicos dos conceitos
einsteinianos não são de modo algum idênticos àqueles conceitos newtonianos que
levam o mesmo nome: a massa newtoniana é conservada; a einsteiniana é conversível
com a energia.

191 Ostermann, F.
Por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre
paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da lógica e
de experiências neutras. Por ter esse caráter, ela não é e não pode ser determinada
simplesmente pelos procedimentos de avaliação característicos da ciência normal, pois
esses dependem parcialmente de um paradigma determinado e esse paradigma, por sua
vez, está em questão. Quando os cientistas participam de um debate sobre a escolha de
um paradigma, seu papel é necessariamente circular. Cada grupo utiliza seu próprio
paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma. Se houvesse apenas um
conjunto de problemas científicos, um único mundo no qual ocupar-se deles e um único
conjunto de padrões científicos para sua solução, a competição entre paradigmas
poderia ser resolvida de forma rotineira, por exemplo, contando-se o número de
problemas resolvidos por cada um deles. Mas, na realidade, tais condições nunca são
satisfeitas completamente. Aqueles que propõem os paradigmas em competição estão
sempre em desentendimento, mesmo que em pequena escala (Kuhn, 1978). Como,
então, são os cientistas levados a realizar a revolução?
Embora, algumas vezes, seja necessário uma geração para que a revolução
se realize, as comunidades científicas seguidamente têm sido convertidas a novos
paradigmas. Alguns cientistas, especialmente os mais velhos e mais experientes,
resistem indefinidamente, mas a maioria deles pode ser convertida. Ocorrerão algumas
conversões de cada vez, até que, morrendo os últimos opositores, todos os membros da
profissão passarão a orientar-se por um único - mas, agora, diferente paradigma.1
Assim, para Kuhn (1978), a natureza do argumento científico envolve a
persuasão e não a prova. Cientistas abraçam um paradigma por toda uma sorte de
razões que, em geral, se encontram inteiramente fora da esfera da ciência.
Kuhn acredita que o cientista que adota um novo paradigma precisa ter fé
na sua capacidade de resolver os grandes problemas com que se defronta, ciente apenas
de que o paradigma anterior fracassou em alguns deles. A crise instaurada pelo antigo
paradigma é condição necessária mas não suficiente para que ocorra a conversão. É
igualmente necessária a existência de fé no candidato a paradigma escolhido, embora
não precise ser, nem racional, nem correta. Em alguns casos, somente considerações
estéticas pessoais e inarticuladas fazem alguns cientistas se converterem ao novo
paradigma.

1 As dificuldades de conversão foram, freqüentemente, observadas pelos próprios cientistas.


Planck (apud Kuhn, 1978) comentou que [...] uma nova verdade científica não triunfa
convencendo seus oponentes [...] mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova
geração cresce familiarizada com ela .

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Kuhn é acusado por Popper (1979), Lakatos (1979), entre outros, de traçar
uma imagem irracional do debate científico. Para Lakatos (1979), crise é um conceito
psicológico - trata-se de um pânico contagioso - e revolução científica kuhniana é
irracional, uma questão da psicologia das multidões, sendo este modelo, por ele
considerado, uma redução da filosofia da ciência à psicologia ou sociologia dos
cientistas.
Respondendo às críticas, Kuhn adota uma posição mais moderada (Kuhn,
1979). Segundo esta posição, existem boas razões compartilhadas pela comunidade
científica, as quais são aplicadas nos debates científicos. Algumas dessas boas razões
referem-se às qualidades de uma boa teoria: precisão, consistência, simplicidade,
amplitude de aplicação, fecundidade. Estas seriam usadas na comparação de teorias
rivais. No entanto, as boas razões funcionam como valores e, portanto, podem ser
aplicadas de maneiras diversas pelos cientistas em casos específicos.
Quanto à incomensurabilidade, Kuhn a encara de uma forma menos
problemática, sugerindo, então, que os cientistas ao participarem de debates inter-
paradigmáticos devam reconhecer-se uns aos outros como membros das diferentes
comunidades de linguagem e, a partir daí, tornarem-se tradutores. O processo de
traduções proposto por Kuhn não assegura a conversão, pois os cientistas podem
concordar quanto à fonte de suas discordâncias e, mesmo assim, manterem-se fiéis às
suas teorias, já que os valores que eles compartilham podem ser aplicados de forma
distinta.
De qualquer forma, Kuhn continua atribuindo um significativo grau de
arbitrariedade aos debates envolvendo julgamentos de valor, os quais considera
elemento importante da prática científica.
Com respeito à noção, explícita ou implícita, segundo a qual as mudanças
de paradigma levam os cientistas a uma proximidade sempre maior da verdade
(posicionamento de Popper e Lakatos, por exemplo), Kuhn acredita que podemos
explicar tanto a existência da ciência como seu sucesso, sem a necessidade de
recorrermos a um objetivo preestabelecido. O processo de desenvolvimento científico
corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência -
seleção realizada no interior da comunidade científica. O resultado final de uma
seqüência de ciência extraordinária , separada por períodos de ciência normal, é o
conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento
científico moderno (Kuhn, 1978). Estágios sucessivos de desenvolvimento são
marcados por um aumento da articulação e especialização do saber científico. Para
Kuhn, todo esse processo pode ter ocorrido, como no caso da evolução biológica (teoria
darwinista), sem o benefício de uma verdade científica permanentemente fixada, da
qual cada estágio do desenvolvimento científico seria um exemplar mais aprimorado.

193 Ostermann, F.
Segundo seus críticos, a filosofia kuhniana tende a um relativismo. Uma
vez concebido o paralelismo que existe na tese da incomensurabilidade, é possível
concluir que ambos os paradigmas podem estar certos, ou seja, não se pode provar que
um deles está mais próximo da verdade .

V. Conclusão Kuhn e o Ensino de Ciências

As idéias kuhnianas representam um importante referencial para o trabalho


em sala de aula. A visão de ciência transmitida nas aulas e nos livros didáticos, as
estratégias de ensino utilizadas podem ser fundamentadas no modelo de Kuhn sobre o
desenvolvimento científico.
Adotando essa postura epistemológica, estaremos questionando a imagem
que cientistas e leigos têm da atividade científica, que disfarça a existência e o
significado das revoluções no campo da ciência. O desenvolvimento científico, em
geral, é visto como sendo basicamente cumulativo e linear, consistindo em um
processo, freqüentemente comparado à adição de tijolos em uma construção. Nesta
concepção, a ciência teria alcançado seu estado atual através de uma série de
descobertas e invenções individuais, as quais, uma vez reunidas, constituiriam a coleção
moderna dos conhecimentos científicos. Mas não é assim que a ciência se desenvolve.
Segundo o modelo kuhniano, muitos dos problemas da ciência normal contemporânea
passaram a existir somente depois da revolução científica mais recente.
Em relação a uma estratégia baseada na filosofia de Kuhn, Zylbersztajn
(1991) propõe que os alunos de disciplinas científicas sejam encarados como cientistas
kuhnianos. Os passos instrucionais delineados, nesta estratégia, são:
1) Elevação do nível de consciência conceitual: os alunos, nesta etapa,
devem conscientizar-se de suas concepções alternativas.
2) Introdução de anomalias: o objetivo principal deste passo instrucional é
criar uma sensação de desconforto e insatisfação com as concepções existentes, através
do conflito entre estas e o pensamento científico. Demonstrações, experimentos,
argumentos teóricos podem ser aplicados. É o equivalente instrucional ao período de
ciência extraordinária, no modelo de Kuhn.
3) Apresentação da nova teoria: nesta etapa, os alunos recebem um novo
conjunto de idéias que irão acomodar as anomalias. O professor faz, então, o papel de
um cientista tentando converter outros a um novo paradigma.
4) Articulação conceitual: trata-se do equivalente instrucional aos quebra-
cabeças da ciência normal. Neste estágio, esforços são dirigidos para a interpretação de
situações (experimentais ou teóricas) e à resolução de problemas.

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.184-196, dez.1996. 194


Esta monografia pretende ser apenas uma introdução às idéias de Kuhn. A
importância de sua teoria para o campo da filosofia da ciência é imensa e, portanto, não
pode ser aqui esgotada. Além disso, nos últimos anos, a pesquisa em ensino de Ciências
tem buscado, em sua concepção de desenvolvimento científico, uma fundamentação
mais atualizada. Dentre as muitas implicações trazidas pelo seu modelo, podemos
destacar:
A problematização do conhecimento e, conseqüentemente, o
questionamento sobre a visão de ciência tão difundida nos livros e nas aulas (o ensino
do método científico como uma seqüência rígida de passos que começa com uma
observação e culmina em uma descoberta);
A busca do paralelismo (muitas vezes encontrado, outras vezes não) entre
a história da ciência e as concepções das crianças acerca dos fenômenos físicos;
A busca da correspondência entre epistemologia e aprendizagem, no
sentido de se utilizar sua teoria para entender algumas questões sobre a dinâmica da
mudança conceitual e inspirar possíveis metodologias de ensino.

VI. Referências Bibliográficas


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KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1978.

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Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.184-196, dez.1996. 196


A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE KARL POPPER: O RACIONA-
LISMO CRÍTICO1

Fernando Lang da Silveira


Instituto de Física - UFRGS
Porto Alegre, RS
Resumo

A filosofia de Karl Popper - o racionalismo crítico - é apresentada.


Para ele todo o conhecimento é falível e corregível, virtualmente
provisório. O conhecimento científico é criado, construído e não
descoberto em conjuntos de dados empíricos. A refutabilidade demarca
a ciência da não-ciência e a atitude de colocar sob crítica toda e
qualquer teoria permite o aprimoramento do conhecimento científico. A
teoria do conhecimento, dos Três Mundos e o problema cérebro-mente
são discutidos.

I. Introdução
No dia 17 de setembro de 1994, aos noventa e dois anos de idade, faleceu
na Inglaterra o célebre filósofo Karl Popper. Austríaco de nascimento, imigrou nos anos
30, fugindo do nazismo; inicialmente esteve na Nova Zelândia, estabelecendo-se depois
na Inglaterra. Na London School of Economics foi professor de Filosofia da Ciência;
em 1964 recebeu o título de cavaleiro (Sir).
A filosofia de Popper, o racionalismo crítico, ocupa-se primordialmente de
questões relativas à teoria do conhecimento, à epistemologia. Ainda na Áustria, em
1934, foi publicado o seu primeiro livro, Logic der Forschung ( A Lógica da Pesquisa
Científica (Popper, 1985), na versão brasileira), que se constituiu em uma crítica ao
positivismo lógico do Círculo de Viena, defendendo a concepção de que todo o
conhecimento é falível e corrigível, virtualmente provisório.
O pensamento de Popper também abrangeu a esfera da política e da
sociedade. Em A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Popper, 1987b e 1987c) e A
miséria do Historicismo (Popper, 1980b) transpõe seus ensinamentos epistemológicos
para o campo da ação política racional. Como todo o nosso conhecimento é imperfeito,
estando sempre sujeito a revisões críticas, qualquer mudança na sociedade deverá

1 Trabalho parcialmente publicado em Scientia, São Leopoldo, 5 (2) : 9-28, 1994.

197 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


ocorrer de maneira gradual para que os erros possam ser corrigidos sem causar grandes
danos. A idéia de uma sociedade perfeita, atingível através de uma revolução social, é
criticada e considerada irracional.
Nos ocuparemos a seguir das idéias de Popper sobre a teoria do
conhecimento, a epistemologia e sobre o problema cérebro-mente. Não apresentaremos
suas idéias político-sociais.

II. As explicaçõs científicas e a lógica dedutiva


Uma das tarefas da ciências é a explicação. Ao longo da história da prática
da explicação, muitos métodos e tipos diferentes foram tidos como aceitáveis, mas
todos eles têm algo em comum: consistem todos de uma dedução lógica; uma
dedução cuja conclusão é o explicandum - uma asserção da coisa a ser explicada
(Popper, 1982, p. 321) e de um conjunto de premissas - o explicans - constituído por
leis e condições específicas.
Qualquer explicação envolve no mínimo um enunciado universal (lei) que,
combinada com as condições específicas, permite deduzir o que se deseja explicar.
Apenas condições específicas não são suficientes para se produzir uma explicação. Por
exemplo, se quisermos explicar o aumento da resistência elétrica de um fio de cobre
pela elevação da temperatura, podemos supor um enunciado universal que afirma que
os condutores metálicos possuem resistência variando com a temperatura.
Lei: a resistência elétrica dos condutores metálicos varia com a
temperatura.
Condições específicas: a temperatura do fio de cobre variou de 20° C para
6° C.
Conclusão: a resistência elétrica deste fio de cobre variou.
Obviamente que esta não é a única explicação possível. Outras explicações
mais profundas e complexas recorreriam a leis e condições específicas sobre a estrutura
da matéria, justificando o fenômeno macroscópico (a variação da resistência) a partir
deste nível microscópico. Uma explicação desta ordem envolveria uma longa cadeia
dedutiva para finalmente atingir o explicandum. O importante na presente discussão é o
aspecto dedutivo das explicações e a necessidade de se recorrer a no mínimo uma lei e
às condições específicas.
Outras tarefas da ciência, como a derivação de predições e aplicações
técnicas, também podem ser analisadas por meio de esquema lógico que
apresentamos para analisar a explicação (Popper, 1982, p. 324).
A derivação de predições parte do suposto conhecimento das leis e das
condições específicas, obtendo-se algo que ainda não foi observado. Nas aplicações
técnicas são especificados os resultados a serem obtidos, como, por exemplo, a

Silveira, F.L. da 198


construção de uma ponte, e são admitidas certas leis e teorias relevantes. O que se
procura então são condições específicas que possam ser tecnicamente realizadas.
A lógica dedutiva desempenha um papel de grande importância no
conhecimento científico. Segundo Popper, ela é:
transmissora da verdade.
retransmissora da falsidade.
não-retransmissora da verdade.
Ela transmite a verdade do explicans para o explicandum, ou seja, sendo
verdadeiras as leis e as condições específicas, será necessariamente verdadeira a
conclusão.
Ela retransmite a falsidade do explicandum para o explicans, ou seja, se a
conclusão é falsa, então uma ou mais premissas são falsas.
Ela não retransmite a verdade do explicandum para o explicans, ou seja,
sendo a conclusão verdadeira, poderá ser parcialmente ou totalmente falso o explicans.
Em outras palavras, de premissas falsas é possível se obterem conclusões verdadeiras.
Essas três propriedades da lógica dedutiva podem ser exemplificadas
através do raciocínio dedutivo abaixo:
Primeira premissa: todos os A são B.
Segunda premissa: X é A.
Conclusão: X é B.
A transmissão da verdade das premissas para a conclusão ocorre no
seguinte exemplo onde as premissas são verdadeiras:
Primeira premissa: todos os metais são condutores elétricos.
Segunda premissa: o cobre é metal.
Conclusão: o cobre é condutor elétrico.
A retransmissão da falsidade da conclusão para as premissas ocorre no
seguinte exemplo onde a conclusão é falsa porque a segunda premissa é falsa:
Primeira premissa: todos os metais são condutores elétricos.
Segunda premissa: o vidro é metal.
Conclusão: o vidro é condutor elétrico.
A não-retransmissão da verdade da conclusão para as premissas ocorre
no seguinte exemplo onde a primeira premissa e a conclusão são verdadeiras e a
segunda premissa é falsa:
Primeira premissa: todos os metais são condutores.
Segunda premissa: o carvão é metal.
Conclusão: o carvão é condutor elétrico.
A estrutura dedutiva das explicações científicas e as propriedades da lógica
dedutiva são importantes para a filosofia da ciência de Popper, em especial no método
crítico exposto mais adiante.

199 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


III. O problema da indução
Um dos problemas da filosofia da ciência investigado por Popper é o
chamado problema da indução . Acreditavam os indutivistas ser possível justificar
logicamente a obtenção das leis, das teorias científicas a partir dos fatos; poder-se-ia,
utilizando a lógica indutiva, chegar às leis universais, às teorias científicas.
"É comum dizer-se indutiva uma inferência, caso ela conduza de
enunciados singulares (...), tais como descrições dos resultados de
observações ou experimentos, para enunciados universais, tais
como hipóteses ou teorias.

Ora, está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver


justificativa no inferir enunciados universais de enunciados
singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes; com
efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode
revelar-se falsa; independentemente de quantos cisnes brancos
possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os
cisnes são brancos" (Popper, 1985, p. 27/28).
O problema da indução também pode ser formulado de outra maneira: há
leis universais certamente verdadeiras ou provavelmente verdadeiras? É possível se
justificar a alegação de que uma teoria é verdadeira ou provavelmente verdadeira a
partir de resultados experimentais ou de observações?
Aqui também a resposta de Popper é negativa. Não importa quantas
asserções de teste (resultados experimentais ou de observações) se tenha, não é possível
justificar a verdade de uma teoria, pois a lógica dedutiva não retransmite a verdade. O
confronto da teoria com as asserções de teste nunca é direta; há necessidade de se
combinar as leis universais com condições específicas e derivar dedutivamente
hipóteses ou conclusões com baixo nível de generalidade. Estas podem, em princípio,
serem confrontadas com os fatos. Se os fatos apoiarem as conclusões, se as conclusões
forem dadas como verdadeiras, não há retransmissão da verdade para as hipóteses com
alto nível de generalidade (as leis universais).
Não importando quantas confirmações de uma teoria tenham sido
obtidas, é sempre logicamente possível que, no futuro, se derive uma conclusão que não
venha a ser confirmada. Conforme o exposto na secção anterior, é possível, de
premissas falsas, obter-se conclusões verdadeiras.
Outra razão contra a existência da lógica indutiva está em que um conjunto
de fatos sempre é compatível com mais de uma generalização (rigorosamente com um
número infinito de generalizações). Por exemplo, se todos os cisnes até hoje observados
são brancos, algumas possíveis generalizações são as seguintes:

Silveira, F.L. da 200


Todos os cisnes são brancos.
Todos os cisnes são brancos ou negros.
Todos os cisnes são brancos ou vermelhos ou azuis.
Qualquer enunciado que afirma o observado e um pouco mais (ou muito
mais) será compatível com as observações ocorridas.
Estes aspectos lógicos que contraditam a existência da lógica indutiva serão
complementados nas secções seguintes com outros que se apóiam na história da ciência.
A história da ciência mostra exemplos de teorias que passaram a corrigir os fatos que
pretensamente teriam servido como base indutiva das mesmas (a mecânica
newtoniana assim o fez). Além disso, há exemplos de teorias científicas que se
originaram não em fatos mas em teorias metafísicas (é o caso da teoria copernicana).
Tendo Popper negado a possibilidade de uma solução positiva ao problema
da indução, parte então para uma resposta à questão do método das ciências empíricas
(física, química, biologia, psicologia, sociologia, etc.).

IV. O método crítico


Não é tarefa da lógica do conhecimento a reconstrução racional das fases
que conduziram o cientista à descoberta (Popper, 1985, p. 32) da teoria científica. Não
há caminho estritamente lógico que leve à formulação de novas teorias. As teorias
científicas são construções que envolvem, na sua origem, aspectos não completamente
racionais, tais como, a imaginação, criatividade, intuição, etc. As teorias são nossas
invenções, nossas idéias não se impõem a nós (Popper, 1982, p. 144). São tentativas
humanas de descrever e entender a realidade.
Para Popper, a tarefa da epistemologia ou da filosofia da ciência é
reconstruir racionalmente as provas posteriores pelas quais se descobriu que a
inspiração era uma descoberta ou veio a ser reconhecida como conhecimento
(Popper, 1985, p. 32). Em outras palavras, não deve a epistemologia se preocupar em
reconstruir a inspiração do cientista (isto é tarefa da psicologia da ciência) e não é
importante para a questão da validade do conhecimento em que condições o cientista
formulou a teoria.
O método da ciência se caracteriza pela discussão crítica do conhecimento
científico e pode ser denominado método crítico de teste dedutivo. Dada uma teoria, é
possível, com auxílio de condições específicas (ou iniciais ou de contorno) e com
auxílio da lógica dedutiva, derivar conclusões. Como exemplo, consideremos a teoria
sobre a queda dos corpos que afirma ser a velocidade de queda proporcional ao peso.
Ou seja:
Hipótese: a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso.

201 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


Condições específicas: este tijolo é mais pesado do que esta pedra
pequena. Ambos são abandonados simultaneamente a 2 m do solo.
Conclusão: o tijolo atingirá o solo antes da pedra.
Esta predição (conclusão derivada da teoria e das condições específicas)
pode então ser confrontada com os fatos. Poderá então a conclusão ser incompatível
com os fatos ou ser compatível.
No primeiro caso, como a lógica dedutiva é retransmissora da falsidade, no
mínimo uma das premissas é falsa, se as condições específicas forem verdadeiras, então
a teoria foi falseada ou falsificada ou refutada.
No segundo caso, como a lógica dedutiva não é retransmissora da verdade,
não é necessariamente verdadeira a teoria. Na terminologia de Popper, a teoria foi
corroborada, passou pelo teste empírico. Sempre haverá a possibilidade de, no futuro,
derivar da teoria uma conseqüência que seja incompatível com os fatos e, portanto, as
teorias científicas são sempre conjecturas. Não há forma de se provar a verdade de
uma teoria científica; por mais corroborada que uma teoria seja, não está livre de crítica
e no futuro poderá se mostrar problemática e poderá ser substituída por outra.
Os indutivistas sempre enfatizaram a necessidade de se verificarem as
teorias através das suas conseqüências; na filosofia indutivista o importante é a
verificação, pois, através dela, poder-se-ia justificar a verdade ou pelo menos a
probabilidade das teorias. Para Popper, as verificações relevantes são aquelas que
colocaram em risco a teoria, aquelas que aconteceram como decorrência de tentativas
de teste (de refutação). Casos verificadores são facilmente encontráveis para quase
todas as teorias. Exemplificando mais uma vez com a hipótese de que a velocidade de
queda de um corpo é proporcional ao seu peso: é possível se encontrar uma imensidade
de casos verificadores constituídos por pares de corpos do tipo pedra e pena. Outro bom
exemplo de alto grau de verificação pode ser encontrado na teoria astrológica; qualquer
astrólogo é capaz de apresentar um número grande de previsões concretizadas. As
severas tentativas de refutar uma teoria e que resultam em corroborações são as que
realmente importam.
A história da ciência mostra teorias que durante um certo período de tempo
foram corroboradas e, apesar disso, acabaram se tornando problemáticas. O exemplo
mais impressionante é o da mecânica newtoniana: durante mais de duzentos anos foi
corroborada espetacularmente. Aliás, algumas corroborações da mecânica newtoniana
mostram que a lógica indutiva é insustentável. Ela corrigiu os fatos dos quais os
indutivistas (e o próprio Newton) acreditavam ter sido logicamente derivada a lei da
gravitação universal; supostamente a lei da gravitação universal teria sido logicamente
induzida das leis de Kepler (Newton afirmara que não inventava hipóteses e pretendia
que a sua teoria houvesse sido obtida dos fatos). A lei da gravitação universal não pode
ser logicamente derivada das leis de Kepler simplesmente porque ela contradiz, corrige

Silveira, F.L. da 202


as mesmas; a primeira lei de Kepler afirmava que as órbitas planetárias eram elipses, e a
teoria de Newton permitiu demonstrar que as mesmas não são rigorosamente elipses
(são aproximadamente elipses); adicionalmente Kepler afirmara que os cometas
descreviam trajetórias retilíneas e a teoria de Newton predisse trajetórias
aproximadamente elípticas, parabólicas ou hiperbólicas para eles. Predições da
mecânica newtoniana foram surpreendentemente corroboradas (algumas após a morte
de Newton, como a do retorno do cometa previsto por Halley - o cometa Halley). Ora,
se existisse a lógica indutiva, o mínimo que deveria ocorrer nas induções das leis a
partir dos fatos é que as leis não contraditassem estes mesmos fatos.
Outras corroborações importantes da mecânica newtoniana são as
descobertas dos dois últimos planetas do sistema solar (Netuno e Plutão). A previsão da
órbita de qualquer planeta do sistema solar a partir das leis de Newton (as três leis do
movimento e a lei da gravitação universal) é possível de ser realizada se adicionalmente
se dispuser de um modelo sobre o sistema solar; este modelo deve especificar quantos
são os planetas, as suas massas, as distâncias ao Sol, etc. A órbita de um planeta
particular depende principalmente da força gravitacional que ele sofre por parte do Sol,
mas também depende das ações dos outros planetas. No século XIX foi observado que a
órbita prevista para Urano era incompatível com as observações astronômicas; Adams e
Leverrier, admitindo que o problema não se devia à mecânica newtoniana mas ao
modelo existente sobre o sistema solar, trabalharam sobre hipótese de existência de um
planeta ainda não conhecido além da órbita de Urano o planeta Netuno. Conseguiram,
inclusive, calcular a posição do novo planeta e orientaram os astrônomos a realizarem
novas observações; estes acabaram por confirmar a existência de Netuno. Esta história
se repetiu novamente, já no século XX, em relação a Plutão.
A descoberta dos dois últimos planetas do sistema solar exemplifica um
outro aspecto relativo ao método crítico: a possibilidade de se evitar o falseamento de
uma teoria a partir de uma hipótese suplementar; se a conseqüência de uma teoria é
contraditada pelos fatos, é logicamente possível retransmitir a falsidade às condições
específicas (no exemplo anterior, a falsidade foi retransmitida ao modelo sobre o
sistema solar). Esta hipótese suplementar, que salvou a mecânica newtoniana, era
testável independentemente; hipóteses suplementares ad-hoc (hipóteses a favor das
quais os únicos fatos são aqueles que elas pretendem explicar) devem ser evitadas.
Popper destaca que todo o nosso conhecimento é impregnado de teoria,
inclusive nossas observações (Popper, 1975, p. 75). Não existem dados puros, fatos
neutros (livres de teoria). Exemplifiquemos mais uma vez com a mecânica newtoniana:
a fim de testar a previsão de uma determinada órbita planetária, é necessário confrontar
posições previstas para o planeta com posições observadas a partir da Terra. Os fatos
aqui seriam resultantes de um processo de observação astronômica; ora, estes fatos são
interpretações a partir de diversas teorias, tais como a da ótica do telescópio,

203 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


propagação da luz no espaço interplanetário, refração da luz na atmosfera, teoria de
erros de medida, etc. Mesmo os fatos que são baseados apenas em nossa percepção
também estão impregnados de teorias; os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso
incorporam teorias físico-químicas, neurofisiológicas que interpretam os estímulos,
dando-nos as sensações. Não há órgãos de sentido em que não se achem incorporadas
geneticamente teorias antecipadoras (Popper, 1975, p. 76).
A inexistência de fatos livres de teoria implica a insustentabilidade de
uma versão de falseacionismo ou refutacionismo ingênuo que erradamente é atribuída a
Popper. Para o refutacionismo ingênuo, uma teoria estaria indubitavelmente refutada
quando os resultados observacionais (e/ou experimentais) fossem incompatíveis com
alguma conseqüência ou conclusão da teoria. Entretanto, tal não é necessariamente
verdade, pois o problema pode estar nas condições específicas (é o caso da descoberta
de Netuno e Plutão), ou, pode se encontrar nas próprias observações. Ou seja, se houver
alguma discrepância entre posições observadas para um dado planeta, pode ser que a
teoria observacional esteja com problema. Aliás, isto efetivamente ocorreu quando
Newton propôs ao astrônomo real uma correção da luz na atmosfera, de modo a
adequar os dados astronômicos às previsões por ele feitas. Todo o nosso conhecimento
é conjectural, inclusive as falsificações das teorias; as falsificações não se
encontram livres de críticas e nenhuma teoria pode ser dada como definitivamente
ou terminantemente ou demonstravelmente falsificada (Popper, 1987a, p. 22). Assim
sendo, qualquer falsificação pode, por sua vez, ser testada de novo (Popper, 1987a,
p. 23).
O progresso da ciência depende da objetividade científica. Esta encontra-
se única e exclusivamente na tradição crítica (Popper, 1989a, p. 78), na tradição que
permite questionar qualquer teoria. Entretanto a objetividade da ciência não é uma
questão individual dos cientistas; individualmente o cientista é, via de regra, parcial,
conquistado por suas próprias idéias. Alguns dos mais destacados físicos
contemporâneos fundaram inclusivamente escolas que opõem uma forte resistência a
qualquer idéia nova (Popper, 1989a, p. 77). A objetividade da ciência é uma questão
social dos cientistas, envolvendo a crítica recíproca, a divisão hostil-amistosa de
trabalho entre cientistas, ou sua cooperação e também sua competição (Popper, 1978,
p. 23). O fato do cientista individualmente ser parcial ou dogmático é até desejável. Se
nos sujeitarmos à crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a
verdadeira força de nossas teorias (Popper, 1979, p. 68).
A ciência está à procura da verdade apesar de não haver critérios através
dos quais se possa demonstrar que uma dada teoria seja verdadeira. A atitude crítica
pressupõe a verdade absoluta ou objetiva como idéia reguladora; quer isto dizer,
como padrão de que podemos ficar abaixo (Popper, 1987a, p. 59). Quando uma teoria
é criticada, está sendo questionada a pretensão da mesma ser verdadeira, da mesma ser

Silveira, F.L. da 204


capaz de resolver os problemas que lhe competem. Mesmo não havendo a possibilidade
de demonstrar a verdade de uma dada teoria T2, algumas vezes se pode defender
racionalmente que ela se aproxima mais da verdade que outra teoria T1; tal ocorre
quando T2 explica todos os fatos corroboradores (conteúdo de verdade) e os
problemáticos para T1 (conteúdo de falsidade), adicionalmente explicando fatos sobre
os quais T1 não se pronunciava (a teoria T2 tem então um excesso de conteúdo em
relação à T1). Isto se dá com a teoria geral da relatividade em relação à teoria de
Newton; a segunda é uma excelente aproximação da primeira para baixas velocidades e
campos gravitacionais fracos. Todos os problemas que a antiga teoria resolveu com
sucesso, a nova também resolve e alguns, como o caso do periélio anômalo de Mercúrio
que era incompatível com a mecânica newtoniana, também são explicados pela teoria
geral da relatividade. Adicionalmente a teoria de Einstein fez predições sobre aspectos
da realidade sobre os quais a de Newton não se pronunciava (é o caso do desvio da luz
por campos gravitacionais, corroborado no eclipse de 1919). Contudo, Einstein jamais
chegou a acreditar que sua teoria fosse verdadeira. Chocou Cornelius Lanczos, em
1922, ao dizer que sua teoria não era mais que um estágio passageiro: chamou-lhe
efêmera (Popper, 1976, p. 112). Também buscou uma melhor aproximação da
verdade durante quase quarenta anos, até a sua morte (Popper, 1987a, p. 58).
A concepção de que as teorias científicas perseguem a verdade objetiva
coloca a filosofia popperiana como realista. Os realistas afirmam a existência das
coisas em si, de objetos cuja existência independe de nossa mente (Bunge, 1973, 1983 e
1985; Silveira, 1991) e que estes podem ser conhecidos, embora parcialmente e por
aproximações sucessivas (Rodrigues, 1986).
"Assim, as teorias são invenções nossas, idéias nossas, o que foi
claramente percebido pelos idealistas epistemológicos. No entanto,
algumas dessas teorias são tão ousadas que podem entrar em
conflito com a realidade: são essas as teorias testáveis da ciência. E
quando podem entrar em conflito, aí sabemos que há uma realidade
(...). É por esta razão que o realista tem razão (Popper, 1989b, p.
25).

V. O critério de demarcação
Como é que se pode distinguir as teorias das ciências empíricas das
especulações pseudocientíficas ou metafísicas? (Popper, 1987a, p. 177). Este é um dos
problemas da filosofia da ciência para a qual Popper propôs uma solução.
A solução mais aceita tinha estreita relação com a questão do método: a
ciência se caracterizava pela sua base na observação e pelo método indutivo, enquanto

205 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


a pseudociência e a metafísica se caracterizavam pelo método especulativo (Popper,
1982, p. 282). As teorias científicas eram obtidas a partir dos fatos e podiam por eles
serem verificadas. Além disso, os positivistas (o positivismo é uma epistemologia
empiricista, indutivista) tinham uma atitude antimetafísica, considerando as teorias
metafísicas destituídas de sentido por serem não verificáveis. Os positivistas tomavam o
termo metafísico como pejorativo.
Popper nunca aceitou tais pontos de vista. Nota que as teorias físicas,
principalmente as modernas, como a teoria geral da relatividade, são altamente abstratas
e especulativas. Einstein (1982) reconheceu, em suas notas autobiográficas, que na
formulação da teoria da relatividade ele andou por caminhos muito distantes daqueles
apontados pelos positivistas; ele considerou como prejudicial a concepção que consiste
em acreditar que os fatos podem e devem fornecer, por si mesmos, conhecimento
científico, sem uma construção conceptual livre (Einstein, 1982, p. 52).
Adicionalmente Popper constata que muitas crenças supersticiosas e
procedimentos práticos encontrados em almanaques e livros como os de interpretações
de sonhos tinham muito a ver com a observação, baseando-se muitas vezes em algo
parecido com a indução (Popper, 1982, p. 283). Os astrólogos argumentavam que a
sua ciência se apoiava em grande abundância de observações e verificações;
facilmente conseguiam encontrar grande quantidade de fatos confirmadores da teoria
astrológica.
Do ponto de vista estritamente lógico, a verificabilidade não pode ser o
critério de demarcação pois, conforme exposto nas seções anteriores, Popper nega que
as teorias científicas possam ser verificadas: verificadas, ou usando a terminologia
popperiana, corroboradas podem ser algumas conclusões obtidas da teoria com auxílio
das condições específicas. Entretanto, quando isto ocorre, não é lícito tomar como
verificada a teoria pois não há retransmissão da verdade das conclusões para as
premissas.
Se a verificabilidade for apenas uma exigência para as conclusões
derivadas de teorias científicas, então a teoria do feiticeiro que prediz que amanhã
chove ou não chove (não precisamos esperar até amanhã para saber que será
verificada), ou do astrólogo que vaticina alguém importante morrerá brevemente ,
deverá ser considerada científica.
O critério de demarcação proposto por Popper é a testabilidade,
refutabilidade ou falsificabilidade para as teorias científicas. Um enunciado ou teoria é
falsificável, segundo o meu critério, se e só se existir, pelo menos um falsificador
potencial (Popper, 1987a, p. 20), ou seja, se existir pelo menos um enunciado que
descreva um fato logicamente possível que entre em conflito com a teoria. Em outras
palavras, as teorias científicas, quando combinadas com as condições específicas,
devem proibir algum acontecimento que é logicamente possível de ser observado. As

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teorias pseudocientíficas, não científicas ou metafísicas são irrefutáveis pois não
proíbem nada, não possuem falsificadores potenciais.
Um exemplo de como a teoria astrológica é irrefutável foi encontrado pelo
autor deste trabalho em uma conversa com uma astróloga. A mesma havia proposto
indicar a cor preferida por mim a partir do meu signo; disse-lhe então que o meu signo é
Câncer e ela me respondeu que a cor de minha preferência era o branco. Contestei-a,
dizendo-lhe que prefiro o vermelho e ela então propôs que deveríamos saber qual era o
meu ascendente. Fica transparente que esta teoria está protegida contra a refutação e
mais ainda, pode converter qualquer fato alegado em confirmação ou verificação.
É importante notar que a refutabilidade, como critério de demarcação, é
uma propriedade estritamente lógica das teorias científicas: significa em princípio que
elas são falsificáveis, possuem falsificadores potenciais. Esta questão lógica não pode
ser confundida com a de quando uma prova experimental ou observacional
terminantemente falsifica uma teoria. Popper sempre notou que, apesar das teorias
científicas serem falsificáveis em princípio, as falsificações reais são sempre
conjecturais e sujeitas à crítica (vide secção anterior).
A falsificabilidade das teorias científicas é coerente com a atitude crítica.
Não há formas de se provar a veracidade do conhecimento científico e entretanto a
ciência pode perseguir a verdade através da exclusão de teorias falsificadas,
substituindo-as por novas teorias que poderão se aproximar mais da verdade.
"Essa é uma concepção de ciência que considera a abordagem
crítica sua característica mais importante. Para avaliar uma teoria
o cientista deve indagar se pode ser criticada, se se expõe a críticas
de todos os tipos e, em caso afirmativo, se resiste a essas críticas"
(Popper, 1982, p. 284).
Popper constata a existência de teorias, tidas como científicas, que são
capazes de dar conta de qualquer fato e, portanto, irrefutáveis. Entre essas teorias
pseudocientíficas, ele coloca a psicanálise de Freud, a psicologia individual de Adler e
o materialismo histórico de Marx.
"Um marxista não era capaz de olhar para um jornal sem encontrar
em todas as páginas, desde os artigos de fundo até os anúncios,
provas que consistiam em verificações da luta de classes; e
encontrá-las-ia sempre também (e em especial) naquilo que o jornal
não dizia. E um psicanalista, fosse ele freudiano ou adleriano, diria
sem dúvida que todos os dias, ou até de hora em hora, estava a ver
as suas teorias verificadas por observações clínicas" (Popper,
1987a, p. 180).

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O método de procurar verificações para as teorias, utilizado pelos
freudianos, adlerianos, marxistas e astrólogos, além de ser acrítico promovia uma
atitude acrítica nos leitores. Ameaçava assim destruir a atitude de racionalidade, de
argumentação crítica (Popper, 1987a, p. 181).
Alguns pensadores, acreditam, de fato, que a verdade de uma teoria pode
ser inferida da sua irrefutabilidade (Popper, 1982, p. 221). Isto é um engano óbvio
pois pode haver duas teorias contrárias, ambas irrefutáveis e portanto, ambas não
podem ser verdadeiras. Um exemplo de duas teorias incompatíveis e irrefutáveis: o
determinismo e o indeterminismo. A primeira afirma que O futuro do mundo empírico
(ou fenomenal) é pré-determinado completamente (Popper, 1982, p. 219); a segunda
afirma que nem todo o futuro do mundo é pré-determinado. Mesmo que vivêssemos em
um mundo que aparentemente fosse totalmente indeterminado, surpreendendo-nos a
cada momento, o futuro poderia ainda ser pré-determinado e até antecipadamente
conhecido pelos que fossem capazes de ler o livro do destino (Popper, 1988, p. 28).
Por outro lado, se o mundo tivesse aparência completamente regular e determinista,
isso não estabeleceria que não existisse nenhum acontecimento indeterminado de
qualquer espécie (Popper, 1988, p. 28).
Apesar da falta de testabilidade ou de conteúdo empírico das teorias
metafísicas, elas não são necessariamente sem sentido, sem significado, como queriam
os positivistas.
Com efeito, é impossível negar que, a par de idéias metafísicas que
dificultaram o avanço da ciência, têm surgido outras tais como o
atomismo especulativo que o favorecem (Popper, 1985, p. 40).
Outro exemplo importante de como a metafísica inspira as teorias
científicas é a revolução copernicana. Copérnico tem a idéia de colocar o Sol como
centro, ao invés da Terra, não devido a novas observações astronômicas mas devido a
uma nova interpretação de fatos à luz de concepções semi-religiosas, neoplatônicas.
Para os platônicos e neoplatônicos, o Sol era o astro mais importante e por isso não
poderia girar em torno da Terra. A Terra é que deveria girar em torno do Sol.
Kepler foi um seguidor de Copérnico e, assim como Platão, estava imerso
em ensinamentos astrológicos; Kepler procurava descobrir a lei aritmética subjacente à
estrutura do mundo (misticismo numerológico dos pitagóricos); essa lei daria, entre
outras coisas, os raios das órbitas circulares planetárias. Ele nunca encontrou o que
procurava; não descobriu, nos dados astronômicos de Tycho Brahe, a desejada
confirmação da crença de que Marte girava em torno do Sol em movimento circular
uniforme. Os dados de Tycho Brahe levaram-no a refutar a hipótese de órbita circular;
depois de diversas tentativas, adotou a hipótese de órbita elíptica. Pôde então notar que
as observações astronômicas podiam se ajustar a essa nova hipótese se adicionalmente

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admitisse que Marte não se deslocava com velocidade constante. As observações
astronômicas não provaram que a hipótese elíptica estava correta, mas podiam ser
explicadas por essa hipótese ajustavam-se a ela (Popper, 1982, p. 215).
Apesar da inspiração metafísica, Kepler foi um crítico. Aceitou duas vezes
a refutação de suas hipóteses pelos dados astronômicos e reformulou a teoria. Mais
tarde, conforme exposto em secção anterior, a teoria de Newton mostrou que Kepler,
apesar de estar rigorosamente errado (as órbitas planetárias não são exatamente
elípticas), formulara uma teoria aproximadamente correta e melhor que a de Copérnico.
A idéia metafísica que talvez tenha motivado o maior número de
descobertas científicas foi a da pedra filosofal (existe uma substância capaz de
transformar metais vis em ouro), perseguida pelos alquimistas.
Assim como teorias metafísicas podem servir de impulso à ciência, também
podem se tornar um empecilho para o avanço do conhecimento. É por demais sabido o
quanto a Igreja Católica tentou entravar as idéias copernicanas, em especial em relação
a Galileu. É menos conhecida, apesar de muito recente, a criação por Lyssenko (1898-
1976) de uma teoria neodarwinista inspirada no marxismo e que pretendia ser uma
nova biologia proletária. Muitos opositores de Lyssenko na União Soviética foram
perseguidos entre 1935 e 1965, sendo alguns eliminados fisicamente (o célebre biólogo
soviético Vavilov, que morreu em 1943 em uma cela sem ar e sem luz, é apenas um
exemplo).
A sessão de 1948 da Academia Lênin foi extremamente importante para
que a falsa teoria de Lyssenko se estabelecesse oficialmente até 1965 na União
Soviética.
"Os geneticistas sucumbem sob as acusações acumuladas por
Lyssenko em um relatório, ao ouvirem que o Comitê Central do
Partido Comunista e o próprio Stalin aprovaram o relatório ...
Efetivamente, Stalin foi, durante sua vida, um critério infalível de
verdade, até de verdade científica" (Buican, 1990, p. 91).
Esses exemplos mostram como a ciência pode sofrer influências externas
através das teorias metafísicas; também revelam que estas não são necessariamente sem
sentido, como pregavam os positivistas.
Para os positivistas, era muito importante a justificação da origem das
teorias científicas; eles admitiam como a única fonte válida, a observação e a
experimentação. A experiência humana devia ser a origem e a função do conhecimento
científico; a invenção, a imaginação e a especulação não deviam desempenhar papel
importante nesse processo.
Para Popper, as teorias científicas são invenções, construções humanas.
As teorias podem ser vistas como livres criações da nossa mente, o resultado de uma

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intuição quase poética, da tentativa de compreender intuitivamente as leis da
natureza (Popper, 1982, p. 218). O processo de criação de uma teoria pode envolver
aspectos não-racionais; a imaginação, a criatividade, a especulação usualmente
desempenham papel importante. Inclusive a metafísica pode servir de fonte. Não há
fontes últimas do conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem-vindas; e
todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico (Popper, 1982, p. 55).

VI. A teoria do conhecimento


Popper denominou de teoria do balde mental a concepção de que nosso
conhecimento consiste de percepções acumuladas ou percepções assimiladas, separadas
e classificadas. Aristóteles já afirmara que nada há no intelecto humano que antes não
tenha estado nos órgãos dos sentidos. Anteriormente, os atomistas gregos admitiram
que os átomos que se desprendiam dos objetos, entrando nos órgãos do sentido,
convertiam-se em sensações; com o passar do tempo, o conhecimento era determinado
como um quebra-cabeça que se montava a si próprio.
De acordo com essa concepção, assim, nossa mente se assemelha a uma
vasilha uma espécie de balde em que percepções e conhecimento se acumulam
(Popper, 1975, p. 313). Os acessos ao balde são propiciados pelos órgãos dos sentidos.
Os empiristas radicais aconselham que interfiramos o mínimo possível com o processo
de acumulação do conhecimento. O conhecimento verdadeiro é conhecimento puro,
livre dos preconceitos que tendemos a agregar às percepções. Bacon aconselhava um
processo de depuração mental para afastar os quatro ídolos (Bacon, 1984) -
preconceitos que habitam a mente humana e a obscurecem - e assim o sujeito tornar-se-
ia uma criança, uma tábula rasa diante da natureza. Kant (1987) negou que as
percepções possam ser puras e afirmou que os nossos conhecimentos são uma
combinação de percepções com ingredientes adicionados pelas nossas mentes - as
formas da sensibilidade e do entendimento -, afastando-se então do empirismo radical.
Popper assevera que a teoria do balde está equivocada pois o que
realmente importa ao conhecimento científico é a observação. Uma observação é uma
percepção, mas uma percepção que é planejada e preparada (Popper, 1975, p. 314).
Ela é antecedida por um problema, por algo que nos interessa, por algo que é
especulativo ou teórico. Para planejarmos o que observar, temos que ter anteriormente
uma hipótese, conjectura ou teoria que nos oriente a selecionar as percepções
pretensamente relevantes à solução do problema. Não é possível observar tudo e,
portanto, as observações são sempre seletivas.
Os seres vivos, mesmo os mais primitivos, respondem a certos estímulos,
mas não a qualquer estímulo. O número de respostas é limitado, determinado por um
conjunto inato de disposições a reagir. As respostas dependem do estado interno do

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organismo; este pode permanecer constante com o tempo ou pode se alterar talvez em
parte sob influência das sensações. A aprendizagem com a experiência é uma mudança
na disposição para reagir não decorrente apenas do desenvolvimento do organismo
maturação mas também das mudanças de seu ambiente externo. A noção de
aprendizagem está intimamente ligada à noção de expectativa e também de expectativa
desiludida. Uma expectativa é uma disposição para reagir, ou um preparativo para a
reação, que se adapta (ou que antecipa) a um estado do ambiente ainda por vir
(Popper, 1975, p. 316). Nem todas as expectativas são conscientes, como bem
demonstra o exemplo do encontro inesperado de um degrau no final de uma escada; o
inesperado do degrau poderá nos obrigar à conscientização de que estávamos à espera
de uma superfície plana. A desilusão nos força a alterar o sistema de expectativas.
Popper considera que a aprendizagem pela experiência consiste basicamente em
correções nas expectativas a partir das expectativas desiludidas.
Uma observação necessariamente pressupõe um sistema de expectativas
que até podem ser formuladas explicitamente. A observação será utilizada para
confirmá-las ou refutá-las e então corrigi-las. As expectativas dos cientistas consistem
em considerável extensão de teorias ou hipóteses formuladas lingüisticamente
(Popper, 1975, p. 317).
A teoria do balde supunha que as hipóteses surgiam a partir das
observações. De acordo com a teoria de Popper, por ele denominada teoria do
holofote , as observações são secundárias às hipóteses, teorias, expectativas. É com
nossas hipóteses que aprendemos que tipos de observações devemos fazer: para onde
devemos dirigir nossa atenção; onde ter um interesse (Popper, 1975, p. 318). Elas são
nossos guias que iluminam a realidade, indicando-nos para onde dirigir a atenção.
A existência de um problema é o ponto de partida para a aprendizagem nos
seres vivos de um modo geral. Em verdade, para Popper, o conhecimento humano
cresce por um processo que é de tentativa e eliminação de erro. Os seres vivos estão
empenhados em resolver problemas, sendo os mais prementes os da sobrevivência. A
mutação (tentativa) e a seleção natural (eliminação de erro) determinam que os seres
vivos tenham órgãos e comportamentos que lhes possibilitam resolvê-los; assim as
características de um organismo vivo podem ser vistas como soluções dos problemas de
sobrevivência. Nesse nível as tentativas (mutações) são ao acaso e inconscientes. As
tentativas mal sucedidas são eliminadas por seleção natural. As tentativas bem
sucedidas sobrevivem com o organismo; entretanto, a sobrevivência passada não
garante a sobrevivência no futuro pois, se houver, por exemplo, uma mudança no
ambiente, o ser vivo poderá não estar adaptado.
"Desde a ameba até Einstein, o crescimento do conhecimento é
sempre o mesmo: tentamos resolver nossos problemas e obter, por

211 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


um processo de eliminação, algo que se aproxime da adequação em
nossas soluções experimentais" (Popper, 1975, p. 239).
A diferença entre a ameba e Einstein está nas suas atitudes em relação ao
erro. Diversamente da ameba, Einstein tentou o melhor que pôde, cada vez que lhe
surgia uma solução, mostrá-la falha e descobrir um erro: ele tratava criticamente as suas
soluções. A ameba, se tiver uma solução errada, será muito provavelmente eliminada
junto com ela. Podemos portanto dizer que o método crítico ou racional consiste em
deixar que nossas hipóteses morram em vez de nós (Popper, 1975, p. 227).
A aquisição de um novo conhecimento desenvolve-se sempre como
resultado da modificação de conhecimentos prévios (Popper, 1987a, p. 33). O ponto
de partida deste processo são os conhecidos inatos, determinados geneticamente. O
que há de especial no conhecimento humano é que ele pode formular-se na linguagem,
em proposições (Popper, 1987a, p. 33). Assim ele se torna comunicável, objetivo,
acessível a outros seres humanos e criticável. A linguagem é o veículo através do qual
podemos nos apropriar do conhecimento produzido pelos outros.
As mais importantes criações humanas, que possibilitaram a existência do
conhecimento objetivo (o Mundo 3, conforme será visto na secção seguinte) de um
modo geral e do conhecimento científico em particular, são as funções superiores da
linguagem: a função descritiva e a função argumentativa.
O homem compartilha com os animais as funções inferiores da linguagem.
A função sintomática que expressa através de sinais, estados do organismo; a função
sinalizadora que tem a propriedade de liberar ou disparar uma certa resposta ou reação
em outros organismos. É importante notar que estas duas funções são realmente
distintas, pois, podem-se encontrar exemplos em que a primeira está presente, mas não
a segunda; o contrário não é verdade, sendo a função sintomática necessária à
sinalizadora.
A linguagem humana é muito mais rica do que a dos animais, apresentando
diversas outras funções, entre as quais a descritiva e a argumentativa, que possibilitaram
a evolução da racionalidade e finalmente a ciência.
A descrição é indispensável para a ciência, inclusive a descrição de estados
de coisas conjecturados, que são as hipóteses, as teorias. O uso da função descritiva é
regulado pela idéia de verdade ou falsidade. As asserções descritivas podem ser
factualmente verdadeiras ou falsas quando correspondem ou não correspondem aos
fatos.
A função argumentativa da linguagem, a mais elevada das funções, pode
ser encontrada em atividade nas discussões críticas. Ela é a culminância da capacidade
humana de pensar racionalmente.

Silveira, F.L. da 212


O uso da argumentação crítica é regulado pela idéia de validade. Um
argumento é válido quando se mostra consistente, coerente, não contraditório. A lógica
formal pode ser vista como um sistema de argumentação crítica.
Usualmente os argumentos são contra ou a favor de alguma proposição ou
asserção descritiva. Na discussão científica, a argumentação crítica ocorre em relação às
hipóteses, teorias; é a crítica racional, em oposição ao dogmatismo, que possibilita o
avanço do conhecimento.
Podemos dizer que a função argumentativa da linguagem criou o que é
talvez o mais poderoso instrumento de adaptação biológica que já apareceu no curso
da evolução orgânica (Popper, 1975, p. 217). É ela que permite, como foi notado
anteriormente, que as nossas teorias morram em vez de nós.
O conhecimento científico que sobreviveu até o presente momento poderá
no futuro ter que ser substituído por outro melhor, por outro que melhor explique os
fatos. Isto poderá se dar se a pressão seletiva de nossa crítica aumentar, demonstrando
que o conhecimento atual não está adaptado à realidade. Nenhuma teoria em
particular, pode, jamais, ser considerada absolutamente certa: cada teoria pode se
tornar problemática (...) Nenhuma teoria científica é sacrossanta ou fora de crítica
(Popper, 1975, p. 330).
A teoria do conhecimento proposta por Popper pode ser sintetizada no
esquema seguinte:
P1 TS EE P2
P1 é o problema de partida. TS é a tentativa de solução que corresponde à
hipótese ou teoria (ela não é necessariamente única, podendo existir diversas tentativas
em concorrência). EE é o processo de eliminação do erro através da crítica. P2 é um
novo problema que emerge; as boas teorias não apenas resolvem problemas, como
também colocam novos problemas.
A teoria do holofote mental enfatiza o aspecto interno ativo do sujeito
no processo da construção do conhecimento pois aprendemos através da nossa
atividade que nos é inata, através de uma série de estruturas que nos são inatas e que
estamos aptos a desenvolver: aprendemos através da atividade (Popper e Lorenz,
1990, p. 31). Esta concepção epistemológica é muito antiga, remetendo a Platão ou mais
recentemente a Descartes, entre muito outros. Ela é conhecida na história da filosofia
como intelectualismo ou racionalismo. Entretanto, contrariamente aos outros
racionalistas que acreditavam que o conhecimento assim produzido era indubitável,
certo e verdadeiro, Popper enfatiza o caráter falível e corregível do mesmo. Enfatiza a
necessidade da crítica e a necessidade de confronto com a realidade para as ciências
empíricas. Ele é um racionalista crítico.

213 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


"Podemos então dizer que o racionalismo é uma atitude de
disposição a ouvir argumentos críticos e aprender da experiência. É
fundamentalmente uma atitude de admitir que eu posso estar
errado e vós podereis estar certos, e, por um esforço, poderemos
aproximar-nos da verdade. (...) Em suma, a atitude racionalista
(...) é muito semelhante à atitude científica, à crença de que na
busca da verdade precisamos de cooperação e de que, com a ajuda
da argumentação, poderemos a tempo atingir algo como a
objetividade" (Popper, 1987c, p. 232).

VII. A teoria dos três mundos e o problema cérebro-mente


Juntamente com John Eccles (prêmio Nobel de neurofisiologia), Popper
abordou um antigo problema da filosofia: o problema corpo-mente ou cérebro-mente.
Ambos escreveram a obra The self and Its Brain (Popper e Eccles, 1977), na qual
desenvolvem a sua teoria.
A existência de três mundos é o ponto de partida dessa teoria.
O Mundo 1 é constituído pelos objetos e estados físicos. Fazem parte deste
mundo a matéria, a energia, os seres vivos, todos os artefatos construídos pelo homem
(ferramentas, máquinas, livros, obras de arte , etc.).
O Mundo 2 é constituído pelos estados mentais subjetivos ou pelas
experiências subjetivas, pelo conhecimento subjetivo. Fazem parte deste mundo os
estados de consciência, percepções, emoções, sonhos, disposições psicológicas, crenças
e os estados inconscientes.
O Mundo 3 é constituído pelos conteúdos de pensamento ou pelo
conhecimento objetivo. Faz parte do Mundo 3 toda a cultura humana (as histórias, os
mitos, as teorias científicas ou não, os argumentos críticos, as matemáticas, etc.). Este
mundo é um produto da mente humana que passa a ter existência independente dos seus
criadores.
O Mundo das Idéias ou das Formas de Platão tem similaridades com o
Mundo 3, mas também tem diferenças importantes. Para Platão, o Mundo das Idéias é
anterior ao homem e eternamente imutável; o homem não age sobre ele, não o modifica;
apenas por intermédio do seu intelecto o capta. O Mundo 3 é uma criação humana, não
existe anteriormente aos seus criadores e é mutável. Aliás, o ordenamento dos três
mundos obedece à cronologia histórica; o Mundo 2 é uma emergência do Mundo 1 e o
Mundo 3 emerge posteriormente.
Os objetos do Mundo 3 são reais apesar de imateriais. Eles podem até ser
materializados ou incorporados; uma teoria científica pode estar materializada em um
livro e as suas aplicações tecnológicas em ferramentas, máquinas, etc. Entretanto, não é

Silveira, F.L. da 214


apenas a materialização que confere realidade aos objetos do Mundo 3. Eles também
são reais porque podem induzir os homens a produzirem outros objetos, inclusive no
Mundo 1 (um escultor, ao produzir uma nova obra de arte, pode animar escultores a
produzir obras semelhantes; uma teoria científica pode levar a que os cientistas
explorem suas conseqüências, discutam-na criticamente, criem aplicações práticas). Os
objetos do Mundo 3 são reais porque podem agir sobre o Mundo 1; em especial as
teorias científicas agem sobre o Mundo 1, alterando, para bem ou para mal, a face da
Terra.
O Mundo 3, mesmo sendo uma criação humana, tem uma certa autonomia
em relação aos seus criadores. Um exemplo disto pode ser encontrado na aritmética:
O homem criou os números naturais; esta criação gerou uma série de
problemas não antecipados pelos criadores. Um destes problemas é o chamado
problema de Euclides: há um número primo superior a todos os outros? Outro é a
conjectura de Goldbach (até agora não resolvido): qualquer número par maior do que
2 é a soma de dois números primos? Estes problemas foram descobertos muito depois
da criação dos números naturais; entretanto, eles existiam objetivamente dentro da
teoria mesmo quando ninguém os havia percebido, mesmo quando eles não faziam
parte do Mundo 2 de qualquer homem (decorre deste exemplo que não se pode
confundir o conhecimento em sentido subjetivo com o conhecimento em sentido
objetivo, ou seja, reduzir o Mundo 3 ao Mundo 2).
A autonomia (parcial) das teorias em relação aos seus criadores é notória ao
longo da história da ciência. Ela pode ser vista nas conseqüências não intencionadas
pelos criadores da teoria (por exemplo, Einstein não intencionou conseqüências do tipo
buracos negros quando criou a teoria geral da relatividade) ou nas discussões sobre o
próprio significado das teorias entre os seus criadores (por exemplo, sobre a
interpretação da mecânica quântica entre Bohr e Einstein).
Tendo como base a teoria dos três mundo, partem Popper e Eccles para o
problema cérebro-mente. Eles crêem na existência da mente autoconsciente como uma
emergência do cérebro e que, portanto, não poderá ser reduzida aos mecanismos
neurofisiológicos, físico-químicos do mesmo. Eles formularam a hipótese dualista-
interacionista, ou seja, existem dois órgãos, um material (o cérebro) e outro imaterial (a
mente) que interagem. Revivem a antiga hipótese defendida por Descartes.
A mente autoconsciente é um produto da evolução biológica; ela emerge
em um dado momento da história evolutiva e traz um novo valor de sobrevivência para
o homem. Todos os seres vivos estão constantemente resolvendo problemas mesmo que
inconscientemente (os mais prementes são os da sobrevivência); a mente, com seus
poderes de concentração, imaginação, criatividade, é um órgão capaz de propor
soluções conscientemente e examiná-las criticamente. As soluções erradas são capazes
de perecer através da crítica, enquanto o homem que as formulou sobreviverá.

215 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.197-218, dez.1996.


Uma das funções mais importantes da mente é a produção dos objetos do
Mundo 3 com os quais ela interage. A linguagem humana, para a qual todos nós temos
aptidões inatas, desempenha um papel importante na formação da consciência plena. O
aparecimento das funções descritiva e argumentativa da linguagem em uma
determinada etapa da evolução é a raiz do poder humano de produzir os objetos do
Mundo 3 e discuti-los criticamente.
Os animais provavelmente também possuem consciência, mas em estado
menos desenvolvido que o homem. Eles são desprovidos do eu (self) ou da consciência
plena. O surgimento do eu somente foi possível com o desenvolvimento da linguagem
humana, através da qual o homem pode conhecer outras pessoas. A formulação de
teorias sobre a extensão do nosso corpo e sua continuidade no tempo, apesar das
interrupções da consciência através do sono, está na base da formação do eu.
"O problema do surgimento do eu só pode ser resolvido, segundo
penso, se levarmos em conta a linguagem e os objetos do Mundo 3,
a par da dependência em que o eu se coloca em relação a eles. A
consciência do eu envolve, entre outras coisas, uma distinção, por
vaga que seja, entre corpos vivos e não-vivos e, conseqüentemente,
uma teoria rudimentar a propósito das características principais da
vida e, de alguma forma, envolve uma distinção entre corpos
dotados de consciência e não dotados de consciência" (Popper,
1977, p. 201).
Continua Popper:
"Envolve, ainda, a projeção do eu no futuro; a expectativa mais ou
menos consciente que a criança tem de, com o tempo, vir a
transformar-se em adulto; e a consciência de, por algum tempo, ter
existido no passado. E envolve, assim, problemas que levam a uma
teoria do nascimento e, talvez, a uma teoria da morte" (Popper,
1977, p. 201).
A realimentação do Mundo 3 sobre o Mundo 2 é a essência da formação do
eu; o Mundo 2 cria o Mundo 3, cria as teorias e sofre a influência destas mesmas
teorias. Como eus, como seres humanos, somos todos nós produtos do Mundo 3 que,
por sua vez, é um produto de incontáveis mentes humanas (Popper e Eccles, 1977,
p.145).
Nós somos, ao mesmo tempo, não apenas sujeitos, mas também objeto do
nosso pensamento, do nosso juízo crítico. O caráter social da linguagem permite que
falemos sobre nós a outras pessoas e possibilita compreendê-las quando falam sobre si
mesmas.

Silveira, F.L. da 216


A idéia de um órgão imaterial, a mente, provém da necessidade de explicar
uma série de características humanas, tais como o poder de concentração em um
problema (quando freqüentemente perdemos a consciência de nossa própria existência,
envolvendo-nos intensamente na tentativa de solucioná-lo), o poder de invenção, de
criatividade para gerar o Mundo 3. O executor de tudo isto não é apenas o cérebro mas
também a mente.
Haveria uma interação entre o cérebro e a mente no hemisfério esquerdo
(esta hipótese foi apresentada por Eccles bastante antes do que se relata a seguir). Na
década de sessenta o pesquisador Sperry passou a estudar diversos pacientes que
tiveram o corpo caloso (órgão que conecta os dois hemisférios cerebrais) seccionado,
fendido; o seccionamento do corpo caloso tinha sido o último recurso para livrar tais
pacientes de graves crises epilépticas. Sperry realizou diversas experiências que estão
descritas em Popper e Eccles (1977) e em Eccles (1979) e das quais a conclusão é
notável; o hemisfério direito, apesar de ser extremamente inteligente, é inconsciente;
apenas o hemisfério esquerdo é consciente. Este resultado constitui-se em uma
corroboração da teoria dualista-interacionista.

VIII. Conclusão
Podemos sintetizar os aspectos da epistemologia de Karl Popper abordados
nesse trabalho em algumas proposições:
a) A concepção segundo a qual o conhecimento científico é descoberto em
conjuntos de dados empíricos (observações/experimentações neutras, livres de
pressupostos) - método indutivo - é falsa.
b) Não existe observação neutra, livre de pressupostos; todo o
conhecimento está impregnado de teoria.
c) O conhecimento científico é criado, inventado, construído com objetivo
de descrever, compreender e agir sobre a realidade.
d) As teorias científicas não podem ser demonstradas como verdadeiras;
são conjecturas, virtualmente provisórias, sujeitas à reformulações, à reconstruções.
e) Todo o conhecimento é modificação de algum conhecimento anterior.
Deixamos para outro trabalho (vide neste mesmo exemplar do CCEF), no
qual apresentamos a epistemologia de Imre Lakatos - também um racionalista crítico -
as implicações dessas idéias para o ensino de ciências.

IX. Referências Bibliográficas


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BUICAN, D. Darwin e o darwinismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

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EINSTEIN, A. Notas autobiográficas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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Silveira, F.L. da 218


A METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA: A
EPISTEMOLOGIA DE IMRE LAKATOS

Fernando Lang da Silveira


Instituto de Física, UFRGS
Porto Alegre RS

Resumo

A epistemologia de Imre Lakatos - metodologia dos programas de


pesquisa - é apresentada. Um programa de pesquisa constitui-se de um
núcleo firme (conjunto de hipóteses ou teoria irrefutável por decisão
dos cientistas), de uma heurística que instrui os cientistas a
modificar o cinturão protetor (conjunto de hipóteses auxiliares e
métodos observacionais) de modo a adequar o programa aos fatos. Um
programa é progressivo quando prevê fatos novos e alguma destas
previsões é corroborada; ele é regressivo quando não prevê fatos
novos, ou, os prevendo, não são corroborados. A história da ciência é a
história dos programas em concorrência; as chamadas revoluções
científicas constituem-se em um processo racional de superação de
um programa por outro. Implicações da epistemologia de Lakatos e
Popper - ambos racionalistas críticos - para o ensino de ciências são
discutidas.

I. Introdução
A epistemologia de Imre Lakatos (1922-1974) constitui-se em uma das
importantes reflexões na filosofia da ciência no século XX, interrompida bruscamente
com a sua morte prematura em 1974. Quando tinha quase quarenta anos de idade
Lakatos, saindo da Hungria por motivos políticos, entrou em contato com a filosofia de
Karl Popper:
"Minha dívida pessoal com ele é imensa: mudou minha vida mais
que nenhuma outra pessoa (...). Sua filosofia me ajudou a romper,
de forma definitiva, com a perspectiva hegeliana que eu havia
retido durante quase vinte anos, e, o que é ainda mais importante,
me forneceu um conjunto muito fértil de problemas, um autêntico
programa de pesquisa" (Lakatos, 1989; p.180).

219 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.219-230, dez.1996.


Mesmo considerando que "as idéias de Popper constituem o
desenvolvimento filosófico mais importante do século XX" (Lakatos, 1989; p. 180),
Lakatos tomou a sério as críticas que elas receberam de Kuhn e Feyerabend. Ele
pretende que a sua "metodologia dos programas de pesquisa científica" (MPPC)
seja uma explicação lógica para o fazer científico, interpretando "as revoluções
científicas como casos de progresso racional e não de conversões religiosas" (Lakatos,
1989; p.19) como parecem pretender os relativistas, os sociologistas. Desta forma,
Lakatos está ao lado de Popper na luta contra as concepções que querem que a mudança
científica "não está e não pode estar governada por regras racionais e que cai
inteiramente no terreno da psicologia (social) da pesquisa" (Lakatos, 1989; p.19). O
crescimento do conhecimento se dá essencialmente no mundo das idéias, no Mundo
3 de Platão e Popper, no mundo do conhecimento articulado que é independente dos
sujeitos que conhecem (Lakatos, 1989; p.122).

"A filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia; a história da


ciência sem a filosofia da ciência é cega" (Lakatos, 1983; p.107). Com esta paráfrase
de Kant, Lakatos estabelece a posição de que a história da ciência pode ser utilizada
para avaliar propostas metodológicas rivais; adicionalmente, a filosofia da ciência
oferece ao historiador epistemologias, metodologias que lhe permitem reconstruir
racionalmente a história interna , complementando-a mediante uma história externa
(sociopsicológica).

"A história da ciência sempre é mais rica que sua reconstrução


racional. Entretanto a reconstrução racional ou história interna é o
principal; a história externa é secundária posto que os problemas
mais importantes da história externa são definidos pela história
interna" (Lakatos, 1989; p.154). (grifo do autor)

Pretende Lakatos que a MPPC seja a metodologia que melhor cumpre os


objetivos acima propostos. Passaremos a seguir a uma exposição da mesma.

II. A metodologia dos programas de pesquisa científica


A avaliação objetiva do crescimento do conhecimento científico deve ser
realizada em termos de mudanças, progressivas ou regressivas, para séries de teorias
científicas dentro de um "programa de pesquisa". "A própria ciência como um todo
pode ser considerada um imenso programa de pesquisa com a suprema regra
heurística de Popper: 'arquitetar conjecturas que tenham maior conteúdo empírico do
que as suas predecessoras' " (Lakatos, 1979; p.162). Assim, a história da ciência deve
ser vista como a história dos programas de pesquisa e não das teorias isoladas.

Silveira, F.L. da 220


Um programa de pesquisa pode ser caracterizado por seu "núcleo firme":
teoria ou conjunção de hipóteses contra a qual não é aplicada a "retransmissão da
falsidade"1. "O núcleo firme é 'convencionalmente' aceito (e, portanto, 'irrefutável' por
decisão provisória)" (Lakatos, 1983; p116). O programa de pesquisa de Copérnico
continha em seu "núcleo firme" a "proposição de que as estrelas constituem o sistema
de referência fundamental para a física" (Lakatos, 1989, p. 234). O programa de
pesquisa de Newton continha as três leis do movimento e a Lei da Gravitação
Universal. No de Piaget encontrava-se a "hipótese de equilibração" (Gilbert e Swift,
1985). No de Pasteur, a hipótese de que "a fermentação é um fenômento
correlacionado com a vida" (Asua, 1989; p. 76). Os cientistas que trabalharam ou
trabalham nesses programas não descartariam tais hipóteses, mesmo quando
encontrassem fatos problemáticos ("refutações" ou anomalias). Por exemplo, quando foi
observado pelos newtonianos que a órbita prevista para Urano era discordante com as
observações astronômicas, eles não consideraram que a Mecânica Newtoniana estivesse
refutada; Adams e Leverrier, por volta de 1845, atribuíram tal discordância à existência
de um planeta ainda não conhecido - o planeta Netuno - e, portanto, não levado em
consideração no cálculo da órbita de Urano. Essa hipótese permitiu também calcular a
trajetória de Netuno, orientando os astrônomos para a realização de novas observações
que, finalmente, confirmaram a existência do novo planeta.
O que Lakatos afirma é que a "heurística negativa" do programa proíbe
que, frente a qualquer caso problemático, "refutação" ou anomalia, seja declarado falso
o "núcleo firme"; a falsidade incidirá sobre alguma(s) hipótese (s) auxiliar(es) do
"cinturão protetor".
O "cinturão protetor" é constituído por hipóteses e teorias auxiliares -
"sobre cuja base se estabelecem as condições iniciais" (Lakatos, 1989; p.230) - e
também pelos métodos observacionais. Ele protege o "núcleo firme", sendo
constantemente modificado, expandido, complicado. No programa de Newton o
"cinturão protetor" continha modelos do sistema solar, a forma e a distribuição de
massa dos planetas e satélites, a ótica geométrica, a teoria sobre a refração da luz na
atmosfera, etc. As anomalias levaram a modificações no "cinturão protetor",
transformando-as em corroborações, algumas vezes espetaculares como no caso da
previsão de Netuno.
Quando os cientistas se deparam com algum fato incompatível com as
previsões teóricas -uma "refutação" ou anomalia - a "heurística positiva" orienta,

1 - Quando alguma conseqüência lógica de um conjunto de hipóteses é dada como falsa, a lógica
dedutiva permite afiançar a falsidade de alguma(s) da(s) hipótese(s); essa é a "retransmissão da
falsidade" (para maiores detalhes, consultar o trabalho sobre a filosofia da Karl Popper neste
mesmo exemplar do CCEF).

221 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.219-230, dez.1996.


parcialmente, as modificações que devem ser feitas no "cinturão protetor" para as
superar.
"A heurística positiva consiste num conjunto parcialmente
articulado de sugestões ou palpites sobre como mudar e
desenvolver as ' variantes refutáveis do programa de pesquisa, e
sobre como modificar e sofistificar o cinto de proteção ' refutável '
" (Lakatos, 1979; p. 165).
As anomalias no programa de Piaget puderam ser digeridas por
modificar a extensão dos estágios, subdividi-los e inclusive por propor a existência de
um quinto estágio posterior ao estágio das operações formais (Gilbert e Swift, 1985).
No de Copérnico e no de Ptolomeu, a introdução de novos epiciclos era utilizada a fim
de explicar qualquer dado astronômico novo e discordante com as previsões.
Como os programas de pesquisa têm desde o início um "oceano de
anomalias", a "heurística positiva" impede que os cientistas se confundam, indicando
caminhos que poderão, lentamente, explicá-las e transformá-las em corroborações. O
desenvolvimento do programa inclui uma sucessão de modelos crescentes em
complexidade, procurando cada vez mais se aproximar da realidade.
"Um modelo é um conjunto de condições iniciais (possivelmente
junto com algumas teorias observacionais) que se sabe que deve
ser substituído durante o ulterior desenvolvimento do programa , e
que inclusive se sabe como deve ser substituído (em maior ou menor
medida)" (Lakatos, 1989; p.70).
O programa de Newton começou com um modelo para o sistema planetário
onde cada planeta era puntual e interagia gravitacionalmente apenas com outra massa
puntual fixa (o Sol). O próprio Newton, em seguida, modificou-o, pois a Terceira Lei
(Princípio da Ação e Reação) impedia que o Sol fosse fixo; o Sol e o planeta deviam
orbitar em torno do centro de massa do sistema Sol-planeta. Neste caso a modificação
não era decorrente de nenhuma anomalia mas de uma incompatibilidade teórica do
primeiro modelo com as Leis do Movimento, com o "núcleo firme". Em seguida,
sofisticou-o mais ainda, tratando o Sol e o planeta como sendo esferas ao invés de
massas puntuais; esta sofisticação, que também teve origem teórica, apresentou sérias
dificuldades matemáticas, retardando a publicação dos "Principia" por cerca de dez
anos. O próximo passo foi considerar as interações gravitacionais entre os planetas e
satélites, chegando assim a uma teoria de perturbações. A partir daí Newton começou a
encarar com mais seriedade os fatos, com o objetivo de cotejar suas predições sobre as
órbitas; muitos deles eram bem explicados pelo modelo, mas outros não o eram. Passou
então a trabalhar com planetas e satélites não esféricos. Desta forma, o programa
newtoniano foi avançando, transformando diversas anomalias em corroborações.

Silveira, F.L. da 222


A avaliação dos programas de pesquisa envolve regras que os caracterizam
como "progressivos" ou "regressivos". Um programa é "teoricamente progressivo"
quando cada modificação no "cinturão protetor" leva a novas e inesperadas predições
ou retrodições2. Ele é "empiricamente progressivo" se pelo menos algumas das novas
predições são corroboradas.
Sempre é possível, através de convenientes ajustes no "cinturão
protetor", explicar qualquer anomalia. Por exemplo, sempre era possível no programa
de Ptolomeu compatibilizar os dados astronômicos sobre os planetas pela introdução de
um novo epiciclo. Estes ajustes são "ad-hoc" e o programa está "regredindo" ou
"degenerando" quando eles apenas explicam os fatos que os motivaram, não prevendo
nenhum fato novo, ou, se prevendo fatos novos, nenhum é corroborado.
Um programa está "regredindo" ou "degenerando" se seu crescimento
teórico se atrasa com relação ao seu crescimento empírico; isto é, se somente oferece
explicações post-hoc de descobertas casuais ou de fatos antecipados e descobertos por
um programa rival (Lakatos, 1983; p. 117). Segundo Lakatos, o programa marxista é
um exemplo de um programa regressivo pois, predisse alguns fatos novos que nunca se
cumpriram: o empobrecimento absoluto das classes trabalhadoras; a ocorrência da
revolução socialista em uma sociedade industrial desenvolvida; a inexistência de
conflitos de interesses entre os países socialistas; a ausência de revoluções em
sociedades socialistas. De maneira "ad-hoc" os marxistas explicaram os fracassos:
"Explicaram a elevação dos níveis de renda da classe trabalhadora
criando a teoria do imperialismo; inclusive explicaram as razões
para que a primeira revolução socialista tenha ocorrido em um país
industrialmente atrasado como a Rússia. Explicaram os
acontecimentos de Berlim em 1953, Budapeste em 1956 e Praga em
1968. Explicaram o conflito russo-chinês" (Lakatos, 1989; p. 15).
Para Kuhn a revolução científica é irracional, uma questão da psicologia
das multidões (Lakatos, 1979; p. 221). Segundo Lakatos, contitui-se em um processo
racional de superação de um programa por outro. A superação ocorre quando um
programa tem em relação ao seu rival um excedente de conteúdo de verdade, no
sentido de que prediz progressivamente tudo o que o seu rival corretamente prediz, e
algumas coisas adicionais (Lakatos, 1989; p. 231).
"Como se sucedem as revoluções científicas ? Se houver dois
programas de pesquisa rivais e um deles progride, enquanto o outro
degenera, os cientistas tendem a aderir ao programa progressivo.

2 - Uma retrodição é a explicação de um fato já conhecido. Uma predição é a antecipação de um


fato ainda não observado.

223 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.219-230, dez.1996.


Esta é a explicação das revoluções científicas" (Lakatos, 1989,
p.15).
O processo de superação de um programa por outro não é rápido; durante o
mesmo é racional trabalhar em qualquer dos programas ou até em ambos. Esta
possibilidade pode ser relevante quando um programa está formulado de maneira vaga e
imprecisa e os seus adversários desejam que adquira uma forma mais rigorosa para
então lhe expor as fraquezas e criticá-lo. Newton elaborou a teoria cartesiana dos
vórtices para demonstrar que era inconsistente com as leis de Kepler (Lakatos, 1989;
p. 146). O trabalho simultâneo em dois programas rivais mostra que a tese da
incomensurabilidade de Kuhn (1987) e Feyerabend (1977) não é sustentável.
No final do século XIX e início do século XX o programa newtoniano
entrou em um processo de degeneração; modificações "ad-hoc" no "cinturão
protetor" eram sempre capazes de explicar as anomalias. O programa relativístico de
Einstein se desenvolveu progressivamente, prevendo fatos novos, como o desvio da luz
em um campo gravitacional (corroborado durante o eclipse total do Sol em 1919) e
explicando (retrodizendo) o perihélio anômalo de Mercúrio. Esta anomalia já era
conhecida desde os meados do século XIX, mas não desempenhou qualquer papel na
formulação da Relatividade Restrita e da Relatividade Geral; Einstein não tinha a
intenção de resolvê-la quando propôs sua teoria (sabe-se que a motivação importante
para a Relatividade Geral era a da equivalência das massas inerciais e gravitacionais,
que para a Mecânica de Newton constituia-se num acidente, em uma mera constatação
empírica). Schwarzild foi quem obteve a solução do perihélio anômalo de Mercúrio
partindo da Teoria da Relatividade Geral. "Se um programa de pesquisa explica de
forma progressiva mais fatos que um programa rival, 'supera' a este último, que pode
ser eliminado (ou se se prefere, arquivado)" (Lakatos,1983; p. 117).
Lakatos insiste em que, do ponto de vista lógico, não existem
"experimentos cruciais", isto é, experimentos ou observações que possam sozinhos e
instantaneamente acabar com um programa de pesquisa ou decidir entre programas
rivais. Tal se deve à possibilidade de "absorver" qualquer fato novo e inicialmente
problemático, através de convenientes modificações no "cinturão protetor" do
programa sob pressão crítica. A superação de um programa por outro é um processo
histórico; depois que ela aconteceu, pode ocorrer que um antigo experimento seja
promovido ao status de "experimento crucial". Depois da superação da teoria de
Newton pelo programa relativístico, os experimentos de Michelson-Morley sobre a
velocidade da luz e mesmo o perihélhio anômalo de Mercúrio passaram a ser citados
como "experimentos cruciais".
A MPPC coloca de maneira clara a ocorrência histórica e a necessidade do
pluralismo teórico; nesse aspecto as idéias de Lakatos concordam com as de Popper e
Feyerabend. O progresso do conhecimento depende da existência de programas
concorrentes. O abandono de um programa somente poderá acontecer quando existir

Silveira, F.L. da 224


uma alternativa melhor (um outro programa melhor); a concepção de que fatos em
conflito com uma teoria são suficientes para que ela seja rechaçada (refutacionismo
ingênuo) é substituída por outra: o embate se dá entre, no mínimo, dois programas
de pesquisa e os fatos; a superação de um programa por outro não acontece
instantaneamente, constituindo-se em um processo temporalmente extenso. O
pluralismo teórico, além de ser reconhecido historicamente pela MPPC, é condição
necessária para o desenvolvimento do conhecimento.

III. As epistemologias de Popper e Lakatos e o ensino de ciências


Diversos autores têm, reiteradamente, insistido que a educação científica,
em especial o ensino das ciências naturais (Química, Física, Biologia, etc.) deve
procurar na filosofia da ciência uma fundamentação sólida e atualizada (Cawthron e
Rowell, 1978; Hodson, 1985; Nussbaum, 1989; Martin, Brower e Kass, 1990; Gil Perez
e Carrascosa, 1985; Cleminson, 1990; Burbules e Linn, 1991; Segura, 1991).
Sempre há uma concepção epistemológica subjacente a qualquer situação
de ensino (Hodson, 1985), nem sempre explicitada e muitas vezes assumida tácita e
acriticamente. Uma análise dos textos de ciências na escola é capaz de revelar que ainda
é dominante o empirismo-indutivismo (Cawthron e Rowell, 1978; Hodson, 1985;
Silveira, 1989 e 1992). As teses mais importantes desta epistemologia são as seguintes:
1 - A observação é a fonte e a função do conhecimento. Todo o
conhecimento deriva direta ou indiretamente da experiência sensível (sensações e
percepções); antes de podermos fazer qualquer afirmação sobre o mundo, devemos ter
tido experiências sensoriais.
2 - O conhecimento científico é obtido dos fenômenos (aquilo que se
observa), aplicando-se as regras do método científico (procedimento algorítmico que
aplicado às observações produz as generalizações, as leis, as teorias científicas). O
conhecimento constitui-se em uma síntese indutiva do observado, do experimentado.
3 - A especulação, a imaginação, a intuição, a criatividade não devem
desempenhar qualquer papel na obtenção do conhecimento. O verdadeiro
conhecimento é livre de pré-conceitos , de pressupostos.
4 - As teorias científicas não são criadas, inventadas ou construídas
mas descobertas em conjuntos de dados empíricos (relatos de observações, tabelas
laboratoriais, etc.). A teoria tem como função a organização econômica e parcimoniosa
dos dados, do observado e a previsão de novas observações. Qualquer tentativa de
ultrapassar o observado é destituída de sentido.
As citações abaixo exemplificam a adoção da epistemologia empirista-
indutivista em livros de texto comumente utilizados:

225 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.219-230, dez.1996.


"Tudo o que sabemos a respeito do mundo físico e sobre os
princípios que governam seu comportamento foi aprendido de
observações de de fenômenos da natureza" (Sears, 1983, p.3).

"As leis da Física são generalizações de observações e de


resultados experimentais" (Tipler, 1978, p.3).

"A Física, como ciência natural, parte de dados experimentais (...)


através de um processo indutivo, formular leis fenomenológicas, ou
seja, obtidas diretamente dos fenômenos observados"
(Nussenzveig, 1981, p.5).
As teses empiristas-indutivistas podem ser encontradas em roteiros de
laboratório (conjunto de instruções que tem o objetivo de guiar os alunos em atividades
experimentais, de laboratório). São usuais propostas que seguem o seguinte caminho: a)
instruções no sentido de investigar a variação concomitante de duas variáveis,
manipulando experimentalmente uma delas e observando como a outra se comporta; b)
coletar medidas de ambas as variáveis para diversos valores da variável manipulada,
organizando uma tabela de dupla entrada; c) construção de um diagrama de dispersão
com esses valores; d) descoberta da função que descreve os resultados experimentais
(a lei que rege o comportamento observado). O último item traz, implicitamente, a idéia
de que um conjunto de resultados experimentais impõe uma única função capaz de
descrever a relação entre as duas variáveis; desta forma, caberia ao experimentador
apenas descobrir a lei que está implícita nos dados, ou seja, induzir a lei a partir do
fenômeno3.
A chamada aprendizagem por descoberta, que acentua o valor
motivacional da experimentação, é um importante exemplo do empirismo-indutivismo
aplicado ao ensino das ciências. Esta proposta tem, como suposto essencial, que a
observação e a experimentação bem conduzidas proporcionam a base segura da qual o
conhecimento é obtido. A aprendizagem por descoberta tem a pretensão de tornar o
aluno mais ativo; entretanto, esta atividade é entendida como dispender mais tempo no
laboratório, fazendo observações. A formação de conceitos é considerada uma
decorrência de observações bem conduzidas, subestimando, desta forma, as
dificuldades da aprendizagem (Cleminson, 1990).

3 - A suposição de que um conjunto de pontos em um plano é compatível com uma única curva é
falsa. Existem infinitas curvas que descrevem os resultados experimentais com o grau de
aproximação que se desejar. Para maiores detalhes, consultar Hempel (1981), Chomski e Fodor
(1987), Pinent e Silveira (1992).

Silveira, F.L. da 226


O ensino, quando orientado pela epistemologia empirista-indutivista,
desvaloriza a criatividade do trabalho científico e leva os alunos a tomarem o
conhecimento científico como um corpo de verdades inquestionáveis, introduzindo
rigidez e intolerância em relação a opiniões diferentes (Gil Perez, 1986).
Da epistemologia racionalista crítica de Popper e Lakatos podemos derivar
alguns princípios que servirão de guia para o ensino de ciências. São eles:
1 - A observação e a experimentação, por si sós, não produzem
conhecimentos. O "método indutivo" (conjunto de regras e procedimentos que
aplicados às observações permite obter as leis, princípios, generalizações, teorias) é um
mito.
2 - Toda a observação e/ou experimentação estão impregnadas de
pressupostos, teorias. Observar é dirigir a atenção para algum aspecto da realidade e,
portanto, a observação é antecedida por algum pressuposto ou teoria que lhe orienta. Os
dados sensoriais somente adquirem significado quando interpretados. A observação e a
interpretação estão indissoluvelmente ligadas.
3 - O conhecimento prévio determina como vemos a realidade,
influenciando a observação. Não existe e, do ponto de vista lógico, é impossível haver
uma observação neutra, livre de pressupostos, livre de teoria. Sem pressupostos nem
saberíamos o quê observar, para onde dirigir a atenção.
4 - O conhecimento científico é uma construção humana que
intenciona descrever, compreender e agir sobre a realidade. Não podendo ser dado
como indubitavelmente verdadeiro, é provisório e sujeito a reformulações.
5 - A obtenção de um novo conhecimento, sendo um ato de construção
que envolve a imaginação, a intuição e a razão, está sujeito a todo tipo de
influências. A inspiração para produzir um novo conhecimento pode vir inclusive da
metafísica. Todas as fontes e todas as sugestões são bem-vindas.
6 - A aquisição de um novo conhecimento se dá a partir dos
conhecimentos anteriores, sendo usualmente difícil e problemática. Assim como os
cientistas, relutamos em abandonar o conhecimento, as teorias já existentes. O
abandono de uma teoria implica em reconhecer outra como melhor.
O reconhecimento de que os alunos são ativos construtores de idéias é hoje
quase que um consenso. O racionalismo crítico de Popper e Lakatos também suporta tal
posicionamento. Popper utilizou a metáfora do "holofote mental" em sua teoria do
conhecimento (vide o trabalho sobre a filosofia de Karl Popper neste mesmo exemplar
do CCEF), enfatizando o papel inventivo, construtivo do ato de conhecer.
Desde o final dos anos 70, tem sido realizada uma quantidade enorme de
pesquisa sobre as chamadas concepções alternativas (CAs). As CAs são concepções
que os alunos possuem "com significados contextualmente errôneos, não
compartilhados pela comunidade científica" (Silveira, Moreira e Axt, 1986, p. 1129) e,
portanto, em desacordo com as teorias científicas atuais.

227 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.219-230, dez.1996.


A existência das CAs mostra que os alunos são construtores de idéias que
objetivam dar conta do mundo, da realidade. Uma característica reiteradamente
encontrada nas CAs é a resistência à mudança: muitos alunos passam pela escola sem as
modificar. Por exemplo, Silveira (1992) e Silveira, Moreira e Axt (1986, 1989)
constataram que a maioria dos alunos na universidade, mantinham suas CAs sobre
"força e movimento"e sobre "corrente elétrica" mesmo depois de terem cursado as
disciplinas de Física Geral.
A reiterada incapacidade do ensino tradicional em promover a mudança das
CAs para as concepções científicas deve-se, supostamente, a que as primeiras não são
tomadas como um conhecimento prévio, como um "holofote mental" a ser substituído.
Propusemos e testamos uma estratégia de ensino que visa a superação das Cas,
fundamentada nas epistemologias de Popper e Lakatos (Silveira, 1992); esta estratégia
consta das seguintes principais etapas:
1 - Exposição clara e precisa das CAs, notando que elas possuem um
conteúdo de verdade (explicam e predizem com sucesso alguns fatos).

2 - Crítica das CAs. Elas fracassam em explicar e predizer alguns fatos,e,


se for o caso, também apresentam inconsistências lógicas.
3 - Apresentação da concepção ou teoria científica, enfatizando os
antagonismos conceituais com as CAs.
4 - Demonstração das vantagens da teoria científica sobre as CAs:
explica tudo aquilo que com sucesso as CAs explicavam; explica os fatos
problemáticos para as CAs; possui um excedente de conteúdo em relação às CAs,
prevendo fatos novos. A substituição das CAs somente ocorrerá se os alunos
reconhecerem as concepções científicas como melhores, isto é, não pode se dar
instantaneamente, decorrendo da competição entre ambas.
A estratégia foi testada com 305 alunos universitários, visando a mudança
das CAs sobre "força e movimento" e sobre "corrente elétrica" (Silveira, 1992). Os
resultados corroboraram a pretendida eficiência da estratégia na promoção da mudança
conceitual.

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Silveira, F.L. da 230


FEYERABEND E O PLURALISMO METODOLÓGICO*

Anna Carolina Krebs Pereira Regner


Departamento de Filosofia - UFRGS
Porto Alegre RS

Resumo

Na epistemologia contemporânea, Paul Karl Feyerabend, pensador


austríaco (1924-1994), cientista (doutor em Física), filósofo,
especialista em teatro e doutor honoris causa em Letras e
Humanidades, é um dos mais perspicazes críticos das análises da
natureza da ciência usualmente propostas. Neste texto, é analisada sua
crítica contra o racionalismo e sua defesa do anarquismo
epistemológico , o qual se traduz numa metodologia pluralista ,
tendo por foco sua obra-chave, Contra o Método. A análise em pauta
revela que Feyerabend se vale de uma estratégia anarquista. Mostra a
irracionalidade das regras do racionalismo, dado o que esse pretende
e os procedimentos que propõe, e a razoabilidade das regras que são
contrárias às suas (as contra-regras), à luz da praxis científica. Como
resultado da análise empreendida, coloca-se a questão: a que
racionalidade se dirige a crítica de Feyerabend? Na edição inglesa
mais recente de sua obra-chave, é reforçada e mais trabalhada a idéia,
já insinuada na primeira edição, de que o significado da
racionalidade não se esgota no daquela que é criticada.
PALAVRAS-CHAVE: Paul Feyerabend , Filosofia da Ciência ,
racionalismo , racionalismo crítico , pluralismo metodológico .

Na trajetória epistemológica das reflexões sobre a natureza da ciência que


povoam o panorama contemporâneo, Paul Karl Feyerabend, pensador austríaco (1924-
1994), é um dos críticos mais perspicazes das análises usualmente propostas, chamado
em rodas mais fechadas de terrorista epistemológico e por alguns físicos, mais
recentemente, de o pior inimigo da ciência , encabeçando uma lista em que são
nomeados Karl Popper, Imre Lakatos e Thomas Kuhn (Scientific American, May/1993,

* O presente texto foi publicado, sob a forma de artigo, em Epistéme: Filosofia e História das
Ciências em Revista. Porto Alegre, v.1, n.2, 1996, p.61-78.

231 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


p.16). Um inimigo, sem dúvida, altamente credenciado, pois é doutor em Física pela
Universidade de Viena e doutor honoris causa em Letras e Humanidades, pela
Universidade de Chicago, e, além de profundo conhecedor de teatro, foi assistente de
Berthold Brecht. Trata-se de um profundo conhecedor de Filosofia, com um
pensamento forjado pelo debate com grupos certamente qualificados na área -como o da
London School of Economics, liderado por Popper nos anos 50; o de wittgensteineanos,
como Elizabeth Anscombe; o de Herbert Feigl e seu centro nos Estados Unidos - e
pelas discussões com Kuhn e Lakatos, lecionando nessa área em várias instituições,
dentre as quais a Universidade da Califórnia, em Berkeley, e o Instituto Federal de
Tecnologia de Zurich.
Buscando uma amostragem significativa do pensamento de Feyerabend, a
questão que vai nos ocupar neste texto é a da análise da ciência que ele oferece. Para
expô-la - será esta a minha tarefa - tomarei como guia a sua obra mais conhecida entre
nós, Contra o Método (1977), a favor do que ele chama de anarquismo
epistemológico e que se traduz, em termos metodológicos, na defesa de um
pluralismo metodológico . Tomo essa edição como guia por ser a mais facilmente
disponível ao leitor deste artigo. Além disso, as mudanças ocorridas nas edições
subseqüentes não comprometem a linha de análise aqui escolhida, nem sua discussão.
Cabe, contudo, fazer referência e um convite à leitura da última edição inglesa desta
obra (Against Method, 1993), com revisão feita pelo próprio Feyerabend em 1992.
Nela, o autor revê certas posições que aparecem na 1a edição inglesa, de 1975, sendo
essa a versão traduzida na edição brasileira de 1977, posteriormente reeditada. Assim
ocorre com a posição defendida ao final da Introdução da edição de 1977 (a de 1975,
em língua inglesa), quando diz que poderá vir um tempo em que seja necessário dar à
razão uma vantagem temporária sobre a metodologia anárquica, mas que não pensava
que estivéssemos vivendo esse tempo. Em 1992, assim escreve Feyerabend:

Esta era a minha opinião em 1970, quando escrevi a primeira


versão deste ensaio. Os tempos mudaram. Considerando algumas
tendências na educação dos Estados Unidos ( politicamente cor-
reto , menus acadêmicos, etc.), em filosofia (pós-modernismo) e o
mundo em geral, penso que se deva dar à razão, agora, um peso
maior, não porque ela seja e sempre tenha sido fundamental, mas
porque isso parece ser necessário, dadas circunstâncias que ocor-
rem bem freqüentemente hoje (mas que podem desaparecer
amanhã), para criar uma abordagem mais humana . (Feyerabend,
1993 : p. 13, n12)

Em 1992, Feyerabend discute em maior detalhe a questão da


racionalidade , adentrando-se por uma porta que parece ter deixado, anteriormente,
timidamente entreaberta, e diz ser possível avaliar padrões de racionalidade e

Roger, A.C.K.P. 232


aperfeiçoá-los. Chama também a atenção para mal-entendidos simplistas de suas idéias,
como a que concerne a seu alegado relativismo :

... filosofias simples, sejam de um tipo dogmático ou mais liberal,


têm seus limites. Não há soluções gerais. Um alargado liberalismo
na definição de fato pode ter graves conseqüências, enquanto faz
um excelente sentido a idéia de que a verdade é ocultada e mesmo
pervertida pelos processos destinados a estabelecê-la. Eu,
conseqüentemente, novamente alerto o leitor quanto a que não
tenho a intenção de substituir princípios velhos e dogmáticos por
outros novos e mais libertários . Por exemplo, não sou nem um
populista para quem o apelo ao povo é a base de todo o
conhecimento, nem um relativista para quem não há verdades
enquanto tais , mas apenas verdades para este ou aquele grupo e /
ou indivíduo. Tudo o que digo é que os não-especialistas
freqüentemente sabem mais que os especialistas e devem,
conseqüentemente, ser consultados, e que os profetas da verdade
(incluindo aqueles que fazem uso de argumentos), mais freqüente
que raramente, são levados por uma visão que colide com os
próprios eventos que essa visão deve explorar . (Feyerabend, 1993
: p.XIII)

Em seu instrutivo Prefácio à edição inglesa de 1993, Feyerabend situa o seu


pensamento no novo estado de coisas que se configurou desde aquela primeira
publicação, com as dramáticas mudanças políticas, sociais e ecológicas ocorridas, e
com uma nova atitude de médicos e intelectuais, adaptando o que aprenderam nas
universidades e escolas especializadas para fazer o conhecimento mais eficiente e
humano. Num nível mais acadêmico, ressalta que os historiadores da ciência, da cultura
começaram a abordar o passado nos termos próprios deste: ... estamos bem distantes
da idéia platônica da ciência como um sistema de enunciados crescendo com
experimento e observação e mantendo a ordem por meio de padrões racionais
duradouros (Feyerabend, 1993 : p.11). A leitura desse Prefácio proporciona, além
disso, um elucidativo quadro da história e da sociologia das ciências contemporâneas.

I. Anarquismo epistemológico
Feitas as considerações acima, comecemos esclarecendo o que cabe
entender por anarquismo epistemológico . Inicialmente convém lembrar que
anarquismo significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de
ordem, do que oposição a toda e qualquer organização. Na sua tradução metodológica,
não significa, portanto, ser contra todo e qualquer procedimento metodológico, mas

233 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


contra a instituição de um conjunto único, fixo, restrito de regras que se pretenda
universalmente válido, para toda e qualquer situação - ou seja, contra algo que se
pretenda erigir como o método, como a característica distintiva, demarcadora do
que seja ciência .
E o que Feyerabend quer que se entenda por anarquismo epistemológico ?
Feyerabend diz que esse anarquismo difere tanto do ceticismo quanto do anarquismo
político (religioso). Ao anarquista epistemológico, não lhe é indiferente um ou outro
enunciado e desejará, talvez, defender certa forma de vida combatida pelo anarquista
político ou religioso, mantendo ou alterando seus objetivos e estratégias, na
dependência do argumento, do tédio, de uma experiência de conversão ou de outros
fatores de ordem emocional e de força persuasiva. O anarquista epistemológico não se
recusará a examinar qualquer concepção, admitindo que, por trás do mundo tal como
descrito pela ciência, possa ocultar-se uma realidade mais profunda, ou que as
percepções possam ser dispostas de diferentes maneiras e que a escolha de uma
particular disposição correspondente à realidade não será mais racional ou
objetiva que outra (Feyerabend, 1977, cap.XVI).
Antes de um ideário, o anarquismo epistemológico é uma atitude refletida
na própria estratégia utilizada por Feyerabend em sua defesa e na crítica da postura
adversária, o racionalismo, que vem contemporaneamente representado, em sua forma
mais elaborada, pelo racionalismo crítico de Popper e na forma mitigada desse,
representada pelo novo racionalismo de Lakatos. Por que o racionalismo se torna o
alvo visado? Para responder a essa questão, façamos duas breves digressões: uma, para
esclarecer o que Feyerabend entende pelo racionalismo que condena, como sendo
tanto incorreto , para dar conta do desenvolvimento da ciência (é este o ponto a que
vamos nos ater), como indesejável , para uma vida gratificante; outra, para explicitar
alguns pressupostos que fundamentam a postura epistemológica de Feyerabend.

II. Racionalismo (crítico)


Em sua crítica, Feyerabend identifica o racionalismo com uma tradição que
nasceu na Grécia e inicialmente substituiu os conceitos ricos e dependentes da
situação, próprios da épica primitiva, por umas poucas idéias abstratas e independentes
da situação , gerando, numa segunda etapa, estórias especiais, logo chamadas de
provas ou argumentos , cuja trama não é imposta aos caracteres principais, mas
segue-se de sua natureza. Desenvolveu-se, assim, igualmente, a idéia de que são as
próprias coisas que produzem a estória e a dizem objetivamente , isto é,
independentemente das opiniões e das compulsões históricas. A pressão conjunta
destes dois desenvolvimentos afiançou o critério de que o conhecimento é único - de
que existe apenas uma estória aceitável: a verdade - abstrato, independente da situação
( objetivo ) e baseado em argumento (Feyerabend, 1987 : p.9).

Roger, A.C.K.P. 234


Sob esse enfoque, podemos entender a razão criticada por Feyerabend
como a faculdade pela qual os padrões de tal tradição se exercem, traduzindo-se em
obediência a regras fixas e a padrões imutáveis, estabelecendo e submetendo-se a algo
como o método, concentrado, na sua versão contemporânea mais fiel, nas seguintes
regras:
1. Só aceitar hipóteses que se ajustem a teorias confirmadas ou corrobora-
das;
2 .Eliminar hipóteses que não se ajustem a fatos bem estabelecidos.
Essas regras expressam, segundo Feyerabend, a essência do empirismo e
do indutivismo (Feyerabend, 1977, capítulos I e II)1. Ao criticar a eficácia de tais regras
para dar conta da condução da ciência, Feyerabend igualmente critica a eficácia, para
tal fim, do proceder por razões , ou seja, daquilo que, segundo as regras, podemos
alegar como base de legitimação para nosso proceder.
De modo similar, critica a racionalidade, enquanto marca característica
daquela tradição e a teoria estática da racionalidade a que esta concepção dá lugar2,
desacreditando a imponência de uma teoria da ciência que aponte a tais padrões e regras
e se pretenda autorizada por alguma teoria da racionalidade do fazer científico
(Feyerabend, 1987)3, por algum princípio único de legitimação e organização. Caso
não possamos resistir à tentação de buscar um princípio (meta-metodológico) que seja
aplicável a todas as situações (ou contextos), concede que o único seria o princípio tudo
vale (Feyerabend, 1977, cap.I)4.

1 Assim, em que pesem as críticas de Popper ao indutivismo, podemos ver que compartilha o
empirismo deste, ao tomar a experiência como "o" árbitro para a aceitabilidade (via "falsea-
mento") de nossas teorias. Desse modo, podemos entender que Feyerabend chame o procedi-
mento que se oponha àquelas regras e aos preceitos do próprio racionalismo crítico de contra-
indução.
2 "E como regras e padrões são usualmente tomados como constituintes da 'racionalidade', infiro
que episódios famosos na ciência, admirados por cientistas, filósofos do mesmo modo que por
pessoas comuns, não foram 'racionais', não ocorreram de uma maneira 'racional', a 'razão' não foi
a força motora por detrás dos mesmos e eles não foram julgados 'racionalmente'" (Feyerabend:
1978, p.14).
3 Feyerabend explicitamente critica seu enfoque estático:"a idéia de um método estático ou de
uma teoria estática da racionalidade funda-se numa concepção demasiado ingênua do homem e
de sua circunstância social". (Feyerabend: 1977, p.34).
4 Não cabe aqui a crítica de que este princípio seria auto-destrutivo. Entendido como um meta-
princípio, poderia compreender sob si o princípio nem tudo vale como princípio de ordem infe-
rior, atinente a um particular contexto, enquanto tudo vale seria o único princípio que se aplicaria
a todos os contextos. Cabe igualmente ressaltar que a análise da ciência feita por Feyerabend,
com a crítica que elabora contra o "racionalismo", não depende da prévia aceitação desse
princípio ou de qualquer princípio que fosse universalmente válido, não pretendendo uma nova

235 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


III. Pressupostos do anarquismo epistemológico
Em contrapartida, quais os pressupostos em que se apóia a visão de
Feyerabend? O exame que faz da ciência se projeta na perspectiva de uma rede de
pressupostos epistemológicos, ontológicos, antropológicos e pedagógicos, que excedem
uma pauta meramente metodológica. Vê o mundo que desejamos explorar como uma
entidade em grande parte desconhecida. E vê a ciência construída em seu acesso, como
um modo de conceber essa entidade, dando-lhe sentido, (1) admitindo que a coisa e a
compreensão de uma idéia correta dessa coisa são, muitas vezes, partes de um único e
indivisível processo (Feyerabend: 1977, p.32) e que não há fatos nus , estando os
fatos sempre sujeitos à contaminação fisiológica e histórico-cultural da evidência
(Feyerabend: 1977, cap.V), (2), tomando a História como um labirinto de interações e
(3) propondo que a educação científica de seus atores seja conciliada com uma atitude
humanista , libertadora, de vida completa e gratificante, junto à tentativa
correspondente de descobrir os segredos da natureza e do homem (Feyerabend: 1977,
p.22). Essa rede de pressupostos faz-se presente na concepção de conhecimento que
Feyerabend oferece:

O conhecimento ... não é um gradual aproximar-se da verdade. É,


antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, tal-
vez, até mesmo incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada
conto de fadas, cada mito que seja parte do todo força as demais
partes a manterem articulação maior, fazendo com que todas con-
corram, através desse processo de competição, para o desenvolvi-
mento de nossa consciência. Nada é jamais definitivo, nenhuma
forma de ver pode ser omitida de uma explicação abrangente ,

refletindo-se na sua análise da ciência:

A tarefa do cientista não é mais a de buscar a verdade ou a de


louvar a Deus ou a de sistematizar observações ou a de aper-
feiçoar previsões . Esses são apenas efeitos colaterais de uma ativi-
dade para a qual a sua atenção se dirige diretamente e que é tor-

"teoria da ciência" ou da "racionalidade". No Prefácio à 2a edição inglesa de Against Method


(1988) e reproduzido na 3a edição (Feyerabend: 1993, p.7), Feyerabend diz:
tudo vale não é um princípio que eu defendo - não penso que princípios possam ser usados e
frutiferamente discutidos fora da situação concreta de pesquisa que se espera que eles afetem -
mas a aterrorizada exclamação de um racionalista que olha mais de perto a história. Lendo as
muitas críticas exaustivas, sérias e completamente desorientadas que recebi após a publicação
da 1a edição inglesa, freqüentemente me lembro das minhas trocas com Imre; o quanto ambos
teríamos rido se fôssemos capazes de ler essas efusões juntos.

Roger, A.C.K.P. 236


nar forte o argumento fraco , tal como disse o sofista, para, desse
modo, garantir o movimento do todo (Feyerabend: 1977, p.40-41).

Essa visão da ciência, por sua vez, é recolhida da trama de um outro


pressuposto, que jogará papel central na estratégia argumentativa de Feyerabend: a de
uma freqüente oposição entre a epistemologia oficial (sob a égide do racionalismo) e
a práxis científica (que se revelaria irracionalista, segundo os critérios da
epistemologia oficial ).

IV. Estratégia anarquista


Encerradas nossas digressões, voltemos, então, ao teor mais imediato da
defesa do anarquismo epistemológico ou pluralismo metodógico feita por Feyerabend.
Pretende ele fornecer uma nova metodologia ou uma nova teoria da racionalidade? Não,
seu objetivo é convencer o leitor de que todas as metodologias, mesmo as mais
óbvias, têm limitações (Feyerabend: 1977, p.43). Como procede? Na leitura de Contra
o Método podemos encontrar, subjacente à sua narrativa, uma estratégia que, refletindo
seu anarquismo, se desenvolve em duas frentes, a suportarem-se mutuamente. De um
lado, busca implodir a posição do adversário. Lutando em seu campo e com as suas
armas, mostra a irracionalidade do racionalismo5 , uma vez que suas regras, levadas
às suas últimas conseqüências, dentro da própria esfera lógica e epistemológica em que
se alicerçam, tornam-se auto-destrutivas, inviabilizam o alcance de seus objetivos e
conflitam com os fundamentos que as suportam.
Dada a contaminação histórica e fisiológica da evidência - admitida
mesmo por posições racionalistas como a de Popper e de Lakatos -, a condição de
coerência encerrada na regra 1: Só aceitar hipóteses que se ajustem a teorias
confirmadas ou corroboradas, impede a exploração da evidência. Alimenta uma visão
conformista e dogmática, de preservação do status quo, e supõe uma autonomia da
própria experiência, uma vez que, tornando irrelevante a exploração de alternativas
teóricas para o acesso a ela, supõe que, independentemente da teoria que a condiciona, a
experiência seja capaz de revelar-se, tornando-se a medida para o conteúdo empírico
de uma teoria (Feyerabend: 1977, cap. III). Por sua vez, a regra 2: Eliminar hipóteses
que não se ajustem a fatos bem estabelecidos, se observada, nos deixaria sem qualquer
teoria, dado o desacordo tanto quantitativo como qualitativo que toda a teoria exibe com
relação aos fatos de seu domínio. Para avaliar tais discordâncias, bem como permitir a
exploração da evidência, escavando as ideologias subjacentes (Feyerabend: 1977, cap.

5 O passatempo favorito do anarquista é "perturbar os racionalistas, descobrindo razões fortes


para fundamentar doutrinas desarrazoadas" (Feyerabend, 1977 : p.293).

237 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


V), e a discussão crítica de teorias, torna-se indispensável o trabalho com alternativas
teóricas conflitantes - não podemos descobrir o mundo a partir de dentro. Há
necessidade de um padrão externo de crítica: precisamos de um conjunto de
pressupostos alternativos (Feyerabend: 1977, p.42).
De outro lado, Feyerabend mostra a razoabilidade do irracionalismo ,
viabilizando o progresso da ciência, em qualquer uma das acepções que lhe seja
emprestada (Feyerabend: 1977, cap.II). Assim como o racionalismo foi caracterizado
pelas regras acima mencionadas, o irracionalismo o será através das contra-regras
(opostas às regras do racionalismo):
1. Introduzir hipóteses que conflitem com teorias confirmadas ou
corroboradas;
2. Introduzir hipóteses que não se ajustem a fatos bem estabelecidos.
Se as regras do racionalismo representarem a essência do indutivismo
- ao tomarem a experiência (enunciados singulares) como árbitro para conferir
aceitabilidade / legitimidade às teorias (enunciados universais) - as contra-regras
representarão o que se pode chamar de contra-indução . A razoabilidade da contra-
indução estabelece-se na medida em que suas contra-regras são necessárias à
exploração da evidência e discussão crítica pretendidas pelas regras do racionalismo e
mostram-se corroboradas pela práxis científica, tal como pode ser visto no seu estudo
de caso6 sobre a defesa da doutrina copernicana e introdução de uma nova Física por
Galileu (Feyerabend, 1977, caps.VI-XIII).
Esse estudo de caso de Feyerabend revela como a nova teoria, a de
Copérnico, admitindo o movimento da Terra, conflitava com teoria e fatos aceitos e
bem estabelecidos - a teoria aristotélica, com uma sólida epistemologia e ontologia, e
sua bem sucedida administração do senso comum, provendo-lhe o requerido suporte
empírico. A estratégia para a defesa da nova visão demandou a substituição do padrão
sensorial e lingüístico-conceitual vigente, atingindo diferentes estratos da experiência,
desde uma nova teoria da sensação (que deveria ser acompanhada de razão ) e da
percepção (com o uso de um sentido superior - o telescópio), até uma nova concepção
do movimento e da própria experiência. Consistiu, em primeiro, garantir-lhe espaço,
com um movimento inicial de recuo, evitando o confronto direto com a teoria
aristotélica e neutralizando o apoio da evidência disponível, apelando não só a
argumentos, mas à propaganda, a razões eventuais e procedimentos para os quais
Galileu não dispunha de boas razões , como o do uso do telescópio. Posteriormente,
os novos padrões orientaram a busca da evidência favorável ao novo sistema, com o
desenvolvimento de hipóteses (ciências) auxiliares, novos instrumentos e
procedimentos, ao qual serviram recursos proibidos pelas regras d o método , como

6 Procedimento coerente com sua recusa a oferecer uma nova teoria da ciência.

Roger, A.C.K.P. 238


uso de adaptações ad hoc, afastamento da evidência contrária e privilégio à evidência
corroboradora.

V. Crítica à metodologia do racionalismo


Tais recursos e procedimentos ferem os ditames do racionalismo crítico, a
metodologia positivista mais liberal hoje existente (Feyerabend: 1977, p.269).
Feyerabend contesta cada uma de suas regras metodológicas (Feyerabend: 1977,
cap.XV). Alega que, freqüentemente, instituições, idéias e práticas se desenvolvem a
partir de atividades sem importância. A formulação clara do problema é parte daquele
processo de mútua clarificação da coisa e da idéia correta da coisa. Comparte as
críticas de Lakatos (1979) a um princípio estrito de falseamento, a que este chama de
falseamento ingênuo7. Critica a exigência de conteúdo crescente (excedente) ou de
crescimento empírico, atribuindo sua pretensa aferição a uma ilusão epistemológica:

o imaginado conteúdo das teorias anteriores {...} diminui e pode


reduzir-se até o ponto de tornar-se menor que o imaginado
conteúdo das novas ideologias (Feyerabend: 1977, p.276-277).

Pois,

o aparato conceitual da teoria, que emerge lentamente, logo


começa a definir seus próprios problemas, sendo esquecidos ou
postos de lado como irrelevantes os problemas, os fatos, as
observações anteriores (p.275).

Ou pode ser que esses problemas, fatos, observações sejam trazidos à


esfera da nova teoria através de recursos ad hoc, redefinição de termos ou simples
afirmação da
decorrência de seu núcleo dos novos princípios básicos.
Em que pesem seus pontos de convergência com a análise de Lakatos,
Feyerabend estende sua crítica à face conservadora de sua proposta racionalista. Essa
proposta apresenta-se como metodologia dos programas de pesquisa. Os critérios de
avaliação propostos por essa metodologia referem-se, antes, a séries de teorias
estruturadas num programa, dotado de um núcleo, que inclui o componente metafísico,
a idéia diretora e "irrefutável" que o caracteriza e move. Desenvolve-se através de suas

7 Lakatos concorda com a crítica de Popper, segundo a qual nenhuma teoria pode ser verificável,
mas vai além, criticando ao próprio Popper - contra Popper, defende o caráter histórico, retro-
spectivo dos chamados "experimentos cruciais" e a impossibilidade de refutar conclusivamente
qualquer conhecimento ou teoria.

239 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


heurísticas positiva e negativa. A heurística negativa estabelece que caminhos devem
ser evitados, visando a preservação do núcleo - estabelece a formação de um "cinto de
proteção", pela articulação e / ou invenção de hipóteses auxiliares; redirige o modus
tollens ao "cinto de proteção", procedendo a ajustes ou à substituição total do "cinto". A
heurística positiva diz respeito à política de pesquisa a ser seguida - sugestões sobre
como modificar e sofisticar o "cinto" refutável, incluindo a construção e
complexificação de uma "cadeia de modelos" sucessivos, sendo esperada e antecipada a
existência de "refutações", bem como a estratégia para digeri-las. São as "verificações"
(e, não, as "refutações") que mantêm o programa, a ser avaliado em função da
transferência progressiva de problemas. À luz desse critério, uma série de teorias é
progressiva, quando teórica e empiricamente progressiva; teoricamente progressiva
quando cada nova teoria tem algum excesso de conteúdo empírico (prediz fatos novos,
em relação à sua predecessora); empiricamente progressiva quando parte do conteúdo
empírico for corroborado; degenerativa quando não for progressiva. A aceitabilidade
de um programa requer que exiba, pelo menos, transferência teoricamente progressiva
de problemas. Programas são rejeitados por outros programas, com os quais
competem, em vista de sua força heurística - capacidade para produzir fatos novos,
explicar refutações no decorrer do crescimento e, quando possível, estimular a
matemática. (Lakatos, 1979)
Tais avaliações, entretanto, não são instantâneas, nem de aplicação
mecânica8. Tanto a novidade de uma proposição fatual como as avaliações de casos
"corroboradores" e "falseadores" são sempre retrospectivas e a evidência contrária a
uma teoria será sempre corroboradora de outra. Não há razões lógicas ou empíricas que
possam decretar o falseamento conclusivo de um programa. Programas em
degeneração podem se recuperar. Incompatibilidades geralmente surgem com a
expansão dos modelos: "Não se trata de propormos uma teoria e a Natureza poder gritar
NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias e a Natureza poder gritar
INCOMPATÍVEIS" (Lakatos: 1979, p.159). E "alguns dos maiores programas de
investigação científica progrediram sobre fundamentos inconsistentes" (Lakatos: 1987a,
p.52). Segundo Feyerabend, quando Lakatos permanece consistente com suas próprias
regras, ou seja, com o racionalismo liberal que apregoa, seu racionalismo é um
anarquismo disfarçado; quando, porém, afastando-se de suas regras, de seu
liberalismo, admite a coerção prática, dá lugar a uma ideologia conservadora ,
divergindo do anarquismo . Feyerabend, contudo, diz que, no nosso atual estágio de

8 Em uma nota de pé de página, defendendo-se de crítica que lhe é feita por Kuhn e Feyerabend,
Lakatos apela à necessidade - de resto presente, segundo ele, em todas as metodologias - de
valermo-nos do "senso comum" (isto é, de juízos de casos particulares que não se fazem segundo
regras mecânicas, mas que apenas seguem princípios que deixam algum Spielraum)" para aplica-
ção das regras (Lakatos: 1987a, p.36-37, nota 58).

Roger, A.C.K.P. 240


consciência filosófica, essa ambigüidade de Lakatos e seu racionalismo fazem mais
pelo anarquismo que uma defesa ostensiva deste e que, ele próprio, Feyerabend, ao
concluir seu livro, será um lakatiano (Feyerabend: 1977, cap.XVII).

VI. Novos questionamentos: a incomensurabilidade


A crítica de Feyerabend ao racionalismo (ou, a sua defesa do
anarquismo ) atinge certos pontos cruciais às análises contemporâneas da ciência - as
supostas distinções entre observacional/teórico , história da ciência/filosofia da
ciência e, relacionada a esta, contexto-de-descoberta / contexto-de-justificação , com
um sólido ponto de ataque no material histórico para questioná-las. Enquanto a
primeira se encontra já bastante desacreditada , as duas últimas ainda são divisores de
água importantes entre modos de analisar a ciência, cujo questionamento recebe um
novo enfoque a partir dos estudos de caso realizados por Feyerabend. Esses estudos
conferem à história das ciências um papel substantivo para a sua compreensão
filosófica,9 com minuciosos exames do papel de fatores contextuais e circunstanciais e
reconstituição do contexto de descoberta , levando a uma crítica daquelas
distinções.10 Levam-nos, dentro deste quadro, a algumas discussões de questões
bastante problemáticas, tais como as da comensurabilidade / incomensurabilidade de
teorias, das relações ciência/não-ciência e, de um modo um tanto velado, mas como o
ponto que está no cerne de todas as discussões contemporâneas, a da racionalidade /
irracionalidade . Detenho-me, daqui em diante, no exame de algumas dessas questões e,
sobretudo, no da primeira, ponto nevrálgico das polêmicas acerca da mudança na
ciência e alvo central da discussão racionalidade / irracionalidade . Pois a
incomensurabilidade não só fere as pretensões de um conjunto único de regras ou
princípios, a presidir a caracterização e o progresso da ciência, como contextualiza a
própria racionalidade científica , qualquer que seja o sentido a ela atribuído.

9 Revestem de significação própria a paráfrase de Kant feita por Lakatos: "A Filosofia da Ciência
sem a história da ciência é vazia; a História da Ciência sem a filosofia da ciência é cega"(Lakatos:
1987a, p.11). Feyerabend refere-se a esse mútuo remetimento da reflexão filosófica e do material
histórico em termos da necessária combinação do argumento abstrato com o malho da história:
"O argumento abstrato é imprescindível porque imprime sentido à nossa reflexão. A história,
entretanto, é também imprescindível, ao menos no atual estágio da filosofia, porque dá força a
nossos argumentos" (Feyerabend: 1977, p.244).
10 "Na história da ciência, padrões de justificação proíbem, freqüentes vezes, formas de agir
provocadas por condições psicológicas, sócio-econômico-políticas e outras de caráter 'externo' - e
a ciência tão-somente sobrevive porque se permite que essas formas de agir prevaleçam" (Fey-
erabend: 1977, p.260).

241 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


A questão da ilusão epistemológica de crescimento empírico, há pouco
referida, é um fio privilegiado para a discussão da incomensurabilidade de teorias11.
Para seu exame, Feyerabend procede de modo similar ao adotado na implosão do
racionalismo pelas suas regras - revela as já mencionadas deficiências internas das
metodologias da comensuração, representadas pelo racionalismo crítico de Popper e
pela face conservadora do racionalismo da metodologia dos programas de pesquisa
de Lakatos, abrindo espaço para examinar as razões a favor da tese da
incomensurabilidade. Por incomensurabilidade de teorias Feyerabend entende sua
incomparabilidade, pelo menos na medida em que estão em jogo os padrões mais
familiares de comparação , notadamente os de comparação das classes de
conseqüências das teorias em questão (Feyerabend: 1979, p.271-274). A
incomensurabilidade está estreitamente relacionada ao significado e depende do modo
como sejam interpretadas as teorias científicas. Coloca-se para uma interpretação
realista , que concebe as teorias científicas como pretendendo dizer algo acerca da
constituição ontológica do mundo que tomam como objeto de investigação12.
Feyerabend arrola três teses centrais a favor da incomensurabilidade: a
existência (1) de esquemas de pensamento incomensuráveis entre si, (2) de estágios
incomensuráveis no desenvolvimento da percepção e do pensamento no indivíduo
(reportando-se a Piaget), (3) de princípios ontológicos condicionantes das ideologias
subjacentes a culturas diversas que impedem, tornam sem sentido, determinados
sistemas conceituais e que agem à base das cosmovisões encerradas nas nossas teorias
científicas13. A mera diferença conceitual não é suficiente para tornar duas teorias
incomensuráveis14; para que isso ocorra, o uso de qualquer conceito de uma deve
tornar inaplicáveis os conceitos da outra - o que tem lugar quando estão em jogo teorias
compreensivas, que abrigam diferentes fundamentos ontológicos:

Afinal, supõe-se que uma teoria abrangente envolva também uma


ontologia com o propósito de delimitar o que existe e assim
delimitar o âmbito dos fatos possíveis e possíveis interrogações
(Feyerabend: 1977, p.276).

11 Esse é um dos traços mais característicos da análise de Feyerabend e que o aproxima das
considerações de Thomas Kuhn (1979), parecendo afastá-lo de Lakatos.
12 Não se colocaria, por exemplo, para uma interpretação "instrumentalista", à luz da qual as
teorias são instrumentos para fazer previsões acerca do comportamento de fenômenos (supondo
uma linguagem comum de observação).
13 Sob esse enfoque ontológico, partilha a concepção de Whorff acerca da linguagem, como
"modeladora de eventos", trazendo classificações cosmológicas implícitas.
14 Feyerabend, em nota de pé-de-página (Feyerabend: 1981, p.154), diz que Kuhn ocasional-
mente descuida desse ponto.

Roger, A.C.K.P. 242


E, para sua investigação semântica ser empreendida, Feyerabend propõe
que se proceda como um antropólogo ao estudar a cosmologia de uma tribo: aprende
sua linguagem e informa-se dos seus hábitos sociais básicos; investiga as relações
desses com outras atividades, mesmo as que pareçam irrelevantes; procura identificar as
idéias-chave e, então, entendê-las, interiorizando-as, sem buscar traduções
prematuras15; completado seu estudo com o conhecimento da sociedade nativa e de seu
próprio desenvolvimento pessoal, pode estabelecer comparações entre, por exemplo, o
modo de pensar europeu e o nativo, e decidir acerca da possibilidade ou não de
reproduzi-lo na linguagem ocidental (Feyerabend: 1977, cap. XVII)16.
Por fim, cabe mencionar que, no bojo desses novos questionamentos e
nutridas pela detalhada análise que faz da questão da incomensurabilidade, estão as
reflexões de Feyerabend acerca das relações entre subjetividade e objetividade, entre
ciência e outras gerais, coerentes e frutíferas concepções de mundo , entre ciência e
sociedade, repercutindo na sua visão acerca da racionalidade. Quanto ao primeiro
ponto, Feyerabend critica o desiderato de objetividade do racionalismo, de algum modo
centrado na tradicional identificação da objetividade com o que seja racional,
abstrato, independente da situação (de opiniões e compulsões históricas), produzido
pelas próprias coisas. Diz (Feyerabend: 1981, nota 17, p.238) que nenhum dos autores
que defendem standards objetivos explicam o que esta palavra significa. Os
popperianos, segundo Feyerabend, ocasionalmente conectam objetividade com verdade

15 Feyerabend refere-se igualmente à aprendizagem da língua materna pela criança, ou, mesmo,
ao seu aprendizado de outras línguas, que não se processa via "tradução", e pergunta-se, então,
porque os adultos também não poderiam aprender ou penetrar em novas teorias científicas sem
supor sua tradução ("comensuração") com outras teorias já conhecidas.
16 Essas condições sob as quais cabe falar de incomensurabilidade devem ser consideradas
quando essa questão é confrontada com a seguinte objeção: como falar da própria incomensura-
bilidade de duas teorias, caso ela exista, sem comensurá-las? A esse primeiro ataque, cabe lem-
brar as ressalvas de Feyerabend e ter em mente que não podemos dizer que diferentes teorias
sejam, por essa única razão, incomensuráveis, e que o sejam sob qualquer aspecto. Devem ser
teorias compreensivas, estabelecendo princípios ontológicos conflitantes, e ser interpretadas de
uma determinada maneira, realisticamente, atentando à constituição ontológica. Mesmo assim,
ainda podem ser comparadas, com os alcances e limites de uma tradução lingüística, como a de
um idioma nativo numa língua européia: "O que não quer dizer que essa língua, tal como falada,
independentemente da comparação, seja comensurável com o idioma nativo. Significará que as
línguas podem orientar-se em muitas direções e que a compreensão independe de qualquer par-
ticular conjunto de regras" (Feyerabend: 1977, p.376). Feyerabend (1979) e Kuhn (1979) exami-
nam detidamente a questão da incomensurabilidade em termos de "tradução de lingua-
gens".Assim, podemos situar-nos num patamar "fora" das teorias envolvidas e, procedida a inves-
tigação semântica nos termos do método antropológico preconizado, examinarmos sua comen-
surabilidade / incomensurabilidade. Essa é uma questão que se coloca quando nosso objeto é a
análise de teorias constituídas.

243 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


e chamam de objetivas as comparações entre teorias apenas se baseadas numa
comparação do conteúdo de verdade. Chamam os standards remanescentes de
subjetivos e essa é a razão pela qual Feyerabend assim se refere a tais standards.
Aliás, um dos temores frente à tese da incomensurabilidade é o de que ela
impeça a refutação empírica e uma escolha entre teorias por razões empíricas.
Feyerabend, contudo, afirma (Feyerabend: 1981, p.238) que há comparação, mesmo
comparação objetiva, mas que essa comparação é um procedimento muito mais
complexo e delicado do que os racionalistas supõem. Em explícita resposta àquela
objeção, lembra que, embora caiba exigir de uma teoria apenas o que ela promete
explicar, as previsões que estabelece comumente dependem de seus enunciados e
também das condições iniciais, podendo ser contraditas pela experiência. Certamente
nos decidimos entre teorias - dentro de um mesmo ponto-de-vista cosmológico, são
possíveis juízos de verossimilitude; no caso de diferentes pontos de vista cosmológicos
abrangentes, cabe considerar contradições internas às teorias estabelecidas, juízos
estéticos, de gosto, preconceitos metafísicos, aspirações religiosas; em suma, o que
resta são nossos desejos subjetivos, a ciência devolvendo ao indivíduo uma liberdade
que ele parece perder quando em suas partes mais vulgares (Feyerabend, 1977 : p.412).
Sua posição é a de que há muitas e complexas interações entre sujeito e objeto e
muitas maneiras pelas quais um desemboca no outro. (Feyerabend, 1981 : p.2.) Diz:

É possível conservar o que mereceria o nome de liberdade de cri-


ação artística e usá-la amplamente, não apenas como trilha de fu-
ga, mas como elemento necessário para descobrir e, talvez, alterar
os traços do mundo que nos rodeia. Essa coincidência da parte com
o todo (o mundo em que vive), do puramente subjetivo e arbitrário
com o objetivo e submisso a regras, constitui um dos argumentos
mais fortes em favor da metodologia pluralista (Feyerabend:
1977, p.71).

Quanto às relações entre ciência e outras concepções de mundo,


Feyerabend diz : Há mitos, há dogmas da teologia, há metafísica e há muitas outras
maneiras de elaborar uma cosmovisão (Feyerabend: 1977, p.279). As similaridades
entre a estrutura, processo de elaboração e dinâmica da função explicativa do mito e da
ciência são surpreendentes (Feyerabend: 1977, cap.XVIII). Segundo sua avaliação, não
apenas considerações de ordem especulativa, mas prática, face à repressão a outras
maneiras de elaborar cosmovisões que coincidem com o surgimento da ciência
moderna, ensejam que hoje questionemos as relações entre Estado e ciência - o que nos
leva ao terceiro ponto levantado: o da racionalidade científica. A ciência possui uma
ideologia própria e cabe-lhe impô-la a seus adeptos; mas não deve ter prerrogativas
maiores que as concedidas a outras ideologias num Estado democrático, onde os
cidadãos devem ter a oportunidade de poder escolher a forma de vida desejada. Em sua

Roger, A.C.K.P. 244


educação, deveriam ser expostos a diferentes cosmovisões, antes que fizessem sua
escolha pela ciência, com suas exigências próprias: Cabe ensiná-la, mas tão-somente
àqueles que decidiram aderir a essa particular superstição. (Feyerabend: 1977,
p.464)17 Conforme sua análise, a razão do tratamento especial que a ciência recebe se
deve ao conto de fadas de que a ciência não é mera ideologia, mas medida objetiva de
todas as ideologias (Feyerabend: 1977, cap.XVIII). A desmistificação desse conto
revela o caráter democrático da ciência na sua dinâmica interna18, e, apesar de seu
ocultamento na sua apresentação ao público maior, os cientistas alegam que só os fatos,
a lógica, a metodologia decidem.

VII. Uma nova racionalidade?


O desvelamento da ciência, expondo-a em seus mecanismos irracionais, à
luz das regras do racionalismo, acaba sendo o meio pelo qual qualquer decisão pela
ciência seja muito mais racional, calcada na visão esclarecida e sopesada de razões, do
que tem sido. E conclui Feyerabend seu Contra o método, dizendo: a racionalidade de
nossas crenças se verá consideravelmente acentuada. (Feyerabend, 1977: p.466.) Essa
conclusão leva-nos a indagar se, à base das reflexões que animam a análise da ciência
feita por Feyerabend, não se encontra o questionamento das relações entre razão e anti-
razão, deixando aberta a porta para pensá-las em termos de uma nova racionalidade.
Trazendo para seu anarquismo epistemológico as palavras de Hans Richter
sobre o dadaísmo, cita Feyerabend: A compreensão que razão e anti-razão, sentido e
sem sentido, intenção e acaso, consciência e não-consciência [e, acrescentaria eu,
humanitarismo e anti-humanitarismo] são, em conjunto, partes necessárias de um todo
{...}. (Feyerabend: 1977, p.294.) Que razão seria essa, parceira de sentido, intenção,
consciência, humanitarismo e de anti-razão e seus associados? Não deve ser aquela da
tradição de uma estória única - e, se o fosse, seria essencialmente modificada por suas
novas relações, vale dizer, contextualizada. Onde estão as fronteiras entre racional e
irracional ? A análise de Feyerabend incita-nos, de um lado, a repensar essa questão,
nos termos de uma racionalidade que faça crescer nossa humanidade, nossas aptidões e

17 A sociedade moderna é 'copernicana', mas não porque a doutrina de Copérnico haja sido
posta em causa {...}; é 'copernicana' porque os cientistas são copernicanos e porque lhes aceita-
mos a cosmologia tão acriticamente quanto, no passado, se aceitou a cosmologia de bispos e
cardeais (Feyerabend, 1977 : p.456.)
18 No fundo, pouquíssima diferença há entre o processo que leva ao anúncio de uma nova lei
científica e o processo de promulgação de uma nova lei jurídica: informa-se todos os cidadãos ou
os imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de 'fatos' e preconceitos, discute-se o assunto e,
finalmete, vota-se (Feyerabend: 1977, p.457.)

245 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


nossa conciência, vindo ao encontro daquela idéia motora da sua concepção de
conhecimento. De outro lado, contudo, a discussão desse ponto, na versão de sua obra
que aqui nos serve de guia, fica circunscrita a uma visão tradicional de racionalidade,
apenas esgueirando-se a possibilidade de uma nova racionalidade por entre insinuações
e dissimulações. Que a análise de Feyerabend nos permita tal abertura parece vir ao
encontro de sua visão permanentemente questionadora, inconformada , com relação a
seu próprio pensamento, dando a esse novas e penetrantes versões ao longo de sua
trajetória.
De um modo geral, é difícil criticar a análise empreendida por Feyerabend,
devido, em grande parte, à ausência de uma teoria da ciência que lhe possa ser
imputada, à luz da qual pudessem ser julgados seus alcances e limites, sua propriedade
e suas inconsistências. Podemos criticar-lhe o fato de não oferecer essa teoria,
entendida como uma grande visão ou um grande esquema aplicável a diversos
contextos da ciência, uniformizando sua análise? Mas a que título caberia tal cobrança?
Os princípios gerais que encontramos em Feyerabend, como o tudo vale, são
suficientemente vagos , podendo comportar variadas determinações. E não cabe
cobrar-lhe esta vagueza, pois não pretende construir uma crítica com base num novo
corpo de princípios firmes e imutáveis. Podemos cobrar-lhe que se vale de uma
determinada visão da história das ciências, talhada de modo a emprestar força ao seu
(de Feyerabend) argumento abstrato? Teriam as coisas efetivamente ocorrido desse
modo? Essa pergunta, contudo, revela-se inapropriada ou inócua, à luz dos
pressupostos de análise tomados - pois basta, para Feyerabend, trazer elementos, na sua
reconstituição histórica, que não se enquadrem nos esquemas analíticos que ele
critica. Ao não se enquadrarem , cairão sob o abrigo de uma visão que acolhe fatores
complexos e diversos, como a sua. Todavia, teria a sua crítica o mesmo efeito, caso
tomasse como alvo não a razão monolítica , estática, a que se refere, em 1970, mas
uma razão contextualizada - possibilidade que se vê aberta pelo próprio fato da sua
crítica e de que, em 1992, ele admite presente nas análises mais recentes da ciência?

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247 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.


BACHELARD: O FILÓSOFO DA DESILUSÃO

Alice Ribeiro Casimiro Lopes


Escola Técnica Federal de Química - RJ
Faculdade de Educação - UERJ
Rio de Janeiro RJ

Resumo

Este artigo se propõe a analisar os principais aspectos da obra


epistemológica de Gaston Bachelard, notadamente sua concepção de
erro e verdade e sua perspectiva descontinuísta. Argumentamos que
esta perspectiva se expressa pelas concepções de fenomenotécnica,
ruptura, obstáculos epistemológicos, filosofia do não, recorrência
histórica, racionalismos setoriais e alcança seu ápice com a proposta
da razão polêmica. Assim, enquanto um filósofo da desilusão, da
retificação constante, Bachelard construiu uma epistemologia
essencialmente histórica e questionadora das coerções de um
racionalismo unitário, que tem sua base na tradição do pensamento.

I - Introdução
Trata-se de uma tarefa extremamente ousada analisar a obra epistemológica
de Gaston Bachelard nos limites de um artigo. Para tanto, somos obrigados a escolher
um enfoque, uma linha de abordagem, que privilegia alguns conceitos e análises, em
detrimento de outros, não necessariamente menos significativos no conjunto da obra.
Corremos o risco de retratar a epistemologia bachelardiana como um sistema acabado,
quando sua marca central é exatamente o eterno recomeçar, a nos exigir uma constante
vigilância epistemológica. Por outro lado, a importância de tal propósito é considerável,
uma vez que, infelizmente, o conhecimento no Brasil sobre os trabalhos deste filósofo é
reduzido, não apenas entre professores e pesquisadores de ciências físicas, mas também
entre pesquisadores de ciências sociais. A despeito da atualidade de suas idéias, do
caráter polêmico que nos inspiram e da versatilidade de sua forma de pensar, os
educadores em ciências sofrem maior influência de autores associados ao positivismo
anglo-saxônico, corrente de pensamento de certa forma ainda hegemônica.
Muito desse desconhecimento certamente se deve ao fato de sua extensa
obra apenas recentemente haver sido traduzida, ainda que não completamente, para o
português. Por sua vez, o nem sempre bem compreendido caráter dual dos trabalhos de

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 248


Bachelard - no campo da ciência e da epistemologia (livros publicados de 1928 a 1953)
e no campo da poética (livros publicados de 1942 a 1961) - contribui para o
distanciamento dos pesquisadores frente à sua obra. Acrescente-se a isso, o fato de que
a iniciação ao pensamento bachelardiano, freqüentemente, se fez a partir da leitura da
obra de Althusser 1, seu orientando nos estudos superiores, ficando, pois, associada ao
campo da epistemologia das ciências sociais.
Assim sendo, este artigo tem por objetivo analisar as principais concepções
epistemológicas de Gaston Bachelard, de forma a contribuir para as discussões que hoje
se fazem no ensino de ciências. Inicialmente, situamos alguns aspectos da vida deste
autor em confronto com os princípios gerais de sua filosofia. Em seguida,
argumentamos sobre seu caráter de filósofo da desilusão no processo de construção do
conhecimento, a partir de sua perspectiva de valorização do erro e da retificação, em
detrimento dos processos de validação do conhecimento científico. Posteriormente,
analisamos as diferentes facetas da perspectiva descontinuísta de seu pensamento, ou
seja, a noção de recorrência histórica, de ruptura, o conceito de obstáculo
epistemológico, de racionalismos setoriais e a filosofia do não. Por fim, analisamos
contribuições de sua proposta epistemológica para o ensino de ciências.

II - Bachelard: de professor de ciências a filósofo da Sorbonne


Dagognet (1986), ao analisar a vida e a obra de Bachelard, condena a
aproximação demasiadamente fácil que alguns autores fazem entre a produção de um
filósofo e aspectos de sua existência. Segundo ele, à maneira bachelardiana, não
devemos nos prender ao empirismo das primeiras impressões e considerar que a vida de
um filósofo se reflete em sua obra. Ao contrário, em Bachelard, nitidamente
observamos ser o pensamento o que dinamizava sua vida, instaurava novos significados
em sua existência.
Entretanto, conforme o próprio Dagognet ressalta, podemos evocar alguns
laços, alguns traços, senão de similaridade, ao menos de paralelismo, entre a vida e a

1 - Althusser incorpora os pressupostos de Bachelard na construção de sua leitura científica do


marxismo, defendendo não apenas uma radical separação entre ciência e ideologia, como a
ocorrência de um corte epistemológico na fundação de uma ciência. Freqüentemente, afirma-se
que esta noção de corte epistemológico foi desenvolvida por Bachelard, cabendo a Althusser sua
tradução do campo das ciências físicas para o campo das ciências sociais. Contudo, trata-se de um
termo criado por Althusser, ao reinterpretar a noção de ruptura em Bachelard (ver Balibar, 1991:
11). Bachelard, inclusive, questiona a idéia de fundação de uma ciência (ver Bachelard, 1985:
43), o que nos faz colocar ressalvas frente à interpretação de Althusser, por considerar
problemática sua transposição, de certa forma acrítica, dos princípios epistemológicos das
ciências físicas para as ciências sociais.

249 Lopes, A.R.C.


obra de Bachelard. Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884, na França
campesina, e morreu em 16 de outubro de 1962, na Paris cosmopolita e industrializada.
Vivenciou assim a ruptura entre o século XIX e o século XX, entre o campo e a cidade,
o contato com os elementos básicos que inspiram os devaneios - a água, o ar, o fogo e a
terra -, expresso em seus trabalhos no campo da Poética, e a vivência junto às ciências,
expressa em sua obra epistemológica.
Foi, sem dúvida, um filósofo múltiplo, com uma vida marcada por
mudanças bruscas de trajetória. Trabalhou, assim que se fez bacharel, na administração
dos Correios e Telégrafos, com o cuidado administrativo de pesar as cartas, vivência
que lhe conferiu o traço empirista de seu perfil epistemológico para o conceito de
massa, como destaca em A Filosofia do Não. Após ver frustrado, pela Primeira Guerra,
seu interesse de se tornar engenheiro, ingressou no magistério secundário. Trabalhou,
então, como professor de ciências e de filosofia em sua terra natal (Bar-sur-Aube). Aos
quarenta e quatro anos publicou suas primeiras teses: Ensaio sobre o conhecimento
aproximado e Estudo sobre a evolução de um problema de física, a propagação
térmica nos sólidos (ainda não publicados em português). Em 1930, ingressou na
Faculdade de Letras de Dijon e em 1940, na Sorbonne.
Essa multiplicidade de projetos em sua vida profissional tem seu
paralelismo com a pluralidade de suas idéias filosóficas e com a vivacidade de um
pensamento resistente às classificações e aos rótulos. Quando se pensa em entendê-lo
como idealista, por sua crítica incisiva ao realismo, tem-se que retificar o pensamento,
ao se compreender sua análise sobre o papel constitutivo da técnica frente à razão.
Quando se pensa, então, ser ele um materialista, surpreendemo-nos com seu eixo de
construção do conhecimento: do racional ao real. Como ele mesmo afirmou, de certa
forma respondendo aos que tentavam defini-lo como racionalista: Racionalista ?
Tentamos tornar-nos isso, não apenas no conjunto de nossa cultura, mas nos detalhes
de nossos pensamentos, na ordem pormenorizada de nossas imagens
familiares (Bachelard, 1989a: 7).
Bachelard, portanto, manteve-se eqüidistante, e igualmente crítico, do
materialismo e do idealismo, para construir uma epistemologia intrinsecamente
histórica. Segundo o filósofo francês, só podemos efetuar uma reflexão crítica sobre a
produção dos conceitos ao nos debruçarmos sobre a história das ciências. Por isso,
Canguilhem (1994) afirma ser da história das ciências, filosoficamente questionada, que
surge uma epistemologia.
Enquanto um intérprete da ciência de seu tempo, especialmente a partir das
contribuições da Física Relativística, das Geometrias Não-euclidianas e da Química
Quântica, Bachelard organiza uma epistemologia não-normativa, ao contrário das

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 250


filosofias da ciência dominantes 2, de cunho empírico-positivista, pertencentes à matriz
anglo-saxônica. Como afirma Lecourt (1980: 8-9), Bachelard inaugura este não-
positivismo, distinguindo-se de tudo o que se pratica noutro lado sob a designação de
epistemologia. O chamado "outro lado" da tradição epistemológica, que engloba tanto
os empiristas lógicos como as perspectivas de Karl Popper 3 e de Imre Lakatos, sempre
se apresenta como a "ciência da ciência" ou "a ciência da organização do trabalho
científico" ou ainda como uma filosofia científica, com base nos conceitos da lógica
matemática. Segundo Japiassu (1991), trata-se de uma corrente epistemológica lógica,
que visa ao estudo e à construção da linguagem científica, bem como a uma
investigação sobre as regras lógicas que presidem a todo enunciado científico correto
(positivismo anglo-saxônico). Ao contrário, a epistemologia histórica nos faz questionar
a possibilidade de definirmos de forma definitiva e universal o que é ciência. Nesta
perspectiva, ciência é um objeto construído socialmente, cujos critérios de
cientificidade são coletivos e setoriais às diferentes ciências.
Por conseguinte, o objetivo de Bachelard não é dizer aos cientistas como
devem proceder em seu trabalho. Seu diálogo é com os filósofos de seu tempo 4; seus
questionamentos se dirigem a uma filosofia desatenta para as transformações radicais
que sofre a razão humana com o advento da ciência contemporânea. Como afirma
Canguilhem (1994), devemos considerar a obra de Bachelard como uma tentativa
obstinada de despertar a filosofia de seu sono dogmático, nela suscitando a vontade de
revalorizar sua situação face à ciência contemporânea.
Por outro lado, a maioria dos filósofos da ciência trabalha com enfoque
quase total na Física e Bachelard também deles se distingue por trabalhar com questões
epistemológicas tanto na Física, quanto na Matemática e, sobretudo, na Química 5.

2 - A expressão filosofia das ciências, em função de sua origem associada aos trabalhos de
Comte, tende a ser compreendida como expressão de uma problemática positivista, enquanto a
expressão epistemologia tende a ser associada a uma problemática não-positivista. Por isso, no
decorrer deste artigo, procuramos utilizar o termo epistemologia para as referências a Bachelard,
deixando a expressão filosofia das ciências para expressar os autores da matriz anglo-saxônica.
Para maiores desenvolvimentos sobre a origem dessas expressões diversas, ver Fichant (1995:
113-116).
3 - Estamos levando em conta, para essa afirmação, os trabalhos mais divulgados de Karl Popper,
não incluindo sua mais recente obra, na qual parece redimensionar aspectos de suas primeiras
obras.
4 - Bachelard, além de questionar os princípios dos filósofos que se baseiam na ciência do século
XIX - Descartes, Kant e Comte -, discute os pressupostos de seus contemporâneos, notadamente
Meyerson, Sartre, Freud, Bergson e Brunschvicg.
5 - Quanto à Biologia, Bachelard não viveu o suficiente para assistir às rupturas empreendidas
nesta área a partir do advento do enfoque molecular. O campo biológico era para ele mais

251 Lopes, A.R.C.


Assim, a importância da obra de Bachelard para professores e pesquisadores em ensino
de ciências é inegável. Nós, químicos e físicos, temos à disposição, inclusive, livros de
Bachelard especialmente dedicados à Física (La actividad racionalista de la física
contemporánea) e à Química (Le pluralisme cohérent de la chimie moderne - ainda não
traduzido em português - e Le matérialisme rationnel).
A pertinência de Bachelard para o campo do ensino de ciências é ainda
maior, se considerarmos sua trajetória como professor. Sua passagem pela escola
secundária fez dele um filósofo constantemente preocupado com o ensino. Não há em
sua obra textos exclusivamente voltados para a questão educacional, mas
freqüentemente ele pontua suas análises filosóficas com interpretações a respeito do
conhecimento científico na escola. Já em seu livro de 1938, La formation de l'ésprit
scientifique, ele ressalta a necessidade de nós, professores, conhecermos as concepções
prévias dos alunos (seus conhecimentos anteriores ao processo de ensino), com a
colocação da problemática do obstáculo pedagógico: os obstáculos que impedem o
professor de entender porque o aluno não compreende 6.
Outro aspecto singular da filosofia bachelardiana, em relação aos demais
filósofos das ciências, está no caráter até certo ponto ímpar de sua linha de trabalho.
Não existe uma continuidade entre seus trabalhos e os de seus seguidores . Estes têm
sua obra como inspiração, mas produziram teorizações próprias, em campos os mais
diversos, a exemplo de Canguilhem, Foucault, Althusser e Bourdieu.

III - A filosofia da desilusão


Uma das contribuições fundamentais da epistemologia histórica de
Bachelard é a primazia conferida ao erro, à retificação, ao invés da verdade, na
construção do conhecimento científico. Segundo Canguilhem (1972a), freqüentemente
filósofos interpretam o erro como um acidente lamentável, uma imperícia a ser evitada.
Bachelard, ao contrário, defende que precisamos errar em ciência, pois o conhecimento
científico só se constrói pela retificação desses erros. Como seu objetivo não é validar
as ciências já prontas, tal qual pretendem os partidários das correntes epistemológicas
lógicas, o erro deixa de ser interpretado como um equívoco, uma anomalia a ser
extirpada. Ou seja, com Bachelard, o erro passa a assumir uma função positiva na
gênese do saber e a própria questão da verdade se modifica. Não podemos mais nos

limitado do que a Física e a Química, justamente por ser o campo da reprodução e não da criação.
Será em Canguilhem, discípulo de Bachelard, que os biólogos encontrarão interpretações mais
pertinentes sobre as ciências da vida contemporaneamente.
6 - Para uma análise mais aprofundada sobre as contribuições de Bachelard para o ensino de
ciências, ver Lopes (1993a).

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referir à verdade, instância que se alcança em definitivo, mas apenas às verdades,
múltiplas, históricas, pertencentes à esfera da veridicidade, da capacidade de gerar
credibilidade e confiança. As verdades só adquirem sentido ao fim de uma polêmica,
após a retificação dos erros primeiros.
Assim, um fato não tem o mesmo valor epistemológico em racionalidades
distintas, a exemplo das racionalidades do conhecimento comum e do conhecimento
científico. De um fato verdadeiro no conhecimento comum, a ciência precisa organizar
um conhecimento verídico.

Por ele só, este duplo do verdadeiro e do verídico retém a ação


polar do conhecimento. Este duplo permite reunir os dois grandes
valores epistemológicos que explicam a fecundidade da ciência
contemporânea. A ciência contemporânea é feita da pesquisa dos
fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As leis verídicas da
ciência têm uma fecundidade de verdades, elas prolongam as
verdades de fato por verdades de direito. O racionalismo pelas
suas sínteses do verdadeiro abre uma perspectiva de descobertas. O
materialismo racionalista, depois de ter acumulado os fatos
verdadeiros e organizado as verdades dispersadas, ganhou uma
surpreendente força de previsão. A ordenação das substâncias
apaga progressivamente a contingência de seu ser, ou, em outras
palavras, esta ordenação suscita descobertas que preenchem as
lacunas que faziam acreditar na contingência do ser material.
Apesar de suas riquezas aumentadas, suas riquezas transbordantes,
a química se ordena num vasto domínio de racionalidade
(Bachelard, 1972: 45-46).

Contudo, relacionar ciência e verdade não implica dizer que todo discurso
científico é necessariamente verdadeiro. A ciência é um discurso verdadeiro sob fundo
de erro (Bachelard, 1986: 48); os erros compõem um magma desorganizado e as
verdades se organizam em um sistema racional. Em outras palavras, a ciência é o
processo de produção da verdade, é o trabalho dos cientistas - os trabalhadores da prova
- no processo de reorganização da experiência em um esquema racional.
Desta maneira, a ciência não reproduz uma verdade, seja ela a verdade dos
fatos ou das faculdades do conhecimento. Portanto, não existem critérios universais ou
exteriores para julgar a verdade de uma ciência. Cada ciência produz sua verdade e
organiza os critérios de análise da veracidade de um conhecimento. Mas a lógica da
verdade atual da ciência não é a lógica da verdade de sempre: as verdades são sempre
provisórias.

253 Lopes, A.R.C.


Assim sendo, uma questão como o que é ciência ? é o que Bachelard
chamaria de um problema mal posto: como para essa questão não existe uma resposta,
trata-se de um problema não devidamente formulado. Nesse sentido, todo trabalho das
epistemologias positivistas, com o intuito de definir o que é ciência, perde sua razão de
ser. A epistemologia histórica não intenciona estabelecer critérios de demarcação,
capazes de deslegitimar alguns saberes em detrimento de outros, nem tampouco articula
um processo de extrair de diferentes práticas científicas, vistas como uma realidade
homogênea, uma essência, a unidade do todo. Igualmente, não objetiva que essa
essência seja capaz de se flexionar sobre si mesma e constituir a ciência da ciência. Tal
perspectiva significa anular a concretude das práticas científicas, por mantê-las
descoladas da história real das ciências.
Na concretude das práticas científicas, por conseguinte, o conhecimento é a
reforma de uma ilusão. Conhecemos sempre contra um conhecimento anterior,
retificando o que se julgava sabido e sedimentado. Por isso, não existem verdades
primeiras, apenas os primeiros erros: a verdade está em devir. Bachelard, portanto, se
situa como o filósofo da desilusão, aquele que afirma: somos o limite das nossas ilusões
perdidas (Bachelard, 1970). O que significa dizer que somos a expressão, não de nosso
conhecimento imediato, de nossas habilidades inatas, mas do constante e descontínuo
processo de retificação que nosso espírito sofre no decorrer da existência. O que
sabemos é fruto da desilusão com aquilo que julgávamos saber; o que somos é fruto da
desilusão com o que julgávamos ser.
Com esta marcante renovação na concepção de conhecimento, é inaugurada
uma interpretação epistemológica visceralmente polêmica e descontinuísta.

IV - A descontinuidade do conhecimento científico


O continuísmo na interpretação da cultura e do conhecimento, como bem
ressalta Pessanha (1987), é a marca de nossa tradição filosófica ocidental. A idéia de
que a história da cultura e do conhecimento se constrói como o desenrolar de um
novelo, os conceitos sendo paulatinamente somados uns aos outros, a compreensão de
que diferentes saberes são expressões de uma única racionalidade, fazem parte de
filosofias tão distintas quanto o empirismo, o positivismo e o cartesianismo 7. Por sua
vez, o entendimento de que existe uma continuidade entre conhecimento comum e
conhecimento científico, sendo o último um refinamento das qualidades do primeiro,
ainda se mantém dominante. Uma manifestação clara dessa marca continuísta é a
tentativa constante da escola de fazer do conhecimento escolar a ponte capaz de

7 - Para aprofundamento do caráter monista e continuísta do empirismo, do positivismo e do


cartesianismo, ver Oliveira (1990).

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mascarar a ruptura entre conhecimento comum e conhecimento científico (Lopes,
1996).
Em um de seus últimos trabalhos, Bachelard (1972: 209-217) questiona,
incisivamente, algumas das razões que sustentam os argumentos dos continuístas da
cultura. Primeiramente, analisa a defesa que fazem da idéia de progresso contínuo do
saber. Como, via de regra, os progressos científicos foram muito lentos, os continuístas
interpretam que os conhecimentos científicos partem dos conhecimentos comuns por
lenta transformação. Quanto maior a lentidão, mais ficam mascaradas as rupturas do
conhecimento, mais é defendida a idéia de progresso contínuo. Daí a história ser
concebida como um contínuo relato de eventos, tal qual num livro, em que o capítulo
antecedente determina inexoravelmente o capítulo seguinte.
A segunda forma de defender a continuidade consiste em argumentar que o
mérito do progresso científico se deve a uma multidão de trabalhadores anônimos: o
cientista genial apenas tem o insight daquilo que já se encontrava "no ar". Essa
interpretação, quando feita ao longo da história, traduz a marca do continuísmo. As
idéias atuais são entendidas como pré-existentes de forma embrionária em épocas
anteriores. Não que Bachelard negue a produção social do conhecimento e considere
existir o trabalho absolutamente original de cientistas isolados; ao contrário, ele
freqüentemente salienta a formação de escolas de trabalho científico especializado,
esferas garantidoras da produção do conhecimento científico. Sua crítica se dirige à
idéia da existência de um fio condutor de influências ao longo da história. Por exemplo,
essa idéia se manifesta na interpretação da Química como uma derivação da Alquimia,
com a justificativa de que os alquimistas utilizavam algumas técnicas apropriadas
legadas aos químicos. Neste caso, são desconsideradas as concepções de mundo
completamente diversas que permeiam esses campos do conhecimento 8. Outro
exemplo emblemático dessa visão continuísta é a concepção de que os atomistas gregos
foram precursores das formulações dos atomistas modernos, negando a nítida ruptura de
racionalidade entre as proposições de Demócrito e de Dalton 9. Em síntese, os

8- A interpretação continuísta da História da Química tende a considerar a Alquimia como uma


espécie de infância da Química. Ao contrário, concebemos a Alquimia com características de arte
sagrada. O alquimista não investiga as propriedades das substâncias e suas transformações, com o
intuito de conhecer melhor a Natureza e construir teorias sobre a matéria. O alquimista tem por
objetivo alcançar a revelação de segredos divinos, a busca do Bem, o auto-conhecimento, a
transformação de sua alma. Daí o animismo estreitamente associado a sua interpretação da
Natureza. Nesse sentido, a racionalidade da Química rompe decisivamente com a Alquimia. Para
maiores desenvolvimentos dessa questão, ver Lopes (1990: 25-29).
9- As proposições de Demócrito, bem com as de Leucipo e Epicuro, não compõem uma teoria
atômica, nem tampouco visam explicações para as trasformações químicas. Suas concepções de
mundo são bem diversas das concepções dos físicos modernos. Seus pensamentos constituem

255 Lopes, A.R.C.


continuístas não analisam o pensamento filosófico inserido em sua cultura, com
pressupostos e visões próprias de mundo, porque interpretam a cultura como um todo
monolítico, história cumulativamente contada, na qual há formulações de infância e de
vida adulta. Insistem em ver todo acontecimento do passado como uma preparação dos
acontecimentos do presente.
Um terceiro argumento apresentado é pedagógico. Na medida em que se
crê na continuidade entre conhecimento comum e conhecimento científico, procura-se
reforçá-la: busca-se considerar a ciência como uma atividade fácil, simples,
extremamente acessível, nada mais que um refinamento das atividades do senso
comum. Tal perspectiva, por sua vez, tende a ser a divulgação de uma falsa imagem da
ciência, capaz de estimular processos de vulgarização excessivamente simplificadores e,
por isso mesmo, crivados de equívocos. Bachelard, ao contrário, enfatiza em diversos
momentos de sua obra o fascínio que a dificuldade pode exercer, o prazer gerado pelo
mérito de se vencer as dificuldades do saber - as verdadeiras dificuldades racionais, e
não as dificuldades externas ao conhecimento.
Bachelard introduziu a concepção de descontinuidade na cultura científica
através das noções de recorrência histórica, de racionalismos setoriais e da concepção
de ruptura. No que se refere à ruptura, esta se apresenta tanto entre conhecimento
comum e conhecimento científico, a partir do que se constituem os obstáculos
epistemológicos, quanto no decorrer do próprio desenvolvimento científico,
configurando a filosofia do não. Passaremos agora a analisar mais detidamente essas
noções.

IV. 1 - A noção de recorrência histórica


Segundo Bachelard, a ação epistemológica sobre a história deve ser uma
ação eminentemente judicativa, capaz de distinguir, no discurso considerado científico
em dada época, o que era erro e o que era verdade, com base em critérios da própria
ciência. Nesse sentido, a história dos fatos de experimentação ou de conceituação
científica deve ser apreciada na sua relação com os valores científicos recentes
(Canguilhem, 1972b: 11). Ou seja, a história da ciência deve ser freqüentemente refeita,
iluminada pela história atual.
Através do conhecimento do passado, percorremos o caminho da ciência,
mas é a partir do presente, da atualidade da ciência, que podemos compreender o

uma filosofia que procura explicar a natureza, a partir da inserção do homem nessa natureza: seus
propósitos e seus valores. Nesse sentido, as teorias de Dalton não são conseqüência das teorias de
Demócrito. Diferentemente, Dalton tinha por objetivo construir um modelo de átomo capaz de
explicar as relações de massa nas transformações químicas. Para maiores desenvolvimentos dessa
questão, ver Lopes (1990: 23, 29-31).

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 256


passado de maneira claramente progressiva. Desta forma, o filósofo francês constitui a
noção de recorrência 10 histórica: o historiador deve conhecer o presente para julgar o
passado. Mas não no sentido de ver no passado a preparação para o presente, como já
questionamos, mas sim de, a partir do presente, questionar os valores do passado e suas
interpretações.
É muito comum em uma perspectiva histórica continuísta vermos a
interpretação de um fato do passado como precursor do que hoje fazemos. Bachelard
(1985: 134-135) discute o exemplo do ouro coloidal que, por vezes, é interpretado
como tendo sido produzido pelos alquimistas, ao colocarem ouro finamente dividido em
água, duzentos e cinqüenta anos antes de Bredig demonstrar suas propriedades.
Apoiando-se em Brunschvicg, Bachelard argumenta que, a partir de uma análise
recorrente, o ouro coloidal só pode ser considerado como "descoberto" no momento em
que suas propriedades foram definidas como tal: não basta produzir a substância, mas
saber que ela está sendo produzida.
Por isso, a história do desenvolvimento dos fatos deve vir acompanhada da
história do desenvolvimento dos valores racionais, valores esses que se constituem a
partir de um racionalismo abrangente: o valor de uma idéia não depende apenas da idéia
em si, mas da relação desta idéia com a clareza de outras idéias. A história recorrente é
assim uma história que se esclarece pela finalidade do presente: partimos das certezas
do presente para descobrirmos, no passado, as formações progressivas da verdade.

A história das ciências surgirá, então, como a mais irreversível das


histórias. Ao descobrir o verdadeiro, o homem de ciência obstrui
um irracional. Sem dúvida, o irracionalismo pode brotar de outro
lado qualquer. Mas tem, daí em diante, algumas vias interditadas. A
história das ciências é a história das derrotas do irracionalismo.
(Bachelard, s.d.: 36)

Uma vez superado o irracionalismo, a ele não se retorna. Essa obstrução do


irracional é marca de uma ruptura nítida e clara na ciência, ruptura essa que também
pode ser identificada entre conhecimento comum e conhecimento científico.

10 - Em nossa linguagem diária, o termo recorrência possui os significados de reaparecimento


freqüente e periódico de um fato, ação de retornar ao ponto de partida ou investigar. É preciso
salientar que, do ponto de vista filosófico, recorrência é a característica de um processo,
real ou lógico, que retorna sobre si próprio (...) reação de um fato sobre as suas causas, da idéia
de um fato sobre este fato (Lalande, 1993: 932-933).

257 Lopes, A.R.C.


IV. 2 - A ruptura entre conhecimento comum e conhecimento científico nas
ciências físicas
Segundo as concepções empírico-positivistas, o conhecimento advém da
experiência: há um real dado em que a razão deve se apoiar. O real é um todo único,
composto de fatos, fenômenos que se apresentam ao experimentador e que pressupõem,
portanto, uma única razão capaz de dar conta dessa multiplicidade desconexa.
Entendidas de uma maneira mais ampla, as concepções realistas, campo no qual o
empirismo se enquadra, compreendem o modelo da teoria do reflexo (Schaff, 1991: 63-
98). O conhecimento, enquanto produto do processo de conhecer, reflete o real e tanto
mais objetivo e científico será, quanto maior for o grau de reflexão alcançado.
Mesmo as concepções positivistas 11, que avançam ao salientar a
necessidade do referencial teórico, definidor da forma de interpretar os fatos, não
rompem com a concepção realista. A verdade está na Natureza, no fenômeno, e cabe ao
pesquisador revelá-la, torná-la visível aos olhos, à razão. Para o empirismo, a
construção racional só se pode estruturar a partir da experiência sensível. Para o
positivismo, a teoria é uma rede de pescar dados, mas os dados é que orientarão a
elaboração de novas teorias.
A concepção realista da Natureza, tão cara aos filósofos da matriz
empírico-positivista, sofre seu primeiro grande abalo com o estabelecimento da hipótese
quântica por Max Planck, em 1900. Segundo comentários de Heisenberg (1987: 29-30),
o próprio Planck custou a aceitar o rompimento com os pressupostos da Física Clássica,
dado seu conservadorismo. Contudo, teve que se render à necessidade de postular a
descontinuidade na energia para interpretação da radiação térmica de um corpo negro,
trabalho que iniciou um campo de investigação dos mais ricos neste século: a Mecânica
Quântica.
Ao interpretar as conseqüências da Mecânica Quântica para o campo
epistemológico, o filósofo francês faz-nos compreender a distinção entre real científico
e real dado. Na ciência, não trabalhamos com o que se encontra visível na

11 - Nessa vertente incluímos não apenas Comte, mas os positivistas lógicos de uma forma geral.
Quanto a Popper, precisamos ser mais cuidadosos na sua interpretação. Em suas obras mais
famosas, ainda que Popper questione os pressupostos do positivismo lógico e forneça
contribuições importantes para a filosofia das ciências, com sua crítica ao verificacionismo, não
avança na concepção filosófica de real. Para ele, as verdades científicas são provisórias porque a
qualquer momento podem ser abandonadas em função da experiência. Contudo, autores como
Japiassu buscam uma aproximação entre Popper e Bachelard, enquanto outros, com os quais
concordamos, colocam Popper no campo do positivismo, portanto em campo diverso ao de
Bachelard. Para maiores esclarecimentos, sugerimos confrontar: Japiassu (1991: 83-110) e
Mendonça (1984).

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 258


homogeneidade panorâmica. Ao contrário, precisamos ultrapassar as aparências, pois o
aparente é sempre fonte de enganos, de erros, e o conhecimento científico se estrutura
através da superação desses erros, em um constante processo de ruptura com o que se
pensava conhecido. Conforme aponta Canguilhem (1972a: 52), para Bachelard a
ciência não capta ou captura o real, ela indica a direção e a organização intelectual,
segundo as quais nos asseguramos que nos aproximamos do real. É no caminho do
verdadeiro que o pensamento encontra o real; a realidade do mundo está sempre para
ser retomada, sob responsabilidade da razão.
Com efeito, para Bachelard não devemos ver no real a razão determinante
da objetividade: o problema da verdade não deriva do problema da sua realidade. O que
entendemos por realidade faz-se em função de uma organização do pensamento. Por
isso, ele afirma que devemos colocar o problema da objetividade em termos de
métodos de objetivação: uma prova de objetividade existe sempre em relação a um
método de objetivação, a objetivação de um pensamento à procura do real (Bachelard,
1984b: 40-42).
Ao contrário, para o senso comum, a realidade objetiva é uma só: aquela
que se apresenta aos sentidos; o real aparente faz parte do senso comum. Portanto, será
essencialmente a partir do rompimento com esse conhecimento comum que se
constituirá o conhecimento científico.
Contra essa concepção unitária do real se colocará Bachelard:

(...) será demasiado cômodo confiar-se uma vez mais a um realismo


totalitário e unitário, e responder-nos: tudo é real, o elétron, o
núcleo, o átomo, a molécula, a micela, o mineral, o planeta, o astro,
a nebulosa. Em nosso ponto de vista, nem tudo é real da mesma
maneira, a substância não tem, em todos os níveis, a mesma
coerência; a existência não é uma função monótona; não pode se
afirmar por toda parte e sempre no mesmo tom. (Bachelard, 1988:
54)

Por que nem tudo é real da mesma maneira ? Por que a existência não é
uma função monótona ? Porque há diferentes razões constitutivas de diferentes níveis
de realidade. A realidade de um objeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado,
que possui lugar e forma definidos, não é do mesmo nível de realidade de uma
molécula, a qual constitui e é constituída pela teoria molecular a ela subjacente.
Todavia, é necessário deixar claro que não se trata de uma distinção entre realidade e
idealização. Moléculas, átomos e elétrons não são idéias que podem ser utilizadas
enquanto os fatos assim o permitem, ou ainda abstrações racionais com as quais

259 Lopes, A.R.C.


formulamos teorias. Trata-se de uma outra ordem de realidade, que não pode ser
compreendida sem o uso da razão.
A construção do objeto de conhecimento nas ciências físicas - o real
científico - é realizada na relação sujeito-objeto, mediada pela técnica. A ciência não
descreve, ela produz fenômenos, com o instrumento mediador dos fenômenos sendo
construído por um duplo processo instrumental e teórico. Mas não devemos atribuir a
essa relação um subjetivismo inexistente. No caso, a influência do sujeito sobre o objeto
é sempre mediada pela técnica, pelo aparelho ou instrumento de medida. Não se trata de
uma influência da psique individual do pesquisador sobre o objeto de pesquisa,
geradora de um relativismo sem medida. Portanto, para compreendermos a noção de
real nas ciências físicas, a partir de Bachelard, precisamos ter muito clara a noção de
fenomenotécnica 12.

É preciso haver outros conceitos além dos conceitos ' visuais' para
montar uma técnica do agir-cientificamente-no-mundo e para
promover a existência, mediante uma fenomenotécnica, fenômenos
que não estão naturalmente-na-natureza. Só por uma desrealização
da experiência comum se pode atingir um realismo da técnica
científica. (Bachelard, 1986: 137, grifos nossos)

Em Le Rationalisme Appliqué, é feita a análise do espectrômetro de


massa 13 como exemplo da estreita relação entre teoria e instrumento: o próprio
instrumento é teoria materializada, teorema reificado. As trajetórias que permitem
separar íons nesse aparelho são produzidas tecnicamente, sem nenhuma seqüência com
fenômenos naturais. Existe a teoria que permite a construção do aparelho e a teoria que
permite a interpretação dos resultados; teoria essa que só adquire valor pelo processo de
aplicação experimental.
Por isso, Canguilhem (1994: 191) afirma que na ciência moderna, para
Bachelard, os instrumentos não são mais objetos auxiliares. Eles são os novos órgãos

12 - A primeira obra em que Bachelard definiu o conceito de fenomenotécnica é Le nouvel ésprit


scientifique e a partir daí torna-se completa sua sintonia com a ciência contemporânea. A
argumentação que aqui desenvolveremos sobre esse conceito encontra-se, parcialmente, em
Lopes (1990; 1994).
13 - Aparelho no qual uma amostra é bombardeada com um feixe de elétrons, resultando íons ou
fragmentos iônicos das espécies originais, que são separados segundo suas relações de
massa/carga, com base nas diferenças dos percursos iônicos em um campo magnético e/ou
elétrico. Uma importante aplicação da espectrometria de massa é a determinação de massas
moleculares de compostos voláteis.

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que a inteligência se dá para colocar fora do circuito científico os órgãos dos sentidos,
na qualidade de receptores.
Na análise da ciência química feita por Bachelard (1972) , podemos
compreender melhor o processo de construção de fenômenos. A Química, em sua
história, rompe com o imediato e abre espaços para o construído, criando e atuando
sobre a natureza através da técnica. Ou seja, a Química transforma-se em uma ciência
elaborada sobre as bases de uma fenomenotécnica. Um bom exemplo disto são os
processos de sínteses de substâncias químicas inexistentes na Natureza, produzidas a
partir do objetivo de se construir determinada propriedade. O químico pensa e trabalha
em um mundo recomeçado. Se a natureza possui uma ordem, a Química não se faz a
partir dessa ordem: o químico constrói uma ordem artificial sobre a natureza. A razão
química, em seu diálogo com a técnica, avança na realização do possível. E o possível
nunca é gratuito, mas já está incluído em um programa de realização, já ordena
experiências para a realização (Bachelard, 1973); o possível não é o que existe
naturalmente, mas o que pode ser produzido artificialmente.
Com a diferenciação entre fenômeno e fenomenotécnica completa-se a
distinção entre real dado e real científico. O fenômeno é o real dado, o mero evento. O
real só adquire o caráter de científico se é objeto de uma fenomenotécnica. Ampliamos,
conseqüentemente, a compreensão de porque Bachelard afirma que não podemos falar
de uma função monótona do real: no real científico, é necessário o diálogo da razão
com a experiência para estabelecer o processo de construção racional, mediado pela
técnica.
Na medida em que o real científico se diferencia do real dado, o
conhecimento comum, fundamentado no real dado, no empirismo das primeiras
impressões, é contraditório com o conhecimento científico. O conhecimento comum
lida com um mundo dado, constituído por fenômenos; o conhecimento científico
trabalha em um mundo recomeçado, estruturado em uma fenomenotécnica. É nesse
sentido que o conhecimento comum acaba por se constituir em um obstáculo
epistemológico ao conhecimento científico, exigindo que efetuemos o que Bachelard
denomina de psicanálise 14 do conhecimento objetivo.

14 - O termo psicanálise em Bachelard se distancia completamente do significado consagrado por


Freud. Psicanalisar o conhecimento objetivo é retirar dele todo caráter subjetivo, (...) descortinar
a influência dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico e científico
(Bachelard, 1989b: 16). A primeira utilização do termo é feita por Bachelard em La formation de
l ésprit scientifique, publicado em 1938, época em que a psicanálise não possuía prestígio no
meio universitário francês. Constituiu-se, portanto, uma certa dose de provocação sua
apropriação por Bachelard (Fichant, 1995: 128). Por sua vez, em suas obras no campo da poética
e da imaginação, publicadas paralelamente às obras epistemológicas, Bachelard condena a
concepção psicanalítica que não admite o lado autônomo do simbolismo e da imagem e encara os

261 Lopes, A.R.C.


Bachelard aborda os obstáculos epistemológicos, especialmente em La
formation de l'ésprit scientifique. Nessa obra, ele afirma a necessidade de valorização
do pensamento científico abstrato e aponta a experiência imediata como um obstáculo
ao desenvolvimento dessa abstração. Na medida em que a história das ciências é uma
história julgada, esse julgamento se faz através da análise dos obstáculos
epistemológicos. Tal análise é que permite à história das ciências ser autenticamente
uma história do pensamento (Canguilhem, 1994: 177).

(...) nos propomos a mostrar este destino grandioso do pensamento


científico abstrato. Para isso devemos provar que pensamento
abstrato não é sinônimo de má consciência científica, como a
acusação trivial parece dizer. Deveremos provar que a abstração
desembaraça o espírito, que ela o alivia e que ela o dinamiza.
Proporcionaremos essas provas estudando mais particularmente as
dificuldades das abstrações corretas, assinalando as insuficiências
dos primeiros intentos, o peso dos primeiros esquemas, ao mesmo
tempo que destacamos o caráter discursivo da coerência abstrata e
essencial que nunca logra seu objetivo da primeira vez. E para
mostrar melhor que o processo de abstração não é uniforme, não
titubearemos em empregar às vezes um tom polêmico, insistindo
sobre o caráter de obstáculo que apresenta a experiência, estimada
concreta e real, estimada natural e imediata (Bachelard, 1947: 8-
9).

Como sempre conhecemos contra um conhecimento anterior, retificando


erros da experiência comum e construindo a experiência científica em diálogo constante
com a razão, precisamos constantemente superar os obstáculos epistemológicos.

Não se trata de considerar os obstáculos externos, como a


complexidade ou fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a
debilidade dos sentidos ou do espírito humano: é no ato mesmo de
conhecer, intimamente, onde aparecem, por uma espécie de
necessidade funcional, os entorpecimentos e as confusões. É aí onde
mostraremos as causas de estancamento e até de retrocesso, é aí

sonhos apenas como reflexos de desejos inconscientes. Na psicanálise, as imagens são símbolos
que mascaram a realidade - daí ser necessária a metodologia da busca de seus antecedentes. Não
há espaço para a imagem por ela mesma, imaginante, capaz de ir além da realidade. Para maiores
desenvolvimentos, ver Pessanha (1994).

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 262


onde discerniremos causas de inércia que chamaremos obstáculos
epistemológicos (Bachelard, 1947: 15).

Como já analisamos, o erro é entendido como necessário e intrínseco ao


conhecimento e justamente o conceito de obstáculo epistemológico é que funda
positivamente a obrigação de errar (Canguilhem, 1994: 204). Segundo Lecourt (1980:
26), o obstáculo epistemológico tende a se manifestar mais decisivamente para mascarar
o processo de ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico,
quando o pensamento procura prender o conhecimento no real aparente. Os obstáculos
epistemológicos tendem a constituir-se, então, como anti-rupturas (Parente, 1990: 62),
pontos de resistência do pensamento ao próprio pensamento (Lecourt, 1980: 26),
instinto de conservação do pensamento, uma preferência pelas respostas e não pelas
questões (Canguilhem, 1994: 177). A razão acomodada ao que já conhece, procurando
manter a continuidade do conhecimento, opõe-se à retificação dos erros ao introduzir
um número excessivo de analogias, metáforas e imagens no próprio ato de conhecer,
com o fim de tornar familiar todo conhecimento abstrato, constituindo, assim, os
obstáculos epistemológicos.
Não podemos, contudo, considerar que Bachelard defende a
impossibilidade de utilização de metáforas e imagens. Sua posição é de que a razão não
se pode acomodar a elas, devendo estar pronta a desconstruí-las sempre que o processo
de construção do conhecimento científico assim o exigir (Bachelard, 1970: 63) . Há
mesmo em sua obra (Bachelard, s.d.: 84-85) uma discussão a respeito das boas e das
más imagens, as imagens indispensáveis e as imagens prejudiciais. As boas imagens,
úteis para descrever um mundo que não se vê, devem ser empregadas em instância de
redução: redução a ser feita pela matematização. Temos que entender as imagens como
uma instituição de meios matemáticos de compreensão racional das leis e não como
uma afirmação dogmática da realidade.
Mesmo porque, a crítica às imagens em Bachelard se associa à crítica à
concepção ocularista de conhecimento, que nos faz encarar a visão como o sentido
fundamental do saber: se conseguimos formular imagens de um fenômeno,
consideramos que detemos o conhecimento sobre esse mesmo fenômeno 15. Todavia,
com o advento da Mecânica Quântica - a Física do mundo sub-microscópico - a
equivalência entre ver e conhecer se destrói. De nada nos adiantaria ter super-olhos para
enxergar esse novo mundo. Conhecemos com a razão e as imagens devem ser
entendidas como modelos de raciocínio, nunca reflexos do real.

15 - Para maiores desenvolvimentos sobre a concepção ocularista de conhecimento, ver: Chauí


(1988: 31-63); Lopes (1990: 9-20); Pessanha (1994); Pessanha (1988: 149-166).

263 Lopes, A.R.C.


Acrescente-se a isso, o fato de que a obra de Bachelard é elaborada em
contraposição à teoria bergsoniana, especialmente à noção de intuição. Segundo
Ginestier (1968: 28), a intuição para Bergson constitui um dado imediato da
consciência e uma arma anti-intelectualista, associada ao instinto. Há uma
incomensurabilidade entre a intuição simples do filósofo e os meios de que ele dispõe
para explicá-la. Bachelard considera esse entendimento de Bergson como a auto-
destruição da intuição, pois um bom método não se pode dar o direito de falar de um
conhecimento que não se entende como comunicável (citado por Ginestier, 1968: 29).
Afinal, um conhecimento precisa ser comunicado para ser questionado, para se
submeter às exigências da racionalidade.
Em contrapartida, ainda segundo análise de Ginestier, a intuição
bachelardiana é sempre comunicável - não em sua formação, mas em seus resultados - e
se situa em dois níveis distintos. Há intuições sensíveis e intuições racionais. A intuição
sensível corresponde à produção espontânea de imagens sugeridas pela ausência natural
de explicação para o mundo que nos rodeia. Trata-se do conhecimento imediato daquilo
que provém dos sentidos (Japiassu, 1996: 151). As intuições sensíveis representam o
estado de repouso da racionalidade e, por isso mesmo, precisam ser combatidas pelo
pensamento racional rigoroso, precisam ser retificadas, cedendo lugar às intuições
racionais. As intuições racionais se formulam na superação do imobilismo, revelam
novos problemas e novas idéias, correspondem ao conhecimento mediato dos objetos da
razão.
Tal crítica à intuição, às metáforas e às imagens constitui um traço
marcante da obra epistemológica de Bachelard. É apenas no campo da poesia, no
trabalho com o homem noturno, que Bachelard valoriza a imaginação, entendida não
como a faculdade de formar imagens da realidade, mas sim como a faculdade de
formar imagens que ultrapassam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade
(Bachelard, 1989a: 17-18). No campo do diurno (a ciência), Bachelard questiona a
ocularidade, a partir da crítica à atitude contemplativa diante do conhecimento. Por
outro lado, no campo do noturno, Bachelard (1989a: 1-20) introduz a noção de
imaginação material, fundamentada na recuperação do mundo como provocação
concreta e como resistência, o mundo a ser modificado pelo homem. Com isso, ele se
contrapõe à imaginação formal, fundamentada na visão.
Assim sendo, as relações entre ciência e imaginário são encaradas por
Bachelard como restritivas tanto de um campo, quanto de outro. Se na ciência
aplicarmos a imaginação imaginante, teremos uma ciência obnubilada pela fantasia; se
na poética tentarmos ser científicos, produziremos uma limitação dos devaneios,
racionalizaremos canhestramente a poesia.

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 264


Podemos, então, concluir que as faces de Apolo e Dionísio se alternam,
nunca se encontram na unidade tantas vezes sonhada pelo homem 16. O que reafirma a
marca pluralista da obra bachelardiana. Mas como as seduções de Dionísio a Apolo são
muitas, o espírito científico deve permanecer em vigilância constante, certo de que a
racionalidade nunca começa, sempre continua, em um eterno processo de retificação.
Por isso, Bachelard afirma:

Pode-se estranhar que um filósofo racionalista dedique tanta


atenção a ilusões e erros e que sinta incessantemente a necessidade
de representar os valores racionais e as imagens claras como
retificações de dados falsos. Na verdade, não vemos a menor
solidez numa racionalidade natural, imediata, elementar. Não nos
instalamos de chofre no conhecimento racional; não ofereceremos
de imediato a justa perspectiva das imagens fundamentais
(Bachelard, 1989a: 7).

Nesse sentido, os obstáculos epistemológicos nunca são definitivamente


superados, uma vez que o espírito científico sempre se apresenta com seus
conhecimentos anteriores; nunca é uma tábula rasa. E amalgamados aos conhecimentos,
estão os preconceitos, as imagens familiares, a certeza das primeiras idéias.

Frente ao real, o que se pensa saber, claramente ofusca o que se


deveria saber. Quando se apresenta ante à cultura científica, o
espírito nunca é jovem. Ao contrário é velhíssimo, pois tem a idade
dos seus preconceitos (Bachelard, 1947: 16).

O primeiro obstáculo a superar é o da opinião. Não podemos ter opinião


sobre problemas que não conhecemos, sobre questões que não sabemos formular
claramente, afirma Bachelard (1947). É preciso que formulemos devidamente as
perguntas a serem respondidas, os problemas a serem investigados, pois os obstáculos
epistemológicos se imiscuem justamente no conhecimento não formulado.
Segundo Bachelard (1947), a noção de obstáculo epistemológico pode ser
estudada no desenvolvimento histórico do conhecimento científico e na prática da
educação. Em ambos os casos, o trabalho se vê dificultado pela necessidade que temos

16 - Há um paralelismo constante na obra de Bachelard, mas isso não impede as comunicações, a


reflexão de um mundo no outro. Para maiores desenvolvimentos, ver: Dagognet (1986: 54-56 -
nota de rodapé) e Japiassu (1976: 115-125).

265 Lopes, A.R.C.


de exercer um juízo epistemologicamente normativo: julgar a eficácia de um
pensamento.
Bachelard elabora também a noção de atos epistemológicos, em oposição à
noção de obstáculos epistemológicos (Bachelard, s.d.: 33). Os atos epistemológicos
correspondem aos ímpetos do gênio científico que provocam impulsos inesperados no
curso do desenvolvimento científico. A história do conhecimento científico é, assim, a
constante oposição entre os atos epistemológicos que impulsionam o conhecimento e os
obstáculos epistemológicos que entravam esse mesmo conhecimento. Ou seja, uma
dialética 17 própria que estrutura o movimento histórico do conhecimento científico.

IV. 3 - A filosofia do não


Para Bachelard, as rupturas no conhecimento científico não ocorrem apenas
em relação ao conhecimento comum, mas também no decorrer do próprio
desenvolvimento científico. Não existe um contínuo racional na história do
conhecimento científico: a Física Relativística diz não à Física Newtoniana, a
Geometria de Lobatchevsky diz não à Geometria Euclidiana, a Química Quântica diz
não à Química Lavoisieriana.
Esse processo de negação não implica, contudo, o abandono das teorias
anteriormente construídas. Trata-se, sim, de reordenar, de ir além de seus pressupostos,
por introduzir uma nova racionalidade. Até às novas conquistas neste século,
compreendia-se a ciência essencialmente como cumulativa. Uma vez que uma verdade
científica era estabelecida com a clareza e a amplitude de uma Teoria Newtoniana ou de
uma Geometria Euclidiana, interpretavam-se esses pressupostos como definitivos e
universais. Não haveria quem pudesse conceber um triângulo cujos ângulos internos
não somassem 180 , um movimento que não fosse regido pelas Leis de Newton.
Daí o impacto das Geometrias Não-euclidianas e da Física Relativística:
ousaram romper com a racionalidade instituída, forçaram que pensássemos no universo
de forma bem distinta da clareza cotidiana. Afinal, se o espaço for curvo, os ângulos
internos dos triângulos negam aquela ordem instituída; se trabalharmos com a
velocidade da luz, massa e energia se interconvertem e as leis de Newton são negadas.
Isso não significa dizer que devamos abandonar as teorias anteriores, e
talvez justamente aí resida o maior problema, o maior impacto. Se Einstein houvesse

17 - Segundo Canguilhem (1994: 196), dialética em Bachelard possui o sentido de diálogo, um


movimento de complementaridade e de coordenação de conceitos sem contradição lógica. Esse
sentido não deve ser confundido com o sentido mais usual de dialética, de acordo com a
concepção de Marx: movimento interno de produção de realidade, cujo motor é a contradição que
se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais.

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 266


estabelecido um novo sistema que negasse Newton e se o impusesse como a nova
ordem definitiva, talvez, não fôssemos tão resistentes a ele. Talvez o mais impactante
seja obrigar-nos a aceitar que Newton permaneça válido dentro de certos limites de
massa e velocidade dos corpos, sendo a Relatividade aplicada aos demais contextos.
Igualmente, não abandonamos Euclides, e sim fazêmo-lo simultaneamente conviver
com Lobatchevsky.
Por isso Bachelard organiza sua filosofia do não. A filosofia de uma ciência
que aprende a conviver com racionalismos setoriais.

É evidente que duas teorias podem pertencer a dois corpos de


racionalidade diferentes e que se podem opor em determinados
pontos permanecendo válidas individualmente no seu próprio corpo
de racionalidade. Esse é um dos aspectos do pluralismo racional
que só pode ser obscuro para os filósofos que se obstinam em
acreditar num sistema de razão absoluto e invariável. (Bachelard,
1988: 140)

Bachelard nega a filosofia do não enquanto uma atitude de recusa, para


defendê-la como uma atitude de conciliação. Conciliação entendida no sentido da
convivência com o diverso, a aceitação do dissenso - base necessária ao pluralismo.
Conciliar não é aceitar qualquer teoria como válida, mas definir muito precisamente o
campo de validade e aplicação de determinada teoria.
As implicações geradas pela filosofia do não e pela compreensão da
existência de racionalismos setoriais, porém, não se resumem às teorias aqui apontadas.
Compreender com Bachelard a noção de ruptura no conhecimento científico é assumir
uma nova forma de compreender toda a história do conhecimento científico. A partir da
recorrência histórica, o desenvolvimento do conhecimento científico passa a ser
compreendido por constantes rupturas: tanto na sucessividade quanto na simultaneidade
temporal.
O espectrômetro de massas rompe com a balança lavoisieriana. A lâmpada
de Edison, produzindo luz ao impedir a queima de um filamento, rompe com as
lamparinas, onde a queima de um combustível é fonte de energia luminosa. A
concepção atomista rompe com as concepções equivalentistas. Ou seja, na perspectiva
bachelardiana, não temos longos períodos de ciência normal, nos moldes kuhnianos,
intercalados por rupturas (revoluções científicas). Ao contrário, constantemente estamos
conhecendo contra um conhecimento anterior, em rompimento com os obstáculos
epistemológicos, seja do conhecimento comum ou do próprio conhecimento científico.
Como complemento à filosofia do não, Bachelard desenvolve o que ele
denomina ser a filosofia do racionalismo aplicado - termo utilizado de uma forma geral

267 Lopes, A.R.C.


- ou filosofia do materialismo racional, termo utilizado basicamente em sua segunda
obra mais dedicada à Química, Le matérialisme rationnel, provavelmente procurando
marcar o traço mais materialista desta ciência. Mas em ambos os termos, o que se
evidencia é a dialética entre o material e o racional, entre o empírico e o teórico.

(...) o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento


científico, por um estranho laço tão forte como o que une o prazer à
dor. Com efeito, um deles triunfa dando razão ao outro: o
empirismo precisa ser compreendido; o racionalismo precisa ser
aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem
leis dedutivas não pode ser nem pensado, nem ensinado; um
racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade
imediata não pode convencer plenamente. Prova-se o valor real de
uma lei empírica fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se
um raciocínio fazendo dele a base de uma experiência. (Bachelard,
1988: 5)

Para Bachelard (1986), todas as filosofias do conhecimento científico se


organizam a partir da filosofia do racionalismo aplicado, não no sentido de se derivarem
dela, mas em função de todas as demais filosofias se afastarem desse duplo diálogo
real-racional e, por isso mesmo, não conseguirem explicar o trabalho dos cientistas.
Progressivamente, o positivismo e o empirismo caminham para o realismo, no qual a
ciência é a descrição da realidade, enquanto o formalismo e o convencionalismo se
aproximam do idealismo, no qual prevalece o sensacionismo etéreo. Já o racionalismo
aplicado se coloca eqüidistante tanto do realismo quanto do idealismo.
Bachelard sempre reafirmou o racionalismo aplicado como uma filosofia
comprometida, não contra a religião ou a ordem estabelecida, como muitos dos
racionalistas anteriores a ele defenderam, mas de um compromisso da racionalidade
contra sua própria tradição (Canguilhem, 1985: 7). Trata-se de colocar a razão em um
processo de revolução permanente. Por isso Bachelard se refere a um surracionalismo
(Bachelard, 1985), que está para o racionalismo, tal qual o surrealismo na arte está para
o realismo. Temos, assim, um racionalismo aberto, que se quer polêmico, abandonando
as certezas da memória, a rigidez do a priori e enfrentando imprudentemente o
a posteriori, executando experiências capazes de colocarem em risco a razão.

V - A filosofia da desilusão e o ensino de ciências


À guisa de conclusão, podemos aqui destacar a importância de nós,
professores, assimilarmos contribuições da epistemologia de Gaston Bachelard.

Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.248-273, dez.1996. 268


Inicialmente, podemos afirmar o quanto devemos nos manter vigilantes no sentido de
buscarmos ultrapassar os obstáculos epistemológicos. Em nossas aulas, e em nossas
pesquisas, preocupados com os obstáculos ao processo de ensino-aprendizagem
situados nas metodologias de ensino, nos processos cognitivos dos alunos e no contexto
educacional mais global, freqüentemente nos esquecemos de pensar sobre os obstáculos
inerentes ao próprio conhecimento científico. Em função disso, tendemos a não analisar
epistemologicamente o que ensinamos e reforçamos obstáculos epistemológicos que
deveríamos ajudar os alunos a superar 18.
Podemos, igualmente, salientar o quanto Bachelard contribui para que
repensemos nossas concepções a respeito do conhecimento comum. Ele nos coloca
diante da obrigação de questionar o conhecimento cotidiano dos estudantes, bem como
permitir o questionamento de nosso próprio conhecimento cotidiano, no processo de
ensino-aprendizagem em ciências. Aprender ciências implica aprender conceitos que
constrangem, colocam em crise conceitos da experiência comum. O que não significa,
por sua vez, o estabelecimento de uma hierarquia axiológica entre conhecimento
comum e conhecimento científico. Lembremo-nos da análise que Bachelard faz dos
racionalismos setoriais e compreenderemos que é necessário sublinhar a marca
pluralista da cultura: campos de conhecimento diversos têm racionalidades distintas,
não unificáveis, não redutíveis uma a outra. Não é possível compreender a lógica das
ciências com a racionalidade do conhecimento cotidiano, tal qual não é possível viver
no cotidiano de forma que cada uma de nossas ações reflita uma lógica científica.
Por outro lado, Bachelard nos coloca o desafio de repensar como
interpretamos o erro no processo de ensino-aprendizagem. Se o erro possui uma função
positiva na gênese do saber, cabe procurarmos pensar sobre a necessidade dos
estudantes errarem no processo de ensino-aprendizagem. O erro deveria, então, deixar
de ser encarado como o oposto do conhecimento verdadeiro. O erro é constitutivo do
processo de construção do conhecimento.
Contudo, consideramos que, de todos os aspectos fecundos da obra
epistemológica de Bachelard, um se coloca, senão como o mais importante, ao menos
como seu eixo central: sua forma de conceber a razão. A filosofia de Bachelard tem a
inquietude do trabalho que propõe a centralidade da retificação no processo de
construção do conhecimento e é ele mesmo constantemente retificado. Trata-se de uma
filosofia que propõe a razão polêmica, plural, turbulenta e agressiva, que sabe ser filha
da discussão e não da simpatia. Assim, contrapõe-se à tradição da racionalidade, ao
recurso monótono às certezas da memória, à prudência no processo de pensar e

18 - Desenvolvemos a análise dos obstáculos epistemológicos nos livros didáticos de química em


Lopes (1990; 1992; 1993b). Uma análise dos obstáculos pedagógicos em livros didáticos de
Física pode ser encontrada em Franco Júnior (1989).

269 Lopes, A.R.C.


conhecer, à razão conformada e conformista, ao racionalismo com gosto escolar, da
forma que tem feito a escola, alegre como porta de prisão.
Esta ruptura com um modelo de razão coercitiva talvez seja, então, sua
contribuição mais fundamental. Justamente porque transcende à questão do ensino e das
ciências e se coloca como problemática para todos os campos do conhecimento e, por
que não dizer, de nossa existência. A proposta deste outro modelo de razão,
essencialmente histórica, de uma história que não tem começo nem fim, é a própria
negação da perspectiva que tenta nos fazer apenas espectadores de uma natureza e de
uma sociedade de fatos dados e prontos, a serem coletados e interpretados, permitindo o
resgate do nosso papel de atores na construção do mundo.
A filosofia da desilusão não pretende ser a filosofia do eterno e do
imutável, da razão totalizante e totalitária, mas se quer aberta e retificável. É o campo
do mutável, da pluralidade, do dissenso, campo que nos mostra, constantemente, o
quanto nos iludimos com o que julgávamos saber. Não há descanso para o processo de
retificação, não há reta de chegada, não há certezas definitivas, mas, em contrapartida,
faz-nos abandonar a pretensão de alcançar a onisciência divina. Distanciamo-nos dos
absolutos transcendentes para justificar o conhecimento - seja Deus, a Natureza ou a
Razão. Assim, aproximamo-nos de nossa existência humana, singular, contingente,
limitada no tempo e no espaço, mas ilimitada nas suas possibilidades de construir e
reconstruir o mundo.

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