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HISTÓRIA DA QUÍMICA

Maria da Conceição Marinho Oki

Este artigo apresenta os principais conceitos introduzidos pelo importante filósofo da Ciência Thomas Kuhn.
São apresentados dois episódios da História da Química analisados por Kuhn: a revolução química de Lavoisier
e o novo sistema de filosofia química de Dalton.


Filosofia da Ciência, ensino de Ciências, História da Química

Recebido em 13/05/03; aceito em 23/7/04

T
homas Kuhn (1923-1996), físico Através de uma abordagem inova- sobre a Ciência.
e professor de História da dora e propositiva, Kuhn apresentou Kuhn percebeu que existiam diver-
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Ciência, revolucionou a Ciência críticas a princípios defendidos pelas gências entre os cientistas sociais
“instituída” até o início do século XX, escolas positivistas. relacionadas à natureza dos métodos
propondo uma nova forma de com- Thomas Kuhn graduou-se em Físi- e dos problemas científicos. Ele intro-
preender o seu processo de produ- ca e realizou pós-graduação em duziu uma abordagem alternativa e
ção. Novos conceitos de paradigma, Física Teórica. Seu interesse posterior diferenciada para discutir essas ques-
crise e revolução científica passaram pela História da Ciência refletiu sua tões, preocupando-se, também, com
a fazer parte do cotidiano do meio preocupação com o enorme sucesso a formação das comunidades cientí-
científico e das divu- e grande poder da ficas e com as características socio-
lgações relacionadas A concepção de Ciência Ciência e suas con- lógicas dessas comunidades. Kuhn
às Ciências Exatas e como “grande narrativa” foi seqüências sociais. reconheceu a influência de fatores
Humanas. O proces- abalada quando Kuhn Como o próprio au- extracientíficos sobre a Ciência, admi-
so de construção da questionou a concepção tor reconheceu no tindo a inexistência de um padrão de
Ciência passou a ser de progresso científico prefácio do seu mais racionalidade para o julgamento de
mais investigado e as como uma decorrência importante livro, “A episódios do passado. Ele defendeu
“verdades científicas” natural da acumulação estrutura das revolu- uma visão não linear para a evolução
foram reconhecidas gradativa de ções científicas”, a da ciência e a não-cumulatividade do
como provisórias, o conhecimentos obra foi concebida saber científico, a não-neutralidade da
que contribuiu para a numa tentativa de observação e a transitoriedade das
desmistificação da Ciência. justificar para ele mesmo e para seus verdades científicas, entre outras.
A construção do conhecimento, amigos sua mudança de rumo (Kuhn, A concepção de Ciência como
considerada como um processo so- 1996, p. 10). “grande narrativa” foi abalada quando
cial, foi caracterizada considerando a A concepção de Kuhn do que po- Kuhn questionou a concepção de
sua complexidade aliada à grande deria ser a história das idéias cientí- progresso científico como uma decor-
inventividade desse tipo de atividade. ficas sofreu influência de importantes rência natural da acumulação grada-
A sua arrojada proposta resgatou as- historiadores e filósofos, como Ale- tiva de conhecimentos. “O progresso
pectos históricos e sociológicos xandre Koyré, Annelise Maier, Émile através de revoluções é a alternativa
como requisitos para análise da pro- Meyerson e Hélene Metzger, entre proposta por Kuhn para o progresso
dução do conhecimento e minimizou outros, que já apresentavam perspec- acumulativo, característico dos rela-
os aspectos lógicos e metodológicos. tivas diferenciadas nas suas análises tos indutivistas da ciência.” (Chal-
mers, 1995, p. 135).
Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento Apesar da grande repercussão do
científico é construído. Neste número a seção apresenta dois artigos. trabalho de Kuhn, críticas contempo-

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râneas consideram que o legado fico e acadêmico. Muitas críticas fo- de ciência normal, nos quais o para-
kuhniano parece tênue quando olha- ram feitas à diversidade de signifi- digma vigente direciona a atividade
do pelos filósofos. Uma das preocu- cados atribuídos a esse termo, quan- científica, e a ruptura denominada
pações de Kuhn era ser bem aceito do ele foi introduzido na primeira revolução científica. Esse momento é
como filósofo, embora não tivesse edição de seu livro “A estrutura das precedido de anomalias e crises
tido uma ampla formação nesse cam- revoluções científicas”. As dúvidas e dentro do paradigma dominante, que
po (Bird, 2002, p. 455 e 460). possíveis divergências foram reco- poderão levar a uma nova tradição de
A importante contribuição de Kuhn nhecidas por Kuhn, pesquisa. Dentro de
para a queda do positivismo e do levando-o a apri- De acordo com Kuhn, o um paradigma, as
empiricismo é amplamente reconhe- morar o significado desenvolvimento da Ciência leis, teorias, aplica-
cida; no entanto, em alguns aspectos do conceito no acontece envolvendo dois ções e instrumentos
do seu pensamento identifica-se pósfácio da edição momentos: a ciência proporcionam mo-
resíduos de alguns princípios defen- de 1969 do livro normal e a ciência delos que subsidiam
didos por essas escolas filosóficas. (Ostermann, 1996). A revolucionária as pesquisas cientí-
Na verdade, Kuhn iniciou uma revolu- definição a seguir ficas.
ção nesse campo que foi além do que pretendeu apresentar uma visão con- A acumulação de anomalias e a
ele próprio imaginava, contribuindo sensual: dificuldade em explicá-las pode ori-
para a fundamentação de uma “Nova ginar uma crise, que poderá ser con-
Considero paradigmas as
Filosofia da Ciência” constituída no tornada quando um novo paradigma
realizações científicas univer-
século XX. emergir. As condições externas po-
salmente reconhecidas que,
Embora as idéias de Kuhn tenham dem ajudar a transformar uma sim-
durante algum tempo, forne-
causado um grande impacto na Filo- ples anomalia em uma fonte de crise
cem problemas e soluções
sofia da Ciência contemporânea, Bird aguda (Kuhn, 1996, p. 15).
modelares para uma comuni-
(2002) considera que a ausência de A ciência normal é concebida por
dade de praticantes de uma
uma escola kuhniana pode ser em Kuhn como uma atividade conser-
ciência. (Kuhn, 1996, p. 13).
parte justificada pelo fato de a sua vadora e a adesão da comunidade
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principal idéia, o conceito de paradig- Mapeando as principais idéias e decorre de uma aceitação dogmática
ma, não ter encontrado o acolhimento conceitos kuhnianos, Laudan et al. por parte dos seus membros. Ele con-
apropriado nos meios acadêmicos. (1993, p. 46) apresentam o termo sidera que a maior parte dos avanços
Atualmente se reconhece que esse paradigma relacionando-o com “as científicos é do tipo normal e acumu-
conceito se aplica à cognição cientí- suposições diretivas de um campo”. lativo, sendo as mudanças revolucio-
fica; no entanto, na- O aprimoramento nárias diferentes e muito mais proble-
quele período, essa A existência de mudança desse termo incluiu máticas, envolvendo descobertas
articulação não acompanhada de muitas um sentido geral e que não podem ser acomodadas nas
aconteceu de ime- controvérsias é indício que outro mais restrito. estruturas conceituais vigentes. Para
diato. A aplicação da define as revoluções No geral, ele corres- que a assimilação aconteça, uma
ciência cognitiva à científicas. A forma ponde aos compro- descoberta deve alterar o modo de
cognição científica é descontínua através da missos de pesquisa pensar sobre ou de descrever um da-
uma linha de inves- qual acontece a mudança de uma comunidade do fenômeno natural (Kuhn, 2000,
tigação que se de- caracteriza a revolução científica (crenças, p. 14-15).
senvolveu poste- científica valores, técnicas A existência de mudança acom-
riormente. compartilhadas), que panhada de muitas controvérsias é
se relacionam com a expressão matriz indício que define as revoluções cien-
Principais conceitos kuhnianos disciplinar. tíficas. A forma descontínua através
De acordo com Kuhn, o desenvol- Os componentes de uma matriz da qual acontece a mudança carac-
vimento da Ciência acontece envol- disciplinar são: generalizações simbó- teriza a revolução científica.. O perío-
vendo dois momentos: a ciência nor- licas, modelos particulares, valores do em que ocorre a transformação
mal e a ciência revolucionária. Nos compartilhados e exemplares. Este das anomalias em regra é caracteri-
períodos de ciência normal, a comu- último componente está relacionado zado por observação, novos experi-
nidade atua consensualmente dentro com um sentido mais restrito do mentos e uma reflexão sistemática.
de um paradigma que é comparti- conceito, em que os exemplares for- As expectativas, os padrões instru-
lhado pelos cientistas. As leis cientí- mam o elo de ligação entre os fenô- mentais e as teorias fundamentais
ficas, por exemplo, são geralmente menos empíricos e as generalizações são revistos (Kuhn, 1977, p. 219).
produtos do processo normal. teóricas. “Exemplares são problemas Os problemas a serem resolvidos
O termo “paradigma” constitui um concretos com as respectivas solu- foram comparados de forma metafó-
importante conceito dentro da sua ções” (Kuhn, 1977, p. 358-59 e 368). rica a um quebra-cabeça; a solução
proposta teórica, tendo adquirido Na perspectiva kuhniana o desen- dependerá da habilidade dos envol-
grande popularidade no meio cientí- volvimento da ciência inclui períodos vidos no jogo científico: os cientistas.

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Na opinião de Kuhn, cientistas mais de incomensurabilidade, detendo-se
jovens são mais ousados e podem num tipo de incomensurabilidade
contribuir de forma mais direta na lingüística (Kuhn, 2000).
modificação de paradigmas.
As reelaborações posteriores de A História da Ciência na perspectiva
Kuhn sobre o conceito de paradigma kuhniana
passaram a sugerir que uma distinção Uma das preocupações de Kuhn
aguda entre ciência normal e revolu- era com as abordagens lineares da
cionária não mais se aplicava. Se- História das Ciências que tinham
gundo Larvor (2003), uma revolução como objetivo julgar o que havia
seria tanto uma interrupção quanto sido produzido, demarcar no pas-
uma evolução do passado, conside- sado o que era científico, distinguin-
rando-se a existência de continuidade do esse tipo de saber dos mitos,
através das interrupções. A possibili- crenças, superstições e equívocos
dade de uma mudança revolucionária acontecidos no processo de cons-
na ciência normal sem deslocamento trução do conhecimento. Do seu
de paradigma passou a ser consi- ponto de vista, o objetivo de grande
derada. parte dos historiadores era o regis-
Uma das principais contribuições tro dos grandes descobridores e a Antoine Laurent de Lavoisier e sua esposa
de Kuhn para a Filosofia da Ciência justificativa dos erros cometidos, Marie-Anne em quadro de Jacques-Louis
foi, sem dúvida, o conceito de para- das pseudodescobertas, dos mitos David, de 1788.
digma. No entanto, a partir da década e superstições que consideravam
de 70 esse tema é deixado de lado e
Lavoisier: A antevisão de uma
ter dificultado a acumulação do sa-
seu interesse passa a ser a natureza ber científico. As narrativas histó- revolução
da linguagem e o seu uso na Ciência. ricas apresentadas reforçavam uma Um dos períodos da História da
34 O foco de suas idéias passa a ser nas visão continuísta e dogmática da Química escolhido por Kuhn para seu
categorias comensurabilidade e inco- ciência inclusive nos meios acadê- estudo foi a segunda metade do sé-
mensurabilidade. micos. culo XVIII. Nesse período, profundas
Inicialmente, o segundo conceito, Kuhn questionou o julgamento modificações aconteceram graças à
incomensurabilidade, expressava a valorativo entre componentes teóricos renovação de teorias e conceitos, tan-
dificuldade de se comparar os com- de paradigmas diferentes consideran- to do ponto de vista da estrutura
ponentes teóricos e padrões de cien- do que fatores históricos, socioló- lógica como da linguagem utilizada.
tificidade, característicos de paradig- gicos e psicológicos distintos deter- Alterações relativas ao status onto-
mas diferentes, sustentados em racio- minam as estruturas conceituais lógico da Química com repercussões
nalidades distintas. Essa idéia inicial específicas em cada contexto cien- nas dimensões epistemológica e
foi muito criticada em função do en- tífico. metodológica dessa ciência foram
tendimento de que cientistas que Uma História da Ciência madura observadas. O principal responsável
trabalhassem em paradigmas dife- é considerada como sendo formada, por essas transformações foi o mais
rentes não poderiam se comunicar. predominantemente, por uma suces- importante químico do século XVIII,
Kuhn se defendeu das críticas argu- são de tradições. Dentro de cada tra- Antoine Laurent de Lavoisier (1743-
mentando que não dição, as teorias, mé- 1794).
teve a intenção de As inovações propostas todos e técnicas dire- As inovações propostas tiveram
associar incomen- por Lavoisier tiveram tanta cionam a atividade tanta repercussão na constituição de
surabilidade com repercussão na constituição científica praticada uma Química moderna que passaram
não comparabili- de uma Química moderna durante um certo pe- a ser identificadas como “Revolução
dade ou mesmo que passaram a ser ríodo, entrando em Química”. Essa identificação está
incomunicabilidade identificadas como declínio e sendo relacionada com a análise feita por
(Kuhn, 2000, p. 193). “Revolução Química” substituídas (Kneller, Kuhn do trabalho de Lavoisier, em es-
As críticas apresen- 1980). pecial do episódio da descoberta do
tadas levaram-no a repensar a sua Para ilustrar suas propostas oxigênio e da crise gerada nesse
idéia original e a desenvolver outra sobre as mudanças científicas, período sobre as explicações de fenô-
abordagem, aproximando-se para Kuhn analisou alguns episódios da menos como combustão, calcinação
tanto da Filosofia da Linguagem. História da Química que contri- e respiração.
Os termos comensurabilidade e buíram para a grande repercussão Alguns historiadores da Química
incomensurabilidade passaram a da suas idéias. Kuhn apresenta teceram críticas a essa versão revolu-
representar relações obtidas entre uma abordagem historicista, uma cionária do trabalho de Lavoisier. Os
estruturas lingüísticas. Kuhn desen- epistemologia que se nutre da His- questionamentos apresentados
volveu uma explicação “taxonômica” tória das Ciências. apontam que as contribuições de pre-

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decessores e sucessores desse damente explicado pela Teoria do levou a um deslocamento da rede
químico para as profundas mudanças Flogisto. Essas questões levaram ao conceitual usada pelos cientistas para
na Química não foram suficiente- descrédito nessa teoria, comprome- interpretar os fenômenos e o mundo;
mente valorizadas nas narrativas tendo a sua credibilidade e desenca- a mudança conceitual acompanha a
históricas. Um outro aspecto criticado deando a sua decadência. Ao mesmo mudança de paradigma (Kuhn, 1996,
foi o pouco reconhecimento da parti- tempo começou a surgir uma outra p. 137).
cipação dos colaboradores de Lavoi- explicação para os fenômenos, a par- De acordo com Filgueiras (1995),
sier na elaboração dos seus trabalhos tir do reconhecimento do papel do as diferenças conceituais entre o sis-
(Bensaude-Vincent, 1990; Bensaude- oxigênio (combustão, calcinação, tema de Stahl (dos flogistas) e o de
Vincent e Stengers, 2001; Maar, 1999). respiração etc.). A descoberta desse Lavoisier envolviam modificações na
Até meados do século XVIII, des- elemento foi a chave de todo o mis- noção de substâncias elementares e
tacava-se no ambiente científico da tério, permitindo que a sua reatividade compostas. Os metais, ou mesmo o
Química a Teoria do Flogisto. A ciên- química fosse compreendida. hidrogênio, que segundo os flogistas
cia normal operava à luz dessa teoria Lavoisier comportou-se como um eram compostos, no sistema lavoisie-
que, por ser qualitativa, trazia algu- grande detetive; tendo percebido riano foram definidos como substân-
mas desvantagens. Inicialmente gera- muitas anomalias na Química, conse- cias simples. As mudanças conceituais
va confusão na defi- guiu profetizar a sua introduzidas permitiram a compre-
nição de elemento Paralelamente à “invenção” ação revolucionária, ensão da composição do ar atmosfé-
químico, já que os do oxigênio, Lavoisier registrando-a anteci- rico e da água, questões estratégicas
metais, por exemplo, destacou-se como grande padamente junto à para uma ampla sistematização da
eram considerados sistematizador da Química, Academia de Ciên- Química delineada por Lavoisier e con-
como compostos; conseguindo organizá-la e cias Francesa. Ou cretizada com a apresentação de uma
além disto, não esta- conferindo-lhe um novo seja, sua intenção foi nova nomenclatura química.
belecia uma relação status a de introduzir pro-
quantitativa de cor- fundas mudanças Dalton e um novo sistema de Filosofia
respondência entre as massas das nessa ciência (Filgueiras, 1995). A Química: O exemplo mais completo
de uma revolução científica? 35
substâncias que se esperava obter proposta lavoiseriana de uma nova
nas reações químicas e os valores de- teoria da combustão abriu caminho Outro exemplo utilizado por Kuhn
terminados através do uso de balan- para um novo paradigma que incor- para ilustrar os seus conceitos, se-
ças. porou profundas mudanças concei- gundo ele “talvez o exemplo mais
O desenvolvimento da química tuais na Química. completo de uma revolução cientí-
prática no século XVIII, as descober- Segundo Kuhn (1996, p. 94), fica”, foi o trabalho de Dalton contido
tas de novas substâncias químicas e Schelle e Priestley participaram da em parte no seu livro “Novo sistema
a complexificação dos fenômenos descoberta do oxigênio, embora de Filosofia Química”, publicado em
investigados ameaçaram o paradig- Lavoisier o tenha inventado, já que 1808 (Kuhn, 1996, p. 169).
ma dominante fundamentado na Teo- compreendeu o seu papel nos pro- Até o início do século XIX, a maio-
ria do Flogisto, amplamente usada cessos químicos. A sua nova teoria ria dos químicos concordava que era
nas explicações sobre transforma- da combustão permitiu a explicação possível explicar a composição quí-
ções químicas nesse período. Confi- de muitas das anomalias detectadas. mica dos materiais tomando como
gurava-se o insucesso da teoria vi- Paralelamente à invenção do oxi- base os elementos químicos. Nesse
gente para explicar os novos fenô- gênio, Lavoisier destacou-se como período os elementos eram consi-
menos empíricos, acumulavam-se grande sistematizador da Química, derados como os constituintes que
anomalias, gerando uma situação de conseguindo organizá-la e conferin- resultavam da análise química
crise. A causa principal dessa crise do-lhe um novo status. Nessa nova (Bensaude-Vincent e Stengers, 2001).
foi o desenvolvimento da Química abordagem a quantidade era também Durante o século XVIII, as teorias
Pneumática, que proporcionou a des- priorizada na explicação das reações de afinidades químicas eram usadas
coberta do oxigênio, permitindo que químicas. A construção racional de nas explicações das interações quí-
se compreendesse a sua reatividade uma Química moderna teve Lavoisier micas, fundamentando o paradigma
química. como um dos seus mais importantes amplamente utilizado na concepção
Uma outra questão contribuiu para mentores e executores; ele soube e análise dos experimentos químicos.
o agravamento da crise: as divergên- combinar de modo rigoroso indução, No entanto, existiam dificuldades no
cias observadas nas relações de dedução e experimentação. campo conceitual relacionadas às
massa determinadas quando corpos A nova teoria da combustão, que explicações fornecidas para a diferen-
eram submetidos ao aquecimento na incluía novas suposições diretivas, foi ça entre mistura e composto. Nesse
presença do ar. Para alguns elemen- fruto de uma lenta mudança nas período, ainda não era possível fazer
tos a combustão levava a um aumen- idéias que Lavoisier inicialmente com- a distinção entre misturas e compos-
to de massa e, para outros, a uma partilhava com a comunidade dos tos operacionalmente.
diminuição, o que não era adequa- flogistas. Sua proposta revolucionária O desenvolvimento da Química

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tre mistura e composto de modo mais Thomas Kuhn e a sua mudança de
eficaz do que aquele sugerido pela rumo
lei da Proust, tendo implicações mais
amplas. O livro de Kuhn “A estrutura das
A visão de mundo introduzida por revoluções científicas” gerou muita
Dalton pressupunha uma maneira polêmica nos meios acadêmicos.
diferente de se compreender as Mesmo sendo reconhecido como um
reações químicas; os novos cálculos dos mais influentes livros no campo
estequiométricos realizados pas- da Filosofia da Ciência do século XX,
saram a ser orientados pelo novo muitas críticas foram apresentadas
paradigma. Os pesos atômicos deter- por filósofos e historiadores ao seu
minados por Dalton conferiram à conteúdo e ao modelo geral de mu-
Química o status de ciência exata, rati- dança científica apresentado. Em
ficando o seu caráter quantitativo. A vários momentos Kuhn tentou se de-
consolidação desse paradigma foi fender das críticas reelaborando algu-
John Dalton (1766-1844). gradativa, envolvendo a comunidade mas das suas idéias inicialmente
dos químicos durante o século XIX. divulgadas na forma de ensaios filo-
Experimental levou à formulação de Nesse século, vários encontros cientí- sóficos.
leis que introduziram novas explica- ficos e os primeiros congressos inter- No ano de 2000 aconteceu o lan-
ções quantitativas para as combina- nacionais discutiram, entre outros çamento do livro intitulado “The road
ções químicas, a exemplo da lei dos assuntos, a questão do atomismo since structure”, editado por James
equivalentes químicos e da lei das (Nye, 1976). Connant e John Haugeland, contendo
proporções definidas. Muitos cientistas da primeira meta- vários ensaios filosóficos publicados
Um dos indícios de que o paradig- de do século XIX não partilhavam da no período de 1970 a 1993 e trazendo
ma das afinidades estava em crise foi crença na realidade dos átomos, uma entrevista autobiográfica do
a importante controvérsia entre Proust ainda que utilizassem teorias e um próprio Kuhn. Nesses ensaios, algu-
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e Berthollet. O primeiro sustentava sistema conceitual que se apoiava no mas de suas idéias foram retomadas
que todas as reações químicas ocor- conceito de átomo e na própria hipó- tendo como objetivo apresentar “as
riam segundo proporções fixas, en- tese atômica de Dalton. Para muitos suas últimas tentativas de repensar e
quanto o segundo negava esse fato, cientistas do século XIX, esta era ape- estender as suas próprias hipóteses
admitindo combinações em propor- nas uma hipótese útil, porém sua revolucionárias” (Kuhn, 2000, p. 1).
ções que podiam variar de acordo demonstração não era ainda possível Os ensaios apresentados em seu
com as quantidades das substâncias (Chagas, 2003). último livro priorizaram quatro ques-
reagentes (Brock, 1992). No centro do A análise do trabalho de Dalton tões fundamentais da filosofia kuhnia-
debate encontrava-se a compreen- feita por Kuhn teve como objetivo res- na: inicialmente reafirmam e defen-
são dos conceitos de mistura e de gatar o seu caráter revolucionário. A dem a visão de ciência como uma
substância composta: “onde Berthol- aplicação à Química de conceitos investigação cognitiva e empírica da
let via um composto que podia variar tradicionalmente usa- natureza, que exibe
segundo proporções, Proust via ape- dos na Física e nos Mesmo “A estrutura das um único tipo de
nas uma mistura física”. (Kuhn, 1996, estudos de Meteo- revoluções científicas” progresso que não
p. 168). rologia introduziu pro- sendo reconhecido como pode ser explicado
Dalton, que não tinha formação fundas mudanças na um dos mais influentes livros como “uma aproxi-
em Química e cujo interesse inicial era interpretação dos fe- no campo da Filosofia da mação cada vez
no estudo da atmosfera e do compor- nômenos químicos. Ciência do século XX, muitas maior da realidade”
tamento dos gases, conseguiu olhar Os conceitos críticas foram apresentadas (Kuhn, 2000, p. 2).
de modo diferente para os proble- científicos adquirem por filósofos e historiadores Um segundo te-
mas. Ele apresentou explicações seus significados à ao seu conteúdo e ao ma abordado foi a
inovadoras, fundamentadas em um luz do contexto em modelo geral de mudança idéia de que a ciên-
novo paradigma distinto daquele utili- que são formulados científica apresentado cia é essencialmen-
zado pelos químicos daquele perío- ou reelaborados. O te um empreendi-
do. Concebeu a mistura de gases, conceito de “elemento químico”, mento social e, como tal, capaz de
bem como a absorção de um gás introduzido por Boyle no século assumir riscos conceituais que não
pela água, como um processo físico, XVII, adquiriu sua forma e função poderiam ser assumidos por um úni-
em que as afinidades não eram rele- moderna somente com os trabalhos co indivíduo, possibilitando a sua
vantes. Suas idéias enfrentaram difi- de Lavoisier e Dalton, fundamen- viabilidade a longo prazo.
culdades para se impor no meio aca- tado numa nova rede conceitual Em terceiro lugar Kuhn retomou o
dêmico; no entanto, sua teoria permi- que conferiu legitimidade à nova seu ponto de vista de progresso cien-
tia a compreensão da diferença en- conceituação proposta. tífico e a quarta questão abordada foi

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a idéia de incomensurabilidade. Esse 224, 1995.
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blemas, possibilitando uma nova con- Proporções Definidas), o paradigma explicou muitos fatos do seu domínio,
cepção de mundo. Segundo Abran- daltoniano explicou a ampla gene- como propôs inúmeros problemas e
tes (1998), a imagem de natureza em ralidade dos resultados obtidos e novos programas de pesquisa, justi-
um dado contexto histórico encontra- sugeriu novas experiências, como o ficando a sua amplitude revolucio-
se relacionada à imagem de Ciência, trabalho posteriormente desenvolvido nária.
que inclui os pressu- por Gay-Lussac so- Consideramos que a articulação
postos epistemo- O conhecimento das idéias bre a combinação de entre a Filosofia, a História e o Ensino
lógicos e metodoló- de Thomas Kuhn e de alguns gases. de Ciências é um dos caminhos para
gicos da atividade aspectos da Filosofia da O principal mérito se alcançar uma alfabetização cientí-
científica. Ciência do século XX de Dalton foi retomar fica necessária ao exercício da cida-
Em relação ao constituem uma importante conceitos antigos e dania (Chassot, 2000). Esses conhe-
atomismo daltonia- referência para a aquisição submetê-los a reela- cimentos são importantes tanto para
no, percebe-se que a de uma cultura científica que boração à luz de o professor como para o aluno em
formulação da hipó- se faz cada vez mais uma nova racionali- qualquer nível de ensino, contribuindo
tese atômica feita necessária ao professor e ao dade; novas ques- para uma visão crítica da Ciência e
por Dalton legitimou aluno da área de Ciências tões foram formula- dos cientistas e possibilitando uma
tanto uma nova ma- das e novas conclu- educação em Ciência de qualidade.
neira de praticar a Química quanto as sões apresentadas. Dentro dos
leis de combinações químicas paradigmas lavoisieriano e dalto- Maria da Conceição Marinho Oki (marinhoc@ufba.
br), engenheira química, mestre em Química Inor-
obtidas empiricamente. Ao assimilar niano, novas redes conceituais se gânica, é docente do Departamento de Química Ge-
o trabalho de Richter (Lei dos Equiva- estabeleceram. A Teoria Atômica que ral e Inorgânica do Instituto de Química da UFBA.

Abstract: Paradigms, Crisis and Revolutions: The History of Chemistry in the Kuhnnian Perspective - This paper discusses the main concepts introduced by the important philosopher Thomas Kuhn.
This article introduces two episodes of the History of Chemistry analysed by Kuhn: “the chemical revolution” of Lavoisier and “the new system of chemical philosophy” of Dalton.
Keywords: Philosophy of science, science teaching, history of chemistry

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A História da Química na perspectiva kuhniana N° 20, NOVEMBRO 2004

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