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Luciano Cardinali*
A tipografia Armorial:
a concepção de uma
identidade visual
sertaneja
Luciano Cardinali Mestre em Design Resumo O artigo observa o trabalho do dramaturgo, romancista e poeta pa-
e Arquitetura pela Faculdade de Arqui- raibano Ariano Suassuna que, em outubro de 1970, protagonizou as bases
tetura da Universidade de São Paulo e do Movimento Armorial: uma iniciativa que buscou construir o repertório
graduado em Artes Plásticas pela Fun- de uma arte erudita baseado em referências da cultura regional e popular.
dação Armando Álvares Penteado. Di- Especificamente, analisa a tipografia armorial ou alfabeto sertanejo encon-
retor da Consolo & Cardinali Design e trada nos títulos das iluminogravuras de Suassuna, em conjunto com o Mo-
Assessoria de Imagem com atuação nas vimento Armorial na atuação como perpetuador de uma memória coletiva,
áreas de design tipográfico, comunica- visual e regional, pleiteando apresentar uma identidade popular, nordesti-
ção visual, design de informação, de- na, brasileira. Como resultado, foi desenvolvido um projeto tipográfico que
sign gráfico editorial e identidade cor- incorpora características formais desse alfabeto aplicadas em uma estrutu-
porativa. Professor na Escola Superior ra tipográfica clássica, estabelecendo a proposição fundamental do Movi-
de Propaganda e Marketing. Foi um mento Armorial de unir o popular ao erudito.
dos idealizadores da Bienal Tipos Lati-
nos, onde atuou como jurado e coorde- Palavras chave Tipografia, Tipografia Armorial, Tipografia Vernacular,
nador regional São Paulo. Atualmente Iluminogravura, Ariano Suassuna.
é conselheiro da coordenação.
<luciano@consoloecardinali.com.br> The Armorial Typography: designing a sertanejo visual identity
Abstract This article examines the work of Ariano Suassuna, a brazilian playwright,
novelist and poet born in the state of Paraiba. In October 1970, he lead the Armorial
Movement: an artistic movement that sought to build a repertoire of a classical art
based on references of regional and popular culture. This work analyzes the serta-
nejo (backland) typography found in the woodcuts designed by Suassuna for the
group, sort of medieval illumination of manuscripts. The Armorial Movement has
a relevant role in perpetuating a regional collective memory, seeking to present a
popular identity typical from the brazilian northeastern. As a result, a typographic
design has been created incorporating formal features of that alphabet, applied in
a classic typographic structure, thus establishing the fundamental proposition of
the Armorial Movement as responsible for the union of popular and classical.
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Introdução
As iluminogravuras são obras de caráter sintético compostas de
textos e imagens, com forte alusão às iluminuras medievais — observando
sua relação formal com os ferros de marcar gado e influências estéticas da
heráldica medieval europeia. É possível entender que tais características
sobreviveriam de alguma forma, independentes de qualquer formalização
estética, mas cabe refletir se esse imaginário, coletivo e regional, tão arrai-
gado na tradição e, até então quase isolado na dita cultura civilizada, não
sofreria interferências da cultura midiática global com alterações irrecu-
peráveis.
A tipografia armorial, é uma transposição quase que direta das
marcas monográficas usadas nos ferros de marcar gado. Cada proprietário
possui sua maneira de arranjar letras e outros sinais, que são alterados ou
complementados de geração em geração, em que a particularidade de um
filho se soma à do pai, de uma maneira semelhante como a brasonagem
heráldica medieval procedia.
Outros aspectos podem ser abordados em relação ao Movimento
Armorial para respaldar ou auxiliar a compreensão do questionamento
proposto: reflexões sobre o caráter popular em oposição ao erudito; a in-
fluência da transmissão oral da cultura e costumes locais e a absorção do
imaginário do bestiário popular local e dos brasões medievais introduzidos
pela corte real portuguesa e outros dominadores europeus.
Ainda sobre o próprio movimento, existem algumas questões esté-
ticas que se relacionam de maneira muito particular: ao mesmo tempo em
que se alinha ao pensamento do modernismo brasileiro que defendia uma
consciência criadora nacional, rejeita fortemente o academicismo e resgata
algumas tradições medievais. Um dos intelectuais que ajudou a formatar as
bases do Movimento Armorial foi o sociólogo Gilberto Freyre, admirador
da obra de William Morris e John Ruskin que defendiam o afastamento da
produção cultural dos processos industriais.
O Movimento Armorial
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A Heráldica Armorial
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Figura 2 Estandarte do movimento ar- Figura 3 Estandarte que antecede a Figura 4 Estandarte do Maracatu Leão
morial: referências às festa populares e Festa do Divino Africano.
heráldica medieval. Fonte Acervo do autor, 2016. Fonte Acervo do autor, 2016.
Fonte Disponível em <http://mate-
ria001.blogspot.com.br/2007/07/aria-
no-o-criador-do-movimento-armorial.
html>. Acesso em 20 Jul. 2015.
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Figura 5 Marcas de Ferro dos índios Figura 7 Marcas de Ferro dos índios
Kadiwéus. Kadiwéus.
Fonte Disponível em: <https://tip- Fonte Disponível em: <https://tip-
odafonte.wordpress.com/2013/10/ odafonte.wordpress.com/2013/10/
27/estetica-armorial/> Acesso em 10 27/estetica-armorial/> Acesso em 10
Ago. 2012. Ago. 2012.
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Iluminogravuras
Iluminuras medievais
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os textos e a base das ilustrações são pintadas com tinta nanquim. Esta
matriz é reproduzida pelo sistema de impressão offset e posteriormente
recebe a aplicação manual de pintura colorida em aquarela, guache ou
óleo sobre as cópias impressas. Esse processo aponta a intenção de mini-
mizar o impacto que a mecanização da reprodução em série exerce sobre
o trabalho final. O controle da expressividade, ou o descontrole do fazer
artístico respeitando o imprevisível, são relativamente mantidos dessa
maneira ao mesmo tempo que viabiliza a produção das gravuras em pe-
quena escala, de 50 a 150 cópias. As gravuras são agrupadas em álbuns
com 10 lâminas soltas e acondicionadas numa caixa de madeira (VALLE,
2008). Não por acaso a gravura foi escolhida como meio de expressão, pois
está historicamente relacionada com a popularização da arte tornando-a
mais barata e, supostamente, menos elitista.
Em uma análise primária geral, os títulos são escritos manualmen-
te utilizando o Alfabeto Sertanejo desenvolvido por Suassuna, observando
uma relação formal com os ferros de marcar. O corpo do texto é caligrafado
com uma escrita cursiva bastante informal e pessoal do autor, visivelmente
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A Tipografia Armorial
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anotadas em relação ao projeto original. Ora são mais condensadas, ora são
mais inclinadas, ou as hastes são mais pesadas ou possuem certa modulação.
Apresentada não como um produto acabado e absoluto, a Tipografia
Armorial pode ser compreendida como uma subcategoria informal daquilo
que é conhecido como Tipografia Vernacular, gerando versões e interpre-
tações de outros designers. Segundo Priscila Farias, o Alfabeto Sertanejo se
enquadra nas Tipografias Vernaculares Rústicas, “inspiradas em tradições
populares, fortemente relaciona-das com o folclore ou fenômenos culturais
típicos de regiões específicas, em sua maioria não urbanas” (FARIAS, 2009,
p.195). Tipografias com essas qualidades carregam uma estreita vinculação
com os objetos ou artefactos que originalmente as produziram. Todas as
imperfeições e resíduos presentes na matéria de origem são transferidos
em sua quase totalidade ao desenho das letras, acarretando em alguns ca-
sos uma interferência direta na legibilidade. No caso do Alfabeto Sertanejo,
os ferros de marcar o gado transmitiram aos tipos a estrutura retilínea e
monolinear (espessura uniforme e constante) da face do ferro e as irregu-
laridades no contorno provocadas pela queima incontrolada na superfície
do couro, do papel ou da madeira. Todos os caracteres, invariavelmente,
possuem ao menos um sinal agregado em alguma extremidade de suas has-
tes ou curvas, fazendo uma alusão talvez involuntária às serifas dos tipos
tradicionais, além da já citada relação com a heráldica sertaneja que associa
letras ou outros sinais de descendentes às marcas anteriores. Os sinais mais
Figura 14 Comparação das letras de- comuns, agregados à base das letras, são a Flor, a Asa, a Meia-Lua e ou Meia-
senhadas na Iluminogravura com o -Balança, a Lua, o Meio-Batim, a Flecha, o Martelo. Aparentemente, esses
projeto original: a estrutura básica se elementos não possuem nenhuma ligação conotativa com o fonema, mas
mantém. são adicionados ao tronco da letra ou por razões estéticas ou relacionadas
Fonte Acervo do autor, 2016. às anotações que foram usadas como referência (Figura 14).
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plo: em uma palavra com letras duplicadas como ‘rr’ ou ‘ss’ a forma dos
caracteres (glifos) não são repetidas, sendo uma delas substituída por um
design sutilmente diferente. Também há caracteres especiais para dígrafos
comuns na língua portuguesa (lh, nh, ch, LH, NH, CH) (Figura 19).
A) D)
B)
C)
Figura 18 De cima para baixo: A) Bauer Bodoni, da typefoundry Bauer. B) Bodhoni, uma reinterpretação
da clássica Bodoni, da typefoundry Tipomakhia e de autoria de Luciano Cardinali. C) Atrophia, baseada
na Bodhoni, da typefoundry Tipomakhia e de autoria de Luciano Cardinali. D) Nova Armorial (nome
provisório), projeto baseado na fonte Atrophia com inserção de sinais tradicionais dos ferros de marcar,
da typefoundry Tipomakhia e de autoria de Luciano Cardinali.
Fonte Do autor, 2016
Considerações finais
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Referências
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NORA, Pierre. Entre a Memória e a História: A problemática dos Lugares. Projeto História
(10): 1993
PASTOREAU, Michel. Besttiaires du Moyen Âge. Paris: Seuil. 2011
SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Universitária da UFPE, 1974.
VALLE, Francisco B. As relações entre Design e o Armorial de Suassuna. Dissertação de
Mestrado. UERJ: Rio de Janeiro, 2008.
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