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Co 11yri~ht © 20:1•. PauloC.Al>r;111tcs


Todo.<'" ,lir~itu~ 1ks1a cdiçJ" n:,,c1vados it Editor~ da Univer,idad~ <lo falado dfl Rio ele J.111cir.i. i: p101hida
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/:'ditm· Fwc11/i1·a Glauc10 Marafon


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Aui\1C11te d.: l'uHlll( iiu Mauro Si4ucim


Re1úao Andr..:a Ribeiro
Fcmauda Vcneu
Copa li "loisa fortes
/'n!i•·to e /)1,1gi-.111111ç,i~ E111ilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA 1 ONTr.
UERJ/REOE SlR IUS1N l'i'.Ü ru;

A 161 Abrames, Paulo, 1951-


Imagens de n.ttur<:za, imagens de ciência I Paulo
C. l\hrantes. - 2. e,I. rcv. e ampl. - Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2016.
1b8 p.

ISHN 978-85-7511-31\6-2

1. C iência - filosofi.1. 2. filosofia da narnreza. :1


Ci~ncia --Aspectos sociai\. I. Título.

CDU 5.0I
li::1gcm de ,;ip.1 XCF90197 /'l.:11.:t<1•r•11-ÍJit>.plnrr ISFo;,1 'ThrCr!t>ti.rfAtlm,
t11• 1h1 llttr111iJ11;J <'[ 1/1~ U11iwr,, ':' (Ac/.:s cth'f,,·_rtis Ut1 h~1n,:011in m.1aocosmfr11)
drpiai11z ti,,, I'1<>/rm11i.- t11ul ljdm Br'''" ,,,um<. rub. by joann~; }111111orim.
1i•i!!<.-rJ.m1. /{.~OI (msrau111.v h; Ce!f..triw. ni!d~r.u (r.1596-1665) (11fi,·r);
J'rtrMtt' Co/Jcl·tion; (/tn11an, bit: ·fropyright.
Sumário

Prefácio à segunda edição 7

Apresentação............................................................................................................................ 9

Capítulo 1 - Imagens Je natureLa e de ciência na Antiguidade ............................. 33

Capítulo 2 -A ciência moderna e o método experimental ...................................... 89

Capítulo 3 - Mecanicismo e dinamismo na ciência moderna.............................. 115

Capítulo 4 - Imagens na conslillliç.fo de uma ciência da vida 153

Capítulo 5 - Imagem e as políticas científica e educacional:


o caso da Revolução Francc~a 20.)

Capítulo 6 ·- lmagen.~ na recepção da teoria de C. Darwin 237

Capítulo 7 - 1. Newton e a físic~1 francesa no século XIX ................:.................... 281

Capítulo 8 - J- C. Maxwell e a teoria eletromagnética da luz .............-................ 313

Capítulo 9- Imagens na recepção das teorias dcJ. C. Maxwell 345

Capítulo l O Cicncia e imagem de ciência em H. Hertz ..................................... 375

C0n~iclerac;ões mcto<lok'1gkas finais 399

Referência~ 423
Capí111ln J
Mecanicismo e dinami~mo n:1 ciC•ncÍ:1 moderna

No capítulo anterior, apn.:sc11t;11nos ,, 1ci;c, l1.1s1.1111 c dif 111Hl1d.1, <lL que .1


ciência moderna, especialmente a física, pn:ssupí1s 11111,1 i111;1gc m 111cca11ici,1 :111l
natureza, em muitos aspectos análoga à que fora ddcndida, na Antiguidade,
pelos atomistas ..Essa é uma reconstrução, na vctdadc, basc.utt<.: simplif"ic:ido·
ra. Neste capítulo, tentaremos mostrar que durante e após a Revolução Cie n-
tífica convivenm duas imagens de natureza cm muitos aspectos antagônicas :
o mecanicismo e o dinamismo. Cientista~ como Newton (1643 1727), em-
bora indiscurivelmentc modernos, não podem ser considerados mecanicistas
no sentido estrito, mas devem, ao contrário, ser classificados como dinamis-
cas. O dinamismo é "a visão de que todos os fenômenos da natureza, inclu -
sive a matéria, são manifestações da força" (Capek, 1967, p. 444). Veremos.
que uma crítica ao mccan icismo, de caráter dinamista - que encontramos
formulada em vários cientistas do século XV ll, sendo Newton o caso mais
ilustre-, é que a matéria, por ser essencialmente passiva, não pode explicar
uma variedade de fenômenos que constituem manifestações inequívocas de
atividade na natureza.
O Renascimento foi palco de grande dis~eminação de concepções
animistas e panteístas de nacureza. Nas palavras de Lenoble: "Ao retomar
contato com o pensamenro amigo, o Renascimento divinizou novamente a
natureza: para a ciência, ela é a mágica autônoma, sem qualquer dependênc.. ia
" de Deus, possuindo os ~egrcdos de sua ordem, de sua vi<la, de sua alma! ... )"
i1 (1969, p. 300).

! .
..~·
J J6 lmJt,cn >d~ 11.Lrurc1J, iuug(11~ de d(nci.1

O neoplatonismo, que volta a ter u m cspc1.1rnlar i11ll1ll1•1 11i:1 l\c11a


cimcnto, fo i, sem d úvida, u m d os principais rcspons:ívci~ I""' c•;lJ;1 i111,1g1:11 1
de 11atu rc1,a. Mas esse naturalismo animista, essa Vl'td.11kir:1 11:lir;i.111 d 1 11.1
turcza q ue passa a !>Cr cult ivada deve, provavelmen te, 111 :1is .111 1•l:ll' 111 11 11 111
csroico do q ue tem sido reconhecido.
Os ncopla côn icos herdam d os estoicos noçücs u>1110 a de: 1·az:111 ,\1:-
rn i na l (fogos spermatilws), mas n ão a dmitiram nada n:al111l~1111• a11:í logo
ao pneuma csroico (tampouco ao é ter aristotélico). Uma dile 1c11ç1 li:hi1~a
entre as duas d outrinas é a concep ção neoplatônica de um 1k11o; 11 :111i;1:c11
d cnrc, o Uno, a partir do qual o m undo é gerado por sucessivas 1•m1111t1
ções. Os estoicos não admitiram a ideia d e criação, a lém de çrn 1celic1c111
um Deus imanente ao mundo, substan cializado no p11e11mt1. A al111a do
mundo u.·op •.11\1111.:.0. crnbo1.1 exerça algu1uas da~ fun<,Õcs at1v.1d11r.1s do
pneuma estoico, não se identifica com o U n o, que se manrém acima de
suas emanações, em uma hierarquia de hipóstases até a matéria-· q11c o<.:u-
p;1 o t'.ilcimo grau cm escala descen dente. Contudo, a influênc:ia estoica é

evidente, e. g., no mo<lo como é concebido, pelos neoplacônic;os, o dcscn-


volvi mcnro cósmico:

!\~coisas, fe itas de matéria, devem o ser que são a es[e aco divi no, que lhes
confere uma t'Xistt: ncia estável. As que fora m fo rmadas ao rcmpo da cria-
ção continham germes dest inad os a desenvolverem-se em urna sucessão
ll'm pora l: as '1 .tlóes semi nais'; µor isso se pode di zer que o u nive rso intei-
ro, com rodo seu futuro, fo i ve rdadeirame nte criado de uma VC'l (sinwl);
i~to implica, entre outras coisas, que cudo o que nos parece atividade
ca11~a l das criauJI.1s, não o é: quando nos parecem atu:lr [... ] o único que
se 1U é um <le~envolvimcnto das razões seminais soh a opera<,.ão divina
(JoliVl'I, l~l85, p. 23).

Ouno clcmrnto que o neoplatonismo deve aos estoicos é a c1ença cm


uma unidade c6smica, envolvendo o macrocosmo e o microcosmo, que fun-
damenta a ideia de un..t simpatia universal. A alm a do mundo do~ neopla-
tônicos é a promotora dessa simpatia - também aqui exercendo uma das
fonç0c~ do pneuma estoico (ver Jamrner, 1957, pp. 42-7).
f\1c<-.mici\mn e din.uni~rnu nJ ciência modl'rOil 117

l11tcora· Ni.tt111·<1·
o

Represeucaçào do universo prolorn3 iço po1 Robe1c H1dd, elJ\ su.1 oLra Hútória tio ma·
cmcosnw e do 111icrow.<mo (1617). ~ludd (l 'i7'1 1637) cxcm.>11 e• medicina e foi um rcpre
StllíJW~. na Henascenç:1, d.is 11.ulições l'SOtérica' a\Socia1l.1, ;, c.1h.J a, ao hermetismo, :1
al11u1111ia, à .tstrologiJ e ~ magi.i bmc:.111do .111alo!\ias ou corn.:.,pondências ocultas.entre o
microco;mo e o macrocosmo. H udd, 11uc vinculou se à fro1terni11Jde Rosacruz., foi critica·
do por .\kr.cnnc, entre muros, por seu animismo, cm claro çontraste com as tendências
r.Kio:ulis1.1s associ.1d.1\ ~s cicnú1s que emcrgir"n d.1 R~voluç:to Ciemífica. O desenho
represema a N.uu1n.i como uma mu lher, que rem a máo direi1.1 (Omandada diretamen·
te por Deus por meio d.: uma com:nct', e a m:ío õt(UCrdJ, por sua vez, comandando
um mac.ico. que simuoliz..1 a :me humJn.1, con~id1·r:1da um.1 mera imitaç'io da Natureza.
O cosmo é di,·idiJo hasicaMcmc cm três regiões, a celeste (ocupada pdos anjos). a dos
pl.rncw. (incluindo o Sol) e o 1m111Jo suhlun.H. Efü· último é dividido no' lugues 11aturai>
tios quatro cl~mencos, mm o fogo logo ahaixo tb l.u.1. seguido pelo ar, pcl.i água e final·
mente p~h cerra, loçafoa<la no centro. Fssa 1cprcscnta~ãri do co,mo ainda é, pon..rnto, ana-
cronicamcmc gco..:êmrica. A, diver.>a'> subdívi,ões e lii;ur,l!> 110 mundo suLlunar referem -se
a amlogi<•<> e çorrespondên..:ia~ ente( divcrs;1~ criatura;, cujo conhecimen~o aumentaria o
poder d intervenção do homem, pda magia, n.i N.1ture1.1
G1arnra. C:orcesia Tl1>101y ofSciencc CoJk,tions, Uniw1si1y oíüklahoma Libra.riLs.
1] 8 )11lj!~t·n\ de natu rez~1 . irn.lgens de dénd.l

A influência dircca do estoicismo sobre o pensamento cr is1:10 p;11ecc


rcr sido mínima (ver Cantor e 1 Iodge, 1981, pp. 7-9). Essa inff ué11c.i;1 se f~..,.
sentir, porém, por intermédio de outras doutrinas, como o neoplaronisn10 t•
sincretismos de vários tipos. Encontramos traços do estoicismo, por c:xcni-
plo, na fase maniqueísta (que antecedeu o contato com o neoplmo111\lllo) de
Santo Agost inho (354-430), quando este "concebia Deus como lllll,t suli~­
cância infinita e imaginava-o a penetrar o universo inteiro a\sim como a
~gua penetra uma esponja". Após repud ia r o "materia lismo" dos t·sroicos,
Agostinho tenta "res tringir o mais possível a atividade criatura) no ncopla
ton ismo, cm benefício da atividade divina", que se faz presente por mt:io das
razões seminais. Desse modo, "a mesma lei que rege a ordem espirirnal go
vema também a ordem material[ ...]" (Gilson e Boehner, 1985, pp. 145, 178).
Santo Ago~tinho e Boécio (470-525) foram os principais canais de Jifu:;ao
do neoplatonismo ao longo do período medieval. No século XII , sobretudo a
partir dos comencáiios de Boécio e do contato com os escritos neoplatônicos,
ideias estoicas exerceram influência sobre a imagem de natureza de algumas
cscqlas, como a de Chartres:

1'.rn antítese com a interpretação estn:itnmente teológica e simbólica, surge


a exigência de uma imagem aurônorna ela natureza, penetrad.l por 'forças',
'cau~as· e 'princípios' ativos. Teodorico de Chartres, Guilherme ele Conches e
l k rmano de Caríncia res~uscicaram a anima mundi e a simpatia universal do
esroicismo antigo, chegando a formu lar um autêntico monismo naturalista: a
natureza rornava-sc, de novo, um ,·iveiro de forças lig.1das entre si por secretas
correspondências (Casin i, 1987, p. 69).

Com a redescoberta da física aristotélica por meio de traduções do ára-


be, pa~sa a prev.Jecer, a partir do século Xlll, a imagem peripacécica de na-
tureza, em um novo sincretismo com a doutnna cristã. McGuirc, ao situar
Newton "na corrente p rincipal do pensamento cristão", sugere que ele "reria
seguido Santo Agostinho'', ao defender a imanência de Deus na criação e
uma "intcrpenctraç;lO entre as ordens natu ral e espiritual cm rodos os frnô-
menos cio mundo" (1968, p p. 199, 207).
1\.kc~utki,11w t' dinamismo na ~iência JnoUerna ])9

Um dos elos que permitem retraçar a influência do estoicismo é a lite-


racura hermética, que, traduzida por Marsilio Piei no em meados do século
XVI, teve grande impacto sobre a reflexão filosóíica e científica.' Nesses es-
cricos - que dacam dos séculos II e III da era cristã - , percebe-se a presença
de elementos da filosofia natural estoica, mesclados a ideias de origem platô-
nica, j udaica e cristã. Um exemplo disso é a concepção de uma matéria iner-
te, que é animada pela palavra espiritual (pneumaúkós lógos). Alguns desses
textos veiculam um panteísmo muito próximo do defendido pelos estoicos.
Em outros, a influência ncoplatônica é mais nítida, evidenciando-se em 11ina
concepção dualista da relação Deus-natureza.1
Os escritos herméticos difundiram ideias que esrão na base d.1 111agi:1
natural, da astrologia e da alquimia renascenriscas: .l c11.·11ç.1 1111111 .111i111is11111
generalizado; numa simpatia e unidade cósm11..1s, 1111111 p.1 1.dcli,11111 1111(111
cosmo-macrocosmo. O investigador da natureza, o rm<diro t:cc. comidc1;1
vam-se, em úlcima instância, magos, que por nll'io d1.· 11111:1 i 111n vc11~ '10 :11IC'
quada poderiam liberar os poderes e a at ivid ad<: i m·1 c1H1.·s aos oli11.·10.\ 11.it ll r;1 i~
e encontrar a chave das correspondências ocultas t(lll' ligam os sern 1.dt:..;ccs
aos terrestres. Um reprcsenrante típico dessa c.onccpção fi1i Paraccl.o, para
quem as forças da natureza s5o "espíritos" - como as e1is211u.1s da alquimia,
que podem ser extraídas dos objetos com fins medicinais. E.,s1.·s cspíricos se-
riam emanações de Deus, que vivificam e informam a natutT!a, a exemplo
das razões seminais dos neoplarônicos.

Força e atividade da natureza em Newton

Na avaliação da historiografia tradicional, a filosofia natural do Re-


nascimento constituiu um retrocesso com respciro aos padrões escolásticos
de racionalidade, em nada contribuindo para a física do sécu lo XVII, cujo

1
Ye1 (Y:ues, 1961). 1-Jeçse (1970, p. 78) aponta uma inAuênda cscoica sobre Giordano Bruno.
' Yaces acei1 um.1 cl.issificação do) escritos hermc:'cicos, segundo veiculem uml gnose pe." imiqa
ou ocimista. A pri111cira é dualista e de cepa ncoplacôn ica, considerando o emendo material n~<"n ·
cial menrc nefasto. A g 11ose otimis1.1 é, ao contrário, de inspiração escoica e, porcanco, mo11is1a: "a
maréria escá implt·gnad.l pelo divino, a Terra vive, move·o.c ~om uma vida divina, as esucl.1' s!m
animais vivos <fr:inos, o Sol queinu com um poder di,·ino, 11.10 h:\ qualquer parcc da natu1e1.1 <[UC
não seja boa, j.í que s:iv co<l.ts p.mes de Deus" (Vaies, 1964, p. 22). O Re11;1sci1rn:nco acrcdi1;1va
que esçes escritos fos.\t' lll llll1Íto mais antigos do q ue de futo ~'io, contendo uma sabedoc i.1 v:i lim.1
na med ida da ~nrig11 1dad.: de su:h origens. N ewron também at eeditava c111 ucn.t prism 1npim1ir1.
) 20 l111a1;en• de 11.11111,·1.1, ímogen< de ciênctJ

meca11 icismo radical estaria em ruptura tanto com o aristotd j.,11111 l"'>tol í~t ic:o
qu,111to co n1 o natu ralismo rcnascentista.3 Quando histori 1dorl·s rorno l\.oyn:
rcrn11ht·rc111 a importância, para a Revolução C ientífica, do tl''>gatc do plato-

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h aac New1''"· NvlilJ sob1·t o:ptrimmros tÚ química e alquimia.


M:1 n1hcriro. Newt0n Paper; (',olleniun.
C11nl11id1•c ! lnjyr.:csiry library, MS \Jd. 3973, p. 29.
' Ver 1;;noble ( 1969, p. 279) e Dijksrerhuis (1986).

.
~ ...,.

l
~t.:-c111 1-:i)mo e dirumi~mo n.t ciênci;• mockrna 121

nismo realizado pelo Re11ascimento é para dcscacar, exclusivamente, o p apel


que a maremática passou a desempenhar no estudo da natureza.
Recentemente surgiram csw<los q ue demonstram a parcialidade d e tais
rcconstruçõcs.4 Westfall, por exemplo, revê a significação do Renascimento
nos seguintes termos:

[...) ao longo <lo século XVI 1, modos mccanicisrns de expressão masca raram
a sobrevivê ncia de modos ani mislas dt: pensamenro presentes em fi losofi as da
nacurcza anteriores. Isso fo i especialmente verdadeiro com respeito àquelt:s
fenômenos - sobretudo o~ fonômenos da vida - para os quais os mecanis-
mos relacivamence grosseiros do pcnsamc:nco do século XVII eram parcicu-
larmente inadequados. As filosofias animi~rns não tinham sido construções
ime; au1c1w · arbitrária\; elas .mh.1111 cxpr<.:ssaJo pc:rcc:pçík;, comu1is de w1 .....,
aparenccs de arividade e5pontânea no mundo físico. Etn sua maior pari._, a
filosofia mecânica do século XVII não tinha uma explicação adequada dc:.sas
fontes aparentes de atividade, e ela in11odu1iu disfarçadamcme seus próprios
princípios ativos na forma <le partículas espe(iais ou fluidos (1971, p. 391).

Como exemplo disso, \Vestfall dácndeu em diversas oportunidades


(197 1, 1984) q ue o con ccico de fo rça cm Newton é um desses suced:lneos
dos princípios ativos ren ascentistas, q ue desempenhavam u m papel central,
por exemplo, na alquimia5 •
A evidência histórica cm que Westfa ll se ap oia é a ele que os an os
cm que os Principia foram ela b o rad o~, e os que se segu iram, corre.spon-
dem precisamente ao período de maior envolvimento ele N ewton com seus
exp erimentos alquímicos (que teriam sido iniciados em 1668). Westfall e
Dobbs sugerem q ue N ewton a lmejava uma síntese filosófica m ais ampla

• Oebbus (1986. pp. 133-'Í) reprcscnu bem c's.1 nova leitura d:1 Revolução Científica.
s A preocupação central d:1 alquimia com a transmuraç.ío fund,wa-sc, d esde suas origens, n a
reoria da rnaréria de Ari~16tdcs, que :ulrnitia a pos\ihi li<hdc de transformação dos quatro ele-
mencos cnm: si por mcil• d.:i tnx:a e convtor,'.io dos pare,; d e qualidade, <1uc os definem. No
século XII, o racionali\lnt> ari.<totélico ainda forncci'.I. a c.havc rcóric.i para c~a p rática (ver
Dohbs, 1984, p. 40). A p:u 1ir do si'c.u lo XII! provavdmcnre ~oh iníluênc.ia da alquimia m Ís li-
u do Egiro, da Gréci'.I. e do mundo á1dhc -, inrmdm ~ç uma nova prohlem:írica: os alquimistas
buscam separar a quinfll me11tir1 d:1s 5Uh~t:incus. \Viglicm.111 sugere existirem analogias enue
essa essência específica das suhsrâncias e o~ diversos pnl'llmntrt dos c,wicos, que "vivificam" a
maréria inerte (1962, p. 171).

...
....
) 22 lm.1gc1u <lt' n.tCtHc:t..l, inugen~ de ciêncü

corre fenômenos macroscópicos e microscópicos. A a lquimia ao f111m·cn


evidências das virtudes e poderes das panículas materiais podt·1 ia w1111i
buir para essa síntese cosmológica, ainda mais ampla que a olcn:t id.1 nos
Principia. Rascunhos que Newto n p revira in icialmente incluir tH'~\,I oh1a
parecem documen tar esse seu projeto. Se essa interpretação é cnnt·ta, o t'IH-
p rcgo generalizado que Newton faz de seu conceito de força na cxpl tl.t\:10
de fenômenos d iversos (ópticos, químicos etc.) não configura u 111,1 "vi.~ao
astronômica de natureza" - como sugeriu Merz (1965) -, mas, <10 con11 ;trio,
urna aplicação à física celeste de conceitos forjados no estudo do mi<.rocos-
mo (ver, porém, o capítulo 7 desce livro, especialmence a nota 9). l lcimann,
cm contraste com Mcrz, utiliza a expressão "filosofia química da nalure1,a"
para sintecinr o projeto cosmológico newtoniano (1973a, p. 10). McGuirc,
1111.::.rno discordando de algumas análises de W.:scfall -· ac> dai m.1is enfase
à influência neoplatônica sobre Newton -, concorda essencialmente com
esca interpretação:

Na tradição do pensamento renascentista, rcpresemado na 1nglarerra pelos pbto-


m\ras de Cambridge, uma das preocupaçóe~ centrais de Newton foi a existêm:.ia
do espiritual na narnrcza. Além da existê11ci,1 da gravinç;io, Ncwm11 via na brga
g.m1a dc fonômenos químicos e bioq u(m icos evidênci.1 do espiritua l [...] fa\es
movimentos 'vitais' inclinavam sua mcme para a possibilidade <lc u111 sistema
base:tdo cm leis caregoricamcnce d iferences dos 11.xiomdta <los Principia: uma filo-
sofia natura l do domínio oculto, baseada nas microforças. Emhom Newton, por
a lgum tempo, tenha considerado essas forças elétricas e magnéticas, ou geradas
p< la at i11ação de panículas de luz, a atividade qu ím ica perma neccu a melhor
evidênci,1 para determinar suas caracterísricas (1968, pp. 207-8).

\"V'cscfall cita um trecho de um dos primeiros manuscritos a lquímicos <le


Newcon, A vegetação dm metais, como documento básico cm apoio à sua tese:

H;~, porcamo, ao lado das mudanças perceptíveis forjadas nas texturas da ma-
téria bruta, uma maneira mais sutil, sccreca e nobre de operação em qualquer
wgecaçfo, que torna seus produtos discintos d.: rodos os outms. e o pako Je
suas operações não é o volume tocai de macéiia, ma~ sim um:i porc;ão inima-
ginaYdmente pequena e muito mais sutil de mar~ria d1fu11did,1 arravó d,1

'
"'-fr<auiti\m{l c.-diu.imi~mo n:1 ci(nc.h mo<lenia ] 23

massa que, se dela fos~c scp.uada, rcstari1 somente uma rerra morta e inariva
(Newton apud Wcsrfall, l 98tí, p. 326).

Westfall observa q ue a aplic<1ção do termo vegetation não se restringe ao


domínio vegetal, m as abrange processos em toda a natureza que não podem
ser atribuídos à mera atuação da matéria inerte. É difíci l não ceder à tentação
de comparar essa matéria sutil, esse princípio vegetativo, com o pneuma es-
toico, sobretudo quando Newcon se refere a essa matéria ou princípio como
"os únicos agentes da natureza, seu fogo, sua alma, sua vida" (apud Wcscfoll,
1984, p. 327). Newton cambém utilin, no mesmo manuscrito, a exprcss:to
"virtudes seminais", <le clara i nspiração ncoplatônica. 6
Na interpretação de Dobbs, Newton pretendia "integrar as i<ki:1s hei
métii..as e alquímicas com a..c, filosofias me1.:111il.IS de su.1 l-poca" ( 198•Í, p i.i
Newton viria a abandonar seus experimentos alq11fmirns 1 a p:111 i1 ele 1(,91 r
com eles, seu ambicioso programa inicial, restando ele sem csl~11t,os 11111 u111
junto de questões (as queries da Optim), que Sl'Us sucessores 1c111.11:w lict:if1,11
ao longo do século XVlll.
Gostaríamos de aprofundar essas sugeslm's a respeito da lonvivtnri:i
de concepções mecanicistas e c.linamiscas na física do século XVII l:11rndo
uma comparação entre as explicações que Descartes, de um lado, c Newton,
de o ut ro, propuseram para a g ravitação. Isso conduzirá a uma investigação
detida das funções que desempenham os meios e Lércos nas con<.cpções de~ses
dois representances da modernidade ciendfJca. 8

6 Para uma reconstrução mais convencional e.las orige ns do conceito de força em Newton, con ·
testa ndo inclusive uma eventua l iníl uênci,1 do neoplatonismo, ver J.1mmer (1957, cap. 7-8).
face autor também discute a presumida dívida de Newton para com J. Bochme (1957, pp.
134, 142-5; cf. Dobbs, 1984, pp. 9 10). Pela importância histórica de Ncwron, nâo far.:mos
economia de citações de vários de seus trabalhos e de sua correspondência, algum.;s delas n'io
disponíveis em português.
1 Dobbs (1984) sugere que as hip<ítcses iniciais de Newton não teriam rcsiscido ao cri\'O cxpcri·

mental.
• Barker e Goldstein (1984) idcncificam d11.1s vias pelas quais pensadores do século XVI(
puderam ter contato com a cos111ologi.1 est0ica: a tradição m.:dica baseada em Galcno e a
nova edição cios crahalhos de S<!nec.1, por Jusms 1 ipsius (n 1• volume apar·:1.eu cm 1605)
O interesse fundamenca l dos filósofo, scisccmisr:is era pela ética dos estoicos, mas nca,
sendo indissociável da física esroica, propiciou, como vimos no capírulo I, um co1HM0
com a concepção escoica de nacurna. Os autores dirigem sua atenção par.1 Dnonn,
tentando evidenciar traços de conccicos estoicos unco na cosmologia•carrcsi.rn.1 qu:111to
em sua med icina e cm sua óptica. O plurnm cartc~iJ 110 seria, do ponro de vista cios amo

,•
12·1 l1 111r/º' 1h· 11 .11w c1.1, i1 11.tgens de ciência

O mt'<'1111iri.1mo cartcsíano e a gravitação

O id eal ele fu ndamentar o co nhecimento da naturl·za sobrt: ba\l'S tão


sólid,ts quanto as do conhecimento matemático e de aplicar àquele o mesmo
método dcduLivo que se emprega neste ú himo talvez tenha sido a motivação
p1imordial do programa cartesiano.
Esse ideal levou Descartes a uma tentativa de reduzir a física à geome-
tria, tirando da matéria rodas as qualidades sensíveis, exceto a extensão. Esta
era vista por Descartes corno a única propriedade dos corpos da qua l pode-
mos ter uma ideia clara e distinta. Essa identificação entre matéria e extensão
conduziu-o a negar a possibilidade do vazio: onde há extensão, há substância.

rcs, o resulcado de u ma curiosa h ibr idação entre a co ntinuidad e qu e c a rac Le1iza o pue11111a
escoico e o acornismo da cosmologia epic11ris ca. De inspiração escoica seria também o
emp rego do co nceiLO de espíritos animais na medicina carcesiana, corno ainda a tcn caciva
d e subordina r a óptica à mecânica (os aucores referem-se à medfora do bas tão para ex-
plicar a rápida propagação da luz e a percepção visual). l\ presença de elementos estoicos
nas teorias de Descartes poderia se r retraçada a Chassinus e Basso, seus p redecessores,
que adota ram abe rtamente di'lersas ideias dos es coicos, co mo, crn C hass inus, a de uma
a lma do mundo (que o s aucores associam d irctameme ao p npumrt estoico, se m suge rirem
qualquer intermcd ias·ão n i:op latônica) . A lém disso, o estoicismo reria sugerido a diversos
filósofos e cie m iscas do s éc ulo XVII u ma teor ia da matér ia a lternativa à de A ris tóteles.
Co m isso, abria-se a perspecciva de fu ndamenta r a ruptu ra com a hierarquia ar istotélica
entre mundos sub e supralunar através d a adoção d e uma teoria ela matéria q ue inviabili-
:rnria cal h ie rarqui a (os estoicos não admitica m a existência do éter como um q u into ele-
mento preenc hendo de modo exclusivo o m u ndo supralunar). Os autores defendem, por
úlcimo, q ue a ide ia de uma legalidade na natureza, q ue consider.un central no movimento
cit-ntífico moderno, teria origem escoica, em oposição à doutr ina epicu rista, q ue; va loriza
o aca'o e não u ma orde m expressa po r le is naturais (seg u udo os aucores, a influência
.1wmi s ta/epic u ri~rn na Revo lução C ie n tífica foi su peresc imadn , em dctrimenro do papel
elo cstoiciw10). E1nbora Ba rke r e Go ldste in te n ham ressalvado o carácer especulativo das
Cl'~Cs deícndidas. n:conhecendo q ue exigiriam maior ev idência fac rnal (eles se basearam
qu.1 se cxc lusivarr1entc em bib liografia secu ndária), as limiraç õcs d o a rtigo parect:111- me
por demais c,·idcntes. Ao rest ringire m -se praticacnence a Descartes, os autores não per-
cebclll que o ncoptHonismo é d e ex crema importâ nc ia pa ra a conexão cstoita . Talvez por
isso não cn íarizcm, f;'m ucnlcum momcnco, a teleo logia dos proc essos natura is na image m
csroica de namrez;1, tam pouco - o que parece ainda ma is grave - a importância da d ico-
wmia at ivoipassivo. Os a ULores pecam por modern izar demasiadamente as concepções
escoicas, incorrendo em erros análogos aos de Sambursky ( 1959; ve r Alnances, 1990),
apesar de o c ri ticirern. Ao não eufadzarcm ca is poncos, eles co nseguc rn perce ber uma
influência esco ica sobre Descartes, mas não sobre Newton, que ;tprox imam dos epicu-
ristas. O carácc1 dinamisca da conce pção estoica de natureza é s i rnplcs 111 ~· nce igno rado,
p rivileg iando -se seus aspectos mecan ic istas, que são inc orrcta 1m ·ncc id c: miíic::idos com o
mecanicismo do século XVII, sob recudo o de cepa ca rtesiana. Ver també m :1 noca 27.

1..
Meca11 i.:isn10 e dinamismo na ciênd.1 modnn.t ·1~5

• 1 • ·'·"·~·'d'··~·~·-·~D'.l:i:*~<J.~ )~'. ri: :.·::::.

.........·········· ...... . . . .1.. . -.... .... .. ". i>ll·e . . ·M····.·

..

O un iverso d e Dt'.scanes é 1ocalmcmc p reenchido por macéria, que forma vórtices em corno
dos corpos celestes. O fenômeno gr.wi t~cional seria u1:1 efeito desse 111ovi111ent<J rotacional.
Rc né l)escarces . Epistolar Elzeuir, Amstcrdã, 1668. Universal l-fütory Arch ive I UIG.
) 26 lmilgcns dc n~turcu, ím.1gcm de ciência

O mundo cartesiano é, portanto, completamente preenchido, daí a l'l't t i11~11


eia da expressão plenum cartesiano.
Um corolário dessa identificação é a rejeição do atomismo: rn11w o l:s-
paço é inGniramente divisível, assim também é a matéria. No co11tcx10 dc.s\:t
identificação metafísica entre matéria e extensão, seria contracli11'>1 io supo1
uma unidade de matéria indivisível: um dtomo.
Descartes, como um dos representantes mais conscq11c1111 ·~ da filo -
sofia mecânica, rejeitou as causas finais aristotélicas, admitindo aprnas
causas eficientes de tipo mecânico. Daí a importância que ac.k1uircm as
leis do choque cm seu sistema: toda ação só pode ser uma ação contígua,
um impulso, uma pressão, resultado, enfim, do contato físico emrc os cor-
pos materiais. Todo animismo foi banido na esfera da física: o modelo de
mundo deixou de ser um organismo para ser uma máqui11a. Dc11tro tkssc
quadro de mundo, Descartes serve-se de um plenum universal invisível para
explicar os mais diversos fenômenos manifestos. Queremos destacar a teo-
ria dos vórciccs proposta por ele para explicar mecanicamente a gravitação.
A gravicação é considerada, nessa teoria, o efeito de uma pressão, de tipo
hidrodin5mica, sobre os corpos macroscópicos.
Descartes foi o primeiro a formular, de modo explícito, o princípio
de inércia. Paradoxalmente, contudo, no mundo cartesiano um corpo não
pode se mover com um movimento retilíneo uniforme, cm virtude da pres-
são da matéria dos vórtices, à qual sempre está submetido. O movimento na-
tural no cosmo cartesiano é o de rotação. O movimento rctilf neo e uniforme
-, logo, o princípio de inércia - é uma idealização.
A teoria dos vórtices teve uma influência duradoura que ainda se frz
sentir em meados <lo século XVIII. Essa teoria explicava de forma satisfa-
tória não somente a gravitação, pelo menos cm seus aspectos qualitativos,
como também o·faco de que todos os planetas do sistema solar movem se
no mesmo sentido, além d e terem suas órbitas aproximadamentl.! no mes-
mo plano. E, naquela época, quando se falava em explicação, espcrava-s!:
que ela se conformasse ao padrão adorado pela filosofia mecânica: expli-
car é ind icar como a matéria em movimento causa os fenômeno s obser-
vados, rejeitando-se tanto as formas substanciais da escolástica quanco os
espíritos e qualidades oculcas do Renascimenco.
Acresc;cutar fo1·~s à ontologia tradicional da filosofia mecânica - o
que foz Newton - constituiu, assim, uma reorientação fundamen tal. T.t·ilinit.

~
l\kc•niri11n<> e dm>mi>mo"' ciência moderna 127

(1646-1716) viu essa manobra como um abandono daquela filosofia e um


recomo às qualidades ocultas da csrnlástica. Crítica esta que tinha, aliás, pro-
cedência, se tomarmos como modelo a cosmologia canesiana.9
Para concluir essa sumária exposição dessa cosmologia, é importante
lembrar que Descartes pressupôs que a quantidade de movimento total do
mundo se conservava. Para fundamentar esse princípio, ofereceu um argu-
mento metafisico: Deus mantém conscame a quantidade de movimento cotai
como consequência de Sua imutabilidade e simplicidade.
Outra consequência da identificação entre matéria e extensão no sis-
tema carcesiano é a relatividade d e todo movimento: mover-se é deslocar-se
da vizinhança de determinados corpos para a vizinhança de ourros corpm .
Não tem sentido falar cm espaço absoluto, pois, como vimos, D escancs 11.10
distingue o espaço da matéria. Fm l.c1bni1, e.s'a co1Kcp1r~10 n l.tC1v1~c.1 de 11111
vimenco é afirmada de forma ainda mais explícita. Vucmos, a seguir, cpu
esse aspecto da cosmologia cartesiana scd o m.1is prohlu11:í1 icei p.tra Ncw11111,
que o rejeitará de forma categórica.

Newton e a gravitação

Newton leu os Príncipes de ln phifosophie ele D<.:sc.u t<.:s 111t1i10 redo, em


sua juventude, e rejeitou aspectos essenciais das teorias do f"il6.sofo francês.
Cricicou, desde seus primeiros escritos, a filosofia mecânica rqncsencada por
Descartes, que para ele possuía implicações atcísticas. Em um manuscrito
inacabado datando de 1670 - "O peso e o equilíbrio dos fluidos"-, ele con-
testa as teses cartesianas da relarividade <lo movimento e da dicotomia subs-
tância extensa/substância pensante. Newton, influenciado por R . Cudworth
e H. More, neoplatônicos de Cambridge, estava convencido de quê a con-
cepção de um espaço absoluto era condição para assegurar a presença de
Deus, como espírito extenso, no mundo. As propriedades dos corpos, pelas
quais semimos sua presença (como a impc.:netrabili<lade), sao consideradas,
em 1670, manifestações do poder divino em cercas regiões do espaço. Logo,
a noção de espaço ahsoluro cm Newcon não objetiva unicamente prover um
referencial (absoluto) . O espaço é um efoico ou atributo de Deus, é por seu
intermédio que se manifesta roda a atividade da natureza.

' YerWcstfall (1971, pp. 387-8) t Dobbs (1984, p. 211).

• 1
128 luu,..,~ 11!i tlt n :wut"1,1. im3J:l"OS de t1êncfa

Vi11c1dado a t·sse pressuposto fundamental, elabora-se na filosofia na-


tul':il d1: Ncw1011 a umcepção de uma matéria passiva, por si scí incapaz de
n::ipn111 ll:1 pd.1 ordem e pela atividade da nacureza. 10 Impõe-se a necessidade
de 11111 1>t11s \ xtv11so e imanente à natureza (sem confundir-se, no encanto,
(·0111 cb), t111t· i111ervC:m c.le maneira constante. Para Newton, a ordem do
1111111110 11,10 podt·1ia ter rcsu ltado Je processos puramente mecân icos, nem
·'': pH~S\ 1 v.1do tom has\' neles. Veremos que fenômenos como a gravitação

s,io :111 il11ddm '' 11111 Deus volunrarisca, que foi alvo das críticas de Leibniz
t'111 :.11a rn11cspo11clt·nc i.1 com Clarkc (discípulo e porca-voz de Newton). Se-

1i:1 1111! e1 m, u1t.10, .1proximar Newton seja de Descartes, seja de atomistas


como Cassendi, embora lenha sido influenciado por ambos. Isso se torna
evidente M' analisarmos as funções que: desempenha o éter na filosofia na-
LUral ncww11iana. 11

'º McGuire cica o ~eguinte cre.::ho ele um ra~unho de Newton, provavelmente destinado a uma
d.is querii:s d.1 Opti,·,i: "Nós nfo podemos dizer <1ue coda a natureza não é viva" (1968, p. 204).
S.:gundo <:!>SC c'rudioso de Newton, css,1 seria mai\ uma evidência do débito desce para rnm O\ 11c-
opla1ô11icos de C1mhmlgc, parcicularmente Cudworch. McGuire percebe, na distinção p•lS'•ivo/
acivo, urna influência do\ estoicos, apesar de ela já se encontrar cemari1.ada cm Aristótdcs: ··o uso
que foi. Cudworth <los termos To paschón e TO poiotÍ!l é interessante. Em Arisrótcles, clc.:s fu11cio-
11;1m rcal11K1He como qualificativos adverbiais na categoria de substância. C udworth, enrretanto,
ll\a-os ( 01110 rermo~ que descrevem d11as categorias da realidade. Isso pode indica r urna influência
dos csrnicos, "j:i que usaram esses termos paca d istinguir dois tipos de enckh1<l1.:s". McGuirc revela,
al.'.'111 di,so, que na biblioteca de Newton encontrava-se um livro de Stillingfleer (edirndo cm fin~is
do ~éntlo XV I[), em que é discurido o significado desses termos na doutrina dos cswkos. essa foi
.1, vid<·11ci.1111ais di1<1J que pudemos encon1rar, na bibliografia consulcada, a respçico do conhl:ci-
111rn10 do l 'lullis1110 por Newton (McGuire, 1968, nora 148, p. 204). Krubin carul>ém Í.11. 11ma
0111.ili'c 11 11t1<'".1111c da ideia - presente cm Newton - de que o cosmo se desenvolve cm ciclo~; ideia
<111c, rn1110vi111m 110 capítulo l, é de origem estoica (Krubin, 1967, p. 346).
11 l)11:111to a s.1htr ~e N<·wton teve acesso a documemos que fo.esscm alusão aos csmitos, só pode-
mos fm:1 w11jcum.I\. Ao que sabemos, não h:í referências explícitas de Newcon ao~ c~toicos.
Ele foi um cm1di<''º de dcx;umentos antigos, em função de sua crença cm uma prisM s.1pimtia,
ou seja, na ni\1<·11cía de um conhecimento - a respeiro da m.curea e de caráter rdigimo - que
teria .sido revd.1tlo aos amigos e •JUC pf)deria ser resgatado por um método imuprcrati\"(l .1Je-
quado. E..,~a uença, cipicamcnte rcnascencisca, foi provavdmcmc cransrnicid;1 a Nc:wwn pcl.1
lcitttra d<· More. Com b.1'e nisso, é pracicunence seguro que Ncwmn teve. pelo menos, atcsso
am t:\Critos hcrméiiws e a manuscritos alquímicos antigos (Dobbs, 1981, pp. 20, 10.!- 111:
l kbhu\, l 98(í, pp. lOl 3; McGuir.:, 1967, p. 94). Em livro recente, Dobb, ( [99'.i) .1li11111 d~
1~1 cacegórita que Newton possuía em sua biblioteca vários 11\·ros que o ccri.11n i11idJdu t\.l
filosofia estoica. Uefoncle que o cscoicisrno reforçou a convicção de Newcon 11.1 cxi>té11ci.t de
princípios ativos na nature-n, lastreada cm suas leicuras de ccxcos alquímicos.

":r";...
~~
Mec>ni< ismo e dinamismo na ciência moderna 1 29

O éter em Newton

l

PHILOSOPHIJE
N A T U R A. L I -S

PRINCIPIA
MATHEMATICA.

Autore JS. NEWTON, 1i·in. Coll. C11n1ab. Soe. Mathcíeos


Profelfore T..,11caji11110, & Societatis Reg;ilis Sodali.

IMPRIMA TllR·
S. P E P Y S, Reg. Soe. P R 1E S E S.
'J11lii )· J686.

LONDINI,
Juífu Socit111Ji.r R.eJ!.itC ac Typis Jofaplii Stre11ter. Profia.t apud
plum; Bibliopalas. A11110 MOCLXXXVJI.

Isaic Nevvton. Página de rosto de Philosophiae natum/i; principia m11thunlltica.


·· ~" 1687. C(!m.:si~ .1.ÍJstoryofScience Collcccions, U11iversity ofükhhorna Lihrarics.

":";.. _
130 lnugtm de m turcn. im;ig<:ns Jc ~iéncia

Tratar das especulações de Newton sobre o éter é uma tarefa llttc c11
frenta várias dificuldades. A primeira é a reserva do próprio Ncww11 L 111 1<>1
nar públicas suas ideias sobre o assunto. Embora desde a juventudl' L'ssL: 1c111.1
esteja entre suas preocupações, como atestam manuscritos e sua LO 11 t·spon
dência, a obra publicada só deixa emergir tais especulações a partir dl' 17 l ~.
Isso, por si, já constitui wn problema: por que Newron ocultou rais ideias
por canto tempo? E por que decide torná-las públicas a partir dcsrn d.11.1?
Outra dificuldade é que o éter de Newton varia cm sua cst1utu1a e
função ao longo do tempo. É preciso acompanhar tais mudanças, evicando -sc
uma anál:sc simplista que elimine tais diferenças.
Além disso, esse tema não pode ser desvinculado das concepçoes teo-
lógicas de N ewton sobre a interação espírito-matéria e sobre o papel de Deus
na nacure-1.a. Tal complexo de questões também incide sobrl suas 111cur~õcs
em teoria da matéria.
Por último, dar importância a tais especulações pode esbarrar nas de-
clarações, muito conhecidas, do próprio Newton de que, cm filosofr'l ex-
perimenral, não há lugar para hipóteses. Diante de cal lema metodológico
cxplícim, podemos ainda defender que suas especulações sobre o éter tenham
rido qualquer influência sobre sua obra científica e a dos seus sucessores no
século XVlll?
Começaremos analisando as fontes publicadas durante a vida de
Newton t)UC fazem referência ao éter ou a meios materiais sueis e suas pro-
priedades. Em seguida, analisaremos as fontes que só foram publicadas pos-
rnmamente. Desse modo, teremos uma ideia melhor de como tais especula-
ções foram recebidas pelos contemporâneos de Newton. A tabela 1 apresenta
uma cronologia dos principais escritos nos quais ele trata do éter, incluindo
os textos não publicados durante sua vida.

Tabela 1: Escrito5 sobre o érer e temas afins

Redação Publicação
Título
~ 1670 1962
O peso e o equilíbrio cios fluidos
1676 1741
Carta .i Oldenhmg
1678-1679 1744
Carta a l\o>lc

.ll
t.l r.-.a 11icismu e Jinami~mo nJ ciência moderna 131

Cartas a Bencley IG?l- 1693 1756

Optim (edição latina): questões 25-31 1706 1706

Principia - "Escólio geral" (21 edição) 1713 17 13

Optica (2' edição inglesa): questões 17-24 1717 1717

Principia - "Escólio geral" (3' edição) 1726 1726

Na lª edição dos Principia, Newton rejeita explicitamente a explirn-


ção cartesiana da gravidade, que pressupunha, como vimos, a teoria dos
vórtices. O livro II, que Newcon só decidiu incluir na última hora, disti11
gue-se dos outros dois livros por sua temática · "mm·imenro dm cmpos c m
meios resistentes"-, que, à pruneira vista, nada tem a vc1 com o~ pml1ll:111.1s
centrais desta obra, que são a gravitação (livro lfl) e os f1111da11w11111 \ cl ,1
mecânica (livro I). VáriM histori<tdores defendem que a i11cl11s!io do livro
II teve por objetivo descarrar de rnanrira categé11 ica a 1cori;1 de l k sC•ll le~.
que, à época, era amplamente aceita, sobretudo no cont i 11c111 c t : 111 npc11.
Newton, sem citar Descartes, mostra nesle livro que. os vórtiu.:~ c.:1rtc· ; . 11w~.
se existissem, imprimiriam aos plancrn:s um movimento i11co111pat ívd LOm
as leis de Kepler. Esse é o argu menlo central, mas Ncwwn dt·mon~tra tam-
bém que, em virtude <la ação ela força centrífuga, os vórlin:s tenderiam a se
espalhar e diminuir gradativamente de velocidade. Além disso, como Des-
cartes supõe que os vórtices estejam cm contato, o muvimcnto de um seria·
comunicado ao oulro. O mundo de Descartes, cm suma, não seria estável.
É dispensável lembrar que no livro l1I dos Principia Newton deriva a
lei da força gravitacional, promovendo a unificação da física terre$tre de Ga-
lileu e da física celeste de Kepler. O que convém frisar especificamente aqui
é que Newton obtém a Lei sem fa1.er qualquer hipótese a respeico da causa da
gravidade. Para a mentalidade científica da época, dominada pela filosofia
mecânica, Newton havia realizado um trabalho pela metade: um fenômeno
só pode ser considerado explicado se conhecemos sua cau:.a mecânica. N.to
basta conhecer a lei.
Era essa a avaliação que se fazia de sua teoria - uma concribui~'ao
importante, sem dúvida, porém parcial. Ou então uma avaliação, aí sim,
completamente negativa: Newton teria admitido a ação à distância e rnmi-
derado a gra"idadc uma qualidade oculta da matéria. Veremos que Nc:wwn

-._p -
132 lnur.cn1 dr u ;11111 t"/o.1. 111u:._r u~ «.te dê11c_iJ.

foi 11111i111 sc11:-.ívcl a l.1i11 c...dticas, que revelavam uma incompreensão profun-
d.t de.: SCll pt:llS:llllt'lllO.
A 1t'sl·tva qm· Newton demonstra nos Principia cm enveredar pelo ca-
111 i11IH1 d.is hipóteses é, cm grande medida, deixada de lado na Opticrt, cuja P

cdi1,.10 tL11.1 de l'/Oli. Na verdade, o tom especulativo desta Liltima obra não
(d.ido por Sl'll lorpo principal, mas por u ma série de questões (queries) que
Nt:ww11 .Ktt'St c11ta ao final. Tais questões são, em suas palavras, problemas
que ele cxpiH.: "cm vista de uma investigação ulterior a ser frita por outros".
Nelas, Newton sugc1 e linhas de pesquisa e propõe solu~ócs tenracivas para di-
versos prohkmas ck fronteira relativos a fenômenos químicos, füicos - como
a emissão e a absorçào da lul pelos corpos -, bem como especulações sobre
s:n~ crns:is, i'1duindo a causa da gravitação.
'
O n(1mero <le queries aumenta a cada edição da Optica. Na 1 , somam
16. Ncscas não há qualquer referência a um éter, d ispensando portanto uma
análise para nossos objetivos neste capítulo.
Em 1706 é publicada uma edição da Optica em lacim, com novas que-
ries, que, na 3j edição, são renumeradas de 25 a 31. Newcon rejeita mais
uma vez a hipótese de um meio fluido como o de Descartes. Não aceita nem
1m·m10 a hipótese ondulatória da natureza da luz proposta por Huyghens.
1·.~sa hipótese pn.:ssupõc a existência de um meio material que teria o papel
de suporte para os pulsos de luz. Para Newcon, essa hipótese, além de não
explicar fenômenos ópticos como a difração e a interferência - as ondas de
11 uygliens não eram transversais, mas longitudinais!-, apresentava um pro-
hkma aincl.t maior: como explicar que os planetas não sofrem, ao que lUdo
111d1ca, qu.tlquer resistência a seu movimento? Além disso, não há qualquer
cvidO: m:ia de <\llC cal meio exista. Conclui, na questão 28: "E, ponanro, para
dar 111~1,ar <tos movimentos regulares e duradouros dos planeta.~ e cometas, é
ncn:ss.hio csva1.iar os céus de roda a matéria L.. .]" (l 987a, p. 187).
E preciso 1cssaltar que Ncwcon, nesta questão, dcscarca a possibilidade
de se explicar a gravidade mec...anicamentc, isco é, apelando para um meio ma-
tei ial como o de Descartes, já que, em última instância, a gravidack tlcve-sc a
um·l p6 mei ra causa, que não é mecânica. Esta primeira causa é Dcu'i, como
Newron sut;c.:re cm um trecho mais adiante:

E sendo ess.n coisas corrccamente cracadas, não parece a pa11 i1 dos !Cnôme·
nos, que exi~ce um Ser incorpóreo, viveme, inceligentc, onillll'Sl'lltl', que no
M.c~11icísmo ~ clinJmismo na ciência moderna 133

espaço i11fl11ito (wmo <> c:spaço seria em seu sensório) vê as coisas em si mes-
nus incinumrntc e a~ fk'rcchc totalmente e as compreende cocalmente pela
pr..:scnça inmli.11,1 drl 1,, di,tntc de si? [... ] E eml>ora cada passo verdadeiro
feito nesta fllosoll.1 nüo nos leve imedi.uamentc ao conhecimento da primeira
causa, leva 11os m.1is próximo dele, e por essa razão deve ser altamente prezada
(l 987a, p. 188).

Na célebre qucsrão 31 - que talvez tenha sido o mais importante texto


de referência da obra de Newron para os filósofos naturais especulativos do
século XVIII -, ele reafirma a tese de que Deus, após a criação, mantém-se
onipresente no mundo. Deus provê toda a atividade desse mundo, que não
pode ser atribuída á matéria, que é essencialmente passiva. Newton supõe
q1.>c \eja ncc._·~sário um M1pri111c..,uo p.:lui..ut.:Hlo:: d.: uwvuúcuto, ja que as
colisões observadas entre os corpos implicariam uma perda de quantidade de
movimento:

Vendo, portanto, que a variedade de movimento que encontramos no mundo


está constantemente dccrcscrndo, exisce urna necessidade de conservá-lo e
recrutá-lo por meio de princípios acivos, tal como a causa da gravidade [...]
Pois nos encontramos com muiro pouco movimento no mundo além daquele
qne é devido a esses princípios ativos. E, se não fosse por esses princípios, os
corpos da Terra, planetas, comeras, Sol e.; codas as coisas neles tornar-se iam
frias e se congelariam e se tornariam massas inativas; e toda purrefação, g<:ra- ·
ção, vegetação e vida cessariam, e os plant'las e comeras não permaneceriam
cm suas órbitas (l 987a, p. 202).

As causas da gravidade e de outros fenômenos que Newton enumera


são, portanto, atribuídas a prindpios ativos. A matéria, cuja propriedade ca-
racterística é a inércia, não poderia ser a fonte de toda essa atividade. Ncs~
trecho está muito clara a dualidade passivo/ativo que, como já assinalamos
anteriormente, é central no pensamento de Newton.
Logo em seguida, na mesma questão 31, Newton se adianta às críticas:
tais princípios ativos não conscituc.:m qualidades ocultas, pois eles são mani-
festos, "somente suas causas sendo ocultas". Aqui, Newcon está cercamente
se referindo a forças: a gravitacional e as que possibilitam a coesão dos cor-
pos, a fermentação etc. Embora não pretenda conhecer a catisa da gravidade,
134 Imagens de 11~1Urc1.a, inrai;cns de ciência

Newton afirma ter "derivado", a partir dos fenômenos, "dois ou três pt ind-
pios gerais de movimento'', ou seja, leis. Tais princípios podem, t•ntao, sei
aplicados à compreensão de outros fenômenos, mesmo que nao conheçamos
as causas destes (1987a, p. 203).
Newton havia descartado que tais causas pudessem ser mccâ11icas.
Ele deixa claro, logo em seguida, que a ordem da naturcw não pode ter siclo
produzida pela necessidade cega, a partir de um caos primitivo. Tal ordem
aponta causas finais, para o p lano do Criador. Mas o Deus de Ncwwu, como
vimos, não se limitou a criar o mundo, como o de Descartes; Ele exerce seu
domínio constantemente, por sua onipresença e pelo exercício de seu poder.
Todos os corpos são movidos por Ele em seu "sensorium uniforme e ilimi-
tado". Surpreendentemente, Newton admite até a possibilidade de esse Ser
codo-po<lero~o variai .e. "leis da Natureza e fazer mun<lo~ <lc vários tipos <.:m
várias partes elo Universo", o que, em última instância, retira qualquer fun-
damento a um princípio de uniformidade da natureza!
Na questão 31, Newton adiantou vários dos tcrruls que ele retomará
no "Escólio geral", incluído na 2ª edição dos Principia, dacada de 1713. Ele
deve ter sentido a necessidade de esclarecer suas posições acerca de assuntos
que, até então, só havia tratado em sua correspondência. 12 A incompreensão
de sua obra no continente europeu, sem dúvida, cevc um papel essencial nes-
sa decisão, como atesta a acerba polêmica entre Leibniz e Clarke que eclode
logo depois, 1J cm 1715-1716.
O "Escólio geral" destoa complcramente do conjunto dos Principia,
que é uma obra austera, difícil, que segue o estilo axiomático dos Elementos
de Euclides. No "Escólio", Newton d iscute uma série de questões filosófi-
cas e até teológicas. Mais uma vez, rejeita a teoria dos vórtices e reafirma
que o mundo foi criado e é governado por um Ser supremo: ''A necessidade
metafísica cega {...] não poderia produz.ir nenhuma variedade de coisas"
(1987c, p. 169). Desse modo, Newton reage (novamente sem citar nomes)

12 Manu\critos revelam que Newton havia previsto induir na 11 ediçao comidcraçé>t·s cl(' c.~u.íu:r
1967,filosófico,
m:iis 1968) cm um adendo ao~ Principia, mas resolveu nao fuê-lo (ver Mc.Cuire, 1966-

1' Desde 1689, Ltibniz atacara a noção de vácuo, provavelmente provocado pelo livro 11 dm l'rin-
cipia. Em 171 o. suas críticas à filosofia natural de Newton tornar:im-sc explícitas. me ,l(aCOU
e~~a filo~olia cm cartas escritas entre 1711 e 1713. Ver McGuire ( 1966- 1967, pp. 2 1-1 o\.).

' i '~ L-~


"1cc:nic1,m<• ~ di11;1111i\1t10 n.1 ciénda modernl. 1 ~·~,

às acusações de ateísmo t'. n1atl;1ialis1110, 11uc se tmnatão públicas na polê-


mica Leibniz-Clarke.
Quanto à gravidade, ofo1crc evidências de que sua causa não pode
ser mecânica:

Até aqui explicamos ()S rl·ntH1wnos dos céus e de nosso mar pelo poder da
gravidade, mas aind.1 n.10 dcsii;namos a c:iusa desse poder. É cerro que ele
deve pro\ir de uma causa que penetra nos centros exatos do Sol e plane-
cas, sem sofrer a menor diminuição de sua força; que opera não de acordo
com ·a quantidade das supct fícics das partículas sobre as quais ela age (como
as causa' mecânicas coswmam fuzer), mas de acordo com a quanridadc da
matéria sólida que elas concêm, e propaga sua virtude em rodos os bdm a
i111t·1r-;as di.-.cânci.1~. llc1..1csccndo 'l.mpc<- 110 quadrado inverso d.1, di~c.'.irH I
4
[...] (1978c, p.179).'

Newton defende, cm seguida, uma metodologia inducivista, rcjciia11do


o uso de hipóteses na "filosofia cxp1.:rimental", postura que j<1 cxplicit:ua na
questão 28 da Optica:

Mas até aqui não fui capal de descobrir a causa dessas propnt"dadcs da gravi-
dade a partit dos ícnômenos e não consuuo nen huma lupCncsc. Pois tudo que
não é cledu7.ido dos fenômenos deve ser chamado uma hipóccsc; e <lS hipótt·-
scs, quer metafísicas ou físicas, quer de qualilbcks oculms ou mecânicas, nfio
têm lugar na filosofia exprrirncntal [...] .

O curioso é que, após esse enfático hypothesis non fingo - que seria,
mais tarde, tão explorado pelos positivistas-, Newton permite-se, no último
parágrafo do "Escólio", especulações sobre as causas dos mais diversos fenô-
menos, vários deles tratados nas questões da Optica:

E ago ra poderíamos acrescentar algo concernente a certo espírito mais ~mil


que penecra e jaz escondido em todos os corpos sólidos; um espírito por cuj .1
força e ação as partkulas dos corpos se acrac.:m emre si a distâncias próximas e.:
"i se unem, se conríguas; e os corpos elécricos operam a distâncias maiores, tarun
1

1
11
Sobrtt cs.c argu111cnw, ver l lcimann ( 1981, p. 61).

-!
Tmar..('ru tle u.uurr:1..i, im.._~(llS de ciência

1cpcl111do como acrain<lo os corpúsculos vizinhos; e a luz é erniri&1, 1cflctid.1,


1di.11acLi, i11flcti<la e esquenta os corpos; e roda sensação é cxcirada e· os mcm
lnm dos corpos animais movem-se ao comando da vontadt', nocacL1mc·ntc
pl'LI vil11aç;10 dc-s~c espfriro, mutuamence p ropagada ao longo dos fi lamentos
s6lrdCJs dos nervos, dos órgãos exteriores dos sentidos até o cérebro e do cé-
1<'hl() ;11é m r11úscu los. Mas essas são coisas que não podem ser explicadas cm
1•011t.1\ p.1hv1a\, nem eMamos providos daqueb suficiência de experimentos
cptt' é 1cq11<'1 ida par:i uma determinação precisa e para uma demonstraçáo das
ll·is pd.1s cp1.1i\ cs~l'S espíritos elétricos e eláscicos operam (1987c, p. 170).

A 1cl(·1l:11c.:i'1 aos "c.\píritos elétricos e elásticos" é acrescentada por


Newton na 3 1 cdiç:w dos Prinripia, de 1726. Notemos que esses espíritos não
cst::-i cuvolvid11s 11 .11:xplictç 10 d . frpi'imcnos g··avicacionais.
Na 2ª edição inglesa da Optica, de 1717, N ewton surpreende, pro-
pondo uma explicação para a gravidade e outros fenômenos servindo-se da
hipótese de um éter. Isso ele desenvolve em novas queries (17-24) acrescenta-
das às da edição latina. 1s Muitos historiadores viram no "espírito mais sutil"
elo "Escólio" de 1713 um precursor do éter de 1717. Essa interprccação é,
entretanto, questionável, como acabamos de sugerir. 16
Nas primeiras páginas dessa 21 edição inglesa, Newton já desrnca a no-
vidade: "[ ... 1para mostrar que eu não considero a gravidade urna propriedade
essencial dos corpos, eu adicionei uma questão relativa à sua cansa, esco-
lhendo para isso a forma de uma questão, porque ainda não esrou satisfoico
com ela por falta de experimentos" ("Advercisement to the second edition",
1952h, p. 378).
Nas qt1estórs de números 17 a 20, Newton sugere que diversos fenô-
111e11os podem sec explicados supondo "vibrações de um meio muito mais
sutil que o ar" ( 1987:i, p. 178). Ele supõe que os raios de luz podem excitar
vihraçõcs nesse meio e explicar fenômenos como a difração e a interfcrên-
ci,1. Sem abandonar a hipótese corpuscular para a luz, Newton foi forçado a
admitir que efeitos ondulatórios acompanham, em certas ocasiões, os raios

is As razões para r:tis mudanças seriam segundo Guerlac (1979, 1981), os cxpt·rírnento\ dC'
Hauksbec de um lado e as crítícas de Leibniz, de outro. Ver também 1'hackray ( 1 1)~ 1, p '' ">).
11· Ver, por exemplo, Thac..kray (1981, p. '15) e Bum ( 1991, p. 275). Hornc (1982) t<11nlit<rn u í1ica
C!>-\ t imcrpre1,1ção.
/\loGanici•mo ~ <lin>mi'""' 11a ciência mod<rna 137

de luz. 17 Esse meio também seria o responsável pela propagação do calor no


vácuo e o esquentamento dos corpos sobre os quais incide a luz.
Mas é na questão 21 que ele estende as funções desse meio etéreo, de
forma a envolver a gravitação:

Não é esse meio muico mais rarefeit0 nos corpos densos do Sol, estrelas, pla-
netas e comeras do que nos espaços celestiais vazios entre eles? E ao passar por
eles a grandes distâncias, ele não se coma perpetuamente ca<la vez mais denso,
e por isso causa a gravidade daqueles corpos grandes entre si e de suas parres
com relação aos corpos, esforçando-se todo corpo para ir das panes mais den-
sas do meio em direção às mais rarefeitas?[...) E embora esse aumemo de den-
sidade possa em grandes distâncias ser extremameme vagaroso, ainda assim,
se a força d áscica dcs~c meio for cxtrem.1111c11te .:rande, pode ser suricicncc
para impelir corpos das partes mais densas dos meios para as mais rarefeitas,
com rodo aquele poder que chamamos gravidade. [... J E assim, se alguém su-
puser que o éter (como nosso ar) pode conter parrkulas que se esforçam para
se afascar umas das outr~ (pois não sei o que é esse éter) e que suas partículas
são excremameme menores do que as partícula~ do ar, ou mesmo do que as da
luz, a pequenez extrema de suas parc(culas pode comrilmir para a grandeza
da força pela qual essas partículas podem se afastar entre si, e por isso tornar
aquele meio extremameme mais rarefeito e elástico do que o ar, e por conse-
quência extrem:11ncnrc menos capa.l de n:si~tir ao movimento de projéteis, e
extremamente mais capaz de pressionar grandes corpos, esforçando-se para se
expandir (Newcon, 1987a, pp. J78-9).

Tal meio sutil poderia ainda ser o responsável pela transmissão das
sensações visuais do olho até o "sensório", pelos n ervos. E transmitirÍa os atos
de vontade do cérebro para os músculos, através dos nervos.
Portanto, Newton revê, aparcncemcnce, as objeções que fizera à ideia
de um éter, propondo uma explicação mecânica para a gravidade. A surpresa
e o constrangimento demonstrados, à época, pelos seguidores de Newcon
revelam que foi dt:.~sa maneira que o éter de 1717 foi incerprecado. 18

17
Ver Cohen (1952, p. xi).
18
VerThackray (1981, p. 45).
) 38 lnug<·n• de 111ture"'· imJgcns de tiência

Defenderemos, contudo, outra interpretação: esre éter não rqncscnta


uma rupwra com relação às posições anteriores de Newton, rnas, de cena
forma, uma solução de compromisso entre vários tipos de exigênci<\1' cm stu
pensamento.
Em primeiro lugar, é p reciso constatar que esse éter de Ncwwn (: mui
to d iferente do éter de Descartes. Na questão 22, Newton ressalta a distins.10
en rre o éter e "qualquer fluido que preenche todo o espaço, adcquad,1mc1Hc,
sem deixar qualquer poro [...)" (1987a, pp. 179-80), o que, sem so111bra de
dúvida, é mais uma referência ao plenum cartesiano. O ércr de 1717, distin-
tamente, é composto de panículas que se repelem, e, portanto, não preenche
rodo o espaço, que é, em grande parre, vazio (seja de érer, seja de maté1ia).
O éter é extremamente rarefeito, dada sua grande elasticidade, o que con-
cornaria a objeçao que ele próprio fizera ao plenum de Dcsc.ancs, de tiuc
ofereceria resistência ao movimenro dos planeras. Trara-se de um éter elástico
que não constitui, consequentemente, uma solução para o problema da ação
à distância, ou seja, para o problema ,leque "a maréria não pode agir onde
não esteja". Como explicar a origem das forças elásticas e repulsivas enrre as
panículas etéreas? O problema da ação à distância, no nfvel macroscópico,
transfere-se para o nível microscópico, se insisrirmos em interprccar o éter de
17 l 7 como um rneio mecânico!
Em segundo lugar, a correspondência de Newton demomtra que, cm
fases anteriores de sua vida, ele havia proposto d iversos modelos para o éter,
como veremos adiante.
Os sucessores imediatos de Newton só dispunham, porém, das espe-
culações rudimentares sobre o éter das questões da Opticrt introduzidas em
1717. Especulações embaraçosas, pois temia-se que pudessem favorecer os
adversários cartesianos e leibnizianos.19
Em meadós do século XVIII, o cenário modifica-se. As teoria.s de
Ni..:wton já haviam demonstrado sua superioridade e vencido a 1csisréncia
dos cartesianos no continente europeu. Isco favoreceu a publicaçâo de cirtas
que Ncwcon havia e~crito muitas décadas antes (ver tabela 1). O irnpacco
histórico desses textos inéditos foi imenso.

1• Ver Thadm1y ( l t)8 l, p. 47). Leihniz era o que mais incomodava. Sua morte, cm 1716, podl•ter
f:ivn~ ~ &oc~o ,ko Newton de pub1icar sua' especulações sobre o éter.
~kc;u11c 1<>mo e Ju~jmi Hno n .1 Ciência modernj 139

Em 1744, publicaram -se. as ranas c111c Nl·wcon havia escrito a Olden-


burg em 1676, e a Boyle cm 1678 l 679. Tais cartas revelaram que as espe-
culações sobre o éter e a estrutura ela matéria não eram extravagâncias a que
Newton se entregara na velhice, mas questões que o preocuparam desde cedo.
Primeiro, comentaremos a carta enviada a Boyle,20 pelo fato de ante-
cipar o éter de densidade variável e.las queries de l 717. Embora hesicant~, e
"insatisfeito" com suas especulações, Newton supõe, nessa carta, a existência
de um meio etéreo por analogia com o ar, mas o primeiro seria muito mais
tênue e elásrico. Os corpos sólidos conteriam "poros" nos quais penetraria o
éter. O éter e a matéria interagiriam de tal modo que, quanto maior a densi-
dade desta, mais rarefciro se encontraria o éter. Nos espaços livres de macér ia,
o éter teria, portanto, maior dcnsidacle. 21 Jnscado por Boyle, ele admire, co111
base nessa hipótese, especular sobre .i causa da gravidade:

[...]Considerarei oucra conjecrura que veio à minha menre agora , rnq11a11111 (''ó t.1v;1
escrevendo esca carca. Rt;fere-sc à causa <la gravidade. Com l·s1e fim , ''" vo115111w1
que o érer consiscc cm p.rrrcs diferindo umas das outras cm te11uid.1dc c1 n g1 ,1 u' in
definidos: que nos poros dos corpos há menor quantid.1dc d(J úcr 111 1i ~ g1mso c1 '1
proporção ao mais fino do que nos espaços ..unplos e, con,n1m·111nm·111c, que mi
grande corpo da terra existe menor quantidade do ércr lll<l is g1 º"'º l'1l1 proporção
ao mais fino que nas regiões do ar; e, ai nela, que o éter m:tis gmsso no a 1 habita as
regiões superiores da c<.:rra e o ét<.:r mais fino na rei 1a, as 1q,\iücs mais baixas do ar;
de tal modo que do alto do ar aré a superCkic da r<:tr,t e, continuando da super'-
fície da cerra até o centro da mesma, o ún torna ·setada Y<.."l mais fino ele modo
insensível. Imagine agora qualquer corpo suspenso no ar ou sobre a terra; o ért.:r
sendo por hipórcse mais grosso nos poros que se encontram nas p~rces superiores
do corpo do que naqueles que se enconu.tm nas panes inferiores; e que o éter
mais grosso, sendo menos apto a se aloj:ir naqueles poro~ do que os mais finos do
éter inferior, ele se esforçará par,1 sair e dar lugar ao éter m;iis fino de baixo, o que
não pode acontecer sem que os corpos desçam de modo a dar lugar para
que de saia[ ...] De minh:t parce eu tenho tão pouca imaginação para coisas de~s:t
n.1 ture'/a que, se n:io fosse Sl'U en~orajamento, eu nunca teria pensado cm t:ol11c:11

l>l Sobre o écer de Boyle, que teria exercido influência sobre Newton, >cr Bum ( 1991, PI'· 26·í ~7)
2
Mcguire (1968) vê uma tensão conccpluJI cncrc o crc~cimentu d.t dt:n>'ídade do fo:r nos t:5pa
ços "vazios'' e a ra1efaçáo crescc11te da matéria .

..
lm•S"" <lc 1u1urtt.1, inugens de ~iéncia

no papel algo a esse respeim (Carta a Boyle, 28 fev. 1678 -1679. ln Turnhull,
22
Scotc e l lall, 1959-1977, v. 1, p. 295).

O éter da questão 21 da Optica é concebido do mesmo modo: ele é mais


"rarefeito" nos corpos que no espaço. Entretanto, há algumas diferenças im-
portantes com relação ao éter de 1678, no modo como sua interação com a
matéria é entendida no caso da gravidade. Newton havia pressuposto que o éter
é composto de partículas distintas, que se imiscuem nos poros dos corpos e in-
teragem com estes de maneira diferenciada, conforme seu tamanho. Em 1717,
enrretanto, de não faz mais qualquer referência a diferenças entre partículas
do éter: basearia, para impulsionar os corpos imersos no éter, as diferenças de
pr"c;são que surr,em cm um meio com o gradiente de densidade suposto. Outra
novidade é que, na Optica, Newton explica a elasticidade <lo éter através de
forças repulsivas, de grande intensidade entre suas partículas.
F. muito provável que a elaboração dos Principia tenha sido crucial para
essas diferenças que assinalamos entre o éter de 1678 e o de 1717. Com os Prin-
cipia, Newton estabelece claramente a dualidade matéria/força, que reflete uma
dualidade ainda mais fundamental encre passividade e atividade na nacureza.
Newton se convence, então, de que a matéria não pode ser fome <le atividade, j<í.
que sua propriedade fundamental é a inércia, que está associada ~l passividade.
O éter de 1717, portanto, é um meio ativo. Essa atividade manifesta-se nas for-
ças de repulsão entre suas partículas, das quais resu lta sua elasticidade. Wesrfoll
defende que esse novo éter é "imaterial", ao passo que o éter da juventude de
Newton era "material " (19/l, p. 396; Dobbs, 1984, p. 206).
A carta a Oldenburg, anterior à enviada a Boyle, descn.:ve um meio etéreo
distinto, o que evidencia que Newton tentou vários modelos dilercmes. Esse
éccr de 1676 apresenta características ainda mais próximas do de Dcsc~ures: é
cinético, "circulante". 21 A diferença fundamental, porém, é que Nnvwn ainda
não distingue de maneira rndical o éter da matéria, admitindo que um deles
possa se converter no outro.'•

!? A <fücinção cncr<" é[cr "grosso" e éter "fino" faz pensar em uma pos~í\'d i11ílut 11ci;1 .lu tlm11111
de l kscane~, composto <le panículas de diversos tamanhos e formas. Vn 1.1mhé 111 f\kC11i1c
( 1966- 1967, p. 2j0), sobre a inlluêncü ths explicações da gr.iviJ:l,I.: <lc huio de D11illit·r
lJ \'c.:r McGuir.: ( 19<•7) e as ong<'ns dessa noção de circularidade.
?•A influência <lc Barruw nc~a hipótese de urna conversão érer/maréria p. uc~<' d rd s1va , \'çr
(Dohbs, 1981, p. 93).
ll.lec.rnici,mo e di1umi,mo na ciência moderna 141

Insistimos que tais divagações, a que Newton se entrega de formava-


cilante, são diretamente motivadas por suas convicções religiosas e pelas crí-
ticas, especialmente as de Leibniz, de que com a noção de força ele estaria
reintroduzindo as qualidades oculcas. Uma carta que envia a Hartsoeker em
17 12 é, nesse aspecto, bastante sign ificativa, pois devolve essa crítica aos seus
adversários, revelando os pressupostos metafísicos da "filosofia mecânica":

Deste modo então, a gravida<le e a dureza passam por qualidades ocultas


se elas não podem ser explicadas mc<;anicarncnte. E por que o mesmo não
poderia ser d ito da vis inertiae e da extensão, da duração e mobilidade dos
corpos? Porém, nenhum homem tentou explicai essas qualidades mecanica-
mente, ou considerou-as mihgrc.'t, coisas .sobrenamrais, ficções ou qualida-
d~, -kulras. Elas sao <h qu.tl idadcs namrai~. reais, accicáveis, manitestas, de
codos os corpos; instaladas neles pela vomade de Deus desde o começo da
criação e não passíveis de serem cxplic.adas mecanicamence; e o mesmo com
rcspeico à dureza das parcícula~ primitivas dos corpos. E, portanto, se qual-
quer homem d issesse que os co1pos atraem-se muruamcme por um poder
cuja causa é desconhecida para nós; ou por um poder instalado na constitui-
ção da narureLa pela vontade de Deus; ou por um podei instalado em um:i
substância (imacerial) na qual o.~ corpos se movem e flutuam sem resisrência,
e que porranco tal subsrância não tt·m vis inertirte, mas age por leis dif~renre~
das que são mecânicas - não sei por que esse lion11.;m d everia ser acu~;ido ele
inrroduzir milagres e qualidades oc11ltas e ficções no mundo. Pois mesmo o
Sr. Leibniz difici lmcnre dirá que o pensamento é mecânico; como deveria, se
explicá-lo ele outra maneira fosse equivalente a considerá-lo um milagre, uma
qualidade oculta e uma ficçiio (apud McGuire, 1968, pp. 202-3).

Independentemente das especulações de Newton a respeito da causa da


gravidade, é importante frisar que ele nunca admitiu a ideia de que a gravida-
de pudesse ser considerada uma propriedade da matéria (ao lado das demais
qualidades primárias), tese esta que viria a ser defendida por seu discípulo
Cotes. Isso fica parente em suas famosas cana~ a Bcncley, datadas de 1692·
1693: "[... ]O Sr. algumas vezes fola da gravidade como essencial e incrente à
matéria: eu lhe peço que não atribua esta noção a mim, pois eu não pretendo
conhecer cm que consiste a causa da gravic.lade e, portanto, pre~isaria de mais
) 42 linai;cM de no1urct.1. inug~ns d< ciência

tem po para considerá-la" (carta a Bentley, 17 jan. 1692-1693. ln Turnbull ,


Scott e lJall, 1959- 1977, v. 1, p. 240).
Considerar a gravidade u ma q ualidade primária d a m atéria implicaria
banaliza r a ideia de u ma ação à distância, o que N ewton rejeita categorica-
mente n a carca seguinte:

l...] 8, inco ncebível que a matéria bruta ina ni mada possa (s<.:m a m<.:d iação
de a lg uma outra coisa q ue não é material) opera r sobre e a focar outra macé-
1ia sem concaco mút uo, como deveria ocorrer se a g ravitação, no sentido de
Epicuro, for essencial e i nerente a ela. E essa é uma razão pela qual cu desejei
que o Sr. não arribuís~e a mim a gravidade inata. A ideia de que a gravidade
seja inata, inerente e essencial à matéria - de modo que um corpo possa agir
~ol>r..: outro à distância através do vácuo sem a mediação de: qualqm:r outra
coisa, e por meio da qual sua ação ou força possa ser transmitida de um
para o oucro é para mim um absurdo cão grande que não acredito poder
algum homem, que tenha uma faculdade competente de pensar a respeito
de assunros fi losóficos, sustentá-la. A gravidade deve ser caw.ada por um
agente atuando constantemente de acordo com certas leis, mas se esse agente
é m.ncrial ou i material, é urna questão q ue deixo para a consideração dos
meus leitores {carta a Benrky, 25 fev. 1692-1693. ln Turnbull, Scott e Hall,
1959-1977, V. l , P· 254).

A tabela 2 é uma tentativa de síntese, em que d istinguimos três fases nas


especulações de Newton sobre o éter. Em sua juventude, ele tentou desenvolver mo-
delos mecânicos para o éter, como evidenciam suas cartas a Oldcnburg e a Boyle.
Em uma segunda fase, que abrange o período de redação dos Principia,
Newton rcjcira canto o éter de D escartes quanto suas próprias especulações
de juventude cm corno de um éter material-mecânico. Como evidência, te-
mos sua carta a Bentley e as objeções mecânicas aos vórtices cartesianos nos
Principia. Essa fase corresponde à invenção do conceito newtoniano de força:
as forças passam a ser consideradas m anifestações não mediatizadas, da pre-
sença <le Deus no mundo.
Com o "Escólio geral" da 2i edição dos Principia, e sobretudo com as
queries da 2' edição i nglesa da Optica, Newton volta a especular a respciro de
um meio etéreo. Esse meio é, contudo, muito d iferente do plenum mcc. nico
de Descarres - trata-se de um éter ativo, dinâmico.

...__ ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Me<•nicismo ~ dinami>mo na ciência m<Klcrm 143

Tabela 2: Fases nas espccula~·fü·s de Newton sobre o éLer


P fase: (anos 70 e início dos 80). v,í11m 111od<.:los para u m éter mecânico.

21 fase: (r l 685 - ~ 1 7 1 3) : fase teológica. As forças como ma nifes tações d ire tas da
ação e d o po der divinos; rejeita as c~pccul açó<.:s da JJ fase.

3ª fase: (r 17 17 em di:mtc): volta a p ropor u m éter, mas agora dinâmico.

O q ue teria motivado Newton a volta r a supor a existência de urn


meio etéreo a partir de 1717? Acred itamos que a chave para essa questão
esteja n a nova função q ue o éter passa a desempenhar: consriruir-se em um
mediador na relação espfrico-matéria. 21 O écc1, como fonte de toda ali\ 1
d:ide na narureza, torna-se um veículo. por assim dizer, da ação do !>mf
extenso de More na nacu rela. O vazio macerialisra dos atomistas pass;1 a
ser p reenchido, embora não toral mence, por cal m eio. O érer torna -se uma
causa secundária, intermediando o governo de Deus sobre as criaturas. Em
função de suas convicções religiosas, Newton considerava inacci1:Ívl·I que
a ação de Deus no mundo se fizesse diretamente, como sugeriam ~l:us n-
critos da segunda fase. Por outro lado, os modelos mecânico~ para o étc1,
da primeira fase, eram tampouco aceitáveis, pelas razões j.í discutid as. O
éter da terceira fase constitui u ma solução de comp rom isso cm resposta às
p olêmicas suscitad as p or sua teoria da gravitação.

21
A problem1tica dos mediadores cmrc cspíriro e macúia é trad iciona l no neoplatonismo
e revela-se cm aurores do Renascimento, como Paracelso e van Helmont. Newton, pro
vavelmence, teve contato com ela por intermédio de lhrrow e More. As soluções desse'
filósofos eram, a e~se re~pei to, divcrgcmc~. Barrow cst,\va disposco a aceirar a possibi -
lidade de uma misrura esplrico/ m.uéria nos çorpos - influenciado pelo hermecismo e,
indireramente. pelo escoicismo. More, por ~u.1 ve1., defendia uma separação estrita ent rl'
ambos (eliminando qualquer ~uge\l:io de urna inrnconvercibilidade entre tais subscjn.
cias). Mas, contrariamentc a Descartes, More admi1ia uma ação d:i alma do mundo soh1t•
a matéria (para mais informações sobre: o uacamcmu <lesta questão no neophronisnw de
Cambridge, ver \'V'ilde, 1982). Dohbs sngl'fe que Ncw1on teria vivido essa divetgc'.·nria
como uma "tensão" d urance anos, att< <1ue \Cu co11ccito de força viesse a reso lvê-la (1')8•i,
pp. 105, 193). Encontram se traços <kssa busca dt mediadores em eKriros alquímicos de
Newron (apud McGuire, 1968, p. 207) .

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
1·1 •1 lm.ar..en1 dr 11all1ft'1.:l, 1ma1!,<:nt Jr ciC:n,ia

D'Alc111hl·.rt e o volu ntarismo divino

I"' c111iuso n·r como ainda no século XVIII, mesmo entre reprcsu1tan-
1cs do 1hrrn i11Í\11 10, a crença no voluntarismo divino tem implicações mctafí-
siL1.s e 111r1odol<'igicas.
1•:111 n:r to ponto de seu Essai sur les elemens de philosophie, publicado
c111 17'>9. d'Akrnhctt ( 17 17-1783) pergunta-se se as leis da mecânica são de
"verdade nccrss;hia ou contingente" (1965, p . 393). Entre tais leis, inclui a
lei dl· rrn.<rci.1, a do movimento composto e a do equilíbrio. Apressa-se cm
ol>~crvar q11<:, com respcilO à questão colocada, n ão se trata

!... J de ckcidir se o Autor da natureza teria podido dar-lhe ourras leis, diferences das
1111( 11(k, ol~..:1 vamo;,, a pai ti1 do monc:nto cm que a<lnlllilllo> u111 51'1 imdtg~nlc,
c:1p;\z de agir wbre a matéria, é evidence que esce Ser pode, a cada instance, movê-la
e p.1r,í·l.l ao seu bd pnuer, ou segundo leis uniformes, ou segundo kis que sejam
difcR•r"cs pa1~1 cada instante e para cada parce da macérh; a experiência comínua
dos mo' imentos de nosso corpo prova-nos, de forma sullcicnre, que a matéria, sub-
metida :1 vom<1Je de um princípio pensance, pode em seu~ movimentos afastar-se
claqudt:.\ que ela teria verdadeiramente se ela fosse abandonada a si mesma.

D'Alembcrt então prossegue indicando cm que sentido a questão co-


loca<l.1 inicialmente 4eve ser entendida: "A q uestão p roposta se reduz, por-
tanto, a saber se as leis do eq uilíbrio e do movimento que se observam na
natureza são di fe rentes daquelas que a matéria aband onada a si mesma teria
sl'guiclo r... )" (1965, p. 393).
Após um longo a rgumento, conclui afirmativamente: as leis indicadas
s:ío 111.·ct:ss;írias, na med ida cm que decorrem da própria natureza da matéria.
Em oum1s ll'• mos, a matéria, abandonada a si mesma, seguiria tais leis:"[ ...)
fr,j sahcdo1i1 do Criador e simplicidade de sua visão, não esrabclecer outras
leis do 1.:quilíbrio e do movimento [as leis da estática e da dinâmica] diferen-
ces elas que resultam da existência mesma dos corpos e de sua impenetrabili-
dade mt'1tua" (1965, p. 397).
fasa posição não é de se estranhar, pois tradu7 o racionalismo <lc
cl'Alcmherc, característico de seus últimos trabalhos . . ..l~uuccanco, mais à

2
· O td.11c1 (.:, em gcrJ.I, o volumarismo divino) está normalmence ª'sod.idn ;r 11111 f'<''\irni\·
'"º 1:pi~cemológiv• ·nquanto o deísmo favorece um otimismo epistcmolâgico. fa"" irnag..:n~
t. lcc:inÍ<"Í>mo e dín:uní;mo na ciênci1 moderna 145

frente, no mesmo capímlo, d'Alcmbert vai atribuir um estatuto completa-


mente diferente à lei newtoniana da gravitação:

Quando nos perguntamos se as le is do movimento são de verd ade neces-


sária, só estão en1 questão aq uelas pelas quais o movimento se comunica
d e um corpo a oucro; e· ele íorrna a lg uma aquelas em virtude das quais um
corpo parece se mover sem ne11huma causa de impulsão. Essas são, por
exemplo, as leis da gravidade (les foú de ln pesanteur), supondo-se, como
muitos filósofos acreditam hoje em dia, que essas leis não têm o impulso
por causa. Nessa suposição, é evidente que as leis em questão não poderiam
ser, em nenhum sentido, de verdade necessária; e que a queda dos corpos
graves seria urna consequência de uma vontade imediata e parcicular do
CriaJor [... ) (l'JG';, p. J '.>:J).

O com geral dessa passagem é claramente teísta, pois invoca a interven-


ção divina na produção de, ao menos, determinadas classes de fenômenos.

O dinamismo newtoniano e a filosofia natural britânica do século XVIII

Os estudos sobre a influência ele Newcon no século XVIII centrararn-~e,


quase exclusivamente, no papel paradigmático dos Principia para o desenvolvi-
mento da mecânica no continente europeu . Uma atenção bem menor recebeu sua
Optica, particularmente suas incursões mais especulativas em filosofia natural.
Essa outra vertente do newton ianismo do século XVHI esteve representada
em ciências emergentes como a química, na então chamada "física especial" (ver
capítulo 7), e, especialmente, na fllosof1a natural britânica de cunho mais especu-
lativo. Estudos recentes vêrn revelando que essa vertente pode ter repercutido até
sobre a ciência britânica do século XIX, em especial sobre Faraday!
A filosofia natural britânica do século XVIIl e princípios do século XIX
- representada por nomes como R. Grcene, ]. Priescley, J. Hutcon, T Hexlcy,
para citar somente alguns - foi herdeira <le imagens de natureza e de ciência

podem estar combinadas un diforcnrl'\ pmporc;õc., cm um mesmo autor, como é o caso de


d'Alemberc, ao clisringuir ripos de ki' c:rn 111ecânk.1. I)'Alc:mhert foi um nominalisra c céti.;.o
cm seus primeiro~ trabalho~. como no J)isr111m prllimin.urt da Enciclopédia (Enc;cl<>pMie),
rendendo para um racionali5mo ck cone cirt«~ia110 cm seus trabalho~ de maturidade, em espe-
cial nos de mecânica. Ver capículo 4 l' 1 lmé ( 1980).

~
146 lrn1y,c11~ dt• na1ure1.~. i1nai.;en~ de ci<nci~

lacentes nos trabalhos de Newcon e de filósofos como Lockc. Essas imagens in-
cluíam posições acerca da fundamentação episcemológica da distinção :;cisu.:n
t ista encrc qualidades primárias e secundárias, do estatuto dos princípios .Hivos
de Newton e de sua relação com uma matéria passiva, da fo rma de panitipa~ao
divina na ordem nawral, do dualismo matéria-espírito etc.
Esses fil ósofos britânicos citados divergem em pontos fundamen tai~,
mas é possível identificar algumas tendências comuns no modo como .tbsor-
veram criticamente a imagem newtoniana de natureza:

1. A concepção newtoniana de um Deus voluntarista e providencial


é rejeitada e, consequentemente, a dualidade estrita enrrc matéria
(passiva) e espírito (ativo) coextenso à natureza. Esta última roma-
-se auto:;suficiente, dispensando a inrcrvcnção divina. Pa\sa-s~ a
atribuir à própria matéria a at ividade que Newton considerava ser
de origem imaterial. Em outras palavras, as forças newtoni1mas são
s11 hstrmcia/iza.das.
2. Radicaliza-se a concepção newtoniana de uma matéria extrema-
mente rarefeita na natureza, secundada pelo primado da força, crn
t11n:1 imagem de tendência claramente dinamisca. A matéria é con-

ccl11da como reduzindo-se, em sua essência, às forças ou poderes


pelas quais se manifesta empiricamente.

Hcimann e McGuire apontaram, como um dos desenvolvimentos


cruciais da filosofia natural do século XVIII, a transformação " dos p ri n-
cípios ativos de Newton [ ...] em substâncias ativas" (197 1, p. 245) . Foram
concebidos, :io longo daquele século, diversos meios sutis, que receberam
diferentes denominações conforme o autor considerado: "fogo", "substân-
cia solar", "flogístico", "luz" ou "eletricidade". A ativid ade passa a ser consi-
derada intrínseca à própria natureza, manifestando-se por intermédio <les-
ses meios, que, embora descendam do éter dinâmico newtoniano, devem
ser distinguidos deste por sua materialidade. Essa materialidade não pode,
enrrecanco, ser .entendida como análoga à do p/enum cartesiano · cm que
roda ação se dá por contato escritamente mecânico. Os meios sutis do st!-
culo XVIII são de autêntica linhagem newtoniana, na medida em que s;w
meios dinâmicos, ativos.
/\lt-1·.inicisrno e dimmi>mO na ciênci~ modem• 147

Um representante dcss,t tcml0ncia é o químico e médico Boerhaave


(1668-1738), cujas conccpçoes exerceram grande influência sobre a filosofia
natural britânica do sécu lo XVf 11, ao lado das de Newton. E sse século "as-
sociou o conceito newtoniano de é1e1 como meio dinâmico ativo [...] com a
doutrina de Boerhaavc do fogo como um princípio ativo na natureza" (H ei-
mann, 1973a, p. 17). Provavelmente, essa associação era considerada natural,
graças ao viés marcadamente químico d as especulações de Newton em filo-
sofia natural. 21
As incursões de Priesrley cm filosofia natural têm uma significação
especial, já que existem evidências de que Faraday teve conhecimento delas,
direta ou indiretamente. Além disso, elas ilustram com muita nitidez as duas
tendências do newtonianismo britânico apontadas anteriormente. Pricstlcy
dtfcu<lcu um rnoni:;n10 materiali:it.t: a matéria é caracceri?,ada por !>lia e
tensão e por poderes de atração e de repulsão que lhe são inerentes: ( > que:
chamamos de "matéria" reduz-se, em Priesdey, a um complexo de frn~.1~ 1111
poderes variando de inrensidadc e de qualidade com a extensão (as 1(11\' as
podendo ser de dois tipos: atrativas e repulsivas).
Marcado por um ccricismo empirista, como vários oucros fil,',,ofo:-
britânicos dessa época, Prie:.tlcy contesrou a primazia ontológica qm: o :.é

27 Heimann aponta a presença de ideias de Bocrhaave em lkrkclcy: "01 cstoito' afirma Bcrkelq
cm Siris (1744) - também ensinaram que roda substância era originalmcrm: fogo<' deve relOI nar
ao fogo; que um fogo ativo e sutil foi d irundid11 e expandido através de wdo o universo, e que di-
versas partes dele eram produzidas, sustentada~<' mantidas junta~ por C\\a força" (apud l leirnan n,
J')73a, p. 13). A presença do esroicismo no s.:-Culo XVII! se vciiíica cm ourras esferas, não dire-
tamente ligadas à cem:ícica especifica deste c.lpírnlo. Gmmríamos de registrar, nesta nota, algn
mas evidências que mereceriam ser explor.1da,. Galc110 (séc.ulo li d.C.), po1 exemplo, u:ve grande
influência sobre a fisiologia no século XVIJI. Ele utilizou se amplamente da concepção esmica
de pneuma e rnnsticui uma das principais fontes que nos permitem resgatar a filosofia cscoica. l-lis-
coriadores como Gilli~pie, por sua VC'L, identificam uma inspiração estoica subjacente à imagem de
naturaa de filósofos iluminis1.1s, como Dide1ot, <1ue buscavam na natureza um fundamento para
a •virwde~ (1960). Didcrot fa1 uso, em rodo ca<;<>, da metáfora estoica da "aranha em sua ceia",
com o intuito de ilustrar a imerdepmdência dos fenômenos em nível cosmológico (1961, pp. 315,
3.H). Cal>eria aqui, sem dúvida, uma inwstiga<,'áo a respeito <la míluência de Spinoz.a e de I eib11iz
- cujas imagens de natureza revelam uma influt'nci.1 e~toica -sobre diverso~ filósofos franceS<:s do
s.-culo XVIII. Tais imagens rcpercmiráu no Rornamismo e nas especulações da f'lawrphi/o;ophi~
{ver l .ovejo)', 1964, e as di,cus~s do c1pítulo 4).
2
·' O conceito de poder, conforme utili1ado na filosofia 11acural britânica, adquiriu estaturo fi

losóftco a partir de Locke (ver Hcirnann e McGuire, 1971) . Ver o capítulo G, para mai~ in-
formações sobre 0 maceri,1li\mo de Pricsdc.:y e sua participação na Lunar Society. ao Lido de
faamLUs Darwin, o avô de Ch.1rlcs Darwin.
148 1111 .aJ~<"n s ,te 11 .auu rt.l . 1111.1gt:1H de ciên.cia

culo XVII lo11n·<lna às qualidades primárias. Ele parte da constatação de


qnc <•~ s1 111 1dm pcrcchem a matéria unicamente por suas maniíestações,
l 0111n q11.111do l l,t oÍl'recc uma força de resistência ao tentarmos penetrá-la.

l ~ssa expc1 iê11cia imediata de interações com a matéria revelaria sua rcali-
dack 1'd1i 111a, e não uma qualidade primária como a dureza. A realidade da
111a1(1 i.1 1nluz sl', en1;10, a tal conjunto de forças e poderes manifestados na
cxpcrillncia ordi11á1 ia.
I~mhora Nl'wton tenha estabelecido uma divisão clara entre qualidades
primárias l' seu111<lá1 ias e mancido uma postura claramente dualista- distin
guindo nutéria de Ím<ja - , algumas de suas ideias parecem ter influenciado o
reducioni~mo dinamisca de filósofos como Pricsdey. Destacamos as seguintes
teses newcomanas:

1. a matéria é extremamente rarefeita no Universo;


2. os corpos são porosos, seu volume sendo, cm sua maior parte, com-
posto de espaços vazios;
3. a força tem primazia sobre a matéria, esta última sendo considera-
da imperfeita;
4. as fon;as n:pulsivas entre as partículas do éter são de natureza não
mecânica.

As propriedades do éter newtoniano - como a elasticidade e a tenuida-


de - não possuem, como vimos, um caráter estritamente mecânico. Newton
~ugere, por exemplo, que as partículas de éter 11ão teriam inércia (a qualidade
mccâni~a por excelência). Por sua vC'l.., o modo como Newton relaciona o
volume das partícula~ de éter e a fo rça repulsiva entre elas não corresponde
ao modo rnmo relaciona, por exemplo, massa e força gravitacional: haveria
uma proporcionalidade i11versa entre o tamauho das partículas de éter e a
intemidadc da força de repulsão. 29
Qu.tnco aos corpos, sendo eles porosos - com a maior parte de seu
volume correspondendo a espaços vazios-, podemos supor que chegamos
a partículas compleramente sólidas somente para volumes cxnemamente
pequenos. Nesse limite, a força de origem material seria muito grande,
comp;uado ao volume (muito pequeno). Tanto no caso do éter c1uanto

~~~ ·~~~~-

l? Ver ti echo d a qut'.;•áo 21 da Optíca, cicada Jnteriormenu:.


1'k.;anici11110 e din.unismo na ciên<iJ moderna 149

no da matéria, basta, portanto, um pequeno passo para imaginarmos que


chegamos, no limite, a simples cenrros não extensos de força, em vez de
partículas sólidas. w
Portanto, algumas ideias encontradas em Newton foram desenvolvi-
das no sentido de eliminar as panículas (sejam elas de éter ou de matéria) e
afirmar como única realidade um campo de forças. Esse passo parece ter sido
dado por Pricstley:

Logo que os princípios da filosofia newconiJna foram conhecidos, percebeu-


-se quão poucos fenômenos da natureza podem ser atribuídos à matéria sóli-
da, relativamente àqueles arribuídos a poderes, que eram unicamente suposcos
como acompanhando e envolvendo~ partes sólidas da matéria. Afirmou-se
[.. .J que toda a macé1 ia sólida no sistema solar poderia c~ car contida cm uma
casca de noz, tito grande é, proporcionalmence, o espaço vazio no interior da
sub~cância da maior parte dos corpos sólidos. Bem, quando a solidez possui
aparentemente tão pouca função no si~ccm::i, é realmente surpreendente que
não cenha ocorrido mais cedo aos filó~ofos que ralvl.-z ela não tenha absolura-
memc nenhum::i função, e que poderia não existir nada desse tipo na naturc-1.a
(apud Heimann e MLG ui re, 1971, p. 276).

t
'
Antes de Pricsrk y, encontramos concepções análogas cm trabalhos de Ro-
berc Greene e de J. Mitchel, publicados nas primeiras décadas do século XVIII. "

Faraday e a filosofia natural britânica

As linhas de força de faraday são consideradas as antecessoras imedia-


ras da concepção de campo, como desenvolvida por Maxwell. O ºque esses
conceitos expressam de comum é, fundamentalmente, a recusa cm aceitar a
possibilidade de uma ação à di~tância no domínio dos fenômc11os elétricos
e magnéticos. Ambos pretendem responder por uma contiguidade na trans-
missão da ação física.

30
N ewton ainda supunha a cxistê11cia <lt partícul~ sólidas em sua teoria <la macéri:i (ver
lh;ickray, 1981). Ver Heimann e .'\1cGu11c: (1971, pp. 241-2).
3
P•tra l tlll•l disc.ussão especifica1T1enre ck•s proh1 •nas episcernológicos colo~ados pela cradi\ ãu
..
;
d 1 ,1am i~ta britânica, ver Harré (1980). .. -
1:.0 lmag~ns <l~ natur~tJ , 1m.ig.:n< de ciência

Veremos, no capítulo 8, que Faraday adocou uma postura cada VC'L


mais rcalisra com relação às suas linhas de força, chegando ao pomo de con-
siderar a matéria, cm última análise, reduzindo-se a elas.
Em uma carta de 1846, Thoughts on ray-vibrations, Faraday propôs a
ideia de uma unidade fundamental das fo rças da natureza, como que pre-
nunciando a unificação espetacular da óptica e do eletromagnetismo po r Ma-
xwell, alguns anos mais tarde. Como se fundamentasse essa h ipótese, l;araday
argumenta a favor de uma

[ ... ] visão da nacureza da matéria que considera seus átomos últimos como
ct.ncros de força, e não como tantos pequenos corpos envolvidos por forças,
º' corpos sendo considerarlos, em abstrato, independentes das forças e ca-
paLcS de existir sem elas. Nesca úlcima concepção, ~ pequenas partículas
têm uma forma definida e cerro tamanho limitado; na primeira concepção,
c~te 11 10 é o c:c.o, pois aquilo que representa o tamanho pode ser considerado
csrendt>ndo-se a qualquer distância aonde cheguem as linhas de força ela par-
tícul,\; a partícula é, na \'erdade, suposta existir somente através dc.ssas forças,
e onde elas estão, ela est;\. Considerar a matéria nessa perspecciva conduúu-
-rnc, gradualmente, a ver as linhas de força como calvez a sede das vibrações
dos fenômenos radiantes (1839- 1855b, p. 447).

Os escudiosos da obra de Faraday têm divergido a respeito das fontes


cm que ele se inspirou para formular essa teoria da matéria, que é incompa-
cível tanto com o atomismo do programa laplaciano~2 quanto com a hipótese
de um éter elástico, como meio pelo qual se transmitiriam as ações físicas.33

I! Ver ..:apículo 7.
31 1 l.í uma grande polêmica <.m torno da imporcância das ideias de Boscovich neste contexto.
forJday e Pricsdey citam Boscovich como cendo defendido ideias análogas às suas. Will iams
- à frcnre de outros historiadores - apoia-se nessa evidência para defender a ascendência bos·
covichiana das lanhas de força de hmday (ver, e. g .. Williams, 1966). Boscovich desenvolve
uma rcoriJ da m;ttt'ria que tenca um compromi:>So encre os princípios da mccafísict leibni11iana
(como a lei de continuidade) e os princípios da imagem newtoniana ck n:nurc:1.1.. Iloscovich
concehcu todo corpo como constituído por centros de força punciforrne.s. Tais cen1ros seriam
não extensos. meros pontos geométricos, porém indivisíveis e dotados de inérd:t. Uma única
lei de força s~rL1 re~ponsávd por rodos os fenômenos narnrais, indo da coeúo à acrai,:lo gra
vitacional. Hcimann, cm sua crítica a Williams, ressalta que a redução da rn.itéria a forç<is, nJ
teoria da m:m:ria de Farad.Ly, pouco teria a ver com a reoria de Boscovich, cm que os centros
d1.: força constiwem a matéria, j:í que possuem propriedades como a indivisibili<lade, ;1 info.i,1

\
- ~

Mc:cmi<i>mo" Jin•mi<mo no ciência moderna 151

Hcimann defende que as ideias expostas por Paraday na Specu!ation


touching electric condurtion and the 111uure ofmatter ( l 844) são "características
de uma tradição britânica nativa cm fllosofia natural", remontando, de forma
mais direta, a Priesdcy (H eimann, 197 1a, pp. 235-6; J973a, pp. 5-6). D essa
maneira, poderíamos estabelecer uma sugestiva ponte entre o Faraday repre-
sentad o por seus últimos trabalhos e a fllosofla natural de Newcon, inserindo
ambos em uma mesma tradição, que poderíamos chamar de "dinamista".34
Maxwell, embora seja considerado o herdeiro direto da abordagem de
ação contígua no escudo dos fenômenos eletromagnéticos, dificilmente po-
deria ser incluído na tradição que reconstruímos neste capítulo. Ao reintro-
duzir a ideia de um éter mecânico (que Faraday rejeitara), Maxwell se situa
em outra tradição: a dos meios elásticos da óptica, iniciada por Fresncl.3j
Maxwell e os grandes nomes da física brir.in1ca d.1 :.cgunda metade do sécu
lo XIX encontram-se já na confluência entre o nt:wtonianismo continenral,
de fone componente cartesiana (representado por d'Alemberc, Lagrange e
Laplace) e o newtonianismo cspcculatirn britânico do século XVlll. No,
próximos capítulos, trataremos de alguns asp{'ctos das imagens de naturua e
de ciência nesses dois séculos.

~a impenerrabilidade (ver Ht:imann, 1971 a). Isso nfo impede que Bo~covich seja considerado
um dos principai> rcpresem::mtes do chamado ··dinamirn10... Jammer também o inclui ne~sa
tradiç.'io (1957, capírulo 9).
' É interessame registrar que Bréhier, au1or de drios 1r,1balhos hoje clássicos sobre os estoicos,
pt:rccbc analogias entre a reoria cs1oica do i.:on1ato enrrc: doi~ rnrpos que supõe uma imerpc-
netraç:io entre eles - e os "áromos de Far:iday" como centro de forças permeando todo o r,paço
(m Bréhier, J962. pp. 40-4).
»Ver McGuirc (1974, pp. 121-2).

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