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Armorial: recriando o universo do imaginário popular no Carnaval do Recife

Breno Carvalho1 e Carla Teixeira2

Palavras-chaves: Design, Cultura, Armorial


Resumo
Este trabalho analisa um dos maiores eventos do Brasil: o Carnaval Multicultural do Recife.
Entretanto, será observado especificamente a sinalização e decoração de 2006, que homenageou
o escritor Ariano Suassuna. A identidade desenvolvida no trabalho se utilizou da estética
Armorial, de elementos das iluminuras e de personagens da rica obra do escritor, que é
apaixonado pelo imaginário clássico e popular e pela cultura brasileira. De cores vivas e fortes,
de traçado simples e leve, sem o uso de recursos tridimensionais, as ilustrações de Joana Lira
dão um ar lúdico e alegre ao evento. Dividido por Pólos de animação, usou-se brasões e
elementos de obras como O Auto da Compadecida, A história de Amor de Fernando e Isaura,
A Pedra do Reino, mostrando personagens principais e elementos do imaginário popular. Como
conclusão, percebe-se que o designer tem um rico papel na sociedade, desenvolvendo trabalhos
sobre temas ligados à cultura do país, numa contribuição para o reconhecimento de nossas
raízes.

Key words: Design, Culture, Armorial


Abstract
This project analyses one of the biggest events in Brazil: O Carnaval Multicultural do Recife.
However, we'll focus on the signs and decorations that were used in 2006, in honour to the
writer Ariano Suassuna. The visual identity developed in the project was based on the Armorial
style, drawings and characters from his books. Joana Lira's illustrations gave the event a happy
and lively complex by using strong colors, simple and light sketchings without the use of 3D
resources. Divided by different animation sectors, symbols and elements from stories like
O Auto da Compadecida, A história de Amor de Fernando e Isaura, A Pedra do Reino were
used, showing important characters and elements of our culture. In conclusion, we notice that
the designer has an important role in society, developing theme projects about our rich and vast
culture, in a contribution for the recognition of our roots.

Introdução
Imprimir um caráter universal a uma festa popular que é a “cara” de Pernambuco:
o Carnaval do Recife. A partir da identidade criada pela designer e artista plástica Joana
Lira para o Carnaval Multicultural do Recife 2006, uma homenagem ao escritor Ariano
Suassuna, iremos analisar como o designer pode aproximar a cultura regional do
público, na criação para um evento de massa, com a participação de mais de um milhão
de pessoas de várias partes do país e do mundo.

1
Professor da Universidade Católica de Pernambuco e Relações Públicas com Especialização em Design
da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco
2
Professora da Universidade Católica de Pernambuco e Jornalista com Especialização em Desenho pela
Universidade Federal de Pernambuco e Mestrado em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela
Universidade Federal Rural de Pernambuco
O Carnaval Multicultural do Recife e o Movimento Armorial
Duas cidades, em Pernambuco, destacam-se pelo carnaval de rua, no qual
blocos, troças, maracatus e foliões do Brasil e do exterior brincam durante quatro dias:
Recife e Olinda. Desde o início da gestão do prefeito João Paulo (PT-PE), em 2002, a
proposta é mostrar o Recife como “uma cidade que respira cultura. (...). Recife é
diversidade, é descentralização, é multiculturalidade”. (I CONFERÊNCIA DE
CULTURA DO RECIFE, 2003). Dessa forma, a festa de Momo foi descentralizada,
com vários pólos de animação em diversos pontos da cidade.
Em 2006, a Prefeitura homenageou o escritor Ariano Suassuna e o cantor
Claudionor Germano. Percebemos que a identidade visual criada pela artista plástica
Joana Lira teve como pressuposto abarcar a proposta de multiculturalidade, fazendo
uma ponte com a obra de Ariano. Ele é autor de peças e romances, alguns deles
adaptados para o cinema e a televisão como O Auto da Compadecida e, mais
recentemente, A Pedra do Reino, minissérie de cinco capítulos dirigida por Luiz
Fernando Carvalho, que teve o último exibido no dia do aniversário de 80 anos de
Ariano: 16 de junho. (CONTINENTE MULTICULTURAL, 2007).
O Movimento Armorial foi lançado por Suassuna em 18 de outubro de 1970, com o
apoio de artistas e intelectuais. O conceito, segundo o próprio Ariano, era “realizar uma
Arte erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura” (SUASSUNA, 1977, p. 40).
A arte Armorial foi descrita como aquela que tem como traço principal a ligação com a
literatura de cordel, que apontariam três caminhos: um para a literatura, cinema e teatro,
através da poesia narrativa de seus versos; outro para as artes plásticas, como a gravura,
a pintura, a escultura, cerâmica, talha e tapeçaria, inspirado nas xilogravuras3; e um
terceiro para a música, pelas características do canto de seus verso e estrofes
(SUASSUNA, 1997, p. 39).
Além de escritor, Ariano Suassuna colabora como artista plástico transformando o
imaginário popular em arte, a partir de suas telas, esculturas, peças em cerâmica,
desenhos, gravuras e iluminogravuras4 (veja a Figura 1), que na opinião da jornalista
3
A xilogravura é uma gravura talhada em madeira, de onde se obtém ilustrações populares, muito
utilizada a partir do século XIX nas capas de folhetos da literatura de cordel. (FUNDAÇÃO JOAQUIM
NABUCO, 2007).
4
Iluminogravura: termo criado por Ariano Suassuna para designar uma releitura contemporânea da
iluminura - do francês enluminur - a arte, imagem ou o ato de ornar um texto, uma página.
(CONTINENTE MULTICULTURAL, 2002). Segundo o especialista na obra de Suassuna, Carlos
Newton, a iluminogravura é também um texto ilustrado. A ilustração de cada uma delas associa episódios
descritos no respectivo poema a motivos da cultura brasileira, recolhidos tanto em nossa arte popular
Olívia Mindêlo, contribuíram não só para a sedimentação de um ideal de cultura
brasileira, mas para a construção de uma marca muito particular. (JORNAL DO
COMMERCIO, 2007). As iluminogravuras estão presentes em várias das obras de
Suassuna.
Delas surgem figuras mitológicas, animais do universo sertanejo popular e
personagens inspirados no imaginário nordestino, ibérico, medieval. O
amarelo ouro, o marrom, o ocre, o preto e o vermelho são as cores que marcam
a identidade do trabalho. (JORNAL DO COMMERCIO, 2007)

É este universo mítico, com dragões, leões e outras


figuras imaginárias, além dos personagens de suas obras, além
das cores, que são especialmente destacados na identidade do
Carnaval Multicultural 2006. Ele pode ser considerado uma
marca forte e personalizada, que se estende além da iniciativa
de Ariano Suassuna mais de 35 anos após o início do
movimento, com faces que incluem as artes plásticas, a dança,
o teatro, a música e também o design.

Figura 1: Iluminogravura de Ariano Suassuna

Uma identidade multicultural: o processo de criação


Para a designer Ana Luisa Escorel, como qualquer produto, “um evento cultural,
seja qual for sua natureza, precisa de uma identidade visual forte e original, adequada a
seus fins e ao repertório do público visado, para poder se distinguir e marcar a trajetória
com nitidez” (2000, p. 60). A autora percebe a função do design num evento cultural
como um elemento multiplicador. Mesmo que uma exposição de arte, por exemplo,
tenha como público direto um determinado segmento da população habituado à arte
erudita, as possibilidades de comunicação são ampliadas pelo design. Outras pessoas
também são atingidas pela mensagem. Nisso consiste o efeito multiplicador.
O que dizer então, de uma festa de caráter eminentemente popular, que reúne
pessoas de várias partes do mundo? Como traduzir a diversidade cultural de
Pernambuco numa linguagem acessível a um universo que abrange os pernambucanos e
também turistas, crianças, jovens e adultos? “Desenvolver desenhos para uma

quanto em nossa arte pré-histórica. JORNAL DO COMMERCIO, 2007.


intervenção urbana do porte do carnaval do Recife é um privilégio que poucos têm”,
afirma a artista plástica Joana Lira5. (LIRA, 2007). Sobre isso, Escorel avalia:
No projeto de identidade visual de empresas, produtos e serviços, de
maneira geral, de eventos culturais, em particular, cabe ao designer a tarefa
de trazer para a superfície, com seu trabalho, dados que normalmente estão
escondidos. (...) Sem seu auxílio o profissional não atingirá o sentido oculto
da informação que deve desentranhar, dando-lhe forma e corpo através do
projeto, para que possa se plasmar graficamente ao evento. (2000, p. 60)

Neste sentido, procuramos conhecer a estratégia criativa da artista plástica no


desenvolvimento do projeto. Antes de desenvolver as ilustrações para a cenografia 2006
(veja a Figura 2), ela estudou a obra de Ariano, selecionando os elementos com os quais
iria trabalhar e fazendo uma releitura. “Procurei destacar as obras e os personagens mais
conhecidos pelo público quando se fala em Ariano Suassuna: Auto da Compadecida, A
Pedra do Reino e Fernando e Isaura”. (LIRA, 2007).
Para a artista, as principais dificuldades para um designer ou ilustrador no
desenvolvimento de projetos na área cultural é desenvolver uma linguagem que agrade a
todos, já que o cliente de fato não é a prefeitura, mas todos os cidadãos que participam
do carnaval recifense. “Sem falar na dificuldade em dimensionar as peças das alegorias
para a escala urbana e de especificar materiais para estruturá-las”.

Recriando o imaginário popular


A nossa análise sobre a identidade visual do Carnaval Multicultural do Recife
2006 não irá considerar a marca do evento, também criada pela artista plástica Joana
Lira em 2002. Abordaremos apenas a decoração, que contou com painéis, totens,
estandartes e figurações inspiradas nas iluminuras e em personagens da rica obra do
criador do Movimento Armorial.
Foram criadas ilustrações que retratam
personagens clássicos do imaginário como a
serpente, a dama, o cavaleiro, a rainha e o rei.
Personagens religiosos, como Jesus e o Diabo. Do
imaginário popular estão retratados as personagens
Figura 2: Ilustrações de totens criadas por Joana Lira

5
Joana Lira é designer, ilustradora e artista plástica. Apesar de formada em Design Gráfico pela
Universidade Federal de Pernambuco, ela destaca que assume muito mais o papel de artista plástica do
que de designer. Na área cultural, fez exposições, cenários para peças teatrais e ilustrou livros, além dos
trabalhos desenvolvidos para o Carnaval Multicultural do Recife (LIRA, 2007).
Fernando e Isaura, João Grilo e Severino de Aracaju. Também foram produzidas
imagens de lobos de duas cabeças, o boi voador e dragões, além da criação de brasões
representando a Heráldica6. Também há aves, pássaros, peixes, baleias, onças pintadas e
corações para retratar todo o universo encontrado nas obras de Ariano.
A sinalização dos Pólos de Animação ficou assim caracterizada:
- Pólo Recife Multicultural (Praça do Marco Zero) – Personagens inspirados no Auto da
Compadecida: Jesus, o Diabo, Severino de Aracaju, Vicentão, o Padeiro e sua Mulher,
Cabo 70, Rosinha, Nossa Senhora Aparecida ou a Compadecida, o Gato que Descome
Dinheiro, Chicó e João Grilo. A sinalização foi elaborada com totens em formato
lembrando caixas de fósforo na posição vertical, com uma base retangular de diversas
cores. (veja a Figura 3)
- Pólo Fantasias (Rua do Bom Jesus) – Personagens inspirados em A Pedra do Reino:
cavaleiros montados a cavalo, como painéis de chão. Também houve uso de animais
reais e do imaginário suspensos por cabos nas árvores por toda a rua. (veja a Figura 4)
- Pólo Mangue (Cais da Alfândega) – Personagens inspirados na obra A história de
Amor de Fernando e Isaura: Fernando e Isaura. Aqui a sinalização foi representada
através de banners de três dimensões, na qual se via também ornamentos compostos por
flores, pássaros e corações. Também são utilizados corações suspensos por cabos em
todo o Pólo.
- Pólo Afro (Pátio do Terço) – Personagens inspiradas nas iluminuras de Ariano que
retratam a raiz africana do povo nordestino e brasileiro: Negras de seios nus com
ornamentos (brincos, colares e lenços na cabeça).
- Pólo de Todos os Ritmos (Pátio de São Pedro) – Bichos lúdicos e o Sol. Estes estavam
em formato de totens, situados no topo, e a base tinha uma serpente tridimensional
enrolada. Já o painel do palco possuía ilustrações da Dama (rainha) e do Cavaleiro (rei),
fazendo um mix de alguns temas.
- Pólo de Todos os Frevos (Av. Guararapes) – Aqui veremos o uso de bandeiras, com os
Brasões Heráldicos, dividido em três elementos: o escudo, no qual estavam inseridas
figuras de animais lúdicos ou marcas de patrocinadores e apoiadores; o timbre 7 (com a
representação visual ou da flor-de-lis); e/ou coroa. O suporte destes era composto por
6
Refere-se à ciência e à arte de descrever brasões de armas ou escudos. (HOUAISS, 2001)
7
O timbre é a figura sobre o elmo, como forma de facilitar o reconhecimento da identidade do cavaleiro e
aumentar a sua visibilidade pelos espectadores. Elmo faz parte do equipamento de guerra medieval, e se
apresenta das mais variadas formas, mas sua função básica é a proteção craniana. (HERÁLDICA, 2007)
Fotos: Tiago Lubambo

barras de ferro na cor preta. Também há presença de animais lúdicos suspensos em um


suporte na cor amarela. Em algumas bases, serpentes tridimensionais. (veja a Figura 5)
- Vias de Chegada8 - Cenário composto por bichos, bandeiras e brasões inspirados nas
iluminuras de Ariano Suassuna.
Figura
Figura
3: Totens
4: Decoração
doFigura
PólodoRecife
5:Pólo
Bandeiras
Multicultural
Fantasias
do Pólo de
Todos os Frevos

As cores não têm efeitos de gradiente, são chapadas. Predominam as primárias


(azul, vermelho e amarelo) e secundárias (verde, laranja) com a inserção de tons de
marrom em alguns personagens humanos. As cores seguem a estética do Movimento
Armorial, assim como o estilo de representação, que usa a mesma linguagem das
iluminuras de Ariano Suassuna: figurações de frente ou de perfil, sem o uso de
perspectiva, profundidade ou tridimensionalidade.
Os personagens são engraçados e atraentes, como forma de demonstrar tanto a
alegria do Carnaval Multicultural do Recife como das obras de Ariano. O traçado das
ilustrações é leve e delicado. Neste ponto Joana Lira imprime sua própria interpretação
à obra de Ariano. Isto não apenas retrata a identidade de Joana Lira, que em seus
trabalhos, carregados de elementos da cultura indígena e africana, reforça a femi-
nilidade, como mostra o designer/artista plástico como um agente capaz de imprimir sua
própria personalidade, a partir de um mesmo universo, no caso a cultura popular.
Segundo Joana Lira, não houve tanta dificuldade em criar os elementos para o
projeto, mesmo o tema tendo sido tão específico. Pernambucana e admiradora do
Movimento Armorial, ela destaca que também bebeu desta fonte. “Claro que minha
linguagem gráfica tem uma influência regional forte. Sem falar que utilizo muito o traço
preto com preenchimento, que é bem característico do desenho de Ariano”. (LIRA,
2007). Na criação, Joana Lira destaca que procurou dosar sua própria bagagem cultural
com o que havia sido solicitado pela Prefeitura do Recife.

8
Todas as pontes e as avenidas de acesso ao Bairro do Recife que tiveram decoração.
Não consigo ser imparcial ao criar uma identidade visual para um cliente.
Ao contrário, o cliente que me contrata sabe que vou agregar à empresa dele
a minha linguagem gráfica, e não criar uma linguagem diferente de todos os
outros trabalhos que fiz só para ele. (LIRA, 2007)

Conclusão
Podemos perceber, a partir da análise da identidade do Carnaval Multicultural
do Recife, que tanto o designer quanto o artista plástico podem imprimir um caráter
único a um evento, utilizando a linguagem do design gráfico de uma maneira universal.
Ou seja, mesmo a partir do universo mítico e único da cultura e do imaginário
populares, integrantes do Movimento Armorial, é possível transportar e difundir a
cultura pernambucana para um público de mais de um milhão de pessoas.
Os traços leves, as cores vibrantes e as demais características visuais das
iluminuras presentes na sinalização e decoração do evento, valorizam aspectos da
cultura e da identidade de uma região repleta de história, contos e causos fantásticos
como o Nordeste brasileiro. Daí a importância do designer, ao unir elementos
aparentemente díspares e fazendo da cultura regional um instrumento de criação,
aproximando o design das raízes do Brasil.

Referências
ALMA armorial. Continente Multicultural, Recife, ano II, nº 14, fevereiro, 2002.
CONTINENTE MULTICULTURAL. Cabras e Mamulengos versus Super-homem. Recife,
ano II, nº 20, agosto de 2002.
CONTINENTE MULTICULTURAL. O Universo Mítico de Ariano Suassuna. Ano VII, n.
78. Recife, ano VII, n. 78, junho de 2007.
ESCOREL, Ana Luisa. O Efeito Multiplicador do Design. São Paulo, Senac-SP, 2000
HOUAISS, Antônio. Mini Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
I CONFERÊNCIA DE CULTURA DO RECIFE. Folder. Recife, dezembro de 2003.
JORNAL DO COMMERCIO. Caderno Especial. Recife, 16 de junho de 2007.
LIRA, Joana. Entrevista via e-mail a Breno Carvalho e Carla Teixeira. Julho de 2007.
MELO, Jamildo. O Artesanato em Pernambuco. Assembléia Legislativa do Estado de
Pernambuco: Recife, 2006.
SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Universitária da Universidade Federal
de Pernambuco, 1974.
SITE: www.heraldica.com.br/saiba_mais.htm (acessado em 21.04.2007)
SITE: www.nordeteweb.com.br/not11/ne_20001106b.htm (acessado em 06.08.2004)
SITE: www.unicap.br/armorial (acessado em 21.05.2007)
SITE: www.fundaj.gov.br (acessado em 21.05.2007)

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