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Prefácio
perguntando sobre minha própria reação. Por que será que voltar,
não apenas com membros da minha própria família, mas como
filha e recém-casada - uma configuração inteiramente patriarcal
- me fazia sentir, bem? Eu não tinha, anos atrás, me instalado
como uma pesquisadora e desenvolvido com a família beduína
uma relação totalmente independente dessas pessoas que agora
me acompanhavam? Já não havia me afastado daquele primeiro
encontro no qual, tímida e envergonhada, e me sentindo muito pouco
antropóloga, ficara sentada no banco de trás de uma van enquanto
meu pai discutia com os homens da família minha necessidade de
encontrar anfitriões que me ajudassem a aprender "as tradições e
os costumes" dos beduínos Awlad 'Ali? Já não superara o papel da
filha obediente, que antigamente representara, ao discordar de
meu anfitrião quando ele, supondo que eu compartilhava dos seus
preconceitos, criticara os europeus por suas falhas morais? Na minha
última visita, quando ele reclamara do descaso dos europeus com
suas famílias, eu argumentara que a ruptura progressiva da família
extensa poderia ser atribuída à necessidade de mobilidade da mão
de obra gerada pelo capitalismo moderno; aquilo poderia, inclusive,
dissera eu, acontecer com os Awlad 'Ali. Enquanto feminista, eu
também o repreendera por deixar suas esposas e filhas malnutridas,
enquanto esbanjava dinheiro com seus hóspedes. E a comunidade
não tinha registrado essa nova visão a meu respeito quando alguns
me haviam pedido, na condição de autoridade externa respeitada,
que apresentasse a seus compatriotas egípcios arrogantes - que os
consideram bandidos ou primitivos - a verdade sobre a vida social e
os valores beduínos?
Mesmo assim, estava excitada porque podia imaginar a reação
deles a essa visita. Os beduínos consideram a família importante e,
em parte, o que havia feito com que me aceitassem, acima de tudo,
era que haviam conhecido minha família. Minha origem como filha de
um árabe muçulmano também tinha sido importante, compensando
a minha própria aparente incompetência cultural. Chegar agora dos
Estados Unidos com mais membros da família confirmaria que eu
era, assim como eles, não apenas um indivíduo, mas parte de uma
família e, além disso, de uma família com a qual eles já haviam
estabelecido laços de reciprocidade. Ao longo dos anos, muitas vezes
os escutara discutir a preocupação do meu pai comigo e a confiança
que depositara neles. Eles interpretariam sua visita como um
Prefácio 1 29
Primeira Geração
Segunda Geração
Terceira Geração
Quarta Geração
1
A expressão "a vida como vivida" vem de Riesman (1977). Para expressões recentes
e interessantes da insatisfação com o hiato entre a monografia escrita e a vida como
vivida no campo ver, entre outros, Jackson (1989) sobre o corpo; Rosaldo (1989)
sobre a emoção; e Stoller (1989) sobre os sentidos.
40 1 Lila Abu-Lughod
Interseções
3
Para uma síntese des~a posição, ver Abu-Lughod (1988a).
4
(N. da T.) Publicado no Brasil em 2016 sob o título de A Escrita da Cultura pela
Editora Papéis Selvagens e pela EdUERJ.
5
Minha crítica a essa posição pode ser encontrada em Abu-Lughod (1990a).
Na mesma época, outras antropólogas feministas estavam formulando críticas
contundentes; ver Gordon (1988), Mascia-Lees, Sharpe e Cohen (1989); e
Visweswaran (1988).
6
Para uma boa crítica do feminismo cultural, ver Echols (1984). Os alertas de
Haraway (1985) sobre uma associação organicista falsa com as mulheres são
importantes, e a crítica de Butler (1990) ao essencialismo é especialmente lúcida. A
literatura sobre a escrita das mulheres é vasta. Discuto parte dela em Abu-Lughod
(1990a).
42 1 Lila Abu-Lughod
11
Taussig (1987) argumentou que os próprios horrores do terror colonial na
América Latina o haviam obrigado a escrever em um estilo diferente. Pandolfo
(1991) tentou reproduzir em sua escrita os conceitos, marroquinos e de outros
grupos, que estava tentando analisar.
12 Para uma discussão muito interessante daquilo a que se refere como o "enigma
14
Essas ideias sobre a relação entre as disciplinas acadêmicas e o controle social são
mais profundamente examinadas em Foucault (1978, 1980).
Introdução 1 47
"beduínos Awlad ‘Ali", povoadas por seres culturais genéricos que fazem isso
ou aquilo e que acreditam nisso ou naquilo. Embora essa noção de culturas
separadas seja utilizada sem maiores reflexões, há boas razões para se
considerar essas entidades como ficções perigosas e para defender aquilo a
que me referi como a escrita contra a cultura (Abu-Lughod, 1991)
Esse ponto de vista talvez pareça surpreendente. Como substituta do
conceito científico de raça, popular no século XIX, mas hoje desacreditado
enquanto forma de estabelecer diferenças essenciais entre grupos de
pessoas, a cultura foi um conceito positivo. Pareceu, a princípio, resolver as
dificuldades morais e analíticas inerentes à "raça", ao retirar a diferença do
domínio' do natural ou do inato. Seja concebida como um conjunto de
comportamentos, costumes, tradições, planos, receitas, instruções ou
programas (apenas para listar a gama de definições oferecidas por Geertz
[1973a, p. 44]), a cultura era algo que se aprendia e que, portanto, podia
mudar. E, o que era ainda mais importante, ao contrário da raça, e até mesmo
do antigo conceito de "cultura" como sinônimo de civilização (em contraste
com a barbárie), a ideia moderna permitia diferenças múltiplas, em vez de
binárias. A mudança para "cultura" (com a inicial em minúscula e com a
possibilidade de um "s" ao final, como colocou Clifford [1988a, p. 234])
colocou, portanto, imediatamente em xeque a possibilidade de uma
hierarquização fácil e teve, de fato, um efeito relativizador. A contribuição da
antropologia do século XX foi, assim, a promoção do relativismo cultural em
detrimento da avaliação e do julgamento. Em muitos casos, como Marcus e
Fisher (1986) argumentaram, a antropologia chegou até mesmo a usar seu
conhecimento sobre os outros como uma forma de autocrítica. 15
Entretanto, apesar de sua intenção antiessencialista, o conceito de
cultura mantém a tendência a fazer com que a diferença pareça autoevidente
e com que as pessoas pareçam ser "outras". 16
15 Para uma análise interessante dos significados de "cultura" nos anos 1920,
ver Stocking (1989).
16 Said (1978) demonstrou o modo como o discurso acadêmico do
orientalismo, ao superpor geografia, raça e cultura, fixa as diferenças entre os
povos "do Ocidente" e os povos "do Oriente" de maneira tão rígida que
poderia até mesmo ser considerada inata. Alguns movimentos anticoloniais e
lutas atuais trabalharam de forma que poderia ser chamada de orientalismo
reverso, em que as tentativas de reverter a
48 1 LilaAbu-Lughod
relação de poder procedem por meio da valorização, para si mesmo, daquilo que no
sistema anterior havia sido desvalorizado como característico do outro. Um apelo
gandhiano em favor da maior espiritualidade da Índia hinduísta, em comparação
com o materialismo e a violência do Ocidente, e um apelo islâmico em favor de uma
fé maior em Deus, em comparação com a imoralidade e a corrupção do Ocidente,
aceitam na mesma medida os termos essencialistas das construções orientalistas.
Ainda que virando do avesso essas construções, esses apelos preservam a rígida
percepção da diferença baseada na cultura.
É possível traçar um paralelo com o feminismo. Um princípio básico do feminismo
é que "as mulheres não nascem mulheres, tornam-se mulheres". Para a maioria
das feministas, era importante localizar as diferenças entre os sexos na cultura, e
não na biologia ou na natureza. Embora essa perspectiva tenha inspirado algumas
teóricas feministas a tratar os efeitos sociais e pessoais do gênero como um sistema
de diferenças, para muitas outras essa abordagem levou a explorações e estratégias
baseadas na noção de uma cultura de mulheres. O feminismo cultural (ver Echols,
1984) assume muitas formas, mas tem muitas das características do orientalismo
reverso que discutimos acima.
Para feministas francesas como Irigaray (1985a, 1985b ), Cixous (1983) e Kristeva
(1981), màsculino e feminino, ou até mesmo macho e fêmea, representam modos
de ser essencialmente diferentes. As feministas anglo-americanas vão em outra
direção. Algumas tentam "descrever" as diferenças culturais entre homens e
mulheres - Gilligan (1982) e suas seguidoras (por exemplo, Belenky et ai., 1986),
que elaboram a noção de "uma voz diferente", são exemplos conhecidos. Outras
tentam "explicar" as diferenças, seja através de uma teoria psicanaHtica socialmente
informada (por exemplo, Chodorow, 1978), uma teoria derivada do marxismo
sobre os efeitos da divisão do trabalho e do papel das mulheres na reprodução
social (Hartsock, 1985), uma análise das práticas maternais (Ruddick, 1989) ou até
mesmo uma teoria da exploração sexual (MacKinnon, 1982). Boa parte das teorias
e práticas feministas tentam construir ou reformar a vida social de acordo com essa
"cultura das mulheres". Há propostas para uma universidade centrada nas mulheres
(Rich, 1979), uma ciência feminista (Rose, H., 1983, 1986), uma metodologia
feminista nas ciências e nas ciências sociais (Meis, 1983; Reinharz, 1983; Smith,
D., 1987; Stanley e Wise, 1983) e até mesmo uma espiritualidade (por exemplo,
Christ e Plaskow, 1979) e uma ecologia feministas. Essas propostas quase sempre
se baseiam em valores tradicionalmente associados às mulheres no Ocidente: um
sentido de cuidado e conexão, a maternidade, a imediaticidade da experiência, o
envolvimento corporal ( versus o abstrato), e daí em diante.
Introdução 1 49
I
negamos a esses povos a mesma capacidade de movimento, viagem
e interação geográfica que os ocidentais têm sem sequer perceber.
Em outras palavras, a fluidez das fronteiras entre os grupos, as
línguas e as práticas tem sido mascarada pelo conceito de cultura.
O trabalho de E. Wolf (1982) sobre "os povos sem história"
revelou, de maneira semelhante, movimentos maciços de povos e
transformações na vida local sob o impacto da expansão ocidental e
das interações dela decorrentes com as economias europeias - tudo
isso em comunidades que os antropólogos costumam tratar como
representantes de culturas intocadas ou duradouras. R. Rosaldo
(1989) argumentou que não apenas o "mito do Etnógrafo Solitário"
e seu produto, a etnografia clássica, geram o mito das culturas
separadas e atemporais, mas que faríamos melhor se prestássemos
atenção às zonas fronteiriças.17
Outros sugeriram também que as teorias culturais tendem a
enfatizar excessivamente a coerência interna dessas entidades (Abu
Lughod, 1990c). Clifford observa que "a disciplina antropológica
baseada em trabalho de campo, ao constituir sua autoridade, constrói
e reconstrói outros culturais e se/ves interpretativos coerentes"
(Clifford, 1988b, p. 112). A etnografia, diz ele, é uma forma de coleção
cultural (como a coleção de arte) na qual "experiências e fatos
diversos são selecionados, reunidos e separados de seus contextos
temporais originais, ganhando então um valor duradouro em um
novo arranjo" (lbid., p. 231). As metáforas orgânicas da completude e
a metodologia do holismo que caracteriza a antropologia favorecem,
ambas, a coerência, a qual por sua vez contribui para a percepção
das comunidades como dotadas de fronteiras nítidas - em algum
nível fundamental, separadas e diferentes umas das outras.
Assim, o problema com o conceito de cultura é que, apesar de sua intenção
positiva, parece funcionar como uma ferramenta essencial para a produção do "outro”.
Enquanto discurso profissional que discute o significado da cultura para explicar e
compreender
a diferença cultural, a antropologia acaba por também construir,
produzir e manter a diferença. O discurso antropológico ajuda
a atribuir à diferença cultural (e à separação entre os grupos aí
implicada) ares de autoevidência.
17
Para uma visão anterior e mais elogiosa da forma como a escrita etnográfica
exagera as diferenças culturais, ver Boon (1982, p. 26).
50 1 Lila Abu-Lughod
nos perguntássemos como uma menina egípcia à espera de que seu casamento
fosse arranjado por uma família importante viveu complexo “cultural” nos anos
1980?
Ao enfatizar a particularidade das experiências dessa menina ou
daquele casamento específico, e ao construir um retrato da poliginia ou da
honra a partir de discussões, recordações, conflitos e ações de indivíduos, é
possível tornar tangíveis alguns problemas teóricos mais amplos. Em primeiro
lugar, a recusa da generalização colocaria em relevo a natureza construída
dessa “tipicidade” tão regularmente produzida nos relatos convencionais das
ciências sociais. Em segundo, a descrição das circunstâncias e das histórias
reais de indivíduos e de suas relações sugeriria que essas particularidades,
sempre presentes *como sabemos com base nas nossas próprias vidas) também
são cruciais na constituição da experiência. Em terceiro, a reconstrução dos
argumentos, das justificativas e das interpretações das pessoas a respeito
daquilo que elas e os outros fazem permitiria uma compreensão mais refinada
de como a vida social se da. Esses recursos mostrariam que dentro de discursos
circunscritos (que podem ser contraditórios e que certamente estão mudando
ao longo da história), as pessoas definem estratégias, sofrem e contestam
interpretações sobre o que está acontecendo - resumindo, vivem suas vidas. De
certa forma, isso não é novidade. Bourdieu (1977), por exemplo, teoriza sobre a
prática social de maneira semelhante. A diferença, aqui, é a representação, por
meios textuais, de como isso acontece, em vez de simplesmente afirmar que é
assim.
Ao que é olhar assim. de perto para indivíduos específicos e suas mais
relações em problemáticas mudança, da é "cultura": possível a também
homogeneidade, subverter a as coerência conotações e mesmo em
atemporalidade., uma única Diante. família, dá um complexidade. termo como
das vidas "cultura beduína" começa a não fazer sentido, seja se referindo às
regras que as pessoas seguem ou a comunidade que compartilha essas regras.
Os indivíduos são confrontados com escolhas; lutam com os outros, fazem
afirmações conflitantes, discutem por causa de suas opiniões sobre os mesmos
acontecimentos, passam por altos e baixos em vários relacionamentos e
mudanças nas circunstâncias de suas vidas e em seus desejos, enfrentam novas
pressões e não conseguem prever o que lhes vai acontecer ou aqueles a sua
volta. Eventos específicos
52 I Lila Abu-Lughod
Contar histórias
21 Até mesmo o ritual, essa prática comum na qual o tempo parece ter um sentido tão
em muitos estudos excelentes dos folcloristas (ver Bauman [1986] para uma
discussão e Mills [1991] para um exemplo) e em obras recentes de antropólogos, tais
como Lords of the Lebanese Marches (Gílsenan, 1996), que explora o papel complexo
da narração de histórias na construção dos homens de honra (e desonra) em uma
aldeia libanesa; Narayan (1989), que analisa o papel das histórias nos ensinamentos
religiosos de um swami hindu; e K. Stewart (1988, 1991), que faz maravilhas com as
narrativas de homens e mulheres nos campos de mineração de carvão dos Apalaches
na Virginia Ocidental. Fictions in the Archives, de Natalie Davis (1988), é um exemplo
magnífico do uso possível dessas histórias para a compreensão histórica de outro
tempo e lugar - no caso, a França do século XVI.
Introdução | 53
26
Para uma discussão sobre histórias de resistência e sobre o uso da resistência
como diagnóstico de poder, ver Abu-Lughod (1990b ).
27
As referências da literatura feminista sobre a reprodução ocupariam muitas
páginas. Uma amostra de textos chave, contudo, teria que incluir de Beauvoir (197 4
[1953]), Chodorow (1978), Hartsock (1985), Kristeva (1980), J. Mitchell (1980),
O'Brien (1981), Ortner (1974), Rich (1986), M. Rosaldo (Í974) e Ruddick (1989).
Essa relação não inclui outros debates feministas e antifeministas, tais como
aqueles da sociobiologia ou da cultura popular norte-americana, em particular
sobre a controvérsia em torno do aborto. Para uma revisão abrangente, ver Ginsburg
e Rapp (1991).
58 1 Lila Abu-Lughod
28
O melhor guia para a literatura sobre esse assunto, entre muitos outros sobre a
antropologia do Oriente Médio, é Eickelman (1989).
Introdução 1 59
circunstancias.
O que é instigante é que o enquadramento religioso é
importante, de maneira um tanto diferente, tanto para o leitor
ocidental quanto para as mulheres da comunidade beduína Awlad
'Ali cujas histórias conto. No pensamento popular e em boa parte
das reflexões acadêmicas ocidentais, o Islã é percebido corno
determinando tudo. Essa visão corresponde àquela de muitos
muçulmanos que acreditam que devem, de fato, ser guiados pelos
ideais da fé e da prática islâmicos. Corno alguém que fica a meio
caminho, contudo, gostaria de mostrar aos dois grupos, por meio
dessa etnografia crítica, que nem todos os eventos ou afirmações
podem ser explicados por referência ao Islã.
As mulheres muitas vezes afirmam sua aceitação de tudo o
que acontece com a frase "O que Deus traz", a qual sugere, para o
leitor ocidental, o notório fatalismo do Islã. Mas as histórias mostram
que afirmar esse sentimento não torna as mulheres submissas. Isso
não as impede de lutar contra decisões de que não gostam e de
resistir a elas; de tentar todas as técnicas curativas que conhecem
para atenuar a dor, aliviar o sofrimento ou conceber e criar filhos
sauâáveis; ou recorrer a juramentos e pragas quando seus filhos
desobedientes as exasperam.
A devoção e o respeito aos princípios religiosos têm
sentidos positivos para todas as mulheres desta comunidade
beduína, enquanto, para muitos povos seculares, sugerem urna
certa sobriedade ou até mesmo urna falta de senso de humor. Para
a velha Migdirn, porém, a devoção - expressa por meio de práticas
corno a organização da sua rotina diária em torno das orações
e do louvor a Deus até mesmo enquanto reclama de suas mãos
artríticas - não parece ser incompatível com rir de urna história
29
Dos dois hadiths citados, só escutei um deles ser repetido por alguém na
comunidade dos Awlad 'Ali. Minha fonte para o hadith que abre o capítulo 1 foi
Schleifer (1986, p. 8). Retrabalhei sua tradução. Após comparar as principais
traduções para inglês do Corão, decidi seguir aquela publicada em The Holy Quran
pelo King Fahd Holy Quran Printing Complex na Arábia Saudita. O tradutor não está
creditado.
Introdução 1 61
presentes nesta comunidade beduína e uma proposta para a análise desse tipo de
tensão, ver meu artigo lslam and the Gendered Discourses of Death (1993).
62 I Lila Abu-Lughod
O humanismo tático
31
Lutz (1993) sugere que levemos em conta, cuidadosamente, os contextos sociais
do pós-modernismo, ressaltando três aspectos relevantes: o capitalismo tardio
(com base nas observações de Jameson [1984]}, as relações Norte-Sul e o estado da
academia. A artilharia de Sangren (1988) mira na academia; a fala de Said (1989)
proferida na Associação Americana de Antropologia foca no imperialismo.
Introdução 1 63
32
Em outros lugares (1990a, 1991), escrevi sobre as razões pelas quais essa
tradição alternativa de escrita etnográfica, com frequência de autoria de esposas
"sem treinamento" de antropólogos profissionais (cujos melhores exemplos são as
etnografias extraordinárias e informativas de Fernea [1969], Wolf [1968] e Turner
[1987]), mas também de antropólogos profissionais escrevendo sob pseudônimos
(por exemplo, Bowen [1964 (1954)]; Cesara [1982]), não foi reconhecida por
Clifford (1986a) como uma forma de inovação textual.
Introdução 1 65
discurso de familiaridade.
Por que invocar o humanismo, se ele já foi tão desacreditado
nos círculos pós-estruturalistas e pós-modernos?33 Certamente há
boas razões para sermos cautelosos com essa filosofia que mascarou
a persistência de diferenças sociais sistemáticas por meio do apelo a
um indivíduo supostamente universal tomado como um herói e um
sujeito autônomo; que nos permitiu pressupor que a dominação e a
exploração da natureza pelo homem era justificada por seu lugar no
centro do universo; que não percebeu que o seu "humano essencial"
tem características social e culturalmente específicas e, na verdade,
exclui a maior parte dos humanos; e que se recusa a compreender
a forma como nós, como sujeitos, somos constituídos por discursos
perpassados pelo poder. Mas, ainda assim, como o humanismo, no
Ocidente, ainda é a linguagem da igualdade humana dotada de maior
força moral, creio que não podemos deixá-lo de lado. Ao advogar em
favor de novas formas de escrita (pastiche, diálogo, colagem, etc.)
que quebram a narrativa, questionam as identidades e interferem
com a identificação, os pós-humanistas pedem a seus leitores
que adotem estratégias sofisticadas de leitura juntamente com a
crítica social. Isto faz sentido para antropólogos que escrevem em
um mundo ainda repleto de preconceitos contra aqueles sobre os
quais escrevem? Se as etnografias experimentais são criticadas por
serem solipsistas ou difíceis demais de serem lidas, como transmitir
suas mensagens teóricas, políticas ou humanas? O que talvez seja
necessário é um humanismo tático politicamente útil, ainda que
limitado em seus efeitos pela posição da antropologia ao lado do
poder em um mundo organizado de maneira desigual ao longo das
linhas das diferenças "culturais".
Por essas razões, adotei muitas técnicas da escrita humanista.
Em primeiro lugar; não me furtei a deixar rastros de mim mesma
por toda parte. Presumo, entretanto, que os leitores estão mais
interessados nas histórias que conto do que em mim, e por isso
tentei não me intrometer. Assim, embora eu não atribua um lugar
central ao encontro entre esses "outros" e eu, também não excluí as
perguntas que fiz nem fingi que algumas discussões não se dirigiam
nessa direção é o cerne da crítica de Clifford (1980) ao seu livro Orientalismo. Para
uma análise nessa mesma linha da obra de Said, ver Young (1990).
66 1 Lila Abu-Lughod
34 Obras como Briggs (1970), Brown (1991), Crapanzano (1980), Dumont (1978),
Favret-Saada (1980), Friedrich (1986), Rabinow (1977), Riesman (1977), D. Rose
(1987), Stoller e Olkes (1987) e Trawick (1990), que abordaram especificamente o
encontro do trabalho de campo e revelaram muito a respeito do próprio antropólogo,
foram extremamente úteis na exposição das formas pelas quais nosso conhecimento
sobre os outros é construído a partir de experiências pessoais. A abrangente
avaliação de B. Tedlock (1991) daquilo a que se refere como uma passagem
importante "da o~servação participante para a observação da participação" traz
uma discussão muito mais detalhada dessa literatura. Tomei conhecimento desse
trabalho quando Writing Women's Worlds já estava a caminho da impressão.
35 Uma coletânea de histórias de vida como aquela de Burke (no prelo) pode, de
38
Esse problema de ficções e outros sérios questionamentos quanto àquilo que
constitui a "verdade" sobre outras culturas é profundamente inquietante e não
pode ser descartado levianamente. Está no cerne de boa parte da reflexão crítica
da antropologia hoje e guarda uma íntima relação com a percepção de que a
etnografia realista é, ela mesma, um gênero literário (Marcus & Cushman, 1982;
Clifford & Marcus, 1986). Diversos trabalhos recentes e bem recebidos adotam
conscientemente esta outra forma de escrita (Jackson, 1986; Stewart, J., 1980),
juntando-se a clássicos como o romance etnográfico de Bowen (1964 [1954])
Return to Lau9hter. Muitos antropólogos cujos trabalhos ainda estão inéditos -
por exemplo, Barbara Tedlock - vêm fazendo experiências com esse formato. A
popularidade e a nova legitimidade deste tipo de esforço literário se refletem e são
reforçadas por iniciativas tais como o concurso anual de melhor conto etnográfico
promovido pela Anthropolo9y and Humanism Quarterly.
Introdução 1 69
editado suas conversas, reservei o uso das aspas para aquilo que
gravei ou que anotei literalmente em meu caderno de campo. E,
embora talvez estejamos sempre inventando cultura (Wagner, 1981)
e toda interpretação seja, ela mesma, uma espécie de ficção (Geertz,
1973b), não inventei deliberadamente nenhum acontecimento.
Entretanto, brinquei com a narrativa para explorar algumas
de suas possibilidades. Peguei diversas falas das mulheres
beduínas - histórias do cotidiano, discussões, recordações, contos
populares, poemas, canções e até mesmo uma carta e um ensaio
com comentários orais - e as transformei em cinco tipos diferentes
de narrativas. O capítulo 1 é o que se aproxima mais de constituir
uma história de vida, com o entrelaçamento dê lembránças
chave e acontecimentos de modo a produzir uma impressão do
fluxo do tempo e da transformação dos conflitos de uma mulher
com sua família. A segunda narrativa apresenta um conjunto de
relacionamentos que compõem um casamento, em sua maioria do
ponto de vista de uma primeira esposa. O capítulo 3 oscila, como um
caleidoscópio, de uma mãe para outra, revelando visões diferentes
dos filhos e de sua criação; nenhuma mãe ou família pode ser tomada
como representante dessa relação. O capítulo 4 gira em torno de um
evento único - um casamento. O último capítulo toma a forma de
um ensaio de uma moça, o qual, da mesma maneira que este ensaio
introdutório, é escrito e formal. Ao contrário desta introdução,
contudo, o seu ensaio foi também comentado em voz alta, e incluí
esses comentários entre parênteses. Os momentos de vida das
personagens centrais dos cinco capítulos sugerem um movimento
do passado para o futuro.
O principal trabalho editorial que fiz foi editar as histórias
das mulheres em narrativas sobre a patrilinearidade, a poliginia,
a reprodução, o casamento com o primo paralelo patrilateral e a
honra e a vergonha. Houve também um trabalho menor, porém
igualmente importante, de tornar essas histórias legíveis, mesmo
após traduzi-las. Ocasionalmente, achei que devia cortar trechos
pouco interessantes, repetitivos ou excessivamente complicados.
Hesitei principalmente em relação às repetições, já que pareciam
ser uma característica de um estilo de contar histórias. Mas, ao
traduzir palavras e frases repetidas, há o risco de dar a impressão,
no inglês escrito e também em boa parte do inglês falado, de uma
70 I Lila Abu-Lughod
infantilidade que não existe para os participantes.39 Houve também
ocasiões em que fui forçada a simplificar algumas histórias para torná-las
inteligíveis para pessoas de fora da comunidade. Quando as mulheres
conversavam entre si, e mesmo quando me contavam histórias após nossos
anos de convivência, assumiam que havia um conhecimento compartilhado
acerca de centenas de indivíduos, filiações tribais e lugares. Nos casos em
que a pessoa mencionada não apareceria em outras histórias, substituí os
nomes reais pelo termo (tácito) de parentesco - por exemplo, "seu tio" ou
"sua nora" -, algo que as próprias mulheres às vezes faziam quando estavam
contando a história para uma pessoa de fora da comunidade imediata.
Também apaguei referências a lugares pouco conhecidos que não tinham
importância para a história, muito embora tragam associações importantes
para os ouvintes habituais.
Essas decisões editoriais têm relação com um problema muito mais
amplo. Não parece haver uma maneira de transmitir para pessoas de fora a
importância de muitos detalhes dessas histórias. De fato, os detalhes são
sempre abundantes: não apenas as pessoas presentes em uma dada ocasião,
mas também a cor do vestido, a comida, a hora do dia e o valor exato pago
têm seus lugares nessas histórias. Mesmo quando os acontecimentos se
passaram há cinquenta anos e seria razoável supor que esses detalhes já
tivessem sido esquecidos, permanecem fixos nas narrativas, que são
contadas e recontadas. Cada detalhe tem significado em um mundo tão
vastamente compartilhado. Quando uma mulher está curiosa sobre outra,
ela pergunta: "O que ela tem?", querendo dizer "Quantos filhos?". Dessa
resposta ela pode deduzir imediatamente uma enorme quantidade de
informações sobre os contornos gerais da vida da mulher e suas
perspectivas. Há um mundo de diferenças entre as respostas "duas filhas" e
"cinco filhos e duas filhas". Para o leitor externo, contudo, são apenas fatos.
Por mais que queiramos preservar as palavras exatas e as estruturas
narrativas das histórias beduínas para dar uma impressão mais vívida da
maneira como essas mulheres vivem, esbarramos nos problemas mais
básicos das possibilidades de tradução. Nenhuma
39 Embora Tannen (1989) mostre que a repetição faz parte das conversas
cotidianas, a preservação desta convenção estilística na tradução das
palavras de uma mulher San no livro Nisa, de Marjorie Shostak (1981),
produziu, na minha opinião, essa impressão de uma simplicidade infantil.
Introdução 1 71
história pode se mover entre contextos tão diferentes sem alguma perda de
sentido.Muitos detalhes, nem um pouco triviais na vida cotidiana nesta
comunidade beduína, são difíceis de transmitir em um texto escrito em inglês.
Não se trata apenas daquilo que se perde na transformação da linguagem oral
em linguagem escrita, embora este seja um problema sério que outros (por
exemplo, Tedlock [1983]; Tyler [1986, 1987]) já abordaram. O problema também
não se resume às inevitáveis alterações de significado que ocorrem quando
transitamos entre línguas entre as quais não é possível encontrar equivalentes
precisos para algumas expressões e nas quais as conotações são diversas. O
ponto é que inúmeros aspectos essenciais da conversa e das narrativas
cotidianas simplesmente não podem ser ditos de maneira elegante em inglês.
Há dois hábitos de fala que são bem ilustrativos. Em primeiro lugar, a
linguagem das mulheres, principalmente ao contar histórias, é rica em pequenas
expressões de afeto dirigidas à interlocutora, tão corriqueiras que mal são
notadas: "Aí, minha pequena irmã/ minha pequena mãe/minha querida, ele
disse ... ". Em histórias sobre a comunidade, a maioria das pessoas são
mencionadas por apelidos, ou ao menos pelos diminutivos de seus nomes. Os
diminutivos sempre são expressões de afeto, com sua aplicação usual à crianças
conferindo ao uso entre adultos uma ternura especial. Entretanto, como isto
soa um pouco bobo em inglês, no qual, em vez da flexão do nome dizemos, por
exemplo, "Pequeno Ali", deixei apenas alguns poucos diminutivos nos textos.
Assim, a impressão de afeto no seio da comunidade, expressa por essas
referências, em larga medida infelizmente se perde.
Em segundo lugar, a linguagem das mulheres também é saturada por
referências religiosas. Algumas mulheres usam juramentos praticamente sem
pensar para reforçar o efeito de suas histórias, jurando por Deus e por santos
locais cujos túmulos são bem conhecidos. Muitas mulheres usam frases
religiosas padronizadas nos momentos apropriados. Algumas expressões
comuns: "Que o Profeta seja abençoado" para admiração, "Deus é grande!" para
surpresa e "Em nome de Deus" ao escutar alguma coisa estranha ou ao começar
a fazer algo. As mulheres não conseguem mencionar mortes, doenças ou
desgraças sem iniciar suas observações com frases como "[Que Deus] esteja
entre nós duas [e o mal]", "[Que] fique longe de você" e "[Que aconteça com]
72 | Lila Abu-Lughod
Para quem?
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Discuti em outro texto (Abu-Lughod, 1991) o tema dos "halfies" (termo proposto
por Kirin Narayan) e o trabalho de outros, como Kondo (1986), que escreveram com
muita eloquência sobre a experiência de fazer trabalho de campo sendo de dentro e
de fora ao mesmo tempo.
76 I Lila Abu-Lughod
que me desse filhos.
Os homens, por sua vez, falavam cada vez mais sobre a
Palestina. Por vezes, quando retornava à comunidade, me diziam,
orgulhosamente, que haviam escutado no rádio uma entrevista do
meu pai. Em uma ocasião, trouxeram um poeta para recitar para
mim um poema que havia escrito sobre a invasão israelense no
Líbano e a tragédia da Palestina. Fiquei intrigada quando, em uma
conversa entre dois líderes tribais sobre a perda de sua terra costeira
devido a confiscas e vendas e sobre o aumento do fluxo de egípcios
citadinos e de camponeses para territórios tradicionais dos Awlad J\li,
os homens concordaram que estavam sendo "palestinizados". Mais
recentemente, com a publicidade sobre a intifada palestina, pessoas
impressionadas com a coragem dos meninos palestinos que atiravam
pedras nos soldados começaram a me fazer mais perguntas sobre a
Palestina. Por que não usavam revólveres? Por que os Estados Unidos
ajudam Israel? Como revela essa última pergunta, minha identidade
norte-americana não era ignorada. Depois que, em 1986, os Estados
Unidos bombardearam a Líbia (o país do qual os Awlad 'Ali dizem
ser originários e com o qual ainda têm fortes vínculos), eles me
interpelaram sobre a posição norte-americana. Mal posso imaginar o
que vão me perguntar da próxima vez em que eu voltar, após a guerra
do Golfo.
Assim como outros intelectuais críticos da noção de
"objetividade" nas ciências sociais, argumentei (1989, 1991) que é
preciso dar mais atenção às relações específicas estabelecidas entre o
pesquisador e o objeto de estudo. Uma mulher norte, americana
palestina que escolhe viver com um grupo de pessoas que se definem
(por serem uma tribo beduína) como uma minoria de árabes
muçulmanos que vivem no Egito e em seguida escreve livros para um
público acadêmico ocidental: esta parece ser uma situação muito
peculiar. Mas, de certa forma, toda situação é peculiar. Critiquei
Bourdieu (1977, p. 1-2), que analisou de maneira muito perspicaz os
efeitos do olhar externo sobre a (in)compreensão do antropólogo da
vida social, por não conseguir romper com a doxa de que o
antropólogo é um estrangeiro. O ponto evidente que ele ignora é que
o estrangeiro nunca fica, simplesmente, do lado de fora; ele ou ela
sempre estabelece uma relação específica com o "outro" estudado,
não apenas como um ocidental ou mesmo um "halfie", mas como um
francês na Argélia durante a guerra de independência,
Introdução 1 77
41
Essa é uma expressão que Asad (1986) defende ser central para o desenvolvimento
de uma antropologia do Islã.
Introdução 1 79