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Capítulo 12

Os FESTIVAIS DA CANÇÃO COMO


EVENTOS DE OPOSIÇÃO AO
REGIME MILITAR BRASILEIRO
( 1966- 1968)

Marcos Napolitano *

Na segunda metade dos anos 60, o Long Playing (LP) foi o suporte téc­
nico que permitia consolidar um elenco fixo de compositores/intérpretes
(cuja realização comercial era mais garantida do que a antiga fragmentação de
intérpretes dependentes de criadores). Por outro lado, os programas musicais
da TV, sobretudo os festivais da canção da TV Record de São Paulo, foram os
veículos apropriados para testar os novos artistas e suas obras, perante um pií
blico ainda difuso e pouco segmentado, sem preferências completamente ma
peadas e delimitadas. Entre os estilos de canção mais importantes para a re
novação da cena musical brasileira e latino-americana, naquele contexto, des­
tacou-se a canção engajada1 que no Brasil confundiu-se com a sigla MPB
(Música Popular Brasileira).
A “era dos festivais” conheceu um enorme incremento em fins de 1966,
com o grande sucesso popular ocorrido em função do II Festival de MPB da
TV Record. Mas a fórmula televisual do festival da canção surgiu na TV bra­
sileira no ano anterior. Em 1965, a TV Excelsior tentou capitalizar parte do in­
teresse renovado por música brasileira e organizou um festival pioneiro. Já em
1966, a cidade do Rio de Janeiro tentava se reciclar, para retomar o título de
“capital” da música popular, patrocinando o Festival Internacional da Canção.*1

* Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.


1 Para uma análise comparativa e tipológica da canção engajada latino-americana ver
a comunicação de Ernesto Donas, Problematiztmdo la cancion popular..., apresenta­
da no V Congresso da IASPM-Latin America (wrvw.unirio.br/mpb/iaspmla2004).

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Mas as maiores expectativas ficaram por conta do III Festival da MPB da Re-
cord, anunciado como uma verdadeira “ofensiva” contra a Jovem Guarda e
como tal conseguiu atrair não só o interesse dos grandes criadores, como aca­
bou lançando novos astros.
Inspirando-se no Festival da Canção de San Remo,234o produtor de TV
Solano Ribeiro pretendia consolidar São Paulo como a nova “capital” da mú­
sica brasileira, reagindo à famosa frase de Vinícius de Moraes que havia qua­
lificado a cidade como “o túmulo do Samba”. Percebendo o crescente interes­
se por música brasileira, sobretudo no meio universitário e tendo o espaço
aberto pelo sucesso dos programas musicais da TV Record, Solano Ribeiro
conseguiu realizar o I Festival de MPB, ainda na TV Excelsior,' em mar-
ço/abril de 1965.
Neste festival, Elis Regina confirmaria seu estrelato, ganhando o pri­
meiro prêmio do I Festival Nacional de Música Poptdar, organizado pela TV
Excelsior, que inaugurou o ciclo de festivais da canção. A música ganhadora,
Arrastão, da parceria Edu Lobo e Vinícius de Moraes, logo se transformaria
num paradigma de criação para futuros festivais/ A letra de Vinícius dava se-
qüência à temática “popular”, apontando a união dos pescadores para vencer
as dificuldades de sobrevivência, com citação ao sincretismo religioso subme­
tido a um uso “consciente” e cheio de vitalidade.
Em outubro de 1966, uma nova surpresa tomou conta do panorama
musical brasileiro. O II Festival de MPB da TV Record superou todas as ex-

2 O Festival de San Remo, realizado anualmente na cidade italiana homônima,


surgiu em 1951 e se consagrou nos anos 60 como a grande ponta de lança da indús­
tria fonográfica italiana, ao mesmo tempo que se tornou um importante evento
televisivo. GIANOTTI, M. San Remo: fermate quell’ festival. Firenze: Tarab, 1988.
3 A TV Excelsior de São Paulo foi ii.augurada em 1961,, propriedade do Grupo Si-
monsen. Tinha uma proposta ousada nas áreas de jornalismo e dramaturgia, tendo
algum destaque na área de música. Foi à falência em 1969.
4 Reforçamos o alerta de Arnaldo Contier, que sugere uma maior atenção das futuras
pesquisas em relação ao problema das “parcerias” na música popular. A “parceria”
de letristas e músicos é elemento fundamental para entender as contradições e
articulações das diversas possibilidades que formam o cancioneiro e implicam o
éntrecruzamento de diversas séries culturais, ideológicas e históricas, reunidas em
uma só canção. CONTIER, A. Edu Lobo e Carlos Lyra... Revista Brasileira de
História, São Paulo: ANPUH, 35, p. 47, 1998.

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pectativas de público c consagrou um novo panteão tic cantores populares.


Num momento em que se prenunciava o esgotamento da MPB renovada,
dado o avanço da Jovem Guarda, o Festival surpreendeu a-todos, renovando o
fôlego criativo e comercial desta corrente.
Na TV Record o projeto do festival recebeu novos estímulos que cs
tão na base do seu grande sucesso popular. A emissora possuía um “casi" de
primeira grandeza e exigia, sob contrato, que os intérpretes fizessem parle
do seu elenco. Desde 1965, seus três principais programas musicais ()
Fino da Bossa, Bossaudade e o Jovem Guarda - abarcavam as lies faixas de
público mais importantes, garantindo uma faixa grande tie Iclcspci tatlores
O II Festival de MPB, mesmo dirigindo-se a um público consumidoi da
corrente “engajada e nacionalista”, deveria reunir o máximo <l< itp n .cn
tantes de todas as tendências musicais e de gosto popular Ale , .miou . di
Jovem Guarda eram aceitos (desde que não defendessem as >anipiex i,I< n 11
ficadas com o Iêiêiê). .
Sob o patrocínio do sabão Super Viva, além tio apoio (list n to >la Pie
feitura Municipal de São Paulo, a TV Record marcou o seu Festival de MPB
para o mês de setembro de 1966, dando-lhe o nome de “II Festival” poi duas
razões: tanto por considerar um festival obscuro, realizado em I960 pela
emissora, como o “primeiro” festival de MPB da televisão, quanto para suge
rir uma continuidade com o festival de MPB do ano anterior, realizado pela
TV Excelsior. A estrutura básica, que sç repetiria até o fim dos festivais da Re
cord (em 1969) era simples: 3 eliminatórias e 1 finalíssima, todas realizadas
em São Paulo.
No festival de MPB de 1966, a platéia se entusiasmou com as duas ven
cedoras, A Banda e Disparada. Num impressionante espetáculo de comunhão
artista-platéia, que talvez não tenha nunca mais se repetido durante o eido
histórico dos festivais de MPB (à exceção da apresentação de Caminhando no
FIC de 1968)’, Disparada foi atenciosamente ouvida por um público que pare
cia hipnotizado, como se pode ver pelos freqüentes closes da câmera. A perfor­
mance de Jair Rodrigues, numa interpretação enfática e expressiva, quase so
lene, experimentou o maior momento de sua carreira. Quando ele cantou o
trecho: “Então não pude seguir/valente lugar tenente/de dono de gado e gente/
porque gado a gente marca/tange,ferra,engorda e mata/ mas com gente é diferen­
t e ...”, o público irrompeu em palmas e saudações. O Quarteto Novo, compe-

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tente grupo instrumental,56ostentando traje de gala como a ocasião exigia, for­


neceu uma base instrumental sólida, pungente e exortativa ao mesmo tempo.1'
O gestual de Jair Rodrigues, erguendo os braços para o alto, reforçando o ca­
ráter de comício sugerido pelas performances das canções engajadas, dava con­
tinuidade à tradição de gestual contundente, tal como Elis Regina em Arras­
tão. Ambos cantores marcaram a performance televisual dos festivais, marca­
da por uma forte expressividade, que em alguns momentos até beirava o his­
triónico. Outros consagrados do evento, que catalisaram a audiência engaja­
da, foram Chico Buarque e Geraldo Vandré. Eles sintetizavam a curiosa situa­
ção histórica da MPB nascente dos anos 60, na qual idolatria pop e engaja­
mento político pareciam se combinar. A mística dos seus astros, forjada no cli­
ma exaltado das platéias do Fino da Bossa já anunciava esta ambigüidade. Sua
identidade estava lastreada numa determinada performance de palco e platéia
que mimetizava a efervescência estudantil, ethos originário da MPB renovada.
Do ponto de vista da indústria cultural, foram os festivais, sobretudo trs
festivais da TV Record, que consolidaram o esquema que articulava estratégias
de promoção e divulgação dos artistas com hábitos de escuta de um público
ainda ligado às apresentações ao vivo. Havia uma espécie de “performance
compartilhada”78entre artistas e públicos que foi a base dos primeiros festivais,
mas que se perdeu na medida em que a própria indústria televisual se trans­
formava. A partir de 1968, um novo público ocupava os auditórios dos festi­
vais, forjado dentro de uma outra mediabilidade.“ O equilíbrio entre o “fó-

5 Formado por Theo de Barros, Heraldo do Monte, Airto Moreira e Hermeto


Paschoal.
6 Além disso, a apresentação desta canção proporcionou uma cena síntese das con­
tradições do período: O percussionista do Quarteto, vestido com smoking per­
cutindo uma queixada de burro. Uma imagem contrastante, que a alegoria tropi-
calista tanto irá explorar. Imagem síntese de um evento televisivo, que oscilava
entre a pompa de um concerto e o entusiasmo de um programa de auditório.
7 EYERMAN, R. et al. Social Movements and cultural transformations: popular
music in the 1960’s. Media, Culture and Society, 17/3, p. 458, July 1995.
8 O conceito de mediabilidade (mediability) é importante para averiguar a forma que
um determinado público assimila os produtos culturais. Não que as mediações
estejam ausentes de uma apresentação ao vivo de música, por exemplo, mas o
incremento técnico e social das mídias, que explodiu no final dos anos 60 criou um
novo patamar de mediabilidade, inseparável da cultura “jovem” que se formou em
torno da música popular. No Brasil, o Tropicalismo foi, em parte, fruto desta

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rum” e a “feira”, que entre 1966 e 1967 amda se mantinha, já pendia totalmcii
te para o segundo termo no final da década. No contexto específico cm qucs
tão, quando parte das expectativas políticas da resistência civil ao regime con
vergiam para a MPB, este processo decretou o fim dos festivais.
Geraldo Vandré, um dos compositores de Disparada autodefinia o papel
da canção no panorama da MPB renovada, dentro da linha de “comunicabili
dade” defendida pelo manifesto do Centro Popular de Cultura da UNÍ., de
1962: “Depois da fase de nordestinização onde são muito importantes l du lobo e
Sérgio Ricardo, tem a fase de ‘Disparada’ que acho fundamental: abre uma pers
pectiva para a moda de viola do centro-sul do Brasil. Toda manifestação de >iiliu
ra nacional que não tem apoio na classe média urbana, a qual se defende e (ac ea
1er suas razões, não tem condições de afirmação dentro da mentalidade mu ional
A moda de viola é a mais proletária destas manifestações. 'Disparada' i/uebiim
esse preconceito da classe média, não pela pobreza harmônica ou poelii a i ... I we
nifica a única forma de cantar de 60% a 70% da população brasileira. populäres
rurais dos estados de Mato Grosso, Goiás, Minas, Paraná, Santa ( atarina e Um
Grande do Sul. ‘Disparada’ é por assim dizer, uma filha de ‘Matraga. /\ primeira
experiência que fiz com a música do Centro-sul foi justamente pra ‘Matraga"'.'
Chico Buarque de Hollanda, já em 1966, despontava como um grande
“vendedor” de canções no Brasil, ao lado de Roberto Carlos e Elis Regina. Ao
mesmo tempo que se tornava um dos nomes mais populares da “era dos fés
tivais”, rompendo os limites do circuito musical da MPB engajada, ampliando
efetivamente o público consumidor de musica brasileira. “Emerso no centro da
década de 60, Chico nada tinha a ver com as correntes típicas desses anos. Seu
ponto de partida formal era João Gilberto (no manejo do violão e na colocação
da voz) mas seu objeto era a canção-vivência, esquadrinhada por pioneiros como
Noel Rosa e Ismael Silva, mas sem continuidade desde o alastramento desbraga­
do da paixão pelos boleros e sambas-canções das décadas de 40 e 50 e desde a es­
quematização dos conteúdos passionais empreendida pela Bossa Nova ( ...) Es­
banjava habilidade e vocação numa época em que o mercado cultural ainda mio9

tendência. Ver EYERMAN, 1995, p. 454; RODNITZKY, J. Popular Music as politics


and protest. In: B1NDAS, K. (Ed.). America’s musical pulse. [Westport, Conn.:
Greenwood Press, 1992]. p. 3-12.
9 Depoimento de G. Vandré. MELLO, J. E. Homem de. Música popular brasileira. São
Paulo: Edusp, 1976. p. 128.

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estava totalmente planejado e nem se ■«ahia, ao certo, o alcance da televisão na


formação dos artistas”.'"
A obra inicial de Chico proporcionou o encontro de duas temporalida­
des instituintes da história da MPB: os anos 30 e os anos 60. Esse reencontro
de temporalidades explicava em parte o caráter nostálgico e melancólico de
seus primeiros sucessos, que tiveram uma enorme receptividade popular. Suas
canções eram marcadas por duas temáticas básicas: O retorno das narrativas
das vivências cotidianas e espaços sociais “populares”, tradição iniciada nos
anos 30; a problematização do lugar social da canção no Brasil, enfatizando a
fugacidade do ato de cantar e os limites da música como amálgama de uma
consciência social mais efetiva.
As duas canções - Banda e disparada - foram apontadas pela crítica da
época como as responsáveis pela “ofensiva” da MPB em seu salto de populari­
dade, detonado pelo II Festival da TV Record. As cifras são impressionantes:
A Banda, por Chico Buarque, vendeu 50 mil compactos e 10 mil Lps,11 só em.
São Paulo, números consideráveis para a época, sendo'que estes números in­
dicam as vendas realizadas apenas durante o festival. O compacto gravado por
Nara Leão, pela Philips, vendeu 100 mil cópias em uma semana. No Rio de Ja­
neiro o impacto foi semelhante.101213Em relaçfm a Disparada, o sucesso foi seme­
lhante, embora apresentando cifras mais reduzidas."
Se Elis Regina ampliou o público de música brasileira, na medida em
que “atualizava” alguns parâmetros tradicionais de interpretação musical
(lembremos que sua grande inspiradora foi Ângela Maria), Chico desempe­
nhava um outro papel neste processo: “atualizava” os parâmetros estruturais
do samba “noelesco”, uma vertente até então negligenciada pela Bossa Nova.14

10 TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. [São Paulo: Edusp, 2002],


p. 233.
11 lonial da Tarde, p. 8, 18 out. 1966.
12 Procura da ‘Banda’ foi tão intensa que esgotou estoques de algumas lojas. JB, p. 10,
14 out. 1966.
13 “Disparada” vende tudo num dia. Jornal da Tarde, p. 11, 24 out. 1966.
14 Os músicos de Bossa Nova/BN estavam mais próximos de Ary Barroso, Dorival
Caymmi e, no caso de João Gilberto, das sincopas de Geraldo Pereira. Os contornos
melódicos de Noël, mais sinuosos, à base de frases mais longas, e suas crônicas
poéticas, à base de narrativas rebuscadas, não chegaram a ser, estruturalmente,
exploradas pela BN.

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Não foi por coincidência que ambos foram muito bem recebidos por faixas
mais amplas do público, que até então talvez não consumissem .1 “moderna"
MPB. Elis e Chico, por caminhos diferentes, ampliaram o campo de penetra
ção social cia MPB, tornando-a definitivamente um sucesso popularizado que
rompia os limites do público estritamente jovem e universitário.
Após o II Festival de MPB da TV Record, duas novas personalidades
criativas se afirmavam para o grande público: Chico Buarque de I lollanda e
Geraldo Vandré. Entre 1966 e 1968, estes dois compositores/intérpretcs estive
ram no centro dos eventos festivalescos e suas trajetórias são expressões fim
damentais acerca das mudanças que o mercado fonográfico passava, ciilmi
nando na institucionalização da MPB como carro-chefe da moderna indiisti ia
fonográfica brasileira. Chico Buarque logo se tornou um “ídolo de massas",
cujo consumo de imagem potencializava a aceitação popular do seu lalenlo
Para Vandré, o sucesso e a aceitação do público nunca foi linear e ...........agem
pessoal não muito assimilável pela mídia televisual. Se Elis Regina deu o pi 1
meiro grande salto de popularidade para a MPB, Vandré e Chico podem sei
considerados como os consolidadores desta popularidade.

No plano político-cultural, até 1966, Nara Leão era o grande referencial


musical da resistência cultural ao regime As polêmicas declarações de Nara
Leão contra o Exército brasileiro, no jornal Diário de Notícias em maio de
1966, podem ser vistas como o auge da sua “militância”, percebida pela sele
ção de repertório para os álbuns O canto livre de Nara (Philips, 1965), Nara
Pede passagem (Philips, 1966'), Manhã de Liberdade (Philips, 1967). Apesar dos
repertórios serem pautados por sambas e gêneros nordestinos de temática so
ciai o tratamento irá variar de álbum para álbum: por exemplo, no LP de 1966,
predominam os timbres de “morro”, numa clara referência ao estilo do espe
táculo “Rosas de Ouro”. Já no álbum de 1967, os arranjos são extremamente
elaborados, com exploração de contrapontos em timbres de madeira que pa­
recem voltar ao paradigma BN. Por esta riqueza de repertório e tratamento, a
obra de Nara Leão é uma síntese das questões em jogo nos anos 60 e merece
um estudo à parte. Mas, a partir de Disparada, Geraldo Vandré se tornou o 1

músico brasileiro mais identificado com a versão brasileira da “canção de pro


testo”. Esta mudança de referencial foi causa e efeito da grande popularização
da MPB, entre fins de 1966 e 1968, cuja demanda requeria canções mais dire
tas e exortativas, inspiradas nas formas musicais anteriores à BN. Enquanto

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Nara Leão e Edu Lobo seguiam sendo referências importantes para o público
nascido em torno da BN, nomes como Elis Regina, Geraldo Vandré e mesmo
Chico Buarque se ligavam a outras tradições, de maior aceitação entre os seg­
mentos mais amplos da classe média que passou a se constituir como o públi­
co televisual por excelência.
O triunfalismo em torno da MPB tomou conta da imprensa e assumiu
ares de “resistência” ao regime militar. Por exemplo, o Jornal do Brasil escre­
veu: “A noite de 10/10/1966 entrou para a história da música popular brasileira
não apenas como a consagração de Chico Buarque ou das duplas Geraldo Van­
dré e Theo de Barros ( ...) mas como a volta da canção ao povo. Ninguém pode­
ria imãginar que três horas mais tarde, numa noite fria e chuvosa, o povo daria
tia rua a sua resposta ao pessimismo que dominava os meios musicais desde que
o público do Fino da Bossa desapareceu do Teatro Record para dar lugar à pla­
téia da Jovem Guarda ( ...) A grande vitória daquela noite não era dos autores
premiados, mas do compositor brasileiro que afirmava a força de sua música jus­
tamente no lugar onde surgiu a ameaçadora onda do Iêiêiê”.1516
O mesmo tom épico pode se notar na Folha de S. Paulo que destacou a
“proeza” realizada por uma marcha rancho e uma moda de viola: ser mais po­
pulares que o Iêiêiê."' O entusiasmo da imprensa liberal, já bem menos empol­
gada com os militares no poder, com os festivais tinha um pano de fundo bem
delimitado. O recrudescimento das lutas estudantis (setembro de 1966) e o
lançamento da Frente Ampla (06 de outubro), cujo manifesto era assinado por
Carlos Lacerda e Juscelino Kubitscheck, incrementavam o clima de oposicio-
nismo na sociedade civil. O destaque da imprensa não pode ser visto como
um simples registro jornalístico. O elogio à vitória da MPB contra o Iêiêiê, le­
vando-se em conta toda a carga ideológica deste embate, ocorre num momen­
to de afastamento da corrente liberal, hegemônica nos jornais do eixo Rio-São
Paulo, em relação aó regime militar. Por volta de 1966, setores liberais se afas­
taram do apoio incondicional ao governo Castelo Branco, tido como respon­
sável pela recessão econômica. Além disso, o AI-2 e o AI-3, aos olhos dos libe­
rais antes entusiastas do golpe, pareciam aprofundar o regime político “de ex-

15 lornal do Brasil, p. 5, 12 out. 1996.


16 Música brasileira ganhou do iêiêiê. Folha de S. Paulo, 11 out. 1966.

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ceção”, afastando os civis da disputa pelo poder, pelo menos a médio prazo. A
MPB, naquele contexto, galvanizou um conjunto difuso de expectativas da so
ciedade civil, passando a concentrar as atenções de uma “cultura de oposição"
que, timidamente, começava a se formar também em setores da imprensa li
beral.17 O triunfo da MPB era, num certo sentido, o triunfo do “povo n.iç.m",
símbolo da resistência política, que ressurgia nos discursos apologeli. o . •la
imprensa e de alguns intelectuais de oposição. O triunfo da MPB eia lambi in
a materialização da articulação entre as falas dos intelectuais e do "povo",. a
tegorias que deram sentido ao imaginário político entre 1961 e I9<>8.
Neste contexto, o II Festival de MPB da TV Record de 1*•>(><> loi af.ado
à condição de uma esfera pública não oficial, amplificada pelo caratei lelevi
suai do evento. Nesta “esfera pública”,18 o “povo”, simbolicamente, voltava a
manifestar num contexto de repolitização geral da sociedade, triunfando nas
canções de MPB que eram vistas como expressão de sua própria vo/,. Este ima
ginário parece estar por trás das matérias jornalísticas sobre os festivais (ate
1968, pelo menos). Mas a relação entre imprensa e festivais, não estava isenta
de tensões. Por vezes, a imprensa era também o espaço de expressão dos inte
resses da indústria fonográfica e televisual que procurava formar critérios de
apreciação e julgamento estético, conforme o tipo de oferta que lhe era mais
interessante.19
O crítico do Jornal do Brasil, José Carlos de Oliveira, assumiu explk i
tamente essa interpretação “sociológica” dos festivais, que se tornou a pritu i
pal lente para enxergar o evento. “Nesses festivais, o povo expressa claranientc
sua paixão pela controvérsia c o seu amor às decisões pelas quais todos sejam res­
ponsáveis. Se não podemos escolher o presidente da República, nos irmanamos

17 Processo semelhante ocorreu na sociedade norte-americana, nos anos 60, com a


diferença que, lá, os motes principais eram os direitos civis, seguidos da luta contra
a Guerra do Vietnã. EYF.RMAN, 1995.
18 Michael Ch-unan analisa a relação entre compositores e público na constituição di­
urna esfera pública na qual as identidades, culturais e políticas, são construídas c
socializadas. CHANAN, M. From Haendel to Hendrix. The composer in the public
sphere. London: Verso, 1999.
19 Nos momentos de reorganização do campo artístico, a legitimação através de ou
tros campos, como o da imprensa, dos intelectuais e do campo político, é decisiva
para a sua definição. BOURDIEU, 1996, p. 233-235.

211
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numa decisão feita de solidariedade’?" Numa clara delimitarão cio lugar social
ocupado pela canção nac]uele contexto, o cronista concluía, afirmando que,
entre todas as “mazelas políticas e econômicas” do Brasil “resta-nos apenas a
esperança de que a qualquer momento a banda volte a passar’?' Apesar de ou­
torgar à música um poder catalisador das expectativas e frustrações coletivas,
é interessante notar que sua argumentação conduzia ao papel dos festivais na
realização da catarse política dos setores derrotados em 1964.
Nos meios mais intelectualizados, ecoados pela imprensa em geral,
construía-se uma perspectiva básica que foi incorporada pela memória social
acerca do período: o triunfo da MPB nos festivais (ou seja, no mercado) era,
ao mesmo tempo, um triunfo político, termômetro da popularização de uma
cultura de resistência civil ao regime militar. Uma extensa reportagem publi­
cada na influente revista Realidade confirmava esta percepção, já esboçada du­
rante o Festival da Reco rd de 1966. Dizia ela: “Nestes oito anos de vida a Bossa
Nova mudou até de nome. Agora é a moderna música popular brasileira-MPB
( ...) Hoje é a própria música popular, influindo e recebendo influências das ma­
nifestações musicais de todas as regiões do Brasil”? 1A análise da revista enfatiza­
va que as empresas do disco “descobriram recentemente” que a MPB pode vi­
rar o jogo em relação ao Iêiêiê, citando alguns dados:

• Sucesso dos três festivais de música brasileira, ocorridos naquele ano;


• Gravação de quase 600 música por mês;
• Aparecimento de dezenas de jovens entre 18 e 25, compondo música de
quantidade e qualidade só comparáveis à primeira fase da BN
( 1958/1962);2'
• Popularidade de astros da nova canção, como Edu Lobo, Chico Buar-
que, Vinícius de Moraes, Nara Leão, Elis Regina, Jair Rodrigues.2013

20 fornal do Brasil, B-3, 27 out. 1966.


21 Ibid.
22 KALIL, N. Nova Escola do Samba. Revista Realidade, ano 1,8, p. 116-125, nov. 1966.
23 Note-se que o ano de 1962 era visto pelos músicos nacionalistas como um marco
na crise da BN, coincidindo com sua assimilação pelo mercado norte-americano,
tornando-a uma subsidiária do jazz. Na época em discussão (1965-1966) havia um
movimento ideológico para recuperar o papel histórico “original” da BN anterior
ao evento do Carnegie Hall.

212
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’tílllh' llllllUU bhHÍh'ilV (/Vftft IVoN)

A reportagem qualificou a MPB como um tipo de música que se preo


cupava com os “problemas políticos, sociais e econômicos do seu tempo", sem
negligenciar os dramas de amor e as angústias pessoais. Neste sentido, ela le
ria atingido o ideal de “fusão” entre as contribuições musicais da BN e os li­
mas e ritmos mais populares. Neste sentido, ela se diferenciava da musica de
“protesto” mais estrito, tipo Opinião: “Achando que novamente u música novii
se repetia, esgotando desta vez todas as formas de se cantar as misérias dii irito
gia fome-seca-nordeste, os jovens compositores se rebelaram. I >isso nau cu a no
sa moderna música popular”.24
Nas entrelinhas, percebe-se o elogio ã um tipo de música que <on-.egmu
fundir apelo comercial e valores políticos, tons intimistas e expressionisl.is,
mensagens épicas e líricas. Essa fusão, ao receber o aval do mercado, consolida
va a vocação de sintetizar popularidade e qualidade, buscada pela Bossa Nova,
sem os apelos considerados “demagógicos” da música de protesto. Nesta pers
pectiva de aparamento das arestas e na diluição de temas mais áridos numa
poética sofisticada e até lírica, nascia a MPB, ungida pelo mercado e pela in
dústria do disco. Estes vetores instituintes se tornaram marcas indeléveis no seu
estatuto estético e ideológico, que duraria até o começo dos anos 80.
O triunfalismo em torno dos festivais e a nova revolução na estrutura
do mercado musical, cujo exemplo mais dramático era o surgimento do supe
rastro Chico Buarque de Hollanda, acabaram incentivando ainda mais a pes
quisa musical que levaria ao rompimento do paradigma estético e ideológico
delimitado pelo nacional-popular da “frente única” musical contra o regime,
galvanizada pela MPB. Não por acaso, esta cultura política também se desgas­
tava como baliza de ação das esquerdas. A tônica na pesquisa musical, mana
do ano de 1967, foi pressionada por dois tipos de preocupação: como evitar as
fórmulas musicais vazias e repetitivas, impostas pelo mercado em expansão; e
como dar conta dos novos impasses ideológicos gerados pela radicalização das
opções políticas por parte de importantes setores da esquerda brasileira, que
adotariam a “guerrilha” como tática principal de luta.
Estas preocupações encontrariam sua ressonância máxima no III 1es
tival de MPB da TV Record em 1967, um evento bem mais planejado, visan

24 KALiL, N. Nova Escola do Samba.’Revista Realidade, ano 1, 8, p. 221, nov. 1966.


I ll/fHlill /Willi .1

do atingir níveis inéditos de audiência, enriquecido pela grande expectativa


em torno da participação dos grandes compositores daquele momento. Os
acontecimentos e as conseqüências culturais e artísticas do grande festival de
1967, ao mesmo tempo em que marcaram o auge de um ciclo histórico, tra­
duziram a faceta mais traumatica das contradições que a realização social da
canção, via mercado, ensejava.
O estrondoso sucesso de público e crítica das duas canções vencedoras
do festival de 1966 e a qualidade reconhecida de outras que foram apresenta­
das, aumentaram ainda mais as pressões e expectativas em torno do III Festi­
val de MPB da TV Record. Mesmo o desprestigiado Festival Internacional da
Canção, organizado pela Rede Globo, aglutinou parte destas expectativas.
As tensões em torno do III Festival da TV Record retiravam-lhe, paula­
tinamente, o caráter de esfera pública, onde se exercitava uma cultura de re­
sistência, sobressaindo a sua faceta mais comercial. O mote da imprensa2526para
o festival de 1967 era a perspectiva de grandes polêmicas, que iam além do já
conhecido embate MPB versus Jovem Guarda: “Um grupo que está muito forte
e, na opinião de todos, obterá boa classificação no festival é o grupo baiano ( ...)
Seu empresário Guilherme Araújo diz com entusiasmo que o grupo vai ‘abafar,
principalmente por introduzir na música brasileira, sons eletrônicos até agora só
conhecidos na música clássica”.*'
A idéia era superar o modelo da “música de festival’’, cuja fórmula con­
sagrada era a música de protesto. O grupo baiano lançou as bases do futuro
tropicalismo que apontava para uma ruptura com os padrões de politização
da canção, portadora da mensagem de resistência política de cunho naciona­
lista. Mas, a vencedora do lendário festival da TV Record de 1967 foi uma
canção identificada com a música engajada, que ainda cantava o “dia-que-
virá” como metáfora da revolução contra o regime: Ponteio, de Edu Lobo, foi
uma unanimidade de crítica e público, num festival marcado pela atitude ou-

25 Diferentemente de 1966, quando o festival só recebeu grande destaque na impren­


sa por ocasião da finalíssima, o III Festival foi notícia mesmo antes de começar,
denotando um papel ativo da imprensa na institucionalização da MPB, não só re­
gistrando os fatos mas estimulando polêmicas e sistematizando posições estéticas e
ideológicas em jogo.
26 “Música popular abre o festival”.

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( 1« / i W í l i l f « ihl i iUI\ih> 1‘lUlll1 th
i <i(i it yjmt' iiilllltii bhilllclh) ( IVôfi /V o W )

sada de Gilberto Gil e Caetano Veloso, cujas canções Domingo no Pan/ne v


Alegria Alegria, cantavam o povo brasileiro e o jovem moderno a partir de
outros valores, mais cotidianos e descompromissados, olhar que diferia da vi
são heróica consagrada pela MPB engajada e nacionalista. Sidney Miller e
Nara Leão defenderam A Estrada e o Violeiro, cuja letra reforçava o imperali
vo ético do cantor em fazer com que a estrada da História mudasse pai a o
sentido da liberdade coletiva. Num momento de estilhaçamento de projetos
culturais, a MPB cantada nos festivais parecia assumir mais dilemas do que
certezas. Roda Viva, de Chico Buarque, instaurando uma certa melancolia
crítica naquele clima de euforia, advertia sobre os dilemas da viria política <•
cultural brasileiras.
O ano de 1966 marcaria uma fase crucial na reorgani/açao do •polo. «F
criação em conflito na cena musical brasileira, coincidindo com a iiise «los
festivais enquanto eventos de oposição ao regime. Enquanto o II Fcsliv.il «m
1966 foi um “balão de ensaio” da TV que “deu certo” e o III Festival em l'K>
um evento bem mais planejado e estruturado "para dar certo", o IV Festival «la
TV Record foi o evento que acirrou a percepção da crise da fórmula festiva
lesca. Ao mesmo tempo, este festival veiculava novas estratégias promocionais
e comerciais, inusitadas para os padrões da MPB. Em 1968 foram realizados
nada menos do que oito festivais, indicando dois fenômenos: a segmentação
do mercado musical, que colocava em cheque o paradigma então estabele«. i
do de MPB e a aceleração da “roda viva” da indústria cultural, cada vez mais
exigindo um encurtamento do ciclo de realização social das canções. Este ul
timo aspecto acabaria por detonar uma verdadeira crise de criação, sobretudo
entre os artistas engajados, antes mesmo do fechamento político do regime
militar. Mas se a indústria cultural acelerava sua dinâmica de produção, a con­
juntura política não ficava muito atrás, transformando o ano de 1968 num
“furacão” de acontecimentos políticos e culturais. A partir de 13 de dezembro
daquele ano, A Roda Viva deixaria de ser uma metáfora poética sobre a mo­
dernidade, para se converter na dura realidade da repressão e da censura. O ci­
clo dos festivais televisivos havia praticamente se esgotado, apesar de alguns
breves momentos importantes nos anos 70, mas deixara uma marca funda
mental na história do Brasil, constituindo-se numa espécie de “tesouro perdi
do” da experiência sociocultural coletiva, momento mágico na qual arte, po­
lítica e lazer pareciam se confundir.

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I till Wit i>l\lllllnl

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