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Texto dissertativo-argumentativo

Autor: Eduardo F. Dias – discente de Física da Universidade Federal da Fronteira


Sul (UFFS)
Ano: 2022

As concepções liberais e marxistas do Estado como Religiões Políticas

O Estado moderno emerge na História como consequência do declínio da Idade Média


no mundo ocidental. Com a ascensão dos comerciantes e banqueiros, a terra deixa de ser a
medida de riqueza e poder econômico e dá lugar ao dinheiro e ao capital. O velho sistema
feudal, onde os laços da tradição, o vínculo com a terra e a bênção da Igreja legitimam as
relações econômicas, civis e políticas entre os homens, dá lugar ao Estado como uma nova
forma de legitimação.
Para organizar-se, o Estado cria uma burocracia centralizadora a quem todos devem
recorrer para obter a legitimação de suas ações. Nessa nova configuração, há aqueles que
defendem a não interferência do Estado nas questões religiosas, portanto uma separação total
entre os poderes temporais e espirituais. Outros propõem a harmonização do Estado com a
Igreja, ou seja, um acordo entre as competências de um e de outro. Por último, há a
concepção de que o Estado acumula a jurisdição civil e o poder espiritual em si. Essa ideia se
divide em duas correntes filosóficas e políticas: a Teoria do Direito Divino dos Reis e a
Religião Política.
Na primeira, afirma-se que Deus confere ao rei a autoridade temporal e espiritual
sobre todos os seus súditos. A segunda, de natureza gnóstica, defende que o sentido total da
vida humana é abarcado pela organização política da sociedade. Todas as categorias
espirituais são cristalizadas na estrutura do Estado. A Religião Política, também chamada de
Teologia Política (o Estado é Deus), assume diversas formas na Idade Moderna. São elas:
Romantismo, Iluminismo, Positivismo, Idealismo Transcendental e Marxismo.
O Liberalismo é uma corrente de pensamento filosófico, político e econômico que
surge ligado ao Iluminismo. No entanto, o Iluminismo apresenta visões de mundo variadas
em campos como a teoria política. Pode-se identificar dois tipos principais de Iluminismo que
influenciaram o Liberalismo Político: o escocês e o francês.
Em seu “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil”, John Locke elabora as bases do
Liberalismo Político escocês: os homens nascem livres e iguais, com direitos naturais de vida
e liberdade. Pelo trabalho sobre a matéria, o homem adquire o direito de posse daquilo em
que se empenhou, criando a propriedade privada. Para assegurar os direitos naturais do
homem à vida, liberdade e propriedade privada, se estabelecem as sociedades políticas,
inclusive o Estado Moderno, baseadas no consentimento dos governados. Seu pensamento
deriva da convergência de diversas ideias anteriores, como as de Adam Smith, Thomas Reid,
David Hume e outros.
A Revolução Gloriosa de 1668, na Inglaterra, concretiza várias ideias de John Locke.
Para proteger os direitos naturais, foram criadas leis iguais para todos, até o rei. A Lei
Comum tradicional é mantida. O poder do Estado é limitado e dividido entre o Parlamento e
o Rei. O Estado não tem o direito de interferir nas instituições religiosas e nem na vida
espiritual dos cidadãos.
Em 1776 os colonos americanos se revoltam contra o rei da Inglaterra e conseguem
fundar seu próprio país independente. Os Estados Unidos da América se formam baseados
amplamente nos ideais liberais escoceses: o império das leis, a liberdade individual, a
tolerância religiosa, a liberdade de expressão e crença, a limitação do poder do Estado.
Novamente, o Estado tem a função de garantia dos direitos individuais naturais, dados pelo
Criador e “tidos como auto-evidentes”, como consta na Declaração de Independência dos
EUA.
Por se originarem no Iluminismo Escocês, o pensamento liberal inglês e americano
preza a experiência acumulada na tradição como matéria-prima da razão e não tem o Estado
como culminação da vida humana. Por isso, não pode ser considerado uma forma de Religião
Política.
O Iluminismo Francês e do continente, de Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Diderot,
D’Alembert, Montesquieu, entre outros, defendia os direitos individuais, à vida, à igualdade e
à propriedade privada, a lei igual para todos, a limitação e separação entre os poderes do
Estado. Mas também pretendia destituir toda a ordem social anterior. A tradição e a religião
eram vistas como superstições, inimigas da razão e do progresso da humanidade. Não se
pretendia apenas separar o poder civil do religioso, mas criar uma nova autoridade estatal
com ambas as funções. Toda a sociedade seria recriada à luz da Razão. O Iluminismo Francês
é uma forma de Religião Política, e a Revolução Francesa de 1789 foi uma tentativa de
estabelecer uma religião secular estabelecida no Estado.
Immanuel Kant, iluminista alemão, teria posteriormente forte influência sobre o
fundador do Idealismo Transcendental, Georg W. F. Hegel. Para Hegel, a História se
desenrola segundo um processo de tomada de consciência de si do Espírito Absoluto. As
culturas, religiões e pensamentos dos homens ao longo do tempo são resultado da dialética
interna desse ente metafísico. O Espírito Absoluto atingiria seu ápice no Estado Prussiano, o
que corresponde ao “Fim da História”.
Influenciado por Hegel, mas assumindo o Materialismo de Feuerbach, Karl Marx
desenvolve uma nova teoria da História, o Materialismo Histórico Dialético. O sentido da
História não está mais no mundo das ideias, mas nas relações de produção material do ser
humano. O homem é essencialmente um animal que trabalha, transformando a natureza em
proveito próprio. Ele se diferencia dos outros animais por possuir consciência de si. Porém,
no processo histórico o homem criou mecanismos artificiais de manipulação da matéria e de
trocas econômicas. O domínio desses mecanismos por uns em detrimento de outros resulta na
formação das classes sociais, divididas em opressores e oprimidos.
Marx considera religião, filosofia, arte e política como mecanismos de dominação dos
oprimidos pelos opressores. Consistem em ideologias para alienar os trabalhadores.. E todo o
sentido da vida humana se explica, em última instância, pela produção material. O Estado
Moderno, portanto, é mais uma forma de dominação, onde seus fundadores burgueses
criaram um sistema político, burocrático e jurídico para protegerem seus interesses e seus
meios de exploração dos proletários. Karl Marx propõe então a libertação dos oprimidos
desse sistema através da Revolução Proletária Internacional.
Tal revolução teria por fim destituir os burgueses dos meios de produção e instaurar o
Estado Socialista. Esse modelo de Estado trabalharia para eliminar a alienação dos
trabalhadores e devolver-lhes a consciência de si. Isto se daria pela centralização do poder
político e controle estatal da economia. Quando os homens finalmente se vissem livres de
todas as formas de alienação e dominação viria o Comunismo: uma sociedade sem classes e
sem Estado. O Estado não seria mais necessário, pois a tomada de consciência de si pelos
homens eliminaria todos os conflitos.
Assim, ao tomar o Estado como estrutura que é capaz de organizar e direcionar todos
os aspectos da vida do homem, o Marxismo se configura, assim como o Idealismo
Transcendental de Hegel e o Iluminismo francês, como uma Religião Política. As formas de
Estado que arrogam para si a condução do destino da humanidade viriam, por isto mesmo, a
resultar em todos os totalitarismos, guerras, perseguições, campos de concentração e trabalho
forçado, genocídios, fome e sofrimentos de todo tipo espalhados pelo século XX.
REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Trad. Roberto Raposo. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
BOEIRA, Marcus. Curso: Filosofia Política.
CARVALHO, Olavo de; O Jardim das Aflições - De Epicuro à ressurreição de César: ensaio
sobre o Materialismo e a Religião Civil. 3 ed. Campinas: Vide Editorial, 2015.
GOMES, Ricardo. Curso: Um Passeio Pela História do Liberalismo.
LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
______; A Ideologia Alemã: Feuerbach - A Contraposição entre as Cosmovisões
Materialista e Idealista.
MERQUIOR, José Guilherme. Trad. Raul de Sá Barbosa. O Marxismo Ocidental. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
VOEGELIN, Eric. Trad. Teresa Marques da Silva. As Religiões Políticas. 1 ed. Lisboa:
Vega, 2002.

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