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A teoria
da bolsa
da ficção
Ursula K. Le Guin

Digitalizado com CamScanner


A TEO_RIA DA BOLSA DA FICÇÃO
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En1bora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito bra ileiro, a


n-1 edições não segue necessariamente as convenções das in tituiçõe
normativas, pois considera a edição um trab alho de criação que deve
interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de ada
obra publicada.

COORD ENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernande


ASSJ STE NT E EDITORIAL Inês Mendonça
T RADUÇÃO Luciana Chieregati e Vivian Chieregati Costa
REVISÃO Renier Silva e Fernanda Mello
CAPA E PROJET O GRÁFICO Julia Pinto
ILUSTRAÇÕ E S Gê Viana

A reprodução parcial sem fin s lu ' r ativo de ' t livro f ara t b


privado ou coletivo, em qualquer m io, e. t,i ·n1torizada, ks :l_e qu
· da a ront
c1ta r . Se 1or , · a a r ·p1·o du ,10
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t' n aio nquanto es uto a Música e poesia dos Kesh, 1


u1 1 "p \' [qu ] t rá talvez vivido daqui a muito, muito tempo, no
n r da alifi' rnia '. 2 Em 1985, entre dois de seus mais impor-
tant e férteis ensaios, "A Non-Euclidean View of California
a Cold Place to be" (1982) [Uma visão da não euclidiana da
Califórnia como um lugar frio a ser] e "A teoria da bolsa da ficção"
(1986), Ursula K. Le Guin publicava Always Coming Home
[ empre chegando à casa], livro que recusa inscrição simples em
um gênero. Arranjo de poemas, mitos, relatos históricos, narra-
tivas em primeira pessoa, desenhos, mapas, receitas culinárias,
tabela de parentesco e até uma fita cassete contendo música e
poemas, a obra desobedece as fronteiras do romance, mesmo
os de fantasi a e ficção científica. Resiste também ao rótulo de
etnografia imaginária na medida em que não propõe uma iste-
matização ou teoria cosmo- ou antropológica. Le Guin não apre-
senta uma suma Kesh ou de seu mundo, mas, como afirmou em
entrevista, produz "um tipo de celebração" 3 que, conforme indi a
o título da nota de abertura, é composta seguindo o método de
uma "arqueologia do futuro". E, se uma arqueologia lida m
vestígios, a autora precisa colocar- e em íntima r la ão m a

1. Ursula K. Le Guin; T. Barton. Music and Poetry of the Kesh. Freedom to Sp nd,
2018. Vinil.
2. Ursula K. Le Guin. Always Coming Home. Author's Expc nd d EdIt1on. Nov
York: The Library of Am rica, 201 , p. 7.
3. Ursula K. L Guin Franc Co tiky r . " xplorir g Cr t1vity with Ur ui K. L

Guin". Oregon: Portland Or on Community T I vi ion, 1985. Progr m de T .

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l · ,1 t r ,, .l~ re i<l "n ia ' que onvivcu om eu "tio i ndí, ._
n idad frequente obre os qua i escreveri ano m í
: • -I "'111 n aio e onde sua mãe, a escritora Thcodora Kroeber
u I hi in Two Wodds [Ishi em dois mundo l, bi grafia do
· in1 obrevivente Yahi, um subgrupo do povo Yana aniquila lo
urant a orrida do Ouro na Califórnia na segunda met e do
ulo xrx. Uma terra cheia de histórias, incluindo a hi tória d.
""amília de Le Guin.
a músicas e récitas de poema que ouço, há om ambiente:
nitnai vento, água, uma verdadeira paisagem que pre entifi ·a o
fale de a. Esse sons não são uma composição humana. que
e ouve não é o resultado de uma hábil junção de faixa retirad·L
de biblioteca de efeitos, tampouco sons captado m iver
iu are diferentes, mas uma performance da 'grand orqu tr-l d~
naturezan - para usar a expressão de Bernie Krau e - n nt rn
da ca a de Le Guin, aquela lo alidade qu · a aut r l i1nagi n u
Curura r teri amente habitada por g nt K h: "1rat,l- J u, 1a
Iara ão a respei o do aminho qu u g st.ui,l qu as · 1 :1
riH ~rn, m ert) entid . l • tuna ".l ·}o :i ~t • p

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\Ia ·strut ur: { · gu ·1-ra ·m fa or da"' stc'>ria da vida,

1u~i. i > l · ha\'er onílit , mas cn1 qu · ·st não -: o cl ·m ·nto


l rin ·ii= ~ 1. I~~n1 j >r >. portanto, nao · tá ·impl · ·1nente on •údo
11 a o n ·to l . ua Ht -ratura bol eira nao ad re , o paradi rml
da Hist , ria ' m onquista e teleologia, ma à e tória em t m
I 1 nor. En1 19 7, Guimarães Ro a abria o primeiro prefácio de
Tufam ia "AI tria h rmen "utica", asseverando algo no me m
t 1n: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser
ntra a História." 6 Para ambos o e critores, a fabulação é um
pr e dimento de alargamento imaginativo, um salto no imprevi-
ível abismo da possibilidade estórica. Para usar palavras de uma
grande admiradora de Le Guin, a filósofa Donna Haraway, e a
teoria escapa ao mito da Terra dando à luz o Homem, que tem por
destino a destruição de sua mãe. Ela, portanto, abandona os signos
ligados a tal tradição - "paus e lanças e espadas [...], coisas para
esmagar e espetar e bater, as longas coisas duras" - e se abre como
"uma folha uma cabaça uma concha uma rede uma mochila uma
sacola uma cesta uma garrafa um pote uma caixa um frasco". Uma
cesta pode conter uma lança, obviamente. Mas aí é outra e tória.
Em "The Critics, the Monsters and the Fanta i t ' (2007)
[Os críticos, os monstros e os fantasistas], Le Guin faz uma defe a
não apenas da fantasia, mas da impureza do g"n ro literári
(A baleia de Moby Dick é uma criatura fantá ti a? A de cri ·ã d
pensamento de um ão em Guerra e paz torna o r rnan
reali ta? O quão rec nte é, de fato, o r ali 1no enquant
A autora, ao sustentar a n e idad da ria ã d n1 lhorc -Li. -
ificaçõ , explica:

A fi ,·ão r alista ~ impla av lmcnt · fo ·ada no l'l lllf ú1 t ·tm •nr


p i •ologh humano . ' srudo pr pri fo hu,nani l.1 h.: e. l)

e. João Guimar Ro . Tutam la (7i r


José Olymplo Editora, 1967, p. 3.

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a 1 .11 L1 l ~ua antropo entri mo, a fanta ia, parí:1 ora.7

a a 01no aquela de N apa Valley em que pa ou O ver-


l 1 fa1nília, Le G uin disse ao antropólogo Jame Clifford e
H ra, ay é também "um contêiner, uma cesta, a coi a que co ém
j · . D iferentemente do castelo, reino do soberano, ou da· l ·a
e departamento, sem janelas e portanto impermeávei a
ão e mo "outras peles ou corpos". Estão ligada à dona
a a. "Casas são lugares que albergam vidas."8 O primeiro p cm
do álbu m Kesh é falado pela "poeta, a filha de Gi.ver Ire.' .
liner notes, lemos que a performance foi gravada à beira d ri h
inshan, portanto sua voz é acompanhada pela mú i ·a da ;g
corrente e de uma coruja. Podemos reconhe er , v z hum 111
e m endo a de Le Guin.
Always Coming Home não e pa a em un11nuni > P~ - f -
a)i ti o, mas "anti-pós-apo alípti o". 9 ' Li ,r p l ·-holü · m r
i rai ", cntcn iaria sua aut ra p u · .1nt ·~ d l· n · 111 nt ·
nd a teoria b 1 ira, o p, ·-aF o·, lif-. 11 lit ·rllur·t i

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d l m1 ·m, l 11 ·101. 1 ·sistir ,H ~ ·u "triun o" e à sua "tragédi'"
l • .. · t i'l, :is. im po1 01111 r · ·n kr qu, unao h' v 'fá piqu ·nique
l ·1 i pit • l urnl a air, m, há trilhas alternativas a scguir". 10
1ll ·srno uma ar 1u ·ologia do futuro estaria ligada, em
·ósmi ·o ao prc , nt orno proccs ' O cm fim de azcr
mund mant ndo -os vivos ao realizar passagens, continuidade
s ntinuidade . Os primeiros habitantes do vale caminharam
m pé leves. Seus vestígios, aqueles encontráveis, tendem
a retornar à terra. Terá sido assim também com os Kesh. Ouvir
o u urro do futuro envolve, portanto, uma adesão total à terra
e ao presente:

A única maneira de encontrá-los [os Kesh] que posso imaginar,


a única arqueologia que pode ser prática, é a seguinte: pegue seu
filho ou sua filha ou neto ou neta nos braços, um jovem bebê
de menos de um ano, e desça pelos campos de aveia selvagem
depois do celeiro. Fique de pé sob o carvalho na última enco ta
do morro, de frente para o riacho. Mantenha-se em ilêncio.
Talvez o bebê veja algo ou ouça uma voz ou fale com alguém lá
a]guém de casa.11

i rid a ~
Os Kesh, povo celebrado no livro, não terão br
escombros do capitalü,mo (e do Antropo n ), n1a 'ultrapa -
ado", conforme Lc Guín explicou a liff rd Han a .
ido s us obreviv nt s viv ·ndo 1n d tr r 1na · .
contrário, terão sido eus uperviventcs n·1 medida cm que s ubc -
r m orno fa½ ·r as tran ·mi sõ ·s g ra ·ionais. 'e t~1n a· •ss a un1
j t ma d tro a int rp1an · ári d i1 f rmiH,·ã infinit:un n 1.11.

va t< qu · a ln l~x hang la Partilha], t ·-l -fü u


or r Ha ah si lad . 'ua ·ul sist 'lll'l'\ 'OllH 'a \i:

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a , ~10 qu · e pod · traçar p lo rastro de· veia •lva, 1


rns nn o e uin ·onvcrtc que em celebra ã
111 m 'todo na outra. Essa nã é ncn hum a hipó e e i ,i-

. l q teoria .. ' é u rn dos seis en aios que compõem


lume da olc ã da J,ibrary oJAmerica dedicado ao romance (n
·a ta e ·l · açõe melhores ... ), diretamente conectado a ele.
iu o ra tr nos leva até "A Non-Euclidean View of aliforni
, a old Pla e to Be", no qual a escritora revela preferir, de d
infân ia, remeter o ouro presente no apelido da Califórnia, "e tad
dourado", nã ao metal canibal que arrasou as populações d
ti indígena , mas à cor dos campos de papoulas e aveia · e ·
o en aio, fruto de uma conferência em homenagem ao pro
eórico da literatura Robert C. Elliott, Le Guin di ute 0
de utopia, ituando-o já fora da estória matadora. Em ·t ."
ofUtopia (1970) [A forma da utopia], Elliott u tentava qu · a ut P1
qu nt gênero literário ganhara má reputaçã d ·vi o ~~
nocídios do século xx. un amai ta

eria capaz d riar uma utopia · rn a ·o


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· az nd "d ab urd a m
1~ ntra e a figura no a au r
ter p r ex elência em muitas co m lo ia in
érn de erem o habitante oriainár· e
ha amo méri a nem Coiote nem povo indí en fi . ,
i reram pre ente à cena da Qi da do Éden.
tória de trickster ão, como lemo na' Te ria d b
un do tipo da e tórias da vida. o onto Bu 1
n ou om Out Tonight' (1987) [Mana bu lin ,
m ta noite?], uma menininha, M ra úni brc
um acid n e aér o, é alva por Coiote, qu a 1 va p~ r,
p rt ind não de a tada p la ment u lidi
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1 v ndo n :-. e' v rc l , d e-:
na T ou ·oisa a si1n?"
.1 • disL oiote. r...] " ntão, para mim, VO êéh "m n
amar lo a inze ntada e corre em quatro perna . P· ra aq 1el
e oal - ela a enou desdenhosamente para o amon o d
a inha ao fundo da olina - "você salta o tempo t do com e a -
mo n nariz. Para Falcão, vo ê é um ovo, ou e tá talvez de n-
olvend sua primeiras penas. stá vendo? Depende pena <l
orno você olha as coisas. Há apenas dois tipos de pe ·oas.'
"Humano e animais?,,
" ão. O tipo de pessoa que diz: 'Há dois tipo de pe · oa ' · 1p
que não diz". A coiote deu uma gargalhada, baten o na
ritando de alegria com sua piada. 15

a ri de Le Guin, Coiote mulher, qu já l u :\ l 1z n uic.


i h da , ' a1nb ' m a riadora de t do paí h u ·1 ·
r e· zido e am açad p h g nt -
f q 11 , p s 111 lua. • a an ·an
t'1nl ,n1 i1np '\ · , , l·n
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· n i Ll l or sua família ·,rtra hlllnana, por ali ·u1 a ar ·tornar


1.:11
p,n,1 , u, l · i~ p Jr filiaçc o. Volta transformada, ·ntr ·tanto: con1
um <l ), olh )S 1 r li 1 ) no a i lcnt ·, sub ·tituí<lo por um novo. l m
lhe , fi ·a a dúvida, qu p d ter pcrtcn id a oiote ...
a ria te1ncrário on Juir que a visão nã eu li<l iana
, o po, í el co11 o a oplarnento de pelo menos um olho oiote.
0111 nte e e i tema óptico poderia conceber um tipo de utopia Yin,
" ombria, únüda, obscura, fraca, doadora, passiva, participatória,
·ircular, í ·lica, pacífica, nutriz, retirante, que se contrai e é fria,,, 17
por diferença ao legado tradicional das utopias, de tendência Yang,
isto é "luminoso, seco, claro, forte, firme, ativo, agressivo, linear,
progressivo, criativo, expansivo, que avança e é quente.,, 18 Esses são
também alguns dos traços que caracterizam o país de Coiote e o país
da gente nova; o mundo da bomba e o mundo dos Kesh; a estória
da Ascensão do Homem e a estória da vida. Ainda que Yin e Yang
sejam processo e jamais estase, como a própria Le Guin afirmaria
em mais de uma ocasião, o excesso de Yang atualmente na Terra,
para ela, exige uma injeção de Yin. Processo, bem entendido, nã
deve se confundir com dialética: se Lévi-Strauss, em 'O an1po
da antropologia" (1959), pôde sonhar com um mundo no qu 1
trabalho humano seria terceirizado para máquina , L Guin já havi
lido ficção científica demais para saber que e e ra un1 t ma atí-
rico. Levado a sério, não seria nada além d 1nai u1n pa para.
historicização daquele antigo mito triunfant trági o. Un1 n1und
que realmente não aqu ça at' no zinhar a t do nã prc i 'a l
techno_.fixes; pre isa d mai . oiote .
Uma das faixas mais bonitas l MIÍsica •poesi 1 do · A ··b
é "111c Qyai 1 ong" [A an ã da · ld rna] pn nll: 1n. l t.: nrn
apre ·n do ~rn Alway1 ,ioming 1-Jomt•. s lin.,. notcS Lh nt ·1
de que s • trata " la n1üsica rnais anti 1·a". ~us v rs l · at t;un:
" ehochan arn na/ paradt u11 a 111 na/ f' ·l ) · ht un ~ll 1 n·,/ pac bn

17. L Guin, Alwoy C mln J.lom , .•. 71 .


18. lbid., p. 713.

o com CamScanner
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,,and' (1 ) [ nda
1r e de riaçã da e t' ri v h.
r 1 a ã intele tual a ituava em 1ma e r
11it de matriz gre o-romana que não lhe
1 nt adequado ela primeiramente e t rnou

n a, indí na . ão foi nada fácil. Tampouc er


i 11 t mar de a alto co mologia de outro pov .
; r n eu om ele por ua vez, foi que aquela terra n
.u nte futuropretérita não é nova nem fi i
1 >u também a orno alargar sua imaginação e a uvir
• 1 e e enqu dramento que pôde, finalmente, cn · r

1: .. u i que começar com o lugar. [...] O povo ·n r


o que perten ia àquele lugar':

u eriam a hi tória daqu 1 lugL r,


ntid daquele lugar, ua
nã lut,

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l· a lit ·1atur:,, <>s111i 11ao .., · csq 11en.· 1:i 111pow o cl,, 'li.
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a >11 ' ·r a om lifford · J Iarawa , [, · (; uin ao s 8 ,111 0 ,


1 • ·lou 1u · h,1via "1110111 ·ntos t:m que eu "inlo orn o ..,e as p:i rt 's

f mim qu • sao 1 · Ira >u estrela ou poeira qui ·cs"i cm vol tar ...
uisc"i 111 altar a s r o qu são." Ao fazer ess a afirmaçao a
s ritora introduziu não apenas a questão da intercone tividad e
onstituti,·a do que exi te, mas também a da pequenez da mente
hu1nana, me mo a melhor equipada, para lidar com o problema
da temporalidades. Se "alguém é quase uma concatenação aciden-
tal de um monte de coisas se reunindo e se tornando uma entidade
por um período", é preciso também respeitar a dignidade da
pedras, entidades com histórias e estórias mais antigas que nós e
que certamente perdurarão para além de nós. O que guarda, afinal,
a bolsa das estrelas?
Admiradora confessa de Lucrécio, Le Guin escreveu, a eu
respeito, em "Cheek by Jowl: Animals in Children Literature"
(2004) [Lado a lado: animais na literatura infantil]:

Em seu grande poema Da natureza das coisas, Lucrécio não via


nenhuma barreira entre o homem e o resto da cria ão; ele via
0 mundo não humano como a matriz na qual a humanidade

é formada e alimentada, à qual pertencemos como a granada


pertence à rocha na qual ela se cristalizou, à qual voltar m
assim como a onda iluminada pelo sol retorna a mar. 10

osso problema, ao qual a autora ofer e u inumeráv i saída na


forma da contingência cstórica, jaz cn1 sabcrrno o qu 's · lhe r
ne e pequeno intervalo: o ·aminho do h rói ou o ·~uninh 1 b
vida. A· oi as de matar ou as coi as de pôr ·oisa · l ntn .

20. L Guin, Ch k by Jowl, op. cl ., p. 4 ,

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n d oi d fi ao

r ~1 t m1 ·ra<las tr pi a1 ndc, ao que tu lo in i , , o


l ' · hnram tara serc humanos, principal alimento
r.\ ,. 'h tal. De e enta e cinco a oitenta por cento que
hu n1a n - · 1niam n a regiõe durante o P lcolíti o o
' <- perí d pr ' -hi tóri o era coletado; apenas no extrem

ra o alim nto-ba e. Os caçadore de 1namute


ularn1ente a paredes das caverna e a men e
nu.. lº r alin nte fizemo para no manter vivo e de barrio-
h i·1 K i 1 tar 1nentes, raízes, broto , rebento , folha noz .
a~a · 1 fruto grão , além de insetos e molu co a im m
· f tur-ir a,· · p iJ e ratos, coelho e outro pequeno anim, i
in fe·o para au1nentar a quantidade de proteína . E n _ n m
1 1 n1 trabalhan10 muito nisso - muito men que o. , n ·-
ra\Ízad na plantaç-e de outro d pai qu a ·1 riLtiltur
i in , nt. da muito meno que o trabalhador pí. d 1u
ã >f i in cntada. pe s ,\ pr, -hi tóri ·., 111 lian 1 > li-1
1 )lil1 • r a d, 1uinz h rn d· trabalh s m. nal.

uinz hora por s ·n1an·1 para a subsist ·n ·ia l i. a .1 r.u r


> l, r.l ut1a i as. 'I anto t 1111 <. 1u ·, t,1lv ·z, t in 1ui
1i1 h, 111 u1n h ·h· por p ·rt Iara ,tni111ar n ,i ln. ui.li
>1 tru i 1 ozi 1 hai ou ··uuar l u p ·n ·t m 1th

t p. : P-11 a1, l ·111 am 1• ·i li lo •s 11 ,li • \ t . r 1 1


l ilid , t , \! i 1 •s \ l>lta1 i~llll ·nt·t unh d llH
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l l i • ut1.1 ' l'f 11s utra, d 'I e is o 1trn, • t -1 oi •o Li


· 111 squit ol <li, s' al TO ·ngra ado, • nó
,l ria ·ho ' b ·b 111 , ·ua á ua · oh rvamos salarn~1ndra

r l 111 t t11f , • ·ntã cn · ntr ·i outr grã de av ·ia... ão, não


• 1 1p· ra nà p d · n1p tir rn a fonna orno cnfi ia minha
lan -. Fr fundi 1 t 1 , qu 1 titânico tó ax peludo enquanto
1 palad p r un1a pr a enorme e arrebatadora, retorceu-se
u piu angue por todo os lados em torrentes escarlates,
b vir u g leia quando o mamute caiu sobre ele no momento
111 u atirei minha flecha infalível diretamente em seu cérebro

atrav ' do olho.


E a e tória não só tem Ação, como tem um Herói. Heróis
ão poderosos. Antes que você se dê conta, os homens e mulheres
no ampo de aveia selvagem e seus filhos e as habilidades dos cons-
trutores e os pensamentos dos pensadores e as canções dos cantores
fazem todos parte daquela estória, foram todos colocados a serviço
do conto do Herói. Mas esta não é a estória deles. É a dele.
Enquanto elaborava o livro que se tornaria Três Guinéus,
Virginia Woolf escreveu um cabeçalho em seu caderno: "Glossário";
ela havia pensado em reinventar o inglês de acordo com um novo
lano, a fim de contar uma estória diferente. Um do verbete '
de te glossário é heroísmo, definido co1no "botuli mo". E herói,
no dicionário de Woolf, é "garrafa". O herói como garrafa, uma
revi ão pungente. Eu agora proponho a garrafa c01no herói.
ão apenas a garrafa de gin ou vinho, 1na a garr, fano s u
ntido mais ancestral e abrang nt de r ipient m geral, uma
oi a que ontém outra oisa.
v cê não t m algo para a colocar d ·ntro, a ·omida ·:1-
p rá d v ê - m smo algo tão indefc o e ·m r curso m um:1
a' ·ia. ê oloc:a o máxin10 que ·ons , u · no ·stômagt1 nqu·1nrll
e tao a mão, s 1H.lo •ss o r ·ii i •nt · pri m:ít io; llltlS '
amai hã e n anl ã quando vo ... a ·or hu , ti r fri l e ·lw '' 11 lo.
nã cria l orn t ·r aJgun punhado l av •ia I ara masti rar lar
ª pcqucr a om J ara f: 'l."'-h alar, omo vt. · pod ·ri.1 t r c.:ni

canner
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la uma a 1 1J • um
m nt ·nt r.

a ara ulturalf iprova ·lm n umr 1p1 n


eorizam qu a primeiras inven ·õ ·s ul urai
1 < u 11 rc 1p1en par. guardar pr dut) 1 tad
'I d arr ra or u tranp rtadH ·m f rma<l· r l.

qu li'l l~.Jiz.ab th I~i h ·r na ríartio da Mulh r


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randc 1 dura, um , ·reio ·u
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p r ter meti l o I ri n ·
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l uman '· ' · nta) afinal eu ) 1 humclí
· m nte al pct pri meira vez.
ã uma hurn na p u o u ou on b, iv
u i o fiqu laro. Eu ou u1 a mulh r nvelh ~i la e z.in~ L ,
imp ndo-me om a minha b l a lutan o bandi o .
no entant , nem eu n m ningu ' m me i er i a p )f
az r i o. É apena uma daqu la maldita i a, qu' tê q ·
r fei a para e poder ontinuar 1 t nd avc i
ontando e tórias.
É a e tória qu faz a diferença. É a e tória qu u e
tmu-
im minha humanidade, a e t 'ria que o
ntaram obre e magar, empurrar, e tuprar, mati.lr >hr · )
· i. A maravilho a e veneno a e tória d B tuli m

pare qu a 1a ta ,1pr
qu haj, 1nai st ' ri·1s ·1 ·e. nt•lf · l
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d ' 1clt , · l L : · ·r, s para ontr lar u impul o in ontrol::ívcl de
1 1·1t·1 ·. , , in1 Hcr ' i d r tou através de eu p rta-vozec,,
cri, bd rc, primeir , que a forma adequada da narrativa é a d
fi ''ha u lan 'ª omeçando aqui e indo direto em linha reta e p ' !.
atingind eu alvo (que cai morto); segundo, que a preocupação
, ntral da narrativa, incluindo o romance, é o conflito; e terceiro,
qu a e tória não pode ser boa se ele, o Herói, não estiver nela.
Eu discordo de tudo isto. Eu iria mais longe e diria que ,
fonna natural, apropriada e adequada do romance pode ser aquela
de uma sacola, de uma bolsa. Um livro guarda palavras. Palavra
uardam coisas. Carregam sentidos. Um romance é um patu '
guardando coisas numa relação particular e podero a uma, com
as outras e conosco.
Uma relação entre os elementos do romance pod muit
bem ser a do conflito, mas a redução da narrativa ao e n it ·
absurda. (Eu li um manual de escrita que dizia: 'U111a stóri·1
deve ser vista como uma batalha", e falava de e traté i'l , ·uaqu .
itórias etc.) Conflito, competição, estre e, luta t '. ntro a
narrativa e ncebida como bolsa/barriga/'. a· a~'ª ·a/patua, PL i m
r vi ·tos como lcmentos ne e ário d u1n t r · ·
n:-- pod er a rizado n ·n1 • )111 nflit n 111 h: -
nia já ue seu propósito nã ' n 111 ·olu ·.1
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u l .l ln n ntand o t m1 de outro m n o, · o r: ni
d ·omeç em m, de iniciaç- e , de p la
nn e tradu - e , e muito mai artimanha do ue
- 1nuit meno triunfos do que armadilha e delír. e •
l i d na e e paciais que ficam presas, missões que fal m, e
.· a qu não entendem. Eu disse que era difícil contar uma
, ia fa inante sobre como extraímos as aveias selvagens de ua
a a , não disse que era impossível. Qyem disse que e crever um
rnance era fácil?
e a ficção científica é a mitologia da tecnologia mod rn ..
en ão o eu mito é trágico. "Tecnologia", ou "ciência moderna" (utili-
zando e tas palavras como elas geralmente são usada , ou j · m
uma atenuação irrefletida para a ciência "dura' e a t nol ia
nta fundadas no crescimento econômico ontínu ) , un1 ~n1pr n-
dº nto heroico, Hercúleo, Prometeico, con ebido m um t u ~
r anto, em última instância, como uma tra dia.
t mito será, e tem sido, riunfant ( H 111 1
lienígena , a mort
u to, n ã ou ag )ra).
ita 111 ) l
in·) - l< ri '
s n lo fu n l· 11

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l ria111 ·nt · e n bi la
. ,
1u ' , '}l ' 11 n,1 man r
"' nd que a pe a real e
n p as e rela ionam e m u
n"' ta barriga do universo, neste ventre da e
r n ta tumba de coisas que foram, ne ta e , r· a
m em toda ficção, há espaço ufi iente p r
111 m o Homem onde ele deveria estar, no eu lu

n a da ~oi a ; há tempo suficiente para coletar


ao- m para semeá-la também, e cantar para o pequ n
u ir a piada de Ool, e observar salamandra e
, ria não haverá acabado. Ainda há semente par
a e e paço na bolsa das estrelas.

o com CamScanner
Posf, 10
l

ra urna noite quente de primavera e n ' - n d i rn -


u - obre a grama alta atrá de Flower \ alk. Eu lev
7l e Golden Treasury. brio livro e ome-ei a ler aJo-um
E in tantaneamente e pela primeira vez eu o ompreen
era e queci). Foi corno e o poema tive e ~e tornado om
mente inteligível; experimentei a en a, ão de tran p ên i n
palavras, quando elas cessam de er pafa,,ra e intcn · .-
de tal maneira que podemos ivenciá-las· pare-emo p
como se expressassem aquilo que já e tamo en in o. Fi
tão espantada que tentei explicar a en a ão. 1 , ir!rini o 1f.

A estória não lida não é uma estória; ão pequ n : m, r' .


na polpa da madeira. O leitor, lendo-a, fá-la h· r: um
uma estória. 2 Ursula K. Le Guin.

lf. Ui o p

K. otth

o com CamScanner
2

s ir con, um acola na m o. 1

F, 1:, j, n .ri. 11 t l .' unrn . nrn.na tJtP e. tá amo tr 1n do


1 · , ~. H .,u), 111 "llt ·ndnr 1 \,n o l)ll viria a era no. a
11 .

~ r d ➔ J 1 . 1 róxin1c . dl L n1 • e rncio tnais ou meno . tf'J


ia· locl.◄dM n l e t conta da pandemia do oronavíru· no Paí
n1 m Lr - d 2020. ão podíamos sair na rua, a não er
, UJ rn1 r ado. Havia polícia por todo os lado e não
rri · ar ton1ar uma n1ulta de 600€ por estar "pa seando
._ tado de en1ergência. Claro que encontrávamo no a
n n ir dar rnna volta ao ar livre no parque que temos ao lado
, " ·a, u de ir ao upcrmcrcado que ficava um pouco afa ·tado,
, r p der aminhar alguns metros 1nais. Apesar de seguir à ris a
· .- r" lmendaç- e anitárias e obedecer a todas as regras impo ta
p ~1, rrovcrn e panhol, a necessidade do espaço exterior, do corpo
ucrer mexer e de poder testemunhar o que estava acontecendo
t o ra no obrigou a criar estratégias para estar na rua por pelo
n no quinze minutos ao dia.
ma de sas estratégias, da qual demoramos quase dua .
. ·n ana para nos dar conta, mas que intuitivamente já estava
a < nt ndo de de o pri1neiro dia trancados, era pegar uma
. , 1b b l a aco mochila e sair atuando como se fôramo ao
. UJ nn r ado. I o eria indicativo de que você estaria indo ou
ir d . 1nida. Isso seria indicativo de que você estaria
1 un trân it n e ário entre uma loja e sua ca a. E e ge t

para 1 • • r- indi ativo de que cstávan10 nu,n tnln ito nece ..


. · ri d viver. Poder er, estar na e habitar a rua nc ·e ·i ~nen
t p ·l p· n len1ia e pda n1cdidas governa1nent., i qu
• i· 11 ·, u · , 111 l dei áva n10 · de que ·tionar. Unia nec ~ · ·i la t
s t · r . 1 t ·nd -r • · rn10 . capa~c , ·le faz er unl dia ,nó ti~) IJ
r ·· H d I ar: (JU 111 ~ab , ··riar e ·tnu 'Mia I iln · t ~ \' - '
J_.
r l (" t·' Ji• •tu u o ·01u nt aqu la-- 1u ~ n ) . rnn
1 · · a.Jad .•r· t 1 ·t ·anunhar • p~ua i · · .am -
, ·o! ·tor • ·.

...............
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27

Foi n ·. ~. 1 ·rfodo qn. oh ·i a 1·r, urna ·z rnai t to


t ;\ 'n ·ia 1<l ' U1. \1 1n K. L · Guin; 1h , ar ri . r Ba , ·Jh O r ,
14

r, ·til•1l . otn ) ·ra ' os ív ·l un1 t' lo que foi ' rito m 1986 ~ r
tao l.:Ollt ·•11.r lf;\ nc? e nc 'C.'S;íriu otno st • orno r P' ív 1 ._-1.

que ele ~stncsse falando ornigo agora, hoje, e que u p l _


, ra " ·e hzcs ~cn, tão fnti1nas, tão ·Iara , tã urgente ? Dur n
e e intervalo etn que o ten1po estava u pen o, tr b Ih . e
en ontros pausados, decidi traduzir esse texto para o portu uê e
o espanhol para que o maior número possível de pe a pude e
lê-lo, principalmente na América do Sul.
Então um dia peguei minha sacola e fiz a rota do Parque
Etxebarria até a frutaria pequenina no Casco Viejo de Bilbao e
decidi naquela mesma tarde escrever à minha irmã e amiga Vivian
e convidá-la a traduzir o texto comigo. A Vivian é hi toriadora.
Estuda arquivo. Ela é incrível. E eu decidi convidá-la para traduzir
comigo o texto como uma maneira de vivermos uma avennua junta ,
de podermos passar algum tempo pensando com Ursufa, que e tava
na família havia alguns anos. Eu também quis fazê-lo cm dedi a-
tória à nossa mãe Alice, que nos ensinou a amar a ficção cicntífi a
e que sempre nos contou outras estórias, que não a do herói. E p r
último, quis fazê-lo em honra à própria Ursula que uma z di
em entrevista a Claire L. Evans acerca de seus texto :

Quero que estejam acessíveis, quero edições em papd b , tH :.i-.,


quero que sejam baixados continuamente em quarenr lin u
diferente , quero que sejam lidos, quero 1u ·c·am lii 'i ·uriJ ,
quero que a pes oas chorem sobre ele , quero di ·rna,· - il ' -
\' j e crita obre eles, quero llll a pe >as · i.m Jlu m · m. 1
J
quero que as pe _·oa o am m .

. T, _d . . o n n . No orJ9in .1: •1 w nt th m t ) b -
nt U m co t) , tínu >1 ly I'

t gu ,J
.dl ,t t n IH n · l ut lh _m I nt
to rv o rU f , 1 · _nt um

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Cheguei cnl ca a1 d~, ci a sa ·ola na ozinha " -. ·revi pra Vi.
Ela t 1pou.

A ravessar Portais

Tr!\ luz.ir un1 texto requer que esse texto seja lido repetida vcze ,
t.u1to na língua original quanto na língua traduzida. Com o pas ar
.d o ten1po e na continuidade do trabalho de colaboração com Vivian
(para a tradução ao português) e com Ibon (para a tradução ao espa-
nhol) ler "A teoria da bolsa da ficção" se tornou uma prática qua e
diária - ler uma e outra vez o texto. Ler de novo esse parágrafo,
con1pará-lo com o inglês e reescrevê-lo em português, em espanhol.
Tomar decisões sobre quais termos usar nessas outras línguas para
que mantivessem o sentido e o tom do texto original. Entrar cada
vez mais em cada aspecto e cada nuance. Investigar um conceito e
continuar atravessando as portas que o texto propunha. Ir encon-
trando companhias humanas, não humanas, literárias e ficcionais.
Ler o texto diariamente se transformou em uma prática de imersão
,e em uma.espécie de chave, que ia me abrindo cada vez mais portais
que ampliavam a geografia e mudavam constantemente a topogra-
fia das paisagens que se apresentavam para mim a cada leitura. A
"teoria da bolsa da ficção" é o que eu chamo de "um texto portal".
PORTAL_ A imediata mudança de perspectiva em relação à
história da humanidade é um dos primeiros portais a atraves ar.
D,e cara, Ursula propõe um giro central ao desenvolvin1ento de
eu argumento, partindo da história do Herói, que ten1 olno
protagonista a cultura ocidental baseada na invenção de uma arma
de dominação masculina que serve para n1at,u, contrnpondt rnl
hj tófia (ou re-dimensionando-a em paralelo) à estórh, las ·ul 't · -
ra ..-recolhc:.doras que tem con10 protagonism a bolsa, Ess ~iru é

people to gei · ngry with th. m, 1want peopJo to lov th m.• R f r frl i ntr
<htt.p ://www.více,com/ n/ rticta/wjp3 q/ur ui .. l( .. I .. 9uin.-ob tu ry .

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29

un1a ab rtu Ia a UllH\ r ·' rita de pas.-~•do , da r ta ú.


pa a ~o 1 de 1 t li ir 0111 1 p, ·~ ·1u · • 01n O futuro lad, qu . ,t
iees 11ta rcdahornçao e fc on '.'ão ·01n nutro.' J a.. a ln no l;i a
p r ·pção d qual presente estan1os a viv 'r, ·on1 quai. rrt rn óri-t
e. t~ 1.n o · conectadas e con1 que rclaçõc , fazc1nos rnundo: .
O que Ursula t ropõe é u,n cxcr ício de imagina ão • e r -
e 1h,ção re\olucionário por ignorar o imaginário da ultur~ fal J-

cêntrica e sua linear narrativa do herói, e sugerir cm eu lugar, e


con1 a tecnologia que é a bolsa, um gesto que recebe, recolhe e
ajunta a energia para trazê-la com cuidado a casa, para cr uar-
dada e con1partilhada. Um exercício, portanto, que invoca nova~
pos íveis configurações às narrativas, romances, estória · que quere-
mos contar e que decidimos escutar.
Esse giro, Ursula faz juntamente a Elizabcth Fishcr, para
quem "o primeiro aparato cultural foi provavelmente um recipiente
para guardar produtos recolhidos ou um transportador em fc rma
de rede". Aqui reconhecemos uma aliança entre as dua autora ,
na proposta de um entendimento de cultura que não priori~a ~ ua
origem e elaboração a partir de objetos longos e duros, ma im a
partir do gesto de colocar uma coisa dentro de outra coi a, a partir
de um gesto de receber. É nessa mudança de perspectiva e açã <l
gesto que ,e stá a maior força do texto. É na irnagem da on ·ha e
não da lança que a narrativa se reinventa.
PORTAL_ Seguindo pelo texto, chcgan10s à rcforência a um
verbete criado por Virginia Woolf ao planejar o livro ,1u • ·i a
. er 1ris ,Guínlus e que, junta1nente a outro. verl ·t •, , intc r )tl llln
p rti ui r glo ário elaborado pela autora.

Um d, Ili \fcrbete de cc glo · árío • h ·roí m ,, d ·füü t , · 1m ., .. h m


H J, Q". ~ h rói no di ·ionári 1 J Wo ,tf ,· rrafo". O h ·1 ·•i · 11u
g rr fa. u,n~ f vi _e pun~ ·1H • f·,u a'ºº 1 °p 111h) ·, t ~ . t . f,L
mo h róL•

4. Ver n t Hvro .p. io.


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30

o botulisino ~ uma (onna de intoxicação alimentar mais comu-


inent :1ssodada ao cn.lata1ncnto de alimentos. O mundo anaeró-
bico dentr da lata pode encorajar o crescimento de bactérias
Clostridium botuli11um produtoras de toxinas. Anna Tsing, Heather
Anne Sw·anson, Elaine Gan e Nils Bubandt na introdução de seu
livro Arts ofLiving 011 a Damaged Plane!: Ghosts and Monsters ofthe
A11 thropocene5 a1npliam o entendimento do herói como botulismo
ao explicar que:

A lata de alumínio, uma invenção de meados do século xx, é


um ícone apropriado da civilização moderna e da distribuição
industrial. O botulismo na lata é igualmente um ícone das mons-
truosidades do Antropoceno. Tal como a contaminação radioativa
e a proliferação de piolhos do mar, o botulismo é produzido a
partir do âmago da modernidade. Heroísmo - a linha da história
do progresso moderno - é assim legível, de facto, como botulismo.
Vivabilidade no Antropoceno é ameaçada justamente por essas
linhas heroicas da história e práticas que são pensadas para tornar
o Homem grande. 6

E em seguida se perguntam e respondem:

Existem alternativas ao heroísmo/botulismo? O ensaio de


Le Guin sugere "bolsas de transporte" como outra forma de
contar uma história. Coletar oferece histórias com arcos de
temporalidade mais complexos, argumenta; em vez de um
herói sozinho a fazer o futuro, há entrelaçan1entos e prejuízos
de muitos tipos.7

5•Anna Lowenhau t T I EI
· P ng, olno Gon, Heothor· Anno Swonson, Nlls Bubnnt. Art
·of Llvlng on ,a Oomo9ed Planot: Gho ts and Monster of the Anthropoc n . 201 7.
6, lbld,, p. 9.
7. tbld., p, 10.

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31

E_sse_ s:gundo portal aberto pelo texto nos convida ent.1o a visitar
Virg1n1a Woolf e Três Guinéus propondo tamb, . d' -
, em uma I reçto
para essa deriva que vai ao encontro de Anna r-r51•ng e J .'
_ . 1: suas co egas
n_a relaçao da Teoria da bolsa da ficção com a era geológica que
Vivemos na contemporaneidade, o Antropoceno. Foi no texto de
Anna Tsing que pude entender melhor a referência de Ursula
a Virginia Woolf e a sua peculiar proposta do botulismo como
herói. Pensar o Herói como garrafa nos abre às possibilidades
de especulação com insights que têm uma importância particular
quando pensam~s na construção de narrativas no Antropoceno.
PORTAL_ E também nesse momento que Ursula nos apre-
senta o que entendo como o terceiro portal aberto por seu texto, o
conceito, im~gem e processo do "medicine bundle". O "medicine
bundle" é uma bolsinha feita normalmente de tecido especial e
com um significado espiritual, levando dentro uma coleção de
objetos mágico-sagrados (que podem ser pedras, sementes, ervas,
plantas, pequenos ossos de animais) e usada por algumas popula-
ções indígenas da América do Norte. Sendo uma "bolsinha" que
carrega elementos considerados mágico-sagrados, ganha uma
característica de amuleto e tem uma importância central como
objeto em muitas culturas não ocidentais.
Durante o processo de tradução estivemos bastante ocupa-
das com qual seria o termo ou a palavra que pudesse, em português,
carregar consigo um sentido similar ao sentido que o conceito
carrega em inglês. Decidimos trabalhar com "patuá" como
conceito, imagem e processo que tentasse dar conta do "medi-
cine bundle".
O patuá parece ter sua origem etimológica no Tupi, desig-
nando um tipo de cesta feita com folhas de palmeira. Mais tarde

e. Essa é uma discussão viva e que apresenta uma sórle de pontos d visto. Pnra
aprofundamento na questão sugiro o lelturo do ortlgo do José Rlbomor Bessa
Freire, Tradução o /nterculturalldade: o passarinho, a galo/a e o cesto. Alleo, vai.
11, n. 2,Julho-dozombro 2009, p. 321-338.

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32

0 tcrnto foi africanizado e p:ts ou a fazer parte dos léxi o , tanto


1ndígen,i q_uànto ;tfro-brasileiro . O patuá, em seu entendimento
rontcanporâneo dá conta do que poderia ser o Clmedicinc bundlc
que Ursula traz con10 elemento central em seu texto.
Outros tern10s que vieram ao encontro de nosso vocabulá-
rio e prática de tradução para o "medicine bundle" foram: mojo
(cultura vodu), uncufia (culturas andinas-quechuas), bula (Roma
antiga) e talismã (cultura persa). Cada um deles propondo sua
abertura e também seu fechamento. E estamos seguras de que
há muitos mais que podem ser colocados nessa bolsinha mágica
que é o "medicine bundle".
A decisão, portanto, de incorporar o termo patuá à tradução
brasileira do texto é uma decisão que dá conta de referenciar, nesse
contexto específico, o tipo de relação proposta por Ursula ao trazer
o "medicine bundle" para o imaginário que pretende abrir. Ler e
reler o texto considerando essa perspectiva enriquece o campo de
especulação e possibilidades de reverberações da teoria da bolsa
da ficção.
É de uma beleza infinita pensar com Ursula que: "a forma
natural, apropriada e adequada do romance pode ser aquela de
uma sacola, de uma bolsa" e segue: "Um livro guarda palavras.
Palavras guardam coisas. Carregam sentidos. Um romance é um
patuá guardando coisas numa relação particular e poderosa uma
com as outras e conosco." 9

estória e história

A..e tória não quer ser hi tória. A estória em rigor, leve ' t'í contnt

.a Hi5rória. 1ºJoão Guimarães Rosa.

9. Ver ne te Jivro P. 24.


10. Guimarães Ro !> "i,t . ~ 1
- s , '~ am~1a. _ao Paulo: Nova Front Ira, 2013, P·

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33

Na língua portu,rucsa,
t>
até 1943 , l1·tv·1·t
• ,
u1n·1, '-~1·1t·crcnc,açao
. . .. entre
as palavra~ estória e história l• stcJ' r·1·1e: cr·t• tts·td·t
. • • · .h • , L prt· nc1pa
· Jmente
quando se qucna referenciar u1na narrativa fi • •ional ou de fato
"i1nagin;írios". Ta1nbén1 era utilizada quando se queria contar um
'causo", u1na estória que tinha suas origens na cultura popular oral
e que não contava com documentos "oficiais" para sua compro-
,ração factual. A palavra história, com letra minúscula e maiús-
cula, era a palavra escolhida para referenciar fatos documentados
e situações "reais". Também indicava o domínio do saber e da
disciplina das ciências humanas História.
No inglês, a diferenciação acima descrita mantém-se há
muito em relação à palavra "story" (estória) e "history (história).
Ursula usa a primeira formulação como opção principal para o
texto e o faz porque o que lhe interessa abordar ao falar de story
(estória) é exatamente a relação com o storytelling, a contação de
estórias, as estórias inventadas, as outras estórias e até mesmo
algumas das historias que fazem parte do cânone oficial das histó-
rias documentadas e que possibilitam narrativas paralelas às do
Herói e abrem todo um campo de especulação, prática e imagi-
nários que operam fora da relação com o protagonismo do que ela
ehama o " tempo tecno-hero1co . ,,.
Em seu ensaio "Inventar uma História", 11 Ursula nos conta
que existem dois tipos de estórias: aquelas em que dizemos o que
aconteceu e aquelas em que contamos o que não aconteceu. E
continua apontando que o primeiro tipo seria história, jornalisn10,
autobiografia e memórias. O segundo tipo seria a ficção, e tórias

11. By telllng - or by readlng - a story of what didn't ln fact happ n, but could
have happened or could yet happon, to somobody who isn't on ctu I p r on
but who might havo boon or could bo, w opon tho door to th lm g n tion. And
lmaglnation 1.. the bo t, maybo the anly woy wo hov to know nything, bout eh
other' mlnd and hoart , Tom ko up tory, titulo orlgln Ido n lo; m Ur ui
K. Le Guln. Word ArtJ My Matt r: Wrltlng ~ About Lifi and Baok • 000-2016,
wlth a Jovrnal of Wrítor Wi el<. Smnll 8 _or Pro , ' 2010.
Digitalizado com CamScanner
34

qu iiwcnt.,nH . " qu ,i t,_n , a~~t1~1ente porque defanimo ,


r .i li fa 1,. e ). fato t • m;u1--1ras d1Sttnt~t . Pura eln, pare e mai .
. ,ki 1tH , n · nt r.,rtnos nns r ali dades que fi cionarno do q 'IC
naqu l.-1 . que julga1no. cr factuais.

A • ntar - ou ao ler - uma estória que não aconteceu de faro,


ma que 1 deria ter acontecido ou que poderia ainda acontecer,
a alguém que não é uma pessoa real, mas que poderia ter sido ou
1 deria er, abrimos a porta para a imaginação. E a imaginação
é a melhor, talvez a única maneira que temos de saber alguma
isa sobre a mente e o coração uns dos outros. 12

A p âo por traduzir story como estória, e não história, no texto em


porturruês, denota nossa posição enquanto tradutoras em destacar
a fie ão e o storytelling, as narrativas periféricas, esquecidas, que
poderiam ter sido contadas de boca em boca, e que não têm como
pro agonista o Herói e tudo o que o acompanha.
Também nessa direção, a proposição de Virginia Woolf
in rocada por Isabelle Stengers e Vinciane Despret em seu livro
f;f/oman Who Make a Fuss: 1he Unfaithful Daughters of Virgínia
Wo.olf,1. nos chama a atenção quanto à necessidade de praticar
1

pen ar como gesto materialista que ativa um pensar coletivo


, de a forn1a, considerarmos a tecnologia cultural da ficção
do torytelli11g como um modo de evocar ruundos possívei e
n undo já desaparecidos. Como estratégia urgente para atrnve Uf
1em1 o ,que es,tamos vivendo, para re-ilnaginar e re-cncantar
Jnundo e. que1n sabe., sermos capazes de "escutar o u 'Uff '
e, · d · po uído ·, o e ·os dos contos das vovós, o que já ~n llíl

1-2 . rd · A,e My Matr r: Writlng About l.ife ancJ Bgok • 200 •


J "rnol of Wot w . O I Pr~ · 1 016.
t 1WhoMJk g.ptJ
ioo <1 · p,ij Wo \,U

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35

no lug.1r profund , es uro, lc ndc nas e a intui\·Jo; o por;io da


história, o saco das estrelas. O feitiço o nh , a encruzilhada
do nosso desperhu."1-1
"A teoria da bolsa da ficção" no convid:i a dar um pa
Convida-nos a praticar o pensar como ge to materiali ta e exercí-
cio de in1aginação que possibilita que rnundos pas ado , presentes
e futuros se fundan1 ern te1npos e espaços que ainda não conhe e-
1nos ou mes1no que não utilizem as categorias de tempo e e pa o
como condição a priori de existência e realidade. !Vias es e exer-
cício ten1 que ser acompanhado da decisão que no habilita a
pensar fora do tempo e espaço tecno-heroico, pensar fora da lógica
do sujeito constituído pelos parâmetros da 1nodernidade. Talvez
haja algumas pistas nesse "antes da modernidade , que podem ·er
importantes na hora de continuar a inventar, relen1brar e contar
as estórias das vidas e a criar estratégias para prestar atenção e
aprender a ler os sinais que nos habiliten1 in1aginar de de un1a
perspectiva decolonial e multiespécies.

Fazer do texto carne

Foi no mês de julho de 2020, quando pens,ivamos que un1a


segunda onda da pandemia no País Basco não nos atingiria
(ou queríamos pensar que não nos atingiria) que eu 111 strei a
tradução em processo pela primeira vez à ~uni.l"a e obb radora
Carolina Mendonça. Pedi un1ftedbark. Precisava darifi ·ar al~u-
mas dúvidas cm relação a certas escolhns feitas no texto (( or
exemplo, a tradução do "medicine bundleº) e pc li para a ~\r ll
e se olhar externo.
l)epois desse primeiro encontro da Carol corni~o, l' \lll a
'tradução, com Ur uh,, com Vivian e com lbnn rcc 'bi um :1poi,
(bol a) econômico do Festival Arc1u "olo~ias d) Furur) ·111.1du por

14. Ur ui · K. L •Guln. Th Corri r .Bog Th ry of Fi t/on. l9not , _01 , p. l.

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Alina I◄ olini , atalina Lcscano, 1 que estava em sua sexta edição, e


mn on\ ite para propor alguma ação dentro do contexto do festival
que 110 ano de 2020, aconteceria on-line devido à pandemia. Claro
que sin1 respondi. E na continuidade do sim, convidei as pessoas
que }í estavan1 a participar desse projeto de amor a elaborar comigo
três ncontros on-line com um grupo de pessoas que poderia se
insere, er para esses encontros e estar juntes ativando o texto através
de algun1as práticas criadas especialmente para o evento.
Estivemos durante três semanas nos encontrando on-line,
Carolina, Ibon e eu, e praticando o que cada uma de nós ia
elaborando em relação ao texto. Dessa experimentação saíram
três práticas realizadas cada uma em um dia desses encontros,
com u1n grupo de pessoas que se havia inscrito através de uma
chamada aberta.
As práticas propunham ações de recolher coisas na rua,
armar bolsas para lugares impossíveis, transformar o corpo num
patuá, levar juntas coisas que considerávamos importantes para um
encontro que não sabíamos quando e onde aconteceria. Estivemos
três dias especulando, conspirando e praticando storytelling a
partir dos materiais que fomos gerando e coletando, formando
uma bolsa coletiva - nosso relato em forma de bolsa - que, de
alguma maneira, expunha possibilidades para quem estávamos
sendo juntas nesses encontros, nesse co-imaginar.
O texto atravessou os corpos, o texto transbordou a leitura
e nos fez sair na rua, nos fez compor nossas próprias bolsas para
um encontro futuro, e dessas práticas brotou um outro relato.
Realizando o gesto que sugere a bolsa, ativamos maneiras de tn,zer
energia para casa e compartilhá-la. O texto havia virado carne.
"A teoria da bolsa da ficção" é um texto que itnediatnn1ente
pudemos incorporar e pensar no fazer. E este fazer nos possibilitou
praticar estar no mundo, cm coletivo, a partir dessas outras cstórins
que fomos coletando e contando urnas às outras.

15. <https://arqueologia dolfuturo.eem/pdlelonVl/toorlo-bal . o•ficclon>.

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R · ·upcrar fi si ·:un ·nt · o , •sfo d· ·oi tar, d• prati •ar uma


lcri\ :l olctora no ·~paço urbano, nos ;0u lou a r • ·up •rar uma
111 1nória fí~ica d · a l~o qu · ·~que ·cmos qu · forno . . () a ~• 0
físico a ttnla 111 "llHSria corporal an cstral por meio da •xp ri '•n i,
ab ·rt.1 por •ssas pr:íticas, ·onc ·tou esse coletivo a uma com:pl "XÍ -
dadc e di\ ersidade de narrativas que, exatamente por e tarem fora
de lógicas ten1porais lineares, se transformaram em ferramenta
apazes de gerar novas narrativas e imagens, apresentando - e
dentro da lógica do imagear de que falam Denise Ferreira da Silva
e Valentina Desideri a propósito de suas "Leituras Poéticas 11: "ler
con10 imagea,,• - essa prática, consiste numa montagem que expõe
e navega o complexo contexto que constitui a situação, evento
ou problema que atravessa uma pessoa ou coletivo, num dado
momento e lugar. Como tal, visa expandir o horizonte de inter-
pretação, ou seja, abrir possibilidades e perturbar realidades." 16
As práticas para a teoria da bolsa da ficção estão no mundo
para serem ativadas e reativadas a todo momento, como ferra-
mentas que nos ajudam a não esquecer de que (outras) estória
somos formadas e quais estórias queremos continuar contando
ou queremos inventar. Ler repetidamente o texto é a primeira
dessas práticas e essa é uma tecnologia que pode ser acessada
nesse mesmo livro que está entre suas mãos. Como diz a própria
Ursula, ainda há espaço na bolsa das estrelas para n1ais, outra
e novas estórias que queiramos contar. E é sempre i1nportante
reconhecer também quais são as estórias que já não queren1 ..
.mai carregar, as estórias que qucrc1nos tirar das noss~1s bc L~l-·,
a e,s tórias de Heróis e objetos pontudos que j,i não qu "ren1l ·
que faça ·m parte desse vasto s<1co, cl su1 h11rrig I da uni- rs • n I
,i,,ntrt das coisas por virem a ser e 11esl11 111111/111 dr foi ·11 • qn ./
ntsta t.slória se111 final.

16. <http :// t ho.org/cont udo/pQ thl · ,.. , tino .

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A bolsa das estrelas ou Um romance é um patuá

L ·mbro-mc de uma tarde em que caminhava com Ibon e em que


eu meçava a ter a sensação de que Ursula havia se tornado uma
amicra. Dessas que a gente vai atrás quando precisa de conselho,
conforto e até 111esmo ajuda. Através desse texto, e de outras obras
de Ursula que tive oportunidade de ler, muitos dos modos como
entendemos nossas diferentes realidades, passados situados, estó-
rias, cosmogonias, memórias podem ser revistas. Numa época em
que é urgente uma revisão e a criação de possibilidades de acesso
a outras histórias que não a do Herói, encontrar-se com esse texto
é um tesouro.
É importante a partir desse encontro também nos pergun-
tarmos então qual seria a forma desse "romance patuá"? Qie
estórias contaria? O!ie parentescos geraria? E mais importante,
quem as contaria?
Estas estórias foram, estão e continuarão sendo contadas.
Há, porém, muitas mais que lembrar, descobrir, inventar e especu-
lar. Não a do herói ou a do homem, não a dos humanos somente,
mas de uma miríade de seres humanos e não humanos que estão
interconectados das maneiras mais íntimas e diversas.
Tentar descrever "o que de fato está acontecendo, o que as
pessoas realmente fazem e sentem, como as pessoas se relacionam
com tudo mais neste vasto saco, nesta barriga do ~niverso, neste
ventre das coisas por virem a ser e nesta tumba de coisas que foram,
nesta história sem final" é o que faz a ficção científica. É o que
fazem nossas mães ao contarem outras estórias. É o que fazem
outros povos de outros tempos e lugares ao contarem suas estórias.
Ouvir os sussurros e ser capazes de sussurrá-los é a ferramenta
mais preciosa que podemos aprender a usar juntas e que talvez
nos ajude a atravessar esses tempos tão complexos em que estamos
jmcrsos hoje.

FIM

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E~tc 1ivro é · 1nr osto cm Adobe Caslon, revival
d· ·nhada por arol Twombly cm 1990 a partir da
tipografia d William Caslon de meados do século
VIU, e CoFo Sans, desenhada por Maria Doreuli
cm 2018. Foi impresso em papel offset 90g/m 2 •

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB 8/9410

G964t Le Guin, Ursula K.


_ A teoria da bolsa da ficção/ Ursula K."Le Guin; tradu-
ção de Luciana Chieregati, Vivian Chieregati Costa; introdução
de Juliana Fausto; posfácio de Luciana Chieregati. - São Paulo:
n-1 edições, 2021.
48 p.; 14cm x 21cm.

Inclui índice.
ISBN 978-65-86941-51-7

1. Antropologia cultural. 2. Feminismo. 3. Ficção espe-


culativa. 1. Chieregati, Luciana. li. Costa, Vivian Chieregati.
Ili. Fausto, Juliana. IV. Chieregati, Luciana. V. Título.

CDD306

2021-2921 CDU 316

Índice para catálogo sistemático:


1. Antropologia cultural 306 2. Antropologia cultural 316

Audiobook

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