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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA - Prof.

Gomes

1.1 Considerações em torno do ato de estudar - Paulo Freire


Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de
despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a
recebem, a ânimo de usá-la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então, a
intenção fundamental referida. A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das
escrivaninhas.
Esta intenção fundamental de quem faz a bibliografia lhe exige um triplo respeito: a quem ela se
dirige, aos autores citados e a si mesmo. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de
títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere deve saber o que está sugerindo e por que o faz.
Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio.
Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não a lê-los por
alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige
uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside
fundamentalmente em matar nos estudantes a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua
“disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face ao texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar
as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela
imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo,
mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do
mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em
sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda. Esta postura crítica, fundamental,
indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele a se dedica:

a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.


Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face ao texto como se
estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta
passivamente, domesticadamente, procurando apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa
“invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos
que ele retira do texto para por dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando o escreveu. É perceber o
condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e
outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever - tarefa
de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se do
texto, renunciando assim à sua compreensão crítica em face dele.
A compreensão crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da
existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser os fatos cada vez mais
lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quanto, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se
volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de
sua globalidade. Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em interação, constituem
sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice
da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca
uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata
o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de
fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre o seu conteúdo e o objeto de estudo sobre o que se
encontra trabalhando. Impõe-se lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua
relação com os precedentes e com os que a ele seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua
totalidade.

Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve separá-lo de seu conjunto,
transcrevendo-o em sua ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas
circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho
lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam apontar novas
meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro, como o de um artigo de revista implica não somente
numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente
inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.

b) Que o ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo.


Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro ou leitor-texto. Os livros,
em verdade, refletem o enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão
expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar, e sobretudo, pensar a prática é a melhor
maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações
com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a
de quem busca. O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil do que resulta um
aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática:
durante as simples conversações; o registro das ideias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras
vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de
“fichas de ideias”. Estas ideias que devem ser respondidas por quem as registra. Quase sempre, ao se
transformar na incidência da reflexão dos que as anotam, estas ideias os remetem a leitura de textos com que
podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.

c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante


Que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua
inquietude.

d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra
nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-
sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo de leitor.

e) Que o ato de estudar demanda humildade.


Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com o pensamento crítico, não se
sente diminuído quando encontra dificuldades que, às vezes, revelam-se grandes para permitir que se
penetre na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que
é um desafio, pode apresentar-se como algo além de sua capacidade de resposta ou não. Nem sempre o texto
se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que se deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentalizar-se para voltar
ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta virar a página de um livro se a sua compreensão não foi
alcançada. Impõe-se pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto
não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros num
semestre. Estudar não é um ato de consumir ideias s de criá-las e recriá-las

PAULO FREIRE - Ação Cultural para a Liberdade. Paz e Terra. pp. 9 -12.

No texto de Paulo Freire não só é possível analisar a própria atitude face ao estudo, como também se pode
estudar a relação com a leitura. Não nos diz Paulo Freire que o ato de ler só se realiza mediante um espaço de
relação dialógica (dialogal=conversa) com o autor? Esta postura nos remete à questão do pensar. Todavia, na
época atual, época dos meios de comunicação de massa, dos sistemas educacionais funcionalistas, de
imediato não se consegue apreender claramente as dificuldades inerentes ao trabalho teórico. Mas o ato de
ler, que é um ato de concentração, exige distanciamento e reflexão. É um ato que só se realiza mediante os
procedimentos lógicos de análise, síntese, interpretação, juízo crítico.

Deste modo, só seguindo uma série de atividades preparatórias é que se consegue alcançar um nível de
interpretação aprofundado do texto, onde afinal o sentido se manifesta.

1.1.1. Como ler


Dizia um professor de filosofia “a inteligência humana é lenta”. Isto pode significar que passamos por um
lento processo intelectual até vencermos os obstáculos pessoais e culturais e alcançarmos a exata
compreensão de uma mensagem. Esta nem sempre se mostra de imediato no momento da comunicação. É
necessário da nossa parte um espaço de tempo para que possamos decodificar, assimilar, o que foi revelado
no texto.
Deste modo, se quisermos descobrir a mensagem de um texto, de um modo abrangente, temos de nos
submeter à uma séria disciplina de trabalho.
a) Delimitar a unidade de leitura que pode ser um capítulo, uma seção ou até mesmo um grande parágrafo.
b) Ler repetidas vezes o mesmo texto para certificar-se do alcance da compreensão verdadeira do assunto
da pauta, grifando as ideias principais, de cada parágrafo; ao lado, na margem, escrevendo uma frase resumo.
O que caracteriza a unidade de leitura é a apresentação do sentido de um modo global. Só após o
entendimento dessa unidade é possível prosseguir na investigação de novas unidades de leitura.

1.1.2. Passos
a) Leitura exploratória - é a fase em que se deve prestar atenção à diretriz do pensamento do autor.
Nesse primeiro contato, dependendo das motivações da leitura, o leitor poderá levantar outros elementos que
possam esclarecer mais a leitura. Nessa primeira leitura corrida não convém resumir nem sublinhar as
ideias-chave. Todavia, é possível elaborar um modo suscinto, um esquema das grandes partes do texto, de
preferência, dos três momentos da relação: introdução, desenvolvimento do conteúdo e conclusão que
expressam a estrutura lógica do pensamento do autor. O esquema para visualizar o texto permitirá a melhor
compreensão das partes que o compõem. Poderá permitir a identificação dos dados sobre a vida e obra do
autor, sobre o momento histórico que ele viveu, sobre as influências que recebeu e até mesmo elucidar sobre
o vocabulário que ele usa.
b) Leitura analítica - é a fase do exame do texto, ou como diz Paulo Freire fase da ‘relação
dialógica com o autor do texto, cujo mediador não é o texto considerado formalmente, mas o tema, ou os
temas nele tratados’. Nessa etapa é necessário deixar o autor falar para tentar perceber o que e como ele
apresenta o assunto. Quando estamos atentos ao texto geralmente surgem na mente um conjunto de
perguntas, cujas respostas revelam o sentido e o conteúdo da mensagem.
Perguntas e respostas
1) De que fala o texto?
2) Como está problematizado?
3) Qual foi o fio condutor da explanação?
4) Que tipo de raciocínio ele segue na argumentação?
Mas como trabalhar nesta fase de leitura?
A partir de unidades bem determinadas (parágrafos), tendo sempre à frente o tema-problema que é o
fio condutor de todo o texto. Nesse trabalho de análise o texto é subdividido refazendo toda a linha de
raciocínio do autor. Para deixar às claras a idéia central e as ideias secundárias do texto é fundamental a
técnica de sublinhar.
Dicas de como sublinhar
1) Nunca sublinhar na primeira leitura.
2) Só sublinhar as ideias principais e os pormenores significativos.
3) Elaborar um código a fim de estabelecer sinais que indiquem o seu modo pessoal de apreender

a leitura.
Exemplo: Um sinal de interrogação face aos pontos obscuros do parágrafo. Um retângulo para
destacar as palavras-chave.
4) Reconstruir o texto a partir das palavras sublinhadas em cada parágrafo.
A leitura analítica serve de base para a elaboração do resumo ou síntese do livro. Convém lembrar
que o resumo não é uma redução de ideias apreendidas nos parágrafos, mas é fundamentalmente a síntese
das ideias do pensamento do autor.
c) Leitura interpretativa - é o ato de compreender e que se afirma no processo da interpretação que afinal
expressa a nossa capacidade de assimilação e crítica do texto. Nessa etapa de interpretação já não mais
estamos apreendendo a perceber ou compreender o raciocínio do autor, mas sim estamos nos posicionando
face ao que ele diz. Para isso precisamos muitas vezes de outras fontes de consulta. Elas deverão servir para
ampliar a nossa visão sobre o assunto e o autor e deste modo servir de instrumento de avaliação do texto.
Nesse momento de crítica, momento de muita ponderação, exige uma consciência dos nossos pressupostos
de análise diante dos pressupostos do autor. Se não houver distinção provavelmente haverá interferência na
compreensão dos fundamentos básicos da mensagem. Também é possível se estabelecer critérios de
julgamento como originalidade, nova contribuição à exploração do assunto, coerência interna, etc. Todavia,
esta postura considerada objetiva pode estar tão presa à diretriz de uma escola que pode até mesmo impedir a
autocrítica a nos induzir a uma postura crítica inadequada em relação ao assunto e o autor. O esforço da
autocrítica nos permite perceber os limites da certeza da nossa interpretação como também possibilita
prestar maior atenção aos argumentos apresentados pelo autor. Deste modo, ficamos sensíveis à
demonstração da verdade e o exercício da sua busca se torna o sentido do nosso estudo e trabalho
acadêmicos.
d) Problematização - Para termos certeza da compreensão do que foi lido nada mais indicativo do que o
levantamento dos problemas do texto. Esse esforço nos faz rever todo o texto dando-nos elementos para a
reflexão pessoal e debate em grupo.

1.2 O trabalho da crítica do pensamento - Marilena Chauí

Normalmente se imagina que a crítica permite opor um pensamento verdadeiro a um pensamento a


falso. Na verdade, a crítica não é isso. Não é um conjunto de conteúdos verdadeiros que se oporia a um
conjunto de conteúdos falsos. A crítica é um trabalho intelectual com a finalidade de explicitar o conteúdo de
um pensamento qualquer, de um discurso qualquer, para encontrar o que está sendo silenciado por esse
pensamento ou por esse discurso. O que interessa para a crítica não é o que está explicitamente pensado,
explicitamente dito, mas exatamente aquilo que não está sendo dito e que, muitas vezes, nem sequer está
sendo pensado de uma maneira consciente. Ou seja, a tarefa da crítica é fazer falar o silêncio, colocar em
movimento um pensamento que possa desvendar todo o silêncio contido em outros pensamentos, em outros
discursos.
Qual é a finalidade de fazer falar o silêncio ou, tornar explícito o implícito? Essa finalidade é dupla.
Se quando explicito um pensamento ou um discurso, fazendo aparecer tudo aquilo que estava em silêncio,
tudo aquilo que estava implícito, se ao fazer isso, o pensamento ou discurso que estou examinando se revela
insustentável, se começa a desmanchar, se dissolver, se destruir à medida que vou explicitando tudo que nele
havia, mas que ele não dizia, então a crítica encontrou algo muito preciso, encontrou a IDEOLOGIA. A
ideologia é exatamente aquele tipo de discurso, aquele tipo de pensamento que contém um silêncio, que se
for dito, destrói a coerência, a lógica do discurso.
Mas, esse trabalho crítico pode encontrar uma outra coisa também. É perfeitamente possível que ao fazer
falar o silêncio de um pensamento ou de um discurso, ao explicitar o seu implícito, o que se revele para nós
seja um pensamento ainda mais rico do que havíamos imaginado, ainda mais coerente do que havíamos
imaginado, ainda mais importante, capaz de nos dar pistas para pensar caminhos novos, justamente porque
pudemos perceber muito mais do que o que parecia à primeira vista estar contido nele. Nesse caso, a crítica
encontrou um pensamento verdadeiro e, mais do que um pensamento verdadeiro, encontrou uma obra de
pensamento propriamente dita. Ou seja, o que diferencia uma obra de pensamento de uma ideologia é o fato
que , na obra de pensamento, a descoberta de tudo o que estava silenciosamente contido nela, de tudo aquilo
que nela pedia interpretações, de tudo aquilo que nela pedia revelação, explicitação, desdobramento revela
novas e grandes possibilidades compreensivas, diferentemente acontece em uma ideologia quando a
revelação daquilo que se escondia implica na destruição do próprio pensamento.
Assim, a tarefa da crítica não é trazer verdade para se opor à falsidade; mas realizar um trabalho
interpretativo com relação a pensamentos e discursos dados, para explicitar o implícito ou fazer falar seu
silêncio, de tal modo que a abertura de um novo campo de pensamento através da crítica revela a descoberta
de uma obra de pensamento, enquanto a destruição da coerência e da lógica do que foi explicitado revela que
descobrimos uma ideologia.
A crítica não é, portanto, um conjunto de conteúdos verdadeiros, mas uma forma de trabalhar. A forma de
um trabalho intelectual que é o trabalho filosófico por excelência. Nesse sentido, excluir a filosofia de uma
universidade é, provavelmente, abolir o lugar privilegiado da realização da crítica. Obviamente, tem-se medo
da crítica, pois se a crítica não traz conteúdos prévios, mas é descoberta de conteúdos escondidos, então ela é
muito perigosa...

MARILENA CHAUÍ - O Papel da Filosofia na Universidade - Cadernos SEAF - nº 1

1.3 Os limites da opinião - François Chatelêt

...Começar a filosofar é, de início, colocar em questão não só o conteúdo diverso das opiniões - estas
fazem aparecer suas contradições de modo tão prático que se arruínam por si mesmas - como também o
estatuto de uma experiência que acredita que opinar é saber, e que é suficiente estar certo para pretender
ser verdadeiro. A opinião - a doxa - como o prova todo o exercício da democracia, não se considera como
tal; ela reivindica a verdade, pretende saber a realidade tal qual é. Em outras palavras, está certa de si. E
quando se choca com a certeza igual do outro, ela se espanta, indigna-se e entra na discussão com o
sentimento de que a contestação que lhe é oposta é irrisória e que dela triunfará facilmente. De fato, no
decorrer do debate ela se fecha sobre si mesma e permanece surda à argumentação adversa. O diálogo é
apenas aparente: dois monólogos se desenvolvem paralelamente. Ora, nestas condições, quando a discussão
tem o objetivo de definir uma ação comum, quem vai decidir entre interlocutores que recusam se
compreender? Quem vai decidir quando, na assembléia dois oradores defendem pontos de vista
diametralmente opostos? A maioria? Sabe-se que todos os que participam de uma determinada reunião estão
psicologicamente no estado de certeza: aliam-se a uma tese ou a outra, ou a uma terceira que não foi exposta,
votam em função de suas opiniões, que elevam ao nível do saber, e que, na realidade, não passam de
expressões de seus interesses e paixões.
...Assim, o primeiro momento da filosofia - que se opõe no caminho da eventual ‘sabedoria’ - consiste em
‘psicanalisar’ a opinião, em revelar-lhe a consciência errônea que tem de si mesma.
A opinião se apóia em que? Quais são os seus argumentos? Quer se alimente da tradição, quer esteja
preparada pelo ‘ensino novo’, ela invoca, para sustentar seus raciocínios, o que ela chama de fatos. Utiliza a
técnica dos exemplos. Extrai seus exemplos sem discernimento, ao acaso, da literatura edificante, do lado
mítico, da história, da vida cotidiana. Ela pretende estar fundada no ‘real’ e, para ela, o real é o que ela vê,
o que constata na percepção, o que experimenta na experiência. Construída com material tão frágil, ela
confia às palavras o que acredita ser o desenvolvimento do pensamento: não se dá conta do caráter
convencional da linguagem e do fato que esta só vale quando traduz um conhecimento verdadeiro. Constrói
assim discursos que enfeixam em uma falsa unidade, a disparidade de sua experiência; não sabendo como
as palavras devem ser empregadas, ela as utiliza, certamente, para merecer as inconstâncias, as contradições
de seus julgamentos.
Na realidade, o que a opinião ignora é que ela considera o que é dado na parcialidade de suas perspectivas
como a totalidade do real. Com exemplos ela inventa fatos, quando na verdade constitui seus exemplos de
modo contingente a partir da casualidade de seus encontros empíricos e dos interesses suscitados por seus
desejos e suas paixões... o que ela chama de real, é o imaginário por ela elaborado a partir dos fragmentos
de realidade que sua percepção obscurecida deixa subsistir.
A natureza da doxa - da opinião - torna-se rapidamente manifesta: acredita-se segura de si e no momento
em que obrigamo-la a se exprimir ela desenvolve com igual certeza temas contraditórios; a inconseqüência
de seus modos de raciocínio se evidencia: ora ela se prevalece de sua experiência, ora se abandona ao
fascínio dos belos discursos; ora emprega exemplos sobre os quais não refletiu, ora reflete sobre palavras
sob as quais não pode colocar nenhum fato.

1.4 As crenças em que vivemos:

A circunstância e sua interpretação - L. Hegemberger

O homem, como o animal, está cercado pelas coisas. Está numa circunstância, isto que o rodeia, o
primariamente dado. Todavia, enquanto o animal se submete à natureza, o homem aprendeu a discernir, no
que o cerca, aquilo que lhe causa mágoa e terror daquilo que lhe agrada e é útil. Aprendeu a usar os objetos
para adaptar-se (comunicar-se) às circunstâncias ou para modificá-las, tornando-as mais acolhedoras e
agradáveis. O caos se altera: sobre o enigmático dado primitivo, constrói-se um mundo, isto é, uma
circunstância dotada de interpretação. O homem altera o meio, dá-lhe contornos e organização, transforma-o
em mundo, local em que se pode viver com maior ou menor facilidade porque muitas coisas já não são
misteriosas, mas úteis ou inúteis, atraentes ou repugnantes.
Nasce o homem num mundo, numa circunstância interpretada, e passa a contar com os objetos que
encontra, segundo a interpretação vigente. Contamos com essa que é uma das mais elementares relações que
mantemos com as coisas. Contamos com a existência da rua, quando abrimos a porta de casa para irmos à
escola ou ao trabalho. Contamos com o lugar que vimos ontem, as pedras, as casas e as árvores. Prova disso
é a surpresa que provocaria a ausência da rua, o deslocamento das árvores ou o desaparecimento das casas,
no momento em que abríssemos a porta. Há em nosso comportamento, um objeto, alvo de nossa atenção.
Atrás dele, sem que tenhamos nítida consciência há um sistema sui-generis de relações, em virtude do qual
os objetos do contorno se vinculam aos objetos de nossa atenção: contamos com eles, acreditamos que se
comportam dessa ou daquela maneira, segundo a interpretação em que nascemos.
Formam-se assim, as crenças. Individuais, de grupos sociais, nacionais ou mesmo de gerações. Menos
firmes aquelas, mais firmes estas, formando o alicerce sobre o que se assentam novas crenças. Estas novas
crenças acompanharão o homem e se transformarão, com maior ou menor dificuldade, no decorrer do tempo,
constituindo os vários mundos que se sucedem na história.
O homem encontra, ao nascer, um sistema de crenças. Habitua-se a elas. Conta com as coisas e vive a
interpretação que lhes entregam os pais, mestres, amigos e antepassados. Vai, simplesmente, vivendo. Há
momentos, porém, em que as crenças se tornam problemáticas. Nosso estar-na-circunstância (que não é
simples estar, mas estar e contar com uma interpretação) torna-se instável. Vem a dúvida, um não saber a que
se ater, decorrência do choque de crenças antagônicas. Há que decidir. E então pensamos: O homem possui
esta especial capacidade de afastar-se provisoriamente das crenças em conflito, sopesá-las para decidir a qual
delas emprestará a sua adesão - já que é suplício admitir crenças contraditórias. Enquanto crê, o homem não
precisa pensar. É a incerteza que o obriga a meditar. Quando não sabe o que fazer com as suas crenças, o
homem pensa, tentando devolver ordem à circunstância que se fez problema, para torná-la, de novo estável e
segura. Eis, pois, um modo de conceber o que seja pensar: um método de que se vale o homem para tornar
efetivo o seu ajuste intelectual com o contorno. L. Hegemberger

1.5 A noção de obstáculo epistemológico

No livro A Formação do Espírito Cientifico, apud Leda Miranda Huhne, Bachelard, chama a atenção para a
impossibilidade de se fazer ciência sem previamente se criticar o modo de se conhecer.
É à luz dos obstáculos epistemológicos que se pode perceber as forças psíquicas que atuam no processo de
elaboração do mundo do objeto científico.
1. A questão dos obstáculos
“Ao procurarmos as condições psicológicas dos progressos da ciência, logo chegaremos à convicção
de que o problema do conhecimento deve ser colocado em termos de obstáculos. Não se trata, contudo, de
considerar os obstáculos externos, tais como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de
incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no interior do próprio ato de conhecer que
aparecem, por uma espécie de necessidade funcional, retardos e perturbações. É aí que mostraremos as
causas da estagnação e mesmo regressão. É aí que desvendaremos causas da inércia que chamamos de
obstáculos epistemológicos. O conhecimento do real é uma luz que sempre projeta sombras em algum lugar.
Ele nunca é imediatista e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é o que poderíamos
acreditar , é sempre o que deveríamos ter pensado. O pensamento empírico só é claro depois que o
aparelho das razões foi aperfeiçoado. Voltando sobre um passado de erros, encontramos a verdade num
verdadeiro arrependimento intelectual. De fato, conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo
conhecimentos mal feitos, superando o que no próprio espírito é um obstáculo para a espiritualização...
Aceder à ciência, rejuvenescer-se espiritualmente, é aceitar uma mutação brusca que deve contradizer um
passado.

1. Ciência e Opinião

(...) tanto em sua necessidade de acabamento quanto em seu principio, a ciência opõe-se
radicalmente à opinião. Se, em algum ponto particular, ela legitima a opinião é por razões diferentes
daquelas que fundam a opinião; sendo assim, de direito, a opinião está sempre errada. A opinião pensa mal;
ela não pensa: ela traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos por sua utilidade, ela se
impede de conhecê-los. Nada pode fundamentar-se em opiniões: primeiramente é necessário destruí-las. É o
primeiro obstáculo a ultrapassar. Não bastaria, por exemplo, retificá-la em alguns pontos. O espírito
científico nos proíbe de ter uma opinião sobre questões que não sabemos formular claramente. Antes de mais
nada, é preciso saber colocar o problema; na vida científica os problemas não se colocam por si mesmos.
Esta capacidade de colocar o problema é precisamente a marca do espírito científico. Para um espírito
científico, todo conhecimento é uma resposta a uma questão. Se não houve questão, não pode haver
conhecimento cientifico. Nada é óbvio, nada é dado, tudo é construído.

2. O obstáculo epistemológico e a prática da educação

“Muitas vezes me surpreendi com o fato de que os professores de ciências, se possível mais que os
outros, não compreendem que não se compreenda. São poucos numerosos os que aprofundam a psicologia
do erro, da ignorância, da irreflexão. Os professores de ciências imaginam que o espírito começa com uma
lição, que sempre se pode reformular uma cultura descuidada repetindo uma aula, que se pode fazer
compreender uma demonstração repetindo-a ponto por ponto. Eles não refletiram que o adolescente chega
às aulas de física com conhecimentos empíricos já constituídos, não se trata então de adquirir uma cultura
experimental e sim de mudar de cultura experimental, de derrubar obstáculos amontoados pela vida
cotidiana.
Em único exemplo, sobre o equilíbrio dos corpos flutuantes, o modo comum de seu entendimento
é objeto de uma intuição familiar que congrega uma cadeia de erros. De modo mais ou menos claro, atribui-
se uma atividade ao corpo que flutua, melhor ainda, ao corpo que nada. Se se tenta com a mão afundar um
pedaço de madeira na água, ele resiste. Não é fácil atribuir à resistência da água a sua causa. Portanto, é
bastante difícil fazer compreender o princípio de Arquimedes em sua espantosa simplicidade matemática
sem antes criticar e desorganizar o impuro complexo das intuições primeiras. Sem esta psicanálise de erros
iniciais, nunca se fará compreender que o corpo que emerge e o corpo submerso obedecem à mesma lei.
Assim, toda cultura deve começar por uma catarse intelectual e afetiva. Resta em seguida a tarefa mais
difícil: colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e
estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, enfim,
fornecer à razão razões para evoluir... De uma maneira mais precisa, revelar os obstáculos epistemológicos é
contribuir para fundar os rudimentos de uma análise da razão.”

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