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A banda de música no Brasil: um ponto convergente de formação e prática

Jailson Raulino
Universidade Federal de Pernambuco
j.raulino@hotmail.com

Resumo: Após o levantamento de uma série de frevos para clarineta solo, observamos a
necessidade de direcionar uma investigação sob uma perspectiva histórica, no intuito de
identificar e somar elementos contributivos para a formação e prática do clarinetista. Neste
caráter dialogal de observação, encontramos a banda de música como um vetor de
comunicação entre a sociedade, a cultura e consequentemente, com os componentes
identitários decorrentes. Fizemos algumas considerações sobre elementos que influenciaram o
surgimento de um repertório para clarineta a partir deste grupo instrumental, com ênfase na
contribuição para a performance e pedagogia do instrumento. Apontamos para o
aproveitamento do material supracitado, de forma a ser considerado mais ampla e
profundamente o contexto social na formação do instrumentista. Procuramos enfim, abordar o
frevo como produto musical da banda de música. A banda foi vista como agente cultural e/ou
como fonte geradora de novos gêneros e formações instrumentais no âmbito do
desenvolvimento da cultura pernambucana. Coube-nos enfim, uma incursão sobre a história
desse agrupamento musical, para uma melhor visibilidade de sua importância nesse contexto.
Palavras-chave: Clarineta, banda de Música, formação Musical.

Introdução
Focamos nossa investigação na possibilidade de encontrar um modelo teórico capaz
de analisar, compreender e possivelmente definir elementos que viessem contribuir no campo
da execução musical, ensino e prática da clarineta. Esta abordagem permitiu-nos apreender
melhor a dinâmica das transformações das práticas musicais em si e a relação dos músicos
com a sociedade e suas mutações. A perspectiva com o entrelaçamento entre a prática e os
dados teóricos foi o de tornar ocorrências simples em feitos cientificamente expressivos,
numa perspectiva de análise cultural, valendo-se de conceitos já desenvolvidos e utilizados
anteriormente.
Recorremos a um modelo de análise sob uma perspectiva tridimensional. Tendência
verificada nos últimos anos em algumas propostas teóricas, por exemplo, na concepção de
Veit Erlmann (1998). Numa análise de um contexto social de caráter polissêmico, ele propõe
que este seja interpretado com base em três aspectos: a prática performativa, a prática social e
a prática histórica (ERLMANN, 1998, p. 18). Também Thomas Turino, propõe em 1999, um
modelo teórico com base na teoria semiótica de Charles Peirce, no qual relaciona três
componentes: música, emoções e identidade (TURINO, 1999, p. 221). A Fenomenologia é
considerada a ciência que permeia a semiótica de Peirce, e deve ser entendida nesse contexto.

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Para Peirce, a Fenomenologia é a descrição e análise das experiências do homem, em todos os
momentos da vida. Nesse sentido, o fenômeno é visto como tudo aquilo que é percebido pelo
homem, seja real ou não.
Em nossa condução investigativa observamos a banda de música numa relação de
reciprocidade entre três vértices, ou seja, numa trilogia de rituais sociais que se relacionam
recebendo e perpassando influências. Esta proposta parece-me adequada para a análise, em
particular no quadro da cultura pernambucana. Tem-se encontrado a banda, como uma
constante e elemento motriz, em diversos aspectos de cada vértice da triangulação explicitada
no diagrama a seguir.

FIGURA 1 – Diagrama que descreve a


proposta de análise do intercâmbio de
influências entre a banda e os respectivos
rituais nacionais.

Enquadramento Teórico
No modelo proposto, observamos uma reciprocidade do elemento central com os
respectivos segmentos de ritualização no contexto social pernambucano, respaldado pelos
estudos dos rituais nacionais na sociologia de Roberto da Matta (MATTA, 1983, p. 36), ou
seja, os rituais profanos, cívicos, religiosos e suas respectivas representações.
Acreditamos que em cada vértice (dimensão) deste diagrama encontram-se fatores
que interagem entre si e, que foram determinantes na construção de uma identidade musical.
Numa aplicabilidade contextual, observa-se que a banda de música é uma constante,
mais objetivamente, no contexto cultural da cidade do Recife. Através da banda, a música se
faz representada na história dos três segmentos culturais ritualísticos.

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Na concepção de Da Matta, as comemorações do Dia da Pátria (ritual cívico), a
Semana Santa (ritual religioso) e o Carnaval (ritual profano), representam três semanas
festivas que constituem um “triângulo ritual brasileiro”, eventos festivos estes, vinculados
respectivamente a um grupo ou categoria social de repercussão nacional (o Estado, a Igreja e
o povo). “[...] o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais
profundas, que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais «eternos»”
(MATTA, 1983, p. 52), é, portanto, a partir dessa tomada de consciência individual que dados
infra-estruturais podem ser, ou são, transformados em fatos sociais coletivos. Efetivando
assim a dramatização (performance), num instrumento capaz de individualizar a coletividade,
aferindo-lhe identidade, isto é, a ponto de tomá-lo como símbolo ou ícone cultural. Neste
conceito está a idéia de espiral ascendente: do particular para o todo e do todo para o
particular.
Pormenorizando, observamos que no ritual cívico, o tempo do Dia da Pátria é
específico e definido, ressaltando o rompimento com o Período Colonial e o início de uma
independência, uma manifestação em caráter de resistência a partir da política. Em
contrapartida, o tempo do Carnaval (ritual profano) se situa numa escala cronológica cíclica,
que independe de datas fixas, tendo por isso, um sentido universalista, lúdico e transcendente,
contrapõe-se ao anterior. As festas religiosas são de caráter conciliatório, por sua vez, seu
foco é simultaneamente os valores locais e universais, permite conciliar o povo com o estado
numa motivação em caráter metafísico. Faz convergir num só objetivo o povo e as
autoridades, os santos e os pecadores, os ricos e os pobres, sob a égide da fé.
Na tríade da ilustração apresentada, encontramos como componentes musicais
comuns aos episódios, a banda de música e, per si , a marcha quer de procissão, militar ou
carnavalesca, passando assim às respectivas adequações de caráter. Como consequência, a
marcha militar é marcada pela restringência gestual, a carnavalesca difere pela liberalidade e
incontinência gestual (a coreografia do frevo), enquanto a religiosa exprime melancolia,
atitude de contristação e reverência. Ou seja, a marcha mantém-se comum aos episódios, no
entanto, acentua-lhes a diferença e, em si, a banda se mantém como instrumento veiculador
híbrido neste fenômeno.
Face à nova perspectiva de desenvolvimento, portanto, com a independência, o
Brasil procurou coibir toda manifestação cultural vinculada ao passado de colônia portuguesa,
buscando como modelo de sociedade, nações dentro dos altos padrões de civilização e de
modernidade. Dirigindo-se a uma diversidade de costumes e práticas, em nossa análise,

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musicais. Conseqüentemente, sendo um legado de Portugal, acentuou-se o declínio das
bandas de música nesta nova fase política e social brasileira.
Segundo Ruy Duarte, “Cada uma das fases mais distintas e decisivas da história do
Brasil ficou marcada por um desenvolvimento da música brasileira em paralelo. Colônia,
Império e República, estão na pauta musical.” (DUARTE, 1968, p. 107).
Dentro da funcionalidade atribuida à banda de música, segundo Tinhorão (1998)
inclui-se procissões, desfiles cívicos e retretas em festas populares. A Banda de música impôs
e expôs caracteres implícitos e explícitos nas múltiplas intervenções, ou seja, apresentara-se
como vetor de comunicação nas relações sociais e musicais supracitadas.

A banda de música no Brasil


Há de se considerar na história da banda de música no Brasil um desenvolvimento
processual. Duas vertentes são responsáveis pela consolidação deste fenômeno musical. Uma
por via religiosa e a outra por via militar.
A primeira, a partir de pequenos grupos de intrumentistas, denominados de “terços”.
Conforme o musicólogo Curt Lange em Documentação Musical Pernambucana (LANGE,
1979, p. 63), eles atuavam no Brasil a serviço da igreja já no séc. XVIII, assim denominados,
possivelmente por serem constituídos de instrumentos de sopro, cordas e percussão. O
musicólogo Pe. Jaime Diníz (DINIZ, 1971, p. 28) estudando a vida musical em Pernambuco
no século XVIII, relata sobre a existência de conjuntos instrumentais dos charamelleyros,
assíduos nas Festividades da Senhora do Rosário. As charamelas constituíam especialidade
dos negros, escravos ou não, muito comum no nordeste brasileiro.
O termo choromelleyro (ou charamelleyro) se estendia a qualquer instrumentista de
sopro. Segundo Ary Vasconcelos (apud DINÍZ, 1971, p. 29) “para o povo, naturalmente,
qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre os choromeleiros”. Régis Duprat
(DUPRAT, 1965, p. 98) comenta sobre a música durante o período colonial na Bahía: “[...]
não falamos do solfistas negro ou mulato mantido nas bandas ou empregado nas serenatas
pelos aristocratas [...]” e ainda, Vicente Salles (SALLES, 1969, p. 25), estudioso da vida
musical no Pará durante o período colonial, traz este testemunho: “Havia escravos
charameleiros que com seus instrumentos musicais, alegravam as festas de caráter religioso.”
Já como agrupamento militar, o primeiro registro de fanfarras em Pernambuco é
assinalado quando por ocasião da despedida do Conde João Maurício de Nassau, em 11 de
maio de 1644, através da narrativa de Pieter Marinus Netscher:

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As populações dos lugares por onde ia passando formavam alas para dizer-
lhe adeus. Essas aclamações eram acompanhadas pelas bandas de música
que tocavam a ária nacional [hino nacional do Reino dos Países Baixos]
Wilhemus van Nassauven e de salvas de canhões a lhe prestarem as últimas
honras militares. (apud SETTE, 1942, p. 34)

Ainda como pequenos conjuntos de instrumentos de sopro e percussão, determinados


grupamentos militares mantiveram, em Pernambuco, atividades de bandas durante toda
segunda metade do séc XVIII. “Ao tempo do governo de D. Tomás José de Melo foram
criadas bandas musicais nos regimentos do Recife e Olinda, bem como no terço auxiliar de
Goiana (1789), mantidas pela respectiva oficialidade.” (DANTAS, 1998, p.12).
Também como referência militar, conforme Carlos Souza (SOUZA, 2003, p. 139),
“foi no século XVII que se estruturou a organização militar da América Portuguesa, com o
sistema dos terços, copiado do modelo ibérico. Os terços formavam com pompa e teriam,
forçosamente, música”, nesses agrupamentos, trombetas, címbalos, tambores e pífaros, eram
os instrumentos musicais que utilizavam, escreve André Corvisier em «Musique Militaire»,
verbete de seu Dictionnaire d’Art et d’Histoire Militaires. Entretanto, segundo Jeanne de
Castro:

“as bandas militares no Brasil começaram por decreto em 20 de agosto de


1802, do então príncipe regente D. João, que determinara a organização de
uma Banda de Música Instrumental, em cada Regimento de Infantaria, paga
pelo Erário Régio, em substituição à confusa formação de músicos tocadores
de charamelas, caixas e trombetas vindos dos primeiros séculos da
colonização, porém, a existência das bandas permaneceu de forma precária”.
(CASTRO, 1969)

Foi quando, a partir de 07 de março de 1808 desembarcou no Rio de Janeiro D. João


VI, vindo de Portugal (com passagem por Salvador - BA) com a Família Real, entre outros, a
Charanga da Brigada Real de Portugal, “[…] com dezesseis músicos – contando com flauta,
clarineta, fagote, trompa, trompete, trombone e percussão – que serviu de modelo para as
muitas bandas que viriam a ser fundadas no Brasil” (apud DEBRET, 1989, v. 2, p. 617).
Porém, é contestável a presença dos referidos instrumentos nesta corporação musical. Pois,
segundo Alberto Cutileiro (CUTILEIRO, 1981, p. 07), “Antes de a Corte partir para o Rio de
Janeiro era regente da Charanga da Brigada Real de Marinha o italiano Pascoal Corvalini”
(grifo nosso) e que “a partir de 1808, a sua música marcial, [...] o então príncipe regente D.
João muito protegeu e desenvolveu no Brasil” (grifo nosso). Quando, portanto,

“pelo regulamento de 29 de maio de 1884 sai enfim a determinação


ministerial para a charanga em Portugal. Esta sofre várias alterações por

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sucessivos regulamentos que alteram a sua constituição, até que em 1889 é
admitido como chefe de música o notável maestro António Maria Chéu, que
iria enobrecer a Banda de Marinheiros da Armada Real, introduzindo nela
instrumentos de palhetas pelo que a partir de então se passou a denominar
por Banda!”. (ibidem, p. 10)

É conjecturável que outrora era constituída apenas por instrumentos de metais e


percussão.
Sociedades recreativas ou artísticas com existência jurídica, criadas para manter as
bandas de música civís no Brasil, possivelmente seja um legado português, onde existiram já
na primeira metade do século XIX (por exemplo, a Banda Amizade – Aveiro, segundo
elementos de arquivo e testemunhos pessoais, sua data de fundação é de 1834), muitos desses
conjuntos, sem fins lucrativos, são constituídos por profissionais de setores diversos,
conforme observado em trabalho de campo realizado na cidade de Aveiro - Portugal.
A maioria dessas sociedades ou grêmios literários que proliferaram no Brasil do
século XIX, tinha por objetivo comum promover o progresso, fazendo aparecer célebres
propagadores das letras, artes e ciências. Tendo por certo que, dentro destes princípios,
estariam estimulando os fundamentos para o desenvolvimento social e cultural. De fato,
sociedades recreativas privadas, ou clubes, foram as mais importantes organizações de
produção musical no século XIX, principalmente no Rio de Janeiro, menciona Carlos
Eduardo em Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense (SOUZA, 2003, p. 150). Sendo assim, a banda, considerada
um “celeiro”, isto é, um centro de formação e capacitação “não-formal” de instrumentistas de
sopro.
Eram nas bandas, quer sejam militares ou civís1 , onde grande número de músicos
encontrava a oportunidade para desenvolver suas habilidades. E isso teve importantes
consequências:
x Organizados em um tipo de formação instrumental próxima das orquestras
sinfônicas, ao executarem música nos coretos e para as festas cívicas,
contribuíram para divulgar musicas eruditas junto à população (TINHORÃO,
1998, p. 180);
x Serviram de suporte para o surgimento de gêneros musicais que refletiam
elementos motívicos e rítmicos singulares com seu repertório próprio. O

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Há de se considerar um grande número de bandas de música vinculadas a igrejas evangélicas. Em Pernambuco,
segundo dados de Leonardo Dantas (1998. p 58-63) cerca de vinte por cento das bandas civis catalogadas, são de
igrejas evangélicas.

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exemplo mais evidente dessa intermediação sócio-cultural das bandas foi seu
contributo na criação do frevo em Pernambuco. “O frevo como música tem
sua orígem no repertório das bandas militares em atividade na segunda metade
do séc. XIX no Recife” (DANTAS, 1998. p. 45). Segundo J. R. Tinhorão; “o
frevo de rua Pernambucano figura, ao lado do maxixe Carioca, entre as mais
originais criações da mistura de brancos, negros e mestiços do povo mais
humilde e baixa classe média que compunham os quadros de músicos das
bandas militares” (TINHORÃO, 1991. p. 38), Ainda cita o mesmo autor que:
“No que se refere à música popular brasileira, a maior contribuição das bandas
militares foi, inegavelmente, as criações do maxixe no Rio de Janeiro e do
frevo em Pernambuco.” (ibdem, 1998, p. 180);
x Tiveram como um dos objetivos promoverem o desenvolvimento cultural,
contribuindo para o progresso, estimulando ainda, os estudos e a prática de
bons princípios (AZEVEDO. 1884, p. 265);
x Na oportunidade de tocar ao lado de profissionais e de aparecerem diante de
uma “educada e seleta” platéia, era o suficiente para torná-las um lugar por
excelência de inserção social e prática da sociabilidade, numa forma de
entretenimento, sob a perspectiva de adquirir status (SOUZA. 2003, p. 150).
Através da pesquisa histórica e bibliográfica, tornou-se possível identificar a
participação efetiva da clarineta em algumas outras manifestações populares, na vasta
extensão territorial brasileira, como instrumento constitutivo das bandas. Conforme Jacob
Cantão (2002, p. 77), pode-se encontrar atuação efetiva de clarinetistas na dança do
Carimbó 2 , em seu estudo sobre “A presença da clarineta na dança do Carimbó”, na cidade de
Marapanim no estado do Pará, onde cita: “A atuação da clarineta tem três características
principais: 1) é um instrumento solista, responsável pela introdução, e pela parte intermediária
instrumental; 2) serve de apoio para o canto e, 3) realiza em alguns casos, durante o canto,
intervenções melódicas.”

2
Conteúdo de acordo (sintetizado) com o sítio www.pinducacarimbo.com.br/hist_carimbo.html, acessado em
março de 2007:
O Carimbó é um ritmo de origem negra com influências portuguesa, pertencente ao folclore amazônico. Surgida
em torno de Belém, capital do estado do Pará, na zona do salgado (Marapanim, Curuçá, Algodoal e Ilha de
Marajó).
É uma das mais populares expressões da cultura paraense. A dança tem origem na cultura indígena (Tupinambá),
sendo o nome tirado da palavra de origem Tupi-Guarani “Curimbó”, de curi (pau) e m'bó (ôco ou escavado).
Na forma tradicional, é acompanhada por tambores feitos com troncos de árvores afinados a fogo: Esses
tambores têm origem na África e também são chamados de carimbó ou curimbó.

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Segundo Pires (2001, p. 11-13), estudando sobre o choro e sua contribuição no
ensino do instrumento diz que: “a clarineta foi o terceiro instrumento mais popular, no Brasil,
da segunda metade do século XIX, sendo precedido pela flauta e o violão”. Portanto, foi
amplamente utilizada e preferida na interpretação do Choro. Ressaltamos ainda a importância
afim entre o choro e a clarineta:

A riqueza de seu ritmo, andamento, a linha melódica e o caráter, se afinam


de maneira íntima com o extraordinário poder de nuanças e a extensa
possibilidade de recursos sonoros, oferecidos pelo instrumento. Uma grande
afinidade, do ponto de vista técnico e sonoro foi estabelecida entre a
clarineta e o choro, vários componentes estilísticos coadunam-se com a
versatilidade peculiar do instrumento, encontrando assim o clarinetista, um
ambiente propício para o desenvolvimento de novas matizes sonoras,
nuanças cômicas e, enfim, efeitos surpreendentes. Portanto, assim como o
choro assume papel importante, para o desenvolvimento técnico, sua prática
é de fundamental importância, isto porque, inerente a execução de obras
desse gênero, encontram-se exercícios, oferecidos por um estilo, que retrata
elementos típicos da cultura brasileira com implicação direta para o
desenvolvimento da performance. (RAULINO, 2000. p. 37)

Cita Sandroni, em sua obra Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de


Janeiro (1917-1933), que: “desde o início da gravação comercial no Brasil, em 1902 até
1917, o repertório era composto basicamente de modinhas e lundus. O acompanhamento era
feito por violão, e às vezes também cavaquinho com apoio de flauta ou clarineta para a
introdução ou solos” (SANDRONI, 2001, p. 188). Ainda no Rio de Janeiro, na época do
marco inicial da gravação comercial de sambas, foi lançada a composição de Donga “Pelo
Telefone”, em janeiro de 1917 pela Casa Édison. Numa análise da referida gravação,
Sandroni acrescenta:

“Pelo telefone” é cantado por Baiano (Manoel Pedro dos Santos, 1887-1944)
e, nas partes II e IV, também por um coro misto. O acompanhamento é
assegurado por violão, cavaquinho e clarineta. A fórmula de
acompanhamento empregada pelo violão é uma versão da “síncope
característica”. A melodia da introdução, tocada pela clarineta, é construída
sobre o mesmo desenho rítmico [...] (SANDRONI, p. 191)

Enfim, desenvolvemos uma análise procurando evidenciar os processos sociais que


se relacionaram com a presença da clarineta no Recife, mais especificamente na cena musical
predominante, o frevo. Encontramos, portanto, a banda de música como elemento
interseccional na origem do frevo e no desenvolvimento da clarineta em Pernambuco.

Conclusão

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Com este trabalho procurei refletir sobre a importância de uma abordagem
multidisciplinar. Procurei expor o modo como o compromisso entre as minhas experiências
enquanto instrumentista e a minha incursão na pesquisa de caráter histórico possibilitaram
uma melhor compreensão dos dois universos de estudo.
Consideramos ser importante uma reavaliação da prática pedagógica aplicada ao
ensino da clarineta no Brasil, na busca por uma pedagogia que considere mais ampla e
profundamente o contexto social. Dentro do universo estudado, observamos que a banda de
música fora um ambiente determinante e propício à formação e prática de clarinetistas.
O modelo de banda estabelecido no Brasil não ficou estático, antes proliferou,
reproduziu-se em novos modelos de agrupamentos instrumentais, ampliando um espaço para
a criação e produção artística musical urbana e rural, alargando o espaço de visibilidade social
e profissional. Concomitantemente, constituiu-se decisivamente para o surgimento de novos
padrões rítmicos e gêneros musicais que, por fim, se fixaram como identidade e patrimônio
imaterial brasileiro.
Partimos do princípio segundo o qual a banda de música apresentara-se como um
elemento significativo no ensino “não-formal” do clarinetista. Acreditamos que o referido
conjunto instrumental representa ser um fator importante na formação do instrumentista,
marcante não apenas no ensino do instrumento, mas também no processo de desenvolvimento
social e cultural. E por sua vez, um ponto convergente de formação e prática.

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