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SEGUINDO A CANÇÃO
Engajamento político e indústria cultural na
MPB (1959-1969)

Marcos Napolitano
Versão digital revista pelo autor

Esta obra foi publicada, originalmente, pela Editora Annablume, com apoio da
FAPESP, em 2001

São Paulo

2010

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Agradecimentos

Reitero os agradecimentos da primeira edição impressa deste livro.

Em primeiro lugar, um agradecimento afetivo e profissional a minha orientadora


(hoje, colega e amiga) Maria Helena Capelato, pela ousadia em aceitar a orientação
de um tema difícil.

Aos professores Arnaldo Contier e Celso Favaretto, que deram importantes


contribuições ainda no exame de qualificação do doutorado, preparando a tese que
originaria este livro.

Aos colegas do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná


que foram generosos em me liberar das funções docentes por dois anos, para que eu
pudesse me dedicar integralmente à pesquisa de doutorado.

Aos funcionários dedicados e generosos dos inúmeros arquivos visitados


durante a pesquisa.

Aos colecionadores e antiquários musicais da Praça Benedido Calixto, em São


Paulo, sempre dispostos a uma boa conversa e a compartilhar seu grande
conhecimento sobre a música popular brasileira e seus discos antigos.

Finalmente, agradeço o apoio financeiro da CAPES, da Fundação da UFPR


(Funpar) e da FAPESP.

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Na época de sua publicação, dediquei este trabalho à Mariana, minha companheira de


som e sentido, e também à minha família, particularmente à minha mãe, responsável
pelos primeiros acordes desta história, a pessoa que primeiro me ensinou a amar a
música popular brasileira.

Hoje, quero incluir meu filho nesta dedicatória. Ao Mateus, cheio de vida, som e fúria.

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SUMÁRIO:

Introdução: MPB como problema histórico.........................................................5

Capítulo 1: “É só isso o meu baião...”: inovação musical no Brasil (1959-1963).....11

Capitulo 2: “Os cinco mil alto-falantes”: a ampliação da audiência e a gênese da


moderna MPB...................................................................................39

Capítulo 3: A bossa em balanço: a MPB entre o fórum e a feira..........................97

Capítulo 4: Tela em transe: os festivais como pólos de criação da MPB..............144

Capítulo 5: A república das bananas: o Tropicalismo no panorama da MPB.........183

Capítulo 6: O fantasma da máquina: a “instituição MPB” e a indústria cultural.......227

Considerações finais.........................................................................................266
Bibliografia....................................................................................................... 273
Fontes............................................................................................................... 278

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INTRODUÇÃO

A “MPB” COMO PROBLEMA HISTÓRICO

O filósofo Jean Paul Sartre certa vez se perguntou: é possível um músico


engajar-se? Na medida em que a música, assim como a pintura e a poesia, não
poderia ser delimitada dentro de um significado preciso, a perspectiva de
engajamento1 do músico, tendo por base a sua atividade artística, era inócua2. Para
Sartre, engajar-se politicamente era sinônimo de transmissão de idéias através de
significados reconhecíveis. Nessa argumentação, a música não pertencia ao mundo
das idéias, mas ao das formas, sendo talvez a mais abstrata delas.

Mas o dilema colocado por Sartre pode ter outra leitura: justamente devido ao
sentido “enigmático e polissêmico” dos signos musicais é que eles se abrem para um
leque de usos culturaus e interpretações políticas, marcados pela vontade de
utilização da linguagem musical na transmissão de idéias, ou melhor, de ideologias3.

Nesta segunda perspectiva é que vamos desenvolver nosso trabalho. A Música


Popular Brasileira dos anos 60, entendida como um objeto histórico que articula
política e cultura, é um campo privilegiado para mapear e entender as diversas formas
de cruzamento entre idéias e signos musicais, bem como as contradições do
engajamento político perturbado pelas demandas da indústria cultural.

Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música
Popular Brasileira, aglutinando uma série de tendências e estilos musicais que tinham

1Na definição de engajamento, tomamos por base a configuração clássica que a palavra tomou por volta
do final do século XIX, sobretudo no campo literário: a atuação do intelectual numa esfera pública, em
defesa das causas humanitárias, libertárias e de interesse coletivo, utilizando-se basicamente da
formulação e afirmação de idéias críticas e coerentes com aqueles princípios, delimitando seu espaço
num movimento pendular entre os ideais e as ideologias vigentes. Por outro lado, nosso trabalho procura
problematizar esta definição clássica, na medida em que a indústria cultural, outra categoria básica de
análise, tende a hegemonizar a esfera pública nas sociedades de capitalismo modernizado,
transformando idéias em bens culturais mercantilizados.
2J.P.Sartre. Que é literatura?, p.11
3A.Contier. “Música no Brasil: história e interdisciplinaridade” IN: História em debate (Atas do XVI
Simpósio da Assoc. Nac. História -ANPUH), p. 151. Para um aprofundamento das relações entre música e
ideologia ver do mesmo autor: Brasil Novo: música nação e modernidade (Tese de Livre Docência) e
Música e Ideologia no Brasil. Nestes trabalhos Arnaldo Contier discute tanto as estratégias para “dominar”
a polissemia dos sons, imprimindo-lhes um sentido ideológico, como as armadilhas históricas deste
processo.

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em comum a vontade de “atualizar” a expressão musical do país, fundindo elementos


tradicionais a técnicas e estilos inspirados na Bossa Nova4, surgida em 1959.

Este processo que redimensionou e consagrou a sigla MPB - Música Popular


Brasileira - pode ser vista como parcialmente determinada pelas intervenções culturais
que tentaram equacionar os impasses surgidos em torno do nacional-popular, tomado
aqui como uma cultura política5. Para Gramsci o “nacional-popular” estava situado
num nível intermediário das expressões culturais de uma coletividade, entre o
“provincial-dialetal-folclórico” e os elementos comuns à civilização à qual pertencia a
formação social específica. Gramsci pressupunha um “contínuo intercâmbio” entre a
“língua popular” e a das “classes cultas”, ponto de apoio da cultura nacional-popular
que visava, no limite, fundamentar a contra-hegemonia e selar uma aliança de classes
progressista. Conforme suas palavras: “Todo movimento intelectual se torna ou volta a
se tornar nacional se se verificou uma ‘ida ao povo’, se ocorreu uma fase de ‘reforma’
e não apenas de ‘renascimento’ (cultural)”6.
Se cotejarmos esta formulação com o processo em questão no Brasil, notamos
que a ‘ida ao povo’ efetivamente norteou a postura dos artistas-intelectuais, sobretudo
aqueles ligados à música popular, mas a presença intrínseca da indústria cultural
neste processo marcou um movimento de forças contrário a possível afirmação de
uma contra-hegemonia. Neste sentido, analisamos a MPB como uma linguagem
artística fundada a partir do nacional-popular, mas não restrita ao sentido político
vislumbrado por Gramsci. De qualquer forma, o conceito é importante para
entendermos o projeto inicial desenvolvido pelos artistas mais engajados, sobretudo
aqueles que procuraram traduzir a estratégia de frentismo cultural e aliança de
classes, consagrada pelo PCB a partir de 19587. A meta principal desta estratégia era
articular a expressão de uma consciência nacional, politicamente orientada para a
emancipação da Nação, cujo sujeito político difuso- o Povo - seria carente de

4O leitor perceberá que vamos manter os nomes dos “movimentos” musicais dos anos 60, visando
facilitar a leitura desta tese. Enfatizamos, porém, que a análise como um todo, está baseada num esforço
de problematização destas nomenclaturas, evitando reiterar, de maneira acrítica, a carga semântica que
elas trazem consigo.
5Entendo “cultura política” como o conjunto de categorias e representações simbólicas que formam um
campo contíguo, articulando normas, valores e comportamentos, que formam um substrato da vida
política institucional e organizam a arena dos conflitos. Em certas circunstâncias, matrizes simbólicas de
uma cultura política podem migrar da esquerda para a direita e vice-versa (por exemplo, o nacionalismo).
Ver N.Bobbio (org). Dicionário de Política.
6 A.Gramsci. Literatura e Vida Nacional. p.73
7 Conforme documento do PCB. Declaração sobre a política do PCB, março 1958. Nele, o proletariado é
visto como uma classe que deve auxiliar a fase de afirmação da nação frente ao imperialismo, aliando-se
taticamente à setores progressistas da burguesia. O golpe de 1964 representou o fracasso dessa política,
pois, como é sabido, a "fração progressista da burguesia nacional", revelou-se um mito político, apoiando
os militares. Ver R.Chilcote. O partido comunista brasileiro ; E.Caroni. O PCB. ; L.M.Rodrigues. "O PCB:
os dirigentes e a organização" IN. B.Fausto (org). História Geral da Civilização Brasileira. Vol.10.

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expressão cultural e ideológica (e não de representação política, propriamente dita).


Os artistas-intelectuais nacionalistas e de esquerda, mesmo aqueles não ligados
organicamente ao Partido Comunista, incorporaram a tarefa de articular esta
consciência. Nela, convergiram demandas nem sempre harmonizadas entre si, como
por exemplo: a formulação poético/musical da identidade popular, a exortação de
ações emancipatórias e a demanda por entretenimento. Todas estas demandas
estavam inseridas no crescente mercado de bens simbólicos.

Na perspectiva desta pesquisa a MPB se destaca como o epicentro de um


amplo debate estético-ideológico ocorrido nos anos 60, que acabou por afirmá-la como
uma instituição cultural, mais do que como um gênero musical ou movimento artístico.
Seria temerário tentar delimitar as características da MPB a partir de regras estético-
musicais estritas, pois sua instituição se deu muito mais em nível sociológico e
ideológico. Estes dois planos foram articulados pela mudança no sistema de consumo
cultural do país, transformando as canções no centro mais dinâmico do mercado de
bens culturais. A sigla MPB se tornou sinônimo que vai além do que um gênero
musical determinado, transformando-se numa verdadeira instituição8, fonte de
legitimação na hierarquia sócio-cultural brasileira, com capacidade própria de absorver
elementos que lhe são originalmente estranhos, como o rock e o jazz.

Outra linha de força atuou no panorama musical dos anos 60 foi a


reorganização da indústria cultural brasileira. O surgimento de novas estratégias de
promoção, produtos e conglomerados empresariais foi a faceta mais visível deste
processo, que reorganizou a dinâmica do mercado de bens culturais como um todo e
foi particularmente forte, no caso da música e da indústria televisiva.

Temos, portanto, dois vetores opostos: por um lado, a tendência da MPB em


tornar-se uma instituição sócio-cultural, ensejando uma autonomização relativa deste
campo de expressão artística. Por outro, uma nova forma de articulação da indústria
cultural com as artes, tornando-a relativamente heterônoma, pois dependente de uma
dinâmica mercantil que escapa ao criador e ao público fruidor, embora estes sejam

8A definição inspiradora desta categoria, que perpassará a pesquisa como um todo, foi emprestada de
Pierre Bourdieu. O sociólogo francês define “instituição” como: “Acumulação nas coisas [no caso, as
obras] e nos corpos [no caso, os artistas e intelectuais] de um conjunto de conquistas históricas que
trazem as marcas de suas condições de produção e tendem a gerar as condições de sua reprodução”
(P.Bourdieu. O Poder Simbólico, p.100). Não tomamos esta categoria como “camisa-de-força” da análise,
mas procuramos colocá-la a serviço de uma reflexão historiográfica que tenta entender, precisamente, o
processo central destas “conquistas históricas”: a gênese de uma MPB renovada nos anos 60. Este
processo se deu em conflito e negociação com outras “instituições” de diversas naturezas, (como a
indústria fonográfica e televisiva, o partido comunista, a imprensa e o campo intelectual como um todo)
até que a MPB fosse reconhecida a partir de um núcleo próprio de expressão sócio-cultural.

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pólos importantes e ativos daquela indústria. A hipótese central deste trabalho


desenvolve a idéia que a história da MPB renovada, produto dos anos 60, foi marcada
pelo conflito e pelas articulações possíveis destes dois vetores opostos: um
movimento instituinte que configura autonomia e outro, de reordenamento da
realização comercial da canção, que enseja heteronomia. Mesmo no fim da década,
quando o vetor representado pela indústria cultural adquiriu maior visibilidade, a sua
atuação junto aos criadores e à audiência de MPB não pode negligenciar o caráter
institucional desta corrente. Em suma, nem sempre instituição e mercado estiveram
harmônicas, embora, em linhas gerais, os dois movimentos tenham sido
concomitantes, constituindo séries históricas que ora convergiram, ora divergiram e só
podem ser compreendidos dentro da historicidade específica que instituiu a MPB.
Diante das demandas ideológicas que cercaram a canção popular nos anos 60, a
tensão entre estes dois vetores básicos foi particularmente dramática e marcou a
reorganização do sistema de produção / consumo de canções no Brasil.

Os projetos que estão na origem da MPB renovada absorveram elementos


ideológicos diversos, situados entre os estertores da cultura política nacional-popular e
a emergência de uma nova cultura de consumo9. Esta nova cultura de consumo se
caracterizava pela “ênfase no indivíduo, estímulo à competição, renovação
permanente de hábitos e bens de consumo, exaltação da tecnologia e da vida
urbana”10. A passagem de uma a outra ocorreu em meio a uma situação de crise da
cultura política nacional-popular que era, em certa medida, a sua contraface: ênfase
no coletivo, estímulo ao paternalismo social, perpetuação das tradições culturais,
exaltação à natureza e à cultura tradicional. A MPB traz as marcas deste choque inicial
de duas culturas, entrecruzadas num momento histórico marcado pelo autoritarismo
político imposto em 64 e pela radicalização das ações da esquerda, que culminaram
na luta armada e no acirramento da repressão do Estado, pós-68. Entre um e outro,
floresceu uma fugaz esfera pública dentro da qual a cultura de esquerda tinha uma
improvável hegemonia.

A indústria cultural, portanto, é uma das categorias centrais desta pesquisa.


Não se trata de aplicar, mecanicamente, os termos da definição clássica de Theodor

9Sobre o conceito de “cultura de consumo” ver o livro de Anna C.Figueiredo. Liberdade é uma calça velha
, azul e desbotada. Publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil. Neste trabalho a
autora define o consumo como articulador de uma nova relação entre o público e o privado, baseada na
aquisição de bens que se transmutam em signos e que redefinem categorias sócio-políticas, tais como
“liberdade”, “lazer”, “democracia”, “modernização”, etc..
10Idem, p.29

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Adorno11, sempre instigantes. Sem desconsiderar problemáticas como a


estandardização das obras, a supremacia do seu “valor de troca” em detrimento do
seu “valor de uso”, a crise da experiência estética subjetivante, a tendência do controle
do mercado pelas grandes agências monopolistas - entre outros, formulados pelo
filósofo alemão12- não pretendemos nos limitar a confirmá-las ou a superá-las.
Tentando ser coerente com as exigências específicas do ofício do historiador, trata-se
de examinar como estes problemas se objetivaram, ou não, no período histórico e no
contexto social em estudo, gerando questões que devem ser analisadas enquanto
processos abertos e diacrônicos.

Na visão sistêmica da teoria adorniana estas singularidades históricas


poderiam até ser irrelevantes. Para o historiador são justamente os detalhes que
perturbam o sistema que devem ser examinados. Não se trata de estabelecer
hierarquias entre um e outro, mas de configurar objetos complementares de análise. A
partir destas premissas teóricas, direciono o debate para o caráter específico da
indústria cultural brasileira, a qual será discutida na Conclusão. Ao longo do trabalho,
priorizamos a análise da música - entendida globalmente como processo e produto -
situada entre a indústria televisiva e a indústria fonográfica dos anos 60.

No geral, são estas as problemáticas que nortearam a minha reflexão. Elas


serão discutidas ao longo de seis capítulos.

No primeiro capítulo, discuto o papel da Bossa Nova, como redefinidora do


panorama musical brasileiro, catalisadora dos projetos de modernidade cultural,
contraface da utopia desenvolvimentista em marcha. Ao mesmo tempo, procuro
destacar outros aspectos da “explosão” da Bossa Nova: a articulação de uma nova
consciência musical, o surgimento de mitos de ruptura estética, a incorporação de
novos elementos musicais por artistas identificados com a causa nacionalista que
vigorou no governo João Goulart.

No segundo capítulo, analiso o impacto do golpe militar no campo da música


engajada, com a decorrente mudança de perspectiva da expressão nacional-popular
e os problemas decorrentes da “popularização” quantitativa da música brasileira, que
desembocará na redefinição de MPB . Em destaque, o espetáculo Opinião, o circuito

11T.Adorno et alli. “A indústria cultural: o iluminismo como mistificação das massas”. IN: Dialética do
Esclarecimento. Ver também: T. Adorno. "O fetichismo na música e a regressão da audição". Os
pensadores (Adorno)
12Além do texto clássico citado na nota, ver: T.Adorno. “Sobre a música popular”. IN: G.Cohn (org).
Adorno., p.115-146

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universitário paulista e os programas do Fino da Bossa, quando a TV assume e


hegemoniza a massificação dos gêneros musicais.

No terceiro capítulo, recupero o grande debate estético-ideológico em torno da


música popular - historicamente situado entre o “triunfo” da Jovem Guarda e os
primeiros festivais da canção. Este debate, que acabou por forjar a idéia de “linha
evolutiva”, foi um dos primeiros sinais da futura implosão dos paradigmas da canção
engajada.

O quarto capítulo se concentra no III Festival da TV Record de 1967, evento


central no processo de inserção da MPB no mercado e no questionamento das
implicações ideológicas das canções, presentes tanto no material e na técnica
musical, quanto nos motes poéticos. As fronteiras culturais e ideológicas que não só
organizavam o panorama musical, mas a própria expressão do nacional-popular,
serão dramaticamente colocadas em cheque não só pela crítica radical do
Tropicalismo nascente, mas por todas as correntes em disputa.

O quinto capítulo trata do Tropicalismo, analisando os discursos e as obras dos


seus entusiastas e críticos. Tentei entender o significado dos constantes loas à
destacada sagacidade dos tropicalistas, vistos como os únicos a perceber a crise da
cultura nacional-popular e propor saídas criativas, em meio à emergência da indústria
cultural renovada.

O último capítulo procura entender as especificidades da indústria cultural


brasileira e analisar a dinâmica de consolidação do estatuto de "moderna" MPB. Os
festivais de 1968 (IV Festival de MPB, III FIC e I Bienal do Samba) tem lugar de
destaque neste capítulo, pois foram exemplos paradoxais: por um lado, de crise e
estilhaçamento de gêneros musicais e ideologias nacionalistas; por outro, de triunfo da
MPB, transformada num "arqui-gênero" musical que na verdade se configura como
instituição, configurando um novo panorama sócio-musical a partir dos anos 70.

O desenvolvimento destes capítulos procura entender os impasses, os


debates e projetos autorais de artistas que acreditaram na possibilidade de engajar-se,
ao mesmo tempo que atuavam no mercado musical. A tentativa de dotar o som de um
sentido ideológico reconhecível e ao mesmo tempo afirmar as canções como bens
culturais renovados, se deparou, com inúmeras armadilhas e impasses. A história
recente da MPB pode ser vista como a própria aventura de superá-los, revelando
dilemas que vão muito além da área musical específica e atingem diretamente o cerne
da nossa história social, cultural e política.

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CAPÍTULO 1:

“É SÓ ISSO O MEU BAIÃO...”: INOVAÇÃO MUSICAL NO BRASIL (1959-1963)

A relação entre os fatos musicais examinados neste capítulo e os fatos sociais


1 e politicos que delimitaram a crise do desenvolvimentismo e a emergência das
mobilizações reformistas, entre 1959 e 1963, não é mera coincidência e muito menos
devem ser examinada sob a perspectiva do "reflexo" da vida material na vida cultural.
O surgimento da Bossa Nova e a reorganização do mercado musical que se seguiu a
ela pode ser visto como marco fundamental no processo de “substituição de
importações” do campo do consumo cultural, parte do processo de institucionalização
da "moderna" MPB. Os dados referentes ao mercado musical brasileiro parecem
confirmar esta afirmação. Em 1959, carca de 35% dos discos vendidos no país eram
de música brasileira. Dez anos depois, as cifras se inverteram: 65% dos discos eram
de música brasileira, boa parte dela herdeira do público jovem e universitário criado
pela BN e pelos movimentos que se seguiram13. Para isso, favoreceu-se de uma
estrutura singular da indústria fonográfica que mesmo dominada pelas grandes
multinacionais necessitava estimular a produção local de canções, como parte da sua
lógica de lucro14.
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Tanto o nacional-desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek (1956-
1960), como o nacional-reformismo do governo de João Goulart (1961-1964) estão na
base dessa clivagem. Na medida em que estas ideologias, pólos diferentes da cultura
política nacional-popular, penetravam no panorama musical, eram incorporadas nas
obras que trazem em si marcas das contradições inerentes ao processo social como
um todo. Portanto, não tomamos a BN como “reflexo” do desenvolvimento capitalista
da era JK, como muitas vezes é vista, mas como uma das formas possíveis de
interpelação artístico-cultural deste processo, a forma com que os segmentos médios
da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista
que desejava “atualizar” o Brasil como Nacão perante a cultura ocidental.
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A proposta das Reformas de Base como estratégia para superar a crise social
e econômica que o país mergulhou em 1961, foi um elemento perturbador na utopia

13Fonte: Jornal do Brasil , 24/09/69, B-1


14P.Flichy. Les insdustries de l’imaginaire. p. 225/227

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de atualização sócio-cultural que a Bossa Nova representava. Era preciso


conscientizar e integrar os setores sociais marginalizados pelo desenvolvimento
capitalista e a cultura tinha um papel importante neste processo. O excessivo otimismo
e subjetividade da Bossa Nova passaram a ser repensados. Setores do movimento
estudantil, uma das maiores expressões da esquerda nacionalista, perceberam o
potencial da BN junto ao público estudantil. Tratava-se, pois, de politizá-la.
4
Ao lado do cinema e do teatro que, diga-se, nunca conseguiram romper certos
limites quantitativos e qualitativos de audiência, a música poderia se transformar no
grande veículo ideológico de mobilização de massa, pois já possuía um nível de
popularidade considerável desde a "era do rádio", nos anos 30. Na visão dos
intelectuais do Movimento Estudantil, dois caminhos se abriam para atingir tal objetivo:
incorporar as técnicas musicais ligadas à Bossa Nova, fundindo-a com o material
musical folclórico e tradicional15, ou expurgar a sofisticação técnica das cancões
direcionadas às massas populares, utilizando-se dos gêneros e estilos consagrados
com fins puramente exortativos. Ao mesmo tempo em que deveria buscar a justa
adequação entre forma e conteúdo para transmitir uma mensagem ideológica
adequada ao ideário reformista, a música popular deveria ter um papel ativo no
processo de nacionalização dos produtos culturais como um todo. Este desejo de
modernidade não é mera inferência de pesquisador. Muitos artistas assumiram,
conscientemente, esse wishful thinking. Tom Jobim, por exemplo, declarou ao jornal
O Globo, em 12/11/62, por ocasião do show no Carnegie Hall em Nova York: “Já não
vamos recorrer aos costumes típicos do subdesenvolvimento. Vamos passar da fase
da agricultura para a fase da indústria”16.

5 Foram estas as questões, intimamente ligadas ao contexto histórico como um


todo e à situação do artista e do intelectual frente ao nacional-popular, em particular,
que organizaram a complexa articulação entre três vetores - tradição, ruptura e
mercado - por trás da emergência da Bossa Nova. Vejamos como estes problemas
foram incorporados nas obras concretas e forneceram as bases para a posterior re-
orgnanização do panorama musical, que instituiu a “moderna” MPB, por volta de 1965.

BOSSA NOVA E O NOVO LUGAR SOCIAL DA CANÇÃO BRASILEIRA

15N.L.Barros. “Bossa Nova: colônia do jazz”, Movimento, nº11, maio 1963, 13-15
16Apud J.R. Tinhorão. O samba agora vai. p.104

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6 O advento da Bossa Nova inaugurou um novo ciclo de institucionalização na


música brasileira, onde o próprio conceito de música popular vai ser modificado17. Na
conclusão deste ciclo de institucionalização os festivais da canção, entre 1966 e 1968,
desempenharam um papel fundamental. Obviamente, este não foi um processo
causal, linear e direto. Ao contrário, foi um processo contraditório, permeado de
tensões e conflitos, entre os quais a percepção de impasse estético-ideológico foi
direcionando o debate intelectual em torno da música, e os caminhos possíveis da
criação, dentro do ideário da esquerda nacionalista. Esse processo teve um profundo
diálogo com outros campos da sociedade18 (intelectual, artístico, econômico, político,
etc), determinando a configuração de um espaço próprio, dotado de autonomia relativa
e que passa a gerar sua propria identidade e reconhecimento, a partir de uma
economia interna específica. Em outras palavras, o processo histórico de redefinição
sócio-cultural da MPB, conduziu à sua institucionalização, oscilando entre a
configuração de uma cultura de protesto e resistência e a consolidação de um produto
altamente valorizado (do ponto de vista econômico e sócio-cultural). Como tal, foi parte
fundamental para a formulação de uma identidade social como um todo, sobretudo
para a nova classe média que emergia do processo de desenvolvimento capitalista.
Por se consolidar como uma instituição cultural ao longo dos anos 60, a MPB
desenvolveu meios de difusão próprios, critérios específicos de julgamento de valor,
seus “gênios” criadores foram situados dentro de uma hierarquia social destacada e
seu leque de materiais e técnicas musicais tornaram-se referência para os novos
criadores que almejam reconhecimento dentro desta instituição.

A música “popular” brasileira chegou ao fim dos anos 50 na forma de uma


7
tradição consolidada, sob diversos aspectos: já possuia um "panteão" artístico
consagrado (ao qual iriam ser agregados novos artistas, na medida em que se
acentuava o debate sobre qual tradição deveria ser seguida); era marcada pela
abertura à renovação, sem desconsiderar totalmente os materiais, os parâmetros e
estilos musicais convencionais, herdados do passado; tinha forte presença do
mercado de bens culturais, à base de uma audiência bastante popularizada,
hegemonizada sobretudo pelo rádio19. Os nomes da "velha guarda", como
Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, entre outros, já eram revestidos de amplo

17E.Paiano. Do Berimbau ao som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60.
18P.Bourdieu. O poder simbólico. p.59-159
19 M.Napolitano."A invenção da música popular brasileira: um campo de reflexão para a História Social".
Latin American Music Review. Univ.Texas Press, 19/01, 1998

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reconhecimento em alguns segmentos mais intelectualizados, sobretudo ligados ao


jornalismo cultural e à boemia literária20.

8 Nos anos 50, o panorama musical sofria uma série de mutações estruturais.
Por um lado, no nível do mercado, a crescente importância da televisão e a
consolidação do Long Playing de rotação 33-1/3, como suporte principal da canção,
alterou as bases criativas e os parâmetros expressivos da música popular brasileira,
que se adequava às novas demandas e possibilidade técnicas. Estes novos veículos
expressavam mais do que a ampliação do público/consumidor musical. Houve, em
verdade, uma mudança estrutural na sua composição.

9 A ruptura proporcionada pelo surgimento da Bossa Nova a partir de 1959


articulou a inserção de um novo extrato social no panorama musical, sobretudo no
plano da criação e, no consumo de música popular. Os estratos superiores das
classes médias, tomadas em seu conjunto, mais abastadas, mais informadas e com
circulação no meio universitário, passaram a ver a música popular como um campo
respeitável de criação, expressão e comunicação. Na metade da década novas
parcelas de ouvintes/consumidores foram agregados a esse novo quadro musical,
oriundos, sobretudo, da classe média baixa (sociologicamente falando, as classes C e
D), devido à presença marcante da televisão, como novo veículo musical de massa, a
partir do início da década de 6021

10 O grande legado da Bossa Nova, em que pesem os mitos historiográficos em


torno deste movimento22, foi o de deslocar o pólo mais dinâmico de criação e debate
musical em vários níveis: cultural, ideológico, sociológico. Para alguns analistas, este
processo foi a confirmação da “expropriação” cultural, racial e classista por parte da
pequena burguesia internacionalizada, em relação ao povo “pobre e negro”23. Para
outros, salto qualitativo em direção ao primeiro mundo da música24.

11 Estas mudanças e inovações sugeridas pela BN não se deram num vazio


histórico, como tem sido enfatizado pelos ideólogos e entusiastas do movimento. Tem
sido muito comum, na mídia sobretudo, reafirmar a Bossa Nova como o marco zero
da “moderna” MPB. Mas a análise de obras concretas e eventos específicos, pode
demonstrar que a relação com a tradição musical (e cultural) anterior foi mais

20 H.Vianna. O mistério do samba.


21 Esta afirmação é, sociologicamente mais aplicável às grandes capitais brasileiras. Nas cidades médias
e pequenas, o rádio ainda teve um papel fundamental até meados da década de 60.
22 A.Paranhos. "Novas bossas, velhos argumentos". Revista História e Perspectivas. Nº3, 1990, 5-112

23J.R.Tinhorão. Música Popular: do gramofone ao Rádio e TV, p.157


24R.Castro. Chega de Saudade. A história e as histórias da Bossa Nova

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complexa do que sugerida por alguns memorialistas e críticos musicais. Os músicos


da década de 60 herdaram formulações estéticas e ideológicas socialmente
enraizadas na forma de mitos fundadores da musicalidade brasileira e no
reconhecimento do Samba como música “nacional”, fazendo com que muitos deles se
propusessem a renovar a expressão musical sem romper totalmente com a tradição.
Em outras palavras, o peso da tradição na música popular brasileira era considerável e
se algumas vertentes do samba-canção (muito próximo, formalmente, do bolero) eram
questionadas, o samba urbano carioca não era totalmente descartado, por mais
"quadrado" que fosse. o seu ritmo. Mesmo os músicos mais identificados com a Bossa
Nova, que apontavam para um afastamento em relação aos parâmetros expressivos e
ao público tradicional da música popular, não rejeitaram o Samba como gênero-matriz
da música urbana brasileira. Essa especificidade da música popular constituiu um
processo que a diferencia, por exemplo, dos cineastas brasileiros do Cinema Novo,
movimento que rejeitou o cinema popular das chanchadas e melodramas25. Num
certo sentido, esta característica expressou a linha de continuidade entre o universo
musical anterior e posterior à Bossa Nova, exigindo uma crítica cuidadosa à idéia de
ruptura radical, que vem fazendo tábula rasa da história musical anterior ao ano de
1959. Samba-Bossa Nova-MPB passaram a formar o mainstream musical brasileiro.

12 Por outro lado, o impacto da Bossa Nova, potencializou um conjunto de


tensões culturais que lhe eram anteriores, mas que ganharam um novo alento devido
à incorporação de novos segmentos sociais no panorama musical mais dinâmico, num
momento em que o país rediscutia sua forma de inserção na modernidade.

13 Se a Bossa Nova (1959) e o Tropicalismo (1968) demarcam os dois pólos de


um ciclo de institucionalização -de abertura e fechamento, respectivamente- há uma
diferença cultural e ideológica marcante entre os dois. Essa diferença diz respeito à
forma pela qual os movimentos incorporam o problema da modernidade: na Bossa
Nova “modernidade” e “progresso” (social, cultural e econômico) parecem se
confundir, apontando para a mesma utopia histórica. No Tropicalismo, os
procedimentos do modernismo são utilizados justamente para separar, criticamente,
as duas categorias. Em ambos os movimentos, os criadores foram obrigados a se
confrontar com as tradições culturais e musicais brasileiras, e não apenas se pautar
pelas influências estrangeiras. Houve uma profunda discussão sobre o caráter e o
sentido da brasilidade, diluida no caso da BN e assumida no caso do Tropicalismo.
Essa discussão acerca da brasilidade se deu num quadro de ascensão e queda do

25P.E. Salles Gomes. Cinema Brasileiro: trajetória no subdesenvolvimento, p.103

15
16

nacional-popular como elemento central da cultura política que orientava uma boa
parte da elite intelectual e política com a qual se identificavam os músicos e artistas
engajados que, no fundo, eram parte desta elite. Entre um e outro polo, nasceu e se
consolidou um novo sentido de Música Popular Brasileira. A trajetória que configurou
esta nova identidade e reestruturou o sistema de produção e consumo de canções no
Brasil foi marcada pelas duas esferas examinadas ao longo deste trabalho:
engajamento político e indústria cultural. Se a Bossa Nova informou o projeto de
canção engajada que nasceria em seu meio musical, o Tropicalismo explicitava o lugar
da canção dentro do novo sistema de consumo da cultura.

BOSSA NOVA: MITOS DE RUPTURA

14 Apesar da inegável importância seminal de trabalhos como o álbum Chega de


Saudade, de João Gilberto26, é preciso ter cuidado com a idéia de que a Bossa Nova
foi o “grau zero” da história musical brasileira. Um aspecto constantemente omitido
nas análises históricas da BN é a complexidade da passagem do panorama musical
que vai do imediato pré-1959 à consagração pública do movimento, entre 1959 e
1960, bem como a relação com a tradição musical como um todo. Nem a Bossa Nova
apagou do cenário musical o Samba tradicional e o Samba canção bolerizado,
comercialmente fortes nos anos 50, nem se constituiu sem dialogar com estes estilos.
Este aspecto interessa diretamente para o tema em discussão - a gênese histórica da
MPB - na medida em que não só a tradição “evolutiva”, de Ary Barroso e Dorival
Caymmi estará presente na MPB dos anos 60, mas outros estilos e paradigmas foram
atualizados27. É justamente o ambiente cultural da Bossa Nova confrontado com o
surgimento de artistas que não se limitavam ao seus conceitos musicais mais estritos
que acabará por redefinir o conceito de MPB, por volta de 1965. Em outras palavras, a
Bossa Nova foi o filtro pelo qual antigos paradigmas de composição e interpretação
foram assimilados pelo mercado musical renovado dos anos 60. Tomemos dois
exemplos: Através de elementos estéticos oriundos da Bossa Nova, Elis Regina
assimilou estilo de Ângela Maria, sua inspiradora. Foi também através da BN que
Chico Buarque ouviu e incorporou a obra de Noel Rosa em seu estilo de composição.

26 Sobre João Gilberto, ver o interessante livro de Walter Garcia. Bim Bom: a contradição sem conflitos
de João Glberto. Neste livro, Garcia analisa as diversas tradições sintetizadas pela "batida" do violão: o
samba, o jazz e o bolero (samba-canção). Portanto, a questão da ruptura é colocada sob um outro
prisma, mais complexo.
27 Sobre a relação entre tradição e ruptura na BN ver L.Mammi. "João Gilberto e o projeto utópico da
Bossa Nova". Novos Estudos Cebrap, 34, nov.1992

16
17

A “nova batida” permitia uma incorporação de certos elementos da tradição musical


urbana, mesmo aquela rejeitada pelo 1º ciclo de criação do movimento.
15 Mesmo no caso do Bolero, apresentado pelos ideólogos da Bossa Nova
como a antítese radical do movimento28, a relação entre as duas correntes precisa ser
melhor analisada. O Bolero tinha um grande espaço na boêmia musical que foi uma
das vertentes da Bossa Nova, sobretudo antes de João Gilberto “resolver” o problema
da “batida” que permitisse reconhecer um novo gênero musical29. Se tomarmos a
forma Bolero como a negação absoluta da Bossa Nova, e vice-versa, corremos o
risco de reduzir a importância de procedimentos já inscritos no primeiro que foram
incorporados pelos músicos modernos da BN (sutileza vocal, condensação de efeitos,
arranjos mais contidos,etc). Por exemplo, em músicas como Alguém Como Tu30, na
versão de Dick Farney (1958) ou Se Todos Fossem Iguais a Você31, na gravação de
Agostinho dos Santos (1958), estas caracterísiticas já estavam presentes. Poderíamos
citar outros exemplos que nos ajudam a questionar estas periodizações rígidas e
absolutas. Entre eles, Dalva de Oliveira (cultuada pelo moderno João Gilberto, como
possuindo a “afinação absoluta”), cantando estilo doloroso, o heroi do kitsch, do
exagero, Lupicínio Rodrigues, acompanhada por Antonio Carlos Jobim e sua
orquestra, na fase pré-Bossa Nova. Ou ainda, no estilo “fossa nova” de Maysa,
cantora que acabou assimilada pela história do movimento32.
Todos estes exemplos musicais, propositalmente pinçados entre 1957 e
16
1958, anos imediatamente anteriores à eclosão da Bossa Nova, revelam uma tensão
interna no panorama musical que, mesmo dominado pelo gênero Samba-canção e
pelo Bolero, já apresentava muitos elementos de modernidade tidos como exclusivos
da futura Bossa Nova. É claro, isto não anula o impacto que os procedimentos
criativos na música de Tom Jobim, nas letras de Vinicius de Moraes e na performance
de João Gilberto tiveram sobre os jovens amantes da música popular. Uma das
grandes contribuições da BN para as letras da MPB foi o rompimento do império das
narrativas sobre os estados passionais extremos, como no bolero. Na Bossa Nova as
letras se abriram para comunicar as impressões dos sentimentos que se impregnavam
em representações do mundo exterior ao artista. Alguns analistas veêm nesta ruptura

28R.Castro. Op.cit, e J.Medaglia. “Balanço da Bossa Nova” IN: A.Campos (org). O Balanço da Bossa e
outras bossas. Por caminhos diferentes, os dois autores desqualificam o Bolero, visto como sinônimo de
subdesenvolvimento cultural e social
29 W.Garcia. Op.cit. .
30Composição de Evaldo Gouveia/Jair Amorim. Dick Farney (meus momentos), EMI, 830700-2, 1994
(original 1958).
31Composição de A.C.Jobim/V.Moraes. A popularidade de Agostinho dos Santos, Polygram, 523.458-2,
1994 (original 1958).
32Os exemplos musicais em questão são: Há Um Deus (Lupicínio Rodrigues). Dalva de Oliveira. Dalva de
Oliveira: saudade. Revivendo, RVCD 050, s/d (original 1957) e Ouça (Maysa). Maysa. Maysa por ela
mesma, RGE, 1994

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18

uma iconização dos motes poéticos que passou a dividir com a narrativa passional ou
social a forma de organizar a estrutura poética das canções33.
17 Além dos aspectos propriamente culturais e estéticos, a Bossa Nova abrirá,
paulatinamente, um novo mercado para o músico, sobretudo para os compositores34.
Os compositores sairão do quase-anonimato que os colocava na retaguarda dos
grandes intérpretes, para a condição de estrelas dos meios de comunicação. Este
processo, estimulado inicialmente pela Bossa Nova, se consolidou como uma
tendência da MPB, durante os festivais da canção, ao longo dos quais o compositor e
o performer muitas vezes se fundiram na mesma pessoa. É também com a BN que o
compositor começa a ganhar maior autonomia em relação ao seu trabalho de criação,
na medida em que o mercado se reestruturava e buscava suprir as demandas por
novidades musicais. Portanto, o momento inicial da Bossa Nova foi o prenúncio dos
elementos da revolução musical dos anos 60: predomínio do Long Playing, como
veiculo fonográfico (e conceitual); autonomia do compositor, acumulando muitas vezes
a condição de intérprete; consolidação de uma faixa de ouvintes jovens, de classe
média intelectualizada; procedimento reflexivo, de não só cantar a canção mas
assumir a canção como veículo de reflexão sobre o próprio ofício de cancionista (este
ponto não é inaugurado pela BN, mas foi potencializado por ela).
18 Os espaços iniciais do exercício de audição e interpretação que mais tarde iria
formar a Bossa Nova, podem ser visto em dois planos: os círculos privados ou
restritos (como as casas dos músicos ou os fã-clubes, como o Farney-Sinatra Fã
Clube) e a boêmia, marcada pelas boates da Zona Sul carioca. Ambos espaços
podem ser caracterizados como espaços íntimos ou intimistas, cuja perspectiva
marcou a estilo dos bossanovistas. David Treece qualifica a fase de afirmação da BN
como marcada pela “intimidade doméstica”, confirmada pelo lugar social do
movimento: apartamentos, boates e grêmios estudantis. A partir destes espaços, o
autor destaca o surgimento de um ethos da Bossa Nova, que arrastaria consigo toda a
configuração posterior da música popular brasileira: das massas anônimas de
espectadores passionais e entregues ao carnaval nacional, surge uma comunidade
mais autônoma e autêntica, a “inteligência jovem, de classe média urbana” e
cosmopolita35. Não por coincidência, o engajamento musical emergirá deste meio
social, que ganhara importância sociológica com as mudanças sócio-econômicas
atravessadas pelo país.

33Ver L.Tatit. O cancionista: composição de canções no Brasil. p.237


34Luis Tatit nomeia a década de 60 como a “década dos compositores”, referindo-se à importância inédita
e reconhecimento público que estes artistas adquiriram no ambiente da música popular. L.Tatit. “Canção,
estúdio, tensivididade”. Revista USP, nº4, dez/jan 1990, p.43-45
35D.Treece. “Guns and Roses....”, p.11

18
19

19
A “performance de apartamento” será mal vista durante os festivais televisivos,
na medida em que a própria performance se profissionalizava, voltada para as
multidões agitadas dos auditórios e para os telespectadores distantes. Neste sentido,
explica-se porque os músicos diretamente ligados à Bossa Nova inicial serão figuras
apagadas ou secundárias no contexto dos festivais, à exceção de Nara Leão, que
havia se afastado do movimento. A presença e influência bossanovista era indireta, na
medida em que os debates em torno dos festivais trabalhavam com questões surgidas
durante a eclosão e afirmação da BN.
Mas, em meio às performances de apartamento, outros espaços de experiência
20
musical iam surgindo. Por exemplo, os campi universitários. O primeiro grande show
universitário, já em meio ao impacto do LP de João Gilberto entre os músicos e
críticos, foi o 1ºFestival de Samba Session realizado na Faculdade de Arquitetura do
Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 1959. A presença de cerca de duas mil pessoas
demonstrou as potencialidades daquele tipo de Samba junto à população jovem
estudantil. Entre os artistas, somente Alaíde Costa e Sylvinha Telles, eram
profissionais. Os “padrinhos” ilustres convidados- Vinicius de Moraes, Dolores Duran,
Billy Blanco e Tom Jobim- saudaram os músicos e o público, mas não cantaram.
Apresentado por Norma Bengell e produzido por Ronaldo Boscoli, o espetáculo
chamou a atenção da imprensa e dos executivos da indústria fonográfica. Conforme
a crônica de Ruy Castro: “Na platéia do 1ºfestival de Samba Session dois homens
examinavam o que se passava no anfiteatro com olhos e ouvidos bem diferentes:
André Midani e Aloysio de Oliveira. O primeiro enxergava nos artistas e na platéia a
possibilidade de um novo mercado, a ser explorado imediatamente. O segundo via um
mercado apenas na platéia, a ser suprido pelas genialidades de Tom, Vinicius e,
talvez, Carlinhos Lyra, como compositores - mas não abria mão que seus intérpretes
fossem pessoas experientes, como Sylvinha Telles, Alayde Costa, Lucio Alves e,
agora, João Gilberto. Para Aloysio, os outros garotos eram verdes demais, como
músicos ou cantores, a, além disso, nenhum deles ‘tinha voz’” 36.

21 Seguiram-se três shows: no colégio Santo Inácio, no colégio Franco-Brasileiro


e na Escola Naval (13/11/1959), produzidos por Ronaldo Bôscoli. Paralelamente, o
próprio Bôscoli, que trabalhava na revista Manchete, Moises Fuks, no Última Hora e
João Luiz de Albuquerque, na Radiolândia, se encarregavam de consolidar a
expressão Bossa Nova, que nos dois anos seguintes viraria uma mania nacional.
Despertando o interesse da indústria fonográfica e contando com uma boa cobertura
na imprensa carioca e incorporada pela publicidade, a Bossa Nova acabou chegando

36R. Castro. Op.cit., p. 228

19
20

no rádio: em 2 de dezembro de 1959, a Radio Globo transmitiu o show comemorativo


do jornal homônimo.
22 No ano seguinte o grupo da Bossa Nova conhecia seu primeiro dissenso.
Mesmo se aceitarmos a tese de que o famoso rompimento entre Carlos Lyra e
Ronaldo Boscoli sinalizava o surgimento da canção engajada, defendida pelo primeiro,
não podemos desconsiderar a presença dos interesses da indústria fonográfica neste
processo. Portanto, a tensão entre a “música-como-veículo-ideológico” e a “música-
como produto-comercial”, tão potencializada pelo contexto dos festivais, já estava
embutida neste “racha”, ainda sem a dramaticidade adquirida mais tarde. Os
interesses da indústria fonográfica, materializada no conflito Odeon (multinacional)
versus Philips (binacional) pelos jovens músicos, tinham um alvo certo: a disputa do
mercado jovem, que crescia no ritmo do desenvolvimento urbano e industrial. Ao abrir
espaço para uma canção engajada, marcada por uma renovação do Samba, as
gravadoras procuravam consolidar e diversificar suas posições num mercado onde o
rock entrava com toda a força. O ano de 1960, não por coincidência, marcou a
consolidação deste gênero no mercado brasileiro, com o estouro comercial de Celly
Campello.

23 Ainda em 1960, quando a Bossa Nova era mais comentada do que ouvida, dois
compositores importantes, arautos da futura “Bossa Nova nacionalista”, faziam sua
estréia em fonograma: Carlos Lyra e Sergio Ricardo.

24 O caso de Carlos Lyra é emblemático acerca da situação do jovem músico de


Bossa Nova. Cansado do amadorismo e das promessas da Odeon, que não efetivava
nem o disco com a turma da Bossa Nova, nem um contrato regular, Lyra mudou-se
para a Philips que, agressivamente, passou a disputar os astros em potencial com a
gravadora rival. Seu primeiro disco, Bossa Nova de Carlos Lyra, saiu em maio de
1960, portanto, na mesma época dos shows rivais. Surgia assim, o segundo álbum
que consolidava a idéia de movimento em torno da Bossa Nova.
25 Carlos Lyra, cuja contratação pela Philips provocou certo escândalo no seio da
Bossa Nova, lançava um LP assumindo o nome do movimento. Apesar disso, o clima
geral do disco está mais para o velho Samba canção dos anos 50: os arranjos de
Carlos Monteiro de Souza (maestro muito presente na MPB dos anos 60) não
conseguiram montar a tessitura leve e vazada proposta por Tom Jobim. A voz de
Carlos Lyra, de timbre muito agradável, mantinha uma empostação mais solene e
retumbante, longe das sutilezas do fraseado de João Gilberto. O violão, menos
compacto e percutivo e mais dedilhado, não assumia completamente a nova “batida”.
A ligação com o movimento ficava por conta do clima cool das canções, que não era

20
21

novidade, podendo ser notado em canções anteriores à BN, interpretadas por Dolores
Duran, Dick Farney ou mesmo Elizete Cardoso, rotuladas pela historiografia como
Samba-canção. O repertório continha músicas de Carlos Lyra, demonstrando o talento
composicional do jovem músico, percebido sobretudo na delicadeza dos contornos
melódicos. A única exceção era a composição de Johnny Alf, Rapaz de Bem, de
1955, muito próxima ao estilo cool jazz , abusando de dissonâncias e efeitos
anticontrastantes. Apesar de ser considerado um dos fundadores da canção engajada,
neste seu primeiro álbum Carlos Lyra trabalhou apenas com temas puramente
românticos, sem nenhuma alusão, ainda que distante, aos temas nacionalistas e
sociais, que marcariam seu álbum de 1963, ou seus trabalhos para a UNE (incluidos
no LP O Povo Canta e no filme Couro de Gato, que serão analisados mais adiante).

26 Com Sergio Ricardo ocorreu o mesmo. Seu LP A Bossa Romântica, lançado


pela Odeon, está muito mais para o Samba-canção abolerado, Aliás, a canção O
Bouquet de Isabel pode ser considerado um dos cânones do gênero. Apesar disso, a
marca de Tom Jobim nos arranjos, conseguiu criar um conjunto de canções com
efeitos contrapontísticos mais próximos a proposta seminal de Chega de Saudade,
embora as canções de Sergio Ricardo, estruturalmente falando, estejam mais
próximas do Samba canção do que dos Sambas sincopados selecionados por João
Gilberto e ou compostos por Tom Jobim. Aliás, Sérgio Ricardo era um dos
compositores mais tecnicamente preparados, possuindo uma longa formação de
conservatório: as soluções melódico-harmônicas nunca eram banais ou óbvias,
mesmo quando remetiam a um gênero extremamente popular, como o Bolero. No LP
os temas de amor também predominam e o gênero Samba não chega nem a ser
predominante, como no álbum de Carlos Lyra: das treze composições apenas três
delas podem ser classificadas como “Samba”. A voz potente e empostada de Sergio
Ricardo também não remetia ao fraseado de Orlando Silva-João Gilberto (legato),
mesmo que ele se esforçasse para cantar naturalmente, sem “operismos” ou
ornamentos vocais de outro tipo.

27 A consolidação do termo (Bossa Nova) ajudou a estimular ainda mais as


aglutinações a favor ou contra o movimento: rapidamente o “Samba moderno” passou
a ser visto como a antítese do “Samba quadrado”, ou seja, aquele Samba com ataque
percutivo e divisões rítmicas bem definidas. Mas, para além de uma questão de gosto,
o surgimento de uma preocupação “conscientizadora” em alguns músicos identificados
com a BN colocava uma questão mais profunda: “O desafio encarado pela música (..)
era como superar a distância social e cultural na qual a nova situação política tinha
colocado, entre a vanguarda artística pós-Bossa Nova e a classe operária, os

21
22

camponeses, e suas tradições” 37. Não bastava contrapor a possível influência do


rock, mas também ampliar os públicos e os materiais sem abrir mão do espaço
conquistado pela Bossa Nova.
28 A vontade de se popularizar, na medida mesmo que se afirmava como
nacional, exigia não só uma agressividade em relação ao rock, mas também um
redimensionamento da relação com a tradição, com o “Samba quadrado” do morro.
Algumas obras importantes traduzem este novo projeto.
29 Em 1961, o lançamento em fonograma da música Quem quiser encontrar o
amor, com autoria de Carlos Lyra e Geraldo Vandré, interpretada por este último, foi
considerado um marco na tentativa de criação de uma “Bossa Nova participante”, ou
seja, portadora de uma mensagem mais politizada, e que trabalhasse com materiais
musicais do Samba tradicional. A letra rompia com o elogio do “estado de graça” da
Bossa Nova padronizada, em cujas canções a figura do “amor” surge como um
corolário do estado musical-existencial do ser. Nesta canção, em particular, o “amor”
surge como fruto de sofrimento e luta.
30
O arranjo incluiu um acompanhamento de violão que marcava uma divisão
rítmica mais definida, um acento mais “afro” (como foi dito na época) e alguns timbres
do Samba “quadrado”, como o uso do trombone, tradicional instrumento de “gafieira”.
Apesar disso, a BN se fazia presente: a interpretação de Geraldo Vandré evitava os
exageros vocais e o próprio arranjo não reforçava o papel dos instrumentos de
percussão como no samba tradicional, a não ser na introdução.
31
Na verdade, Quem quiser encontrar o amor, surgiu em função do filme Couro
de Gato, curta metragem de Joaquim Pedro de Andrade, produzido pela UNE, em
1960. O filme narra as aventuras dos favelados para conseguir fabricar tamborins
artesanais para o carnaval, utilizando-se do couro dos referidos animais. Entre a
versão do disco citado e a do filme, nota-se algumas diferenças. A primeira entrada da
canção, como trilha sonora, ocorre em canto coletivo apoiado na percussão tradicional
do samba, num retorno ao “Samba quadrado”. O arranjo de Carlos Monteiro valorizava
o contraponto do tema cantado com o trombone (instrumento típico do Samba de
“gafieira”) e a percussão, saindo dos timbres predominantes da BN. A participação de
coro de Escola de Samba, também valorizava a entoação tradicional do Samba,
elemento que não é destacado na versão de Geraldo Vandré.
32
Ao lado de Zelão (composição de Sergio Ricardo), lançada em 1960, Quem
quiser encontrar o amor tornou-se uma variante do paradigma bossanovista, lançando

37D.Treece. Op.cit., p.14 (tradução do autor)

22
23

as bases para uma canção “nacionalista e engajada”, mas que incorporava parte das
conquistas estéticas da Bossa Nova. Zelão contava a história de um favelado que
perdia sua casa numa chuva, passando a contar, apenas, com a solidariedade dos
outros habitantes do morro: “Todo morro entendeu quando Zelão chorou / ninguém riu
nem brincou / e era carnaval” . O desenvolvimento melódico de Zelão consistia de três
partes diferentes, era na forma A-B-C-A, pouco usual na canção “popular”, mais ligada
à forma A-B-A. O primeiro tema melódico, que acompanha a primeira estrofe,
musicalmente mais assimilável, acentua os tons melancólicos da canção. O tema C,
mais difícil e indefinido, se sustenta sobre acordes de nona e décima-primeira, que
acentuam o efeito de “dissonância”, considerada a principal característica da Bossa
Nova. Em outras palavras, mesmo trazendo de volta o tema do “morro”, a canção
Zelão trabalha com uma base musical que pode ser considerada “bossanovista” e
dificilmente poderia ser considerada um Samba “quadrado”, seja do ponto de vista
harmônico, seja pela interpretação que lhe deu Sergio Ricardo.

33 Há um aspecto importante: as duas canções veiculam uma série de imagens


poéticas que se tornariam recorrentes na canção engajada: a romantização da
solidariedade popular; a crença no poder da canção e do ato de cantar para mudar o
mundo; a denúncia e o lamento de um presente opressivo; a crença na esperança do
futuro libertador38.

34 Por volta de 1962, o legado da Bossa Nova já havia sido reprocessado na


forma de um “Samba moderno e participante”, cujos criadores principais foram Carlos
Lyra e Sergio Ricardo . Restava, porém, o problema da realização da obra junto ao
público. As tentativas para assimilar o material de “raiz” popular não eram tão simples,
embora não faltassem iniciativas de aproximação e parceria dos sambistas do “asfalto”
com os do “morro”.

35 Os anos de 1962 e 1963 são caracterizados pela demarcação de fronteiras,


muitas vezes postiças, entre a BN “jazzistica” e a BN “nacionalista”. A questão foi
potencializada pela consagração da Bossa Nova no mercado internacional, ocorrida
exatamente no mesmo período. No final de 1962, em 21 de novembro, a Bossa Nova
foi a atração principal de um evento que acirrou ainda mais as polêmicas em torno do
caráter nacionalista ou "entreguista" do novo gênero. Com a produção de Sidney Frey,
manager da gravadora norte-americana Audio Fidelity, foi realizado o polêmico show
de Bossa Nova, no Carnegie Hall, em Nova York. O evento foi organizado pelo

38Aspecto que será explicitado mais tarde, em 1968, por W. Galvão no texto “MMPB: uma análise
ideológica”.IN: Sacos de Gatos...

23
24

conselheiro do Itamaraty, Mario Dias Costa, colega de Vinícius de Moraes que, na


época, era membro do corpo de Relações Exteriores do Brasil. O próprio Itamaraty se
encarregou do fornecimento das passagens e recursos para viabilizar o espetáculo,
visando “mostrar aos norte-americanos, sem receber um único dólar, a verdadeira
Bossa Nova”39. Há algum tempo, os clássicos da Bossa Nova eram gravados por
músicos norte-americanos, e a presença de brasileiros no Carnegie Hall deveria
confirmar o prestígio da BN nos EUA e consolidar sua presença no mercado
internacional. No total, 22 músicos participaram: Tom Jobim, Carlos Lyra, Agostinho
dos Santos, João Gilberto, Luis Bonfá, Chico Feitosa, Roberto Menescal, Milton
Banana, Maurício Marconi, O Sexteto de Sérgio Mendes, Oscar Castro Neves e
Quarteto, Sérgio Ricardo.

36 O show no Carnegie Hall acabou se transformando num marco para as


discussões sobre a Bossa Nova. Para os detratores do movimento, o seu aludido
fracasso ajudava a desmascarar o charlatanismo musical do movimento. Para os
nacionalistas ficava clara a necessidade de afirmar uma corrente da BN que não fosse
diluída no jazz, pela própria força centrífuga do mercado norte-americano que se abria
aos músicos brasileiros. E para os bossanovistas mais próximos ao jazz , como o
Sexteto de Sérgio Mendes e o próprio Conjunto de Oscar Castro Neves, o evento foi
uma oportunidade de mostrar competência técnica e um tipo de música brasileira mais
assimilável pelo público norte americano.

37 Para João Gilberto e Tom Jobim, o show marcou a entrada triunfal dos dois no
mercado norte-americano, inicialmente tumultuada, mas que acabou consagrando
estes músicos no exterior, onde desenvolveram boa parte da suas carreiras. Mas este
aspecto também trazia consigo uma situação paradoxal: os dois fundadores da BN
acabaram, em certa medida, entrando para o index dos artistas e intelectuais mais
nacionalistas como exemplo de Bossa Nova "anti-popular" e “entreguista”. Dos “pais
fundadores”, só Vinícius de Moraes conseguiu manter seu prestígio intacto junto aos
nacionalistas de esquerda, sendo um dos arautos da nacionalização da Bossa Nova, a
partir de 1962. Nelson Lins e Barros, compositor e ideólogo da UNE, desqualifica o
“segundo nascimento da Bossa Nova” (como ele chama o show de Nova York) como
uma tentativa de adaptar o gênero ao mercado americano, diluindo-se completamente
nas imitações do jazz40. De qualquer forma, para os artistas mais independentes das
amarras ideológicas, Tom Jobim e João Gilberto, permaneceram como referências de
música popular, ao longo da década. Este foi o caso, por exemplo, tanto de Edu Lobo,

39“BN Desafina nos EUA”. O Cruzeiro, 8/12/62


40 N.L.Barros. “Bossa Nova: colônia do jazz”. Revista Movimento, nº11, p.13

24
25

que sempre declarou sua admiração por Tom Jobim, como de Caetano Veloso, em
boa parte responsável pelo resgate da figura de João Gilberto, como figura central da
MPB.

38 A assimilação da Bossa Nova nos EUA, cujo show do Carnegie Hall foi a
grande vitrine, se desdobrou em duas direções: uma re-elaboração musical por parte
de artistas ligados ao Jazz (diluindo a batida de Samba que resistia na Bossa até
então) e uma padronização de sua célula rítmica básica visando a criação de uma
nova dança de consumo. O próprio Sidney Frey assumiu este objetivo: “A
permanência da BN depende muito da aceitação da dança; ninguém se reunirá
simplesmente para ouvir BN a não ser em concertos. Se não gostarem da dança, a
música por certo morrerá”41.

39 Ao mesmo tempo em que abriu-se um amplo mercado de trabalho para os


artistas brasileiros, em nível mundial (a maioria dos artistas citados seguiu carreira no
exterior), criou-se um polo de conflito entre aqueles artistas que se pensavam
comprometidos com a afirmação de uma cultura nacional. O acirramento das posições
ideológicas e dos conflitos sócio-políticos no Brasil, durante o governo João Goulart,
obrigava um posicionamento mais definido, contendo, porém, um dilema: Era preciso
rejeitar a Bossa Nova, sem rejeitar a Bossa Nova. Inegavelmente, ela era um estilo
musical aceito pela juventude universitária e pelos músicos mais talentosos. Portanto
era preciso demarcar uma Bossa jazzificada de uma “outra” Bossa nacionalista, mais
ligada à tradição do Samba. Após o show do Carnegie Hall essa questão se
transforma no grande impasse da música popular renovada.

40
Vinicius de Moraes, que passou a ser identificado com a linha “nacionalista”,
declarou, logo depois da entrada da BN no mercado americano: “Os leões-de-chácara
do samba tradicional vibraram com o suposto revés da BN (...) mas ela continua
triunfando em toda a parte nos EUA e Europa. Esse antagonismo Bossa Nova e Bossa
Velha existe mas não entre todos. Da nossa parte não há nenhum sentimento de
separação (...) João Gilberto sempre cantou bossa antiga . Por outro lado, Ciro
Monteiro adora João Gilberto. Eu gosto muito de Pixinguinha (...) Na BN há duas
linhas principais: a linha brasileira e a linha jazzística. O pessoal da linha brasileira (eu,
Tom, Baden, Carlos Lira, Menescal) está cada vez mais identificado com os temas
tradicionais, pesquisando as fontes brasileiras. O pessoal da linha jazzística são

41apud O Cruzeiro, 09-02-1963

25
26

Sergio Mendes, irmãos Castro Neves, Luis Carlos Vinhas, Trio Tamba. Sergio Ricardo
é um caso a parte. Não obstante, está bem próximo à BN”42.

41 Os artistas formados em torno da Bossa Nova encontravam-se numa


encruzilhada: não poderiam se fechar para o mercado internacional, até porque a
popularidade do movimento e o mercado fonográfico brasileiro, naquele momento,
ainda não garantiam uma auto-suficiência profissional. Por outro lado, não poderiam
negligenciar os compromissos com o Brasil, enquanto artistas pressionados por um
momento político extremamente delicado. Evidentemente, este impasse era tanto
maior quanto fosse a identificação com a ideologia nacionalista e a crença nas
reformas sociais que mobilizava boa parte da sociedade. Além disso, como já afirmei,
a Bossa Nova, devidamente assimilada como uma variável do Samba, tinha um
grande potencial de crescimento junto ao público jovem universitário que passava a se
interessar por música brasileira. Neste sentido, é compreensível que num momento de
tensões ideológicas e políticas extremamente agudas, reforçava-se os elos da nova
música com as tradições nacionais. Este era o ponto básico para sair do “impasse”
estético-ideológico, que se tornara mais complicado depois do show do Carnegie Hall,
na medida em que a BN se tornava referência para o mercado musical internacional.
42
Era sintomático que em 16 de dezembro, pouco depois do show do Carnegie
Hall, fosse organizada a I Noite da Música Popular Brasileira, no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro. O show foi produzido pelo CPC/UNE, e a sua proposta básica era
apresentar uma resenha da história do Samba carioca. Reunia nomes importantes,
como Pixinguinha, Vinicius de Moraes e a bateria da Escola de Samba Portela. A
saída do “impasse”, a pré-condição para retomar a “evolução”, era o reencontro com a
tradição. Os artistas e ideólogos da BN nacionalista pareciam ter encontrado um tipo
de comportamento musical (conjunto de procedimentos criativos, interpretativos e
receptivos) que deveria dar conta dos desafios colocados pelo momento histórico e
pela singular situação da música na sociedade brasileira.

43 Os neo-folcloristas, que não viam com simpatia a aproximação entre


bossanovistas e sambistas populares tradicionais, não perdoaram: “Levados ao
apartamento que Nelson (Lins e Barros) dividia com Carlos Lyra, na Rua Francisco de
Sá , em Copacabana, os compositores Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti foram
convidados a mostrar a sua ignorada produção diante do excitado interesse dos dois
compositores de Bossa Nova (...) Esses encontros-que marcaram o lançamento dos
humildes compositores Cartola e Nelson Cavaquinho como os representantes oficiais

42Idem

26
27

do samba tradicional perante a classe média (...)- revelaram seu fracasso na hora dos
músicos das duas tendências musicais tocarem juntos (...) os acordes compactos à
base de dissonâncias, do violão Bossa Nova não se casavam com a baixaria do violão
de Cartola, e muito menos com a quase percussão de Nelson Cavaquinho, que
beliscava as cordas numa acentuação rítmica das tônicas absolutamente pessoal” 43.

44 A questão, obviamente, é mais complexa do que simplesmente definir esta


atitude dos compositores como paternalista ou populista, como afirma José Ramos
Tinhorão no trecho acima. O que estava em jogo era a necessidade de buscar novos
materiais para a BN, não tanto de “tocar junto” com os compositores populares. Na
verdade, ao longo da década de 60, ocorreram dois movimentos, paralelos e
complementares, séries históricas diferentes, mas que acabaram como vertentes
formativas da redefinição de MPB: por um lado, movimento cada vez mais ligado à
indústria fonográfica e televisiva, que tentou mesclar elementos da técnica
interpretativa da Bossa Nova aos padrões de escuta populares, ou seja, os sons que
vinham do morro e do sertão, mas também elementos do antigo Bolero e do jazz; por
outro lado, certos músicos de origem social mais humilde beneficiaram-se do renovado
interesse pela música brasileira, vislumbrando a possibilidade de mostrar o seu
trabalho ao grande público. Eles ocuparam franjas de mercado e chegaram ao disco,
como intérpretes ou como compositores valorizados. Este parece ter sido o caso dos
sambistas “do morro” (Cartola e Nelson Cavaquinho, por exemplo) e de alguns
intérpretes como Clementina de Jesus.

A MÚSICA POPULAR E O CPC DA UNE

45 O impasse oriundo das tarefas auto-impostas pelos músicos nacionalistas se


acirrava: ampliar materiais sonoros, consolidar o “público jovem” e conquistar novos
públicos, sobretudo as faixas de audiência das rádios populares, ainda direcionadas
para os Sambas-canções e intérpretes da Velha Guarda. Todos estes objetivos
deveriam informar o compositor popular que desejasse contribuir para o debate e
atingir dois objetivos básicos: a conscientização ideológica e a “elevação” do gosto
médio (uma meta que os bossanovistas sempre perseguiram). Portanto, as temáticas
mais românticas ou mais políticas deveriam se submeter a estes objetivos. Na visão
dos ideológos da BN nacionalista, vulgarização estética, massificação cultural e
alienação política caminhavam lado a lado. Neste sentido, entravam em choque com

43J.R. Tinhorão, Pequena História da Música Popular, p. 239

27
28

os termos do Manifesto do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos


Estudantes44 que, por esta razão, não encontrou uma grande receptividade entre os
músicos.

46 No mesmo momento histórico que os músico eruditos de vanguarda tentavam


se livrar dos controles estritos do Partido Comunista Brasileiro45, para desenvolver
uma pesquisa musical mais livre e vislumbravam na música popular, um território
menos preconceituoso em relação às inovações, os músicos populares - a maior parte
oriundos da Bossa Nova que se desagregava como sociabilidade cultural e como
movimento musical - buscava no reencontro com a tradição nacional-popular a
superação dos seus impasses. Portanto, sob o leque de influência do mesmo PCB,
ocorreu entre 1962 e 1963, o cruzamento de perspectivas radicalmente diferentes e
que mais tarde iriam se degladiar na arena dos festivais: o “nacionalismo” e a
“vanguarda”. Não por coincidência os mesmos protagonistas deste primeiro debate
iriam voltar a trocar provocações, sobretudo a partir de 1966 e 1967.

47 O surgimento do Manifesto do CPC/UNE, em fins de 1962, tentava disciplinar a


criação dos jovens artistas engajados. Como tarefas básicas, na medida em que o
governo João Goulart assumia as Reformas de Base como sua principal bandeira, o
CPC se dispunha a desenvolver uma consciência popular, como base da libertação
nacional. Mas antes do povo, o artista deveria se converter aos novos valores e
procedimentos, nem que para isso, sacrificasse o seu deleite estético e a sua vontade
de expressão pessoal. Entretanto, estas propostas não foram muito bem assimiladas
na música popular.

48 Se intelectuais do movimento estudantil, como Nelson Lins e Barros, tentavam


incorporar a Bossa Nova como um substrato legítimo da música engajada nacionalista,
as posições veiculadas pelo Manifesto do Centro Popular de Cultura da UNE,
elaborado por volta de 1962, deixavam os jovens músicos numa posição delicada. Ao
contrário do que afirmara Carlos Lyra, numa das reuniões inaugurais do CPC,
assumindo-se como “burguês”, o Manifesto insistia que “ser povo” era uma questão de
opção, obrigatória ao artista comprometido com a libertação nacional. Abandonar o
“seu mundo” era o primeiro dever do artista “burguês” que quisesse se engajar nas
causas nacionais e populares.

44Seu texto-base foi redigido pelo economista Carlos Estevam Martins e apresentado em outubro de
1962. O texto na íntegra foi reproduzido em H.B.Hollanda. Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda e
Desbunde.p 121-144
45 Estamos nos referindo ao Movimento Música Nova, integrado por Willy Corrêa de Oliveira, Rogério
Duprat, Gilberto Mendes que, entre outros, transitavam ou eram militantes do PCB

28
29

49 Vejamos alguns trechos importantes do Manifesto do CPC da UNE, cujas


bases foram redigidas por um intelectual desligado da criação artística propriamente
dita, o economista Carlos Estevam Martins: “Os artistas e intelectuais do CPC não
sentem qualquer dificuldade em reconhecer o fato de que, do ponto de vista formal, a
arte ilustrada descortina para aqueles que a praticam as oportunidades mais ricas e
valiosas, mas consideram que a situação não é a mesma quando se pensa em termos
de conteúdo (...) Com efeito, seria uma atitude acrítica e cientificamente irresponsável
negar a superioridade da arte de minorias sobre a arte das massas no que se refere
às possibilidades formais que ela encerra”46.
50
Não havia dúvida, conforme o Manifesto do CPC: A arte de elite era superior à
arte popular e oferecia mais “possibilidades formais” ao artista. Portanto, o que se
priorizava na obra não era a sua qualidade estética, mas um veículo ideológico
adequado ao conteúdo nacionalista em questão.

51 Sobre o procedimento formal que deveria culminar na obra de arte, o Manifesto


separava dois planos distintos: “Por um lado ela tem antes o caráter sociológico de
levantamento das regras e dos modelos, dos símbolos e dos critérios de apreciação
estética que se encontram em vigência na consciência popular(...) Outra direção em
que se desdobra a pesquisa formal do artista revolucionário consiste no trabalho
constante de aferir os seus instrumentos a fim de que com eles poder penetrar cada
vez mais fundo na receptividade das massas. Certamente mais rigorosas e
implacáveis as regras que dirigem o processo de comunicação com as massas do que
aquelas que facilitam o entendimento com as elites”.

52 Portanto, o procedimento sugerido visava direcionar o artista-intelectual


engajado para a busca de sua inspiração nas “regras e modelos dos símbolos e
critérios de apreciação” das classes mais populares, vistas como a base da expressão
nacional-popular. O objetivo era facilitar a comunicação com as massas, mesmo com
o prejuizo da expressão artística, a partir de procedimentos básicos: 1) se adaptando
aos “defeitos” da fala do povo; 2) se submetendo aos imperativos ideológicos
populares; 3) entendendo a linguagem como meio e não como fim; 4) entendendo a
arte como socialmente limitada, parte de uma superestrutura maior.

53 Estes critérios, se confrontados com as bases musicais dos jovens de classe


média, revelam certa inadequação ao tipo de canção engajada que se forjava. A
submissão da “forma” ao “conteúdo” e da “expressão” à “comunicação”, significava

46Apud Idem, p.143

29
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uma ruptura total com as bases convencionais da Bossa Nova, formadora e


inspiradora dos principais criadores musicais, mesmo entre os simpatizantes do CPC.
Por outro lado, o manifesto indicava um caminho contrário, muito mais próximo à
posição dos “folcloristas”, inimigos da Bossa Nova47.

54 Boa parte dos criadores engajados se recusou a exercer este populismo


cultural, revelando uma complexidade de posições estéticas e ideológicas num
segmento de criação tido, mais tarde, como homogêneo e monolítico. Podemos
perceber esta tensão no episódio envolvendo o compositor Carlos Lyra. Segundo seu
depoimento, a idéia inicial do primeiro núcleo do futuro CPC que se reuniu em 1961 foi
a criação de um “Centro de Cultura Popular”, o que foi vetado por Carlos Lyra. A
inversão da sigla não foi mero capricho do compositor, conforme suas próprias
palavras: “Eu Carlos Lyra sou de classe média e não pretendo fazer arte do povo,
pretendo fazer aquilo que eu faço (...) faço Bossa Nova, faço teatro (...) a minha
música, por mais que eu pretenda que ela seja politizada, nunca será uma música do
povo” 48.

55 O caminho oposto foi esboçado por músicos que buscavam uma Bossa Nova
nacionalista ou uma canção engajada, no sentido amplo da palavra. Carlos Lyra,
Sergio Ricardo, Nelson Lins e Barros (que também era compositor), Vinícius de
Moraes e outros, afirmavam a música popular como meio para problematizar a nação
e “elevar” o nível do gosto musical popular, e não como mero veículo de agitação e
propaganda políticas. Na sua perspectiva a ideologia nacionalista era um projeto de
um setor da elite que, no médio prazo, poderia beneficiar a sociedade como um todo e
a “subida ao morro” visava muito mais ampliar o leque expressivo de sua música do
que mimetizar a música popular das classes populares. Essa perspectiva foi mais
determinante até 1964, quando a conjuntura mudou e levou alguns artistas de
esquerda a se aproximar das matrizes populares de cultura como uma reação
ideológica ao fracasso da frente única.

56 Um ponto deve ser sublinhado: mesmo que em alguns momentos e obras


específicas alguns músicos engajados tentassem realizar os preceitos do Manifesto do
CPC, este conjunto de formulações estéticas e ideológicas pouco informou a produção
musical do campo que mais tarde ficou conhecido genericamente como “canção de
protesto nacionalista”. Aliás, áreas como o cinema, as artes plásticas e a música

47 Neste segmento citamos: Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão e, mais tarde, Hermínio Bello de
Carvalho (mentor do projeto "Rosas de Ouro", em 1965)
48Depoimento de Carlos Lyra em: J. Barcellos. CPC da UNE: Uma história de paixão e consciência. ,
p.97

30
31

(popular e erudita), pouco foram influenciadas - esteticamente falando- pelo Manifesto


do CPC. Talvez os casos da poesia e do teatro mereçam uma análise mais acurada,
pois nestas áreas a busca da comunicabilidade e o mimetismo das formas artísticas
populares parecem ter sido um procedimento mais presente.

57 A perspectiva homogeneizadora que diluiu os matizes dos diversos tipos de


canção engajada feita no Brasil entre 1960 e 1968 é bastante questionável, pois
desconsidera diferenças musicais (e mesmo poéticas) importantes, limitando-se a
utilização de um vago critério temático para classificá-las na condição de “canções de
protesto”. Mesmo a busca da comunicabilidade e a valorização da mensagem que
notamos, por exemplo, em Geraldo Vandré, deve ser cruzado com outros elementos
históricos, como os imperativos oriundos do mercado fonográfico, aos quais este
compositor sempre esteve atento. A presença do Manifesto para a música engajada,
sempre esteve num plano muito difuso, mais como uma carta de intenções ideológica
do que como um documento definidor de procedimentos técnico-estéticos. Antes da
consagração do compositor de Disparada, o tipo de música que mais se aproxima do
Manifesto pode ser visto no LP produzido pelo CPC, intitulado O Povo Canta ou no
trabalho de Ary Toledo, que até o final da década, insistiu em produzir peças irônicas,
miméticas e lineares, cujo tema se ligava a um nacionalismo populista já deslocado
historicamente.

58 O LP O Povo Canta pode ser visto como uma tentativa de constituir uma
música engajada de cunho exortativo e didatizante, que não chegou a constituir num
gênero valorizado no processo de institucionalização da MPB ao longo dos anos 60. O
LP de 8 polegadas trazia cinco faixas: O subdesenvolvido (Carlos Lyra/Francisco de
Assis), João da Silva (Billy Blanco), Canção do Trilhãozinho(Carlos Lyra /Francisco de
Assis) , Grilheiro Vem (Rafael de Carvalho), Zé da Silva(Geny Marcondes/Augusto
Boal).

59 O Subdesenvolvido tematizava as agressões imperialistas sofridas pelo Brasil,


se construindo como uma espécie de suite (fado, marcha, valsa, fox e rock balada)
cortada pelo bordão “subdesenvolvido”, cantado em coro. A letra oscila entre a
denúncia e o deboche, remetente à tradição do teatro de revista carioca, aliás, uma
das fontes de certas canções engajadas daquele período. João da Silva, um Samba,
também mantém o tom de crítica ao imperialismo, mostrando didaticamente quantos
produtos estrangeiros o “homem comum” de classe média consome no seu dia-a-dia,
terminando por assimilar a cultura norte americana (“diz que não gosta de Samba e
acha o rock uma beleza”). Trilhãozinho, um Samba /boogie-woogie, parodia a inveja

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do brasileiro em relação ao poder das divisas norte-americanas, alterando o gênero


musical em função da fala do nacionalista (um Samba tipo Bossa Nova) e da fala do
imperialista (boogie). O côco, gênero nordestino, é escolhido para louvar a resistência
coletiva dos posseiros urbanos, vítimas do “grilheiro” que quer tomar o terreno onde
vivem. A sanfona e a percussão nordestina (triângulo, bumbo) criam um clima de forró,
de festa, na qual de antemão, fica celebrada a vitória do povo. A última faixa, Zé da
Silva, criticava as “liberdades burguesas” que para o trabalhador despossuido, pouco
interessavam, na visão da juventude de esquerda. A canção tem um clima brechtiano,
com quebras de andamento para acentuar o efeito dramático e alternância entre refrão
(pergunta do coro- “Zé da Silva é um homem livre/oque ele vai fazer?”) e estrofe
(tentativa de resposta- “sem comida, liberdade é mentira, não é verdade”).

Este clima de elogio ingênuo ao “povo”, ainda despojado da forma épica que
60
esta categoria assumirá nos dois anos que antecederam a radicalização de 1968,
serviu de base para outras tentativas de partir do paradigma do velho teatro de revista
(alternando paródias políticas, humor ingênuo), mesclado com as intenções
pedagógicas e exortativas da nascente canção nacionalista e engajada. Apesar de
contar com músicos reconhecidos (Carlos Lyra, Billy Blanco) este tipo de canção não
chegou a constituir um filão valorizado pela corrente principal da canção nacionalista e
engajada que desembocará na MPB. Mesmo o espetáculo Opinião, que poderia ser
classificado dentro desta linhagem, acabou se constituindo a partir de um repertório
mais enraizado nos gêneros populares (Samba tradicional, gêneros nordestinos) e, em
alguns casos, tendo um tratamento musical mais próximo à Bossa Nova, onde o
humor e as críticas assumem um tom mais grave e não chegam a hegemonizar o
espetáculo. A revista Pobre Menina Rica (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes),
encenada em 1963 e gravada em fonograma em 1964, tentou dar continuidade a
proposta de “revista-engajada”, mesclada nesta caso com temas românticos e
melodias mais sofisticadas. A carreira individual de Ary Toledo, cantor e humorista,
que checou a flertar com o CPC da UNE e participar de alguns festivais da TV,
também pode ser vista como uma continuidade deste gênero.

61 Mas, em linhas gerais, mesmo os artistas que buscaram assimilar o material


folclórico e popular de acordo com suas propostas engajadas não ficaram dentro dos
limites do Manifesto do CPC. A Bossa Nova continuou sendo um referencial
fundamental, ainda que criticada pelo seu “conteúdo alienado”.

62 Um dos primeiros equacionamentos mais sistematizados do impasse entre a


Bossa Nova e as tradições populares do Samba, foi do compositor e intelectual ligado

32
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ao movimento estudantil, o já citado Nelson Lins e Barros. No artigo publicado na


revista Movimento, editada pela União Nacional dos Estudantes, em outubro de 1962,
Nelson enfatizava que a música brasileira, mesmo após o surgimento da Bossa Nova,
estava num impasse ao mesmo tempo estético e ideológico, que se manifestava em
várias situações dicotômicas: “Há o choque entre as regiões subdesenvolvidas e as
expressões culturais dos grandes centros industriais, dominados pelos Rio de Janeiro.
Há o choque entre o valor artístico , como expressão cultural das classes, e o valor
comercial, da música como mercadoria. Há o choque entre a música brasileira e a
música estrangeira. Todos eles se interdependem e resultam das contradições
econômicas existentes” 49. E concluia, advertindo que, caso não fossem “encontradas
as soluções” a música brasileira sofreria três consequências: a) A “música autêntica”,
regional, desapareceria; b) a música das elites, continuaria hermética, sem ser,
propriamente, música brasileira; c) a música comercial seria dominada pela música
americana.

Alguns meses mais tarde, em artigo publicado na mesma revista, em 196350,


63
Nelson Lins e Barros relativizou a sua preocupação, tentanto resgatar algum tipo de
potencialidade político-ideológica na Bossa Nova. O autor destacou que a BN teve um
duplo nascimento: 1959 e 1963. A primeira data corresponde ao “nascimento”
propriamente dito do gênero com o lançamento das músicas Desafinado e do álbum
Chega de Saudade , de João Gilberto, que foi visto como uma síntese dos novos
procedimentos criativos e expressivos de um grupo de jovens músicos. A segunda
data -1963-, conforme Lins e Barros, marcou a reelaboração da BN original pela
indústria cultural norte-americana, com a “jazzificação dos seus componentes
musicais, sendo então re-exportada para o mercado brasileiro e mundial. Nelson Lins
e Barros resgata a “primeira Bossa Nova” que era avançada musicalmente sem deixar
de ser “nacionalista”: “Era preciso fazer um samba brasileiro de boa qualidade: acabar
com o bolero, com a insuportável música de carnaval, com o cafagestismo barato dos
quadrados” 51.

64 Neste artigo, portanto, Lins e Barros, na qualidade de um artista-intelectual


ligado à esquerda nacionalista, dignifica a “primeira BN”, como a base de um novo
procedimento de criação musical. Mesmo assim, ele destaca o impasse daquele tipo
de música, indicando ao mesmo tempo o seu salto qualitativo: “No processo de
conscientização da realidade brasileira a BN tomou, como tinha que ser, uma posição

49Nelson Lins e Barros. “Música Popular e suas bossas”. Revista Movimento, 6, outubro 1962, p.26
50Nelson Lins e Barros. “Bossa Nova: colônia do jazz”. Op.cit
51Idem, ib,p.14

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nacionalista. E entre o dilema da promiscuidade ou alienação, seguiu o terceiro


caminho, o único caminho da arte popular: o de ser um meio de expressão do povo,
crescendo com ele, e principalmente, servindo a ele(...) Essa nova Bossa é a ponte, é
a mão que vai encontrar o morro, o terreiro e o sertão, em uma sociedade melhor que
vamos ver, talvez, não muito longe”52.

Dois textos, separados por apenas alguns meses, parecem expressar não só o
65
pensamento de um autor específico, ligado à música popular no meio estudantil, mas
uma verdadeira síntese programática, aceita por muitos intelectuais e artistas, como
Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Superado o pessimismo em relação às
possibilidades da BN, marcante no primeiro texto, Lins e Barros acreditava que os
músicos nacionalistas engajados poderiam superar o impasse pelo seu próprio
processo de conscientização que se acreditava em marcha, por volta de 1963, auge
das mobilizações em torno das Reformas de Base. Coerente com a proposta do
Centro Popular de Cultura da UNE, criado oficialmente no final de 1962, Lins e Barros
tentou traduzir os termos do Manifesto da entidade tendo em vista as especifidades da
criação musical popular. Sua argumentação deixa transparecer toda a tensão interna
do debate estético/ideológico da esquerda nacionalista, oscilando entre a pedagogia
dos sentidos (ainda que motivada ideologicamente) e a exortação política (onde não
se colocava o problema da busca de uma excelência estética). Estes dois pólos
marcariam o debate musical ao longo da década, com uma leve predominancia da
primeira forma de encaminhamento. Eis uma tese fundamental deste ensaio: o exame
do material musical qualificado genericamente como "música de protesto" é marcado
muito mais pela pedagogia dos sentidos do que pela pedagogia político-partidária.
Antes de tudo, era preciso configurar a nação e, ao mesmo tempo, senti-la,
poeticamente falando.

O jovem artista engajado, nacionalista e de esquerda, deveria estar apto para


66
produzir uma arte que fosse nacionalista e cosmopolita, politizada e intimista,
comunicativa e expressiva, rompendo, inclusive, os limites propostos pelo Manifesto
do CPC. O avanço da frente política pelas reformas parecia ter encontrado sua
homologia no mundo das arte e da cultura. Mais do que um espelho, a canção
engajada pré-64 deveria ser o holofote que iluminaria a consciência nacional.

67 A equação proposta por Nelson Lins e Barros, pareceu encontrar eco nos
trabalhos que procuravam objetivar, na forma de canções, os termos do impasse,
apontando para soluções estéticas. Mas estas propostas não estavam isentas de

52Idem, ib., p.15

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contradições, na medida em que estavam inseridas num mercado musical bastante


complexo e deveriam atender parte de suas demandas.

A CANÇÀO ENGAJADA PRÉ-1964

68 Dois álbuns fonográficos podem ser destacados como sínteses criativas que
procuraram objetivar, na forma de composição, interpretação e seleção de repertório,
as precepções desenvolvidas no debate citado anteriormente: Depois do Carnaval, de
Carlos Lyra (Philips, 1963) e Um senhor de talento de Sergio Ricardo (Elenco, 1963).
A tentativa de estabelecer as bases estéticas e ideológicas de uma Bossa Nova
“nacionalista”, que correspondesse às expectativas da juventude de esquerda que se
engajava no processo de Reformas de Base do governo Jango, encontrou nos dois
álbuns acima citados, sua expressão mais delineada.

69 Carlos Lyra, àquela altura, tentava encontrar uma expressão musical para o
que ele chamava de “Sambalanço”, um rótulo que servia, segundo suas próprias
palavras “para delinear dentro do movimento aquele sentido nacionalista que procura
elevar o nível da música popular dentro de suas fontes”53. Com efeito, as temáticas
das canções dominadas pelo tema do amor romântico no primeiro disco migram para
temas de acento mais social ou ideológico: das 14 faixas, apenas em quatro não
encontramos nenhuma alusão indireta à estes problemas (Gostar ou não gostar, Sem
saida, Promessas de Você e Se é tarde me perdoa). Em canções líricas, como Quem
Quiser encontrar o amor e Mundo à Parte, o tema do “amor” se mescla à crítica ao
individualismo e ao subjetivismo, aludindo indiretamente aos temas identificados com
a Bossa Nova “clássica”. Nas outras faixas - Depois do Carnaval, Influência do Jazz,
Aruanda, Marcha da 4ªfeira de Cinzas e Maria do Maranhão - foram lançadas as
bases para o que mais tarde será chamado de “canção de protesto” brasileira (rótulo
que, como já disse, deve ser melhor examinado). O caso de Marcha de 4ªfeira... foi
exemplar: regravada após o golpe militar por Nara Leão e Elis Regina, esta marcha-
rancho se converteu num paradigma musical de crítica ao regime militar. A frase inicial
(“Acabou nosso carnaval...”) parecia resumir o anti-climax que tomou conta da
esquerda como um todo.

70 Se a postura ideológica ficava bem delineada nos temas e nas letras das
canções, quando analisamos os parâmetros musicais propriamente ditos, o quadro se
complica um pouco. Os arranjos de Luis Eça misturavam quartetos bossa novistas

53Texto da contracapa do LP Depois do Carnaval. Philips, 1963

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(baixo, bateria, piano violão, com toques de flauta), naipes orquestrais compactos
(sobretudo cordas e metais) e percussão com sotaque mais caribenho do que
brasileiro (gênero que nos EUA se chamava Latin Jazz). O efeito instrumental acaba
tendendo para o grandiloquente, com os naipes de cordas utilizando glissandos e os
metais atacando a todo volume em algumas seções ritmicas. As entradas orquestrais
lembram os musicais da Broadway, onde se misturavam elementos do bel-canto com
hot-jazz. A marcação rítmica em algumas faixas, utilizando-se de piano e bongô
(Influência do Jazz, Mundo à parte, Maria do Maranhão), acabavam alterando
sutilmente a célula rítmica do gênero escolhido (Samba, nas duas primeiras e toada,
na segunda), dando-lhes uma coloração caribenha (mambo e Bolero, no caso de
Maria...). Mesmo Aruanda, definida pelo autor como um maracatu, o sotaque
jazzístico/caribenho é marcante.

71 Não se pode dizer que Carlos Lyra era um purista. Mas, de qualquer forma,
havia um discurso de “nacionalização” da Bossa Nova que encontrava seu limite na
própria dinâmica artística - a formação do compositor e dos músicos que o
acompanhavam - e mercadológica. Este último aspecto era calçado pelos interesses
das gravadoras em diluir a Bossa Nova no mercado de Latin Jazz, na medida em que
Cuba já não podia fornecer mais suas músicas para o mercado norte-americano. A
tensão decorrente deste contraste entre as propostas ideológicas e o resultado
musical marcou o início de um processo que vai se tornar mais complexo, na medida
em que o mercado brasileiro de MPB vai se ampliando e as gravadoras começam a
interferir ainda mais na disseminação de fórmulas e comportamentos musicais. A
particularidade da canção engajada/nacionalista brasileira reside neste justamente
neste processo, e traz em si as contradições da nossa modernização: a afirmação
nacional, modernizante e desenvolvimentista, inserida no capitalismo internacional
monopolista. A nostalgia folclorizante e a paranóia da diluição na cultura estrangeira
eram os polos opostos, mas também complementares, deste processo. O LP de
Carlos Lyra acabou sendo uma formulação incipiente destes problemas, contraface do
dilema da esquerda nacionalista. Neste sentido, seu álbum acabou sendo mais fiel às
contradições da sociedade brasielira do que a proposta exortativa e pedagógica do LP
O Povo Canta.

72 O LP de Sergio Ricardo, lançado na mesma época, também ajudou a formular


as bases da canção nacionalista engajada, no seu primeiro momento. Muitas faixas se
tornaram clássicos desta corrente musical: Enquanto a Tristeza não vem, Barravento,
Esse mundo é meu, entre outras. Diferente do LP de Carlos Lyra, os arranjos - a cargo
de Carlos Monteiro de Souza- são mais despojados e conseguem assimilar as

36
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tessituras vazadas, propostas por Tom Jobim, em Chega de Saudade (O que não
havia acontecido nos arranjos de Carlos Monteiro para o primeiro LP de Carlos Lyra).
Os gêneros escolhidos, na sua maioria Sambas, incluindo os de “roda” e de “morro”
(como em Esse Mundo é Meu e Terezinha de Jesus). Complementando esta
incorporação do material musical mais tradicional e étnico, os arranjos mesclavam
instrumentos de “escolas de Samba” (tamborim, pandeiro, cuica, agogo) com timbres
bossanovistas (madeiras, trio jazzístico). Este padrão será determinante para a
configuração da sonoridade básica da MPB, até o advento do Tropicalismo, quando
houve uma mudança significativa no padrão instrumental do conjunto das canções.
Aliás, este padrão de sonoridade esteve intimamente relacionado com o padrão
imposto pela gravadora “Elenco”, de Aloysio de Oliveira, copiada em parte pela Philips.
As duas praticamente monopolizaram o campo da MPB nascente e ajudaram a
determinar o que passou a se entender como tal, em meados da década de 60.

73 Estes paradigmas musicais seriam determinantes nos próximos anos, ao lado


das escolhas temáticas que privilegiavam o morro como depositário das virtudes
libertárias. Na faixa Barravento, a estrutura canto-resposta formatava a canção,
remetendo aos cantos de trabalho, e também de lamento, cujo bordão se ancora na
palavra Barravento. Na faixa Esse Mundo é Meu, regravado por Elis Regina dois anos
mais tarde (sob outra roupagem) Sergio Ricardo canta acompanhado apenas por um
coro de Escola de Samba, caracterizado pelo registro agudo e pelos timbres “sujos” do
coral popular a la pastoras, formado por vozes femininas, e por instrumentos de
percussão afro-brasileiros, criando um clima de terreiro que se mesclava a uma
melodia pungente e sofisticada, ao mesmo tempo. Em Terezinha de Jesus, além dos
instrumentos já citados, as cordas do violão são “beliscadas”, reproduzindo a técnica
consagrada por Nelson Cavaquinho, àquela altura uma das referências obrigatórias da
Bossa Nova nacionalista.

74 A incorporação do material “folclórico” ou “tradicional” não impedia a utilização


de instrumentos considerados sofisticados, como as madeiras, cellos e violinos, nem a
estruturação das melodias sobre bases harmônicas mais complexas. Neste sentido o
LP de Sergio Ricardo tentava resolver o impasse formulado por aqueles que
pensavam as possibilidades e dilemas da música brasileira, vista como principal
expressão cultural da frente nacionalista pelas Reformas de Base54. Não quero
afirmar com isso que havia uma linha direta entre a formulação dos intelectuais e a

54N.L.Barros.”Música popular e suas bossas”. Op.cit.

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produção dos músicos, mas um ambiente sócio-histórico que concentrava os termos


do debate e indicava caminhos homólogos para vários campos da cultura.

75 Os dois álbuns, o de Carlos Lyra com sua orquestração compacta e sua


interpretação mais expressiva, e o de Sergio Ricardo, propondo a utilização do
material folclórico sem abandonar o intimismo da Bossa Nova, lançaram as bases
musicais (e ideológicas) para o tipo de música que irá se desenvolver na era dos
festivais. Mas estas contribuições, ao lado dos trabalhos de Tom Jobim e João
Gilberto, podem ser vistas como uma espécie de “primeira camada” na arqueologia da
nossa moderna música popular. Outros elementos irão sendo adicionados: as canções
organizadas em torno da re-harmonização do material folclórico nordestino de Edu
Lobo, o Samba-jazz de Elis Regina, o Samba urbano tradicional de Chico Buarque, a
canções épicas a base de moda-de-viola e guaraña de Geraldo Vandré, entre outros.
Independente da formulação consciente dos criadores, estes diferentes caminhos
musicais assumiram, nos anos 60, o caráter de equações complexas para entender as
vicissitudes da modernização sócio-econômica no Brasil e as posturas
político/ideológicas em jogo.

76 A Bossa Nova, música dita de “elite”, paulatinamente consolidada no mercado


foi mais do que aceita pela corrente musical engajada que surgiu por volta de 1965.
Ela continuou sendo a referência dos compositores e intérpretes mais significativos
desta corrente, ainda que submetida a constantes revisões críticas. Os materiais
sonoros e os temas poéticos das classes populares não foram negligenciados, mas os
procedimentos e parâmetros determinantes seguiram sendo dados pela busca de uma
Bossa Nova nacionalista. Essa tentativa de síntese foi uma das traduções que a
estratégia da frente única, a aliança entre intelectuais e povo, recebeu no campo
musical.

77 O golpe militar de 1964 criou uma nova conjuntura na qual a viabilidade desta
estratégia política, baseada na aliança de classes, será alvo de críticas e auto-criticas.
A partir daí, a cultura nacional-popular buscou novas referências estéticas e novas
perspectivas de afirmação ideológica. A crise político-ideológica da esquerda
estimulou ainda mais o debate e a busca de novos paradigmas, numa arena musical
cada vez mais organizada em função do mercado. Este foi um dos paradoxos da
grande popularização da música nacionalista, no imediato pós-golpe, e uma das
variantes que marcou o nascimento da MPB renovada, consagrada na “era dos
festivais”.

Este é o tema do próximo capítulo.

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