SEGUINDO A CANÇÃO
Engajamento político e indústria cultural na
MPB (1959-1969)
Marcos Napolitano
Versão digital revista pelo autor
Esta obra foi publicada, originalmente, pela Editora Annablume, com apoio da
FAPESP, em 2001
São Paulo
2010
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Agradecimentos
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Hoje, quero incluir meu filho nesta dedicatória. Ao Mateus, cheio de vida, som e fúria.
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SUMÁRIO:
Considerações finais.........................................................................................266
Bibliografia....................................................................................................... 273
Fontes............................................................................................................... 278
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INTRODUÇÃO
Mas o dilema colocado por Sartre pode ter outra leitura: justamente devido ao
sentido “enigmático e polissêmico” dos signos musicais é que eles se abrem para um
leque de usos culturaus e interpretações políticas, marcados pela vontade de
utilização da linguagem musical na transmissão de idéias, ou melhor, de ideologias3.
Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música
Popular Brasileira, aglutinando uma série de tendências e estilos musicais que tinham
1Na definição de engajamento, tomamos por base a configuração clássica que a palavra tomou por volta
do final do século XIX, sobretudo no campo literário: a atuação do intelectual numa esfera pública, em
defesa das causas humanitárias, libertárias e de interesse coletivo, utilizando-se basicamente da
formulação e afirmação de idéias críticas e coerentes com aqueles princípios, delimitando seu espaço
num movimento pendular entre os ideais e as ideologias vigentes. Por outro lado, nosso trabalho procura
problematizar esta definição clássica, na medida em que a indústria cultural, outra categoria básica de
análise, tende a hegemonizar a esfera pública nas sociedades de capitalismo modernizado,
transformando idéias em bens culturais mercantilizados.
2J.P.Sartre. Que é literatura?, p.11
3A.Contier. “Música no Brasil: história e interdisciplinaridade” IN: História em debate (Atas do XVI
Simpósio da Assoc. Nac. História -ANPUH), p. 151. Para um aprofundamento das relações entre música e
ideologia ver do mesmo autor: Brasil Novo: música nação e modernidade (Tese de Livre Docência) e
Música e Ideologia no Brasil. Nestes trabalhos Arnaldo Contier discute tanto as estratégias para “dominar”
a polissemia dos sons, imprimindo-lhes um sentido ideológico, como as armadilhas históricas deste
processo.
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4O leitor perceberá que vamos manter os nomes dos “movimentos” musicais dos anos 60, visando
facilitar a leitura desta tese. Enfatizamos, porém, que a análise como um todo, está baseada num esforço
de problematização destas nomenclaturas, evitando reiterar, de maneira acrítica, a carga semântica que
elas trazem consigo.
5Entendo “cultura política” como o conjunto de categorias e representações simbólicas que formam um
campo contíguo, articulando normas, valores e comportamentos, que formam um substrato da vida
política institucional e organizam a arena dos conflitos. Em certas circunstâncias, matrizes simbólicas de
uma cultura política podem migrar da esquerda para a direita e vice-versa (por exemplo, o nacionalismo).
Ver N.Bobbio (org). Dicionário de Política.
6 A.Gramsci. Literatura e Vida Nacional. p.73
7 Conforme documento do PCB. Declaração sobre a política do PCB, março 1958. Nele, o proletariado é
visto como uma classe que deve auxiliar a fase de afirmação da nação frente ao imperialismo, aliando-se
taticamente à setores progressistas da burguesia. O golpe de 1964 representou o fracasso dessa política,
pois, como é sabido, a "fração progressista da burguesia nacional", revelou-se um mito político, apoiando
os militares. Ver R.Chilcote. O partido comunista brasileiro ; E.Caroni. O PCB. ; L.M.Rodrigues. "O PCB:
os dirigentes e a organização" IN. B.Fausto (org). História Geral da Civilização Brasileira. Vol.10.
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8A definição inspiradora desta categoria, que perpassará a pesquisa como um todo, foi emprestada de
Pierre Bourdieu. O sociólogo francês define “instituição” como: “Acumulação nas coisas [no caso, as
obras] e nos corpos [no caso, os artistas e intelectuais] de um conjunto de conquistas históricas que
trazem as marcas de suas condições de produção e tendem a gerar as condições de sua reprodução”
(P.Bourdieu. O Poder Simbólico, p.100). Não tomamos esta categoria como “camisa-de-força” da análise,
mas procuramos colocá-la a serviço de uma reflexão historiográfica que tenta entender, precisamente, o
processo central destas “conquistas históricas”: a gênese de uma MPB renovada nos anos 60. Este
processo se deu em conflito e negociação com outras “instituições” de diversas naturezas, (como a
indústria fonográfica e televisiva, o partido comunista, a imprensa e o campo intelectual como um todo)
até que a MPB fosse reconhecida a partir de um núcleo próprio de expressão sócio-cultural.
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9Sobre o conceito de “cultura de consumo” ver o livro de Anna C.Figueiredo. Liberdade é uma calça velha
, azul e desbotada. Publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil. Neste trabalho a
autora define o consumo como articulador de uma nova relação entre o público e o privado, baseada na
aquisição de bens que se transmutam em signos e que redefinem categorias sócio-políticas, tais como
“liberdade”, “lazer”, “democracia”, “modernização”, etc..
10Idem, p.29
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11T.Adorno et alli. “A indústria cultural: o iluminismo como mistificação das massas”. IN: Dialética do
Esclarecimento. Ver também: T. Adorno. "O fetichismo na música e a regressão da audição". Os
pensadores (Adorno)
12Além do texto clássico citado na nota, ver: T.Adorno. “Sobre a música popular”. IN: G.Cohn (org).
Adorno., p.115-146
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CAPÍTULO 1:
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15N.L.Barros. “Bossa Nova: colônia do jazz”, Movimento, nº11, maio 1963, 13-15
16Apud J.R. Tinhorão. O samba agora vai. p.104
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17E.Paiano. Do Berimbau ao som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60.
18P.Bourdieu. O poder simbólico. p.59-159
19 M.Napolitano."A invenção da música popular brasileira: um campo de reflexão para a História Social".
Latin American Music Review. Univ.Texas Press, 19/01, 1998
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8 Nos anos 50, o panorama musical sofria uma série de mutações estruturais.
Por um lado, no nível do mercado, a crescente importância da televisão e a
consolidação do Long Playing de rotação 33-1/3, como suporte principal da canção,
alterou as bases criativas e os parâmetros expressivos da música popular brasileira,
que se adequava às novas demandas e possibilidade técnicas. Estes novos veículos
expressavam mais do que a ampliação do público/consumidor musical. Houve, em
verdade, uma mudança estrutural na sua composição.
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nacional-popular como elemento central da cultura política que orientava uma boa
parte da elite intelectual e política com a qual se identificavam os músicos e artistas
engajados que, no fundo, eram parte desta elite. Entre um e outro polo, nasceu e se
consolidou um novo sentido de Música Popular Brasileira. A trajetória que configurou
esta nova identidade e reestruturou o sistema de produção e consumo de canções no
Brasil foi marcada pelas duas esferas examinadas ao longo deste trabalho:
engajamento político e indústria cultural. Se a Bossa Nova informou o projeto de
canção engajada que nasceria em seu meio musical, o Tropicalismo explicitava o lugar
da canção dentro do novo sistema de consumo da cultura.
26 Sobre João Gilberto, ver o interessante livro de Walter Garcia. Bim Bom: a contradição sem conflitos
de João Glberto. Neste livro, Garcia analisa as diversas tradições sintetizadas pela "batida" do violão: o
samba, o jazz e o bolero (samba-canção). Portanto, a questão da ruptura é colocada sob um outro
prisma, mais complexo.
27 Sobre a relação entre tradição e ruptura na BN ver L.Mammi. "João Gilberto e o projeto utópico da
Bossa Nova". Novos Estudos Cebrap, 34, nov.1992
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28R.Castro. Op.cit, e J.Medaglia. “Balanço da Bossa Nova” IN: A.Campos (org). O Balanço da Bossa e
outras bossas. Por caminhos diferentes, os dois autores desqualificam o Bolero, visto como sinônimo de
subdesenvolvimento cultural e social
29 W.Garcia. Op.cit. .
30Composição de Evaldo Gouveia/Jair Amorim. Dick Farney (meus momentos), EMI, 830700-2, 1994
(original 1958).
31Composição de A.C.Jobim/V.Moraes. A popularidade de Agostinho dos Santos, Polygram, 523.458-2,
1994 (original 1958).
32Os exemplos musicais em questão são: Há Um Deus (Lupicínio Rodrigues). Dalva de Oliveira. Dalva de
Oliveira: saudade. Revivendo, RVCD 050, s/d (original 1957) e Ouça (Maysa). Maysa. Maysa por ela
mesma, RGE, 1994
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uma iconização dos motes poéticos que passou a dividir com a narrativa passional ou
social a forma de organizar a estrutura poética das canções33.
17 Além dos aspectos propriamente culturais e estéticos, a Bossa Nova abrirá,
paulatinamente, um novo mercado para o músico, sobretudo para os compositores34.
Os compositores sairão do quase-anonimato que os colocava na retaguarda dos
grandes intérpretes, para a condição de estrelas dos meios de comunicação. Este
processo, estimulado inicialmente pela Bossa Nova, se consolidou como uma
tendência da MPB, durante os festivais da canção, ao longo dos quais o compositor e
o performer muitas vezes se fundiram na mesma pessoa. É também com a BN que o
compositor começa a ganhar maior autonomia em relação ao seu trabalho de criação,
na medida em que o mercado se reestruturava e buscava suprir as demandas por
novidades musicais. Portanto, o momento inicial da Bossa Nova foi o prenúncio dos
elementos da revolução musical dos anos 60: predomínio do Long Playing, como
veiculo fonográfico (e conceitual); autonomia do compositor, acumulando muitas vezes
a condição de intérprete; consolidação de uma faixa de ouvintes jovens, de classe
média intelectualizada; procedimento reflexivo, de não só cantar a canção mas
assumir a canção como veículo de reflexão sobre o próprio ofício de cancionista (este
ponto não é inaugurado pela BN, mas foi potencializado por ela).
18 Os espaços iniciais do exercício de audição e interpretação que mais tarde iria
formar a Bossa Nova, podem ser visto em dois planos: os círculos privados ou
restritos (como as casas dos músicos ou os fã-clubes, como o Farney-Sinatra Fã
Clube) e a boêmia, marcada pelas boates da Zona Sul carioca. Ambos espaços
podem ser caracterizados como espaços íntimos ou intimistas, cuja perspectiva
marcou a estilo dos bossanovistas. David Treece qualifica a fase de afirmação da BN
como marcada pela “intimidade doméstica”, confirmada pelo lugar social do
movimento: apartamentos, boates e grêmios estudantis. A partir destes espaços, o
autor destaca o surgimento de um ethos da Bossa Nova, que arrastaria consigo toda a
configuração posterior da música popular brasileira: das massas anônimas de
espectadores passionais e entregues ao carnaval nacional, surge uma comunidade
mais autônoma e autêntica, a “inteligência jovem, de classe média urbana” e
cosmopolita35. Não por coincidência, o engajamento musical emergirá deste meio
social, que ganhara importância sociológica com as mudanças sócio-econômicas
atravessadas pelo país.
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A “performance de apartamento” será mal vista durante os festivais televisivos,
na medida em que a própria performance se profissionalizava, voltada para as
multidões agitadas dos auditórios e para os telespectadores distantes. Neste sentido,
explica-se porque os músicos diretamente ligados à Bossa Nova inicial serão figuras
apagadas ou secundárias no contexto dos festivais, à exceção de Nara Leão, que
havia se afastado do movimento. A presença e influência bossanovista era indireta, na
medida em que os debates em torno dos festivais trabalhavam com questões surgidas
durante a eclosão e afirmação da BN.
Mas, em meio às performances de apartamento, outros espaços de experiência
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musical iam surgindo. Por exemplo, os campi universitários. O primeiro grande show
universitário, já em meio ao impacto do LP de João Gilberto entre os músicos e
críticos, foi o 1ºFestival de Samba Session realizado na Faculdade de Arquitetura do
Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 1959. A presença de cerca de duas mil pessoas
demonstrou as potencialidades daquele tipo de Samba junto à população jovem
estudantil. Entre os artistas, somente Alaíde Costa e Sylvinha Telles, eram
profissionais. Os “padrinhos” ilustres convidados- Vinicius de Moraes, Dolores Duran,
Billy Blanco e Tom Jobim- saudaram os músicos e o público, mas não cantaram.
Apresentado por Norma Bengell e produzido por Ronaldo Boscoli, o espetáculo
chamou a atenção da imprensa e dos executivos da indústria fonográfica. Conforme
a crônica de Ruy Castro: “Na platéia do 1ºfestival de Samba Session dois homens
examinavam o que se passava no anfiteatro com olhos e ouvidos bem diferentes:
André Midani e Aloysio de Oliveira. O primeiro enxergava nos artistas e na platéia a
possibilidade de um novo mercado, a ser explorado imediatamente. O segundo via um
mercado apenas na platéia, a ser suprido pelas genialidades de Tom, Vinicius e,
talvez, Carlinhos Lyra, como compositores - mas não abria mão que seus intérpretes
fossem pessoas experientes, como Sylvinha Telles, Alayde Costa, Lucio Alves e,
agora, João Gilberto. Para Aloysio, os outros garotos eram verdes demais, como
músicos ou cantores, a, além disso, nenhum deles ‘tinha voz’” 36.
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23 Ainda em 1960, quando a Bossa Nova era mais comentada do que ouvida, dois
compositores importantes, arautos da futura “Bossa Nova nacionalista”, faziam sua
estréia em fonograma: Carlos Lyra e Sergio Ricardo.
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novidade, podendo ser notado em canções anteriores à BN, interpretadas por Dolores
Duran, Dick Farney ou mesmo Elizete Cardoso, rotuladas pela historiografia como
Samba-canção. O repertório continha músicas de Carlos Lyra, demonstrando o talento
composicional do jovem músico, percebido sobretudo na delicadeza dos contornos
melódicos. A única exceção era a composição de Johnny Alf, Rapaz de Bem, de
1955, muito próxima ao estilo cool jazz , abusando de dissonâncias e efeitos
anticontrastantes. Apesar de ser considerado um dos fundadores da canção engajada,
neste seu primeiro álbum Carlos Lyra trabalhou apenas com temas puramente
românticos, sem nenhuma alusão, ainda que distante, aos temas nacionalistas e
sociais, que marcariam seu álbum de 1963, ou seus trabalhos para a UNE (incluidos
no LP O Povo Canta e no filme Couro de Gato, que serão analisados mais adiante).
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as bases para uma canção “nacionalista e engajada”, mas que incorporava parte das
conquistas estéticas da Bossa Nova. Zelão contava a história de um favelado que
perdia sua casa numa chuva, passando a contar, apenas, com a solidariedade dos
outros habitantes do morro: “Todo morro entendeu quando Zelão chorou / ninguém riu
nem brincou / e era carnaval” . O desenvolvimento melódico de Zelão consistia de três
partes diferentes, era na forma A-B-C-A, pouco usual na canção “popular”, mais ligada
à forma A-B-A. O primeiro tema melódico, que acompanha a primeira estrofe,
musicalmente mais assimilável, acentua os tons melancólicos da canção. O tema C,
mais difícil e indefinido, se sustenta sobre acordes de nona e décima-primeira, que
acentuam o efeito de “dissonância”, considerada a principal característica da Bossa
Nova. Em outras palavras, mesmo trazendo de volta o tema do “morro”, a canção
Zelão trabalha com uma base musical que pode ser considerada “bossanovista” e
dificilmente poderia ser considerada um Samba “quadrado”, seja do ponto de vista
harmônico, seja pela interpretação que lhe deu Sergio Ricardo.
38Aspecto que será explicitado mais tarde, em 1968, por W. Galvão no texto “MMPB: uma análise
ideológica”.IN: Sacos de Gatos...
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37 Para João Gilberto e Tom Jobim, o show marcou a entrada triunfal dos dois no
mercado norte-americano, inicialmente tumultuada, mas que acabou consagrando
estes músicos no exterior, onde desenvolveram boa parte da suas carreiras. Mas este
aspecto também trazia consigo uma situação paradoxal: os dois fundadores da BN
acabaram, em certa medida, entrando para o index dos artistas e intelectuais mais
nacionalistas como exemplo de Bossa Nova "anti-popular" e “entreguista”. Dos “pais
fundadores”, só Vinícius de Moraes conseguiu manter seu prestígio intacto junto aos
nacionalistas de esquerda, sendo um dos arautos da nacionalização da Bossa Nova, a
partir de 1962. Nelson Lins e Barros, compositor e ideólogo da UNE, desqualifica o
“segundo nascimento da Bossa Nova” (como ele chama o show de Nova York) como
uma tentativa de adaptar o gênero ao mercado americano, diluindo-se completamente
nas imitações do jazz40. De qualquer forma, para os artistas mais independentes das
amarras ideológicas, Tom Jobim e João Gilberto, permaneceram como referências de
música popular, ao longo da década. Este foi o caso, por exemplo, tanto de Edu Lobo,
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que sempre declarou sua admiração por Tom Jobim, como de Caetano Veloso, em
boa parte responsável pelo resgate da figura de João Gilberto, como figura central da
MPB.
38 A assimilação da Bossa Nova nos EUA, cujo show do Carnegie Hall foi a
grande vitrine, se desdobrou em duas direções: uma re-elaboração musical por parte
de artistas ligados ao Jazz (diluindo a batida de Samba que resistia na Bossa até
então) e uma padronização de sua célula rítmica básica visando a criação de uma
nova dança de consumo. O próprio Sidney Frey assumiu este objetivo: “A
permanência da BN depende muito da aceitação da dança; ninguém se reunirá
simplesmente para ouvir BN a não ser em concertos. Se não gostarem da dança, a
música por certo morrerá”41.
40
Vinicius de Moraes, que passou a ser identificado com a linha “nacionalista”,
declarou, logo depois da entrada da BN no mercado americano: “Os leões-de-chácara
do samba tradicional vibraram com o suposto revés da BN (...) mas ela continua
triunfando em toda a parte nos EUA e Europa. Esse antagonismo Bossa Nova e Bossa
Velha existe mas não entre todos. Da nossa parte não há nenhum sentimento de
separação (...) João Gilberto sempre cantou bossa antiga . Por outro lado, Ciro
Monteiro adora João Gilberto. Eu gosto muito de Pixinguinha (...) Na BN há duas
linhas principais: a linha brasileira e a linha jazzística. O pessoal da linha brasileira (eu,
Tom, Baden, Carlos Lira, Menescal) está cada vez mais identificado com os temas
tradicionais, pesquisando as fontes brasileiras. O pessoal da linha jazzística são
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26
Sergio Mendes, irmãos Castro Neves, Luis Carlos Vinhas, Trio Tamba. Sergio Ricardo
é um caso a parte. Não obstante, está bem próximo à BN”42.
42Idem
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do samba tradicional perante a classe média (...)- revelaram seu fracasso na hora dos
músicos das duas tendências musicais tocarem juntos (...) os acordes compactos à
base de dissonâncias, do violão Bossa Nova não se casavam com a baixaria do violão
de Cartola, e muito menos com a quase percussão de Nelson Cavaquinho, que
beliscava as cordas numa acentuação rítmica das tônicas absolutamente pessoal” 43.
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44Seu texto-base foi redigido pelo economista Carlos Estevam Martins e apresentado em outubro de
1962. O texto na íntegra foi reproduzido em H.B.Hollanda. Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda e
Desbunde.p 121-144
45 Estamos nos referindo ao Movimento Música Nova, integrado por Willy Corrêa de Oliveira, Rogério
Duprat, Gilberto Mendes que, entre outros, transitavam ou eram militantes do PCB
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55 O caminho oposto foi esboçado por músicos que buscavam uma Bossa Nova
nacionalista ou uma canção engajada, no sentido amplo da palavra. Carlos Lyra,
Sergio Ricardo, Nelson Lins e Barros (que também era compositor), Vinícius de
Moraes e outros, afirmavam a música popular como meio para problematizar a nação
e “elevar” o nível do gosto musical popular, e não como mero veículo de agitação e
propaganda políticas. Na sua perspectiva a ideologia nacionalista era um projeto de
um setor da elite que, no médio prazo, poderia beneficiar a sociedade como um todo e
a “subida ao morro” visava muito mais ampliar o leque expressivo de sua música do
que mimetizar a música popular das classes populares. Essa perspectiva foi mais
determinante até 1964, quando a conjuntura mudou e levou alguns artistas de
esquerda a se aproximar das matrizes populares de cultura como uma reação
ideológica ao fracasso da frente única.
47 Neste segmento citamos: Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão e, mais tarde, Hermínio Bello de
Carvalho (mentor do projeto "Rosas de Ouro", em 1965)
48Depoimento de Carlos Lyra em: J. Barcellos. CPC da UNE: Uma história de paixão e consciência. ,
p.97
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58 O LP O Povo Canta pode ser visto como uma tentativa de constituir uma
música engajada de cunho exortativo e didatizante, que não chegou a constituir num
gênero valorizado no processo de institucionalização da MPB ao longo dos anos 60. O
LP de 8 polegadas trazia cinco faixas: O subdesenvolvido (Carlos Lyra/Francisco de
Assis), João da Silva (Billy Blanco), Canção do Trilhãozinho(Carlos Lyra /Francisco de
Assis) , Grilheiro Vem (Rafael de Carvalho), Zé da Silva(Geny Marcondes/Augusto
Boal).
31
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Este clima de elogio ingênuo ao “povo”, ainda despojado da forma épica que
60
esta categoria assumirá nos dois anos que antecederam a radicalização de 1968,
serviu de base para outras tentativas de partir do paradigma do velho teatro de revista
(alternando paródias políticas, humor ingênuo), mesclado com as intenções
pedagógicas e exortativas da nascente canção nacionalista e engajada. Apesar de
contar com músicos reconhecidos (Carlos Lyra, Billy Blanco) este tipo de canção não
chegou a constituir um filão valorizado pela corrente principal da canção nacionalista e
engajada que desembocará na MPB. Mesmo o espetáculo Opinião, que poderia ser
classificado dentro desta linhagem, acabou se constituindo a partir de um repertório
mais enraizado nos gêneros populares (Samba tradicional, gêneros nordestinos) e, em
alguns casos, tendo um tratamento musical mais próximo à Bossa Nova, onde o
humor e as críticas assumem um tom mais grave e não chegam a hegemonizar o
espetáculo. A revista Pobre Menina Rica (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes),
encenada em 1963 e gravada em fonograma em 1964, tentou dar continuidade a
proposta de “revista-engajada”, mesclada nesta caso com temas românticos e
melodias mais sofisticadas. A carreira individual de Ary Toledo, cantor e humorista,
que checou a flertar com o CPC da UNE e participar de alguns festivais da TV,
também pode ser vista como uma continuidade deste gênero.
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49Nelson Lins e Barros. “Música Popular e suas bossas”. Revista Movimento, 6, outubro 1962, p.26
50Nelson Lins e Barros. “Bossa Nova: colônia do jazz”. Op.cit
51Idem, ib,p.14
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Dois textos, separados por apenas alguns meses, parecem expressar não só o
65
pensamento de um autor específico, ligado à música popular no meio estudantil, mas
uma verdadeira síntese programática, aceita por muitos intelectuais e artistas, como
Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Superado o pessimismo em relação às
possibilidades da BN, marcante no primeiro texto, Lins e Barros acreditava que os
músicos nacionalistas engajados poderiam superar o impasse pelo seu próprio
processo de conscientização que se acreditava em marcha, por volta de 1963, auge
das mobilizações em torno das Reformas de Base. Coerente com a proposta do
Centro Popular de Cultura da UNE, criado oficialmente no final de 1962, Lins e Barros
tentou traduzir os termos do Manifesto da entidade tendo em vista as especifidades da
criação musical popular. Sua argumentação deixa transparecer toda a tensão interna
do debate estético/ideológico da esquerda nacionalista, oscilando entre a pedagogia
dos sentidos (ainda que motivada ideologicamente) e a exortação política (onde não
se colocava o problema da busca de uma excelência estética). Estes dois pólos
marcariam o debate musical ao longo da década, com uma leve predominancia da
primeira forma de encaminhamento. Eis uma tese fundamental deste ensaio: o exame
do material musical qualificado genericamente como "música de protesto" é marcado
muito mais pela pedagogia dos sentidos do que pela pedagogia político-partidária.
Antes de tudo, era preciso configurar a nação e, ao mesmo tempo, senti-la,
poeticamente falando.
67 A equação proposta por Nelson Lins e Barros, pareceu encontrar eco nos
trabalhos que procuravam objetivar, na forma de canções, os termos do impasse,
apontando para soluções estéticas. Mas estas propostas não estavam isentas de
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68 Dois álbuns fonográficos podem ser destacados como sínteses criativas que
procuraram objetivar, na forma de composição, interpretação e seleção de repertório,
as precepções desenvolvidas no debate citado anteriormente: Depois do Carnaval, de
Carlos Lyra (Philips, 1963) e Um senhor de talento de Sergio Ricardo (Elenco, 1963).
A tentativa de estabelecer as bases estéticas e ideológicas de uma Bossa Nova
“nacionalista”, que correspondesse às expectativas da juventude de esquerda que se
engajava no processo de Reformas de Base do governo Jango, encontrou nos dois
álbuns acima citados, sua expressão mais delineada.
69 Carlos Lyra, àquela altura, tentava encontrar uma expressão musical para o
que ele chamava de “Sambalanço”, um rótulo que servia, segundo suas próprias
palavras “para delinear dentro do movimento aquele sentido nacionalista que procura
elevar o nível da música popular dentro de suas fontes”53. Com efeito, as temáticas
das canções dominadas pelo tema do amor romântico no primeiro disco migram para
temas de acento mais social ou ideológico: das 14 faixas, apenas em quatro não
encontramos nenhuma alusão indireta à estes problemas (Gostar ou não gostar, Sem
saida, Promessas de Você e Se é tarde me perdoa). Em canções líricas, como Quem
Quiser encontrar o amor e Mundo à Parte, o tema do “amor” se mescla à crítica ao
individualismo e ao subjetivismo, aludindo indiretamente aos temas identificados com
a Bossa Nova “clássica”. Nas outras faixas - Depois do Carnaval, Influência do Jazz,
Aruanda, Marcha da 4ªfeira de Cinzas e Maria do Maranhão - foram lançadas as
bases para o que mais tarde será chamado de “canção de protesto” brasileira (rótulo
que, como já disse, deve ser melhor examinado). O caso de Marcha de 4ªfeira... foi
exemplar: regravada após o golpe militar por Nara Leão e Elis Regina, esta marcha-
rancho se converteu num paradigma musical de crítica ao regime militar. A frase inicial
(“Acabou nosso carnaval...”) parecia resumir o anti-climax que tomou conta da
esquerda como um todo.
70 Se a postura ideológica ficava bem delineada nos temas e nas letras das
canções, quando analisamos os parâmetros musicais propriamente ditos, o quadro se
complica um pouco. Os arranjos de Luis Eça misturavam quartetos bossa novistas
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(baixo, bateria, piano violão, com toques de flauta), naipes orquestrais compactos
(sobretudo cordas e metais) e percussão com sotaque mais caribenho do que
brasileiro (gênero que nos EUA se chamava Latin Jazz). O efeito instrumental acaba
tendendo para o grandiloquente, com os naipes de cordas utilizando glissandos e os
metais atacando a todo volume em algumas seções ritmicas. As entradas orquestrais
lembram os musicais da Broadway, onde se misturavam elementos do bel-canto com
hot-jazz. A marcação rítmica em algumas faixas, utilizando-se de piano e bongô
(Influência do Jazz, Mundo à parte, Maria do Maranhão), acabavam alterando
sutilmente a célula rítmica do gênero escolhido (Samba, nas duas primeiras e toada,
na segunda), dando-lhes uma coloração caribenha (mambo e Bolero, no caso de
Maria...). Mesmo Aruanda, definida pelo autor como um maracatu, o sotaque
jazzístico/caribenho é marcante.
71 Não se pode dizer que Carlos Lyra era um purista. Mas, de qualquer forma,
havia um discurso de “nacionalização” da Bossa Nova que encontrava seu limite na
própria dinâmica artística - a formação do compositor e dos músicos que o
acompanhavam - e mercadológica. Este último aspecto era calçado pelos interesses
das gravadoras em diluir a Bossa Nova no mercado de Latin Jazz, na medida em que
Cuba já não podia fornecer mais suas músicas para o mercado norte-americano. A
tensão decorrente deste contraste entre as propostas ideológicas e o resultado
musical marcou o início de um processo que vai se tornar mais complexo, na medida
em que o mercado brasileiro de MPB vai se ampliando e as gravadoras começam a
interferir ainda mais na disseminação de fórmulas e comportamentos musicais. A
particularidade da canção engajada/nacionalista brasileira reside neste justamente
neste processo, e traz em si as contradições da nossa modernização: a afirmação
nacional, modernizante e desenvolvimentista, inserida no capitalismo internacional
monopolista. A nostalgia folclorizante e a paranóia da diluição na cultura estrangeira
eram os polos opostos, mas também complementares, deste processo. O LP de
Carlos Lyra acabou sendo uma formulação incipiente destes problemas, contraface do
dilema da esquerda nacionalista. Neste sentido, seu álbum acabou sendo mais fiel às
contradições da sociedade brasielira do que a proposta exortativa e pedagógica do LP
O Povo Canta.
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tessituras vazadas, propostas por Tom Jobim, em Chega de Saudade (O que não
havia acontecido nos arranjos de Carlos Monteiro para o primeiro LP de Carlos Lyra).
Os gêneros escolhidos, na sua maioria Sambas, incluindo os de “roda” e de “morro”
(como em Esse Mundo é Meu e Terezinha de Jesus). Complementando esta
incorporação do material musical mais tradicional e étnico, os arranjos mesclavam
instrumentos de “escolas de Samba” (tamborim, pandeiro, cuica, agogo) com timbres
bossanovistas (madeiras, trio jazzístico). Este padrão será determinante para a
configuração da sonoridade básica da MPB, até o advento do Tropicalismo, quando
houve uma mudança significativa no padrão instrumental do conjunto das canções.
Aliás, este padrão de sonoridade esteve intimamente relacionado com o padrão
imposto pela gravadora “Elenco”, de Aloysio de Oliveira, copiada em parte pela Philips.
As duas praticamente monopolizaram o campo da MPB nascente e ajudaram a
determinar o que passou a se entender como tal, em meados da década de 60.
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77 O golpe militar de 1964 criou uma nova conjuntura na qual a viabilidade desta
estratégia política, baseada na aliança de classes, será alvo de críticas e auto-criticas.
A partir daí, a cultura nacional-popular buscou novas referências estéticas e novas
perspectivas de afirmação ideológica. A crise político-ideológica da esquerda
estimulou ainda mais o debate e a busca de novos paradigmas, numa arena musical
cada vez mais organizada em função do mercado. Este foi um dos paradoxos da
grande popularização da música nacionalista, no imediato pós-golpe, e uma das
variantes que marcou o nascimento da MPB renovada, consagrada na “era dos
festivais”.
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