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XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música –Natal – 2013

Da enxada à vitrola: representações do homem do campo na poesia da


música caipira da década de 1940

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

Felipe Eugênio Vinhal


Universidade Federal de Goiás – felipevinhal.musica@gmail.com

Magda de Miranda Clímaco


Universidade Federal de Goiás - magluiz@hotmail.com

Resumo: Esse trabalho, parte integrante de uma pesquisa maior em andamento, que visa no seu
cômputo mais amplo o estudo do texto e da organização sonora de canções selecionadas no
universo da música caipira da década de 1940, tem como objetivo pontual analisar e interpretar a
poesia de algumas dessas canções, percebidas na sua capacidade de evidenciar representações
sociais ligadas à cultura do homem do campo em um dos seus primeiros momentos de interação
com circunstâncias midiáticas. Chega a considerações de que essas canções são capazes de
evidenciar essas representações.

Palavras-chave: Música Caipira. Representações. Homem do campo. Gênero discursivo

At the hoe to the gramophone: representations of country man in the lyrics of the 1940’s hick music
decade

Abstract: This research, member part of a biggest research, that aims in your widest work the
study of song’s text and sound organization selected in the universe of hick music of 1940 decade,
has as precise objective to analyze and interpret the lyrics of a few of that songs, realized on your
capacity to evidence social representations connected to a country man’s culture in one of their
first moments of interaction with media circumstances. This research gets considerations of that
songs are capable to evidence those representations.

Keywords: Hick music. Representations. Country man. Discursive gender.

Esta pesquisa é fruto do contato na academia com um universo teórico, numa


perspectiva histórico-cultural, que possibilitou outro olhar para uma música já muito presente
no meu próprio sistema representacional do interior de Goiás: a “música caipira de raiz”, aqui
percebida, numa primeira instância, como a música do homem do campo (CALDAS, 1999).
Possibilitou entender essa música também como elemento vivo, construtor e transformador da
trama sócio-cultural, escondendo em seu pragmatismo composicional e textual as evidências
necessárias à análise e compreensão de determinada “matriz cultural”, compreendida como
um “gênero discursivo”(BAKHTIN, 2003), ou seja, nas relações dialógicas que investem, e,
nessa condição, como estrutura simbólica capaz de incorporar significados e significantes que
evidenciam representações sociais. Capaz de incorporar, portanto,um conhecimento coletivo,
partilhado, imbricado com uma maneira de ser e de se reconhecer de grupos sociais, com
representações (práticas, obras, formulações intelectuais) de atores sociais capazes de
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evidenciar valorações, categorizações, classificações, alteridade e exclusão (CHARTIER,


1990). Um conhecimento implicado com processos identitários, portanto, que levaram Hall
(2000) a observar que esses processos só acontecem através da representação social.
Assim, esse trabalho, parte integrante de uma pesquisa maior em andamento, que
visa no seu cômputo mais amplo o estudo do texto e da organização sonora de canções
selecionadas no universo da música caipira da década de 1940, tem como objetivo pontual
analisar e interpretar a letra de algumas dessas canções, percebidas na sua capacidade de
evidenciar representações sociais ligadas à cultura do homem do campo em um dos seus
primeiros momentos de interação com circunstâncias midiáticas. Busca um recorte de tempo
que remete ao momento em que esse mesmo universo começou a ser marcado pela profunda
evasão desse homem para as cidades, pelas influências mais acentuadas dos meios de
comunicação de massa, rompendo as fronteiras que mantinham o caipira à esteira das
transformações da vida urbana (NEPOMUCENO, 1999). Parte da pressuposição que a letra
da música caipira do período selecionado é capaz de evidenciar representações sociais, o que
remete a processos identitários, portanto.Woodward citado por Silva (2000, p.17) observa:

a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos


por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como
sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive
sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos.

Esse mesmo autor, validando a pressuposição de que a obra musical pode ser
percebida como um dos campos do representacional, observa que a representação expressa-se
“por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um filme, de um texto, de uma expressão
oral. A representação não é, nessa concepção, nunca, representação mental ou interior. A
representação é, aqui, sempre marca ou traço visível, exterior” (SILVA, 2000, p. 90).
Essa primeira abordagem conceitual encontra consonância também na noção de
gênero discursivo de Mikhail Bakhtin (2003), que remete a uma “matriz cultural” inerente a
um campo específico de atuação na trama sócio-cultural, constituída na sua base de uma
polifonia de vozes marcada pelo entrecruzar de diferentes dimensões temporais e culturais
(diferentes representações sociais, enunciados, portanto). Uma “matriz cultural” que se
caracteriza pela sua capacidade de atualização constante em cada situação concreta e imediata
de relações que efetiva, em que evidencia uma nova polifonia de vozes na sua base, uma
trama peculiar de diferentes representações, embora prevaleça sempre a autoria de quem a
propôs (Ibidem). Nessa pesquisa abordo, portanto, uma matriz cultural inerente ao campo de
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produção musical denominado caipira – um gênero discursivo relacionado às peculiaridades


desse campo – levando em consideração um momento peculiar de atualização – as
composições musicais da década de 1940 - buscando perceber na sua base, entrecruzando
com as representações que remetem a outras dimensões culturais, ao universo midiático desse
momento que reafirma as gravações elétricas e a atuação do rádio no cenário brasileiro, as
representações relacionadas à sua memória, ao universo cultural do homem do campo, que
responde pela “autoria” dessa atualização.
O trabalho justifica-se por contribuir para o aumento da inserção da música
caipira como objeto de estudo das pesquisas da área, para a percepção de que a musicologia
hoje trabalha objetos diversos, além de contribuir com a luta contra o preconceito que esse
gênero vem sofrendo ao ser percebido como “musica menor” dentro do universo musical
brasileiro, por não ser percebido nas suas implicações culturais e contextuais, na sua interação
com diversos tempos e espaços. Por outro lado esse trabalho, além de dialogar com as
tendências mais atuais do campo musicológico, chama atenção para a importância do papel do
músico e da música na sociedade, para a relação intrincada que a música estabelece com a
sociedade quando percebida como estrutura simbólica, capaz de significar em relação a essa
sociedade, de evidenciar representações sociais. Mas que música caipira é essa?

Música Caipira e Música Sertaneja


Segundo Caldas (1999), Nepomuceno (1999) e Soboll (2007), quando o
investimento nas minas de ouro começou a mostrar seus sinais de falência no cenário
brasileiro, surgiu a necessidade do trabalho dos tropeiros, grupos de homens que se
locomoviam a cavalo, levando suprimentos e mercadorias de uma vila a outra e que passavam
longas temporadas vagando pelos sertões, constituindo um dos principais veículos de notícias
e ligação entre regiões. Para fugir da solidão, levavam sua viola amarrada nas costas ou no
lombo do animal, cantavam suas modas e, através delas, contavam as histórias das viagens,
traziam notícias.
Já no século XIX, com o desenvolvimento da cultura cafeeira e a conseqüente
migração para o campo, foi se desenvolvendo uma nova cultura rural que recebeu, sobretudo
no interior de São Paulo, diversos imigrantes europeus. Inserido nesse novo processo de
isolamento (Caldas, 1999), o homem do campo teve suas relações sociais resumidas às
festividades religiosas (Festa do Divino, Folia de Reis, Festa de São Gonçalo) e às relações de
trabalho (mutirões e rodas de viola). Nessa circunstância, continuou a se desenvolver uma
música que retrata um universo social campestre, ligado às plantações, ao trabalho, aos
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animais necessários a este, às entidades religiosas e à diversão popular. Caldas (Ibidem),


tendo em vista esse contexto histórico, afirma que a música caipira surgiu de um processo de
hibridação do europeu, do índio e do negro, efetivado na tarantela, valsa e fandango – origem
europeia - lundus e batuques – origem africana - e catira / cateretê e cururu - origem
indígena. Já Soboll (2007, p. 18), enfatizando as contribuições européias e indígenas nos
ritmos caipiras, observa que “quase todos eles são sempre subdivididos por dois tempos, não
dando muita margem para o deslocamentos do tempo forte, contrário ao samba, ao batuque e
outros ritmos que tiveram notadamente a forte presença da cultura africana”.
Pode ser dito, portanto, que essa música interagiu tanto com as festas religiosas de
origem européia, quanto com o cenário de pleno desenvolvimento da modinha, já híbrida, se
afirmando cada vez mais na música popular brasileira e influenciando outros gêneros. As suas
peculiaridades estilísticas, além dos ritmos citados, são melodismo, canto em terças paralelas,
trabalho na região vocal aguda, construção harmônica baseada na relação triádica entre I, IV e
V graus, texto voltado à caracterização de um cotidiano rural marcado por dialeto próprio e
“acompanhamento” realizado, sobretudo, pela viola e pelo violão. Amaral (1981) esclarece
sobre o “dialeto”caipira, marcadamente presente nessa música, ao observar que

o vocabulário do dialeto é, naturalmente, bastante restrito, de acordo com a


simplicidade de vida e de espírito, e portanto com as exíguas necessidades
de expressão dos que o falam.Esse vocabulário é formado, em parte: a) de
elementos do português usado pelo primitivo colonizador, muitos dos quais
se arcaizaram na língua culta; b) de termos provenientes das línguas
indígenas; c) de vocábulos importados de outras línguas, por via indireta; d)
de vocábulos formados no próprio seio do dialeto. (p. 55. Grifo nosso).

Foi desse contexto que surgiram palavras como cabôco, acupá, agardecê, caipira,
cutucar, petecar, catira e pangaré. Concordo com Nepomuceno (1999) que, discordando da
expressão“exígua necessidade de se expressar”, afirma que o caipira possui um universo de
significados e linguagem extremamente ricos, evidenciados na música.
Quanto aos instrumentos, não se sabe ao certo como a viola e o violão chegaram
às mãos do sertanejo, nem por que razão foram por ele apropriados. Acredita-se que a viola
veio de Portugal, trazida pelos colonizadores, sendo muito utilizada pelos jesuítas na
catequização dos índios, ficou depois nas mãos dos colonos. Weizmann (2008) defende que o
violão ganhou esse nome tipicamente brasileiro por meio do homem popular, foi por ele
apropriado pela portabilidade e características harmônicas. No contexto da música caipira não
é comum esse instrumento ser reconhecido como um dos principais instrumentos
acompanhadores, porém, sua importância é evidenciada pela forte presença tanto nos grupos
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que continuam a fazer a música que tenta manter suas origens nas “raízes”, quanto nos grupos
que investem na transformada “música sertaneja”. Aqui começa a se delinear uma das
questões atuais relacionadas a esse campo de produção musical: “música caipira” ou “música
sertaneja”? Caldas (1999), Catelan, Ladislau (2005) e Soboll(2007) defendem que a primeira
se difere da segunda pelas seguintes características:
1. A música caipira tem seu campo de produção encerrado nas relações sociais rurais,
enquanto a música sertaneja está ligada às interações desse campo com a indústria
cultural, o que dificulta a difusão da primeira e incrementa a difusão da segunda.
2. A música caipira tem acompanhamento vocal, devido às suas interações com
manifestações religiosas e com o processo de criação coletiva;
3. A música sertaneja tem o incremento das novidades tecnológicas do meio musical,
enquanto a caipira mantém seus velhos instrumentos.
Já Nepomuceno (1999) e Severiano (2008) acreditam que a música caipira e a
música sertaneja estão profundamente ligadas, como se a última fosse uma “consequência”
natural da primeira. Consideram que a música sertaneja é resultante não só das exigências e
transformações ocorridas na sociedade, na tecnologia, e nos meios de comunicação, mas
também das novas maneiras do brasileiro se relacionar com outros produtos culturais. Sob
essa perspectiva, portanto, pode ser abordada também como a atualização de uma matriz
cultural, percebida nas suas interações com novos elementos que ajudam a instituir a
sociedade contemporânea, o que permite observar na sua base a polifonia de vozes de que fala
Bakhtin (2003), o cruzamento de diferentes representações sociais relacionadas a diferentes
dimensões culturais e temporais. O reconhecimento da atualização de um gênero discursivo,
dos processos de ressignificação desse gênero em cada situação concreta que efetiva, deixa
claro a inevitabilidade da saída da música caipira da roça, tendo em vista a profusão do rádio
e da TV, alguns dos elementos fundamentais para a difusão do artista popular brasileiro e para
a solidificação da indústria cultural no Brasil. A música caipira, nesse novo contexto, foi
inventando cada vez mais novas e diferentes fórmulas rentáveis e rapidamente assimiláveis
por um contingente maior de receptores, perdendo muito de suas características que, até a
primeira metade do século XX, ainda se consistiam em importantes traços daquela música
“isolada” do sertão brasileiro. As conhecidas e tradicionais duplas Tonico e Tinoco,
Alvarenga e Ranchinho, Cascatinha e Inhana e Jararaca e Ratinho, embora não tenham se
afastado de forma radical de suas raízes, foram muito ouvidas nas cidades, interessadas cada
vez mais no “jeca-tatu”, no caipira que agora tinha um aparelho de rádio na sala da casa de
sapé. Alguns dos maiores defensores dessas manifestações musicais mais próximas da
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“música caipira de raiz” foram Inezita Barroso e Rolando Boldrin, que não deixaram de
receber em seus programas de TV aquelas canções e cantores que foram grandes sucessos e
sinônimo de vendas astronômicas em meados do século XX. Trato aqui de algumas dessas
primeiras atualizações do gênero, que não se consistiam ainda nas atualizações que se
efetivaram no final do século XX e início do século XXI, as quais lançaram protótipos
musicais e “modelos de cantores” que têm se distanciado cada vez mais da matriz cultural.

O texto das canções e o representacional


Três canções que foram gravadas na década de 1940 foram selecionadas para
análise e interpretação do texto (serão na sequência da pesquisa analisadas na sua organização
sonora), tendo em vista a sua potencialidade de evidenciar representações sociais ligadas ao
universo caipira, conforme delineado até aqui. São elas: Cabocla Teresa (gravada em 1940,
por Raul Torres e Florêncio, de autoria de Raul Torres e João Pacífico), Chico Mineiro
(autoria de Tonico e Tinoco, gravada em 1946) e Tristeza do Jeca (autoria de Angelino de
Oliveira, aqui selecionada na clássica gravação de Tonico e Tinoco, de 1947). A análise,
nessa primeira abordagem referente ao texto, remete às características estilísticas contextuais
(do gênero), comparadas com características estilísticas individuais peculiares a momentos de
atualização do gênero mais recentes, conforme fundamentação em Bakhtin (2003).
Cabocla Teresa e Chico Mineiro possuem parte declamada e cantada, comum às
primeiras canções gravadas. Junto à Tristeza do Jeca, evidenciam no aspecto poético as
representações que remetem à ligação do homem com o campo em seu sentido telúrico, o que
acontece através da constância de palavras como “ranchinho”, “sertão”, “serra”, “montanha”,
etc., como exemplificado abaixo. As letras dessas canções revelam também o apego desse
homem a uma vida simples, próxima da natureza, o que não acontece nas atualizações mais
recentes do gênero, mais implicadas com o cotidiano e com as relações citadinas, o que já
aponta para características individuais do gênero relacionadas à atualidade.

Eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão (Tristeza do Jeca)

Há tempo eu fiz um ranchinho, pra minha caboca morá [...], bem longe deste
lugá, no arto lá da montanha, perto da luz do lua (Versos de Cabocla Teresa).

[...] foi lá pro sertão de Goiás (Chico Mineiro).

O animal é aliado e companheiro inseparável na vida campestre, é tratado de


forma peculiar, o que transparece nas canções que representam um animal próximo, servil:
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Virei meu cavalo a galope, risquei de espora e chicote, sangrei a anca do ta,
desci a montanha abaixo, e galopeando meu macho...(Versos de Cabocla
Teresa)

Eu sou inguar o sabiá, quando canto é só tristeza, desde o gaio onde ele tá.
(Versos de Tristeza do Jeca).

As canções desenham a casa do homem dos sertões, revelando simplicidade:


Numa casa bem estranha, toda feita de sapé, [...] pela réstia da janela, por
uma luzinha amarela, de um lampião quase apagano(Cabocla Teresa)

Eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão, todo cheio de buraco,


onde a lua faiz clarão(Tristeza do Jeca).

As ligações com manifestações culturais religiosas, apontadas anteriormente


como lócus de criação da música caipira em sua gênese, são também evidenciadas através do
representacional junto às atividades de trabalho cotidianas, como em Chico Mineiro:
[...] das viagens que eu fazia, [...] viajamos mais de dez anos, vendeno
boiada e comprânu [...], viajemo muitos dia, pra chegar em Ouro Fino, aonde
nóis passemo a noite, numa festa do Divino. (Chico Mineiro)

A viola, o seu papel de instrumento acompanhador principal do gênero, e um jeito


peculiar e choroso de cantar são do mesmo modo abordados, dando mais indícios das
características de estilo contextual e individuais do gênero nesse momento de atualização que
corresponde ao recorte de tempo efetivado nesse trabalho:
Vou quetá com a minha viola, já não posso mais cantá, pois o jeca quando
canta, dá vontade de chorá (Tristeza do Jeca).

Na viola delorido e era peão dos boiadeiros. (Chico Mineiro).

Os temas familiares, de amizade e de amor, poéticos e simples, alternados com


tragédias ou inocências, que, segundo Catelan / Ladislau (2005) e Nepomuceno(1999) são
parte fundamental dos temas da música caipira, evidenciam também a maneira desse homem
típico se relacionar com o outro. Exemplos estão nas tragédias de Chico Mineiro, onde o
irmão morre tragicamente, baleado na festa do Divino, e em Cabocla Teresa, onde a mulher é
morta pelo próprio marido, que se vinga de seu abandono por amor. A famosa tristeza do
caipira, tão romantizada pelos escritores, poetas e músicos brasileiros, é mais do que tema
recorrente nestas três canções, constituem característica de estilo contextual que marcam esse
momento de atualização do gênero. A própria palavra “tristeza” é utilizada explicitamente nas
três peças. A forma como as canções são cantadas e escritas, assim como a pronúncia das
palavras, remetem às representações do dialeto caipira, possibilitando afirmar com Amaral
(1981) que é típico do homem do campo não utilizar artigo, usar substantivos sem plural,
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eliminar o “r” do particípio, além de palavras inteiramente novas, construídas no interior de


suas representações. Estas peculiaridades e a maneira de falar apontadas nas três canções
constituem elementos comuns à música caipira da década em questão, evidenciando
características estilísticas contextuais (do gênero), além de apontar para características
individuais da música sertaneja mais atual, que cultiva outros temas e pronúncia.

Resultados alcançados
A letra da música caipira da década de 1940, música essa tomada como matriz
cultural carregada de significados, imbricada com uma polifonia de vozes estruturada na
transversalidade de culturas e espaços presentes em seu bojo, que marca um dos primeiros
momentos de sua atualização em termos temporais, teve condições de continuar evidenciando
as representações sociais do homem do campo. Representações partilhadas nas práticas e
obras musicais deste caipira, entendidas como um campo forjador de processos identitários.
Assim, as canções selecionadas confirmaram a hipótese de que a letra da música caipira desse
período foi capaz de evidenciar uma maneira de ser e de estar no mundo caipira, suas
representações. Essas representações, mesmo que entrecruzadas com as representações
ligadas a outras dimensões temporais e culturais, como aquelas inerentes ao tempo e espaço
que incrementaram a relação com a cidade, com a mídia, com gravadoras e produtores
culturais, ajudaram a constituir de forma peculiar a polifonia de vozes presente na atualização
dessa matriz cultural na década de 1940, ajudaram a reafirmara sua condição de parte
integrante da articulação simbólica que instituiu essa trama cultural.

Referências
AMARAL, Amadeu. O Dialeto Caipira: gramática e vocabulário. 4 ed. São Paulo: HUCITEC, 1981.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da comunicação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CALDAS, Waldenyr. O Que é Música Sertaneja. São Paulo: Brasilliense, 1999.
CATELAN, Álvaro; COUTO, Ladislau. De Repente, a Viola: os grande temas da música caipira.
Goiânia: Kelps, UCG, 2005.
________________. Mundo Caipira: história e lendas da música caipira no Brasil. Goiânia: Kelps,
UCG, 2005.
CHARTIER, Roger. A História Cultural Entre Práticas e Representações Sociais. R.J.: Bertrand,
1990.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In SILVA, Tomás Tadeu (org.) Identidade e Diferença.
Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed. 34, 1999.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2008.
SOBOLL, Renata Stephanes. Arranjos de Música Regional do Sertão Caipira e sua Inserção no
Repertório de Coros Amadores. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás, 2007.
WEIZMANN, Cláudio. Educação Musical: Aprendendo com o Trabalho Social de uma Orquestra de
Violões; orientador: Profª. Drª. Maria da Graça Nicoletti Mizukami, São Paulo, SP: Universidade
Presbiteriana Mackienzie, 2008.

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