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27 I Lila Abu-Lughod

Prefácio

Em um dia ventoso de dezembro de 1989, pouco mais de onze anos


Em um dia ventoso de dezembro díe 1989/ pouco mais de
após a primeira vez que peguei a estrada deserta que vai do Cairo a
---
onze anos após a primeira vez que peguei'1r-estrada deserta que
Alexandria, ·....sentei-me
· .. -· com minha tia à margem da estrada.
vç1i âõ Cairo a Alexandria, sentei-me com minha tia à margem da
.
. 'Meu pai . havia
sumido, junto com o motorista do carro que havíamos
e;;;radá. 'Meu pai havia sumido, junto com o motorista do carro que alugado, um
engenheiro
havíamos agrônomo,
alugado,eum meuengenheiro
marido, para buscar a eovelha
agrônomo, cuja compra
meu marido, para
havíamos
buscar acabado
a ovelhadecuja acertar.
compraEnquanto
havíamos isso, minhade
acabado tiaacertar.
e eu matávamos
Enquanto o
tempo isso, minha tia e eu matávamos o tempo.
Agora, Agora, assim assim
como em como1978,~m meu1978,
pai estava
meumepai acompanhando
estava me
numaacompanhando
visita a uma família numabeduína
visita a que
uihavivia perto
fathília dessa estrada,
beduína que viviapessoas
perto a
quem havíamos inicialmente conhecido juntos, mas com quem, na década
dessa estrada, pessoas a quem havíamos inicialmente conhecido
juntos,
seguinte, eu mas vivera com quem, alguns
durante na década seguinte,
períodos eu vivera
ao longo durante
de mais alguns
de dois anos.
períodos ao longo de mais de dois anos. Esta era a primeira vez que
Esta era a primeira vez que ele voltava à comunidade. Concordando comigo
ele voltava à comunidade. Concordando comigo que deveria visitá-
que deveria visitá-los para agradecer o que haviam feito para me ajudar,
los para agradecer o que haviam feito para me ajudar, meu pai havia
meu decidido
pai havia passar decidido passar
pelo Egitopelo Egito uma
durante durante umaaoviagem
viagem Oriente aoMédio.
Oriente
Médio. A irmã
A irmã de de meu meu
paipai viera
viera da da Jordânia
Jordânia para
para nosnosver ver e estavacuriosa
e estava curiosa
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as pessoas com quem eu passara tantotanto
eu passara tempo. E meu
tempo. E meumarido,
embora tivesse
marido, lido a maior
embora tivesseparte
lido adomaior
que eu havia
parte doescrito
que eusobre haviaasescrito
famílias
que íamos
sobre visitar
as famílias (incluindo a primeira
que íamos versão
visitar deste livro),
(incluindo nuncaversão
a primeira os havia
encontrado.
deste livro), Eu queria, nuncafinalmente, apresentá-losEu
os havia encontrado. a eles
queria, finalmente,
Quando retomamos
apresentá-lo a eles. o caminho, eu estava animada e orgulhosa.
Quando retomamos
Orgulhosa porque chegaríamos à porta o caminho,
da casa em eu um estava animada
Mercedes; isto e
orgulhosa. Orgulhosa porque chegaríamos à porta da casa em um
confirmaria que eu pertencia a uma boa família e que, além disso, fizera um
Mercedes; isto confirmaria que eu pertencia a uma boa família e
bomque,casamento ( quando eu ia por minha conta, andava sozinha quando
além disso, fizera um bom casamento ( quando eu ia por minha
saía do ônibus
conta, andava e dos táxis quentes
sozinha quando que saíame deixavam
do ônibus e dosnatáxis
beiraquentes
da estrada).
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Estava
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beira dapor termosEstava
estrada). uma ovelha
ainda maisde bom tamanho
orgulhosa porno
bagageiro
termosdouma carroovelha
e por de
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bagageiro caixas
carro e por cheias
de amendoim
estar espremida sem casca, chá verde,
no banco de trásdoces
come um monte
caixas cheiasde depentes, espelhos,
amendoim
xales,sem
perfumes,
casca, chá presilhas, canetase eum
verde, doces isqueiros.
monte de Meus amigos
pentes, beduínos
espelhos, xales,
perceberam
perfumes, quepresilhas,
não eramcanetas
presentes e comuns.
isqueiros.Esta
Meuscombinação era a oferta
amigos beduínos
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perceberiam que especial
não eramdapresentes
primeiracomuns.
visita deEsta
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noiva à casaera daa
oferta
família após adequada
o casamento, na ocasião especial
e eu estava da primeira
contente comigo visita
mesmade umapornoiva
ter
à casa da família após o casamento, e eu estava contente comigo
organizado tudo tão bem.
mesma por ter organizado tudo tão bem.
Eu sabia queEuera um pouco velha para tudo isso, e fiquei me
sabia que era um pouco velha para tudo isso, e fiquei me
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perguntando sobre minha própria reação. Por que será que voltar,
não apenas com membros da minha própria família, mas como
filha e recém-casada - uma configuração inteiramente patriarcal
- me fazia sentir, bem? Eu não tinha, anos atrás, me instalado
como uma pesquisadora e desenvolvido com a família beduína
uma relação totalmente independente dessas pessoas que agora
me acompanhavam? Já não havia me afastado daquele primeiro
encontro no qual, tímida e envergonhada, e me sentindo muito pouco
antropóloga, ficara sentada no banco de trás de uma van enquanto
meu pai discutia com os homens da família minha necessidade de
encontrar anfitriões que me ajudassem a aprender "as tradições e
os costumes" dos beduínos Awlad 'Ali? Já não superara o papel da
filha obediente, que antigamente representara, ao discordar de
meu anfitrião quando ele, supondo que eu compartilhava dos seus
preconceitos, criticara os europeus por suas falhas morais? Na minha
última visita, quando ele reclamara do descaso dos europeus com
suas famílias, eu argumentara que a ruptura progressiva da família
extensa poderia ser atribuída à necessidade de mobilidade da mão
de obra gerada pelo capitalismo moderno; aquilo poderia, inclusive,
dissera eu, acontecer com os Awlad 'Ali. Enquanto feminista, eu
também o repreendera por deixar suas esposas e filhas malnutridas,
enquanto esbanjava dinheiro com seus hóspedes. E a comunidade
não tinha registrado essa nova visão a meu respeito quando alguns
me haviam pedido, na condição de autoridade externa respeitada,
que apresentasse a seus compatriotas egípcios arrogantes - que os
consideram bandidos ou primitivos - a verdade sobre a vida social e
os valores beduínos?
Mesmo assim, estava excitada porque podia imaginar a reação
deles a essa visita. Os beduínos consideram a família importante e,
em parte, o que havia feito com que me aceitassem, acima de tudo,
era que haviam conhecido minha família. Minha origem como filha de
um árabe muçulmano também tinha sido importante, compensando
a minha própria aparente incompetência cultural. Chegar agora dos
Estados Unidos com mais membros da família confirmaria que eu
era, assim como eles, não apenas um indivíduo, mas parte de uma
família e, além disso, de uma família com a qual eles já haviam
estabelecido laços de reciprocidade. Ao longo dos anos, muitas vezes
os escutara discutir a preocupação do meu pai comigo e a confiança
que depositara neles. Eles interpretariam sua visita como um
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reconhecimento da sua generosidade e integridade.


Eu sabia que também ficariam contentes de me ver finalmente
casada. A maioria das meninas adolescentes com quem eu fora
inicialmente associada já estavam casadas e eram mães de uma ou
duas crianças. Uma noiva que eu ajudara a receber na casa já tinha
cinco filhos. As mulheres da família, e até mesmo alguns homens,
tinham muitas vezes expressado sua preocupação porque eu ainda
não havia me casado e formado minha própria família.
Além disso, eu estava certa de que apreciariam nosso gesto
de honrá-los com esses presentes. Eles sabiam que os não beduínos
não oferecem ovelhas como presentes; perceberiam que eu havia
aprendido com eles esse sinal de respeito. E somente os Awlad
'Ali comemoram a visita pós-nupcial desta maneira. O simbolismo
ficaria claro. Estaríamos afirmando tanto uma espécie . de
pertencimento a essa comunidade quanto, o que é mais importante,
o status dessa família específica como meus "parentes próximos".
Em 1988, eu rabiscara em uma folha de papel uma lista de coisas
que tradicionalmente se espera que uma noiva traga em sua visita
pós-nupcial. A mulher que estava me ditando a lista havia brincado
comigo sobre as razões por que eu queria saber aquilo: "Lila", dissera
ela, "esperamos que você nos traga essas coisas quando se casar!".
Ela não esperava que eu fizesse isso, mas se lembraria da nossa lista.
Essa visita tinha uma enorme importância para mim, porque
eu esperava conseguir, finalmente, juntar duas partes da minha vida.
As famílias beduínas com quem eu vivera sabiam tão pouco do meu
mundo social nos Estados Unidos quanto da minha vida acadêmica,
uma vida na qual, sob uma forma objetificada muito peculiar, eles
tinham um lugar tão central. Apresentar meu marido a eles era uma
maneira de começar a juntar os dois mundos. Estava especialmente
ansiosa para saber se o aceitariam e se me perdoariam por me casar
com um estrangeiro, com todas as implicações dessa escolha para
a minha identidade. Embora meu marido tenha feito pesquisa no
Egito e fale árabe, ele é inglês. E eu sabia que era muito importante
para eles que eu, aos seus olhos uma mulher árabe muçulmana, me
casasse com alguém da comunidade. Minha esperança era de que a
presença em si do meu pai indicasse sua aprovação e avalizasse meu
marido; mas eu não tinha certeza de como iriam reagir confrontados
com a inevitabilidade da minha dupla identidade e das minhas
lealdades divididas.
30 I Lila Abu-Lughod

Fiquei aliviada e comovida com o que aconteceu. Como era


previsível, o Haj, meu anfitrião beduíno, nos deleitou com suas
histórias sobre as tropas britânicas no deserto ocidental durante
a Segunda Guerra Mundial. Também perguntou, educadamente, se
meu marido conhecia seus amigos britânicos: Wilfred Thesiger, o
explorador, que de fato um dia passara pela região, e Mark Allen, um
diplomata britânico no Egito no início dos anos 1980 que se divertira
caçando falcões com o Haj. O que eu não esperava, contudo, era que
o Haj fosse contar algumas histórias que eu nunca escutara: histórias
sobre as origens dos britânicos, sugerindo que os antepassados de
muitos ingleses, incluindo alguns da família real, haviam sido árabes.
Só percebemos realmente o que ele estava fazendo quando, algumas
horas depois, quando nos levantamos para ir embora depois do
almoço, ele olhou bem para meu marido e em seguida virou-se para
seu irmão: "Olhe bem para o rosto dele", disse, "dá para ver que tem
sangue árabe!" .
Ao seu modo, o Haj havia tentado juntar meus dois mundos,
incorporando o mundo estrangeiro ao seu para me puxar de volta. A
distância entre esses mundos culturais e geográficos, de toda forma,
já vinha diminuindo ao longo da última década. A própria filha do Haj
havia recentemente se casado com um rapaz cujo irmão mais velho
estudava medicina na Inglaterra.A eletricidade chegara, com as novas
redes que ligavam as aldeias costeiras; as novas casas cinzentas que
se amontoavam onde antes era terreno aberto tinham, todas elas,
aparelhos de televisão em suas salas principais. Os beduínos Awlad
'Ali, como antigos pastores que conduziam rebanhos de ovelhas,
cabras e, às vezes, camelos, e envolvidos também no comércio entre
a Líbia, os oásis do deserto ocidental e o vale do Nilo, de Alexandria
até o Alto Egito, nunca haviam estado isolados. Mas agora estavam
mais intimamente integrados às instituições estatais egípcias e à
economia nacional do que há dez anos.
Muitas etnografias são abertas com a imagem da chegada.
Meu primeiro livro, Veiled Sentiments, começava com uma descrição
da estrada que se pegava para chegar à aldeia beduína na qual
moravam as famílias cujo mundo social eu iria descrever e analisar.
O segundo livro sobre a mesma comunidade em geral começa com
a imagem do retorno e das mudanças radicais que o autor encontra
após uma longa ausência. Mas eu não poderia seguir essa fórmula
porque havia se passado menos de um ano desde a minha última
Prefácio 1 31

visita e eu havia passado cinco meses na comunidade dois anos


antes. Ao contrário do meu pai, eu havia visto a estrada no deserto
ganhar duas novas pistas e não estava surpresa com as cabines de
pedágio. Eu sabia o quanto o Haj detestava essa nova estrada com
seus radares de velocidade. Havia visto a extensão gradual dos canais
de irrigação e a transformação em pomares de boa parte da terra
não cultivada em torno da comunidade. À medida em que a região
ficava mais povoada, menos famílias armavam tendas perto de suas
casas. Também havia visto o crescimento súbito do mercado local
em que os irmãos do meu anfitrião agora possuíam um edifício onde
havia um café e algumas lojas. Achavam agora que as propriedades
eram um investimento mais lucrativo do que os rebanhos de ovelhas
de que antes tiravam seu sustento. Agora, somente um irmão ainda
tinha rebanhos, e um dia, quando um camelo lhe dera um coice, até
mesmo sua velha mãe implorara que se livrasse deles. A época deles
já passou, disse ela.
Descrevi anteriormente as tribos Awlad 'Ali do deserto
ocidental como cultural e linguísticamente diferentes tanto dos
grupos beduínos do Sinai e do deserto oriental quanto dos egípcios
que vivem nas aldeias e cidades do Vale do Nilo. Os Awlad 'Ali
traçam suas origens até a Líbia, e muitos insistem veementemente
em suas diferenças em relação às pessoas que governam o país
no qual se sentem como cidadãos incômodos e onde se ressentem
de restrições cada vez maiores. Seus filhos, contudo, que têm
contato com não beduínos nas escolas públicas, são por vezes
ambivalentes diante das características que isolam os beduínos: a
força dos laços de parentesco, o controle dos parentes mais velhos
sobre os jovens, a independência que atesta a honra dos homens e
o uso voluntário do véu e a separação dos homens que indicam a
respeitabilidade das mulheres.
A geração mais jovem estava começando a ganhar consciência,
assim como provavelmente acontecerá com os leitores deste livro,
de como o seu modo de vida é marginal, seja diante .do restante do
Egito, seja do mundo árabe como um todo. Se em meados do século
XX os pastores não eram mais do que um por cento da população do
Oriente Médio, seus valores e seus modos de organização da vida
econômica e sociopolítica são agora ainda mais minoritários. Isso
fica especialmente claro na situação das mulheres. Na maior parte
do Egito, as mulheres trabalhadoras nos anos 1980 estavam lutando
32 1 Lila Abu-Lughod

com as demandas conflitantes do emprego e da família: cuidando


de casas em regiões agrícolas ou pastoris enquanto seus maridos
trabalhavam como migrantes na Arábia Saudita, costurando,
vendendo objetos como ambulantes nas ruas, enfrentando as
multidões nos transportes públicos para chegar a seus empregos em
escritórios e nas casas de pessoas ricas, ou desenvolvendo carreiras
na política, nos negócios, como professoras ou médicas - e algumas
delas também eram líderes feministas ou ativistas islâmicas. Para
as mulheres das famílias que conheci, contudo, esse tipo de vida é
apenas uma possibilidade distante. Dadas as diferenças entre elas e
a maior parte das mulheres no Oriente Médio, qual seria o propósito
de recontar, como faço neste livro, suas histórias?
Este livro pretende apresentar, sob a forma de uma
etnografia narrativa composta pelas histórias e conversas dessas
mulheres, uma crítica geral da tipificação etnográfica. Busquei,
como outros antropólogos vêm fazendo hoje, um novo estilo
etnográfico. Estava também intrigada com as observações sobre
método e voz provenientes da teorização feminista e solidária
com as preocupações dos estudos sobre o Oriente Médio quanto
ao modo como as sociedades árabes em geral são retratadas.
Decidi explorar o modo como as histórias incrivelmente complexas
das pessoas que conheci nessa comunidade no Egito poderiam
colocar em xeque a capacidade das generalizações antropológicas
de representar vidas, delas ou de outros, de forma adequada. A
sequência resultante de narrativas está organizada em torno de
cinco temas antropológicos associados ao estudo das mulheres no
mundo árabe: patrilinearidade, poliginia, reprodução, casamento
com o primo paralelo patrilateral e honra e vergonha. Mas, em vez
de fazer com que os títulos dos capítulos expliquem as histórias, a
ideia é fazer com que as histórias implodam os títulos.
Os capítulos narrativos são precedidos por uma introdução
escrita na forma mais convencional de um ensaio acadêmico que
posiciona a obra em seus contextos teóricos e polí~icos. Minha
intenção ao escrevê-la é alertar os leitores para a possibilidade de
ler o livro de uma maneira específica. Os capítulos narrativos não
pretendem apenas divertir ou ilustrar a vida beduína nos anos 1980;
são também comentários críticos sobre os modos antropológicos de
compreensão da existência humana. Enquanto representações da
vida beduína, essas narrativas estão deliberadamente organizadas
Prefácio 1 33

de acordo com um conjunto de objetivos determinados pelo


contexto em que serão lidas, e não pelo contexto em que ocorreram.
Isto é, espero que o público - o qual, presumo, será basicamente
ocidental ou de educação ocidental, aproximando-se do texto por
orientação antropológica (e sua crítica atual), pelo feminismo (e suas
dissensões internas, incluindo as feministas do Terceiro Mundo) e
pelos estudos do Oriente Médio (com sua consciência dos problemas
do orientalismo) - se aproxime do livro de forma crítica, tendo em
mente questões sobre a política da representação etnográfica e
da descrição sociológica, os problemas dos objetivos e métodos
feministas e os pressupostos sobre o Oriente Médio muçulmano.
Embora principie com uma introdução, o livro não tem
uma conclusão formal. Mergulhamos nas histórias no capítulo 1 e
permanecemos com elas até o final. Uma conclusão discursiva daria
um fecho; daria ao leitor "o significado" de todas essas histórias
sobre pais, filhos, maridos, esposas, conflitos, alegrias e esperanças.
Os leitores ocupados poderiam então pular da introdução para
a conclusão, supondo dispor de uma interpretação para tudo o
que está espremido entre as duas. Um comentário conclusivo,
enunciando as lições de todas essas histórias ricas e complexas,
teria restaurado a superioridade do modo interpretativo/analítico
colocado em xeque pela própria construção das narrativas; teria
restabelecido a autoridade familiar da voz do especialista; e, o que
é pior, teria inevitavelmente restringido as histórias. O fato de tê-
las selecionado e organizado de acordo com os temas designados
pelas aberturas dos capítulos já colocava limites suficientes
aos seus significados. Tentar resumir sua importância os teria
cerceado ainda mais. Teria, ao final das contas, diminuído seu
poder e seu potencial para inundar nossas categorias analíticas. Na
vida, no momento ·em que foram narradas no Egito, essas histórias
e conversas não estavam separadas por temas, ao menos não por
esses temas. E, embora eu quisesse que essas histórias pudessem
interessar a um conjunto de debates intelectuais em curso em
diversas áreas nos Estados Unidos e na Europa nos anos 1990,
queria também que fossem mais do que isso.
Para não confundir os nomes

Primeira Geração

Migdim: a velha mãe


Jawwad: o marido de Migdim, já falecido

Segunda Geração

Hamid: o filho mais velho de Migdim


Sagr: (ou Haj Sagr) o segundo filho de Migdim
Dhahab: a filha mais velha de Migdim
Ngawa: a segunda filha de Migdim
Lawz: a filha mais nova de Migdim
Gateefa: a primeira esposa de Sagr (sua prima em primeiro grau)
Safiyya: a segunda esposa de Sagr
Azza: a terceira esposa de Sagr
Fayga: esposa de um dos outros filhos de Migdim

Terceira Geração

Sabra: a filha mais velha de Gateefa e Sagr


Kamla: a segunda filha de Gateefa e Sagr
Selima: filha de Hamid
Aisha: amiga da família e futura cunhada de Kamla
Khwayyir: neto de Migdim
Salih: neto de Migdim

Quarta Geração

Kafy: bisneto de Migdim, neto de Sagr e Safiyya


Introdução

Todo livro conta histórias, algumas intencionais, outras não.


Este traz histórias contadas por mulheres e sobre mulheres de uma
pequena comunidade beduína no Egito. É composto por conversas,
narrativas, brigas, canções, lembranças e até mesmo um ensaio, que
essas mulheres compartilharam entre si ou comigo. Recordo-as
aqui em uma ordem específica, tendo em mente um público muito
diferente. Implícita na maneira como as recontei e no próprio fato
de que escolhi mantê-las como "apenas histórias" está uma outra
história dirigida para minhas colegas de profissão - as antropólogas,
as feministas e as estudiosas do Oriente Médio islâmico a quem
primordialmente se dirige esta introdução.
Em certo sentido, é claro, a forma incomum desta etnografia
deve muito a essas mulheres incríveis com quem vivi nessa
comunidade beduína Awlad 'Ali. Durante minha primeira estadia
nessa pequena aldeia da costa noroeste do Egito, uma estadia
que durou quase dois anos, no final da década de 1970, me senti
muito pouco à vontade usando o gravador. Quando voltei para os
Estados Unidos, escrevi um livro com base em dezoito cadernos
esfrangalhados nos quais havia rabiscado anotações. Nesse livro,
tentei apresentar uma análise geral da vida social, da moralidade e
da poesia nessa comunidade, com um foco especial nas relações de
gênero (Abu-Lughod, 1986).
Senti, entretanto, que a riqueza das conversas dessas pessoas
e da complexidade de suas vidas era tão maior do que aquilo que eu
havia conseguido expressar no livro que eu precisava tentar de novo.
Compartilhava com muitas pessoas a impressão de que havia muitas
limitações nas monografias antropológicas clássicas, por mais
sofisticadas, sensíveis ou bem escritas que fossem, e me perguntava
se seria possível inventar um estilo de escrita etnográfica que
pudesse captar melhor as qualidades da "vida como vivida" nessa
comunidade. 1 Um aspecto crucial desse modo de vida era a forma

1
A expressão "a vida como vivida" vem de Riesman (1977). Para expressões recentes
e interessantes da insatisfação com o hiato entre a monografia escrita e a vida como
vivida no campo ver, entre outros, Jackson (1989) sobre o corpo; Rosaldo (1989)
sobre a emoção; e Stoller (1989) sobre os sentidos.
40 1 Lila Abu-Lughod

como era captado em histórias. A vivacidade e o estilo da maneira


de contar essas histórias sobre o cotidiano me impressionaram. Os
ritmos de suas conversas, com as vozes virando um murmúrio e
em seguida se elevando a alturas dramáticas ao encenar falas das
personagens, as expressões, os exageros, os detalhes - tudo conferia
intensidade, até mesmo premência, aos relatos. Para nós, para quem
os jornais e a televisão definem o que é notícia e cujos espaços
imaginativos são constituídos por livros e filme's, pode ser difícil
perceber o que essas histórias sobre a vida e as pessoas significam
nesse mundo social - um mundo no qual todo mundo é conhecido
(ou tem alguma conexão com alguém conhecido) e em que os únicos
eventos importantes são aqueles que acontecem com eles.
Voltei ao Egito várias vezes entre 1986 e 1989 na esperança
de que, se pudesse gravar essas narrativas tão expressivas, as
características da vida que eu havia percebido quando estava com
essas mulheres não escapariam tão facilmente a mim ou àqueles
para quem eu queria escrever. 2 Minha expectativa não era de que eu
seria capaz, apenas por trabalhar a partir de falas gravadas (algumas
dirigidas a mim, outras enunciadas sem qualquer atenção dada
à minha presença), de representar de modo mais fiel a realidade
da vida naquela comunidade. Já aprendemos a desconfiar das
alegações acerca da transparência dos textos e da capacidade das
representações de espelhar a realidade. Este livro de histórias, assim
como qualquer outro tipo de etnografia, envolve análise e é moldado
pelas perguntas feitas e pelo ponto de vista assumido. Apresenta,
conforme fazem todas as etnografias segundo Clifford (1986a), uma
"verdade parcial". Mas gosto de pensar que este livro, com seu uso
mais pleno da narrativa e sua maior dependência da fala gravada,
revela coisas que meu primeiro livro não pôde mostrar.

Interseções

Meu vago anseio por encontrar uma maneira diferente


de escrever sobre a experiência de morar naquela comunidade

2 A essa altura, é claro, eu conhecia bem as pessoas; e, o que é mais importante,

elas me conheciam. Comecei a gravar na presença daqueles que não se importavam,


reunindo assim a maior parte do material a partir do qual este livro foi construído.
Introdução 1 41

particular do Egito pareceu, a princípio, encontrar legitimidade nos


debates sobre a escrita das mulheres e sobre o método feminista.
Solidária com as críticas feministas ao debate acadêmico em muitas
áreas (incluindo a minha), comecei a me perguntar se aquilo que
eu estava tentando fazer era escrever uma etnografia "em uma voz
diferente" (para tomar de empréstimo a expressão de Gilligan [1982]).
Nas formulações iniciais do projeto, argumentei que este livro seria
escrito com a voz das mulheres beduínas (e não dos homens); e, ainda
mais importante, seria escrito com a voz de uma mulher etnógrafa. 3
Essa maneira de colocar o problema parecia especialmente adequada
devido à agitação dos círculos antropológicos em relação à escrita
etnográfica. Em sua introdução a Writing Culture, 4 Clifford (1986a,
p. 19) fez a polêmica afirmação de que as antropólogas 'feministas
não haviam se envolvido com as inovações textuais, uma afirmação
na qual só mais tarde parei para pensar. 5 Na ocasião, simplesmente
sugeri que meu projeto iria preencher essa lacuna.
Com o passar do tempo, fui ficando cada vez mais cética em
relação às minhas intenções iniciais. Em primeiro lugar, surgiu um
desconforto com a noção de uma voz especificamente feminina na
escrita. Qualquer tentativa de isolar o que era específico das escritoras
naufragava, ao final, num falso essencialismo e numa cegueira
cultúral. 6 As antropólogas feministas já haviam feito excelentes
discussões sobre a diversidade das experiências das mulheres e a
variabilidade dos sistemas de gênero para que se pudesse imaginar
que haveria alguma "experiência da mulher" ou algum "estilo da
mulher" universais, ainda que em muitas sociedades os homens e as

3
Para uma síntese des~a posição, ver Abu-Lughod (1988a).
4
(N. da T.) Publicado no Brasil em 2016 sob o título de A Escrita da Cultura pela
Editora Papéis Selvagens e pela EdUERJ.
5
Minha crítica a essa posição pode ser encontrada em Abu-Lughod (1990a).
Na mesma época, outras antropólogas feministas estavam formulando críticas
contundentes; ver Gordon (1988), Mascia-Lees, Sharpe e Cohen (1989); e
Visweswaran (1988).
6
Para uma boa crítica do feminismo cultural, ver Echols (1984). Os alertas de
Haraway (1985) sobre uma associação organicista falsa com as mulheres são
importantes, e a crítica de Butler (1990) ao essencialismo é especialmente lúcida. A
literatura sobre a escrita das mulheres é vasta. Discuto parte dela em Abu-Lughod
(1990a).
42 1 Lila Abu-Lughod

mulheres de fato vivessem em mundos até certo ponto diferentes.7 Os


próprios estudos feministas nos anos 1980 foram sacudidos por autocríticas
geradas pela percepção da quantidade de grupos de mulheres (lésbicas, afro-
americanas, "mulheres de cor", mulheres do Terceiro Mundo e outros) que
haviam sido excluídos das análises ou da participação no desenvolvimento da
teoria. Por mais atraente que fosse a perspectiva de associar certas qualidades
positivas, tais como sensibilidade, cuidado, atenção, corporificação ou
igualdade com as mulheres e seus projetos, era preciso, afinal, enfrentar o fato
de que essas "virtudes femininas" pertenciam estritamente a uma subcultura
contemporânea euro-americana.ª
Se não havia "uma voz diferente” para as mulheres, como definir o
que eu estava buscando? A formulação seguinte que elaborei para o livro que
queria escrever foi de uma etnografia feministà:.
Essa definição suscitou um segundo conjunto de problemas, o mais básico e
tendencioso sendo o significado de "feminista". Uma definição mínima
poderia incluir uma preocupação com as condições das mulheres e com as
implicações culturais, sociais, econômicas e políticas dos sistemas de gênero
para elas. Mas, se o feminismo incluía também algum tipo de projeto
emancipatório aplicado aos sujeitos da etnografia, então essa definição não
servia. Ong (1988, p. 90) estava certa ao insistir em que as feministas
deveriam "reconhecer outras formas de subjetividades baseadas no gênero e
na cultura, e aceitar que os outros muitas vezes escolhem conduzir suas vidas
de maneira distinta da nossa visão particular do futuro".9
O projeto etnográfico poderia, contudo, ser feminista em relação ao
ambiente acadêmico no qual estivesse inserido; poderia abordar
pressupostos da antropologia em geral, e da antropologia do mundo árabe em
particular, usando insights feministas. Em um artigo muito relevante,
Strathern (1987) definiu a relação entre a

7 A antropologia feminista ou a antropologia das mulheres, como se costuma


dizer (com implicações diferentes), é hoje um campo de estudos importante.
Para introduções recentes ao campo e seus temas, ver Collier e Yanagisako
(1987); di Leonardo (1991); Moore (1988); e Sanday e Goodenough (1990).
8
As explorações de Lutz (1988, 1990) sobre as associações entre gênero e
emoção na ideologia ocidental são especialmente interessantes.
9
Para outras discussões sofisticadas das relações entre o feminismo ocidental,
os feminismos do Terceiro Mundo ou "orientais" e outras mulheres não
ocidentais, ver Lazreg (1988); Mohanty (1984); e Spivak (1987).
Introdução 1 43

antropologia e o feminismo como "tensa". Conforme argumentei em outro


lugar (Abu-Lughod, 1991), ela tinha razão na sua avaliação, mas estava
errada em sua análise quanto à fonte dessa tensão. Ela a localizou na
diferença das relações entre o self e o outro no caso da feminista e da
antropóloga, reconhecendo a dinâmica de poder na primeira relação, mas
não na segunda. Ao menosprezar a desigualdade inerente à posição do
self antropológico, (geralmente) um ocidental estudando outros não
ocidentais, ela desconsiderou a primeira lição das análises feministas,
desde Simone de Beauvoir: as relações - ou, mais precisamente, as
construções - do self e do outras raramente são isentas de poder.10 Ser
feminista implica ser sensível à dominação; para a etnógrafa, isso significa
ter consciência da dominação na sociedade descrita e na relação entre a
escritora (e os leitores) e as pessoas sobre as quais está escrevendo.
A intensa preocupação das pesquisadoras feministas com as
questões de método nas ciências sociais, na história da ciência e no
feminismo também foi relevante para esse projeto. Com base na
percepção sobre a quantidade de conhecimento que havia sido gerado
sem qualquer atenção para com as mulheres e com parca atenção para o
gênero, essas escritoras haviam reexaminado as implicações das
reivindicações de objetividade que acompanharam esse conhecimento.
Algumas tentaram solapar essas reivindicações mostrando a parcialidade
dos vários tipos de conhecimento; outras expuseram as associações
relativas ao gênero da distinção binária entre objetivo e subjetivo no
Ocidente (Keller, 1985) e analisaram os efeitos de poder das afirmações
de objetividade (MacKinnon, 1982; Smith, D., 1987). Muitas propuseram
formas alternativas de conhecer ou de buscar o conhecimento com base
em "experiências de mulheres" ( descritas de formas variadas, como a
experiência de ser subalterna; mãe, seres ou objetos sexuais, filhas e
outras), propostas acertadamente criticadas como inviáveis (Harding,
1987; Stacey, 1988). Esses esforços deram uma contribuição importante:
aguçaram nossa consciência da natureza onerosa das reivindicações de
objetividade e do aspecto situado de todo conhecimento (Haraway,
1988). Posicionalidade ensina a teoria feminista não apenas não é uma
desvantagemcomo· precisa ser explicita.da e explorada

10 A tradição alternativa, e cada vez mais popular, de se estudar a própria


sociedade
ou as sociedades europeias requer um tratamento específico.
44 I Lila Abu-Lughod

O trabalho das feministas, assim, incentivou uma consciência


mais aguçada de dois temas - o ponto de vista e a dinâmica de poder
entre o selfe o outro-plenamente compatíveis com a atenção cada vez
mais sofisticada dos antropólogos para a reflexividade no trabalho
de campo e na escrita. As críticas à antropologia vinham de todos os
lados, nos instando a questionar aquilo sobre o que trabalhávamos,
como escrevíamos e para quem escrevíamos. As relações entre o
self e o outro eram centrais para o dilema da diferença cultural; a
questão do método e sua relação com o ponto de vista era central
para a política da representação (nos textos etnográficos), se não
para a política da antropologia como disciplina. Nessa convergência
entre as teorias feministas e antropológicas ocorrida durante aquilo
que Marcus e Fisher (1986) chamaram de "momento experimental",
comecei a perceber com mais clareza os problemas aos quais queria
me dedicar na minha segunda etnografia dessa pequena comunidade
do deserto ocidental do Egito.

A escrita contra a cultura

Por que uma antropóloga treinada na linguagem analítica


profissional das ciências sociais escolheria escrever uma etnografia
composta por narrativas e conversas? Afinal, esse tipo de livro
tem 'algumas limitações. Falando sobre modos de escrita sobre
sociedades, Jackson (1989, p. 186) observou que "o valor e o lugar de
estilos discursivos distintos precisam ser determinados pela situação
em que nos encontramos e pelos problemas que discutimos". 11 Um
livro de histórias não pode apresentar, da forma sistemática ou nos
termos teóricos nos quais os antropólogos geralmente trabalham, a
lógica da vida social na comunidade que estudei.12 Para isso, o leitor
deve buscar outras discussões sobre os Awlad 'Ali (por exemplo,
Abou-Zeid, 1966; Abu-Lughod, 1986; Mohsen, 1975).

11
Taussig (1987) argumentou que os próprios horrores do terror colonial na
América Latina o haviam obrigado a escrever em um estilo diferente. Pandolfo
(1991) tentou reproduzir em sua escrita os conceitos, marroquinos e de outros
grupos, que estava tentando analisar.
12 Para uma discussão muito interessante daquilo a que se refere como o "enigma

teoria-prática", na qual argumenta que a oposição entre teoria e etnografia é


simbólica, ver Herzfeld (1987).
Introdução 1 45

Este livro de histórias pode, contudo, ser relevante para um


conjunto de preocupações teóricas sobre a política das representações.
Para mim, o aspecto mais perturbador da descrição etnográfica era que,
assim como outros discursos científicos sociais, ela chafurdava em
generalizações. Seja "buscando" as leis da socialidade humana ou
simplesmente descrevendo e interpretando modos de vida, nosso objetivo,
como antropólogos, geralmente é usar detalhes e particularidades de vidas
individuais para produzir tipificações. A desvantagem, como argumentarei
mais adiante, para quem trabalha com pessoas que vivem em outras
sociedades, é que generalização pode fazer com que esses "outros"
pareçam, simultaneamente, por um lado mais coerentes e coesos do que
nós e, por outro, mais diferentes de nós do 'que talvez sejam realmente. A
generalização, por mais útil que seja para outros projetos, ajuda a fazer
com que conceitos como "cultura" e "culturas" pareçam fazer sentido. Isso,
por sua vez, favorece a fixação de fronteiras entre o self e o outro.
Minha preocupação com o modo generalizante do discurso das
ciências sociais não é, assim, porque ele abstrai e reifica, embora eu seja
simpática às críticas que defendem essa visão, como aquela feita por D.
Smith (1987).13 Também não estou argumentando em favor da
particularidade em detrimento da generalidade como forma de privilegiar
os processos micro em relação aos macro. Os estudiosos da vida cotidiana
que examinam as microinterações são tão afeitos às .generalizações
quanto os cientistas sociais que analisam movimentos sociais ou
interações globais. Em qualquer situação, a atenção às particularidades das
vidas individuais não quer dizer, necessariamente, desconsiderar as forças
e dinâmicas que não têm base local; os efeitos dos processos extralocais
ou de longo prazo sempre se manifestam nos níveis locais e específicos.
Entretanto, os antropólogos têm de fato duas razões para serem
especialmente cautelosos diante da generalização. A primeira
13
Falando sobre o discurso sociológico, D. Smith (Ibid., p. 130) observa, por
exemplo, que "a complexa organização das atividades de indivíduos reais e
suas relações reais entra no discurso por meio de conceitos tais como
classe, modernização, organização formal. Cria-se assim um domínio de
objetos teoricamente constituídos, libertando o domínio discursivo de sua
base nas vidas e no trabalho de indivíduos reais e liberando a pesquisa
sociológica para
46 I Lila Abu-Lughod

é que, enquanto parte de um discurso profissional de objetividade


e expertise, ela é inevitavelmente uma linguagem de poder. É a
língua daqueles que parecem se situar fora e longe daquilo que
descrevem. Mais uma vez, a crítica de D. Smith do discurso
sociológico é importante. Ela argumentou (1987, p. 62) que esse
modo aparentemente distanciado de refletir sobre a vida social é,
na verdade, localizado: representa a perspectiva daqueles que estão
envolvidos em estruturas profissionais, gerenciais e administrativas,
e suas origens residem no gerenciamento de grupos sociais internos
tais como trabalhadores, mulheres, negros, pobres ou presidiários.
É, assim, parte daquilo a que ela se refere como "o aparato regulador
dessa sociedade". Essa crítica pode se aplicar de modo igualmente
fácil à antropologia, com sua perspectiva intersoéietária - em vez de
intrasocietária - e suas origens situadas não em problemas políticos
domésticos, mas na exploração e na colonização do mundo não
europeu. 14 Além disso, o próprio hiato entre os discursos profissionais
e autorizados da generalização e as linguagens da vida cotidiana (a
nossa e as dos outros) estabelece uma separação fundamental entre,
por um lado, o antropólogo e seus leitores e, por outro, as pessoas
sobre as quais se escreve, o que por sua vez facilita a construção
desses outros como simultaneamente diferentes e inferiores.
Para o antropólogo, o segundo e mais sério problema com
a generalização é que, ao produzir homogeneização, coerência e
atemporalidade, ela contribui para a criação de "culturas". No processo
de generalizar a partir de experiências e conversas com pessoas
específicas de uma comunidade, o antropólogo pode obscurecer suas
diferenças e homogeneizá-las. O esforço para produzir descrições
etnográficas gerais das crenças e ações das pessoas arrisca suavizar
as contradições, os conflitos de interesses, as dúvidas e as brigas,
além das alterações nas motivações e nas circunstâncias históricas.
Além de sua fragilidade teórica, esse apagamento do tempo e dos
conflitos é enganoso, pois faz com que aquilo que se situa dentro
da fronteira delimitada pela homogeneização pareça essencial e
fixo. A aparência de uma falta de diferenciação interna torna mais
fácil conceber os grupos de pessoas como entidades precisas e bem
demarcadas, como as "culturas" dos "Nuer", dos "balineses" ou dos

14
Essas ideias sobre a relação entre as disciplinas acadêmicas e o controle social são
mais profundamente examinadas em Foucault (1978, 1980).
Introdução 1 47

"beduínos Awlad ‘Ali", povoadas por seres culturais genéricos que fazem isso
ou aquilo e que acreditam nisso ou naquilo. Embora essa noção de culturas
separadas seja utilizada sem maiores reflexões, há boas razões para se
considerar essas entidades como ficções perigosas e para defender aquilo a
que me referi como a escrita contra a cultura (Abu-Lughod, 1991)
Esse ponto de vista talvez pareça surpreendente. Como substituta do
conceito científico de raça, popular no século XIX, mas hoje desacreditado
enquanto forma de estabelecer diferenças essenciais entre grupos de
pessoas, a cultura foi um conceito positivo. Pareceu, a princípio, resolver as
dificuldades morais e analíticas inerentes à "raça", ao retirar a diferença do
domínio' do natural ou do inato. Seja concebida como um conjunto de
comportamentos, costumes, tradições, planos, receitas, instruções ou
programas (apenas para listar a gama de definições oferecidas por Geertz
[1973a, p. 44]), a cultura era algo que se aprendia e que, portanto, podia
mudar. E, o que era ainda mais importante, ao contrário da raça, e até mesmo
do antigo conceito de "cultura" como sinônimo de civilização (em contraste
com a barbárie), a ideia moderna permitia diferenças múltiplas, em vez de
binárias. A mudança para "cultura" (com a inicial em minúscula e com a
possibilidade de um "s" ao final, como colocou Clifford [1988a, p. 234])
colocou, portanto, imediatamente em xeque a possibilidade de uma
hierarquização fácil e teve, de fato, um efeito relativizador. A contribuição da
antropologia do século XX foi, assim, a promoção do relativismo cultural em
detrimento da avaliação e do julgamento. Em muitos casos, como Marcus e
Fisher (1986) argumentaram, a antropologia chegou até mesmo a usar seu
conhecimento sobre os outros como uma forma de autocrítica. 15
Entretanto, apesar de sua intenção antiessencialista, o conceito de
cultura mantém a tendência a fazer com que a diferença pareça autoevidente
e com que as pessoas pareçam ser "outras". 16
15 Para uma análise interessante dos significados de "cultura" nos anos 1920,
ver Stocking (1989).
16 Said (1978) demonstrou o modo como o discurso acadêmico do
orientalismo, ao superpor geografia, raça e cultura, fixa as diferenças entre os
povos "do Ocidente" e os povos "do Oriente" de maneira tão rígida que
poderia até mesmo ser considerada inata. Alguns movimentos anticoloniais e
lutas atuais trabalharam de forma que poderia ser chamada de orientalismo
reverso, em que as tentativas de reverter a
48 1 LilaAbu-Lughod

Muitos antropólogos expressaram suas preocupações com o modo


como a noção de cultura tende a transformar a diferença em algo
fixo e atemporal. Appadurai (1988b ), em seu argumento radical de
que os "nativos" são uma invenção da imaginação antropológica,
mostra a cumplicidade do conceito antropológico de cultura com
um "aprisionamento" contínuo dos povos não ocidentais no tempo
e no lugar. Ele argumenta que, ao não olhar para suas histórias,

relação de poder procedem por meio da valorização, para si mesmo, daquilo que no
sistema anterior havia sido desvalorizado como característico do outro. Um apelo
gandhiano em favor da maior espiritualidade da Índia hinduísta, em comparação
com o materialismo e a violência do Ocidente, e um apelo islâmico em favor de uma
fé maior em Deus, em comparação com a imoralidade e a corrupção do Ocidente,
aceitam na mesma medida os termos essencialistas das construções orientalistas.
Ainda que virando do avesso essas construções, esses apelos preservam a rígida
percepção da diferença baseada na cultura.
É possível traçar um paralelo com o feminismo. Um princípio básico do feminismo
é que "as mulheres não nascem mulheres, tornam-se mulheres". Para a maioria
das feministas, era importante localizar as diferenças entre os sexos na cultura, e
não na biologia ou na natureza. Embora essa perspectiva tenha inspirado algumas
teóricas feministas a tratar os efeitos sociais e pessoais do gênero como um sistema
de diferenças, para muitas outras essa abordagem levou a explorações e estratégias
baseadas na noção de uma cultura de mulheres. O feminismo cultural (ver Echols,
1984) assume muitas formas, mas tem muitas das características do orientalismo
reverso que discutimos acima.
Para feministas francesas como Irigaray (1985a, 1985b ), Cixous (1983) e Kristeva
(1981), màsculino e feminino, ou até mesmo macho e fêmea, representam modos
de ser essencialmente diferentes. As feministas anglo-americanas vão em outra
direção. Algumas tentam "descrever" as diferenças culturais entre homens e
mulheres - Gilligan (1982) e suas seguidoras (por exemplo, Belenky et ai., 1986),
que elaboram a noção de "uma voz diferente", são exemplos conhecidos. Outras
tentam "explicar" as diferenças, seja através de uma teoria psicanaHtica socialmente
informada (por exemplo, Chodorow, 1978), uma teoria derivada do marxismo
sobre os efeitos da divisão do trabalho e do papel das mulheres na reprodução
social (Hartsock, 1985), uma análise das práticas maternais (Ruddick, 1989) ou até
mesmo uma teoria da exploração sexual (MacKinnon, 1982). Boa parte das teorias
e práticas feministas tentam construir ou reformar a vida social de acordo com essa
"cultura das mulheres". Há propostas para uma universidade centrada nas mulheres
(Rich, 1979), uma ciência feminista (Rose, H., 1983, 1986), uma metodologia
feminista nas ciências e nas ciências sociais (Meis, 1983; Reinharz, 1983; Smith,
D., 1987; Stanley e Wise, 1983) e até mesmo uma espiritualidade (por exemplo,
Christ e Plaskow, 1979) e uma ecologia feministas. Essas propostas quase sempre
se baseiam em valores tradicionalmente associados às mulheres no Ocidente: um
sentido de cuidado e conexão, a maternidade, a imediaticidade da experiência, o
envolvimento corporal ( versus o abstrato), e daí em diante.
Introdução 1 49

I
negamos a esses povos a mesma capacidade de movimento, viagem
e interação geográfica que os ocidentais têm sem sequer perceber.
Em outras palavras, a fluidez das fronteiras entre os grupos, as
línguas e as práticas tem sido mascarada pelo conceito de cultura.
O trabalho de E. Wolf (1982) sobre "os povos sem história"
revelou, de maneira semelhante, movimentos maciços de povos e
transformações na vida local sob o impacto da expansão ocidental e
das interações dela decorrentes com as economias europeias - tudo
isso em comunidades que os antropólogos costumam tratar como
representantes de culturas intocadas ou duradouras. R. Rosaldo
(1989) argumentou que não apenas o "mito do Etnógrafo Solitário"
e seu produto, a etnografia clássica, geram o mito das culturas
separadas e atemporais, mas que faríamos melhor se prestássemos
atenção às zonas fronteiriças.17
Outros sugeriram também que as teorias culturais tendem a
enfatizar excessivamente a coerência interna dessas entidades (Abu­
Lughod, 1990c). Clifford observa que "a disciplina antropológica
baseada em trabalho de campo, ao constituir sua autoridade, constrói
e reconstrói outros culturais e se/ves interpretativos coerentes"
(Clifford, 1988b, p. 112). A etnografia, diz ele, é uma forma de coleção
cultural (como a coleção de arte) na qual "experiências e fatos
diversos são selecionados, reunidos e separados de seus contextos
temporais originais, ganhando então um valor duradouro em um
novo arranjo" (lbid., p. 231). As metáforas orgânicas da completude e
a metodologia do holismo que caracteriza a antropologia favorecem,
ambas, a coerência, a qual por sua vez contribui para a percepção
das comunidades como dotadas de fronteiras nítidas - em algum
nível fundamental, separadas e diferentes umas das outras.
Assim, o problema com o conceito de cultura é que, apesar de sua intenção
positiva, parece funcionar como uma ferramenta essencial para a produção do "outro”.
Enquanto discurso profissional que discute o significado da cultura para explicar e
compreender
a diferença cultural, a antropologia acaba por também construir,
produzir e manter a diferença. O discurso antropológico ajuda
a atribuir à diferença cultural (e à separação entre os grupos aí
implicada) ares de autoevidência.

17
Para uma visão anterior e mais elogiosa da forma como a escrita etnográfica
exagera as diferenças culturais, ver Boon (1982, p. 26).
50 1 Lila Abu-Lughod

A diferença sempre traz a hierarquia em seu bojo, como


as teóricas feministas sugeriram? A antropologia parece apostar
alto na manutenção e perpetuação de uma crença na existência
de culturas identificáveis como diferentes e separadas da nossa. 18
Alguns já argumentaram que a alteridade e a diferença podem
ter assumido "qualidades talismânicas" para os antropólogos. 19 A
antropologia precisa de outros diferentes do self, quer seu objetivo
seja a autocrítica cultural, quer seja a afirmação de uma tolerância
I. iluminada por meio do relativismo. Mas a diferença entre o self e
5

o outro será sempre hierárquica, porque o self é percebido como


primário, autoformado, ativo e complexo, quando não positivo. No
mínimo, o self é sempre o intérprete e o outro o interpretado.

Qualquer intelectual que esteja interessado em questionar essa


hierarquização deve buscar maneiras de minar essa noção essencializada
de "culturas" diferentes das nossas e de pessoas separadas de nós. Com
certeza há muitas formas de se fazer isso, mas neste livro tentei escrever
contra a cultura" trabalhando contra a generalização. Contar histórias
assim me pareceu, poderia ser uma ferramenta poderosa para perturbar o
conceito de cultura e subverter·o processo de "alterização' nele contido.20
Os antropólogos costumam fazer generalizações sobre as comunidades
dizendo que se caracterizam por determinadas instituições, regras ou
formas de fazer as coisas. Por exemplo, podemos e muitas vezes dizemos
coisas como "os Bongo-Bongo são políginos". E se nos recusássemos a
tipificá-los dessa maneira e, em vez disso, nos perguntássemos como um
grupo específico de pessoas - três mulheres e um homem de uma
comunidade, por exemplo - vivem de fato essa "instituição" a qual
chamamos de "poliginia"? As sociedades mediterrâneas costumam ser
caracterizadas como sociedades de "honra e vergonha". E se

18 Arens (1979), por exemplo, formulou uma pergunta provocativa: por


que os antropólogos se agarram tão firmemente à crença de que em
algumas culturas o canibalismo é uma prática ritual aceita, se as
evidências (sob a forma de relatos de testemunhas oculares) são tão
escassas (ou mesmo, diz ele, inexistentes)?
19 Said (1989: 213) utilizou essa expressão em sua discussão sobre o
estado da arte da antropologia
20 Em outro lugar (1991 ), fiz referência a algumas das poderosas
estratégias alternativas que os acadêmicos adotaram para escrever contra
a cultura, em
particular o estudo das interconexões globais e da transformação histórica
e as explorações teóricas de noções como "prática" e "discurso'
Introdução 1 51

nos perguntássemos como uma menina egípcia à espera de que seu casamento
fosse arranjado por uma família importante viveu complexo “cultural” nos anos
1980?
Ao enfatizar a particularidade das experiências dessa menina ou
daquele casamento específico, e ao construir um retrato da poliginia ou da
honra a partir de discussões, recordações, conflitos e ações de indivíduos, é
possível tornar tangíveis alguns problemas teóricos mais amplos. Em primeiro
lugar, a recusa da generalização colocaria em relevo a natureza construída
dessa “tipicidade” tão regularmente produzida nos relatos convencionais das
ciências sociais. Em segundo, a descrição das circunstâncias e das histórias
reais de indivíduos e de suas relações sugeriria que essas particularidades,
sempre presentes *como sabemos com base nas nossas próprias vidas) também
são cruciais na constituição da experiência. Em terceiro, a reconstrução dos
argumentos, das justificativas e das interpretações das pessoas a respeito
daquilo que elas e os outros fazem permitiria uma compreensão mais refinada
de como a vida social se da. Esses recursos mostrariam que dentro de discursos
circunscritos (que podem ser contraditórios e que certamente estão mudando
ao longo da história), as pessoas definem estratégias, sofrem e contestam
interpretações sobre o que está acontecendo - resumindo, vivem suas vidas. De
certa forma, isso não é novidade. Bourdieu (1977), por exemplo, teoriza sobre a
prática social de maneira semelhante. A diferença, aqui, é a representação, por
meios textuais, de como isso acontece, em vez de simplesmente afirmar que é
assim.
Ao que é olhar assim. de perto para indivíduos específicos e suas mais
relações em problemáticas mudança, da é "cultura": possível a também
homogeneidade, subverter a as coerência conotações e mesmo em
atemporalidade., uma única Diante. família, dá um complexidade. termo como
das vidas "cultura beduína" começa a não fazer sentido, seja se referindo às
regras que as pessoas seguem ou a comunidade que compartilha essas regras.
Os indivíduos são confrontados com escolhas; lutam com os outros, fazem
afirmações conflitantes, discutem por causa de suas opiniões sobre os mesmos
acontecimentos, passam por altos e baixos em vários relacionamentos e
mudanças nas circunstâncias de suas vidas e em seus desejos, enfrentam novas
pressões e não conseguem prever o que lhes vai acontecer ou aqueles a sua
volta. Eventos específicos
52 I Lila Abu-Lughod

sempre acontecem no tempo, tornando-se parte da história da


família, dos indivíduos envolvidos e de suas relações. Nos eventos
descritos nas histórias das mulheres que reconto aqui, é possível até
mesmo ler as "forças mais amplas" que as tornaram possíveis. 21

Contar histórias

Se um mérito da técnica textual de contar histórias é chamar


a atenção, ainda que o recuse, para o poder da generalização das
ciências sociais de produzir "culturas" (com sua diferenciação entre
nós e outros), um segundo mérito tem relação com a segunda lição
do feminismo: aJnevitabilidade da posicionalidade. Uma história é
sempre situada: ela tem tanto um narrador quanto uma audiência.
Sua perspectiva é parcial (no duplo sentido da palavra) e existe
uma motivação para narrá-la. As histórias das mulheres beduínas
apresentadas aqui não são uma exceção. Embora essas histórias
pareçam nos revelar muito sobre as dinâmicas sociais e emocionais
dessa comunidade beduína nos anos 1980, é preciso lembrar que, em
seu contexto original, cada uma delas foi contada com uma intenção.
Não tentei reproduzir esses contextos, nem fiz uma análise do papel
dessas histórias na vida da comunidade, embora ambos pudessem
ser projetos interessantes.22 Em vez disso, admitindo que a inclusão

21 Até mesmo o ritual, essa prática comum na qual o tempo parece ter um sentido tão

diferente (talvez cíclico) e a qual, no discurso antropológico, marca tão perfeitamente


o outro cultural (exótico, primitivo) como diferente, é, afinal, particular e de forma
alguma atemporal. Um rápido olhar para os casamentos beduínos (capítulo 4)
mostra que a imprevisibilidade é um aspecto central quando não removemos os
participantes e a sequência de eventos.
22 As ricas possibilidades da própria análise do ato de contar histórias são evidentes

em muitos estudos excelentes dos folcloristas (ver Bauman [1986] para uma
discussão e Mills [1991] para um exemplo) e em obras recentes de antropólogos, tais
como Lords of the Lebanese Marches (Gílsenan, 1996), que explora o papel complexo
da narração de histórias na construção dos homens de honra (e desonra) em uma
aldeia libanesa; Narayan (1989), que analisa o papel das histórias nos ensinamentos
religiosos de um swami hindu; e K. Stewart (1988, 1991), que faz maravilhas com as
narrativas de homens e mulheres nos campos de mineração de carvão dos Apalaches
na Virginia Ocidental. Fictions in the Archives, de Natalie Davis (1988), é um exemplo
magnífico do uso possível dessas histórias para a compreensão histórica de outro
tempo e lugar - no caso, a França do século XVI.
Introdução | 53

dessas histórias neste livro alterou profundamente seus narradores e suas


audiências, bem como seus objetivos, tentei usá-la para construir aquilo que
poderia ser chamado de etnografia crítica. Selecionei as histórias e as
entrelacei em um padrão baseado em uma conjunção entre o interesse e a
atenção das mulheres beduínas para­ determinados assuntos e a importância
desses mesmos assuntos para audiências específicas do Ocidente. De início,
orientei minhas escolhas pelos assuntos que excitavam, comoviam e
preocupavam as mulheres que conhecia, os assuntos discutidos com mais
frequência. Nesse sentido, as histórias representam as vozes das mulheres na
sociedade dos Awlad ‘Ali e a sua visão sobre muitos assuntos que em geral
adentraram a literatura antropológica por meio das vozes dos homens.23 Mas
não exclui as histórias dos homens nem histórias que diziam respeito a
homens e mulheres igualmente (como disputas por terras, brigas entre
famílias ou o passado) porque, apesar da segregação sexual cotidiana, as
mulheres se definem com base em suas famílias, com frequência falam com
seus maridos, irmãos, pais, tios, sobrinhos e primos, e têm interesse em todos
os assuntos que dizem respeito àqueles que lhes são próximos.
E ainda, o que é mais importante: não pretendo que essas histórias
"levantem" ou vejam "por trás" do véu, como se diz com frequência nas
resenhas de livros sobre as mulheres do Oriente Médio. Como Bruner (1986)
nos lembra, as etnografias são, elas mesmas, narrativas. Tentei, assim, de
maneira artesanal, reconfigurando e superpondo essas histórias de mulheres e
homens, fazê-las falar especificamente sobre as minhas preocupações e
aquelas do meu público. Como a nova narradora, dessas histórias, quis
destacar os modos como elas desafiam, simultaneamente, três tipos de
construções: as interpretações feministas comuns sobre as relações de gênero
nas sociedades não ocidentais; e as percepções amplamente compartilhadas
da sociedade arabe muçulmana. É nesse sentido que esta é uma etnografia
crítica.
Se este uso das histórias das mulheres me torna parecida com a
ventríloqua, como sugeriu Appadurai (1988a, p.16) que sao todos os
antropologos, isso não diminui o valor dessas histórias
54 | Lila Abu-Lughod

recontadas. Somente uma falsa crença na possibilidade de uma história não


situada (ou na "objetividade") poderia fazer alguém esperar que histórias
reflitam o modo como as coisas. lá "realmente" são.24 Estudiosos como
Kapferer (1988) e Mascia-Lees, Sharpe e Cohen (1989), que se preocupam
com o poder oculto de orquestração das vozes "nativas", não fazem mais do
que expressar, de maneira pouco empática, aquilo de que muitos
antropólogos já têm um alto grau de consciência e que consideram muito
perturbador: nosso papel em moldar as palavras de pessoas que moram em
sociedades outras que não as nossas.25 Evidentemente, não há como evitar
fazer isso se queremos continuar a escrever. O que pode, em parte, atenuar
essas dificuldades do processo de construção e de uma narrativa é a
explicitação, como tentarei fazer, do modo como o trabalho foi feito.
A organização das histórias em capítulos segue uma lógica
antropológica. Os antropólogos costumam caracterizar as sociedades em
termos de "instituições" sociais, tais como a patrilinearidade (uma forma de
organização social baseada no parentesco), o casamento com o primo
paralelo patrilateral ( um padrão regular de casamento prescrito ou
preferido) ou a poliginia. Essas construções permitem a comparação entre
grupos diferentes e a percepção, de forma muito sucinta, de alguns fatos
básicos sobre o modo como tudo

24 Disi;uti a posicionalidade, de maneira mais extensa, no contexto das


fronteiras entre o self e o outro com que as feministas e os halfies (pessoas
de origens
mistas que se situam entre dois mundos) precisam lidar (Abu-Lughod,
1991). R. Rosaldo (1989} constrói um argumento importante relativo à
relação entre experiência pessoal e a pesquisa. As considerações de Haraway
(1988) sobre as questões referentes ao conhecimento situado estão entre as
melhores. Outras discussões instigantes sobre as implicações da
posicionalidade nos estudos sobre

o não-Ocidente e o problema geral da "alocação" podem ser encontradas em Mani


(1989) e John (1989).
25
Um debate especialmente acalorado foi travado entre os estudiosos das mulheres
no Oriente Médio em função da edição traduzida das memórias da feminista egípcia
pioneira Huda Sha'rawi escritas por Margot Badran (1986). Entre as questões
levantadas pelos comentadores (por exemplo, Ahmed [1987] e Hatem [1988]),
estavam perguntas sobre a mão editorial oculta usada na escolha de trechos do texto
original, a opção por focar nos anos iniciais e a decisão de intitular o livro de acordo
com estereótipos orientalistas. Lazreg (1988, p. 106) criticou Memissi (1988) por
tentar "falar por outras mulheres ao mesmo tempo em que se situa acima delas". Por
mais interessantes que sejam, livros como Khul Khaal, de Atiya, são problemáticos,
porque neles não há qualquer informação sobre como o material foi obtido e sobre
qual era a relação da autora com as mulheres egípcias entrevistadas.
Introdução 1 55

funciona em um dado lugar. Embora a serventia pretendida desses


termos seja seu uso como categorias analíticas, eles podem, contudo,
ter o efeito infeliz de criar uma visão mecanicista da sociedade, na
qual os membros desempenham papéis que lhes são designados.
Por mais sofisticada que seja a discussão teórica em torno de
estratégias, dialéticas e articulações por'meio da qual refinamos
nossa compreensão dos processos que produzem esses padrões,
mesmo assim o que resta, ao final, é uma percepção insuficiente das
experiências individuais dessas formas de organização e dos atos
individuais que as constituem.
Enquanto a antropologia social britânica privilegiou a
organização social, as tradições antropológicas francesa e norte-
americana tiveram uma preocupação maior com os ,fenômenos
"culturais", tais como sistemas de crença, modos de pensamento ou
visões de mundo. Nesse discurso, as sociedades como aquelas do
Oriente Médio foram caracterizadas como obcecadas com a honra
e a vergonha, marcadas pelo fatalismo islâmico ou atravessadas
por disputas agonísticas entre segmentos tribais fragmentados ou
indivíduos calculistas.
Gostaria que as histórias deste livro, ao revelar como
os diversos elementos dessas descrições, embora muitas vezes
presentes, não necessariamente apresentam a forma esperada
ou se encaixam precisamente em padrões simples, permitissem
uma reflexão mais sutil sobre essas caracterizações sociológicas e
culturais. O forte contraste entre o enquadramento analítico simples
- indicado pelos títulos abstratos dos capítulos - e o seu conteúdo
complexo, que consiste em discussões, experiências e histórias
detalhadas e, muitas vezes, altamente pessoais, pretende justamente
produzir essa dissonância.
D~ _toda forma, parece-me, a moral das histórias é que as
coisas são e não são o que parecem. Os Awlad 'Ali são patrilineares,
mas a descendência reconhecida, a filiação tribal e a herança através
da linhagem masculina não impedem que as mulheres tenham
oportunidades ou desejos de moldar suas próprias vidas ou as
vidas de seus filhos e filhas, ou de se opor às decisões de seus pais.
Os casamentos são arranjados .entre as famílias em termos de um
conjunto de ideais, incluindo uma preferência por casamentos entre
primos em primeiro grau, mas as circunstâncias de cada família e
as relações entre elas, em momentos particulares, podem fazer com
56 I Lila Abu-Lughod

que determinadas possibilidades sejam desejáveis, viáveis ou não.


' A poliginia é uma instituição opressiva para as mulheres na medida
em que lhes causa sofrimento, mas não necessariamente traz para
os maridos os prazeres que as fantasias ocidentais sobre os haréns
sugerem. Dadas as expectativas gerais em relação ao casamento, as
tensões que esse tipo de casamento gera para as mulheres Awlad
'Ali são diferentes daquelas que poderíamos imaginar; ainda
assim, existem tensões, tanto entre marido e mülher quanto entre
coesposas. Além disso, embora os casamentos políginos possam ter
algumas características em comum, não há dois que sejam iguais.
Como mostra o capítulo 2, sobre Gateefa, Safiyya, Azza e seu marido
Sagr, as experiências dos envolvidos dependem, em parte, de suas
personalidades e das circunstâncias. Essas experiências também
mudam com o tempo, já que nenhum relacionamento é estático.
Mesmo ao nível da função social, a poliginia nem sempre aumenta a
reprodução, fortalece linhagens ou cria alianças políticas; às vezes, o
efeito é o contrário; outras vezes, esses objetivos simplesmente estão
fora do alcance. Finalmente, embora alguns recorram ao Corão para
justificar a poliginia como islâmica, outros usam a mesma passagem
para condenar a prática, dizendo que ela não é bem vista por Deus.
Assim como a poliginia, os temas abordados por essas
histórias desempenham múltiplos papéis nos discursos ocidentais
da antropologia, do feminismo, dos estudos sobre o Oriente Médio
e do orientalismo popular. A patrilinearidade e a reprodução,
"tópicos':, dos capítulos 1 e 3, respectivamente, são termos muito
pesados para o público ocidental. Na antropologia do Oriente Médio,
a patrilinearidade e o tribalismo se mesclam imperceptivelmente.
As feministas, contudo, facilmente (con)fundem a patrilinearidade
com o "patriarcado", dela fazendo o foco dos debates sobre
dominação masculina, hierarquia de gênero e diferença sexual. As
antropólogas feministas, assim, interpretam a patrilinearidade ou
como uma forma de dominação masculina ou como um sistema
no qual as mulheres desenvolvem inúmeras estratégias e causam
intermináveis problemas. Nas discussões sobre a sociedade árabe,
a forma da organização social e o sistema de herança baseados na
patrilinearidade são às vezes justificados como islâmicos; outras
vezes, o Islã é retratado como tentando superar a patrilinearidade
legislando sobre a herança feminina e promovendo associações
mais amplas com base na religião e não no parentesco. No capítulo
Introdução 1 57

1, as histórias da velha matriarca Migdim revelam algumas das


implicações da patrilinearidade ao longo do tempo. Abordando
temas que vão da resistência à autoridade do pai ao significado de
se ter filhos em vez de filhas, às brigas com os filhos adultos em
torno de decisões que afetam as gerações futuras e aos conflitos de
lealdade entre a família e a comunidade feminina, as histórias de
Migdim tornam muito nítidos os conflitos e a ambivalência emocional
gerados nessas circunstâncias. 26
A reprodução ocupa um campo ainda mais complexo do
que a poliginia ou a patrilinearidade. No jargão das ciências sociais,
ela se refere ao processo de manutenção da sociedade; na tradição
marxista, à forma que o trabalho das mulheres assume na economia
política. Os debates feministas dão à reprodução um lugar diferente
mas, ainda assim, central, analisando-a de diversas maneiras: como
a raiz da vulnerabilidade feminina à opressão masculina, a razão da
divisão sexual do trabalho, a base simbólica de sua inferioridade
social, a fonte de seus modos alternativos de pensamento e interação
social, a base para uma experiência diversa da sexualidade, o
determinante da firmeza de suas fronteiras do ego ou a gênese de
sua relação especial com a linguagem. 27 Nos discursos populares
sobre o Terceiro Mundo, e especialmente sobre o Egito, a reprodução
aparece também em outros debates - sobre planejamento familiar e
sobre a chamada superpopulação, por um lado, e sobre as altas taxas
de mortalidade infantil e sobre se os egípcios valorizam a vida da
mesma maneira que nós, por outro. O capítulo 3, construído em torno
de histórias sobre dar à luz, querer filhos, ter filhos demais, amar
os filhos, ressentir-se dos filhos, criar filhos, repreender os filhos
e contar histórias a eles, tenta ampliar o campo definido por esses
outros discursos. A sugestão dessas histórias é que a maternidade

26
Para uma discussão sobre histórias de resistência e sobre o uso da resistência
como diagnóstico de poder, ver Abu-Lughod (1990b ).
27
As referências da literatura feminista sobre a reprodução ocupariam muitas
páginas. Uma amostra de textos chave, contudo, teria que incluir de Beauvoir (197 4
[1953]), Chodorow (1978), Hartsock (1985), Kristeva (1980), J. Mitchell (1980),
O'Brien (1981), Ortner (1974), Rich (1986), M. Rosaldo (Í974) e Ruddick (1989).
Essa relação não inclui outros debates feministas e antifeministas, tais como
aqueles da sociobiologia ou da cultura popular norte-americana, em particular
sobre a controvérsia em torno do aborto. Para uma revisão abrangente, ver Ginsburg
e Rapp (1991).
58 1 Lila Abu-Lughod

significa muitas coisas diferentes.


Os dois últimos capítulos, ambos sobre as gerações mais
jovens, lidam com duas dimensões importantes do casamento,
embora a superposição dos temas seja tão forte que os títulos -
"Casamento com o primo paralelo patrilateral" e "Honra e vergonha"
- se tornam virtualmente intercambiáveis. Aquilo que o antropólogo
chama, distanciadamente, de casamento arranjado é considerado
em muitos círculos feministas (do Oriente Médio e do Ocidente)
como uma forma de controle masculino sobre a sexualidade e a vida
das mulheres. No pensamento popular sobre o Oriente Médio, a
prática é considerada, com uma tonalidade virtuosa, como emblema
do atraso e da falta de liberdade do mundo árabe. Para os estudiosos
simpáticos às sociedades do Oriente Médio, contudo, assim como
para seus membros, esses casamentos são vistos como uma evidência
positiva do alto valor que as pessoas atribuem aos laços familiares.
Ainda assim, um sistema no qual se aceita que os casamentos sejam
arranjados para as mulheres jovens por suas famílias engendra
experiências complexas.
A união preferencial conhecida como casamento com o
primo paralelo patrilateral (casar-se com a filha ou filho do irmão
do pai) tem sido um ponto crucial na antropologia do Oriente
Médio. 28 Evocando na mente popular os horrores do casamento
consanguíneo, essa união é o exemplo perfeito do tipo de
"instituição" que não deveria nem ser vista como mecânica nem
abordadaJora de contexto. Elogiada nas canções que as mulheres
e as meninas entoam nos casamentos entre primos, essa forma de
casamento sobre a qual se fala com tanto entusiasmo também pode
gerar resistência quando as relações entre as famílias são tensas.
Como mostra o capítulo 4 sobre Sabra, uma jovem ainda solteira,
a idade e a personalidade são circunstâncias que sempre podem
participar da trama, e basta uma palavra para que a vida enverede
por um caminho distinto. Embora em todos os casamentos a
virgindade da noiva na cerimônia de casamento esteja relacionada
ao orgulho familiar de maneiras surpreendentemente positivas,
quando o noivo e a noiva são primos o ato de tirar a virgindade da
menina se torna assunto de todas as mulheres da família. A maneira

28
O melhor guia para a literatura sobre esse assunto, entre muitos outros sobre a
antropologia do Oriente Médio, é Eickelman (1989).
Introdução 1 59

objetiva como as mulheres mais velhas falam de sua participação


na defloração de suas sobrinhas por seus sobrinhos no dia do
casamento mostra a extensão em que o casamento, e até mesmo a
sexualidade, são assuntos familiares públicos.
O último capítulo fala de um complexo "cultural", e não de
uma "instituição" social. A honra e a vergonha, valores amplamente
considerados como reguladores das interações nas sociedades
mediterrâneas, têm sido vistos como um mecanismo de controle
sexual das mulheres. Ao associar a honra aos homens e a vergonha
às mulheres, a discussão sobre esse complexo tratou geralmente
o papel das mulheres como negativo ou, na melhor das hipóteses,
como passivo. Mas, ainda assim, Kamla, a jovem que frequentou a
escola, afirma de maneira orgulhosa a honra (por meio do recato)
de meninas como ela mesma, e se esforça para manter esse recato
como parte de sua identidade cultural. E mais: embora se expresse
nos termos desses valores aparentemente atemporais, Kamla rejeita
algumas de suas implicações, usando argumentos paradoxalmente
derivados tanto de sua educação religiosa quando das novelas
românticas da indústria cultural que a encantam. No Egito dos
anos 1980, honra e vergonha, para uma jovem beduína com alguma
instrução, influenciada pelas ideias do Egito urbano e sensível às
pressões morais de grupos islâmicos cada vez mais persuasivos,
ganham sentidos específicos. Na verdade, a possibilidade em si
da existência de um código moral como "honra e vergonha" ou de
um princípio de casamento preferencial envolvendo casamentos
arranjados apoiados na autoridade dos pais é colocada em questão
pela particularidade inexorável do caso de Kamla.
Um último ponto articula todas as histórias de mulheres
deste livro, sejam elas sobre filhos, pais, irmãos, sexo, casamento,
morte, bebida, escola ou a Segunda Guerra Mundial: a identidade
religiosa. Dado o lugar do Islã na imaginação ocidental - às vezes
ameaçador, às vezes apenas "outro" - e o poder que lhe é atribuído
de determinar a vida e os pensamentos de todos os muçulmanos,
as histórias de uma etnografia crítica devem abordar essa imagem.
Ainda assim, a fé em Deus ou a identidade muçulmana, representadas
aqui pelas citações do Corão ou pelos provérbios (ahadith) do Profeta
Maomé na abertura de cada capítulo, funcionam de maneira mais
60 I Lila Abu-Lughod

complexa do que os breves títulos dos capítulos. 29 Não se trata, aqui~


apenas de fazer um contraste entre conceitos gerais extrínsecos ; 1
termos e complexidades locais; há também um contraste "interno" 1
e~tre a si":1ples prescrição religiosa e as complexas práticas e j
A

circunstancias.
O que é instigante é que o enquadramento religioso é
importante, de maneira um tanto diferente, tanto para o leitor
ocidental quanto para as mulheres da comunidade beduína Awlad
'Ali cujas histórias conto. No pensamento popular e em boa parte
das reflexões acadêmicas ocidentais, o Islã é percebido corno
determinando tudo. Essa visão corresponde àquela de muitos
muçulmanos que acreditam que devem, de fato, ser guiados pelos
ideais da fé e da prática islâmicos. Corno alguém que fica a meio
caminho, contudo, gostaria de mostrar aos dois grupos, por meio
dessa etnografia crítica, que nem todos os eventos ou afirmações
podem ser explicados por referência ao Islã.
As mulheres muitas vezes afirmam sua aceitação de tudo o
que acontece com a frase "O que Deus traz", a qual sugere, para o
leitor ocidental, o notório fatalismo do Islã. Mas as histórias mostram
que afirmar esse sentimento não torna as mulheres submissas. Isso
não as impede de lutar contra decisões de que não gostam e de
resistir a elas; de tentar todas as técnicas curativas que conhecem
para atenuar a dor, aliviar o sofrimento ou conceber e criar filhos
sauâáveis; ou recorrer a juramentos e pragas quando seus filhos
desobedientes as exasperam.
A devoção e o respeito aos princípios religiosos têm
sentidos positivos para todas as mulheres desta comunidade
beduína, enquanto, para muitos povos seculares, sugerem urna
certa sobriedade ou até mesmo urna falta de senso de humor. Para
a velha Migdirn, porém, a devoção - expressa por meio de práticas
corno a organização da sua rotina diária em torno das orações
e do louvor a Deus até mesmo enquanto reclama de suas mãos
artríticas - não parece ser incompatível com rir de urna história

29
Dos dois hadiths citados, só escutei um deles ser repetido por alguém na
comunidade dos Awlad 'Ali. Minha fonte para o hadith que abre o capítulo 1 foi
Schleifer (1986, p. 8). Retrabalhei sua tradução. Após comparar as principais
traduções para inglês do Corão, decidi seguir aquela publicada em The Holy Quran
pelo King Fahd Holy Quran Printing Complex na Arábia Saudita. O tradutor não está
creditado.
Introdução 1 61

picante, apreciar uma canção sexualmente explícita ou falar mal


energicamente de um vizinho. 30
Além dessas qualidades, tanto os crentes quanto os
intelectuais externos atribuem ao Islã uma espécie de existência
atemporal e supralocal. Mas, tanto assumindo o ponto de vista dos
membros da comunidade beduína, que vêm a verdade no Corão e
no exemplo do Profeta e se esforçam para segui-los, tanto optando
pelo ponto de vista do observador externo, que reifica um conjunto
de práticas e afirmações complexas em um conceito como "a religião
islâmica", não conseguiremos captar os verdadeiros dilemas que as
pessoas enfrentam, devido às especificidades sociais .e históricas
nas quais o Islã se baseia. As mulheres Awlad 'Ali, cujas histórias
compõem este livro, foram sacudidas na última década pelo
contato indireto com membros dos novos movimentos islâmicos no
Egito e por sua vinculação a instituições estatais egípcias como as
escolas e a mídia, nas quais os novos preceitos morais sobre o "bom
muçulmano" são formados. As filhas instruídas discutem com as
mães sobre as práticas tradicionais, sustentando suas posições na
organização dos egípcios e recorrendo ao seu conhecimento sobre
a religião. As mulheres mais velhas agora se perguntam se estão
erradas por visitar os túmulos dos santos ou procurar homens
santos para que escrevam talismãs, como lhes dizem algumas
pessoas das cidades, pessoas que vão à mesquita e leem o Corão - e
têm barbas que se parecem com os pelos púbicos, como às vezes
brincam de maneira irreverente.
Optei por não dedicar um capítulo específico a histórias
que falassem especificamente sobre o tema do "Islã", pois a fé em
Deus e a importância da identidade muçulmana eram elementos
constantes no discurso das mulheres, invocados em inúmeros
contextos para justificar, implorar, repreender, explicar e confortar.
As histórias deste livro revelam diversas tensões relacionadas a essa
identidade: entre as práticas e suas justificativas, entre os ideais e
o comportamento, entre as prescrições simples e as interpretações
múltiplas, entre um sentido de universalidade e a complexidade
da experiência local e individual. A esperança é de que essas

30 Para uma discussão da tensão entre o discurso islâmico e outros discursos

presentes nesta comunidade beduína e uma proposta para a análise desse tipo de
tensão, ver meu artigo lslam and the Gendered Discourses of Death (1993).
62 I Lila Abu-Lughod

histórias ajudem a delinear a distinção entre referir-se às tradições


muçulmanas e ser determinado por elas.

O humanismo tático

Minha razão para escrever este livro de histórias é a natureza


problemática da noção de "diferença cultural", aó mesmo tempo base
e produto do discurso antropológico. A estratégia que utilizo para
escrever contra a cultura envolve brincar com a escrita, como muitos
antropólogos estão fazendo hoje. Escrever faz diferença?
A sugestão de Geertz (1973b, 1988) de que os antropólogos
são escritores foi o ponto de partida de boa parte de uma reflexão
séria sobre textualidade, a prática da escrita antropológica e o
encontro do trabalho de campo. Como reação, levantaram-se também
suspeitas de que os antropólogos com inclinações literárias teriam,
rápido demais, destruído a política da etnografia para transformá-la
em sua poética. Fax (1991) apresenta uma ótima formulação dessa
crítica ao se perguntar se aquilo que chama de "crítica pós-moderna"
não reforçaria, entre os antropólogos, uma "falsa consciência de seus
processos acadêmicos de trabalho" ao subscrever sua autoimagem
como artesãos. Ressaltando que a antropologia não é produzida
somente no "campo", mas também nas condições de trabalho
dos departamentos universitários, nos congressos profissionais,
nas agências de fomento e no contexto política e historicamente
determinado dos textos previamente autorizados, o autor se
pergunta qual o grau de controle que temos sobre o contexto em
que trabalhamos e qual a liberdade de que dispomos para alterá-
lo. Outros autores levantaram perguntas desafiadoras relativas
às razões pelas quais, neste momento específico da história, e em
particular nos Estados Unidos, se desenvolveu entre os antropólogos
uma atenção de tal monta para a textualidade e uma rejeição das
velhas formas. 31
Entre as condições mais importantes da produção

31
Lutz (1993) sugere que levemos em conta, cuidadosamente, os contextos sociais
do pós-modernismo, ressaltando três aspectos relevantes: o capitalismo tardio
(com base nas observações de Jameson [1984]}, as relações Norte-Sul e o estado da
academia. A artilharia de Sangren (1988) mira na academia; a fala de Said (1989)
proferida na Associação Americana de Antropologia foca no imperialismo.
Introdução 1 63

antropológica está a estrutura global do poder econômico e


político. Apesar de uma longa história de oposição autoconsciente
ao racismo e de uma literatura autocrítica crescente sobre os laços
da antropologia com o colonialismo e o imperialismo (por exemplo,
Asad [1973]; Clifford [1983]; Fabian [1983]; Hymes [1969];
Kuper [1988]), os antropólogos não enfrentaram prontamente
as implicações, para seu trabalho, de sua própria posição nessa
estrutura. O apoio a movimentos políticos para mudar essa estrutura
foi uma resposta, mas não especificamente antropológica. Outra
reação foi a experimentação com técnicas de escrita etnográfica
para aliviar o desconforto dos antropólogos com seu poder sobre
seus informantes. Mas retratar os informantes como interlocutores
ou "deixar o outro fâlar" em textos dialógicos (Tedlock, -1987) ou
polifônicos - descolonizações ao nível do texto - deixa intacta a
configuração básica do poder global sobre a qual a antropologia
se apoia. Outras sugestões instigantes, tais como "indigenizar" a
antropologia (Fahim [1982]; Altorki e El-Solh [1988]) ou incentivar
os antropólogos do Terceiro Mundo a deixar de lado o Ocidente
e viajar para os países uns dos outros (Scott, 1989) esbarram em
outros limites. Como afirma Mudimbe (1988, p. 19) em The Invention
ofA/rica, "parece impossível imaginar uma antropologia sem um elo
epistemológico ocidental".
Até que decidamos - ou sejamos forçados a - transferir a
antropologia para um outro "chão de fábrica" (para usar a expressão
de Fox), ou que a abandonemos inteiramente, talvez seja melhor
sermos mais modestos em nossas pretensões radicais. Na melhor
das hipóteses, estamos falando de reformas - empreendidas com
o máximo de bom senso que pudermos ter neste contexto mundial
em que trabalhamos. Enquanto os antropólogos continuarem se
dedicando a representar os outros, as etnografias por meio das
quais o fazem vão, muito provavelmente, continuar a ser o modo
fundamental da produção antropológica. Sem pretender controlar
os determinantes das nossas etnografias (e Clifford [1986a, p. 6]
nos dá uma bela lista deles) ou sua recepção, podemos, ainda assim,
ter consciência de que o grau em que as pessoas das comunidades
estudadas pelos antropólogos parecem ser "outras" é, em parte,
função do modo como escrevemos sobre elas.
Ao privilegiar a abordagem de indivíduos e das
particularidades de suas vidas, podemos perceber melhor as
64 I Lila Abu-Lughod
semelhanças em todas as nossas vidas. Evidentemente, dizer que
todos vivemos de forma particular não é a mesma coisa que dizer
que essas formas particulares são as mesmas. Na verdade, há
diferenças fundamentais até mesmo no cotidiano, tais como
aquelas existentes entre a experiência cotidiana em um mundo
organizado de modo a produzir o efeito de estruturas, instituições
ou outras abstrações (como T. Mitchell [1988) argumenta que é o
caso do Ocidente) e a experiência de um mundo organizado de
outra maneira. Mas o dia a dia, ao quebrar a coerência e
introduzir o tempo, treina nosso olhar para perceber o fluxo e a
contradição; e as particularidades sugerem que os outros vivem
da mesma maneira que nós - não como autômatos programados
de acordo com regras "culturais" ou representando papéis sociais,
mas como pessoas que passam pela vida se perguntando o que
devem fazer, cometendo erros, tomando partido, hesitando,
tentando causar boa impressão, vivendo tragédias pessoais,
gostando dos outros e descobrindo ocasiões para rir.
É difícil transmitir esse tipo de experiência e atividade na
linguagem da generalização. Em nossas próprias vidas,
equilibramos os relatos de nós mesmos fornecidos pelas ciências
sociais com a linguagem comum que usamos nas conversas
pessoais para discutir nossa vida, nossos amigos, nossa família e
nosso mundo. Para aqueles que vivem "fora" do nosso mundo,
contudo, não dispomos de nenhum discurso de familiaridade para
contrabalançar os discursos distanciados da antropologia e das
demais ciências sociais, discursos esses utilizados também por
especialistas em desenvolvimento, governos,jornalistas e outros
que também lidam com o Terceiro Mundo. As etnografias do
particular compostas por histórias cotidianas - isto é, o uso de
convenções humanistas de escrita, as mesmas convenções
preferidas por escritores populares e por toda uma tradição
alternativa de escrita etnográfica de mulheres (ainda que
desvalorizada por ser em larga medida amadora)32 dão uma
grande contribuição para a construção desse
-

32
Em outros lugares (1990a, 1991), escrevi sobre as razões pelas quais essa
tradição alternativa de escrita etnográfica, com frequência de autoria de esposas
"sem treinamento" de antropólogos profissionais (cujos melhores exemplos são as
etnografias extraordinárias e informativas de Fernea [1969], Wolf [1968] e Turner
[1987]), mas também de antropólogos profissionais escrevendo sob pseudônimos
(por exemplo, Bowen [1964 (1954)]; Cesara [1982]), não foi reconhecida por
Clifford (1986a) como uma forma de inovação textual.
Introdução 1 65

discurso de familiaridade.
Por que invocar o humanismo, se ele já foi tão desacreditado
nos círculos pós-estruturalistas e pós-modernos?33 Certamente há
boas razões para sermos cautelosos com essa filosofia que mascarou
a persistência de diferenças sociais sistemáticas por meio do apelo a
um indivíduo supostamente universal tomado como um herói e um
sujeito autônomo; que nos permitiu pressupor que a dominação e a
exploração da natureza pelo homem era justificada por seu lugar no
centro do universo; que não percebeu que o seu "humano essencial"
tem características social e culturalmente específicas e, na verdade,
exclui a maior parte dos humanos; e que se recusa a compreender
a forma como nós, como sujeitos, somos constituídos por discursos
perpassados pelo poder. Mas, ainda assim, como o humanismo, no
Ocidente, ainda é a linguagem da igualdade humana dotada de maior
força moral, creio que não podemos deixá-lo de lado. Ao advogar em
favor de novas formas de escrita (pastiche, diálogo, colagem, etc.)
que quebram a narrativa, questionam as identidades e interferem
com a identificação, os pós-humanistas pedem a seus leitores
que adotem estratégias sofisticadas de leitura juntamente com a
crítica social. Isto faz sentido para antropólogos que escrevem em
um mundo ainda repleto de preconceitos contra aqueles sobre os
quais escrevem? Se as etnografias experimentais são criticadas por
serem solipsistas ou difíceis demais de serem lidas, como transmitir
suas mensagens teóricas, políticas ou humanas? O que talvez seja
necessário é um humanismo tático politicamente útil, ainda que
limitado em seus efeitos pela posição da antropologia ao lado do
poder em um mundo organizado de maneira desigual ao longo das
linhas das diferenças "culturais".
Por essas razões, adotei muitas técnicas da escrita humanista.
Em primeiro lugar; não me furtei a deixar rastros de mim mesma
por toda parte. Presumo, entretanto, que os leitores estão mais
interessados nas histórias que conto do que em mim, e por isso
tentei não me intrometer. Assim, embora eu não atribua um lugar
central ao encontro entre esses "outros" e eu, também não excluí as
perguntas que fiz nem fingi que algumas discussões não se dirigiam

33 A associação com o humanismo é tão amaldiçoada que o passo em falso de Said

nessa direção é o cerne da crítica de Clifford (1980) ao seu livro Orientalismo. Para
uma análise nessa mesma linha da obra de Said, ver Young (1990).
66 1 Lila Abu-Lughod

especificamente a mim. 34 Por vezes, também fiz alguns comentários


sobre o que estava acontecendo. Em resumo, busquei uma presença
a meio caminho entre os extremos do apagamento total do etnógrafo
(por exemplo, Atiya [1982]; Friedl [1989]; e Munson [1984]) e
a imposição da sua presença como um participante igual, (por
exemplo, Dwyer [1982], Lavie [1990] ou mesmo Jackson [1986],
relatos dialógicos em que os autores se apresentam na terceira
pessoa).
Em segundo lugar, construí cada capítulo, de maneira um tanto
elástica, em torno de uma ou duas mulheres específicas. Conforme
observei acima, colocar o foco em indivíduos incentiva a familiaridade,
mais do que a distância, e ajuda a quebrar a "alteridade", pois não
apenas corresponde ao modo como em geral pensamos naqueles
que nos são próximos em nosso cotidiano, mas também facilita,
ativamente, a identificação e a empatia com os outros. 35
Tive algumas razões para não optar pela história de vida,
talvez a forma humanista mais popular. Esse gênero, representado
por obras tão envolventes sobre mulheres como Khul Khaal: Five
Egyptian Women Tel1 Their Stories (Atiya, 1982), We Have Already
Cried Many Tears: Portuguese Women and Migration (Brettel, 1982),
The Life and Hard Times of a Korean Shaman (Kendall, 1988), Nisa:
The Life and Words of a !Kung Woman (Shostak, 1981) e o clássico
Baba of Karo, a Woman of the Muslim Hausa (Smith, M., 1984), são

34 Obras como Briggs (1970), Brown (1991), Crapanzano (1980), Dumont (1978),
Favret-Saada (1980), Friedrich (1986), Rabinow (1977), Riesman (1977), D. Rose
(1987), Stoller e Olkes (1987) e Trawick (1990), que abordaram especificamente o
encontro do trabalho de campo e revelaram muito a respeito do próprio antropólogo,
foram extremamente úteis na exposição das formas pelas quais nosso conhecimento
sobre os outros é construído a partir de experiências pessoais. A abrangente
avaliação de B. Tedlock (1991) daquilo a que se refere como uma passagem
importante "da o~servação participante para a observação da participação" traz
uma discussão muito mais detalhada dessa literatura. Tomei conhecimento desse
trabalho quando Writing Women's Worlds já estava a caminho da impressão.
35 Uma coletânea de histórias de vida como aquela de Burke (no prelo) pode, de

fato, servir para contrabalançar a desumanização das pessoas no Oriente Médio


que é tão predominante no Ocidente, mas é importante examinar os perigos desse
gênero. Shostak (1981) foi criticada por Clifford (1986b) por usar Nisa para veicular
sua mensagem feminista ocidental, e T. Mitchell (1990) mostrou como Critchfield
(1978) abusou desse gênero ao plagiar outra obra em seu suposto retrato de um
aldeão do Alto Egito.
Introdução 1 67

há muito tempo importantes para a antropologia, mas recentemente suas


limitações começaram a ser apontadas. Crapanzano (1984), por exemplo,
argumentou convincentemente que a própria noção de "uma vida" pode não
fazer sentido para algumas pessoas e que as convenções para se falar sobre si
mesmo podem diferir radicalmente.36 Em uma reflexão arguta sobre esse
gênero literário, Behar (1990), com base em Frank (1979) e Benjamin (1968),
argumentou que é preciso reconhecer que as histórias de vida são, na verdade,
histórias que as pessoas contam sobre si mesmas, textos que exigem atenção
para com as convenções narrativas e o contexto de sua elicitação.37 Sua
própria leitura da história de.vida de uma vendedora ambulante mexicana
reforça seu argumento.
Ao final das contas, o que me fez hesitar em adotar essa forma foi o
fato de que a história de vida pode contribuir para criar uma impressão da
pessoa como centro, um indivíduo isolado. As mulheres cujas histórias são
contadas aqui não vivem assim e não pensam em si mesmas dessa maneira.
Representando três gerações de uma só família extensa, essas mulheres vivem
em uma comunidade fechada composta por parentes e afins, a maioria dos
quais veem quase diariamente. Assim, cada capítulo aborda determinados tipos
de relação entre o indivíduo chave e os outros. Minha esperança é que as
reaparições contínuas dessas mulheres em capítulos diferentes deem ao leitor
uma percepção das redes e da proximidade das relações familiares aí
existentes.
Ao escrever esse livro, recorri a uma terceira convenção humanista: a forma
narrativa. Não construí tramas ou pensei nas mulheres como personagens, é
claro; em vez disso, tentei fazer com que as histórias fluíssem de forma suave,
por estar convencida de que, embora os teóricos da literatura tenham nos
sensibilizado para os feitiços da narrativa, ainda assim ela continua sendo o
gênero mais familiar e preferido dos leitores. Eu poderia ter feito uma distinção
entre as palavras das mulheres e os meus próprios comentários, ou inserido
lembretes acerca do modo como estava usando seus relatos
36
Weintraub (1978), por exemplo, rastreou os elos entre o conceito de vida como
trajetória e o desenvolvimento histórico no Ocidente, bem mais recente, do
gênero vizinho da autobiografiá.
37
Ver também Langness e Frank (1981) e Watson e Watson-Franke (1985). Os
trabalhos mais recentes sobre narrativas pessoais (Personal Narrative Group
[1989] e Stahl [1989]) também parecem estar avançando em uma direção
produtiva.
68 I LilaAbu-Lughod

para produzir determinados efeitos. Essa última técnica talvez


tivesse sido mais honesta, mas teria desviado a atenção das histórias.
A primeira teria estabelecido a hierarquia usual entre a "palavra
dos informantes" e as explicações do especialista, uma construção a
que, mesmo quando não intencional, é difícil de resistir devido aos
hábitos de leitura e às estruturas de autoridade. Como Behar (1990,
p. 226-227) observou a respeito das histórias de vida, embora as
palavras das mulheres talvez não "falem por si mesmas", os tipos de
comentários que as acompanham muitas vezes falam através delas
ou, como no caso das obras de Oscar Lewis, as violentam.
Por conta do compromisso com uma noção de fidelidade um
tanto rústica (e, se observarmos bem, indefensável) para com aquilo
que vi e ouvi, e talvez por não ter os talentos literários necessários,
não quis vagar pelo mundo da ficção etnográfica com essas histórias.
Nesse mundo, a permissão para brincar com os diálogos e com a
história permite obras evocativas, por vezes poderosas, que podem
revelar tipos diferentes de "verdades", mas que são mais difíceis
de avaliar nos termos habituais da antropologia como aventura
empírica. 38 O argumento de J. Stewart (1989, p. 8-12) de que a ficção
etnográfica é ideal para perscrutar o subjetivo ou para "lidar com
a vida interior das pessoas'.\suscita a questão de como é possível
saber esse tipo de coisa.: Preferi adotar uma abordagem mais
conservadora, admitindo qüé qualquer escrito de um acadêmico em
uma instituição acadêmica e publicado por uma editora universitária
receberia•o status de um relato dotado de autoridadei Embora, como
descrevo a seguir, eu tenha colocado as palavras daqueles que cito
em relação com temas que eles não poderiam antecipar e tenha

38
Esse problema de ficções e outros sérios questionamentos quanto àquilo que
constitui a "verdade" sobre outras culturas é profundamente inquietante e não
pode ser descartado levianamente. Está no cerne de boa parte da reflexão crítica
da antropologia hoje e guarda uma íntima relação com a percepção de que a
etnografia realista é, ela mesma, um gênero literário (Marcus & Cushman, 1982;
Clifford & Marcus, 1986). Diversos trabalhos recentes e bem recebidos adotam
conscientemente esta outra forma de escrita (Jackson, 1986; Stewart, J., 1980),
juntando-se a clássicos como o romance etnográfico de Bowen (1964 [1954])
Return to Lau9hter. Muitos antropólogos cujos trabalhos ainda estão inéditos -
por exemplo, Barbara Tedlock - vêm fazendo experiências com esse formato. A
popularidade e a nova legitimidade deste tipo de esforço literário se refletem e são
reforçadas por iniciativas tais como o concurso anual de melhor conto etnográfico
promovido pela Anthropolo9y and Humanism Quarterly.
Introdução 1 69

editado suas conversas, reservei o uso das aspas para aquilo que
gravei ou que anotei literalmente em meu caderno de campo. E,
embora talvez estejamos sempre inventando cultura (Wagner, 1981)
e toda interpretação seja, ela mesma, uma espécie de ficção (Geertz,
1973b), não inventei deliberadamente nenhum acontecimento.
Entretanto, brinquei com a narrativa para explorar algumas
de suas possibilidades. Peguei diversas falas das mulheres
beduínas - histórias do cotidiano, discussões, recordações, contos
populares, poemas, canções e até mesmo uma carta e um ensaio
com comentários orais - e as transformei em cinco tipos diferentes
de narrativas. O capítulo 1 é o que se aproxima mais de constituir
uma história de vida, com o entrelaçamento dê lembránças
chave e acontecimentos de modo a produzir uma impressão do
fluxo do tempo e da transformação dos conflitos de uma mulher
com sua família. A segunda narrativa apresenta um conjunto de
relacionamentos que compõem um casamento, em sua maioria do
ponto de vista de uma primeira esposa. O capítulo 3 oscila, como um
caleidoscópio, de uma mãe para outra, revelando visões diferentes
dos filhos e de sua criação; nenhuma mãe ou família pode ser tomada
como representante dessa relação. O capítulo 4 gira em torno de um
evento único - um casamento. O último capítulo toma a forma de
um ensaio de uma moça, o qual, da mesma maneira que este ensaio
introdutório, é escrito e formal. Ao contrário desta introdução,
contudo, o seu ensaio foi também comentado em voz alta, e incluí
esses comentários entre parênteses. Os momentos de vida das
personagens centrais dos cinco capítulos sugerem um movimento
do passado para o futuro.
O principal trabalho editorial que fiz foi editar as histórias
das mulheres em narrativas sobre a patrilinearidade, a poliginia,
a reprodução, o casamento com o primo paralelo patrilateral e a
honra e a vergonha. Houve também um trabalho menor, porém
igualmente importante, de tornar essas histórias legíveis, mesmo
após traduzi-las. Ocasionalmente, achei que devia cortar trechos
pouco interessantes, repetitivos ou excessivamente complicados.
Hesitei principalmente em relação às repetições, já que pareciam
ser uma característica de um estilo de contar histórias. Mas, ao
traduzir palavras e frases repetidas, há o risco de dar a impressão,
no inglês escrito e também em boa parte do inglês falado, de uma
70 I Lila Abu-Lughod
infantilidade que não existe para os participantes.39 Houve também
ocasiões em que fui forçada a simplificar algumas histórias para torná-las
inteligíveis para pessoas de fora da comunidade. Quando as mulheres
conversavam entre si, e mesmo quando me contavam histórias após nossos
anos de convivência, assumiam que havia um conhecimento compartilhado
acerca de centenas de indivíduos, filiações tribais e lugares. Nos casos em
que a pessoa mencionada não apareceria em outras histórias, substituí os
nomes reais pelo termo (tácito) de parentesco - por exemplo, "seu tio" ou
"sua nora" -, algo que as próprias mulheres às vezes faziam quando estavam
contando a história para uma pessoa de fora da comunidade imediata.
Também apaguei referências a lugares pouco conhecidos que não tinham
importância para a história, muito embora tragam associações importantes
para os ouvintes habituais.
Essas decisões editoriais têm relação com um problema muito mais
amplo. Não parece haver uma maneira de transmitir para pessoas de fora a
importância de muitos detalhes dessas histórias. De fato, os detalhes são
sempre abundantes: não apenas as pessoas presentes em uma dada ocasião,
mas também a cor do vestido, a comida, a hora do dia e o valor exato pago
têm seus lugares nessas histórias. Mesmo quando os acontecimentos se
passaram há cinquenta anos e seria razoável supor que esses detalhes já
tivessem sido esquecidos, permanecem fixos nas narrativas, que são
contadas e recontadas. Cada detalhe tem significado em um mundo tão
vastamente compartilhado. Quando uma mulher está curiosa sobre outra,
ela pergunta: "O que ela tem?", querendo dizer "Quantos filhos?". Dessa
resposta ela pode deduzir imediatamente uma enorme quantidade de
informações sobre os contornos gerais da vida da mulher e suas
perspectivas. Há um mundo de diferenças entre as respostas "duas filhas" e
"cinco filhos e duas filhas". Para o leitor externo, contudo, são apenas fatos.
Por mais que queiramos preservar as palavras exatas e as estruturas
narrativas das histórias beduínas para dar uma impressão mais vívida da
maneira como essas mulheres vivem, esbarramos nos problemas mais
básicos das possibilidades de tradução. Nenhuma

39 Embora Tannen (1989) mostre que a repetição faz parte das conversas
cotidianas, a preservação desta convenção estilística na tradução das
palavras de uma mulher San no livro Nisa, de Marjorie Shostak (1981),
produziu, na minha opinião, essa impressão de uma simplicidade infantil.
Introdução 1 71

história pode se mover entre contextos tão diferentes sem alguma perda de
sentido.Muitos detalhes, nem um pouco triviais na vida cotidiana nesta
comunidade beduína, são difíceis de transmitir em um texto escrito em inglês.
Não se trata apenas daquilo que se perde na transformação da linguagem oral
em linguagem escrita, embora este seja um problema sério que outros (por
exemplo, Tedlock [1983]; Tyler [1986, 1987]) já abordaram. O problema também
não se resume às inevitáveis alterações de significado que ocorrem quando
transitamos entre línguas entre as quais não é possível encontrar equivalentes
precisos para algumas expressões e nas quais as conotações são diversas. O
ponto é que inúmeros aspectos essenciais da conversa e das narrativas
cotidianas simplesmente não podem ser ditos de maneira elegante em inglês.
Há dois hábitos de fala que são bem ilustrativos. Em primeiro lugar, a
linguagem das mulheres, principalmente ao contar histórias, é rica em pequenas
expressões de afeto dirigidas à interlocutora, tão corriqueiras que mal são
notadas: "Aí, minha pequena irmã/ minha pequena mãe/minha querida, ele
disse ... ". Em histórias sobre a comunidade, a maioria das pessoas são
mencionadas por apelidos, ou ao menos pelos diminutivos de seus nomes. Os
diminutivos sempre são expressões de afeto, com sua aplicação usual à crianças
conferindo ao uso entre adultos uma ternura especial. Entretanto, como isto
soa um pouco bobo em inglês, no qual, em vez da flexão do nome dizemos, por
exemplo, "Pequeno Ali", deixei apenas alguns poucos diminutivos nos textos.
Assim, a impressão de afeto no seio da comunidade, expressa por essas
referências, em larga medida infelizmente se perde.
Em segundo lugar, a linguagem das mulheres também é saturada por
referências religiosas. Algumas mulheres usam juramentos praticamente sem
pensar para reforçar o efeito de suas histórias, jurando por Deus e por santos
locais cujos túmulos são bem conhecidos. Muitas mulheres usam frases
religiosas padronizadas nos momentos apropriados. Algumas expressões
comuns: "Que o Profeta seja abençoado" para admiração, "Deus é grande!" para
surpresa e "Em nome de Deus" ao escutar alguma coisa estranha ou ao começar
a fazer algo. As mulheres não conseguem mencionar mortes, doenças ou
desgraças sem iniciar suas observações com frases como "[Que Deus] esteja
entre nós duas [e o mal]", "[Que] fique longe de você" e "[Que aconteça com]
72 | Lila Abu-Lughod

seu inimigo". O poder da palavra é evidente nesse hábito, mas a


constância da presença de Deus no cotidiano também é. Deixei a
maior parte dessas expressões religiosas em seus lugares, mas com
algum desconforto; elas são tão raras na linguagem cotidiana dos
círculos que frequento que temi que ganhassem mais destaque do
que têm realmente no contexto beduíno.
Por meio de todos esses cuidados com a tradução e com as
convenções humanistas de escrita, tentei tornar essas mulheres e
suas histórias acessíveis aos leitores deste livro, instruídos e em
sua maioria ocidentais. Não tenho qualquer ilusão de que a minha
opção por um humanismo tático por meio da escrita etnográfica vá
contribuir com algum bem universal. Admito que o humanismo é
uma linguagem local e historicamente específica do Ocidente pós-
iluminismo. Ainda assim, trata-se de uma linguagem útil porque,
devido à nossa posição como antropólogos, trabalhamos como
ocidentais (por mais tênue que seja nossa identificação) e
contribuímos para um discurso ocidental. É impossível escapar da
posicionalidade. Nem podemos escapar do fato, como afirmou
Riesman (1982) de maneira muito direta em sua resposta crítica às
propostas da antropologia dialógica, de que "estamos todo o tempo
usando outras pessoas para os nossos próprios objetivos" e
"usando o conhecimento que nos dão com propósitos que elas
jamais poderiam imaginar". Isto não quer dizer que não valha a
pena perseguir esses objetivos provisoriamente ou que trabalhar
dentro do discurso ocidental não seja essencial. Como observa Said
(1989, p. 224), "as representações antropológicas revelam tanto
sobre o mundo daquele que representa quanto daquele ou daquilo
que é representado". O mundo a partir do qual escrevo ainda tem
um tremendo poder econômico, militar e discursivo. Minha estrita
tanto pode reforçá-lo quanto trabalhar contra a sua natureza.

Para quem?

Em uma época em que as fronteiras da "cultura" já não são


fixas, em que os livros viajam e em que a política global parece cada
vez mais incerta, é preciso antecipar a desconfortável ironia de que
as nossas iniciativas mais iluminadas talvez não sejam entendidas
assim pelos objetos de nossos escritos. Mesmo quando podem ler
Introdução 1 73

o que escrevemos, não necessariamente compartilham das nossas


convenções. Do ponto de vista deles, os problemas relativos ao poder
podem parecer bem diferentes.
É triste pensar que as mulheres cujas histórias reconto aqui não são o
público deste livro. Em sua maior parte, as palavras que registrei aqui não
são do tipo que elas consideram dignas de serem escritas. Em algumas
ocasiões, os homens me diziam para não desperdiçar meu tempo com as
mulheres porque "a conversa delas era tacanha". Algumas mulheres
concordavam com isso. Um homem disse que os contos populares não
mereciam ser gravados; eram apenas "coisinhas" contadas para as
crianças para que ficassem quietas. A poesia que preservava os fatos
realmente ocorridos, as antigas palavras que traziam a sabedoria dos
antepassados; 'a história das tribos dos Awlad ’Ali, as canções que
ninguém mais sabe compor - essas são as coisas que deveriam ser
preservadas. Eu os ignorei e não me desculpo por isso. Minha
preocupação é outra. Tornei públicas as narrativas que as mulheres só
faziam diante de pessoas específicas e tornei permanente aquilo que
deveria ser ocasional. Em algumas ocasiões, censurei a mim mesma,
sabendo, por exemplo, que algumas mulheres ficariam ofendidas se eu
publicasse canções de casamento sexualmente explícitas; em outras
ocasiões, elas me censuraram, como quando algumas meninas me
disseram para riscar um verso que era desrespeitoso com o presidente
egípcio. No geral, contudo, segui minha própria opinião a respeito do que
queria.
Curiosamente, percebo agora que uma etnografia convencional e
menos pessoal talvez fosse mais inócua. Na melhor das hipóteses, as
pessoas da comunidade a encarariam como uma descrição geral daquilo
que todos já sabiam; na pior, a julgariam como uma representação
equivocada e ofensiva de si mesmos como grupo. Mas como reagirão às
histórias específicas e pessoais que compõem este livro? Talvez gostem de
ler agora, muitos anos depois, as histórias que contaram e as conversas
que tiveram. Como um instantâneo, o livro talvez desperte a memória e
uma lembrança nostálgica das pessoas e dos tempos passados. Talvez
sintam, como acontece em relação às pessoas que acamparam com eles
em outros tempos, aquela mesma afeição melancólica que surge nas
expressões com que muitas vezes terminam as histórias sobre elas: "Que
Deus tenha piedade delas".
Mas as fotografias que as pessoas desta comunidade
74 I Lila Abu-Lughod
realmente preferem são aquelas em que posam empertigadas, sérias,
com suas melhores roupas; sempre me diziam para guardar para mim
mesma as fotos espontâneas. Como nômades, esses retratos formais
migravam por longas distâncias, passando rapidamente de mão em
mão. Algumas palavras viajam da mesma forma - as palavras dos
poemas e canções dignas de serem fixadas pela memória e pela
repetição. As mulheres sempre ficavam encantadas quando eu lia para
elas os poemas e as canções que havia gravado nos anos anteriores. Mas
não estou certa de que fossem apreciar as histórias pessoais e
cotidianas que escrevi aqui, ao menos não mais do que as fotografias
espontâneas que rejeitam.
Isso me deixa desconfortável. Minha desculpa para fixar e
tornar públicas essas histórias é o "bem maior" da etnografia crítica a
serviço· de "escrever contra a cultura". Mas a etnografia crítica,
conforme a descrevi, é um projeto ocidental. Que bem faz aos meus
objetos? Será que os fins de minar as generalizações antropológicas,
questionar as interpretações feministas e abalar os pressupostos sobre
o Oriente Médio justificam os meios? Indiferentes ao sentimento
antiárabe que predomina nos locais em que este livro será lido, meus
amigos, de qualquer forma, dificilmente se deixariam abalar por isso,
devido à sua confiança em sua superioridade moral e religiosa. Posso
tentar explicar a eles o contexto do meu trabalho, mas será que isso é
suficiente?
As pessoas me contaram histórias, conversaram na minha
presença e até mesmo me deixaram gravar porque ao longo dos anos
havíamos desenvolvido relações pessoais com graus variados de
intimidade. Conheci algumas mulheres muito bem, com os nossos
sentimentos de amizade tendo sido criados da mesma forma como o
são todos os laços nessa comunidade: por meio de lembranças
compartilhadas. Quando voltei em 1985, por exemplo, a mulher que
fora uma noiva querendo fugir de seu marido era agora mãe de várias
crianças, confortavelmente instalada na casa. Entretanto, bastou uma
palavra para que nos lembrássemos, e a ela também, dos problemas
que nos causara de início. Quando voltei em 1986, o jovem que passara
por uma cirurgia cardíaca na época em que morei com eles pela
primeira vez era agora um homem casado e saudável, o pai orgulhoso
de um menino pequeno. Eu me lembrava de velhas tias queridas já
falecidas e de vizinhas que haviam se mudado. Lembrava-me com afeto,
como elas também, das coisas bonitinhas que as
Introdução 1 75

crianças pequenas haviam dito e feito, crianças agora compenetradas


em seus uniformes escolares ou, em 1989, rapazes altos com vozes
graves. E me lembrava também, envergonhada, de episódios em que
meu comportamento estivera longe de ser exemplar.
A intimidade, sempre definida por eles em termos de 'ishra
(morar junto), era mitigada pelo reconhecimento de que eu era
uma estrangeira, sem qualquer relação por consanguinidade ou
afinidade, e de que estava ali com um objetivo, por mais ambíguo
que fosse. Ao longo de dez anos, à medida que nos conhecíamos
melhor e até mesmo mudávamos com a idade, nossas percepções
umas das outras ficaram mais precisas. Nunca nos havíamos visto
como um selfocidental e um "outro" não-ocidental, ou vice-versa. Em
outro lugar (Abu-Lughod, 1988b), refleti sobre o modo como meu
relacionamento com as pessoas da comunidade havia sido afetado
por aspectos de quem eu era quando cheguei: jovem, solteira, mulher
e, o que é mais importante, de origem árabe e muçulmana. O fato
de ser "halfie': de ter uma dupla identidade, tanto norte-americana
quanto árabe, era importante tanto para definir o que busquei fazer
na escrita quanto crucial para que me aceitassem. 40
À medida em que o tempo passava, contudo, a percepção
deles quanto a que tipo de "halfie" eu era se tornou mais precisa.
Começaram a prestar atenção ao fato de que eu era parcialmente
palestina. As mulheres com quem eu passava a maior parte do meu
tempo estavam mais preocupadas com minha situação conjugal e
familiar do que com a minha identidade palestina. Ficaram contentes
quando me casei, porque podiam ficar mais à vontade para fazer
brincadeiras comigo sobre o que acontece entre maridos e mulheres.
Mas também tinham pena de mim por causa da inexplicável demora
em ter filhos. Elas, assim como os homens beduínos a quem eu
conhecia bem, não entendiam que satisfação poderia haver em
escrever livros e artigos ou em dar aulas. Sabiam que era bom ter
títulos e um emprego, mas a questão não era simplesmente ganhar
bem? A parte mais importante da vida era a família, e a impressão
delas era de que eu vivia em um mundo estranhamente solitário,
somente eu e meu marido. Rezavam por mim e imploravam a Deus

40
Discuti em outro texto (Abu-Lughod, 1991) o tema dos "halfies" (termo proposto
por Kirin Narayan) e o trabalho de outros, como Kondo (1986), que escreveram com
muita eloquência sobre a experiência de fazer trabalho de campo sendo de dentro e
de fora ao mesmo tempo.
76 I Lila Abu-Lughod
que me desse filhos.
Os homens, por sua vez, falavam cada vez mais sobre a
Palestina. Por vezes, quando retornava à comunidade, me diziam,
orgulhosamente, que haviam escutado no rádio uma entrevista do
meu pai. Em uma ocasião, trouxeram um poeta para recitar para
mim um poema que havia escrito sobre a invasão israelense no
Líbano e a tragédia da Palestina. Fiquei intrigada quando, em uma
conversa entre dois líderes tribais sobre a perda de sua terra costeira
devido a confiscas e vendas e sobre o aumento do fluxo de egípcios
citadinos e de camponeses para territórios tradicionais dos Awlad J\li,
os homens concordaram que estavam sendo "palestinizados". Mais
recentemente, com a publicidade sobre a intifada palestina, pessoas
impressionadas com a coragem dos meninos palestinos que atiravam
pedras nos soldados começaram a me fazer mais perguntas sobre a
Palestina. Por que não usavam revólveres? Por que os Estados Unidos
ajudam Israel? Como revela essa última pergunta, minha identidade
norte-americana não era ignorada. Depois que, em 1986, os Estados
Unidos bombardearam a Líbia (o país do qual os Awlad 'Ali dizem
ser originários e com o qual ainda têm fortes vínculos), eles me
interpelaram sobre a posição norte-americana. Mal posso imaginar o
que vão me perguntar da próxima vez em que eu voltar, após a guerra
do Golfo.
Assim como outros intelectuais críticos da noção de
"objetividade" nas ciências sociais, argumentei (1989, 1991) que é
preciso dar mais atenção às relações específicas estabelecidas entre o
pesquisador e o objeto de estudo. Uma mulher norte­, americana
palestina que escolhe viver com um grupo de pessoas que se definem
(por serem uma tribo beduína) como uma minoria de árabes
muçulmanos que vivem no Egito e em seguida escreve livros para um
público acadêmico ocidental: esta parece ser uma situação muito
peculiar. Mas, de certa forma, toda situação é peculiar. Critiquei
Bourdieu (1977, p. 1-2), que analisou de maneira muito perspicaz os
efeitos do olhar externo sobre a (in)compreensão do antropólogo da
vida social, por não conseguir romper com a doxa de que o
antropólogo é um estrangeiro. O ponto evidente que ele ignora é que
o estrangeiro nunca fica, simplesmente, do lado de fora; ele ou ela
sempre estabelece uma relação específica com o "outro" estudado,
não apenas como um ocidental ou mesmo um "halfie", mas como um
francês na Argélia durante a guerra de independência,
Introdução 1 77

um norte-americano no Marrocos durante a guerra entre árabes e


israelenses em 1967 ou uma inglesa na Índia pós-colonial. Aquilo a
que nos referimos como "externo", ou mesmo como "parcialmente
externo", é sempre uma posição no seio de um complexo político
histórico mais amplo.
Resta, contudo, a questão pela qual principiei: usar meu
conhecimento a respeito de pessoas para propósitos que extrapolam a
amizade e as lembranças compartilhadas, fixando suas palavras e suas
vidas para revelá-las para um mundo além daquele em que vivem -
será isso uma forma de traição? Como alguém que se move entre dois
mundos, sinto que contestar as imagens negativas dos árabes que sei
que existem nos Estados Unidos é uma forma de render homenagem à
gentileza que tiveram comigo. O mesmo se dá com o questionamento
das generalizações e estereótipos que, ao final das contas, os fazem
parecer ainda mais "outros". Mas, mesmo assim, como a minha
etnografia crítica será recebida? Esse é o dilema que todos nós, que
nos movemos entre dois mundos, temos que enfrentar enquanto
tentamos nos equilibrar entre falar em nome deles, falar com eles e,
quando somos "halfies", falar como eles.,
Com base na recepção do meu primeiro livro, posso apenas
especular sobre o quão complexas serão as leituras locais. A revelação
que fiz, em Veiled Sentiments, dos vínculos e vulnerabilidades dos
indivíduos beduínos por meio de sua poesia pretendia suscitar nos
leitores ocidentais um reconhecimento da humanidade cotidiana
dessas pessoas; mas, no Egito, a reação foi outra. Quando uma mulher
ouviu alguém ler no livro alguns poemas que ela havia recitado alguns
anos antes, exclamou, meio jocosamente: "Você nos difamou!". Para
ela, um livro sobre pessoas específicas e sobre a vida cotidiana na sua
comunidade soava como pouco mais do que uma exposição pública
de segredos de família.
Minha apresentação da forma como os ideais de autonomia e
independência pessoais se manifestavam nas vidas dos homens
também ganhou sentidos complexos e diferentes no Egito. Uma cópia
de uma longa resenha (em árabe) do meu livro chegou a um homem
Awlad ‘Ali da região, que era um funcionário público em ascensão no
governo egípcio. Ele confrontou meu anfitrião com o artigo, zangado
porque eu tinha contado que eles gostavam de portar armas, sonegar
impostos e de preservar seu direito de resolver suas disputas em vez
de permitir que o governo interferisse. "Foi a sua menina que
escreveu
78 1 Lila Abu-Lughod

isso!", acusou ele. Nunca saberei o que aconteceu em seguida, pois


não estava lá e só ouvi a versão do meu anfitrião. Como sempre, ele
se comportou de maneira desafiadora, retrucando que fora ele quem
me ensinara tudo o que eu sabia. E, de toda forma, não era verdade?
Ele mesmo, o funcionário, não tinha armas sem licença? Ele incluía
todas as suas ovelhas em sua declaração de renda? O homem admitiu
que agia assim, mas, mesmo assim, não tinha certeza de que tornar
aquilo público fosse certo.
Meu anfitrião me disse que queria que meu livro fosse
traduzido para o árabe para que os egípcios pudessem entender e
apreciar os padrões morais superiores de sua comunidade (a qual
muitos egípcios desprezam). Pretendia usar meu prestígio para
contestar a condescendência e a ignorância dos egípcios. Mas,
conforme demonstrou o episódio sobre o relato acerca das armas e
dos impostos, ele era apenas uma voz na comunidade beduína. Suas
ideias a respeito do que faria seu povo ser respeitado eram diferentes
das ideias de alguém que fosse leal ao governo, embora ambos
fossem sensíveis à posição e identidade marginais que ocupavam
no estado-nação. Meu trabalho, embora voltado para outro público,
havia entrado em um campo político local no qual a relação entre os
beduínos Awlad 'Ali e o estado egípcio era um ponto em disputa.
O único aspecto dessas histórias que tenho certeza que não
será considerado inadequado para as pessoas que as contaram é seu
enquadramento mais amplo: a referência às tradições discursivas
muçulmanas. 41 Quer as pessoas vivam de fato, quer não, de acordo
com os ideais muçulmanos que definem para si mesmas, não têm
dúvidas de que ser muçulmano define as fronteiras do universo
moral e molda suas características. Mesmo que reconheçam as
tensões existentes entre algumas práticas e algumas prescrições,
ficarão orgulhosas de ver reproduzidas, nessas histórias, as
constantes invocações a Deus e ao Profeta que são essenciais para
a definição de si mesmas na comunidade. Embora minha intenção
ao recorrer a esse enquadramento religioso, assim como ao usar os
conceitos das ciências sociais para intitular os capítulos, tenha sido
sugerir disjunções, meus amigos beduínos não estariam errados
se entendessem essas escolhas como expressando também uma

41
Essa é uma expressão que Asad (1986) defende ser central para o desenvolvimento
de uma antropologia do Islã.
Introdução 1 79

verdade profunda sobre suas vidas - vidas de fato imbuídas da fé em


Deus, ricas em práticas que reforçam sua percepção dessa presença
constante de Deus e matizadas por uma percepção confiante de
pertencimento a uma comunidade de muçulmanos.

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