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Paulo Freire e a Reinvenção do Brasil O método Paulo Freire É o seu relato como criador do método e educador, e

Frei Betto da minha experiência como educador de base.


Conheci o método Paulo Freire em 1963. Eu
Neste maio, faz quatro anos que o educador morava no Rio de Janeiro, integrava a direção Neste livro conto que, na favela em que eu morava,
Paulo Freire transvivenciou. Em terra de nacional da Ação Católica. Ao surgirem os havia um grupo de mulheres grávidas do primeiro
filho, assessoradas por médicos do Ministério da
desmemorização programada, os mortos primeiros grupos de trabalho do método,
Saúde. Perguntei aos médicos por que mulheres do
precisam arrancar a cegueira dos olhos dos que engajei-me numa equipe que, aos sábados, primeiro filho.
se negam a um pingo de auto-estima subia para Petrópolis, para alfabetizar operários
tupiniquim. É dado aos jovens o inelutável da Fábrica Nacional de Motores. Ali descobri ‹Não queremos mulheres que já tenham vícios
direito de virar este país de cabeça pra baixo e que ninguém ensina nada a ninguém, a gente maternais - disseram -, queremos ensinar tudo.
desvendar seus intestinos. ajuda as pessoas a aprenderem.
Pois bem, passado uns meses, bateram na porta do
"O Brasil não conhece o Brasil", cantava Elis O que fazíamos naquela fábrica? Fotografamos meu barraco.
Regina. Mimético, talvez o brasileiro tenha as instalações, reunimos os operários no salão
vergonha do que é, a julgar pelo modo como de uma igreja, projetamos diapositivos e ‹Olha, Betto, estamos querendo uma ajuda sua. ‹Mas
trata o que tem. Tem, por exemplo, um poder fizemos perguntas absolutamente simples: por que ajuda minha? ‹Há um curto-circuito entre nós
e as mulheres Elas não entendem o que falamos.
popular. Com exceção de Cuba, que vive em
Você, que tem experiência com esse povo, podia vir
outro sistema, nenhum país da América Latina ‹Nesta foto, o que vocês não fizeram? ‹Bem, dar uma ajuda.
alcançou o nível de organização popular que não fizemos a árvore, a mata, a estrada, a
existe hoje no Brasil. Uma imensa malha de água. ‹Isso que vocês não fizeram é natureza - Fui assistir ao trabalho deles. Ao entrar no Centro de
movimentos sociais espalha-se pelo território dissemos. ‹E o que o trabalho humano fez? - Saúde do morro, fiquei assustado, porque eram
nacional. A CMP (Central de Movimentos indagamos. ‹O trabalho humano fez o tijolo, a mulheres muito pobres e o Centro estava todo
Populares) articula centenas deles. A CUT fábrica, a ponte, a cerca ‹Isso é cultura - enfeitado com cartazes de bebês Johnson, loirinhos,
representa 18 milhões de trabalhadores. O MST dissemos. ‹E como é que essas coisas foram de olhos azuis, propaganda de Nestlé e outras coisas.
gira a roda da vida em 1.500 assentamentos. feitas? Eles debatiam e respondiam: ‹Foram Diante do visual do Centro, falei:
(...) Quem gerou esse poder popular? Se me feitas na medida que os seres humanos
fosse pedido um nome, uma pessoa capaz de transformaram a natureza em cultura. ‹Está tudo errado. Quando as mulheres entram aqui e
olham para esses bebês, percebem que isso é outro
resumir tantas conquistas, eu não relutaria:
Paulo Freire. Claro, a história não depende de De repente, aparecia uma foto com o pátio da Fábrica mundo, não tem nada a ver com os bebês do morro.
um homem. Óbvio, sem homens e mulheres Nacional de Motores, com muitos caminhões e
bicicletas dos trabalhadores. Perguntavámos: Assisti ao trabalho deles e percebi logo que eles
não há história. falavam em FM e as mulheres estavam sintonizadas
‹Nesta foto, o que vocês fizeram? ‹Os caminhões. ‹E em AM. A comunicação realmente não funcionava.
Sem Paulo Freire não haveria esses Numa sessão o doutor Raul explicou a importância do
o que possuem? ‹As bicicletas. ‹Como, vocês não
movimentos que tiram o sono da elite estariam equivocados? ‹Não, nós fabricamos os aleitamento materno para formação do cérebro,
brasileira. Porque ele nos ensinou algo de caminhões... ‹E por que não vão para casa de porque o ser humano é um dos raros animais, talvez
muito importante: encarar a história pela ótica caminhão? Por que vão de bicicleta? ‹Porque o o único, cujo cérebro nasce incompleto. Ele só se
dos oprimidos. caminhão custa caro, e não pertence a nós. ‹Quanto completa três meses depois do nascimento, graças às
custa um caminhão? ‹Cerca de 40 mil dólares. proteínas do aleitamento materno.
Os excluídos como sujeitos políticos ‹Quanto você ganha por mês? ‹Bem, eu ganho 60
dólares. ‹Quanto tempo você precisa trabalhar, sem Doutor Raul explicou tudo isso cientificamente. As
Ao deixar a prisão, em fins de 1973, achei que comer nem beber, economizando todo o salário, para mulheres o fitavam como eu olho quando abro um
um dia ser dono do caminhão que faz? texto de chinês ou árabe: não entendo nada.
toda luta aqui fora tinha acabado. Todos os
grupos armados tinham sido desarticulados ‹Dona Maria, a senhora entendeu o que o doutor Raul
E aí eles começavam a calcular.
pela repressão, e os que não empunharam falou? - perguntei. ‹Não, eu não entendi, só entendi
armas, como o PCB, estavam sendo recolhidos As noções mais elementares do marxismo vulgar que ele falou que o leite da gente é bom para cabeça
às cadeias. E agora, José? Até porque todos vinham pelo método Paulo Freire. Com a diferença de das crianças. ‹E por que a senhora não entendeu?
nós, que tínhamos a pretensão de ser os únicos que não estávamos dando aula, não fazíamos o que ‹Porque não tenho estudo. Fui muito pouco na escola,
entendidos em luta social, estávamos na Paulo Freire chama de Œeducação bancária¹, que nasci pobre na roça. Então eu tinha que trabalhar e
cadeia, mortos ou no exílio. Qual não foi a visa enfiar noções de política na cabeça do ajudar no sustento da família. ‹Dona Maria, por que o
minha surpresa ao encontrar uma imensa rede trabalhador. O método era indutivo. doutor Raul soube explicar tudo isso? ‹Porque ele é
doutor, é estudado. Ele sabe e eu não sei. ‹Doutor
de movimento populares pelo Brasil afora.
Mais tarde, vi por aí muitas pessoas escolarizadas, Raul, o senhor sabe cozinhar? - indaguei. ‹Não, nem
café sei fazer. ‹Dona Maria, a senhora sabe cozinhar?
Quando o PT foi fundado, em 1980, vi gente da como eu, dando aulinhas para operários, achando ‹Sei. ‹Sabe fazer frango ao molho pardo (que no
esquerda comentar: "Operários? Não. É muita que faziam a cabeça da massa.
Espirito Santo, e também em algumas áreas do
pretensão operários quererem ser a vanguarda Nordeste é chamada de galinha de cabidela)? ‹Sei.
Linguagem popular
do proletariado. Somos nós, intelectuais ‹Levanta aí - pedi - e conta pra gente como se faz um
teóricos, que conhecemos o marxismo, a Quando cheguei a São Bernardo do Campo, em frango ao molho pardo. Dona Maria deu uma aula de
ciência da história, que temos capacidade para 1980, havia uns grupinhos de esquerda que culinária: como se mata o frango, de que lado se tiram
dirigir a classe trabalhadora". No entanto, distribuíam jornal no meio das famílias dos as penas, como preparar a carne e fazer o molho etc.
neste país os oprimidos se tornaram, não só trabalhadores. Dona Marta chegava pra mim e
sujeitos históricos, mas também lideranças indagava: Ela sentou e eu falei: ‹Doutor Raul, o senhor sabe
fazer um prato desse? ‹De jeito nenhum, até gosto,
políticas, graças ao método Paulo Freire.
‹O que é "contradição de crasse"? ‹Dona Marta, mas não sei. ‹Dona Maria - conclui - a senhora e o
esqueça isso. ‹Não sou de muita leitura - justificava- doutor Raul perdidos numa mata fechada, e um
Certa vez, num país da América Latina, cujo frango, ele, com toda cultura dele, morreria de fome e
nome prefiro omitir, o pessoal de esquerda se ela - porque a minha vista é ruim e a letra
pequena. ‹Esqueça isso - eu dizia. ‹Isso a esquerda a senhora não.
perguntou-me:
escreve para ela mesma ler e ficar feliz, achando que
está fazendo revolução. A mulher abriu um sorriso de orelha a orelha, porque
‹Como fazer aqui algo parecido ao processo de descobriu, naquele momento, um princípio
vocês lá no Brasil? Porque vocês têm um setor Paulo Freire ensinou-nos, não só a falar em fundamental de Paulo Freire: não existe ninguém
de esquerda na Igreja, um sindicalismo linguagem popular, mas também a aprender com o mais culto do que o outro, existem culturas distintas,
combativo (...). Como se faz isso? ‹Comecem povo. Ensinou o povo a resgatar sua auto-estima. socialmente complementares. Se pusermos na
fazendo educação popular - respondi -, e daqui balança toda minha filosofia e teologia, e a culinária
a trinta anos... Aí azedou a conversa. ‹Trinta Culturas distintas e complementares da cozinheira do convento em que vivo, ela pode
passar sem minha filosofia e teologia, mas eu não
anos é muito! Queremos para três meses.
Ao sair da prisão, fui viver cinco anos numa favela no posso passar sem a cultura dela. Essa é a diferença.
‹Para três meses eu não sei - observei - mas
para trinta anos sei a receita. Espírito Santo. Lá trabalhei com educação popular no
método Paulo Freire. Ao retornar a São Paulo, no fim Resgatar a teoria e a prática de Paulo Freire é
dos anos 70, Paulo Freire propôs darmos um balanço arrancar o povo brasileiro da ilusão das elites, do
Ou seja, embora haja muitos cristãos nesse medo do poder, da indolência frente a um futuro que
da nossa experiência em educação e, graças à
processo, nada caiu do céu. Tudo foi construído mediação do jornalista Ricardo Kotscho, produzimos pode e deve ser transformado, já que o presente só é
com muita tenacidade. o livro intitulado "Essa escola chamada vida" (Ática). muito bom para aqueles que têm pavor de Paulo
Freire.

Frei Betto é escritor, autor do romance Hotel Brasil


(Ática), entre outros livros.

Fonte: Caros Amigos, maio de 2001

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