Você está na página 1de 4

Marilena Chauí

_______________________________

escreve Sartre, “é aquele que escolheu um modo de ação que se poderia chamar
de ação por desvendamento”.
O que há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo
recriando o mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está
aquém e nem na obra, mas é a própria obra de arte.
Talvez a melhor comprovação disso seja a música. Feita de sons, será destruída
se tentarmos ouvir cada um deles ou reproduzi-los como no toque de um corpo
de cristal ou de metal. A música, pela harmonia, pela proporção, pela
combinação de sons, pelo ritmo e pela percussão, cria um mundo sonoro que só
existe por ela, nela e que é ela própria. Recolhe a sonoridade do mundo e de
nossa percepção auditiva, mas reinventa o som e a audição como se estes jamais
houvessem existido, tornando o mundo eternamente novo.
Arte e técnica
A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne, técnica,
significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a
regras. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido
estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição
ao acaso, ao espontâneo e ao natural . Por isso, em seu sentido mais geral, arte é
um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer.
Nessa perspectiva, falamos em arte médica, arte política, arte bélica, retórica,
lógica, poética, dietética. Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia,
uma vez que estas, como a arte, são atividades humanas ordenadas e regradas. A
distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas: as judicativas,
isto é, dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas,
voltadas para a direção de uma atividade, com base no conhecimento de suas
regras.
Aristóteles, porém, estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na
Cultura ocidental. Numa delas distingue ciência-Filosofia de arte ou técnica: a
primeira refere-se ao necessário, isto é, ao que não pode ser diferente do que é,
enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível , portanto, ao que
pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no campo do próprio possível,
pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre praxis e poiesis. A política e
a ética são ciências da ação. As artes ou técnicas são atividades de fabricação.
Plotino completa a distinção, separando teoria e prática e distinguindo as técnicas
ou artes cuja finalidade é auxiliar a Natureza – como a medicina, a agricultura –
daquelas cuja finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela
Natureza – o artesanato. Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas
que não se relacionam com a Natureza, mas apenas com o próprio homem, para
torná-lo melhor ou pior: música e retórica, por exemplo.

– 405 –
Convite à Filosofia
_______________________________

A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela


sociedade antiga e, portanto, pela estrutura social fundada na escravidão, isto é,
uma sociedade que despreza o trabalho manual. Uma obra, As núpcias de
Mercúrio e Filologia, escrita pelo historiador romano Varrão, oferece a
classificação que perdurará do século II d.C. ao século XV, dividindo as artes em
liberais (os dignas do homem livre) e servis ou mecânicas (próprias do
trabalhador manual).
São artes liberais: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e
música, compondo o currículo escolar dos homens livres. São artes mecânicas
todas as outras atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura,
escultura, olaria, tecelagem, etc. Essa classificação diferenciada será justificada
por santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes
que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos. Ora,
somente a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão, de sorte que as artes
liberais são superiores às artes mecânicas.
As palavras mecânica e máquina vêm do grego e significam estratagema
engenhoso para resolver uma dificuldade corporal. Assim, a alavanca ou a polia
são mecânicas ou máquinas. Qual é o estratagema astucioso? Fazer com que
alguém fraco realize uma tarefa acima de suas forças, graças a um instrumento
engenhoso. Uma alavanca permite deslocar um peso que uma pessoa, sozinha,
jamais deslocaria. A técnica pertence, assim, ao campo dos instrumentos
engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar uma atividade penosa, dura,
difícil.
A partir da Renascença, porém, trava-se uma luta pela valorização das artes
mecânicas, pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa
dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas para
convertê-las à condição de artes liberais. Além disso, à medida que o capitalismo
se desenvolve, o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas,
sendo por isso valorizado. A valorização do trabalho acarreta a valorização das
técnicas e artes mecânicas.
A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de
conhecimento, como as artes liberais. A segunda dignidade foi alcançada no final
do século XVII e a partir do século XVIII, quando distinguiram-se as finalidades
das várias artes mecânicas, isto é, as que têm como fim o que é útil aos homens –
medicina, agricultura, culinária, artesanato – e aquelas cujo fim é o belo –
pintura, escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança. Com a idéia de
beleza surgem as sete artesxi ou as belas-artes, modo pelo qual nos
acostumamos a entender a arte.
A distinção entre artes da utilidade e artes da beleza acarretou uma separação
entre técnica (o útil) e arte (o belo), levando à imagem da arte como ação
individual espontânea, vinda da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio

– 406 –
Marilena Chauí
_______________________________

criador. Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da


tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de inspiração, entendida
como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa, que leva o gênio
a criar a obra.
Além disso, como a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade – a criação
do belo -, torna-se inseparável da figura do público (espectador, ouvinte, leitor),
que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza.
Surge, assim, o conceito de juízo de gosto, que será amplamente estudado por
Kant.
Gênio criador e inspiração, do lado do artista (fala-se nele como “animal
incomparável”); beleza, do lado da obra; e juízo de gosto, do lado do público,
constituem os pilares sobre os quais se erguerá, como veremos adiante, uma
disciplina filosófica: a estética.
Todavia, desde o final do século XIX e durante o século XX, modificou-se a
relação entre arte e técnica.
Por um lado, como vimos ao estudar as ciências, o estatuto da técnica modificou-
se quando esta se tornou tecnologia, portanto, uma forma de conhecimento e não
simples ação fabricadora de acordo com regras e receitas. Por outro lado, as artes
passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como
expressão criadora, isto é, como transfiguração do visível, do sonoro, do
movimento, da linguagem, dos gestos em obras artísticas.
As artes tornam-se trabalho da expressão e mostram que, desde que surgiram
pela primeira vez, foram inseparáveis da ciência e da técnica. Assim, por
exemplo, a pintura e a arquitetura da Renascença são incompreensíveis sem a
matemática e a teoria da harmonia e das proporções; a pintura impressionista,
incompreensível sem a física e a óptica, isto é, sem a teoria das cores, etc. A
novidade está no fato de que, agora, as artes não ocultam essas relações, os
artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas ciências e nas técnicas
respostas e soluções para problemas artísticos.
A arte não perde seu vínculo com a idéia de beleza, mas a subordina a um outro
valor, a verdade. A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão
da verdade. Em outras palavras, as artes não pretendem imitar a realidade, nem
pretendem ser ilusões sobre a realidade, mas exprimir por meios artísticos a
própria realidade. O pintor deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o
que é o mundo sonoro; o dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o
que é o mundo da linguagem; o escultor, o que é o mundo da matéria e da forma.
Para fazê-lo, recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos (como, aliás,
sempre o fizeram, apesar da imagem do gênio criador inspirado, que tira de
dentro de si a obra).

– 407 –
Convite à Filosofia
_______________________________

Três manifestações artísticas contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e


técnica se encontram e se comunicam: a fotografia, o cinema e o design.
Fotografia e cinema surgem, inicialmente, como técnicas de reprodução da
realidade. Pouco a pouco, porém, tornam-se interpretações da realidade e artes
da expressão. O design, por sua vez, introduz as artes (pintura, escultura,
arquitetura) no desenho e na produção de objetos técnicos (usados na indústria e
nos laboratórios científicos) e de utensílios cotidianos (máquinas domésticas,
automóveis, mobiliário, talheres, copos, pratos, xícaras, lápis, canetas, aviões,
tecidos para móveis e cortinas, etc.).
As fronteiras entre arte e técnica tornam-se cada vez mais tênues: é preciso uma
película tecnicamente perfeita para a foto artística e para o cinema de arte; é
preciso um material tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir
um concerto; é preciso equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para
produzir fotos, filmes, discos, vídeos, cenários e iluminação teatrais.
A técnica de fabricação dos instrumentos musicais e a invenção de aparelhos
eletrônicos para música; as possibilidades técnicas de novas tintas e cores, graças
aos materiais sintéticos, modificando a pintura; as possibilidades técnicas de
novos materiais de construção, modificando a arquitetura; o surgimento de novos
materiais sintéticos, modificando a escultura, são alguns exemplos da relação
interna entre atividade artística e invenção técnico-tecnológica.
Em nossos dias, a distinção entre arte erudita e arte popular passa pela presença
ou ausência da tecnologia de ponta nas artes. A arte popular é artesanal; a erudita,
tecnológica.
No entanto, em nossa sociedade industrial, ainda é possível distinguir as obras de
arte e os objetos técnicos produzidos a partir do design e com a preocupação de
serem belos. A diferença está em que a finalidade desses objetos é funcional, isto
é, os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher
(uma cadeira deve ser confortável para sentar; uma caneta, adequada para
escrever; um automóvel, adequado para a locomoção; uma geladeira, adequada
para a conservação dos alimentos, etc.). Da obra de arte, porém, não se espera
nem se exige funcionalidade, havendo nela plena liberdade para lidar com formas
e materiais.
Arte e religião
As duas primeiras manifestações culturais foram, historicamente, o trabalho e a
religião. Ambas instituíram as primeiras formas da sociabilidade – a vida
comunitária – e da autoridade – o poder religioso. Ambas instituíram os símbolos
de organização humana do espaço e do tempo, do corpo e do espírito. As artes,
isto é, as técnicas ou artes mecânicas, foram, assim, inseparáveis de ambas.
Mais do que isso. Vimos que a relação com o sagrado, ao organizar o espaço e o
tempo e o sentimento da comunhão ou separação entre os humanos e a Natureza

– 408 –

Você também pode gostar