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EPISTEMOLOGIAS DE KUHN, POPPER E LAKATOS À LUZ DA

DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA DA LUZ

Eduardo F. Dias
Licenciatura em Física, UFFS
Realeza – PR

Resumo
O estado atual e o desenvolvimento histórico do conhecimento científico acerca da
natureza da luz são apresentados, com especial enfoque na dualidade onda-partícula. Estes
constituem uma importante fonte de reflexão para concepção epistemológica da ciência
adotada. O resultado teórico atual da dualidade onda-partícula da luz é confrontado com as
epistemologias de Thomas Kuhn, Karl Popper e Imre Lakatos. São defendidas as concepções
realistas da ciência à luz dos esforços e resultados obtidos na história do estudo da luz, bem
como pela compreensão que os próprios cientistas têm em geral de seu trabalho.

I. Introdução

Nos dias de hoje, a luz é vista pela comunidade científica como algo de natureza dual.
Ela é uma partícula, mas também é uma onda. Ou, ao menos se comporta como ambas. A
unificação dos dois comportamentos só é possível graças à teoria da Mecânica Quântica, cujos
primeiros princípios foram propostos por Max Planck em 1900, quando os comunicou à
Sociedade de Física Alemã. Após a consolidação da Mecânica Quântica por cientistas como
Bohr, Heisenberg, Born, Schrödinger, De Broglie, Pauli, Dirac e outros, ficou claro que os
fenômenos de onda e partícula, que pareciam se excluir mutuamente no mundo macroscópico
se fundiam no submicroscópico (Hecht, 2002, p.25).
A nova teoria não permite mais ver os constituintes mais fundamentais da natureza como
partículas de matéria bem definidas e localizadas, como era a visão da Mecânica Newtoniana e
do determinismo mecanicista dantes imperante. As novas descobertas mostraram que as
partículas podiam gerar padrões de interferência e difração, características típicas das ondas.
Todas as partículas, como elétrons, prótons e nêutrons podem se manifestar tanto como
partículas quanto como ondas. No entanto, a física ainda está longe de unificar todas as
descobertas importantes do séc. XX, como a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica.
“Qualquer físico julga saber o que é um fotão”, escreveu Einstein. “Eu passei a minha vida a
tentar saber o que é um fotão e ainda hoje não o sei” (Hecht, 2002, p.25).
Todo o avanço na compreensão da natureza da luz permite inúmeras aplicações
tecnológicas, desde a fabricação de lentes de alta precisão até os lasers e a fibra óptica nas
transmissões de computador. Sistemas de vigilância, de condução de mísseis, lentes
astronômicas cobrindo todo o espectro eletromagnético, até a fabricação de cerâmicas foi
aprimorada pelos avanços em Óptica.
É importante saber a origem das coisas para que elas tenham identidade e sentido mais
bem definidos. Saber de onde vêm as motivações, as hipóteses, os experimentos, os conceitos
e as teorias que levaram ao entendimento da luz que se tem hoje, requer conhecer a história, as
concepções epistemológicas e filosóficas que envolveram os tempos e homens nos quais a
investigação acerca da luz aconteceu.

II. Desenvolvimento histórico

As primeiras especulações sobre a natureza ou funcionamento da luz remotam à


Antiguidade. Nessa época não se diferenciava muito a luz como algo independente da visão.
Muitos acreditavam que a visão só era possível graças a uma espécie de chama interior nos
olhos, que emanava raios de luz. Os raios viajavam até os objetos e então voltavam ao olho com
as informações das coisas (Salvetti, 2008, p.17). A teoria atomística teve forte influência na Ásia
Menor e na Grécia, em filósofos como Demócrito (460/470-370/380 a.C.), que defendiam ser
toda a matéria do cosmos constituída de pequenas partículas elementares, eternas e
indestrutíveis. Elas não poderiam ser divididas, e por isso receberam o nome de átomos (ατομον),
que em grego significa não-divisível. Essas partículas distinguiam-se umas das outras por suas
características físicas. As partículas de luz possuíam formas tetraédricas pontiagudas, e por isso
podiam causar queimaduras dolorosas (Barthem, 2005, p.19).
Filósofos do mesmo período, como Pitágoras, Empédocles, Platão e Aristóteles e outros
desenvolveram várias teorias sobre a natureza da luz. A propagação retilínea já era conhecida
na época e a lei da reflexão foi enunciada por Euclides em 300 a.C. Hierão de Alexandria (10
a.C.-75) tentou explicar estes dois fenômenos, dizendo que a luz sempre percorre o menor
caminho entre dois pontos (Hecht, 2002, p.17). Pitágoras (582-500 a.C.) considerava que os
objetos emitiam um fluxo constante de partículas de luz que chegavam então aos olhos (Salvetti,
2008, p.18). Platão pensava que a visão se dava no reencontro dos “raios” luminosos emitidos
pelos olhos do observador com aqueles emitidos pelos corpos iluminados por fontes de luz. Já
seu discípulo, Aristóteles, baseando-se nas sensações de vibração sonora e do tato, propôs que
a luz consistia numa vibração ou pulso que se deslocava em um meio indefinido, chamado por
ele de diáfano (algo semelhante à ideia posterior do éter), que era emitido dos corpos iluminados.
O diáfano provoca o movimento de humores, que entram no olho. Argumentava que não faria
sentido que a luz imanasse dos olhos, já que assim seria possível enxergar à noite também
(Salvetti, 2008, p.19). Todas essas especulações não se baseavam em experimentos ou provas
empíricas, eram apenas analogias baseadas em associações (Barthem, 2005, p.19-20).
A matriz filosófica ao qual pertenciam essas teorias foi hegemônica durante a
Antiguidade e primeira metade da Idade Média. Nesta última, a obra do iraquiano Ibn al-
Haytham estabelece a óptica geométrica e rejeita a ideia do raio visual. Também em 1000 d.C.
Alhazem aperfeiçoou a lei da reflexão. Somente com o Renascimento, trabalhos importantes
sobre o tema, como os de Roger Bacon (1220-1292) e Robert Grosseteste (1175-1253) vão
sintetizar a óptica geométrica de al-Haytham e os conceitos aristotélicos da luz.
Muito tempo depois, durante os séculos XVII e XVIII, os métodos e estudos envolvendo
a fabricação de lentes e telescópios foram aprimorados. Galileu e Kepler desenvolveram seus
próprios telescópios. Este último descobriu a reflexão interna total e uma aproximação para
pequenos ângulos da lei da refração. O holandês Willebrord Snell (1591-1626) descobriu
experimentalmente a tão procurada lei da refração, em 1621. René Descartes (1596-1650)
formulou a lei em termos de senos, como é conhecida hoje. Além disso, também formulou sua
concepção da natureza da luz como uma pressão transmitida em um meio elástico. Escreveu em
sua Dioptrique (Descartes, 1637 apud Hecht, 2002, p.19): “… recorde-se a natureza que atribuí
à luz, quando afirmei que esta não é mais do que um certo movimento ou ação, no seio de uma
matéria muito suptil que preenche os poros de todos os corpos…”. Mas, mesmo sem os
pressupostos de Descartes, era possível deduzir a Lei da Reflexão, como o fez Pierre de Fermat
(1601-1665), em 1657, com seu princípio do tempo mínimo.
Em muitos fenômenos, observavam-se comportamentos não esperados pela teoria da
propagação retilínea da luz prevista na óptica geométrica. Por isso as especulações acerca da
natureza da luz eram incertas. Em 1663, após a morte do professor jesuíta da Universidade de
Bolonha, Francesco Maria Grimaldi (1618-1663), seus trabalhos foram publicados, onde ele
identifica o fenômeno que chama de difração da luz. A difração é observada quando surgem
regiões escuras e claras na projeção, em uma superfície, da luz que passa por um obstáculo. O
modelo geométrico previa uma sombra nítida do mesmo, contornada apenas pela penumbra,
que depende das dimensões da fonte luminosa. No entanto, os experimentos apontavam para
outra forma de propagação, que gerava sombras onde devia estar iluminado e iluminação onde
devia estar escuro (pelo modelo geométrico). A difração foi também estudada por Robert Hooke
(1635-1703), que observou os padrões de interferência coloridos gerados por películas delgadas.
Hooke sugeriu que a luz estaria associada a um rápido movimento oscilatório do meio,
propagando-se em alta velocidade (Hecht, 2002, p.19).
Christian Huygens (1629-1695) foi talvez o maior e, sem dúvida, o mais célebre
defensor da teoria ondulatória de seu tempo. Ele considerava a luz uma onda longitudinal, em
que cada ponto da frente de onda seria uma minúscula fonte de oscilação esférica. A frente de
onda prossegue assim correspondendo à linha tangente a todas as oscilações esféricas do
momento anterior. Sua teoria era então uma boa candidata a explicar a difração. Mas sua maior
dificuldade era no que diz respeito à propagação retilínea da luz, incompatível com ondas que
se propagam em todas as direções.
Isaac Newton (1642-1727) fez descobertas surpreendentes com a decomposição de um
feixe de luz que passa por um prisma em diversas cores diferentes. Isso o levou a crer que a luz
branca era formada pela combinação de diferentes corpúsculos, correspondentes às diversas
cores e que produziam no éter vibrações características. Suas especulações seguiam a linha de
raciocínio que desenvolveu em sua teoria da gravitação universal. Mas seu modelo não era
capaz de explicar as franjas de difração de Grimaldi. Por isso, Newton não propunha uma teoria
completa da luz, apesar de sua propensão ao modelo corpuscular.
Esse impasse envolvendo as duas teorias levaria muito tempo para se resolver. Algumas
características mais específicas, no entanto, foram resolvidas. Ole Christensen Römer (1644-
1710) conseguiu comprovar que a velocidade da luz era finita, através de observações
astronômicas de uma das luas de Júpiter, Io. Também Huygens demonstrou corretamente, com
base na teoria ondulatória, que a velocidade da luz diminui ao penetrar nos materiais. Explicou
o fenômeno da dupla refração na calcite e descobriu a polarização em seus trabalhos com o
mineral. Mesmo assim, devido ao peso das descobertas de Newton em diversas áreas da física,
a teoria ondulatória foi amplamente rejeitada durante o século XVIII. Naquele tempo, nem
mesmo se havia chegado ao conhecimento das ondas transversais e a medição precisa da
velocidade da luz carecia dos aparelhos necessários e só viria a ser realizada em 1850, por Jean
Bernard Léon Foucault (1819-1868) (Barthem, 2005, p.24).
Em 1801, 1802 e 1803, Thomas Young (1773-1829) fez diversos comunicados à Royal
Society, defendendo a teoria ondulatória. Para isso, estabeleceu um novo conceito chamado
princípio de interferências. Conseguiu explicar as franjas coloridas das películas delgadas e
determinar o comprimento de onda de várias cores. Mesmo afirmando se apoiar nos trabalhos
de newton e utilizando alguns dados do mesmo, Young foi severamente atacado e desacreditado
na época. Na França, Augustin Jean Fresnel (1788-1827) unificou os conceitos da teoria
ondulatória de Huygens e o princípio de interferências. Estabeleceu um novo modelo de
propagação das ondas de luz e explicou a propagação retilínea da luz em meios isótropos e
homogêneos, resolvendo a maior objeção de Newton à teoria ondulatória (Hecht, 2002, p.22).
Aliado a isso, a demonstração de Foucault de que a luz se propaga com velocidade menor na
água do que no ar terminou por desacreditar quase que por completo o modelo newtoniano na
segunda metade do século XIX.
Em paralelo com o estudo da luz, desenvolvia-se na época o estudo do magnetismo e da
eletricidade. Michael Faraday (1791-1867) foi o primeiro a perceber a relação entre luz e
eletromagnetismo, constatando que um campo magnético intenso podia alterar a direção de
polarização de um feixe de luz. James Clerk Maxwell (1831-1879) unificou todos os conceitos
de magnetismo e eletricidade em um conjunto elegante e simétrico de quatro equações, que
ganharam seu nome. Assim, chegou à conclusão que o campo eletromagnético se propagava
como uma onda transversa no éter, formada pelas oscilações elétrica e magnética. Ele
determinou a velocidade de propagação dessa onda em função de propriedades medidas
experimentalmente no eletromagnetismo. O valor era o mesmo da velocidade medida da luz!
Logo, a luz era uma perturbação eletromagnética se propagando pelo éter em forma de ondas.
Heinrich Rudolf Herz (1857-1894) foi quem confirmou a existência das ondas eletromagnéticas
empiricamente em 1888 (Hecht, 2002, p.22-23).
A teoria ondulatória estava então universalmente aceita. Mas ela perecia exigir a
existência do éter. O fenômeno conhecido como aberração estelar, observado em 1725 por
James Bradley (1693-1762) só podia ser explicado pela teoria ondulatória se o éter fosse
considerado imperturbado pelo movimento Terra. Por outro lado, a concepção corpuscular
explicava facilmente o fenômeno. Fresnel tentou explicar supondo que a luz, ao passar por um
meio transparente, era parcialmente arrastada por ele. Hendrik Antoon Lorentz (1853-1928)
chegou a criar uma teoria que incorporava as ideias de Fresnel. Os resultados do experimento
de Michelson-Morley, publicados em 1887, refutaram completamente a possibilidade de um
movimento relativo entre a Terra e o éter. A teoria ondulatória era insuficiente para explicar a
aberração estelar (Hecht, 2002, p.23-24).
Jules Henri Poincaré (1854-1912) foi o primeiro a escrever que talvez não existisse
nenhum éter de fato. A Teoria da Relatividade Restrita, apresentada em 1905 por Albert Einstein
(1879-1955) também considerava o éter supérfluo. A única alternativa deixada por Einstein e
pelos experimentos da época para a luz era a de que ela se propagava no vácuo. Ela é assim uma
entidade própria, em termos de campo e não de éter (Hecht, 2002, p.24-25).
Os experimentos de Phillip Lenard (1862-1947) com radiação de corpo negro,
juntamente com os postulados de Planck sobre os quanta, levaram Einstein a criar uma nova
teoria corpuscular da luz. A luz seria formada por pequenos “pacotes” de energia, os quanta de
Planck. Contrariando a teoria ondulatória de Maxwell, a energia liberada pelos elétrons de um
metal onde é incidida uma onda eletromagnética homogênea não é proporcional à intensidade
da onda, mas à sua frequência. Isso foi o que levou Einstein a propor a nova teoria, resgatando
velhas concepções newtonianas. Não só a matéria e a carga elétrica têm estrutura granular, mas
a energia de radiação de luz também (Einstein e Infeld, 1967, p.232). A concepção da luz como
formada pelos quanta permanece até os dias atuais, tendo sido bastante aprimorada e
corroborada pelos estudos posteriores a Planck e Einstein.

III. A dualidade sob diferentes perspectivas epistemológicas

III. 1. Thomas Kuhn


De modo geral, a teoria kuhniana vê o progresso da ciência como uma sucessão de
períodos de ciência normal, nos quais a comunidade científica adere a um paradigma. O que
interrompe esses períodos são as revoluções científicas, que se devem a anomalias ou crises no
paradigma vigente. As crises só são superadas quando surge um paradigma novo para ocupar o
lugar do antigo (Ostermann, 1996). Um elemento importante da visão de Kuhn é o da
“incomensurabilidade” dos paradigmas, que diz que “...padrões científicos e definições são
diferentes para cada paradigma...” (Kuhn, 1978 apud Ostermann, 1996). Isso significa que as
teorias de dois paradigmas concorrentes não dialogam entre si.
No entanto, quando chegamos ao século XX, os dois paradigmas (corpuscular e
ondulatório) parecem se “fundir”. Einstein considerou que o problema devia estar na mecânica
newtoniana e não no eletromagnetismo de Maxwell para resolver o problema do movimento
relativo (Feynmann, 2008, cap.15 p.3). Por outro lado, considerou que os resultados dos
experimentos de radiação de corpo negro (efeito fotoelétrico) não podiam ser explicados com
as ondas de luz de Maxwell, mas por alguma variante dos corpúsculos de Newton! (Einstein e
Infeld, 1967, p230-236). Tal variação estava na época conceituada por Planck, não exatamente
como Newton descrevia. Mas a ideia de corpúsculo permanecia. Então, o que houve foi uma
combinação, uma conciliação dos dois paradigmas, inseridos dentro do paradigma da mecânica
quântica. Logo, a tese da incomensurabilidade parece falhar em se tratando da luz. A conciliação
das ondas e partículas não incorreu em nenhuma “conversão” ao novo paradigma quântico, mas
apenas na aceitação do mesmo como melhor, já que comporta conceitos dos dois antes
antagônicos.
III. 2. Karl Popper
A epistemologia popperiana tem seu enfoque na delimitação do conhecimento científico
segundo uma série de regras lógicas. Essas regras determinam que o conhecimento científico é
sempre falível e corrigível, e que qualquer teoria que não possa ser logicamente falsificada não
pode ser científica. As teorias não “brotam” das observações, mas são criadas pela mente do
cientista. Estes propõem hipóteses, ou leis, que juntamente com condições específicas
(geralmente observáveis e mensuráveis) devem levar a uma explicação dos fenômenos. A teoria
assim construída busca estar cada vez mais próxima da verdade objetiva da natureza, da
realidade (Silveira, 1996).
Os trabalhos e registros de Newton, Huygens, Young, Maxwell e tantos outros, à luz da
história, mostra que esses cientistas geralmente tinham consciência das duas hipóteses e
conheciam seus méritos e problemas. Eles adotavam uma teoria como verdadeira, mas apenas
para aperfeiçoá-la até que ela pudesse explicar os fenômenos que ainda não podia. Nesse sentido,
essas pessoas não estavam escolhendo um paradigma, mas escolhendo o que lhes parecia mais
próximo da explicação correta da natureza. Se uma das hipóteses tivesse sido totalmente
descartada, não seria possível conciliar as duas na mecânica quântica.
O avanço das teorias até a mecânica quântica permitiu desvelar diversos aspectos sobre
a natureza da luz. Finalmente, ela é explicada em termos de ondas e partículas. Para Popper,
isso corresponde à aproximação entre as explicações e a realidade concreta e verdadeira, mesmo
que aquelas ainda possam ser aprimoradas. A junção das duas perspectivas é admitida pela visão
popperiana, ao contrário de Kuhn, que defende a incomensurabilidade de dos paradigmas
concorrentes.

III. 3. Imre Lakatos


De forma semelhante à epistemologia popperiana, Lakatos também defende a busca da
ciência pela realidade objetiva. Ele absorve a ideia de paradigma de Kuhn dentro de sua teoria
da metodologia dos programas de pesquisa (MPPC). O programa de pesquisa é composto de
um núcleo firme (teoria consensualmente aceita como verdadeira) e de um cinturão protetor
(hipóteses auxiliares e métodos observacionais) que procura adequar o programa aos fatos
(Silveira, 1996).
A teoria quântica atual da luz também deve possuir um núcleo firme e um cinturão, que
é articulado para explicar cada nova observação e ainda prever novos fenômenos. Pode-se dizer
que a teoria quântica é o que Lakatos chama de empiricamente progressiva, dado o imenso
avanço tecnológico, descobertas e previsões que vem proporcionando. Quando um novo
fenômeno parece desmentir algum pressuposto da teoria, o esforço dos cientistas é ajustar as
hipóteses auxiliares do cinturão, e não o núcleo. Mesmo assim, na visão lakatosiana, nada
impede que surjam novas observações que possam fazer o programa regredir.

IV. Discussões finais


Todos os princípios científicos decorrem de princípios científicos mais fundamentais,
que por sua vez decorrem de outros e assim por diante. Mas essa progressão não pode ser infinita.
Os últimos princípios inevitavelmente serão metafísicos e, portanto, não podem ser explicados
pela ciência. A razão (e a razão empregada na ciência) é sempre uma explicação de um objeto
real, que permite ver através dele, até seus primeiros princípios. Mas tentar ver através destes
últimos é tornar tudo transparente e, então, não ver mais nada, como escreveu C.S. Lewis.
Todo o esforço da ciência consiste em um “grande romance policial” da natureza, como
fazem alusão Einstein e Infeld em seu livro “A Evolução da Física”. Um longo processo em
que os cientistas descobrem novas pistas e esclarecem assim mais uma parte dos fatos. E é
essencial para os cientistas que suas descobertas digam respeito aos fatos, à realidade. Esse é o
entendimento predominante que eles têm do próprio trabalho (Oliva, 2009). Então, como podem
aceitar teorias por pura preferência ou convencimento dos pares. Isaac Newton por exemplo,
não preferiu a teoria corpuscular por capricho ou apenas por conveniência, mas por que ela
correspondia mais adequadamente com sua mecânica naquele momento. Mecânica esta que
parecia explicar quase por completo a realidade física. Os critérios que os cientistas utilizam
para validar teorias são analíticos e dialéticos e não retóricos (Oliva, 2009). Por isso a concepção
relativista de Thomas Kuhn é falha em explicar o processo real da ciência.
Popper e Lakatos apresentam uma visão realista da ciência, por isso não incorrem nos
mesmos erros apontados. Sua epistemologia parece refletir a ideia que muitos dos grandes
filósofos da humanidade sempre mantiveram: a de que o discurso humano (ou linguagem
humana) não pode abarcar todos os aspectos da realidade e muito menos fazê-los totalmente
apreensíveis a quem o ouve. Por isso também o discurso científico não pode explorar nem
explicitar todo o significado e origem da natureza, mas apenas apontar, indicar e descrever parte
de seu comportamento. As teorias são os discursos ou conjecturas humanas que devem buscar
corresponder o máximo possível à realidade, mesmo nunca a esgotando.

V. Referências bibliográficas
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Brasileira de Física, 2005.
EINSTEIN, Albert; INFELD, Leopold. A Evolução da Física: O desenvolvimento das ideias
desde os primitivos conceitos até à Relatividade e aos quanta. Livros do Brasil: Lisboa, sem
data.
FEYNMANN, Richard P. Lições de física de Feynmann: edição definitiva / Richard P.
Feynmann, Robert B. Leighton, Matthew Sands. Porto Alegre: Bookman, 2008.
HECHT, Eugene. Óptica. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
LEWIS, C. S. A abolição do homem. WMF Martins Fontes, 2012.
OLIVA, Alberto. É a ciência a razão em ação ou ação social sem razão? Scientae Studia, São
Paulo, v. 7, n. 1, p. 105-34, 2009.
OSTERMANN, Fernanda. A epistemologia de Kuhn. Caderno Catarinense de Ensino de
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SALVETTI, Alfredo Roque. A história da luz. 2. ed. rev. São Paulo: Editora Livraria da
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SILVEIRA, Fernando L. da. A filosofia da ciência de Karl Popper: o Racionalismo Crítico.
Caderno Catarinense de Ensino de Física, Florianópolis, vol. 13, n. 3, p. 197-218, dez.
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______; A Metodologia dos Programas de Pesquisa: a epistemologia de Imre Lakatos.
Caderno Catarinense de Ensino de Física, Florianópolis, vol. 13, n. 3, p. 197-218, dez.
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