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NOEL ROSA
Uma biografia
EDITORA UNB
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor:
Antônio Ibanez Ruiz
Vice-Reitor:
Eduardo Flávio Oliveira Queiroz
Conselho Editorial:
Antônio Agenor Briquet de Lemos (Presidente)
Cristovam Buarque
Elliot Watanabe Kitajima
Emanuel Araújo
Everardo de Almeida Maciel
José de Lima Acioli
Luiz Humberto Miranda Martins Pereira
Odilon Pereira da Silva
Roberto Boccacio Piscitelli
Ronaldes de Melo e Souza
Vanize de Oliveira Macedo
Copyright (©) 1990 by João Máximo & Carlos Didier
Direitos adquiridos para esta edição pela Editora Universidade de Brasília
Caixa Postal 15-3001 70910 Brasília, DF
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do editor.
Máximo, João R788t Noel Rosa: uma biografia/João Máximo e Carlos Didier.
- Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica Editora, 1990. 533p.il.
78.071.1(81) R788m Didier, Carlos, colab.
784.4(81)
Joao Maximo & Carlos Didier - Noel Rosa Uma Biografia
Para Elca e Adriana
AGRADECIMENTOS
PARTE I 1834-1910
1. Na cauda de um cometa
PARTE II 1910-1928
2. Crescendo com bossa
3. Pelas ruas do bairro
4. Entre a cruz e o violão
5. O que se aprende no colégio
6. O encanto da música
7. A morte de perto
8. Adeus ao mosteiro
FOTOS
ÍNDICE DE MÚSICAS
Obras
Musicografia / Discografia
Teatro
Cinema / Televisão
Bibliografia
DUAS PALAVRAS
NA CAUDA DE UM COMETA
Por duas vezes os marinheiros fizeram estremecer o Rio de Janeiro em 1910, num sombrio capítulo
de história que ficaria conhecido como Revolta da Chibata. Uma, a 22 de novembro, sete dias após ser
empossado na Presidência da República o marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. A segunda, na noite de
9 para 10 de dezembro, na véspera de vir ao mundo o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
João Cândido, filho de tropeiro gaúcho que lutara na Guerra do Paraguai, negrinho do pastoreio em
menino, praça-de-pré aos 30 anos, servia a bordo do encouraçado Minas Gerais quando liderou os
companheiros deste e de mais três navios (o Bahia, o São Paulo e o Deodoro) no levante para que se
abolissem os castigos corporais e outros maus-tratos aos marinheiros. O ponto de partida foram as 250
chibatadas aplicadas no fuzileiro Marcelino Rodrigues de Menezes, no convés do navio, diante da tropa
perfilada e de tambores rufando solenemente:"... as costas deste marinheiro - diria depois o comandante da
Marinha José Carlos de Carvalho, mandado ao Minas Gerais para parlamentar com os revoltosos -
assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada." Um disparo de canhão, naquela noite de 22,
deflagrava o levante e estremecia a cidade.
A Marinha de então ainda levava a extremos sua tradição elitista, escravagista quase. Recrutava
soldados à força entre as populações pobres, impunha-lhes um tempo de serviço de quinze anos, pagava-
lhes baixos soldos, obrigava-os a trabalhos pesados, alimentava-os de má comida. Tudo sob um regime
disciplinar controlado por certa Companhia Correcional que, apoiada em decreto-lei dos tempos de
Deodoro, ainda adotava prisão em solitária, a ferro, pão e água, e castigos físicos que incluíam bolos e
chibatadas. Foi principalmente contra estas últimas que se insurgiram João Cândido e seus companheiros.
Oficiais e marinheiros foram mortos nas primeiras ações a bordo dos quatro navios. Uma bomba com
que os revoltosos pretendiam atingir o Arsenal de Marinha foi cair, por erro de cálculo, numa casa de
cômodos da Rua da Misericórdia. Duas crianças morreram. Outras bombas fizeram estragos e vítimas no
Centro. Por quatro dias João Cândido comandou a pequena frota e 2 mil 379 homens, passando a ser
chamado, por seus simpatizantes, de o Almirante Negro. Por quatro dias a cidade viveu de respiração
suspensa: os revoltosos ameaçavam bombardeá-la caso suas exigências não fossem atendidas. Quatro dias
de indignação para o alto comando da Armada, de discussões parlamentares, de reuniões ministeriais. E o
novo presidente sem saber o que fazer. Ao fim do quarto dia, o Congresso votou pela anistia. Os
marinheiros deveriam se entregar, nenhuma punição lhes seria imposta. Ficava claro que os castigos
corporais seriam abolidos.
Mas logo se viu que a anistia não passava de uma fraude. A maioria dos revoltosos seria expulsa da
Marinha. Muitos, sob a acusação de conspiração, foram presos, abarrotando as celas da ilha das Cobras.
Sentindo-se desmoralizado, o próprio Governo se incumbia de alimentar rumores de que novo levante
estava para acontecer a qualquer momento. Hermes queria o estado de sítio, precisava de um pretexto. Até
que as tensões transformaram os rumores em fatos: às 10 horas da noite de 9 de dezembro um toque de
avançar e gritos de "viva a liberdade!" foram ouvidos no pátio da ilha das Cobras. O Batalhão Naval se
amotinava, libertava os presos, destruía as comunicações, tomava a casa das armas, disparava os canhões.
Desta feita, porém, o Governo estava de sobreaviso. Navios, já agora sob o comando de oficiais,
bombardearam o local. O mesmo fariam os canhões do Exército instalados na Praça 15 de Novembro, nos
morros da Conceição e do Castelo, no Mosteiro de São Bento. Conta Edmar Morei, o historiador da revolta,
que os disparos foram menos certeiros do que pretendiam os artilheiros da Armada. Fez-se necessário que
um oficial austríaco, de passagem pelo Rio, calibrasse os canhões para que se atingissem os alvos. Até um
padre, colocando a medalha de um santo sobre a alça de mira, evocou a proteção divina às armas do
marechal. Antes, balas perdidas, de um lado e do outro, tinham atingido o Liceu de Artes e Ofícios, o
Museu Comercial, o Colégio Pedro II, o Tesouro Nacional. Agora, balas legalistas abatiam dezenas,
centenas de marinheiros. O próprio presidente foi inspecionar algumas de suas cidadelas. No Mosteiro de
São Bento, soube que uma bomba rebelde destruíra parcialmente as celas dos monges. Um deles, Dom
Joaquim de Luna, teve arrancados três dedos da mão direita.
Mais estragos: na Rua Dom Manuel, no Catumbi, Frei Caneca, Carmo, São Salvador. O Rio ficou em
pânico. Famílias inteiras realmente apertaram-se em trens rumo a cidades serranas. Outras, em bondes,
carroças, charretes, tomaram o caminho dos subúrbios.
O levante foi por fim sufocado. João Cândido, que nada tivera com as ações da ilha das Cobras,
acabou preso. Incontáveis marinheiros, entre culpados e inocentes, revoltosos e anistiados, também. Muitos
foram deportados para os seringais do Acre, onde morreriam como escravos de senhores da borracha.
Outros seriam sumariamente fuzilados a bordo do Satélite, cargueiro do Lloyd que os levou para o Norte,
quase secretamente. Escrevia-se então um dos mais trágicos episódios da história militar do Brasil. João
Cândido e dezessete outros líderes da primeira revolta, todos já anistiados, foram atirados no fundo de uma
masmorra na ilha das Cobras. Dezesseis morreriam asfixiados pela cal que lhe atiraram sobre os corpos.
Torturas e fuzilamentos se seguiram. Ali João Cândido permaneceu por dezoito meses, até que o mandaram
para o Hospital dos Alienados, supondo-se ter enlouquecido. Engano. Mas o Almirante Negro ainda ouvia
em seus pesadelos o som da chibata sobre as costas dos companheiros, seus próprios gemidos na masmorra,
o troar de canhões que ele não disparara naquele dezembro.
Tombadilho do couraçado S. Paulo, durante revolta. Fotografia tirada dois dias antes da rendição.
João Cândido na prisão da Ilha das Cobras
Foi no meio de tudo isso - numa cidade respirando ares de fim de mundo -
que começou a nascer o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
Seja como for, o mundo não está mesmo acabando. O que se passa no Rio
de Janeiro, desde as primeiras horas da madrugada, tombando prédios,
produzindo nuvens de fumaça, roubando vidas, é mais uma rebelião de
marinheiros contra oficiais que os tratam a golpes de chibata.
Mas os moradores do chalé estão alheios; à confusão lá fora. Não pensam
em tiros de canhão, revoltas, mortes, fim de mundo, e sim num começo de vida.
Uma vida que está para chegar a qualquer momento. Martha de Medeiros Rosa e
Manuel Garcia de Medeiros Rosa - o casal da casa - só pensam no filho que vai
nascer. E nas questões costumeiras, se será menino ou menina, se terá a beleza
de uma ou a força de outro, se puxará aos dois ou a ninguém. Terá algo em
comum com os antepassados ilustres, nobres mesmo, do lado materno, ou
herdará o recato, quase mistério, da família do pai? Quem sabe não será parecido
com vovô Eduardo?
Martha e Manuel talvez pensem em tudo isso. E em como o destino uniu
suas vidas para que delas uma nova vida surgisse.
Em nome do destino tudo se explica. Por exemplo: o fato de um médico
inteligente e sensato como Luís Corrêa d'Azevedo ter escolhido justamente o
lado menos inteligente e nada sensato da luta que dividiu Portugal de 1828 a
1834. Como explicar, senão pelo destino, que sendo ele um gentil-homem a se
pôr invariavelmente do lado certo, da lei e da ordem, ficasse logo do errado
naquela disputa pelo trono português? Aos olhos da História, vale lembrar, o
lado errado é sempre o que perde. E o que Luís escolheu acabou perdendo. Sua
vida, seus equívocos políticos, suas aventuras e desventuras são até hoje
lembrados pelos moradores do chalé, que o consideram uma espécie de ponto de
partida da família.
A tal luta pelo trono português foi travada por Pedro I, o mesmo do nosso
"independência ou morte!", e seu irmão Miguel, que durante quase seis anos,
apoiado pela mãe absolutista Carlota Joaquina, manteve na cabeça uma coroa
que não era sua, mas da filha de Pedro. Este, porém, venceu. Miguel acabou no
exílio e seus seguidores também.
Luís Corrêa de Azevedo era miguelista convicto. Mesmo sendo Miguel um
antiliberal (ou talvez por isso). Com medo de ter idêntico fim de muitos de seus
correligionários - a deportação para a África - mudou-se para o Brasil. Ele, a
mulher e prima Eleziária Pereira Drummond e os filhos, entre os quais Fortunato
Corrêa d'Azevedo, nascido a 4 de junho de 1825, na ilha da Madeira, terra natal
de Eleziária. Vieram todos em 1834.
A família estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde Fortunato abraçou a
carreira do pai. Formou-se em 1850 e logo começou a clinicar em Cantagalo,
Estado do Rio, lugar de poucos médicos e muitos doentes. Também se casou
com uma prima, Maria Adelina (filha de Manuel, irmão de Luís, também
miguelista, também exilado). Lá mesmo, em Cantagalo, nasceram os três filhos
de Fortunato: Eduardo, a 26 de setembro de 1856, Fortunatinho e César.
A família guarda algumas lembranças de Fortunato Corrêa d'Azevedo, uma
delas a caixa de instrumentos cirúrgicos com cabos de madeira que os bisnetos -
principalmente este que está para nascer - ainda vão transformar em brinquedo.
Era um homem austero, mandão, de gostos aristocráticos. Sempre manteve um
namoro com a nobreza, a ponto de já no fim da vida, de volta ao Rio, só ter
clientes ricos e bem-nascidos. Certa vez, percorrendo pacientemente os galhos
de uma árvore genealógica alta e frondejante, descobriu-se, cheio de orgulho,
hexaneto de ninguém menos que Maria Stuart (os moradores do chalé perderam
o documento que Fortunato costumava exibir aos incrédulos). Depois disso,
passou a se considerar um sangue azul. Como tal, monarquista. E escravagista
também: castigava duramente seus negros e a nenhum deles alforriou.
Lusitanista, nunca quis se naturalizar. Mau negociante, por três vezes fez fortuna
e por outras tantas perdeu tudo.
Numa delas, mudando-se de Cantagalo para Nova Friburgo, fundou ali o
primeiro estabelecimento hidroterápico do Brasil. Faliu em pouco tempo. Ao
morrer, em 1877, pouco deixou para a família.
Eduardo Corrêa d'Azevedo era um homem realmente especial, que do pai
parece não ter herdado mais do que uma chácara em Boca do Mato (perto de
Nova Friburgo), um escravo e a vocação para a medicina. A chácara foi logo
vendida por um conto e quinhentos e o escravo alugado para ajudá-lo a pagar os
estudos (depois do que Eduardo o libertou). Quanto à medicina, foi meta difícil
de atingir. Fortunato não quis que os filhos seguissem sua carreira: "É um
ingrato ofício", justificava. Impositivo, fez com que Eduardo se matriculasse
primeiro na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, na esperança de vê-lo
engenheiro. No segundo ano, o filho convenceu-o de que se daria melhor como
farmacêutico. Chegou a se formar, a montar farmácia com seu nome. Depois,
estudou odontologia - algo bem mais próximo da medicina - e tão logo concluiu
o curso o pai morreu. Estava finalmente livre para fazer o que queria.
Começou nova vida, rompeu não só com a vontade do pai mas também com
muitos de seus valores. Detestando a nobreza, os bajuladores de uma monarquia
que achava decadente, os cidadãos empertigados que compravam títulos,
começou por substituir no sobrenome o fidalgo D' pelo menos pretensioso de.
Passou a ser Eduardo Corrêa de Azevedo.
Recebeu o diploma de médico a 27 de dezembro de 1882. Meses depois, foi
chamado por um amigo, gerente do Hotel Giorelli, no Campo da Aclamação(1),
para atender a uma jovem mineira de Leopoldina que viera assistir com os
irmãos à abertura da temporada lírica.
1. Atual Praça da República.
"Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem velho nem moço (...) É
médico e medica de graça; é escritor e escreve com graça; é, às vezes, brigão e
ao adversário desgraça.
Os óculos que traz sobre o nariz não servem para aumentar a vista e sim de
muralha ao brilho vivíssimo de seus olhos.
Ama os poetas de França, adora as filhas da Itália, gosta e usa barbas
suíças.
Numa redação de jornal é tudo. Com a mesma facilidade com que escreve
um artigo de fundo, rabisca uma crônica, com ou sem fundo, ou põe pilhérias a
dois de fundo. É o nosso Ferreira de Araújo(6), com a vantagem de ser poeta.
6. José Ferreira de Sousa Araújo, teatrólogo e jornalista carioca. Médico também. Realizou importantes reformas na imprensa de seu tempo a partir da fundação da Gazeta de Notícias em
1874. Cronista muito lido, assinava-se às vezes como José Telha ou Lulu Sênior.
Ou neste, sobre amar a Deus sobre todas as coisas, dedicado à mãe, Maria
Adelina, pouco depois de sua morte:
Amarei mais que a tudo - santamente
A ti querida morta!...
És o Deus que eu adoro, reverente
O mais... pouco me importa
E sobretudo neste "Ato de Fé", que vale lembrar por encerrar uma idéia de
Deus a ser convertida em estranho legado, o neto que está para nascer,
retomando-a daqui a muitos anos, também em versos:
Eu não quero esse Deus das velhas escrituras
Que pune e vinga o mal, faz sofrer e extermina;
Um Deus que os corações ingênuos assassina
Metendo-lhes por dentro insanáveis ternuras
Um parto tão difícil que o médico chamou outro para ajudá-lo, este se
decidindo pelo emprego do fórceps. Um menino extraído a ferro, penosamente.
Tudo muito complicado, sofrido, longas horas de espera madrugada adentro.
Eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui.
PARTE II 1910-1928
Capítulo 2
Menos penosa, porém tão inútil, será a prótese improvisada seis anos
depois, um precário aparelhinho que Noel não usará por muito tempo.
Crescerá com o defeito. Viverá com ele. Carregará para sempre o queixo
torto que lhe enfeia o rosto. Tem a cabeça bem feita, os olhos acesos,
expressivos, castanho-claros. O nariz é afllado, nem como o da mãe, nem como
o do pai. E se parece maior, isso se deve à linha reta que parte do lábio inferior
ao pescoço, como se o mento lhe tivesse sido arrancado. Essa conformação de
rosto - que se vai acentuar com o tempo - lhe dá uma aparência estranhamente
indefinida, a metade superior harmoniosa, bonita até, e a inferior deformada, de
uma fealdade que pode ir do grotesco ao patético conforme esteja quieto, falando
ou, sempre com sacrifício, mastigando.
Desde pequeno e até seus últimos dias, enquanto estiver no chalé, a mãe
cuidará pessoalmente de sua alimentação, dietas que o permitam usar o menos
possível a mandíbula, não forçar quase a articulação. Ovos cozidos, massas,
purês, mingaus, sopas. Ao contrário do que se dirá um dia, embora feio, marcado
pelo defeito, não é uma criança infeliz. A idéia de um Noel Rosa mergulhado
numa infância sofrida, um pobre menino estigmatizado a suportar em silêncio as
estocadas dos outros meninos que o chamam de "Queixinho", está longe de
corresponder à realidade. É mais exato pensar nele alegre, despreocupado, solto.
Será sempre assim. Mesmo durante os períodos de dificuldades financeiras que a
família vai enfrentar. E mesmo, também depois da operação dolorosa e mal-
sucedida. Complexo por causa do queixo? Se o tem, não o demonstra. No
máximo, mostra-se meio constrangido ao comer na frente de estranhos,
consciente talvez da má impressão que causa. Em tudo mais será um menino
seguro. Ativo, desembaraçado, inteligente, sempre de bom humor. Na rua,
comanda as brincadeiras. Um líder. E em casa, é o número um, o favorito de
quase todos.
O número dois - a quem esta condição sempre incomodará um pouco -
nasce a 29 de dezembro de 1914. No mesmo chalé e também pelas mãos de José
Rodrigues da Graça Mello. Parto normal, nenhum problema. É um garoto forte,
bonito, a que dão o nome de Hélio. Hélio de Medeiros Rosa. Desta vez, sem
homenagens à França, ao Natal, ao que seja.
Mais do que quatro anos de idade vão separar os dois irmãos. Na aparência,
no modo de ser, em quase tudo, diferem-se muito. Todos vivem a dizer que
Hélio é um menino lindo. Os traços do rosto lembram muito os da mãe. É forte,
com ligeira tendência a engordar. Enquanto isso, Noel cresce feio, frágil,
mirrado. Hélio é caseiro, tem poucos amigos, prefere os livros aos brinquedos.
Noel ama a rua, os companheiros de algazarra. Gosta de subir descalço a
Pedreira do Simões para lá de cima ele e os amigos gritarem a plenos pulmões:
"Olê-lê-oooooooooo...!" O eco espalhando suas vozes pelo bairro, fazendo-as
atravessar portas e janelas até chegarem ao Andaraí). É um caroneiro a desafiar
os perigos de um bonde em disparada, risco que Hélio nem quer saber de correr.
Andará pendurado em balaústres, deslizando pelos estribos, saltando como um
trapezista para subir ou descer do veículo em movimento. Hélio está com a
roupa invariavelmente limpa. Noel traz na sua a poeira das calçadas.
Dois médicos
Por ocasião do nascimento de Noel, Martha de Medeiros Rosa foi assistida por dois médicos que
ainda se incluiriam entre os mais conhecidos e estimados personagens da história de Vila Isabel. Um deles,
José Rodrigues da Graça Mello - que acabaria sendo o padrinho do menino -, não era exatamente médico,
mas ultimanista de medicina, quando foi chamado ao chalé naquele explosivo sábado de dezembro.
Nascido no Rio a 23 de abril de 1881, já estava casado e com filhos no dia em que decidiu ser
médico. Só se formou em 1911, mais de um mês depois de ter nascido Noel. Era homem gentil, inteligente,
interessado em música e poesia como tantos de seu tempo. Todas as quartas-feiras, sua casa no Boulevard
transformava-se em ponto de reunião de seresteiros e chorões. Seus saraus ficaram famosos no bairro,
contando às vezes com a presença de artistas como Stefana Macedo e Vicente Celestino. Nos dias de São
Jorge, a festa era maior. Pixinguinha, que aniversariava com o dono da casa, costumava aparecer para um
gole de pinga e um solo de flauta. Choros, polcas, maxixes, valsas, lundus, tudo se ouvia nos saraus dos
Graças Mello.
Casado com Glorinha, tiveram quatro filhos, todos muito amigos de Noel. Pela ordem, Edgar,
Nelson, Nilda e Octávio. O primeiro também seria médico. O último, ator de teatro, cinema e televisão, pai
do compositor e arranjador Guto Graça Mello.
O ultimanista de medicina contava com um parto simples quando se dirigiu ao chalé naquele sábado.
Os problemas que o tomaram de surpresa - o bebê grande demais para a bacia estreita da mulher - levaram-
no a apelar para a maior experiência de um médico já formado, Heleno da Costa Brandão, com quem já
vinha trabalhando no pequeno consultório em cima de uma farmácia do Boulevard.
Ao contrário de Graça Mello, Heleno, que tinha distante parentesco com o pessoal do chalé (sua avó,
Antônia Eulália d'Ávila Brandão, era irmã da mãe de Rita, Emília Augusta de Freitas Pacheco), desde cedo
sonhou com a profissão. Nascido em Vila Isabel a 18 de agosto de 1883, estudou no Colégio Rachel Bessa,
em Campos, e depois no Anchieta, de Nova Friburgo, antes de ingressar na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro. Em 1907, formava-se. Médico e farmacêutico. No ano seguinte, defendia tese. Casou-se com
Maria José de Barros, a Cecé, de outra família tradicional do bairro. O pai dela, José Cândido de Barros,
depois de lutar na Guerra do Paraguai, ganhou cartório do Imperador e enriqueceu. Comprou uma bela
chácara em Vila Isabel, frente no Boulevard, fundos na Torres Homem, que mais tarde dividiria entre os
filhos (a rua que hoje reparte em dois o quarteirão correspondente à chácara chama-se, em sua homenagem,
Major Barros). Outra filha de José Cândido - e portanto irmã de Cecé - era Maria Cândida de Barros Nunes,
a Iaiá, cujos filhos Adalberto, Cacau, Heleno ejosé Peru também seriam muito conhecidos no bairro e fora
dele. Os três primeiros se destacariam em suas respectivas carreiras militares e políticas.
Heleno e Cecé tiveram três filhas.-Helena, Heloísa e Hilde. O marido de Heloísa, Jorge Sampaio de
Marsillac, seria em Vila Isabel um médico tão ilustre e estimado quanto o sogro. Ele e o filho, Jayme,
adquiririam grande reputação nos meios científicos como cancerologistas.
Foi de Heleno da Costa Brandão a decisão de usar o fórceps para ajudar Noel a nascer. O que ele
sempre fez questão de dizer e repetir, livrando assim de qualquer responsabilidade o amigo, ainda
acadêmico, Graça Mello. Como terá sido? De que forma deu-se o acidente? Por que, para vir ao mundo,
Noel Rosa teve de ser tão duramente marcado?
O Dr. Antônio Assis de Salles, professor de anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, com base em documentação fotográfica e nas informações dos
autores (que por sua vez as colheram com parentes e amigos da família de Noel, além de filhos dos dois
médicos que acompanharam o parto), permite-se formular a hipótese mais provável do que causou o defeito
(braquignatia) no queixo do poeta de Vila Isabel.
" 1. Devendo o fórceps segurar o bebê pelos dois lados superiores da cabeça (ossos parietais), uma de
suas extremidades o fez num ponto mais abaixo, na têmpora direita, mais precisamente no côndilo
mandibular, fraturando-o.
2. O côndilo é uma saliência oblonga que se destaca no bordo superior de cada ramo ascendente da
mandíbula. É através dele que este osso se articula com o temporal - a articulação-têmporo-mandibular e
responsável pelos movimentos da mandíbula.
3. O côndilo é também o principal centro osteogenético da mandíbula, ou seja, é sobretudo a partir
dele que se dá o crescimento do osso.
4. A fratura, destruindo nele microscópicas zonas osteogenéticas, acabou por afetar o crescimento do
osso no lado atingido.
5. Observe-se, pelas fotos de Noel, que o defeito acentuou-se na puberdade. Motivo: é dos doze aos
dezesseis anos que se torna maior o crescimento da face (e menor o do cérebro). Enfim, é durante estes
quatro, cinco anos que ocorre a conformação definitiva da face.
6. Este e outros dados devem servir para que não se leve muito em conta a hipótese de uma das
síndromes congênitas que também causam a braquignatia. Elas são quase sempre simétricas (o defeito de
Noel limitava-se ao lado direito) e acompanhadas de problemas outros não encontrados em seu quadro
clínico: surdez, estrabismo, exorbitismo, etc."
O fato de a fratura só ter sido constatada meses depois pode ter influído, mas apenas em parte. Com
os exíguos recursos médicos da época, é pouco provável que um diagnóstico precoce tivesse ajudado muito.
As tentativas de correção que se fizeram mais tarde - o calço de acrílico, o abridor de boca - foram tão
inúteis quanto improvisadas. Hoje, passadas mais de sete décadas, o problema poderia ser solucionado com
modernos métodos ortopédicos (por exemplo, aparelhos estimuladores de crescimento) ou cirúrgicos
(inclusive a extração do côndilo seguida de prótese), mas Graça Mello e Heleno Brandão nem sonhavam
com eles.
Daí, até o fim da vida, em vez de culpas, os dois médicos fizeram muito bem em carregar apenas o
orgulho de terem trazido Noel Rosa ao mundo.
Graça Mello morreu no Rio a 8 de fevereiro de 1942. Deram-lhe o nome de uma rua em Cavalcanti.
Heleno Brandão viveu um pouco mais, morrendo a 1.° de junho de 1947. Na Praça Tobias Barreto - a
mesma em que seria inaugurado um monumento a Noel - está até hoje um busto seu, sobre a inscrição: "Dr.
Heleno da Costa Brandão fez da medicina um apostolado e a este bairro onde nasceu, viveu e morreu legou
o tesouro de uma vida exemplar."
Nos temperamentos, água e vinho. Noel tem bom gênio, não é de se
queixar, trata os mais velhos com polidez. Hélio será um garoto meio difícil,
irritadiço, reclamão, ciumento:
- Aqui em casa é tudo pro Noel-protesta. - Eu vou buscar o leite, o pão, faço
isso, faço aquilo. Noel tem sorte, não mandam ele fazer nada. A madrinha dele é
a Arlinda, que é bonita. A minha é aquela bruxa horrorosa!
Noel comporta-se bem em casa, deixando para descarregar as energias na
rua. Suas travessuras domésticas são quase sempre perdoáveis e freqüentemente
enfeitadas de alguma graça. Como as habituais idas ao piano, tímidos esforços
para descobrir por conta própria a mágica de produzir música batucando em
teclas brancas e pretas. Mas este é um brinquedo proibido. Vó Rita não quer as
crianças perto do Pleyel. É em volta dele que a família continua se reunindo,
Arlinda no piano, Carmem no violino, Martha no bandolim, Neca no violão,
cantando com uma voz que se esforça para educar pondo no gramofone os
discos de Enrico Caruso e outros monstros sagrados da ópera. Nesses saraus, em
geral aos domingos, a participação dos meninos ainda é mínima. Saboreiam os
doces e biscoitos caseiros que se distribuem entre um número e outro, ficam
ouvindo. Não cantam, não tocam. Noel, quando muito, olha para as mãos de
Arlinda enquanto ela as faz passear pelo teclado. No dia seguinte, escondido da
avó, abre o piano e dá início ao seu sarau particular. É repreendido. A
reincidência obriga Arlinda a trancar o instrumento. Mas Noel sempre descobre
o esconderijo, pega a chave, volta ao sarau. Depois de tocar até se cansar, deixa
sobre o tampo um bilhete para a madrinha. "Minha Dinga...", começa ele. Em
versos, pede desculpas e diz que é tempo perdido esconder a chave: sempre será
encontrada. Arlinda sorri, convencida de que uma travessura que acaba em
poesia não merece castigo.
Hélio não tem mesmo a sorte do irmão. Seu comportamento, suas
desobediências preocupam a família. Não chega a ser um menino rebelde, mas
há nele, desde pequeno, uma tendência a irritabilidades repentinas que vão de
simples respostas atravessadas a desagradáveis estouros. A partir das convulsões
que começará a sofrer ainda na infância, vai se descobrir que tais reações se
devem à epilepsia, mal que o acompanhará por toda a vida(4).
4. Hélio de Medeiros Rosa jamais se livraria de todo dos ataques epiléticos. Já adulto - e anos depois da morte do irmão - se submeteria a uma operação destinada a aliviá-lo de uma
compressão no cérebro. Por algum tempo os ataques tornaram-se mais brandos e espaçados, mas a melhora seria apenas temporária.
Mas enquanto não se sabe disso - e até que passe a se medicar, controlando
na base da química os ataques cada vez mais freqüentes - será para a família um
menino difícil, "impossível". Em casa, tenta-se de tudo.
Com menos idade do que Noel o fez, deixa a escolinha e é matriculado num
colégio público, os pais achando que o convívio com outras crianças e a
disciplina imposta por uma professora estranha sejam o bastante para amoldá-lo.
Vó Rita chega a prometer-lhe prêmios para o caso de o boletim escolar registrar
boas notas em comportamento. Um dia entra em casa com um 100 que mostra,
correndo, à avó.
- Aqui está. Agora, meu prêmio.
Vó Rita cumpre a promessa. Convencida de que a tática funciona, insiste
nela. Acena-lhe com outros prêmios para que seja um bom menino o dia inteiro,
em todos os lugares, em casa como na escola. A proposta provoca-lhe nova
explosão. Dá um soco na mesa e vocifera:
- A senhora pensa que é pouco o sacrifício que já faço na escola e ainda
quer que me comporte bem em casa?
Irritabilidade sempre inesperada. Já rapazola, será protagonista de insólita
cena à mesa de jantar, a família recebendo visitas, vó Bella orgulhosa de seus
quitutes, ela que sempre cuidou, com gosto e capricho, da cozinha da casa. Será
servida uma sopa deliciosa, de caldo fino e deleitoso, elogiadíssima. O próprio
Hélio dará sua aprovação:
- Vovó, quero mais.
Terminado o jantar, as visitas ainda à mesa, alguém indagará:
- De que era aquela sopa, dona Bellarmina?
- De couve-flor.
Hélio se lembrará então que couve-flor está entre as coisas que mais
abomina. Só de pensar dá-lhe engulhos.
- Droga! Por que não me avisaram? Furioso, correrá até o banheiro, enfiará
o dedo na goela e porá para fora o jantar.
São realmente muitas as diferenças de comportamento entre os dois. Mas
faça-se justiça a Hélio: enquanto ele exterioriza seu modo de ser, mostrando-se
transparente e por inteiro, Noel é antes de tudo um simulador, um garoto que não
se expõe, astuto o bastante para que as pessoas se deixem levar por seu ar sonso
de anjo de igreja. Custarão um pouco a perceber que o número um é muito
menos "bem-comportado" que o número dois. De natureza na verdade mais
inconformista e rebelde, só que camuflada. Noel, simulador, medindo gestos e
palavras na frente dos mais velhos, sempre se sai bem. Hélio, extrovertido,
dizendo o que pensa e sente, custe o que custar, fica sendo o difícil, o
"impossível".
Martha e Neca não terão mais filhos. A esses dois darão o que de melhor
possuem: amor, generosidade, tolerância. Martha principalmente. Talvez
sensíveis aos handicaps de cada um - o queixo torto de Noel, as convulsões de
Hélio - não serão pais rigorosos, repressores. Os dois crescerão tão livres quanto
possam ser dois meninos desses tempos.
Desde que os Corrêas de Azevedo se mudaram para Vila Isabel, a família
vive numa espécie de gangorra financeira, um sobe-e-desce que se arrastará por
muito tempo ainda, as tempestades de dinheiro curto se seguindo a períodos
menos ou mais longos de bonança. Todas as mulheres trabalham, ajudando de
alguma forma na escolinha, mas é Neca, como em todo patriarcado, o verdadeiro
responsável pelo sustento da casa.
Seu primeiro emprego fixo no Rio, depois de casado, foi o de guarda-livros
da Camisaria Especial, na Rua do Ouvidor. Em poucos meses, já era o gerente
ou, mais que isso, o braço direito do proprietário que um dia, estando a firma
metida em apuros, chamou-o a um canto, pôs-lhe a mão no ombro e disselhe, em
tom paternal:
- Se tu me ajudares a sair deste buraco, faço-te meu sócio.
Neca passou a trabalhar em dobro, dedicou-se à camisaria como se fosse
sua. Reergueu em pouco tempo um negócio que parecia irremediavelmente
condenado.
O dono saiu afinal do buraco, mas dentro dele deixou enterrada a promessa
de sociedade. Neca, desapontado, propôs a outro empregado, um certo Rodrigo,
abrirem juntos sua própria firma. Por que não uma casa de classe, de roupas
masculinas, camisas, lenços, gravatas e cortes importados da Inglaterra? Neca
tinha algum dinheiro, Carmem ajudou com suas economias, enquanto Rodrigo,
embora filho de português rico, conhecido como "o rei do bacalhau", contava
mais com o apoio do sogro também rico. Fizeram negócio nas seguintes bases:
Neca entrava com o capital inicial, o sogro de Rodrigo punha sua parte depois.
Assim, embora fossem tempos de guerra, metade da Europa entrincheirada, os
dois instalaram, otimistas, sua importadora na Rua Gonçalves Dias.
São quatro ou cinco anos de nova bonança no chalé. Na verdade, o período
de maior conforto gozado pela família desde que Neca se tornou seu chefe. A
mesa faz-se farta, as mulheres vestem-se como nunca, Noel e Hélio ganham
roupas e brinquedos caros, Eduardinho já não precisa se preocupar com os
gastos, a faculdade, a alimentação, o transporte, os livros. De tal forma o
dinheiro parece sobrar que Neca nem liga para os calotes que volta e meia lhe
aplica um cliente ilustre: Ruy Barbosa. O que importa é o privilégio de servir a
tão grande brasileiro. Dinheiro farto o bastante para que Martha ganhe do marido
jóias de esmeralda: - São para combinar com os teus olhos - diz ele.
Mas desde 1914 a vida está mais difícil em toda parte, a guerra
recrudescendo, o bloqueio alemão às costas britânicas e francesas, navios
mercantes brasileiros sendo torpedeados. Os efeitos, claro, são sentidos também
no chalé. Suspensas até segunda ordem as importações da Europa, a casa de
roupas de classe da Rua Gonçalves Dias entra em crise. Títulos a resgatar em
vários bancos, empréstimos pessoais a saldar, os negócios parados, o estoque da
loja quase a zero, Neca recorre ao sogro de Rodrigo. É hora de entrar com sua
parte. O outro, porém, tira o corpo fora: - Ora, ora, seu Medeiros. Isso são
negócios de meninos.
Ao contrário dos homens com quem andou fazendo acordos, Neca jamais
deixa de honrar sua palavra. Mesmo quando não é preciso fazê-lo. No caso,
bastaria declarar-se falido, fechar as portas da firma, ir cuidar da vida em outro
ramo qualquer. Mas não. Honesto além dos limites (ou como se forçado por
estranha necessidade de assumir culpas, de pagar pelo que não deve, de sofrer
pelo que não fez), vira-se para Rodrigo e diz-lhe que arcará com tudo sozinho.
Vai aos bancos e outros credores, promete a cada um deles pagar até o último
tostão do que deve.
Depois da bonança, nova tempestade. Neca parte para o interior atrás de um
emprego de agrimensor (ofício que aprendeu sozinho, em pouco tempo de
estudo). Torna-se chefe de uma equipe que cuida de loteamento de terras no
noroeste paulista, para além de Araçatuba. Mete-se mata adentro, derrubando
árvores, abrindo esteiras, delimitando fazendas. Como se tivesse algo a esconder,
vive ali quase em segredo, identificando-se apenas como "doutor" Garcia (nome
que jamais assinou no Rio, onde todos o conhecem por Neca ou seu Medeiros).
Alguns de seus empregados têm mesmo o que esconder: são ladrões, assassinos,
foragidos da Justiça que sabem não ser mais possível voltar à cidade grande.
Naquele desterro, Neca satisfaz a um só tempo duas necessidades: a de ganhar
dinheiro para pagar as dívidas e a de ficar só mais uma vez. Continua precisando
desses isolamentos periódicos. E o interior paulista parece-lhe, nesse sentido, um
paraíso: terras abandonadas, matas virgens, a caça e a pesca, seus companheiros
de trabalho não fazendo perguntas e nada falando de si mesmos. As diversões
são poucas. Uma delas, matar cobras a tiros de revólver Passa por maus
momentos. Ao tentar ajudar uma comunidade indígena da região, quase toda ela
sofrendo de maleita, contrai a doença. Lembra-se então de que Eduardinho já se
formou. Está trabalhando em Aquidauana, Mato Grosso, como médico da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Com febre, tremores pelo corpo, toma um
trem para lá. Confia mais em Eduardinho do que em qualquer outro. Chegando a
Aquidauana, o enfermeiro que trabalha com o cunhado recebe-o com aterradora
informação : - O doutor? Está morrendo no hotel. Tifo.
Neca vai passar dias, semanas, à cabeceira do jovem médico. Tão
preocupado com o estado de saúde dele que se esquece do seu próprio. O
enfermeiro exagerou: Eduardinho não está morrendo. Mas precisa de cuidados.
Neca se incumbe disso até que o cunhado esteja em condições de viajar para o
Rio, ser melhor tratado no chalé. A maleita? Pensa consigo mesmo: "Estranho...
foi-se embora. Terá sido o choque daquela notícia?"
Fica seis anos fora, só voltando a cada dezembro para os aniversários dos
filhos e as festas. Numa dessas vindas, Noel e Hélio vão esperá-lo na estação.
Não o reconhecem. Ficam muito assustados quando um homem alto, barba por
fazer, modestamente vestido, aproxima-se deles na plataforma:
- Hélio, Noel... Sou eu, seu pai!
Volta depois dos seis anos. Paga as dívidas até o último tostão. Os bancos já
nem contavam com isso, um mineiro falido preocupado com a honra.
No chalé sempre cabe mais um. Ou mais quatro. Como Jocelyn da
Encarnação e os irmãos Dulce, Sylvia e Mariozinho Brown, crianças com as
quais Noel e Hélio vão dividir boa parte de sua infância, vivendo todos sob o
mesmo teto como uma só família.
Jocelyn, um ano mais velho que Noel, não chega propriamente a morar no
chalé. Vem cedinho, toma o café da manhã, estuda, almoça, estuda um pouco
mais, brinca, janta e só depois volta para sua verdadeira casa, na Rua Maxwell.
Dorme e no dia seguinte começa tudo de novo. O pai, Álvaro Pereira da
Encarnação, enviuvou quando Jocelyn tinha apenas onze meses. Do segundo
casamento, anos depois, nasceu uma menina. Submetida, ainda pequena, a
delicada operação pelos doutores Heleno Brandão e Graça Mello, morreu.
Eduardinho, já acadêmico de medicina, assistiu à operação. Ficou arrasado. Uma
perda a mais para seu Álvaro, uma dor muito grande para o pobre Jocelyn.
Comentou o fato em casa com a mãe e as irmãs, amigas da família Encarnação.
Rita teve uma idéia: - Por que não cuidamos do menino? Poderemos educá-lo
com as nossas crianças.
É desse modo que Jocelyn entra na vida do chalé, passa a freqüentar a
escolinha e, mais tarde, o mesmo colégio em que Noel completará o primário.
Dulce, Sylvia e Mariozinho são filhos de Mário Brown, viúvo amigo de
Perpétua, irmã de Rita. Na esperança de que se recupere de um pulmão doente,
os médicos recomendam-lhe passar uma temporada em Belo Horizonte. Vai e
teme-se que não volte. Tuberculose, nesses dias, é moléstia quase fatal. Tão
terrível que as pessoas lhe evitam o nome, preferindo dizer que Mário é "fraco"
ou simplesmente "doente", mas nunca tuberculoso. Perpétua dirige um internato
feminino na Rua São Francisco Xavier. Poderia abrigar nele Dulce e Sylvia, mas
não Mariozinho. Apela para a irmã. Seria uma dor de coração separá-los, já sem
mãe, o pai longe. Por que Rita não fica com os três? Como internos na escolinha.
Assim, para não os separar, Rita de fato os aceita como "internos" do seu
externato. Passam a ser seis, portanto, as crianças do chalé. As que chegam
agora sendo criadas como as de casa, os mesmos direitos, as mesmas obrigações.
E uma liberdade quase tão ampla quanto a que Martha e Neca dão a seus filhos.
Dulce, Sylvia e Mariozinho, nem tanto. Pois Carmem - que desde o início liga-se
muito a eles, cuidando mais diretamente de sua educação, tornando-se mesmo,
por iniciativa própria, uma espécie de segunda mãe - é mulher mais exigente,
disciplinadora e austera que a irmã.
Noel é atento também às diferenças entre a mãe e a tia, uma tão liberal, de
zangas poucas e sempre brandas, e a outra tão presa a regras, proibindo mais que
permitindo. Diferenças inclusive na maneira de administrar a casa e a escola, na
qual vão ser cada vez mais atuantes na medida em que Rita envelhecer. Martha é
perdulária, o dinheiro como coisa feita para entrar e sair logo, os tempos de
bonança devendo ser aproveitados antes que voltem os de tempestade. Carmem,
pelo contrário, é como a formiga da fábula, trabalhar e guardar nos dias bons
para sofrer menos nos ruins. Noel detesta este lado meio avaro da tia. Desde o
primeiro escorregão financeiro do pai, aprendeu a ver no dinheiro algo que para
o resto da vida chamará de "vil metal", necessário mas maldito, cobiçado mas
ilusório, instrumento de grandes bens e de males ainda maiores. O dinheiro, a
falta dele e sobretudo o apego a ele, alimentado desesperadamente por tanta
gente, o incomodarão sempre. Não gosta dessa mania de poupar. Como dirá,
com muito humor, nos versos que fará um dia, "qualquer economia acaba
sempre em porcaria..." Por isso atreve-se a confidenciar a Arlinda uma opinião
sobre tia Carmem: - É muito pão-dura. Come o caroço da banana e depois a
casca.
Estudam todos na escolinha, debruçados sobre carteiras que se distribuem
pelas duas salas e um dos quartos do chalé. Em março de 1920, porém, Noel e
Jocelyn, os dois mais crescidos, já estão matriculados no terceiro ano da Escola
Pública Cesário Motta, um casarão antigo no lado ímpar do Boulevard, esquina
de Silva Pinto(5).
5. Diz Almirante, nas duas edições de No Tempo de Noel Rosa, que após aprender as primeiras letras com a mãe Noel ingressou no Colégio Maisonette, não fazendo aquele biógrafo
qualquer referência à Cesário Motta. Os autores não conseguiram apurar nada sobre uma eventual passagem de Noel pelo Maisonette, desconhecida também de Eduardo Corrêa de Azevedo e outras
pessoas da família, amigos e vizinhos daquela época.
Professoras como Rita e Martha, que também não cobram dos que não
podem pagar. Samaritanas à sua maneira, fazem do ensino o seu sacerdócio.
Nesse sentido, o chalé, a escolinha é o seu templo.
Padres como tantos das igrejas do bairro, a de Nossa Senhora de Lourdes, já
instalada no número 200 do Boulevard, ou a de Santo Antônio, que os
portugueses fizeram construir no alto de um morro onde só existe ela (e ao qual
se chega depois de se vencer uma escadaria de 150 degraus). O mais conhecido
desses padres é mesmo Jayme Sabba Batistoni, um italiano que desde 1918,
quando a Paróquia de Lourdes transferiu-se para o novo local, até o dia de sua
morte(4), será o seu vigário.
4. 2 de janeiro de 1951.
Padre e igreja que as pessoas respeitam muito, mas que, até onde se sabe,
Noel freqüentará pouco, ele e a família católicos meio à distância, quase de
longe.
Os marginais são todos os tipos que este bairro predominantemente de
classe média, pequeno-burguês, preocupado com a ascensão social, as
convenções, as regras, suporta mas não aceita. No máximo, tolera-os como
males necessários, inevitáveis. Todos farão parte do mundo de Noel, o bicheiro,
o malandro, o pessoal mais humilde que vez por outra desce dos morros, o
seresteiro (o que anda de violão a tiracolo sendo chamado de "capadócio"), o
desempregado crônico, o sinuqueiro, o carteador (a tavolagem nos sobrados do
Boulevard já existia quando Noel nasceu), o mendigo, o vigarista, o proxeneta, o
valentão, o pau-d'água.
Quanto aos demais, são os que não se enquadram em nenhum dos dois
primeiros grupos, a grande maioria das pessoas comuns que fazem parte da
colorida paisagem de Vila Isabel. Como a dona de casa, o chefe de família, os
colegiais, os universitários, os velhos que passam o dia debruçados na janela à
espera de nada. E também os operários a caminho das fábricas, motorneiros e
condutores que entram e saem da estação da Light(5), leiteiros, padeiros, garis,
entregadores de compra, carteiros, motoristas de táxi.
5. Atual garagem de ônibus da Companhia de Transportes Coletivos (CTC).
E a criada calmamente
Diz que eu estou ausente
E não lhe deixei tostão
Vai lembrar também o patrão inescrupuloso que quis ensinar o pai a batizar
bebida importada de além-mar:
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou
três mil botando água
no vinho do barril...
Com mesma rima, mas outra idéia, fará versos como estes:
Seu Jorge turco tem três anos de Brasil
E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês
Mas essas são cantigas de daqui a algum tempo. Nesses dias em que se
inicia no aprendizado da psicologia das ruas, do conhecimento de seus tipos, do
estudo da "fauna carioca" a partir deste microcosmo que é Vila Isabel, Noel
apenas colhe a matéria-prima de sua poesia, de sua crônica. Dramas, tragédias,
farsas. Em tudo isso o prestamista há de ser sempre o vilão de sua história. A
menos romântica e a mais constante musa de seus versos(6).
6. Como se poderá constatar ao longo das páginas deste livro, o prestamista e temas correlatos (dívidas, empréstimos, dinheiro, ganância, espertezas e malabarismos financeiros) estão muito
presentes na obra de Noel Rosa. Os autores anotaram 64 letras de música, incluindo paródias, que falam no assunto ainda que de forma indireta.
Mil novecentos e dezoito foi um ano ruim. A gripe espanhola matou mais
de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, 300 mil só no Brasil, 18 mil no Rio
de Janeiro. Uma pandemia que levou desespero a toda parte. No chalé, contudo,
a rotina só se alterou porque as aulas foram suspensas nos meses críticos de
outubro a dezembro e porque Eduardinho, no último ano de medicina, foi
requisitado para trabalhar dia e noite num posto de emergência instalado em
colégio do Meyer. À frente da campanha nacional de combate à doença, Carlos
Chagas apelou para médicos e acadêmicos de todo o país como se fossem
soldados convocados para a guerra.
A gripe adiou por alguns meses a formatura de Eduardinho, prevista para
dezembro de 1918, mas só concretizada a 22 de março do ano seguinte. Foi
então que ele partiu para aquela experiência profissional em Aquidauana, a tal
em que contraiu tifo e quase morreu. Depois de convalescer no chalé e de passar
algum tempo no Rio, vai outra vez para fora. Desta feita seu destino é Bica de
Pedra(7), perto de Jaú, interior de São Paulo.
7. Atual Itapoí.
Miúdo para seus doze anos, é um dos menores da turma. Por isso, senta-se
sempre numa das carteiras da frente. Ainda tem os cabelos compridos, fios
castanho-claros, quase louros, amontoando-se entre a aba do quepe e as orelhas.
Os colegas reparam que usa uma haste de madeira entre as arcadas dentárias, do
lado direito. A tal "prótese" que outro especialista recomendou, meio no palpite,
para lhe corrigir a articulação, e que acaba funcionando como mero calço. O
pedaço de madeira o incomoda.
E logo ele começa a mastigá-lo, passando-o de um lado a outro da boca,
certo de que não serve mesmo para nada. Mais tarde a madeira será substituída
por material mais resistente, paladon ou algo parecido. Mas o resultado é o
mesmo. No primeiro jogo de futebol, coloca-o no bolso:
- Esse troço pesa tanto que nem posso correr.
Até que um dia abandona para sempre o inútil aparelho. E com ele o resto
de esperança de desentortar o queixo.
Não come na frente dos colegas. Se traz um sanduíche como merenda, vai
mastigá-lo longe, num canto de recreio. Mas geralmente não traz coisa alguma
além dos livros e do maço de cigarros. Aliás, a guimba no canto direito da boca,
permanentemente grudada no lábio inferior, dando a impressão de que vai cair a
qualquer momento, acaba sendo mais um modo de disfarçar o defeito. É um de
seus traços mais característicos.
O São Bento mantém outros cursos além do ginasial que Noel começa a
freqüentar em 1923. Há o preliminar ou primário, o elementar que antecede o
preliminar, o popular para alfabetização de crianças pobres, o noturno para os
que trabalham e estudam. O pequeno mundo que os beneditinos construíram
nesta elevação cresce a cada dia.
É uma grande instituição abrigando várias outras, educacionais, culturais,
religiosas, recreativas e, estranho que pareça, militares. A não ser que seja
obrigado, de nenhuma delas Noel tomará conhecimento. Das instituições
religiosas, então, seu alheamento será absoluto. Por mais que os monges,
especialmente dom Meinrado, se esforcem para arrebanhar sua jovem alma.
Mas que instituições religiosas são estas? Naturalmente, a maior e principal
de todas é o próprio Mosteiro, do qual os alunos se mantêm mais ou menos
distantes, restrito que está aos monges e postulantes. Estes começam a se formar
na Escola Claustral, criada neste 1923 sob a direção de dom Plácido Roth com o
objetivo de "gasalhar e educar meninos que, movidos pelo toque d'uma graça
particular, se sentirem inclinados a consagrar a Deus, já desde a infância, a vida
toda, desejando ser discípulos e filhos de São Bento, monges beneditinos(1)".
1. A Alvorada, ano V, número 1, março de 1923 (página 21). A maioria das informações sobre as instituições do São Bento, constantes deste Capitulo, também foi colhida neste e em outros
números da revista.
Terá dez alunos neste seu primeiro ano de existência. Ao recebê-los, dirá
dom Plácido:
- Vivat! Crescat! Floreat!
As outras, abertas aos estudantes, são a Congregação Mariana de São
Bento, dirigida por dom Leão Dias Pereira, que a reorganizou este ano após um
período meio estacionado; a Conferência Vicentina de São Bento, destinada a
socorrer, com visitas e esmolas, famílias pobres; a Obra da Santa Infância,
também fundada este ano, também destinada a "angariar pequenos donativos
para a obra grandiosa das Missões Católicas"; o Apostolado da Oração, que
promove os retiros, as preces em grupo e as comunhões, estas obrigatórias a
todos os alunos no primeiro domingo de cada mês; e por último os Cavalheiros e
Pajens do Santíssimo Sacramento, de função vaga como seu nome, tendo como
diretor dom João Baptista Laué Lobão, homem tão bondoso quanto surdo.
As atividades culturais gravitam basicamente em torno de duas outras
instituições. A primeira é o Grêmio Literário de São Bento, que organiza sessões
periódicas para leitura de poesia, análise de obra de determinado autor,
comemorações de efemérides e julgamento de textos, em prosa ou verso, dos
próprios alunos. A segunda é A Alvorada, revista mensal de circulação interna.
Tão importante que, daqui a muitos anos, não será possível conhecer o Ginásio
de São Bento da década de 20, sua história, seus costumes, seu espírito, seus
mestres e seus alunos, sem lhe consultar as páginas.
Também são duas as instituições militares. Uma delas, o tiro de Guerra 2,
funciona no próprio ginásio sob as ordens de dois primeiros-sargentos nomeados
pelo comandante da 1a Região Militar. Qualquer aluno com mais de dezesseis
anos, aprovado em exame médico e mediante pequena taxa anual (50 mil réis em
1923), pode conseguir aqui uma carteira de reservista tão válida quanto as
obtidas nos quartéis lá de fora. Para isso, basta que se submeta, primeiro, a todo
o programa de exercícios, treinamento e estudos orientado pelos sargentos e,
depois, a um exame final perante banca presidida por um capitão. Mas ainda é
cedo para Noel Rosa pensar nisso.
Já a outra instituição militar, o Batalhão Escolar, nunca é cedo para se fazer
parte dela. Antes mesmo de passarem pelo admissão, os meninos já se integram
a esta curiosa corporação, formando um jovem e despreocupado exército de
colegiais. Soldados, cabos, sargentos, tenentes e capitães imaginários
obedecendo a uma hierarquia ditada pela idade e pela disciplina (mais por esta
do que por aquela). O São Bento, como muitos colégios de padres desta época,
parece acreditar tanto na educação militar como na religiosa, quase tanto na
espada quanto na cruz.
Mesmo sem Carmem e o Pleyel, continuam feitas de música as noites de
domingo da família. Agora com um novo instrumentista que se vem juntar a
Neca, Martha, Arlinda e eventuais convidados: o próprio Noel, pequeno,
franzino, dedilhando o bandolim que aprendeu a tocar com a mãe.
Noites de música e poesia, como gostava vovô Eduardo. Mas que música e
que poesia? Que canções se cantam e que versos se dizem nessas tertúlias
domingueiras? Saraus familiares ainda são muito comuns no Rio de Janeiro
desses dias. Acontecem não só nos chalés da classe média de Vila Isabel, mas
também em residências que vão desde os casebres que se equilibram num clivo
de morro às mansões mais para perto do mar, freqüentadas pelas elites, os ricos e
novos-ricos, ex-nobres e pretensos nobres, imigrantes que se endinheiraram por
aqui, famílias tradicionais, a nata das artes e da política, o que há enfim de mais
representativo dos salões da sociedade carioca. Mudam as pessoas, as posses, os
trajes, os comes, os bebes, o décor, mas a essência do sarau é a mesma.
Muda também a poesia. Nas mansões ainda se reverenciam os românticos
franceses, Lamartine, Vigny, o Musset mais triste, de coração partido por
George Sand. Tudo de Victor Hugo, alguma coisa de Sully Prudhomme. E os
simbolistas também. Impressiona conhecer Rimbaud, Verlaine, Mallarmé.
Talvez alguém lembre o Antônio Nobre de Só, mas nunca o nosso Cruz e Souza.
Os anglófilos ainda podem vir até Shelley e Keats, nada mais para cá. As nossas
elites raramente se sensibilizam com os movimentos de vanguarda. Se houve no
ano passado, em São Paulo, uma Semana de Arte Moderna, ninguém nestas
mansões parece ter ligado a mínima. Prefere-se a estética já aprovada pelos
salões lá de fora. Cultura, de verdade, é a européia. E têm sempre ar de
concessão as ocasionais incursões que os diseurs dessas reuniões elegantes
fazem às obras de Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela.
Ou mesmo às de Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac.
Nos chalés da Zona Norte, pelo contrário, os poetas brasileiros estão em
primeiro lugar. Bilac principalmente. As pessoas não se importam tanto com os
estrangeirismos, as regras do chie. Chegam mesmo a aplaudir poesia de
fabricação Caseira, cada participante do sarau julgando-se um grande vate em
potencial. E nos lugares mais humildes, os bairros pobres, são também humildes
os versos, em geral improvisados ao luar. Espontâneos, quebrados, simplórios,
incultos, modestos e malvestidos como os poetas que os criam.
Quanto à música, são ainda maiores as diferenças de lugar para lugar. É
mais ou menos por esta época que Raul Pederneiras desenha, com mãos de
artista e olhos de repórter, três tiras a que dá o título de "Dize-me o que cantas...
direi de que bairro és."(2)
2. Incluídas no livro Scenas da Vida Carioca - Caricaturas de Raul, 1924.
Noel se inicia embalado por essas canções e tudo mais que se ouve em sua
casa nas noites de domingo. A música logo o envolve, vira paixão, das coisas
mais importantes em sua vida. E não apenas o que se ouve nos saraus. Como ele
mesmo confessará:
"Mesmo em guri, a minha grande fascinação era a música. Qualquer
espécie de música. Fosse qual fosse. E amava os instrumentos musicais, sentido-
me sonhar ante qualquer melodia."(5)
5. Jornal de Rádio, 1" de janeiro de 1935.
Vai publicar, com base em dados da Igreja Ortodoxa Russa de Nova Iorque,
uma estatística das vítimas de duas décadas de Revolução Soviética ("Toda a
família imperial, 31 bispos, 1 mil 500 sacerdotes, 34 mil 585 magistrados e
médicos, 16 mil 367 estudantes e professores, 79 mil 900 funcionários públicos,
65 mil 890 nobres e aristocratas, 56 mil 340 oficiais, 196 mil operários, 268 mil
soldados e marujos, 890 mil camponeses, por tudo mais de 1 milhão 300 mil
mortos!") e arrematar com este comentário: "E encenaram tanto alvoroço quando
a justiça americana julgou dever condenar à morte os dois anarquistas Sacco e
Vanzetti."
As outras religiões? Não perde A Alvorada oportunidade de combatê-
las.Especialmente a protestante, adversária secular. Combates que se travam em
muitas frentes, sobre temas daqui e lá de fora. Aqui tanto pode a revista se
limitar a pendengas em torno da Bíblia ("... ninguém ignora que os protestantes,
por conveniência de sua doutrina, mutilaram e adulteraram muitos textos das
Sagradas Escrituras, excluindo livros inteiros..."), como investir, mais no campo
da ação que das idéias, sobre as instituições de alguma forma ligadas à outra
religião. É o caso da Associação Cristã de Moços (ACM), que jamais conseguiu
realizar uma campanha para ampliar suas instalações sem ter de carregar o peso -
por vezes insuportável - da oposição do Mosteiro e de sua revista. Nisso A
Alvorada é eficientemente apoiada por outras publicações católicas, uma delas A
Cruz, cujos artigos são transcritos pelo "órgão oficial dos alunos do Mosteiro de
São Bento do Rio de Janeiro". Um desses artigos fala da indignação da
comunidade católica por pretender a ACM fazer obras em sua sede com dinheiro
de donativos. Afinal, este é um país católico, de modo que dos católicos deve ser
o direito exclusivo de pedir donativos. Em 1917, o Mosteiro e outras instituições
já estiveram à frente de um movimento para evitar que uma das campanhas da
ACM tivesse sucesso: através de propaganda pelos jornais e de folhetos
distribuídos nas ruas por seus alunos, puderam "abalar consciências e, se de todo
não impediram o resultado da intrusa subscrição, sem dúvida lograram frustrar e
diminuir" o seu êxito. Um ano depois, quando a mesma ACM tentava junto ao
Governo a cessão de uma área de 3 mil 880 metros quadrados no morro do
Castelo para nela construir seu novo edifício, mais uma cruzada empreenderam o
Mosteiro e seus aliados, desta feita chegando aos gabinetes presidenciais -
primeiro de Delphim Moreira e depois de Epitácio Pessoa - para conseguirem
que a tentativa da ACM mais uma vez fracassasse. Em 1927, vai-se repetir a
história: nova campanha de donativos da ACM, nova cruzada católica contra ela.
Lá fora A Alvorada busca os casos mais rumorosos para com eles
demonstrar que um país indiferente às verdades do catolicismo não pode ir lá das
pernas. Não vêem os alunos o caso dos Estados Unidos? Por que existe lá a Ku
Klux Klan? Por que pode acontecer em seus colégios um professor como John
Thomas Scopes, que depois da segunda 'operação' frustrada. (Arquivo Dejacy
Pacheco.) ousou desafiar as lições da Bíblia e ensinar em suas aulas a herética
Teoria da Evolução, de Darwin? "Os Estados Unidos são o país dos assombros,
das novidades, dos empreendimentos a Júlio Verne...", diz ironicamente a revista
a propósito do show em que se converteu o julgamento de Scopes, processado
por ter informado aos seus alunos que o homem e o macaco descendiam de
ancestrais comuns(9).
9. É no número de junho-julho de 1925 que A Alvorada se refere ao caso Scopes associando-o gratuitamente à Ku Klux Klan e ao progresso alcançado pelos Estados Unidos sob a inspiração
de "heresias em declínio". John Thomas Scopes foi a julgamento na pequena cidade de Dayton, Tennessee, no verão americano de 1925, por ter desrespeitado a lei que proibia o ensino da teoria da
evolução nos colégios do Estado. Na defesa, mais uma vez em ação Clarence Darrow. O julgamento foi de fato transformado num show pelo advogado, que assim tentava atrair a atenção do país para os
debates. Seu adversário, o acusador de Scopes, foi o conservador William Jennings Bryan, três vezes derrotado como candidato do Partido Democrata à Casa Branca. O caso não foi ganho nem perdido
por ninguém, artifícios legais da Suprema Corte levando-o ao arquivamento para que não se tornasse ainda mais rumoroso (a opinião pública estava literalmente dividida). A exemplo dos casos Loeb &
Leopold e Sacco & Vanzetti, o julgamento de Scopes inspirou livros, peças de teatro e um excelente filme: O Vento Será Tua Herança (Inherit The Wind, de Stanley Kramer, 1960).
Tudo porque o país dos assombros cresce, cresce muito, mas distanciado
demais das luzes do catolicismo.
Nenhuma religião ou filosofia não-católica escapa à sanha de A Alvorada.
O espiritismo é freqüentemente ridicularizado como "a grande farsa do século".
A Maçonaria, apontada como "sanguinária perseguidora do catolicismo no
México". Os positivistas, como adeptos de uma ideologia do demônio. A vida de
Augusto Comte, uma tragicomédia (e assim realmente se parece, a se acreditar
na biografia publicada no número de junho-julho de 1926). E há mais:
fundamentalistas, batistas, presbiterianos, anglicanos, israelitas, contra tudo mais
que não seja catolicismo investe A Alvorada.
Curiosa revista esta, escrita com as tintas da intolerância, mas muito
esclarecedora sobre o São Bento de hoje. Uma revista que acha bonito morrer
cedo, um privilégio sofrer, uma dádiva divina entregar a alma aos céus depois
dos mais longos e terríveis martírios. E o que dizer dos prazeres terrenos, o jogo
de bola, a rua, as festas em casas de família onde se pode tomar escondido um
ponche ou dois e depois tirar para dançar a menina que se deseja? Pois até
quanto a isso - as festas, as diversões, os prazeres não exatamente do espírito - A
Alvorada recomenda que os alunos se ponham na defensiva. Noel não gosta
muito de dançar, mas se gostasse haveria de ler com amuo este trecho que a
revista foi buscar em Nova Floresta, do Padre Manuel Bernardes: "Que o que
baila e dança tem parte de louco furioso, basta vê-lo de fora para confessá-lo.
Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão violentos,
tão afetados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do seu
assento."
Não, Noel jamais se incluirá entre os colaboradores de A Alvorada. Quando
tiver algo a dizer, o fará à sua maneira. E no seu próprio "jornal".
Vista da igreja e do mosteiro de São Bento, anos 1900. Em segundo plano, à direita, prédios e oficinas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e a chaminé da Companhia City
Improvements (fundada em 1866).
Arsenal da Marinha e Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro, anos 1900.
E vai estudar ainda menos no segundo ano, só que então correndo o risco de
enfrentar despreparado as provas finais de aritmética e geografia, aí sim,
prestadas às bancas do estabelecimento oficial.
São dois anos de muita brincadeira, de atitudes que não deixam de
neutralizar no espírito de Noel o ambiente de austeridade do São Bento. Os
amigos se lembrarão para sempre do seu jeito solto, alegre, um tanto
irresponsável, que mal cabe nos limites de sisudez do colégio.
Não se pode dizer que seja rígida a disciplina do São Bento, mas é rígida o
bastante para prender, vez por outra, as asas que Noel tem sempre prontas para
inquietos vôos.
Há no menino de doze anos uma incontrolável ânsia de liberdade, um
sentimento que o acompanhará por toda a vida - vôo permanente. Mas muitas
vezes a vontade de ser livre esbarra na vigilância de José Maria Gouvêa, inspetor
de disciplina que vive a percorrer salas de aula, corredores, pátios e banheiros
atrás de alunos que de alguma forma estejam fora da linha.
Gouvêa, até 1923, tem como única função lecionar matemática no curso
preliminar. De 1924 em diante, acumulará esta função com a de responsável pela
disciplina dos alunos. Quais serão os seus métodos? Que tipos de castigo vai
impor aos malcomportados? O mais comum é mandá-los ao gabinete de dom
Meinrado para ouvir um sermão do reitor, homem de quem todos gostam e pelo
qual, em nome desse gostar, detestam ser repreendidos. Como costuma dizer
Hélio Lobo, um dos alunos: - Prefiro a zanga do Gouvêa à fala mansa de dom
Meinrado.
Mas quase sempre o diretor de disciplina resolve tudo sozinho, deixando os
faltosos depois da hora de saída a copiar, repetidas vezes, frases em francês: "Je
crois en Dieux Père..." Ou em latim: "Beati mundo corde quoniam ipsi Deum
videbunt..."
Não é raro Noel se ver diante do Gouvêa com culpas a expiar, lápis e papel
a postos para copiar - quantas vezes? - uma sentença punitiva:
- Cem vezes!
- Mas...
- Então, duzentos.
- Seu Gouvêa...
- Trezentas está bom?
- Não, não está.
- E quatrocentas?
- Esta bom, seu Gouvêa, está bom.
Dona Martha e seu Medeiros são chamados com freqüência ao colégio,
dom Meinrado querendo falar-lhes sobre o filho, bom menino, muito inteligente,
mas que precisa observar melhor os regulamentos internos, comportar-se em
aula, brincar menos. Que tal uma leitura atenta do livrinho de normas a serem
seguidas pelos alunos? As aulas começando pontualmente às onze, as orações ao
meio-dia, a Santa Missa aos domingos, cedinho. E não esquecer o jejum nos dias
de comunhão. Em sala, é necessário observar silêncio, ouvir o professor, prestar
atenção à aula, nada de pândega.
Inúteis advertências. Mesmo durante as orações do meio-dia é impossível
ficar quieto. Dom Joaquim de Luna junta as mãos e fecha os olhos,
compenetrado, para dar início à prece, e já se ouve em algum lugar um
inesperado tilintar. Como se fossem sininhos em miniatura fazendo música de
fundo à oração. Dom Joaquim abre os olhos e pergunta aos alunos que barulho é
este. Estão todos quietos. Noel tem os braços cruzados sobre a carteira. O monge
nem desconfia de que ele amarrou numa das pontas de um barbante um punhado
de pregos e tampinhas de cerveja. A outra ponta está em sua mão, oculta sob os
braços cruzados. Noel retorce o barbante. E os pregos e as tampinhas, na outra
extremidade da sala, tilintam.
Lá fora, quando não está tocando violão, cantando indecorosas paródias ou
inventando quadrinhas para mexer com os colegas, tanto pode estar roubando
balas e mariolas do Altino, dono da cantina, como contando anedotas.
Às vezes vem surgindo, lá no alto da ladeira, dom João Baptista Laué
Lobão. Usa enrolada no pescoço uma cometa preta, sinuosa. Só com ela
consegue ouvir alguma coisa, a extremidade mais fina enfiada no ouvido, a outra
posta bem perto da boca do interlocutor. Noel vira-se para Heitor Lino:
- Por que você não vai lá segurar a cobra de dom João?
Ainda gosta de desenhar, mas muito pouco do que produz, com traços
firmes a lápis de cor, pode ser visto pelos professores. Se um dia algum desses
desenhos parasse nas mãos de dom Meinrado, todas as reservas de tolerância do
bom monge seriam insuficientes para impedi-lo de expulsar Noel do colégio.
São também obscenas as estranhas maquininhas que constrói, com imaginação e
habilidade, para divertir os colegas em aula. Uma dessas máquinas é um
conjunto de cartolinas presas umas às outras por alfinetes. De cada uma delas sai
uma linha que Noel amarra aos dedos como se fossem os fios de um fantoche. A
maquininha é colada por uma das partes no vidro da janela. De tarde, quando
bate o sol, a sombra do conjunto de cartolinas se projeta na parede atrás do
professor. Noel mexe coordenadamente os dedos, imprimindo aos pedaços de
cartolina movimentos ritmados. O que a turma vê projetado na parede é a
perfeita silhueta de um ato sexual.
Fuma muito. É um hábito que adquiriu cedo. E como é proibido sequer
portar cigarros dentro do colégio, aí está mais uma boa razão para a gazeta. Se
está calor, o melhor lugar é a praia das Virtudes(2).
2. Atual Aeroporto Santos Dumont.
Mudam-se todos em fins de 1924. Arlinda, por pouco tempo. Meses atrás
Eduardinho trouxe para passar dias no chalé Fábio de Lima Goyano,
farmacêutico paulista, filho de Augusto Rodrigues de Moraes Goyano, seu
grande amigo em Bica de Pedra. Fábio apaixonou-se por Arlinda no primeiro
instante. Estava ela de luto por um parente, sem pintura, a pele alva contrastando
com o vestido preto. Uma elegância meio mórbida, mas nem por isso desprovida
de sensualidade. Fábio sentiu o coração bater mais forte. Pouco depois, estava
lhe propondo casamento. E como era de gosto geral - Rita, Eduardinho, Odette,
Martha, todos muito impressionados com o farmacêutico - Arlinda concordou
em ficarem noivos. Casam-se a 22 de janeiro de 1925, dia do vigésimo quarto
aniversário dela. Vão morar em São Paulo, Arlinda sem ter esquecido de todo o
primeiro noivo. Na véspera da cerimônia - celebrada diante de um singelo altar
improvisado no chalé, Dr. Graça Mello e sua mulher, Dona Glorinha, como
padrinhos - Martha chama a noiva ao seu quarto, abre o porta-jóias onde guarda
todos os presentes de Neca, dados nos tempos de fartura, e diz: - Escolhe o que
quiser.
Comovida, Arlinda pegará apenas uma pulseira, simples, barata, para nunca
mais se separar dela.
Dos primeiros dias de dezembro de 1924 aos últimos de janeiro de 1925,
realizam-se as provas finais no Pedro II. Alunos de fora, os chamados candidatos
"estranhos", ou do próprio colégio misturam-se no amplo pátio, nos corredores,
nas salas de pé-direito alto, todos ansiosos por seus diplomas de bacharel.
Noel, segundanista do São Bento, presta exame em duas matérias. Primeiro
aritmética, quinta-feira, 8 de janeiro, e depois geografia (incluindo corografia e
elementos de cosmografia), na segunda-feira seguinte, dia 12. Não consegue a
média mínima de 3,5 e é reprovado nas duas. Talvez não esperasse isso. Na
irresponsabilidade de seus treze para quatorze anos, acreditava ser possível
brincar tanto e estudar tão pouco, sem esbarrar no rigor desses velhos
professores do Pedro II.
Tão despreparado estava - e é tanta a agitação em casa, a mudança para o
bangalô, o casamento de Arlinda, Hélio se preparando para também ele começar
a cursar o ginasial no São Bento - que Noel nem aparece para as provas de
segunda época no mesmo Pedro II, a de aritmética de 13 a 23 de março, a de
geografia de 12 a 25. Vai perder o ano.
Se a reprovação afetou-o ou não, ninguém sabe. A impressão que causa aos
novos colegas de turma, desde o primeiro momento, não é a de um repetente
arrependido, a de um menino a quem o fracasso serviu de lição. Parece o
mesmo. Despreocupado com os estudos ou o que seja. Alegre, vivo, inteligente,
irreverente, moleque.
É assim que o vêem.
Esta nova turma está destinada a ser uma das melhores que já passaram
pelo São Bento. Dela sairá gente fadada a vencer: médico, engenheiro,
almirante, general, brigadeiro, advogado, professor, homem de empresa. E Noel
Rosa. Que os novos colegas conhecem logo na primeira aula do surdo Mário
Barreto, ele se levantando lá atrás para perguntar:
- Professor, posso mijar no seu bolso?
- Sim, mas não demore.
Noutro dia, convencido de que Barreto está cada vez mais surdo, incapaz de
distinguir o que sai de sua boca apenas entreaberta, torna a se levantar, a mão
direita para o alto:
- Professor, posso comer sua mãe?
- Pode ir, mas rápido.
Ao ver que a turma se une numa gargalhada, Barreto adverte:
- Não riam, meninos. Afinal, qualquer um pode ter a mesma necessidade.
Nova turma, novo sistema de exames finais. A 13 de janeiro - exatamente
no dia que se seguiu à sua reprovação em geografia - foi assinada a Reforma
Rocha Vaz, pela qual, a partir de agora, as provas de bacharelato não têm
necessariamente de ser feitas no Pedro II, mas também nos próprios colégios em
que estudam os candidatos, embora sempre perante bancas nomeadas pelo
estabelecimento oficial(5).
5. A reforma que levou o nome de Juvenil da Rocha Vaz, diretor do Departamento Nacional de Ensino, foi implantada pelo Decreto-Lei 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925. Praticamente
institucionalizava o curso seriado de cinco anos, tornando-o obrigatório em todos os colégios, ao mesmo tempo que começava a pôr fim aos candidatos avulsos (ou "estranhos") que tentavam o
bacharelato no Pedro II. Os alunos que já tinham iniciado o ginasial em 1925 - casos de Noel e Hélio - podiam optar pelo antigo ou novo sistema. De acordo com este, a cada dezembro submetiam-se a
provas finais de determinadas matérias, só que no próprio colégio, perante banca de três professores, dois dos quais do Pedro II. Aprovados, bacharelavam-se naquelas matérias. Reprovados, iam à
segunda época. Novamente reprovados, repetiam o ano, ou então retornavam ao antigo sistema. Os primeiranístas de 1925 foram os últimos a terem as duas opções. Depois, vigoraria apenas o seriado.
Em vez de cantar ventos sibilantes e raios apolíneos, Noel prefere ter como
musa a figura de José Piragibe, por sinal um dos grandes, senão o maior
incentivador do Grêmio e da revista:
Quem não conhece um mestre rabugento
Urso de membros atrofiados
Professor e conselheiro do São Bento
Que julga ter modos educados
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade
No ano passado
Eu bem quis ir visitar
Quem meus pecados
Sempre soube perdoar
Que crueldade!
Vou brigar com meu amor
Pois pela dificuldade
É que a promessa tem valor
Nas muitas e sempre bulhentas andanças do menino Noel por sua cidade,
nada mais importante que o bonde. Um dia, já não tão menino, vai homenagear,
em forma de samba, este precário e cambalçante veículo que percorre
ruidosamente as ruas do Rio:
E o bonde que parece uma carroça?
Coisa nossa, muito nossa!
Nas salas de aula, imita condutores a exclamar o seu lusitano "faz favor",
manipula manivelas imaginárias, fabrica estranhíssimas maquininhas sobre a
carteira, canaletas de cartolina que fazem às vezes de trilhos, bilhas que se
transformam em bondes que ele mesmo dirige. Mas dirigir bondes pode,
ocasionalmente, converter-se em algo real. Basta fazer amizade com os
motorneiros que circulam pela Praça Mauá, Lourenço, Nazareth Bigodão,
Nascimento. Bigodão é um português risonho, simpático, que não se importa que
o chamem pelo apelido. De todos, porém, Nascimento é o mais camarada.
Mulato forte, um e oitenta de altura, Noel tanto pede que ele o deixa manobrar o
bonde no ponto final.
- Olha a direita!
As brincadeiras que o bonde inspira nem sempre são tão inocentes.
Principalmente agora que a moda importada da América começa a encurtar as
saias da mulher carioca. Antes, e Noel bem se recorda, usavam-se saias muito
abaixo dos joelhos, quase na altura das canelas. Saias que tudo escondiam. Hoje,
e Noel bem observa, sobem-se as bainhas, revelam-se as pernas, tudo está mais à
mostra. O menino percebe que o estribo do bonde é lugar estratégico de onde,
num simples virar de olhos, devassam-se intimidades de passageiras
descuidadas. E passa a viajar ali.
Mais tarde, o voyeur Noel dá lugar a um audacioso pingente que prefere a
ação à visão. É quando vê mulher bonita sentada na extremidade do banco, saia
curta, distraída. Toma o bonde perto do colégio, põe-se de pé no estribo, ao lado
da mulher, e espera que o motorneiro dê a partida. Assim que o veículo ganha
velocidade, aproxima-se sorrateiramente, mete a mão coxas acima da mulher e
salta, o bonde já correndo. A vítima, apavorada, grita: - Socorro! Um louco!
No segundo semestre de 1926 O Mamão ainda circulará clandestinamente
sob as carteiras, divertindo uma turma que constata o caráter cada vez mais
irreverente da linha editorial do jornalzinho. Com uma periodicidade que o
próprio Noel estabelece em função de ter ou não o que dizer por escrito (por esta
época ele já prefere a música, as paródias, como veículo do seu humor), O
Mamão faz o mesmo sucesso do ano anterior. Só que não por muito tempo mais.
Como também já não durarão muito as brincadeiras de que é vítima dom
Joaquim de Luna em suas apaixonadas aulas de religião.
As duas coisas - o fechamento de O Mamão e o fim das provocações de
Noel a dom Joaquim - estão interligadas. É que em seu último número o
jornalzinho traz, entre anedotas imorais, croniquetas apimentadas, versos chulos,
textos enfim que Noel criou ou colheu entre o que há de mais impublicável, uma
caricatura de dom Joaquim. E logo na primeira página. A identificação do
monge se faz muito menos pelos traços de Noel, imprecisos, não muito
parecidos com o original, do que por outros detalhes. Por exemplo, frases que
habitualmente dom Joaquim emprega em aula quando repreende ou mesmo pune
um dos alunos: - Lembrem-se, eu não castigo ninguém. Vocês é que se castigam.
Ou quando tenta que os alunos parem de conversar em sala:
- Atenção, atenção, isto não esta no manual!
As frases aparecem saindo da boca de dom Joaquim na caricatura. Mas o
que realmente torna o personagem do desenho inconfundível é sua mão direita:
apenas dois dedos. Com eles, o anular e o polegar, dom Joaquim segura o seu
lápis enquanto diz as duas frases.
Por um descuido qualquer, este número de O Mamão vai parar nas mãos do
Gouvêa que o entrega a dom Meinrado. O reitor manda chamar Noel. Talvez
finja não ter lido as críticas ao colégio contidas numa das matérias. Ou não
entender as piadas tão diferentes dos chistes de A Alvorada. Nem toca nesses
assuntos. Limita-se a falar do desenho, do quanto de cruel há nele. É no mínimo
falta de sensibilidade brincar com o defeito físico dos outros. E logo o bondoso
dom Joaquim...
Os alunos têm razão quando dizem que uma reprimenda de dom Meinrado,
por mais branda que seja, é muito pior que qualquer castigo aplicado pelo
Gouvêa ou um dos professores. Dom Meinrado sempre atinge o alvo. Noel
promete deixar dom Joaquim em paz. E fechar de vez O Mamão.
Foi em fins de 1926 que um navio de guerra italiano aportou em Santos,
dele desembarcando, para não mais voltar, o capitão-tenente da Marinha
Carmine Carbone. Justamente nesta época, em que seu país militariza-se a olhos
vistos, Carbone decide deixar para trás a farda e tentar nova vida em terra
brasileira. Dizem que saiu do navio como quem vai conhecer a cidade, suas
praias, sua gente. Irrepreensivelmente uniformizado, subiu ao convés, dirigiu-se
ao portaló, olhou na direção da popa, fez continência à bandeira, desceu, sumiu.
Ao que consta, rumo a São Paulo, de onde tomou um trem noturno para o Rio.
Como ou por que veio bater às portas do São Bento não está bem explicado.
Talvez viesse a convite de seu velho amigo, dom Matheus Roccati. Ou talvez
trouxesse uma carta de recomendação dos monges beneditinos de Monte
Casino(3), em cujo colégio estudou antes de entrar para a Marinha.
3. Mosteiro de Monte Casino ou Mons Casinus. Situado entre Roma e Nápoles, é considerado o berço da Ordem Beneditina. Nele se encontra o túmulo de São Bento de Nursia, fundador da
ordem.
O fato é que veio pedir emprego a dom Meinrado, qualquer emprego, sem
maiores exigências quanto à função ou salário. O reitor logo viu estar diante de
um homem culto, conhecedor de matemática, química, física, falando vários
idiomas, incluindo latim e grego, e em vez de contratá-lo como inspetor de
disciplina, como chegou a pensar, fez dele professor.
Se a história se passou mesmo assim - a deserção, a viagem para o Rio, a
chegada ao Mosteiro, a conversa com dom Meinrado - também não se pode
precisar. O importante é que Carmine Carbone será o único novo professor que
os quartanistas de 1927 encontrarão ao voltarem de férias no dia 4 de março.
Lecionará latim e química, nesta cuidando das aulas práticas, enquanto Piragibe
se ocupa das teóricas.
Guarda sua farda para sempre. Sem jamais aceitar o rótulo de desertor. O
que ele fez - repetirá muitas vezes - foi uma escolha. Detesta Benito Mussolini, o
regime fascista que se instalou na Itália há quase cinco anos e mais ainda todo
esse pensamento belicoso que pode vir a destruir seu país. Daí ter vindo para o
Brasil. E a não ser que a Itália mude, nunca mais voltará(4).
4. Carmine Carbone de fato jamais voltaria à Itália. Morreu no Rio, ainda como professor do São Bento, a 16 de julho de 1939, meses antes de ter início a guerra que tanto temia pudesse
destruir seu país.
Toda a turma gosta dele. Noel, então, diverte-se com seu sotaque, seus
pequenos trejeitos, suas histórias curiosas que não se demorará a descobrir serem
colhidas nas páginas do Eu Sei Tudo. Noel, o ventríloquo, senta-se perto da
janela nas aulas de química para dali, sem mover os lábios, emitir um som
metálico, meio cantado.- - Carbone... Ó Carbone!
O "ó" bem aberto, prolongado, como se fosse uma sirene. Carbone vira-se,
estão todos quietos. Um ou outro faz força para não rir.
- Carbone... Ó Carbone!- repete Noel assim que ele se volta.
Em quase toda aula do ex-capitão-tenente italiano, pede para "ir lá fora".
Vai e geralmente não volta. Uma cena que se repete.
- Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo.
Carbone percebe que as escapulidas de Noel são crônicas. Com seu sotaque
ainda carregado, a voz grossa e cantante, muda de tática: - Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo... para o gabinete do dom reitor.
Dom Meinrado o repreende, diz que ele está crescido demais para estas
coisas, não é justo chamar seu Medeiros e dona Martha para dizer-lhes que o
filho não quer crescer. De volta à sala de aula, recomeça: - Carbone... ó
Carbone!
No recreio, acompanhando-se no violão, canta para os colegas a paródia
que acaba de fazer sobre a melodia de Yes, Sir, That's My Babe(5): 5. Escrita em 1925 por Walter
Donaldson e Gus Kahn, a canção foi um dos maiores sucessos da música popular americana dos anos 20.
Quando
Pelas aulas ando,
Vai me perguntando:
Das muitas descobertas que Noel vai empreendendo - mundos que se abrem
diante de seus olhos atentos, emoções que mexem com seu espírito já inquieto -
nenhuma o fascina tanto quanto as casas onde é possível comprar, por alguns mil
réis, os carinhos de uma mulher.
Sua iniciação sexual deu-se cedo. Aos doze, treze anos, idade em que
geralmente os meninos querem mas não ousam, já ousava até demais. Por
iniciativa própria ou na trilha dos rapazes mais velhos da Praça 7 de Março ou
do Ponto de 100 Réis, já andava enredado com as raparigas que, em troca de
pouco, entregavam o corpo ao prazer apressado e desconfortável dos terrenos
baldios, dos capinzais, do muro do açude da Fábrica Confiança, onde quer que
fosse possível.
Mas só agora, aos quinze anos, Noel descobre o amor menos apressado e
menos desconfortável oferecido pelas pensões de mulheres. Será com algum
espanto e muita inveja que os amigos de sua idade o ouvirão narrar, com
detalhes, suas visitas a esses lugares, seja uma casa do Mangue, seja uma alfurja
dos arredores da Estação de Pedro II. No São Bento ou no bairro, sente
indisfarçável satisfação ao relatar tais experiências, façanhas de conquistador de
bordel. Os amigos jamais se esquecerão dessa aparente precocidade(7).
7. Almirante refere-se a esta precocidade - e às gabarolices de Noel - na segunda edição de No Tempo de Noel Rosa (página 187). Depoimentos de amigos de bairro e de contemporâneos de
São Bento ajudam a compor o quadro de suas primeiras aventuras amorosas, de suas visitas às pensões de mulheres e de como gostava de se exibir a respeito.
Inútil tentar saber através de quem Noel entrou pela primeira vez numa casa
dessas. Pode ter sido levado por um amigo de Vila Isabel, como pode ter sido
atraído pelos sorrisos da bela, sinuosa e perfumada Santinha. Moça de seus vinte
anos, mora numa casa de frente de rua, duas janelas e portão de ferro, na
Visconde de Abaeté, bem no meio do caminho entre Theodoro da Silva e o
Boulevard. Ela, os pais e cinco irmãos, tudo gente direita e trabalhadora. Quando
a moça sai, de noitinha, metida num vestido curto e justo, o Ponto de 100 Réis
inteiro lhe põe os olhos. É dessas pequenas que, ao passarem, deixam um rastro
de sugestões. Até que se descobre que seus passeios noturnos não são
propriamente passeios. E que o apelido carinhoso que ganhou dos pais há muito
tempo virou ironia: Santinha peca todas as noites numa pensão de mulheres da
Rua Visconde de Itamarati, no Maracanã, na qual o garoto Noel é um dos seus
clientes, senão dos mais assíduos, pelo menos dos mais jovens.
Mesmo sem chegar a ser um habitue, um desses fregueses que as mulheres
consideram "de casa" (mesmo porque o dinheiro é curto demais para isso), Noel
já é freqüentador dessas pensões à época em que cursa os últimos anos do São
Bento. De certa maneira, jamais deixará de ser até o final da vida. Sente-se bem
nesses ambientes, aprende a aceitar os seus códigos, não exige mais do que as
mulheres lhe podem dar, nem espera mais do que seus contados níqueis podem
comprar. Será sempre assim. Ou quase sempre. Já adulto, trocará a gabarolice
por certo retraimento, já não se jactará dessas aventuras tantas vezes repetidas.
Mas, por enquanto, ainda em fase de descobertas, é um falastrão.
No recreio do São Bento, a um grupo formado à sua volta, narra com versos
seus e a melodia de Gigoletté(8) uma de suas aventuras: 8. Canção de Franz Lehár, sucesso internacional na época.
Que putaria!
Ela queria
Que eu lhe pagasse adiantado o trabalho.
Então eu disse:
"Por favor, meu coração,
Caralho na boca,
Dinheiro na mão."
A escolinha não rende o bastante para que a família luxe, entendendo-se por
luxo a camisa de algodão, a calça de casimira, o sapato fantasia dos meninos.
Assim, o uniforme do São Bento, renovado a cada começo de ano, é forma de
poupar (os primeiros ternos de Noel serão feitos pelos Araújos, na
camaradagem, com cortes de Palm Beach mandados de presente por
Eduardinho). Mesmo a família morando numa casa mais nova e confortável que
o chalé, e contando com a mesada que Rita recebe do filho, a tormenta ainda não
passou de todo para os Medeiros Rosa. Motivo pelo qual Neca afasta-se de casa
mais uma vez, agora com destino a Bica de Pedra, onde espera ter, ao lado do
cunhado, um pouco mais de sorte. Lá se ocupará da contabilidade de casas de
negócio e da construção de uma estrada.
Por muito tempo, desde aquele primeiro dia de aula em 1923, quando se viu
enfiado em dólmã, culote, quepe e perneiras, a farda caqui tem sido a única
roupa de Noel. Ela e o uniforme branco para dias de festa. O mesmo acontece
com Hélio. Seja para ir à aula ou à missa, visitar um parente, ver um filme no
Smart, seja para as serenatas que tanto amofínam Martha, Noel raramente se
separa do uniforme. De tal modo que, daqui a tempos, quando se falar no
adolescente que ele é hoje, os moradores do bairro dirão: - Me lembro.
Magrinho, queixo torto, sempre com a farda caqui.
Não liga quando alguém o chama de "gafanhoto sem bunda", nome que os
garotos de outros colégios deram aos alunos do São Bento por causa das iniciais
GSB que trazem no emblema. Dificilmente irritam, encabulam, constrangem,
fazem perder a bossa ao menino Noel. Se alguém lhe põe um apelido, perde
tempo: logo arranjará outro de volta, transformando o agressor em agredido(11).
11. Não há fundamento na tão difundida versão de que Noel teria carregado, em sua passagem pelo São Bento, o apelido de "Queixinho". Nenhum de seus contemporâneos entrevistados
pelos autores, num total de quinze, lembra se disso: "Ninguém ligava para o defeito dele", assegura o Dr. Lauro de Abreu Coutinho, médico radiologista, primeiro aluno da turma, quatro anos colega de
sala de Noel. "Apelido?" - surpreende-se o almirante Antônio Fernandes Lopes, da mesma turma - "Nunca houve isso." César Dacorso Netto, engenheiro e professor de matemática, arremata:
"Gostávamos demais dele para isso. Além do mais, era o nosso líder." O general Moacyr Mattos de Oliveira, o companheiro mais chegado: "Noel é que vivia mexendo com todo o mundo."
Ele é quem gosta de rebatizar os colegas. Como no dia em que vem subindo
a ladeira do São Bento ao lado de Hélio Lobo. Por ter faltado às aulas de ontem
(e de anteontem também), esgueira-se pelo paredão para não ser notado por dom
Meinrado. Vai na ponta dos pés quando o reitor pega-o pela gola.
- Venha cá, seu Noel. Faltando às aulas, hein?
Dom Meinrado inicia em seguida um de seus habituais sermões, a fala
mansa mas firme, aquele jeito de envolver os alunos sem os destratar. O monge
pede que Hélio Lobo se aproxime. Coloca os dois meninos frente a frente e diz: -
Mire-se no Hélio, Noel. Mire-se no Hélio e veja o que é um aluno exemplar,
bem-comportado, incapaz de um deslize.
Noel faz que sim com a cabeça e dom Meinrado manda que os dois se
dirijam à sala de aula. Noel e Hélio Lobo caminham lado a lado, calados, até a
cantina do Al tino. Pedem dois refrescos. A certa altura, Noel passa a olhar fixo
nos olhos do colega Hélio encabula-se. Noel continua olhando-o nos olhos. Cada
vez mais embaraçado, o outro protesta: - Que diabo, Noel! Por que está me
olhando assim?
- Estou me mirando em você, Salammbô... virgem de Cartago!
Os cinemas exibiram semana passada o filme Salammbô, os olhos
lânguidos de Jeanne de Balzac pondo coisas na cabeça dos homens(12).
12. Salammbô, filme de Pierre Marodou baseado no romance de Gustave Flaubert, foi produzido em Viena em 1925 e exibido no Rio dois anos depois. Além de Jeanne de Balzac, estavam
no elenco Rolla Norman e Raphael Liévin.
Manuel Jansen Muller será "Mané Figueiredo". Por quê? Nunca saberá. E
Hermenegildo de Barros Filho fica sendo mesmo o "Ministrinho". E por razões
óbvias: o pai é ministro do Supremo Tribunal, homem importante, o nome
saindo todo dia nos jornais. Dos muitos alunos do São Bento, é um dos que mais
dinheiro leva no bolso. Será, de bom grado, patrocinador dos programas mais
dispendiosos de Noel. Embora seja da turma de Hélio Rosa, é com Noel que se
identifica mais: - Vamos, Ministrinho?
- Aonde?
- Lá.
O "lá" significando uma daquelas casas do Mangue que Noel, para
perplexidade de Hermenegildo, conhece tão bem. Os dois vão de uniforme,
livros. O filho do ministro treme de medo, mas concorda em pagar as despesas.
Os sanduíches, as cervejas, as mulheres, tudo isso por sua conta. Noel se
encarrega da boa conversa e da música. Dom Meinrado, que parece saber de
tudo, no dia seguinte interpela o turbulento desencaminhador de suas ovelhas: -
Noel, Noel. ..Já que não pode deixar de pecar, por que não peca sozinho?
Capítulo 7
A MORTE DE PERTO
Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta
Cor de Cinza
É uma casa grande, as portas e janelas laterais dando para uma comprida e
estreita varanda. Parede colada ao armazém da esquina de Theodoro da Silva
com Silva Pinto, fica bem em frente ao bangalô. Mas só neste fim de tarde, ao
voltar do São Bento, Noel parece notar que tal casa existe. No portão, brincando
com duas crianças, vê uma moça bonita. Morena, cabelos curtos, olhos
castanhos, redondos, brilhantes. Quantos anos terá? Noel vai saber depois que
ainda não fez quinze.
Desde esta tarde, a moça é o objeto de suas atenções. Mudou-se para ali há
poucos dias, mas os rapazes que fazem ponto na esquina já colheram
informações mais ou menos precisas para satisfazer a curiosidade de Noel.
- O nome dela é Clara - diz alguém. Clara Corrêa Netto. É a mais nova dos
quinze filhos de outra Clara, viúva de Serafim Corrêa Netto, vidraceiro que um
ataque cardíaco matou há alguns anos, quando moravam todos na Rua Theofilo
Ottoni, no Centro. Até hoje a família permanece unida. A não ser a filha mais
velha, Julieta, já casada; o segundo, também Serafim, que se casou, enviuvou e
se casou de novo; e Maria que morreu pequena; ajeitam-se todos aqui, na casa
em frente ao bangalô, à volta da figura matriarcal de dona Clara: os filhos
Alfredo, José, Manuel, Álvaro, Alberto, Lúcio, Antônio, Julião, Ananias (nome
de homem, mas na verdade a mais velha das moças depois de Julieta) , as
gêmeas Guilhermina e Marcolina. E Clara, a Clarinha. As crianças que Noel viu
com ela são os sobrinhos Edgar e Irene, que dona Clara, fazendo valer sua
autoridade, não deixou Serafim levar para a companhia da segunda mulher (ela é
do tempo em que toda madrasta era inevitavelmente uma megera).
Mas é apenas em Clarinha que Noel está interessado. Não importa que entre
e saia muita gente da casa, que aos domingos se sentem todos na varanda, que o
portão seja ponto de reunião de tantas pessoas, irmãos, irmãs, parentes em visita,
vizinhos. Noel só tem olhos para Clara.
Um dia percebe que é correspondido. Sempre com o uniforme do São
Bento, senta-se na varandinha do bangalô, toma o violão e canta coisas de amor.
Talvez Clara não o ouça do outro lado da rua, mas sabe, de alguma forma, que
são para ela as canções de Noel. São tantos os irmãos e irmãs, e é tão severa a
vigilância sobre Clara, que se torna quase impossível uma aproximação. Bem
que Noel tenta. Ouviu dizer que a moça estuda num colégio do bairro. Mas qual?
E a que horas? A troca de olhares, um ou outro sorriso, nada mais lhe resta.
- Os irmãos dela não deixam ninguém chegar perto - contam-lhe.
São todos homens feitos, trabalham fora), dividem entre si as despesas da
casa. À falta do pai, zelam com certo rigor pelas irmãs solteiras. E de maneira
muito especial por Clarinha, a caçula.
Por algum tempo Noel nada pode fazer além de contemplar à distância a
beleza de Clara. Se ela ao menos pudesse ouvir-lhe o violão...
Embora se fale muito em morte no Mosteiro - nao a morte fim de todas as
coisas, mas o começo de nova existência, melhor que esta e portanto a ser
encarada como graça divina - Noel é todo vida neste 1927. Um garoto bem mais
alegre do que o ensimesmado poeta que, aos treze anos, seguindo os passos do
avô, escreveu um de seus primeiros e ainda imperfeitos versos a que deu o título
de "Desilusão":
Quando começou
A nossa amizade,
Eu só te pedia
Sinceridade.
Poderás te esquecer
Do meu sofrer;
Pra fugir ao tormento,
Eu prefiro morrer.
Se meu padecer
Te trouxer venturas,
Serei venturoso
Entre amarguras.
Mas não prefere morrer o Noel de agora. Não se deixa contagiar pelo
ambiente demasiado grave anuviado do colégio. Há muito de absurdo naquela
seção com que A Alvorada tenta convencer seus leitores de que morrer cedo é
um privilégio. Nenhum dos alunos, na verdade, acredita nisso. Respeitam mas
não compartilham da devoção dos monges a dom Pio Hemptinne beneditino
morto em 1907, aos 27 anos, e até lembrado por aqueles que lhe conhecem a
história marcada de muitos padecimentos e espantosa conformação. Foram suas
estas palavras: "Quão doces são as alegrias do sofrimento. Quão feliz é o
isolamento da cruz!
Nem morte, nem sofrimento. Noel prefere a vida, repleta de música e
esperança. Mesmo tendo O Mamão deixado de circular, não cessa as
brincadeiras com os deboches, as fustigadelas a pose de Piragibe, a tata melíflua
de certos monges, à surdez do Barreto, à colérica religiosidade de dom Joaquim,
ao sotaque de Carbone.
É mesmo um líder entre os companheiros. Convence muitos deles a se
desviarem do caminho do colégio, a jogarem futebol em Vila Isabel em vez de
assistirem à aula de Passos de Miranda. Mesmo sabendo que são atraentes suas
lições de história universal. Os mais atirados como ele continuam deixando-se
arrastar para o Mangue. O dinheiro é curto? Não tem importância. Sempre é
possível ficar por ali, num daqueles cafés de esquina, Noel tocando violão,
cantando, deixando impressionados os músicos do lugar, muitos dos quais
pedem-lhe que conserte seus pobres versos.
- Uma letra por uma cerveja! - propõe ele.
Às vezes vai ao poeirinha da Praça 11 de Junho onde César Dacorso Netto,
pianeiro estilo honky-tonk, faz música de fundo para os filmes de Carlitos, Chico
Bóia, Harold Lloyd, Ben Tur-pin, Buster Keaton, Buckjones, Pola Negri,
Valentino. É assim que ajuda o pai nas despesas com os estudos, seus e do irmão
Paulo Dacorso Filho. É um dos melhores alunos da turma, rival de Lauro de
Abreu Coutinho na luta pelo primeiro lugar no quadro de honra. Como Noel,
gosta de música. Os dois saem juntos da última sessão. Arranjara um passeio por
ali pertinho. O Mangue, naturalmente.
Mas nem todos os prazeres são tão adultos Como diz dom Meinrado, de
certa maneira Noel não quer crescer. Brinca como se a infância fosse eterna.
Surripia guloseimas do Altim, inventa piadas, canta paródias, ridiculariza
professores. Há muito de exibicionismo no que faz. Gosta de chamar a atenção,
de escandalizar as pessoas. À saída do São Bento, descendo a ladeira depois da
aula, não é raro vê-lo lançar estranhos desafios, propor esquisitas apostas.
- Caso dinheiro como vou do portão do colégio ao Largo de São Francisco
com a minha coisa de fora. Ninguém acredita que seja capaz de tanto. Cinco e
meia da tarde o centro da ciddade cheio de gente, hora de saída do trabalho. Da
Dom Gerardo ao Largo de São Francisco é uma considerável caminhada,
Avenida Rio Branco, Ouvidor, ruas movimentadas, terá Noel coragem? Diz um
dos colegas. Não Vai dar certo - prevê outro. Dois ou três aceitam a aposta.
Seguido a distância por todo um grupo de alunos do São Bento que riem, mais
de nervoso do que de outra coisa. Realiza pelo centro da cidade, braguilha
aberta, fingindo-se de distraído, homens e mulheres olhando-o perplexos, o mais
extravagante passeio de sua vida.
Contudo, por mais alegre, despreocupado e irreverente que seja, por mais
amor que tenha à vida, é justamente neste 1927 que vai travar seu primeiro
contato mais íntimo com a morte. Até aqui, tudo se passou mais ou menos longe,
o desaparecimento de alguém sendo algo que pouco lhe diz respeito, um parente
afastado, um vizinho a quem mal conhece, um nome nos anúncios fúnebres de
jornal. De volta das férias, no começo do ano já sabe da morte de Mendes de
Aguiar, homem com quem manteve relações tão pessoais: "... vós tendes a boca
já pronta para soprar uma flauta!" E pouco depois acontece a perda do colega de
turma João Carlos Corrêa.
Logo no primeiro dia de aula, 4 de março de 1927, dom Meinrado contou
aos quartanistas que João Carlos está com uma séria infecção intestinal,
contraída enquanto passava férias com os pais numa fazenda do sul de Minas.
Seu estado é grave. O reitor recomenda que todos vão à casa de João Carlos.
Mas a visita de pouco adianta. Noel e os colegas não conseguem vê-lo, o médico
não os deixando entrar no quarto. Sabem apenas que a febre não passa, que o
amigo sofre. No dia 17, morre. Tinha apenas dezesseis anos, a idade de Noel.
Como acreditar no que o aluno Arnaldo José Fernandes da Costa escreve nas
páginas de A Alvorada?
"Na véspera recebeu o João Carlos, com grande piedade, o conforto dos
Santos Sacramentos de nossa Santa Igreja e, pelas suas últimas palavras - 'Ó
Maria concebida sem pecados rogai por nós que recorremos a vós!' - se vê quão
resignado estava o seu espírito e pronto a ver Deus Nosso Senhor."
Como é possível alguém resignar-se a perder a vida aos 16 anos? A
ausência de João Carlos Corrêa é um choque para os alunos do São Bento. No
enterro, nas missas, nas salas de aula, sente-se isso. Mas ainda está por vir o
primeiro contato mais íntimo de Noel com a morte, neste ano em que ele é todo
vida.
Sábado, 15 de outubro de 1927. É quase de manhã quando Noel chega. O
bangalô ainda dorme. Como de hábito, o jovem boêmio de farda caqui
ziguezagueia silenciosamente por entre os móveis da sala, fazendo ginástica para
que ninguém o ouça. Atravessa toda a casa na ponta dos pés, passa pela cozinha,
sai no quintal. Talvez queira usar o banheiro de fora. Ou apenas sentir no rosto
um pouco mais da brisa da madrugada. Dá alguns passos, chega a poucos metros
do barranco. Súbito, pára. Jamais lhe sairá da lembrança o sinistro quadro que
seus olhos vêem: o corpo grande e pesado de vó Bella oscilando na ponta de
uma corda.
Seus gritos despertam toda a casa. Vai ser preciso algum tempo até que se
compreenda o que aconteceu. Bella, tão sem ânimo nos últimos meses, tão
desinteressada das pessoas e das coisas, levantou-se de madrugada, pegou uma
cadeira, foi para o quintal, amarrou uma corda de varal na trave do galinheiro,
enfiou o pescoço no laço que ela mesma preparou na outra extremidade, subiu na
cadeira. Tudo muito rápido, mas em silêncio, sem alarde, como sempre gostou
de viver.
Recato, discrição, o deixar-se ficar num canto sem incomodar os outros. A
vida toda foi assim Bellarmina de Medeiros Rosa. Aos 64 anos, porém, vinha-se
dizendo já sem forças, a idéia da morte perseguindo-a, as lamúrias substituindo o
falar pouco. Chamou-se um médico, Floriano de Araújo Góes, na esperança de
que algum remédio lhe devolvesse o ânimo. As queixas de Bella foram então
atribuídas a um cansaço passageiro, de forma alguma a uma efetiva vontade de
morrer. A sempre discreta Bella. Mas um suicídio é um suicídio. E por mais que
a família se empenhe para que o estrondo dessa tragédia não seja ouvido lá fora,
todos vão saber que dona Bellarmina se enforcou.
Na tarde deste mesmo sábado - enquanto o corpo estiver sendo velado na
sala do bangalô (o comissário do 16.° Distrito Policial, Ribeiro de Sá, e o médico
legista, Dr. Antenor Costa, concordaram que não se faça a autópsia), A Noite já
estará circulando com a notícia. Diz o título: "A vida era-lhe insuportável e a
pobre velhinha, atando um laço ao pescoço, suicidou-se."(1)
1. A Noite, 15 de outubro de 1927 (página 2).
Clara pode não ter ouvido a música de Noel, mas decerto entendeu-lhe a
letra. Ou melhor, os versos que ele lhe mandou como fecho de um bilhete
perturbador. É uma garota tímida. Fez quinze anos três dias antes do suicídio de
vó Bella. Nunca teve namorado, os irmãos sempre exerceram sobre ela uma
vigilância de cão-de-guarda, o fato de ser a caçula avivando neles os instintos
protetores. Mas já é uma moça, uma linda moça. Todos - ela principalmente -
sabem disso. Um pássaro cheio de encantos que já não se pode prender. É isso
que a perturba, a certeza de que seu tempo chegou, de que os irmãos já não
tentarão contê-la, de que versos como estes, do rapaz ali em frente, exigem
resposta. Passou a época em que podia esconder-se sob a sua meninice.
O bilhete é breve, objetivo, sem rodeios. O rapaz, que se assina "Noel",
pede que ela o encontre amanhã à noite, três esquinas mais para lá. Isto é,
Theodoro da Silva com Visconde de Abaeté. Clara, se não chegou a ouvir a
música que Noel tantas vezes lhe cantou do outro lado da rua, acompanhando-se
ao violão, notou-lhe o interesse, os olhares tão significativos. Também gosta
dele. Pelo menos até onde a distância entre suas casas permite avaliá-lo. Toma
coragem e escreve um bilhete em resposta: estará amanhã à noite no local que
ele sugeriu. Uma esquina que verá nascer entre os dois uma grande afeição.
Não será - como alguns pensarão - um simples namoro de adolescentes,
ligeiro, inconseqüente, sem deixar marcas. Por quase sete anos farão parte da
vida um do outro. Querendo-se bem, afastando-se, trocando juras, cumprindo-as,
esquecendo-se delas, mas sempre próximos. De início, os irmãos não se
importarão. Até farão gosto, um rapaz de boa família, simpático, aluno do São
Bento, com intenção de ser médico. Mas um gosto só no início, até perceberem
que sob a pele do menino magro, pálido, quieto, oculta-se incorrigível alma de
boêmio.
Vão se encontrar na Praça 7, na esquina, no portão. Raramente irão a algum
lugar sozinhos, um cinema, um passeio mais longe. Betinho, o do violão,
começa a namorar uma das gêmeas, a Marcolina (com quem acabará se casando)
. Na maioria das vezes os quatro saem juntos. Mas isso também só no início,
enquanto não descobrem que dois sempre sobram.
Seis, quase sete anos fazendo parte da vida um do outro. Clara será a
primeira namoradinha de fé de Noel. De certo modo, a única. Como em muitos
aspectos ele há de ser único na vida dela. Seis, sete anos. Enganam-se os que
pensam que naquela esquina de Vila Isabel teve início um simples e passageiro
amor de adolescentes.
Este como o outro parte de uma mesma e complicada questão: o que terá
acontecido realmente? A vingança de um professor levando o aluno à
reprovação e, depois, à tentativa de suicídio? Pode ser. É nesta versão patética,
beirando o trágico, que acreditam todos no bangalô. Mas são tantos os indícios
em contrário - o testemunho dos colegas, as tintas de inverossimilhança que
colorem a história, a reputação de Piragibe como homem sério e justo, o próprio
Noel - que não se deve desprezar a hipótese de tal versão não passar de uma
farsa. Ou seja, Noel inventando tudo para se livrar dos sermões do pai, cada vez
mais irritadiço e intolerante, e para ganhar a simpatia da mãe, cada vez mais
desapontada com o filho, bom boêmio, mau aluno. Afinal, foi ele quem contou
em casa sobre a "vingança de Piragibe" (só em 1929 Hélio conhecerá mais de
perto o professor). Desculpa, aliás, que voltará a usar em futuras reprovações.
Quanto à tentativa de suicídio, talvez não tenha chegado a inventá-la, mas tira
proveito dela. Em vez de zangas, é tratado com todo cuidado, atenções especiais,
repouso fora do Rio. Nenhum esforço fará para convencer a mãe de que foi
apenas um acidente.
Hipótese nem patética nem trágica, mas que cabe como uma luva no Noel
de agora, oprimido pelo pai, estudante pouco aplicado. E, já veremos, um garoto
de dezessete anos capaz de truques e simulações para enfrentar a vida, de mentir
para se salvar, de pôr no fogo um professor desde que se livre do fogo ele
próprio.
Capítulo 8
ADEUS AO MOSTEIRO
O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que ele não quer
aprender.
Meus Pensamentos
Pensando bem, não se parece com um suicida, nem tem jeito de quem leva
a sério os professores, o Noel Rosa que em março de 1928 está de volta às aulas
do São Bento. Nada mudou nele. O mesmo uniforme caqui (a cada lado da gola,
um 2 de metal substitui o escudo do colégio, único detalhe que distingue dos
demais os alunos alistados no Tiro de Guerra 2). O mesmo humor, a mesma
agitação nas aulas, a mesma irreverência para com os mestres. Antigos como
Piragibe, novos como dom Bento Villiger, dom Plácido Roth e o coronel
Eduardo de Albuquerque Sá.
Dom Bento chegou dos Estados Unidos há pouco. Não se sabe se é
americano, canadense ou suíço, como dom Meinrado. Sabe-se apenas que seu
português é muito limitado. Nas aulas práticas de química, recorre a todo
momento aos alunos quando uma palavra lhe escapa: - Como é mesmo! Cor...
Cor...
- Azul-completa um dos rapazes.
Numa de suas experiências, mistura nitrato de prata ao cloreto de sódio,
aquece o tubo de ensaio, faz surgir assim uma solução de cloreto de prata,
lactosa, quase branca. Mostra-a à turma e diz: - Aqui temos um líquido... Cor
de... Cor de...
Desta vez quem o socorre é Noel:
- De leite de pica.
- Isto, cor de leite de pica.
As aulas práticas de dom Bento são mais interessantes que as teóricas de
Piragibe, nas quais Noel costuma cantar, baixinho, modinhas e emboladas:
Eu fui no mato
Pra cortar o pau-pinheiro
Só pra ver se sou ligeiro
No cacete pra brigar
Dom Plácido leciona apologética. É mais camarada e bem menos empolado
que dom Pio Ziegenaus, que vive a atirar sobre os alunos seu palavrório em
latim: Quaerite primum regnum
Dei etjustitiam ejus haec omnia adjicientur vo-bis...
Dom Plácido é mais simples, só fala em português e prefere não complicar
as lições. É pouco exigente em suas sabatinas, fica satisfeito quando pode dar
nota alta a toda a turma.
Numa dessas sabatinas, vendo-o distraído, Noel apressa-se em abrir o livro,
colocá-lo sobre os joelhos e copiar o tema da prova. A janela está aberta, um
vento frio sopra de vez em quando. Tendo de fazer os olhos passarem rápido do
livro para o papel, deste para dom Plácido e novamente para o papel, não nota
que o vento vira uma das páginas do livro. E continua copiando, só que agora de
outro trecho mais adiante. Na aula seguinte, muito tranqüilo, dom Plácido manda
que ele se levante: - Vejamos sua prova, seu Noel.
E passa a ler. A certa altura, notam todos, Noel inclusive, o texto começa
com um assunto e repentinamente muda para outro. Embora bem escrito, palavra
por palavra igual ao livro, não faz sentido.
- Então, seu Noel, como é que o senhor explica isso?
Noel é sincero:
- O vento, dom Plácido. O vento explica.
Colar quase todos colam. Seja nas sabatinas do indulgente dom Plácido,
seja nas provas do implacável Albuquerque Sá, contratado nos primeiros dias do
ano para lecionar cosmografia, nova matéria do programa oficial (não mais
aquelas breves noções de astronomia descritiva aprendidas no segundo ano, mas
um programa mais extenso, aprofundado, que inclui desde o conhecimento, uma
a uma, das estrelas do Pólo Norte, por exemplo, até o estudo detalhado de
lunetas e aparelhos vários).
- Espero que vocês se adaptem aos seus métodos - adverte dom Meinrado
na véspera de apresentar o professor à turma. - É um coronel do Exército,
homem de rígida formação militar. Exigentíssimo, extremamente zeloso quanto
aos estudos e à disciplina.
E é verdade. Formação militar, porte marcial. Empertigado, cabelo cortado
curto, a fisionomia sempre fechada, parece estar em permanente posição de
sentido. Não é preciso zangar, ameaçar, falar alto para que os alunos assistam à
aula em silêncio. Sua simples presença, fria, impositiva, basta. Todos o
respeitam, alguns o temem. É mesmo um homem exigentíssimo, para quem a
correção, o agir direito, é mais que sagrado.
A primeira e difícil prova dada por ele ao quinto ano de 1928 versa sobre o
teodolito, instrumento astronômico e geodésico de medição. Três dias depois,
Albuquerque Sá entra em sala mais sisudo que de costume. Senta-se, tira da
pasta as provas corrigidas, coloca-as sobre a mesa.
- Senhor Noel de Medeiros Rosa! - chama com voz firme.
Niguém responde.
- Não está presente o senhor Noel? Alguém diz que não. Faltou, talvez
esteja doente.
- É pena...
Faz uma pausa como se para medir as palavras e continua:
- Pois eu gostaria de expor aqui, diante da turma, mas também na presença
do senhor Noel de Medeiros Rosa, tudo o que penso dele. Trata-se de um
desonesto, um moleque, um desqualificado!
Há espanto nos olhos dos alunos, mas Albuquerque Sá não pára por aí.
Vale-se de outros termos para expressar sua indignação, jura que não permitirá
que Noel continue freqüentando suas aulas, não o acha sequer merecedor de
estar num colégio como o São Bento. Chama à sua mesa Lauro de Abreu
Coutinho e César Dacorso Netto. Entrega a um a prova de Noel e a outro a
apostila em que está o ponto sobre o teodolito. Pede que leiam em voz alta, cada
um de uma vez. As duas são exatamente iguais, vírgula por vírgula. Até os
desenhos parecem copiados um por cima do outro.
- Seu Noel colou. Sim, colou vergonhosamente! Hei de fazê-lo pagar por
essa indignidade. Na minha sala, não entra mais!
No dia seguinte, assim que começa a subir a ladeira, Noel encontra os
colegas à sua espera. Contam-lhe o que houve, a fúria de Albuquerque Sá, suas
ameaças. Sem dizer nada, dá meia-volta. Só reaparece três dias depois,
justamente para a próxima aula de cosmografia. Ao vê-lo sentado numa das
carteiras da frente, o coronel não faz rodeios: - Foi bom o senhor ter vindo, seu
Noel, para que eu possa repetir na sua presença tudo que já disse a seu respeito
na aula passada.
E dispara a mesma fala enfezada, o desonesto, o moleque, o desqualificado
e tudo mais. Manda que Noel saia imediatamente de sala.
- Mas coronel...
- Assunto encerrado!
- Não é justo, coronel. Não se condena uma pessoa sem lhe dar o direito de
defesa. Logo o senhor, sempre do lado do certo.
Albuquerque Sá concorda em ouvir o que o aluno tem a dizer em sua
defesa. A explicação de Noel é simples: sabia a apostila de cor. Perdeu dias e
dias enfiando na cabeça cada palavra, cada traço de desenho sobre o teodolito. O
coronel não acredita. Noel jura que é verdade.
- Muito bem. Pois sente-se aí e faça aprova de novo. E basta que me ponha
uma vírgula fora do lugar que eu o expulso de sala!
Em menos de quinze minutos a nova prova está feita. Como a anterior,
igualzinha à apostila. Depois de lê-la, o professor empalidece.
- Santo Deus!
Pede aos alunos que esperem um instante. Não demora muito, retorna
acompanhado do reitor e de outros monges, Piragibe e outros professores. Na
frente de todos, visivelmente constrangido, diz: - Quero, na presença dos alunos
do quinto ano e de mestres do Ginásio de São Bento, pedir desculpas ao senhor
Noel de Medeiros Rosa. Cometi um erro terrível. Insultei-o, duvidei de sua
lisura, acusei-o de ter colado, quando na verdade, aluno exemplar que é, tudo
que fez foi uma prova perfeita. Humildemente, peço-lhe que me desculpe.
E Noel, com ar inocente:
- Está desculpado, coronel Albuquerque Sá e mais ninguém acredita na
prova perfeita. Porque, de resto, todo o São Bento sabe que Noel só decorou a
apostila depois daquela meia-volta na ladeira. É às gargalhadas que ele conta
isso aos colegas. Gargalhadas, afinal, de um garoto que realmente não hesita em
pôr um professor no fogo quando é ele que está para se queimar(1).
1. Nenhum dos quintanistas de 1928 se esqueceria do episódio que terminou com Albuquerque Sá pedindo desculpas a Noel diante da turma e dos demais professores. Os depoimentos só
divergem sobre o tema da prova, a maioria dizendo ter sido mesmo o teodolito, outros o sextante.
Noel Rosa levou oito anos para completar os preparatórioss ou ginasial, ou melhor, para conseguir o
chamado "bacharelato em ciências e letras" sem o qual não poderia, conforme desejo da família, entrar para
a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Eis um resumo desse longo curso trespassado de tropeços e
escorregões:
1923 - Aluno número 175 do Ginásio de São Bento. Primeiro ano. Matérias: aritmética, português,
geografia, desenho, francês e religião. Não houve provas finais. Automaticamente promovido ao segundo
ano.
1924 - Aluno número 199 do Ginásio de São Bento. Segundo ano. Matérias: aritmética, álgebra,
português, geografia (corografia & cosmografía), latim, inglês, francês, desenho e religião. Apresentou-se
para exames de bacharelato de aritmética e geografia no Colégio Pedro II, em janeiro de 1925. Reprovado
em ambos. Não compareceu às segundas épocas.
1925 - Aluno número 389 do Ginásio de São Bento. Repetição do segundo ano. Matérias e médias
anuais, já em vigor a Reforma Rocha Vaz: português (7), francês (8), latim (6), religião (não eram
conferidas notas), aritmética (5), geografia (8) e álgebra (reprovado), as três últimas finais. Aprovado com
nota 5 na segunda época de álgebra. Promovido ao terceiro ano.
1926-Aluno número 25 do Ginásio de São Bento. Terceiro ano. Matérias e médias anuais: português
(9,5), inglês (10), história universal (8), latim (9), religião (não eram conferidas notas), francês (7,5) e
álgebra (5,5), as duas últimas finais. Promovido ao quarto ano.
1927 - Aluno número 179 do Ginásio de São Bento. Quarto ano. Matérias e médias anuais: inglês
(4); física & química (reprovado), história natural (reprovado), apologética (não eram conferidas notas),
geometria & trigonometria (4), história universal (5,5) e latim (7), as três últimas finais. Reprovado também
nas segundas épocas de física & química e história natural. Para não repetir o ano, lançou mão do direito de
voltar ao sistema antigo, isto é, os exames de bacharelato se fazendo no Pedro II e conforme o programa por
este adotado. Com isso, entre outras coisas, Noel teria de fazer não apenas a prova de física & química, mas
também as de química e física em separado (cada uma delas desdobrada nos programas do quarto e quinto
anos) e história natural (do mesmo modo desdobrada em programas do quarto e quinto anos).
1928 - Aluno número 468 do Ginásio de São Bento. Quinto ano, mas a partir de então prestando seus
exames no Pedro II, na qualidade de candidato "estranho", como se dizia então. Os primeiros desses exames
realizaram-se logo em março de 1928: foi aprovado em física & química (4) e novamente reprovado em
história natural, ambas as matérias do quarto ano. Em dezembro, novos exames no colégio oficial: química
do quarto ano (9), física do quarto ano (9), história natural do quarto ano (6), inglês (reprovado) e história
do Brasil (reprovado). Submetendo-se agora ao programa do Pedro II, enquanto nove de seus colegas de
turma (Lauro de Abreu Coutinho, César Dacorso Netto, Antônio Fernandes Lopes, Lucílio Urrutigaray,
Rozendo Marinho de Oliveira, Aulo Fiúza Cerqueira, João de Carvalho, Manuel Fernandes Meirelles e
Roberto Vianna Guilhon) bacharelavam-se no São Bento, ele chegava ao fim do curso seriado "devendo"
sete matérias: história do Brasil, inglês, química do quinto ano, física do quinto ano, história natural do
quinto ano, cosmografía (incluída no currículo em 1928) e filosofia (a partir de 1929).
1929 - Exames no Colégio Pedro II: em março, inglês (7) e história do Brasil (reprovado); e em
dezembro, história natural do quinto ano (3,55), física do quinto ano (5,22), química do quinto ano (4,22),
cosmografía (reprovado) e história do Brasil (reprovado).
1930 - Exames no Colégio Pedro II: em março, cosmografía (4,5), filosofia (7,5) e história do Brasil
(reprovado). A 14 de novembro, o Decreto-Lei 19.404, assinado pelo recém-empossado presidente da
República, Getúlio Vargas, estando as aulas de todos os colégios e faculdades do país suspensas desde o
início da revolução de outubro, determinava que os estudantes, sem exceção, fossem aprovados ou
promovidos em seus respectivos exames e cursos. Desse modo, por decreto presidencial, Noel livrou-se da
história do Brasil e fez-se bacharel.
Noel volta a culpar Piragibe por seu fracasso. É verdade que o professor já
não faz parte das bancas que o examinam. Mas, explica Noel, tem muitos amigos
no Pedro II e pediu-lhes que continuassem a espremê-lo. É mesmo vingativo o
"urso de membros atrofiados". Martha acredita. Escreve para Carmem
informando-a de tudo, as reprovações dos meninos, o castigo imposto por Neca,
o ambiente em casa. Diz que já não discute com o marido. É inútil. Hoje, quando
ele fala, reclama, zanga, sonha, ela prefere se calar. Mas tem pena dos filhos, tão
moços, tão oprimidos. Carmem, também penalizada, escreve ao cunhado em
termos veementes. Implora que não prenda os sobrinhos, que os deixe sair ao
menos no carnaval. "Em nome dos meus três filhos", acrescenta. Pela mesma
época, recebe de Bica de Pedra uma carta em que Eduardinho lhe pede opinião
sobre outra carta, escrita a ele por Neca. Manda-a anexada à sua, suplicando-lhe
reserva. Toda essa correspondência, trocada nos primeiros dias de 1929, vai
mostrar que os três irmãos, embora distantes, buscam solucionar juntos uma
crise familiar, por enquanto imprecisa, mas que o tempo acabará agravando de
forma irreversível.
Nesta troca de cartas, nenhuma será tão abrangente, tão lúcida, tão
esclarecedora quanto a que Carmem mandará em resposta a Eduardinho, datada
de 16 de fevereiro. Primeiro, atendendo ao pedido do irmão para que opine sobre
o que Neca lhe escrevera, é sucinta: "Ele julga dizer muito, dizer tudo, e no
entanto quase nada diz." Prefere alongar-se nos comentários à carta da irmã, que
ela acredita carecer de muita ajuda: "Não é, compreenda-se, o auxílio pecuniário
que ora precisamos dar-lhe e sim o moral, o conforto, alguma paz de espírito.
Não haverá um meio de afastá-lo ao menos temporariamente de junto dela, para
que a vida tenha uma feição mais calma? Ele está entregue à idéia dos barcos e
nós vemos naquilo uma utopia. Não é, não pode mesmo ser uma coisa vantajosa,
principalmente para a posição dele, precisando de manter a família, precisando
prestar mais atenção à pobre Martha, que se está exaurindo, não no trabalho
porque está habituada, não o temendo ou evitando, mas nesse desassossego
enorme em que está vivendo. É possível trabalhar assim? Ele não lhe dá tréguas.
Eu vi, assisti a muita coisa. Ela está bem modificada e não alterca mais. A cada
injustiça, a cada irreflexão dele, chora e chora muito. Eu calculo o que sofre a
nossa pobre Martha sem o carinho da inigualável e bondosa e insubstituível
Bella. Sem o carinho de mamãe, que era o seu consolo ultimamente. Responda-
me com franqueza: não se vê uma possibilidade dele fazer aí algum trabalho
numa fazenda dessas?"
Ou então, sugere ainda Carmem, Eduardinho poderia escrever a Neca
dizendo que vai ao Rio em março e perguntando se os reparos no chalé já estão
concluídos. Isso talvez fizesse com que ele se ocupasse mais em tais reparos, em
vez de apoquentar tanto a pobre Martha. Carmem refere-se a outras cartas da
irmã, todas no mesmo teor, queixando-se do marido, de seus incendimentos, das
economias que consome nos malditos barcos, ou então nos livros que adquire às
dúzias. Faz compras a crédito, voltam a bater em sua porta os prestamistas.
Martha sente-se envergonhada. E preocupada com o relacionamento de Neca
com os filhos: "Ela se queixou" - prossegue Carmem a Eduardinho - "que os
meninos estavam castigados demais e injustamente, pois Hélio fez todos os
exames e só tem de repetir o de álgebra para entrar no quarto ano. Noel perdeu
história do Brasil e inglês, mas ficou provado que não foi culpado nesse
fracasso."
Lúcida, Carmem fala ao irmão do "estado de exaltação" do cunhado. E num
tom sombriamente profético:
"... eu tenho muito medo que o fim seja terrível... Você sabe e disse há
pouco tempo que ele caminhava a passos largos para um triste fim. E eu só
penso nisso!"
Ventos maus seguem soprando. Para onde levam o barco da família?
Cândido das Neves, Freyre Júnior, Uriel Lourival, estes são os autores
prediletos dos seresteiros de Vila Isabel. E, claro, Catulo da Paixão Cearense,
palavroso como sempre:
Espúmeos ais que em branca areia
O quieto mar vem derramar
São fontes perenais de ingente amar...
Ou não:
Prossegue embora em flóreas sendas, sempre ovante
De glórias cheia e no teu sólio triunfante...
Menos pelos versos chulos, criados para melodias alheias, mas pelo que
sabe fazer ao violão, acompanhante de cantores da madrugada, Noel Rosa torna-
se conhecido. Seu nome já corre pelo bairro: "Só tem dezoito anos. E que
violão!" Triplicam os recados no Carvalho, repetem-se as solicitações para que
atue em festas e serenatas. Até que um dia é procurado por um grupo de jovens
como ele: - Somos do Flor do Tempo.
O nome não lhe diz muito. Mesmo depois que os rapazes explicam tratar-se
de um conjunto musical por eles formado há três anos para exibições em
residências, espetáculos amadoristas e festivais beneficentes. O conjunto
começou exclusivamente com alunos do Colégio Batista, da Rua José Higino, na
Tijuca, mas depois foi crescendo até ter gente - moças e rapazes - de toda parte.
Entre os fundadores estavam os filhos de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt,
firma que funciona na Rua Chile(1), vendendo e alugando máquinas
registradoras importadas da Inglaterra.
1. Atual Rua da Ajuda.
Tal habilidade, proclamada com tanta veemência, venceu qualquer resistência de Eduardo Dale e eu fui, imediatamente, admitido nas hostes do seleto agrupamento." A partir daquele
momento, mais do que um simples calouro do grupo, Almirante ficou sendo o seu líder.
Uma liderança que jamais perderá. Especialmente no novo conjunto que vai
surgir, cujas atividades serão rigorosamente regidas por suas vontades: caberá
invariavelmente a ele escolher o repertório, indicar o solista, decidir que músicos
de fora ajudarão no acompanhamento, dizer em que dia e hora será feita esta ou
aquela apresentação em público, neste ou naquele lugar. Opinará sobre os
arranjos, aprovará ou não as músicas e letras que os companheiros trarão para
seu julgamento. Será também o divulgador do conjunto. Um eficientíssimo
divulgador. Furão, vivo, cheio de idéias, sempre descobrindo um modo de
promover-se e aos colegas, vai se dever a ele a maior parte da notoriedade que o
novo grupo venha a conseguir. Noel conheceu-o há alguns anos, quando
Almirante tentou, sem êxito, comprar-lhe um velho projetor manual de cinema.
Depois disso, houve muitos encontros ligeiros pelas ruas do bairro, mas
nenhuma aproximação maior. Afinal, enquanto Almirante trabalhava no
comércio e, nas horas vagas, entregava-se ao convívio com os meninos ricos do
Flor do Tempo, raramente parando nos botequins e esquinas de Vila Isabel, Noel
estudava e fazia de sua rotina escolar uma permanente sucessão de horas vagas;
e enquanto Almirante levava vida pacata, metódica, Noel desde cedo seguia sua
vocação boêmia. Natural, portanto, que não houvesse entre eles maior
aproximação.
Encontro com Noel
"Foi em 1923 que conheci Noel Rosa. Eu fora aluno do Liceu Rio Branco, à Rua Conde de Bonfim,
186, na Tijuca, onde depois se instalou e ainda existe o Instituto LaFayette para meninas(5).
5. Já não existe o Instituto LaFayette. O casarão da Conde de Bonfim onde funcionava o setor feminino do colégio (e antes dele o Liceu Rio Branco) foi demolido. Em seu lugar está hoje o
prédio da Mesbla.
Ali, um dia, ganhei do meu colega Paulo Guerreiro um pequeno rolo de filme natural, colorido, sobre
o bicho da seda. Minha família morava no então Boulevard, hoje Avenida 28 de Setembro, número 287,
Vila Fontan, casa 4. Na ansiedade de ver o minúsculo filme, tentei obter um projetor e disso falei a todos os
meus conhecidos. Eis que meu irmão mais moço, Guido, lembrou-se de um colega que desejava desfazer-se
de um aparelho manual, baratíssimo. Fiquei aos pulos e apressei meu irmão para que trouxesse o tal
companheiro à minha presença o mais breve possível.
No dia seguinte, um domingo à tardinha fui procurado em minha casa por um garoto mirrado,
franzino, quase sem queixo, com fardamento do Colégio São Bento, conduzindo, embrulhado num jornal,
um pequeno projetor de cinema. Era Noel Rosa.
Não se fechou o negócio. Por vinte mil réis Noel Rosa venderia o projetor; no entanto, nem rachado
poderia pagar essa fortuna. Basta se avaliar a situação da casa: o aluguel era de oitenta mil réis por mês e,
nessa altura, eu já trabalhava na Casa Cruz, na Travessa de São Francisco de Paula, defronte do Parque
Royal, recebendo por mês noventa mil réis. A firma constituía-se de duas lojas, uma de vidros e imagens de
santos, e a outra, uma papelaria. Aos domingos de manhã, comparecia para a limpeza dos espelhos, vitrines
e arrumações. Daí em diante, em Vila Isabel, de noite, encontrava Noel Rosa, mas pouco nos ligávamos."
Almirante
Braguinha, ou melhor, Carlos Alberto Ferreira Braga, é filho de Jerônimo
José Ferreira Braga Netto, aquele mesmo diretor da Fábrica Confiança que cedeu
o açude e um motor de barco para que Neca e Aníbal realizassem suas
experiências aquáticas. Braguinha tem 22 anos, é o mais velho dos quatro. Toca
violão sofrivelmente, canta mal, mas compõe mais do que bem. Em sua
residência, dentro das próprias dependências da Fábrica Confiança, o Flor do
Tempo ensaiou muitas vezes (e na certa vai ensaiar o novo conjunto). Como os
outros dois companheiros do quarteto que procura Noel, estudou no Colégio
Batista.
Henrique Britto, dezenove anos, é sem dúvida o melhor violonista de todos.
Por esta época, já gravou discos na Odeon solando composições suas e alheias.
Nasceu em Natal, onde, menino de calças curtas, suas proezas ao violão
impressionaram de tal maneira o governador do Rio Grande do Norte, Antônio
José de Mello e Souza, que este decidiu custear-lhe os estudos no Rio de Janeiro.
(Consta que a admiração do governador por Henrique Britto deveu-se não só ao
fato de o menino, então com doze anos, ter participado de um concerto no Teatro
Carlos Gomes, em Natal, solando peças difíceis numa corda só, mas também ao
de já ser, bem antes disso, um precoce autor de valsas, choros, lundus, obras
especialmente para violão.) Há quem veja nele um gênio. Mas há também quem
o considere meio aluado, desconforme, mais para louco do que para gênio.
Agitado, falando as coisas pela metade, como uma metralhadora que dispara e de
repente enguiça. Intempestivo, estabanado, aéreo. Um bom companheiro,
embora impossível de se conhecer bem. Ora muito calado, ora loquaz além da
conta. Mas de uma loquacidade telegráfica, quase monossilábica. É anterior à
sua adesão ao Flor do Tempo o trágico episódio de que foi protagonista durante
um dos passeios que os alunos do Colégio Batista costumavam fazer aos
domingos pelas matas da Tijuca, partindo da Rua do Trapicheiro. Numa cabana
abandonada, Britto e seu grupo encontraram uma velha pistola. Sempre
afrontado, ele pegou a arma, apontou-a contra a própria cabeça e puxou o
gatilho. Ouviu-se um estalo. Parecia descarregada. Em seguida, o mesmo Britto
voltou a pistola para um dos colegas e puxou novamente o gatilho. Um tiro foi
atingir o peito do outro, matando-o. Os anos se passaram e Britto nunca mais
falou no acidente. Como se não tivesse acontecido. Mas continuou o mesmo,
aluado, intempestivo, entre o gênio e o louco.
O quarto e último dos que vêm procurar Noel é Álvaro de Miranda Ribeiro,
o Alvinho. Carioca como Almirante e Braguinha, dezenove anos, violonista,
compositor bissexto, mas cantor afinadíssimo.
Sabedores das qualidades de Noel e precisados de um quarto violonista para
completar o conjunto com que pretendem gravar na Odeon, os quatro lhe
propõem juntar-se a eles. Há uma razão especial para que seja um quinteto. O
conjunto, em vez de Flor do Tempo, vai se chamar Bando de Tangarás, como os
pássaros fandangueiros que, sempre em grupos de cinco, quatro formando roda e
o quinto saltitando no centro, dançam alegremente.
O conjunto, também já está decidido, é amador. Ninguém receberá um
níquel para se apresentar em festas, reuniões, casas de família. Ou mesmo em
teatros e outros lugares em que se cobram ingressos. Dinheiro para as
passagens? Nem isso. Quando muito terão uma participação nos lucros que as
gravadoras obtiverem com seus discos.
- Não podemos deixar que nos confundam com profissionais - sentencia
Almirante, consciente do quanto é malvisto quem vive de música!
É justamente pensando nisso - em não serem confundidos com profissionais
- que Braguinha sugere que cada um dos tangarás adote um pseudônimo para
usar em suas atividades musicais. Por que não um nome de pássaro? Ele próprio
escolhe o do joão-de-barro, transformando-se assim no compositor, cantor e
violonista João de Barro. Com isso, acredita que ficará perfeitamente camuflado,
ninguém associando seu nome ao do filho do diretor da Fábrica Confiança
Industrial. Mas os outros não lhe seguem o exemplo. Almirante já tem o seu
próprio pseudônimo, ganho há dois anos quando, servindo o tiro de Guerra
Naval, desfilou posudo ao lado do Comandante Mathias da Costa, por ocasião da
chegada ao Rio do hidroavião Jaú. Tão posudo que o povo, de farra, começou a
chamá-lo de "almirante". Desse modo, quem antes era o Henrique, ou o Foreis,
ficou sendo para sempre o Almirante. Henrique Britto, o Britto como o chamam
todos, já teve um apelido: Violão. Foi na época do Colégio Batista, quando era
quase impossível vê-lo longe do instrumento.
A lenda dos tangarás
"Uma lenda do Norte do Brasil nos conta que o canto dos tangarás é tão mavioso, tão bonito, que os
índios embrenham-se pelas matas atrás desse gorjeio encantado e por lá ficam semanas inteiras distraídos
pelos verdadeiros concertos que esses pássaros dão no seio da natureza virgem. Os tangarás se reúnem em
bandos de cinco e enquanto um deles canta e marca, por assim dizer, o compasso, os demais respondem em
coro e saltitam como se dançassem no ritmo da música. E a lenda nos diz ainda que enquanto os tangarás
cantam os outros pássaros calam, fazendo-se o mais respeitoso silêncio na mata.
Daí veio a idéia de um amador que, sob o pseudônimo de Almirante, vem obtendo através dos discos
um sucesso cada vez mais acentuado com o conjunto típico que tem o nome dos pássaros lendários. Trata-
se de Almirante e seu Bando de Tangarás: quem não os conhece?
O intuito do bando, composto exclusivamente de amadores, todos empregados em várias profissões,
estudantes ou doutorandos, é levar aos discos as músicas interessantes do folclore brasileiro."
Phono-Arte
30 de setembro de 1930
Também não quer ter nome de pássaro. Álvaro de Miranda Ribeiro já é
Alvinho há muito tempo. Para que mudar? Quanto a Noel, aceita fazer parte do
conjunto, mas rejeita a idéia de chamar-se de outro modo senão de Noel Rosa
mesmo. A vida inteira não vai querer ser mais do que isso: Noel Rosa. Ainda
que venha a tornar-se famoso - e os locutores de rádio passem a apresentá-lo
com os mais escandecidos cognomes, o Poeta da Vila, o Sócrates, o Bernard
Shaw, o Filósofo do Samba - fará sempre questão de deixar bem claro que é
apenas o Noel Rosa(6).
6. Em entrevista publicada por Voz do Rádio de 15 de novembro de 1936, o repórter perguntava:
"- O samba é sempre o mesmo, não é filósofo?
- Qual filósofo, qual nada. Sou o Noel Rosa."
Era mesmo assim que gostava que o tratassem, pelo nome. Apelido, nem os mais elogiosos.
NASCE O COMPOSITOR
Fiz uma toada, Festa no Céu, que dediquei ao bairro onde nasci, ou seja,
Vila Isabel. Concluída a composição, cantei-a para mim somente. Depois para
os parentes e amigos. Todos gostaram. Havia emoção - disseram. Havia
originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz alvoroço dentro de mim.
entrevista ao Jornal de Rádio
De lacinho à borboleta
Veio o veado galheiro
E o burro de luneta
Montado num carroceiro;
A mesma coisa se pode dizer de Minha Viola. Isto é, sendo uma embolada,
claramente nos moldes dos cantadores nordestinos, tem a forma aparentemente
amarrada a tudo aquilo que é feito no gênero: um estribilho no qual o compositor
coloca toda a sua singularidade melódica e uma sucessão de versos, em geral
improvisados, que cabem perfeitamente em quase todas as emboladas que se
conhecem. Por isso elas se parecem tanto umas com as outras. Mas ainda aqui o
Noel Rosa compositor principiante tem muito de original. Seu humor não é
exatamente caipira. Como provam os versos em que faz referência ao célebre
doutor Voronoff e suas tão comentadas experiências no campo dos enxertos(4).
4. Mais do que comentadas, as experiências de Voronoff foram motivo de muita glosa no Brasil daqueles dias. Antes de Noel, Lamartine Babo e João Rossi já haviam explorado o assunto em
Seu Voronoff, marcha gravada por Francisco Alves em 1928. Serge Voronoff, médico russo, assumiu em 1921 a chefia do laboratório de cirurgia do CoUège de França em Paris. Ali realizou suas
célebres experiências sobre rejuvenescimento, a partir de enxertos de órgãos de animais. Não teve êxito.
Minha viola
Tá chorando com razão
Por causa duma marvada
Que roubou meu coração.
Nesta cidade
Todo mundo se acautela
Com a tal de febre amarela
Que não cansa de matá,
E a dona Chica
Que anda atrás de mau conselho
Pinta o corpo de vermelho
Pra o amarelo não pegá.
Eu já jurei
Não jogá com seu Saldanha
Que diz sempre que me ganha
No tal jogo do bilhá,
Sapeca o taco
Nas bola de tal maneira
Que eu espero a noite inteira
Pras bola carambolá.
Conheço um veio
Que tem a grande mania
De fazê economia
Pra modelo de seus filho,
Eu tive um sogro
Cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff,
Doutô muito creditado
E andam dizendo
Que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro
Miando pelos telhado.
Adonde eu moro
Tem o bloco dos filante
Que quase que a todo instante
Um cigarro vem filá
E os danado
Vem bancando inteligente
Diz que tão com dô de dente
Que o cigarro faz passá.
A troca deu certo. Como baixo ou barítono Renato Murce jamais chegaria a
ser um Mareei Journet, muito menos um Feodor Chaliapin, mas como "cantador
nordestino" será conhecido em breve como o Príncipe dos Cantores
Regionais(5).
5. Valem algumas palavras sobre o que então se entendia por "regional". Além do tipo de música que os grupos "nordestinos" - o Bando de Tangarás entre eles - interpretavam (cocos, toadas,
emboladas, martelos, jongos, cateretês, sambas de roda, cantigas), regionais também eram os cantores que, como Renato Murce, se dedicavam a tais gêneros. Regionais, ainda, ficaram sendo os grupos
compostos de violão, bandolim ou cavaquinho, pandeiro e outros instrumentos rítmicos, em alguns casos saxofone ou flauta, que os acompanhavam. Daí a denominação de regional para os conjuntos,
muitos deles de choro, liderados por Benedicto Lacerda, Canhoto, Rogério Guimarães, que logo em seguida passariam a acompanhar os cantores em gravações e apresentações ao vivo, já então em
valsas, sambas, música carioca e não apenas nordestina. Essa denominação, de certa forma, veio até nossos dias.
Conheço um véio
Todo cheio de besteira
Num gosta de brincadeira
E é ranzinza que é danado
Um cabra torto
Com doença nas espinha
Num havia mais meizinha
Que pudesse indireitá
Ouviu o samba,
Levantô-se de repente
Já num tava mais doente
Já queria inté brigá...
Uma muié
Tinha brigado com o marido
Fez tamanho alarido
Lhe tirô todo o sossego
Outra, Salada Russa, brinca com as vogais criando rimas em assa, essa,
issa, ossa, ussa, mas poucos se lembrarão dela:
É assa, é essa, é issa, é ossa, é ussa,
Este samba parece uma salada russa
Chico Arruaça
Que é amigo da cachaça quando bota a mão na massa
Já se sabe, foi trapaça.
Seguem mais dois versos com rima em essa que completam a estrofe.
Sempre intercaladas pelo refrão, sucedem-se as partes em issa, ossa e ussa, os
últimos versos esclarecendo que a embolada acabou sendo uma salada russa(7).
7. O próprio Renato Murce ensinou esta embolada aos autores. Já não se lembrava, porém, de toda ela, que jamais chegaria ao disco.
Que crueldade!
Eu ser um sonhador
Ela não entender meu amor
Qual a razão
Por que minha paixão
Não a pode comover?
Somente o criador
Sabe do amor
Que consagrei
A quem tanto amei
À hora propícia
Em que a malícia
Dela se apoderar
Com meu violão
Direi então
O meu pensar
E se ainda
Essa ingênua linda
Não me compreender
Eu, já descrente,
Direi que ela
É inocente
Até morrer...
A canção só será gravada no ano que vem por Gastão Formenti. Terá novo
título: Meu Sofrer. Mas a mesma letra de Noel:
Sem estes teus tão lindos olhos,
Eu não seria sofredor
Os meus ferinos abrolhos
Nasceram do nosso amor.
Pra Zé Sampaio
ela olhou desconfiada
Tava tão encabulada
Que caiu o seu rosário
Ele apanhou
o rosário da caboca
Mas a coragem era pouca
Pra falá com a mulhé
Depois pensou
e pra não perder a vaza
Guardou o rosário em casa
Pra dá quando Deus quisé
E o Zé Sampaio
foi-se embora lá do Norte
Pois teve a pió das sorte
Que se pode imaginá:
No mês de maio,
quando vortô à capela,
Pra entregá o rosário dela
Ela não quis aceitá
Os cabocos do rincão...
Dois home se apaixonaram
E um dia quando se oiaram
Tiveram a mesma intenção
Pois bem. Daqui a alguns anos - mais precisamente em 1932 - Noel partirá
destes versos inéditos para recontar a trágica história de dois homens
apaixonados pela mesma mulher. Mas trocará o tempero sertanejo pelo molho da
cidade, o imaginário arraial do Bom Jesus pelo nada imaginário morro da
Mangueira, os dois caboclos do rincão por dois malandros do Rio, siá Chiquita
por Rosinha, cabrocha de alta linha. E, o mais importante, a canção sertaneja
pelo samba. Disso resultará Quando o Samba Acabou, mais do que uma versão
revista, aumentada e urbanizada de Mardade de Cabocla, o primoroso atestado
da adesão definitiva de Noel Rosa ao gênero que o consagraria:
Lá no morro da Mangueira
Bem em frente à ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu "não sei quê"
Na segunda batucada,
Disputando a namorada,
Foram os dois improvisar.
Sempre foi e ainda é grande a admiração de Noel por Sinhô, este mulato
alto, magro, desdentado, que mesmo em processo de visível decadência física, os
pulmões escravizados à tuberculose, não perde o aprumo. Uma admiração tão
grande que, tempos atrás, ainda no São Bento, Noel convenceu Hélio a irem
juntos conhecer de perto o célebre Rei do Samba, então brilhando no carnaval,
no teatro de revistas, nas festas familiares, nos prostíbulos, nas gafieiras ou onde
pudesse fazer ouvir os seus sambas:
Minha cabocla, a Favela vai abaixo
Quanta saudade tu terás deste torrão!
Depois disso Noel voltou a ver Sinhô aqui e ali, em casas editoras de
música, em festas, na Penha, em Vila Isabel. Reencontrou-o sempre mais pálido,
mais gasto. Mas merecedor da mesma admiração. Tanto pelas melodias que
compõe como pelas letras que escreve, cariocas, críticas, irônicas, matreiras. Ao
gosto de Noel em muitos pontos, em especial na malícia, no duplo sentido de
versos que mocinhas ingênuas talvez cantem sem saberem o que significam:
É moda agora quando ferram o namoro
Beberem água na tal caneca de couro
Ou:
Daí, então, dar-te eu irei
O beijo puro da catedral do amor...
Noel realmente admira Sinhô e o estilo de música que ele produz. Acontece
que já existe outro tipo de samba sendo feito e cantado no Rio de Janeiro de
agora. Nos morros, em alguns bairros, nos subúrbios. Menos conhecido, por
enquanto, mas tão inspirado e arrebatador que em breve tomará conta de toda a
cidade. Este outro tipo de samba coexiste com aquele a que se dedicam Sinhô,
Hilário, Caninha. E também José Francisco de Freitas, o Freitinhas. E toda a
turma de Pixinguinha. Aquele samba aparentado com o maxixe, nascido ou não
na casa de Ciata - ou de outras "tias" baianas como Gracinda e Maria Adamastor
- mas muito executado em festas, salas de espera de cinema, coretos, teatros,
picadeiros, gafieiras. O novo tipo de samba, bem menos difundido, se coexiste
com aquele, lhe é muito diferente em forma e conteúdo. E é precisamente esta
diferença que seduz o jovem compositor de Com Que Roupa?
Como, onde e quando terá nascido este samba? Tudo indica que enquanto
aquele outro vem do começo da década passada e é produto da Cidade Nova,
este mais novo surgiu há poucos anos no Estácio de Sá, bairro situado entre o
Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a zona do Mangue. Dali se
espalhou pelas vizinhanças, galgou as encostas da Saúde, Salgueiro, Mangueira,
seguiu as linhas de trem até Ramos, Engenho de Dentro, Penha, Madureira, foi
abrindo seus braços para envolver toda a cidade.
Mas se não há dúvidas quanto ao onde e ao quando, o como já é bem mais
complicado. Nem mesmo aqueles que plantaram as sementes das quais brotou
este samba parecem saber ao certo como tudo começou. Ismael Silva, por
exemplo, vai morrer jurando que o samba do Estácio de Sá nasceu, como tanta
coisa mais, de uma necessidade. Sendo muitas vezes feito para os desfiles dos
vários blocos das redondezas - ao passo que o samba da Cidade Nova destinava-
se mais a animar os bailaricos organizados pelas "tias" baianas -, estaria nesse
detalhe a diferença. Isto é, segundo Ismael, à necessidade que os blocos têm de
cantar sua música marchando e não dançando, deve o samba do Estácio de Sá as
suas características, a estrutura rítmica e os contornos melódicos que o
distinguem. Embora seja uma explicação respeitável - ainda mais por vir de
alguém que caminha para se tornar um dos reis deste tipo de samba -, não
encerra a questão. Afinal, há muito de dançável também no samba do Estácio de
Sá. E muito de amaxixado no que cantam os demais blocos do Rio.
O que conta, porém, é que o samba do Estácio de Sá é rítmica, melódica e
poeticamente distinto do samba da Cidade Nova. As dessemelhanças rítmicas
talvez se devam a ter sido ele criado a partir dos refrões cantados nos improvisos
de partido-alto e rodas de batucada, herdando destes uma pulsação por si só já
diferente da dos sambas de Sinhô, nos quais ainda se encontram vestígios não só
do maxixe, mas também do lundu. Tal pulsação - sua alma - resulta de ser o
acompanhamento feito basicamente por instrumentos de percussão, na maioria
fabricados pelos próprios ritmistas ou por eles inventados. Se na Cidade Nova as
festas são animadas por músicos treinados, bons tocadores de piano, flauta,
clarineta, cordas e metais, no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou
cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro. Ou
acompanhamento ainda mais rudimentar, palmas cadenciadas ou batidas em
mesas, cadeiras, copos, garrafas. Uma seção rítmica barata, bem de acordo com
as magras algibeiras do sambista. O certo é que aos poucos os estribilhos de
partido-alto e batucada foram se transformando, se enriquecendo, trocando os
dois, três versos de antes por maior arrojo formal. As segundas partes deixaram
de ser improvisadas e começaram a ser feitas especificamente para cada samba.
Este detalhe, somado à mudança de pulsação, acaba alterando também a
estrutura melódica, agora recorrendo a desenhos mais extensos e elaborados.
Quanto à parte poética, o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da
maneira mais simples, a vida dos morros e das casas de cômodos, das
populações pobres, dos malandros e de outros indivíduos à margem da
sociedade. Marginalização esta que mantém sua música longe do disco por
tantos anos, sua divulgação fazendo-se naturalmente, de modo espontâneo, de
boca em boca. Mas é mesmo desta vida marginal que fala a maioria dos sambas
de lá. Seus temas são a valentia, a batucada, o jogo, a orgia, o malandro e suas
mulheres, o sambista desocupado e suas promessas jamais cumpridas de
regeneração.
Se Hilário, Freitinhas, Caninha, Sinhô são os bambas da Cidade Nova, o
Estácio de Sá também tem os seus nomes de respeito, Alcebíades e Rubem
Barcellos (este morto há dois anos, prematuramente, de tuberculose), Edgar
Marcelino dos Passos, o Mano Edgar, Francelino Ferreira Godinho, Oswaldo
Caetano Vasques, o Baiaco. E também Tibélio dos Santos, Sylvio Fernandes, tão
preto que o chamam de Brancura. E ainda os dois melhores dentre eles todos:
Nílton Bastos e Ismael Silva. São negros e mulatos que moram ou transitam por
ali. Uns trabalham, outros jamais o farão, mas todos cultuam o samba.
Costumam se reunir de noitinha no Café do Compadre, no número 26 da Rua
Santos Rodrigues, de propriedade do português José Domingues. Ou então no
Apollo, mais para o Largo do Estácio. Ou ainda em qualquer parte onde se
possa, entre duas esquenta-por-dentro, improvisar música e versos. Mas foi
mesmo no terreno de uma das casas de cômodos da rua Estácio de Sá, esquina de
Maia de Lacerda, que estes sambistas se reuniram, há um ano, para organizar o
bloco Deixa Falar. Tão importante que vai reivindicar - não sem bons motivos-a
honra de ter sido a primeira "escola de samba" da história.
A muitos desses sambistas Noel conhecerá de perto. De outros ouvirá
apenas os nomes e os sambas:
Ela era a rainha
Do bloco Deixa Falar
Mas perdi toda a esperança
Porque a vi conversar com Francelino
Que é o bamba do lugar(4)
4. Citado por Sérgio Cabral em As Escolas de Samba - o Quê, Quem, Como, Quando e Por quê? (páginas 22,e 23). O samba teria sido cantado pela Deixa Falar no carnaval de 1929, e o
Francelino em questão seria o Ferreira Godinho.
Até esta segunda metade de 1929, não muitos desses sambas chegaram ao
disco. Mas os que o fizeram, se Noel teve oportunidade de ouvi-los (como
provavelmente teve), serão o bastante para reforçar ainda mais sua convicção de
que este é o melhor samba carioca. Por exemplo:
A malandragem eu vou deixar
Eu não quero saber da orgia
Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia
Ou este:
Sei que tu andas sofrendo
Estás arrependida do que já me fez
É teu destino, mulher,
Eu não te perdôo
Porque tu vais me enganar outra vez
Hoje, dando seus primeiros passos como compositor popular, Noel tenta
chegar ao tesouro por conta própria. Seus primeiros contatos com o samba do
Estácio de Sá podem ter acontecido de muitas formas. Talvez ao tempo de
estudante, quando, financiado por colegas como o Ministrinho, freqüentava o
Mangue e seus cafés onde se ouvia música ao vivo. É bom lembrar que bem
perto, colado ao Mangue, está o Estácio. e mais adiante o Catumbi e o Rio
Comprido. E que muitos habitantes do morro de São Carlos e malandros das
imediações já eram praticamente "moradores" daquela zona boêmia. Pode ser,
também, que tais contatos se tenham dado nos carnavais da Praça 11 de Junho. E
se intensificado mais tarde, já em Vila Isabel, através do que para lá têm levado
Canuto, Puruca, Maciste, Osso, gente do morro. Ou quem sabe não terá ocorrido
nas constantes peregrinações do jovem compositor a bairros e morros como
Madureira, Oswaldo Cruz, Mangueira, Ramos, Salgueiro, lugares aonde já
chegou o novo samba, levado ou não pelos sambistas do Estácio de Sá?(6)
6. Diz Ismael Silva a Sérgio Cabral, op cit (página 28): "Nós ajudávamos muito a Portela. Ajudar no sentido de divulgar, promover. A Mangueira também, nós ajudávamos bastante. O
pessoal do Estácio era sempre convidado para ir a todos esses lugares. Nós tínhamos muito prestígio na época..." Marília T. Barbosa da Silva e Lygia Santos, em Paulo da Portela, Traço de União Entre
Duas Culturas (página 70), contam: "Todos os fundadores da Portela por nós inquiridos foram unânimes em afirmar que foi o pessoal do Estácio que levou o samba para Oswaldo Cruz." Os sambistas do
Estácio, na verdade, circulavam muito. Compreende-se que a troca de informações musicais se desse rapidamente. O samba do Estácio e vizinhanças, nascendo ou não ali, espalhou-se. Cedo ou tarde
Noel e os outros rapazes de classe média de Vila Isabel teriam de tomar conhecimento dele. Só que Noel o fez primeiro.
De qualquer modo, Noel deixa-se seduzir por ele muito antes de os outros
tangarás despertarem de seu sono nordestino para a realidade da autêntica
música carioca.
Com Que Roupa? nasce perfeitamente identificado com os arrojos formais
dos sambas do Estácio de Sá. Se não parecerá tanto, será porque os
acompanhamentos instrumentais de suas duas primeiras gravações - uma de
regional, outra de orquestra - ainda estarão muito afinadas pelo diapasão do
maxixe. Mas certo é que, chegado o momento de romper com o modismo das
coisas nordestinas para levantar vôo em forma de samba, é nas asas da turma do
Estácio de Sá que Noel embarca. Não tentando fazer igual a Rubem, Baiaco,
Brancura, Nílton, Ismael, sambistas que no máximo conhece de vista, mas
inspirando-se neles para criar seu próprio estilo. Nesse sentido, Com Que
Roupa? é obra formalmente nova, revolucionária quase. Não que vá fazer escola,
estabelecer modelos, abrir caminho para que outros por ele sigam.
Revolucionária porque representa um começo de rompimento dos jovens
compositores de classe média - Noel e só depois dele o Bando de Tangarás -
primeiro com o pseudo-sertanejo e logo em seguida com o samba amaxixado
que a partir de 4 de agosto de 1930, quando morre Sinhô, vai morrer também.
Mas tio Eduardo, um dos primeiros a ouvir Com Que Roupa?pronto, não
percebe nada disso. Como não percebe que os três compassos iniciais do novo
samba que o sobrinho canta, ou seja, o verso "Agora vou mudar minha
conduta...", têm rigorosamente as mesmas notas que Francisco Manuel da Silva
compôs há quase cem anos para o Hino Nacional Brasileiro. Plágio?
Evidentemente que não. Nenhum compositor, nem mesmo o mais desfaçado,
ousaria tanto. Distração? Pouco provável. Noel, que adora solar o Hino Nacional
ao violão e desde o São Bento vive fazendo paródias sobre sua melodia,
dificilmente não perceberia a semelhança. Coincidência? Quem acreditaria?
Não é curioso que Noel Rosa retrate o "Brasil de tanga" num samba que
começa justamente com as mesmas primeiras notas do Hino Nacional, "Ouviram
do Ipiranga às margens plácidas..."? Ou terá sido intencional? Quem sabe Noel
pretendeu mesmo fazer esta citação quase literal à melodia do Hino Nacional? A
resposta há de morrer com ele. Mas, quando se observa que não apenas o
primeiro verso, mas toda a letra de Com Que Roupa? cabe perfeitamente na
música de Francisco Manuel da Silva, sílaba por sílaba, nota por nota, torna-se
ainda mais provável a hipótese de que as coisas - como o próprio descobrimento
do Brasil - não aconteceram por acaso. E que muito possivelmente o samba
nasceu como mais uma entre tantas paródias do Hino Nacional, em cima da qual
Noel teria retrabalhado, alterando a melodia e mantendo apenas a citação do
primeiro verso.
O Bando de Tangarás tem apenas um disco para gravar na Odeon até o final
de novembro. É preciso andar depressa para que o lançamento se faça ainda em
dezembro, do contrário não poderá ser incluído no último suplemento Parlophon
para o carnaval de 1930, o primeiro do conjunto. Os dois lados do disco são logo
definidos. Um deles é Não Quero Amor Nem Carinho, de João de Barro e
Canuto:
Amor...
Carinho...
Eu não quero
Já jurei:
nunca mais hei de amar,
hei de amar...
O outro lado será Com Que Roupa?, que Noel mostrou a todo o conjunto,
recebendo, mais do que aprovação, palavras de entusiasmo. O samba bem pode
ser o carro-chefe dos tangarás nas batalhas que se aproximam. Mas antes que se
pense na gravação é preciso passar as duas composições para a pauta e levá-las
ao editor. João de Barro, que já cuidou da sua, recorrendo a um amigo maestro,
oferece a Noel: - Se você quiser, este meu amigo escreve o seu samba também.
Oferecimento aceito, no mesmo dia Noel, João de Barro e Almirante vão
juntos à casa de Homero Dornellas, na Rua Torres Homem. Homero é um
músico competente e generoso. Filho de Sophonias Dornellas, compositor e
regente de peças para teatro, principalmente revistas e operetas, o próprio
Homero compõe. E toca, entre outros instrumentos, o violoncelo. Tem ambições
maiores do que as que se confinam no campo da canção popular. Sonha em
escrever poemas sinfônicos, peças de câmera, obras dramáticas. É o inventor de
um curioso instrumento, o arranholino, simples caixa de charutos sobre a qual
adaptou uma única corda de violoncelo que emite bizarro som quando sobre ela
se faz deslizar um arco de violino. Homero chegou a obter sucesso com o
arranholino em festas e recitais em que se apresentou, no Rio, na Bahia, no
Amazonas, não se sabe se pela beleza ou se pelo inusitado do som. Hoje, entre
suas várias atividades musicais, a mais estável e bem remunerada (embora não
muito) é a de pianista da Casa Vieira Machado, onde desde o ano passado
substitui o jovem e talentoso compositor gaúcho Radamés Gnattali na função de
passar para a pauta as canções populares daqueles que não sabem escrever
música. Homero no piano, cuidando da partitura, e Joracy Camargo com lápis e
papel na mão, caprichando na parte literária, são pagos por seu Ernesto para
realizarem muitas vezes o milagre de transformar em algo editável os rascunhos
que compositores incultos lhes trazem.
Mas não é este, evidentemente, o caso de Noel Rosa: Com Que Roupa? não
é um simples rascunho e sim uma obra plenamente acabada. Ou, pelo menos,
parece. Na casa da Rua Torres Homem, onde Homero faz uns trabalhinhos por
fora, cobrando dez, vinte mil réis por um serviço que sairia bem mais caro na
editora (a comissão do Vieira Machado é sempre muito gorda), o maestro é
apresentado aos dois amigos de João de Barro, seu conhecido desde as festas do
Clube Progresso da Fábrica Confiança.
- Este rapaz aqui fez um samba interessantíssimo, Homero. E nós queremos
lançá-lo para o carnaval.
Homero senta-se ao piano e pede que Noel cante o samba. Fica observando
o rapazinho mirrado, oblíquo, cujos dedos compridos escorregam pelo braço do
violão enquanto canta, tímido mas afinado:
Agora vou mudar minha conduta...
De início Homero concentra-se mais no jeito de o rapaz movimentar a boca
- mastigando um palito de fósforo como se a disfarçar o queixo torto - do que
propriamente no samba. Depois, porém, coloca o pentagrama na sua frente e
pede para Noel repetir do começo. Homero faz uns acordes no piano, prepara-se
para escrever as primeiras notas, mas pára:
- Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: "Agora vou
mudar minha conduta..." Repete isso.
Noel obedece.
- Essa música não pode ser publicada - interrompe Homero.
- Por que não?
- Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da
censura não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido
fazer brincadeiras com o Hino Nacional.
Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:
- E agora?
- Ora, a gente dá um jeito - tranqüiliza-o o maestro. - Com sete notas
simples e cinco alternadas, temos doze notas na escala cromática. Com isso a
gente faz o que quer. Vamos inverter algumas notas desta primeira frase, "Agora
vou mudar minha conduta..."
Homero mostra no piano como a linha melódica sofre ligeira alteração,
fugindo à semelhança com o Hino. Muito simples. Noel canta o samba mais uma
vez, agora em sua forma definitiva, as primeiras notas invertidas pelo maestro.
Assim, menos parecido com o Hino Nacional, ao que talvez seu compositor
desejasse, Com Que Roupa? vai para a pauta, a caminho de se transformar num
sucesso do carnaval de 1930. Só que a música popular, como a própria História,
tem seus caprichos. As vezes ocultos pela proposta tímida de um compositor
modesto como Homero Dornellas: - Antes que vocês se fossem, gostaria de lhes
mostrar um samba que comecei a escrever. Querem ouvir?
João de Barro, Almirante e Noel concordam em ficar mais um pouco para
conheceren o refrão que Homero diz ter escrito a partir de um toque de corneta
ouvido pela primeira vez quando ele servia a bordo do navio Poconé, como um
dos soldados das tropas mandadas ao Amazonas por ocasião do movimento
armado de 1924(7).
7. Ainda uma vez a chamada Revolução Paulista de 1924, ligada ao "tenentismo".
Na Pavuna... Na Pavuna...
Tem um samba que só dá gente reiúna.(8)
8. Reiúna - e não "reúna" como tem sido comumente escrito - é um tipo de espingarda curta do Exército, hoje em desuso. O termo também era empregado em relação a tudo que dizia
respeito aos soldados, "farda reiúna", "bota reiúna", no sentido de farda ou bota militar.
Já que não tem samba ou marcha de sua autoria para cantar neste carnaval,
só resta a Noel brincar com as melodias dos outros, sambas como Na Pavuna e
Amor de Malandro, marchas como a premiada Dá Nela e a contagiante Pra Você
Gostar de Mim, ou simplesmente Taí, que começa a transformar numa estrela a
novata Carmem Miranda. Se quiser cantar o que é seu, Noel terá de se contentar,
mesmo, com os improvisos do Faz Vergonha.
Além de dividir social e economicamente a comunidade do bairro, o
Boulevard também estabelece a fronteira que separa os dois grandes e sempre
rivais blocos de Vila Isabel. Um deles é o Cara de Vaca, formado pela turma da
Souza Franco mais para o lado da Torres Homem. É um bloco organizado,
mantido em parte pelo dinheiro do Lourenço e de outros cidadãos ligados ao
jogo do bicho. Sai na manhã do domingo de carnaval para um desfile que às
vezes só acaba no meio da tarde. Moças e rapazes na frente, cercados por um
cordão de isolamento, e um caminhão atrás, carregado de comida e bebida. Os
foliões dão início ao desfile, cantam um sucesso do ano, param, comem, bebem,
seguem em frente cantando outro sucesso, param outra vez, novas degustações,
assim por diante. Já o bloco rival, o Faz Vergonha, surgiu na Rua Maxwell, nas
proximidades da Fábrica Confiança. É bem mais democrático, sem cordão de
isolamento, aberto para quem quiser entrar ou sair. Por ele desfilam homens do
povo, como Antenor Grande, Candinho, Piscalhada, Gude e Canuto, e rapazes
que vêm do outro lado do Boulevard, como os irmãos Boamorte. Noel é figura
de destaque no Faz Vergonha, uma vez que cabe a ele - e assim será por mais
alguns anos-a tarefa de improvisar versos, dividida com Lauro Boamorte e Paulo
Anacleto.
O desfile do Faz Vergonha difere do do Cara de Vaca principalmente por
isso: enquanto o outro sai cantando sucessos do ano, o bloco a que Noel pertence
parte de um estribilho original, composto por um de seus integrantes, e em
seguida os improvisadores criam versos para a segunda parte. Um dos estribilhos
mais famosos do bloco é feito por Canuto:
Vou à Penha rasgado
Pra pagar uma promessa
Deixei de ser malandro
Pois eu tenho trabalhado
Vou de chinelo charlotte
E terno de cimento armado,
Pois é o que a fiota tem dado...(1)
1. Com letra ligeiramente modificada e segundas partes definitivas, escritas por João de Barro, Vou à Penha Rasgado seria gravado em 1931 pelo próprio João de Barro com o Bando de
Tangarás. Mas sua origem está mesmo nos desfiles do Faz Vergonha.
Aos filhos - Lauro, Hélio, Aloysio e mais nove - deu-lhes boa educação,
ensinou-lhes a apreciar música e poesia, encaminhou-os na vida.
Mas, definitivamente, Lauro não é o melhor versejador do Faz Vergonha.
Vai-se descobrir mais tarde que enquanto Noel improvisa suas segundas partes
para os sambas do bloco, criando-as na hora, em pleno curso do desfile, não
importando qual seja o mote, Lauro traz as suas idéias de casa. Em algumas ele
trabalha dias, semanas, antes do carnaval. Em outras será possível detectar
rimas, imagens, quando não versos inteiros, que o "improvisador" Lauro pediu
emprestados à literatura de cordel e outras fontes que nem todos no Faz
Vergonha conhecem.
Paulo Anacleto impressiona mais pela quantidade. Seus improvisos podem
não ter a inventiva dos de Noel (ou o acabamento dos quais o Lauro vai buscar
onde pode), mas jorram em uma fonte realmente inesgotável: ele é capaz de
passar horas versejando sobre um mesmo tema, com um fôlego tão
impressionante que ninguém, nem mesmo Noel, consegue acompanhá-lo. Paulo
e seu irmão Manuel, excelente tamborim, fazem parte da ala mais "familiar" do
Faz Vergonha. Eles, os Boamortes, os Barros Nunes, os Farias Lima, Armando
Reis, Arnaldo Amaral, Antônio Nássara, Sizeno Sarmento, rapazes de classe
média que, chegado o carnaval, vestidos de sujo, saiote, batom, rouge, fita na
cabeça, sapato alto, confundem-se na folia com modestos homens do povo como
Canuto, negro do Salgueiro.
O desfile de blocos é um dos pontos altos das batalhas de confete do
Boulevard. Desfile competitivo como um dia será o das escolas de samba. Um
palanque de madeira é armado no cruzamento do Ponto de 100 Réis. Nele fica a
comissão julgadora integrada por cronistas carnavalescos, autoridades,
intelectuais, artistas, personalidades do bairro. O pessoal costuma chamar o
palanque de "coreto". Diante dele passam o Faz Vergonha, o Cara de Vaca, o
Decididos do Engenho Novo, blocos de outros bairros que ali vão com suas
fantasias de sujo, suas baterias, seus sambas (nem todos passam, como o Faz
Vergonha, improvisando a partir de um refrão original) . Há quem diga que a
expressão "balançar o coreto", tão ao gosto do carioca, nasceu num desses
desfiles, ou melhor, de ter um dos blocos perdedores virado de pernas para o ar o
palanque e a comissão julgadora que cometeu a imprudência de dar o prêmio ao
bloco rival. E há quem diga, também, que o nome Faz Vergonha vem justamente
de ser este grupo de foliões -ao qual pertence Noel - um contumaz fazedor de
vergonha: basta que não obtenha a preferência da sempre suspeita comissão
julgadora para que seus componentes mais exaltados balancem o coreto, seja o
do Boulevard, sejam os que se armam para as batalhas das Ruas Dona Zulmira e
Santa Luzia (estas, hoje e por mais alguns anos ainda, as mais concorridas da
cidade). Mas há pinceladas de exagero nestas questões etimológicas, embora no
Faz Vergonha realmente existam alguns valentes da melhor linhagem.
Como o Martim José Dionísio, também conhecido por Martim Adeus Ó
Colo. Grandalhão, braços volumosos, mãos imensas, forte como um gorila, mas
uma dama. Sempre falando baixo, calmo, incapaz de perder a calma mesmo
quando eventualmente algum desavisado o provoca.
- Que é isso, compadre, não tem amor à vida? - limita-se a dizer.
Martim não provoca ninguém. Em toda a sua vida só uma vez será ele o
desafiante em vez de desafiado. No dia em que o Circo Barthô se instalar no
terreno baldio da esquina de Justiniano da Rocha com o Boulevard, cairá em
suas mãos um folheto de propaganda informando que uma das atrações da
companhia é um urso campeão de luta livre. O gerente da empresa pagará 500
mil réis - um belo dinheiro - a quem resistir a um round de dez minutos com o tal
urso. Martim, vindo de Minas Gerais para servir de guarda-costas de políticos
seus conterrâneos, talvez não ganhe tanto por mês. Quinhentos mil réis! É
pensando nas coisas que faria com o prêmio que ele vai se candidatar a medir
forças, no centro do picadeiro, com o urso campeão. Toda Vila Isabel, Noel
inclusive, irá vê-lo lançar-se à empreitada na matinée de domingo. Martim vai
entrar no picadeiro, tranqüilo como sempre. E assim que se abrir a jaula, o urso
ainda meio distraído com a gritaria do público, avançará para o animal, trocará
murros com ele, lhe aplicará uma gravata, quase mandará a nocaute o peludo e
corpulento adversário. Mais do que resistir a um round, Martim derrotará o
campeão. Sairá todo mordido e arranhado, mas vitorioso. Para exasperação do
gerente da empresa, que chegará a pensar em não pagar o prêmio: "Você pegou
meu urso distraído!", dirá. Sem discutir, Martim vai envolver com seus braços
massudos o mastro que sustenta a lona do circo, balançá-lo de um lado para
outro, fazê-lo estremecer. O gerente de olhos arregalados, o público de
respiração suspensa e Martim, sempre agarrado ao mastro, gritando: "Ou me
paga, ou eu boto esta bosta abaixo!" De noite, calma recuperada, o corpo coberto
de curativos, o vencedor do urso estará pagando, feliz da vida, cerveja para todos
no Martinez. Com os 500 mil réis, é claro. O mais comum, porém, é ser ele o
desafiado. Como se passa no dia em que um jovem aluno da Academia Militar
aparece no Ponto de 100 Réis com ares de valente: - Tem gente boa de briga por
aqui? pergunta a um dos rapazes da esquina.
- Não, amigo. Aqui é tudo de paz.
-Mas ouvi dizer que Vila Isabel é terra de decidido. Vim só pra ver se é
verdade. Gostaria de pôr à prova o melhor de vocês.
O rapaz da esquina logo nota que o jovem cadete é um provocador, desses
que adoram uma confusão. Na certa luta boxe, jiujitsu, capoeira ou algo que
tenha aprendido lá na Academia Militar. Um cadete alto, atlético, bem
apessoado. Bonito, mesmo. Forte, mas não muito. Está confiando em quê? Na
força ou na farda? Mas já que ele quer mesmo arranjar briga, o rapaz da esquina
resolve fazer-lhe a vontade.
- Olha, amigo, gente boa de briga não tem por aqui, não. Mas posso lhe
trazer, agora mesmo, alguém pro senhor pôr à prova.
O cadete se anima. Uns dez, quinze minutos depois o rapaz volta
acompanhado do Martim José Dionísio. Mal são feitas as apresentações, o
cadete, sem se impressionar com o tamanho do outro, põe-se a desafiá-lo,, a
dizer que não acredita muito nos seus músculos, que briga se ganha com
inteligência e não com força, coisas assim. Martim ouve calado. E quando o
cadete finalmente o chama para um ajuste, diz com o tom de voz baixo, brando,
quase sussurrante: - Que vergonha, moço! Um futuro oficial do nosso Exército
amofinando gente pacata, querendo perturbar a ordem. Que vergonha! Tá
pensando que o país é seu?
E se afasta com os passos lentos, pesados, deixando o provocador ainda
mais humilhado que o urso que ele quase mandou a nocaute. O jovem cadete vai
desaparecer do Ponto de 100 Réis, mas continuará pensando que o país é seu.
Um dia, arma em punho, invadirá o Palácio Guanabara disposto a tirar de lá
ninguém menos que o Presidente da República. Seu nome, Severo Fournier, será
lembrado por isso(3).
3. Severo Fournier comandaria o putsch integralista que a 11 de maio de 1938 tentaria assassinar Getúlio Vargas dentro do Palácio Guanabara. Era então tenente e declarava-se "apenas um
descontente", sem vínculos com o partido de Plínio Salgado ou qualquer outro. Fracassada a tentativa, Fournier se exilaria na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro. Depois de prolongadas conversações
diplomáticas, foi entregue âs autoridades brasileiras, julgado e condenado a dez anos de prisão. Ele, Júlio do Nascimento e Belmiro de Lima Valverde, também participantes do atentado. Fournier seria
libertado em 1945 e morreria no ano seguinte de tuberculose adquirida na prisão. O episódio com Martim Adeus Ó Colo foi contado aos autores pelo General Sylvestre Travassos, na época morador do
bairro.
Por quê? Não gosta Almirante da voz de Alvinho? Ainda não está
convencido das qualidades do compositor Noel Rosa? Por que vai demorar tanto
a lançá-lo? A primeira oportunidade negada a Noel foi realmente a de gravarem
Com Que Roupa? já para o carnaval de 1930. Agora, a folia fica para trás, os
tangarás retomam suas atividades de meio de ano, continuam gravando
composições de Almirante, João de Barro, Henrique Britto e até de gente de fora
como Erasmo Vollmer, Luciano Meirelles, Jota Menra, Henrique Vogeler,
Lamartine Babo, Homero Dornellas, Canuto, Mário Faccini, Luperce Miranda,
Manuel Lino, Brant Horta. Todos estes terão músicas suas gravadas pelo Bando
de Tangarás antes que chegue a vez de Noel. Não há como explicar tal demora.
E quanto ao cantor Noel Rosa? Até que seu nome apareça no selo de um
disco do conjunto, este já terá gravado nada menos de 54 faces, cabendo a
Almirante solar 33, João de Barro 13 e o violão de Henrique Britto uma. As
restantes serão distribuídas entre solistas ocasionais como Paulo Netto de
Freitas, a dama da alta sociedade Lucilla, a delicada Elisinha Coelho e os
humoristas Pinto Filho e Maria Vidal. O cantor Noel Rosa? A não ser por uma
discreta participação em Lataria, brincadeira sonora em que cada um deles
cantará uma quadrinha, terá mesmo de esperar dois anos e dois meses, desde
Anedotas e Galo Gamizé, até que os tangarás lhe dêem vez como solista.
Já essa outra demora explica-se a partir de três dados indiscutíveis. O
primeiro está em ser mesmo Almirante, longe, o melhor cantor dos cinco. Um
cantor que vai aprimorar cada vez mais sua técnica, tornando-se sempre melhor
com o passar dos anos. A voz estridente mas clara, a agilidade verbal que o
permite pronunciar perfeitamente cada sílaba, mesmo nas músicas mais ligeiras,
sua exata noção de ritmo, a musicalidade, tudo isso fará dele um dos mais
completos intérpretes de música popular brasileira. Bom em quase todos os
gêneros, ótimo numa embolada, imbatível num samba-choro. É natural, portanto,
que seja sua a maioria dos solos.
O segundo dado é o jeito desgarrado de Noel, aquele temperamento de não
pertencer exatamente a nada ou a ninguém, sendo tanto dos tangarás como de
outros conjuntos, inclusive o de Renato Murce. E sendo sempre ele mesmo,
sozinho, livre. Almirante, com toda sua autoridade de líder, compreende isso,
não se zanga quando Noel não aparece para um ensaio, um recital, uma
gravação. Se tal acontece, os tangarás seguem sem ele. Até porque há sempre
quem o substitua, pois de quinteto mesmo o conjunto só tem o ponto de partida,
contando sempre com numerosos "adendos": Luperce Miranda, Daniel Simões,
Sérgio Brito, Lamartine Babo, Formiga, Erasmo Vollmer, Dornellas, Canuto e
tantos outros.
O terceiro dado são ainda as "esquisitices". Isto é, aquela história de a
maioria dos amigos de Noel nada ter a ver com os amigos dos demais tangarás.
Não se parecem, nenhuma afinidade guardam com os bem-comportados moços
de Vila Isabel. Como diz Almirante, Noel tem uma incontrolável tendência às
más companhias(7).
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável tendência ãs más
companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 120).
Na Pavuna foi mesmo uma das músicas mais ouvidas no último carnaval.
Muito pelo refrão (em cuja força Almirante fez bem em apostar), mas muito
também pela originalidade do acompanhamento, o surdo e os tamborins levando
ao disco uma marcação e um repinicado não conhecidos dos estúdios de
gravação.
Mas a vontade de inovar sempre mais vai levar Almirante a outras
experiências, de modo que, infelizmente, a associação dos tangarás com a batida
dos morros será um episódio isolado, não repetido. Assim, após uma breve volta
às emboladas, toadas, valsas e canções, inclusive uma regravação de Anedotas, o
conjunto se lança a outra ousadia.
Almirante e João de Barro vão de bonde, de Vila Isabel à Rua Almirante
Barroso, sem idéia do que gravarão do outro lado de Mulata, samba do próprio
João de Barro, quando lhes passa pela cabeça uma brincadeira sonora. Que tal
usarem no disco, em vez do surdo e dos tamborins, nada menos do que toda
sorte de latas velhas que encontrarem no primeiro monte de lixo do Centro?
Latas do que for, banha, querosene, creolina, manteiga, substituindo os
verdadeiros instrumentos de percussão. Em cima de um estribilho que os dois
compõem durante a viagem...
Já que não temos pandeiro
Para fazer a nossa batucada
Todo mundo vai batendo
Na lata velha e toda enferrujada ..
Cada um dos tangarás terá de cantar uma quadrinha alusiva à lata que lhe
caberá bater na marcação do ritmo. Almirante e João de Barro entusiasmam-se
com a própria idéia e a levam ao maestro Eduardo Souto.
A Odeon e a Parlophon já não são as mesmas desde que assumiu a direção
artística da Casa Edison este estupendo compositor, pianista, orquestrador e
regente. Músico extraordinário, ser humano fascinante. Dizem que descende de
nobres, neto de um certo Visconde do Souto. Nascido em Santos, lá começou a
estudar piano. Clássico, evidentemente. Mas, a exemplo de muitos jovens de
família como a sua - que começam com Chopin e acabam mesmo desaguando
nas valsas brasileiras, nos choros, tanguinhos, polcas, música mais ligeira que se
ouve em festas e saraus - Souto já era, aos vinte e poucos anos, dono de uma
respeitável obra pianístíca nos moldes das de Ernesto Nazareth, Chiquinha
Gonzaga e seu coestaduano Marcello Tupynambá. Só que mais ampla, mais
aberta, voltada para várias frentes. Reflexo de seu próprio temperamento, rico,
múltiplo, ora extrovertido, alegre, ora soturno, nostálgico, sua música é arte de
muitas faces, havendo nela lugar para tudo, tangos de salão, marchas, fox-trots,
choros, fados, valsas, schottisches, maxixes, chulas, charlestons, cateretês,
ragtimes, sambas.
Um paulista surpreendentemente carioca. Pois foi ele o responsável pela
organização do já histórico Tatu Subiu no Pau, bloco carnavalesco que fez furor
em 1923, o próprio maestro compondo a marchinha que toda a cidade cantou nos
três dias:
Tatu subiu no pau
É mentira de vancê
Lagarto ou lagartixa
Isso sim que pode sê
É um choro à moda carioca o seu Parati Dançante, cujo subtítulo está muito
mais para Noel do que para Almirante: "Na Favela e demais zonas congêneres
não se usa o chá como estimulante para as danças." E no entanto, o múltiplo
Eduardo Souto é capaz também de compor melodias apaixonadas, etéreas como
Nuvens, chorosas como a valsa Tristeza. E o que dizer destas obras-primas que
são Do Sorriso da Mulher Nasceram as Flores e Despertar da Montanha, escritas
no mesmo piano em que foi composto o saltitante Viradinho, cateretê que Mário
de Andrade inclui entre suas peças populares prediletas?
Fascinante sob todos os aspectos. Basta dizer que o mesmo folião que saiu
de sujo naquele bloco de 1923 é o homem elegante e bonito que há anos vem
atraindo moças suspirantes à Casa Carlos Gomes, no 153 da Rua do Ouvidor,
para ouvi-lo tocar no piano românticas valsas, líricas canções. Bem vestido, uma
precoce mecha branca a matizar-lhe a cabeleira bem penteada, o maestro Souto
faz bater mais forte muitos corações. Mas, homem transitório, aqui, com os
tangarás, não é nada disso, e sim um músico divertido, alegre, brincalhão, que se
entusiasma com a idéia da batucada de latas que Almirante e João de Barro
trazem para a nova gravação do grupo. Neste 1930, Eduardo Souto já está perto
dos cinqüenta anos(9), mas tem o espírito tão jovem quanto o dos rapazes de
Vila Isabel.
9. Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.
Não se pode dizer que o produto sonoro de Lataria tenha sido dos melhores.
É, no mínimo, bastante inferior ao obtido com Na Pavuna. Instrumentos e
instrumentistas fazem pouco mais do que barulho na cúpula do Teatro Phoenix.
Um barulho que os incipientes recursos técnicos das gravações de agora só vão
acentuar. Instrumentos metálicos, estridentes. Instrumentistas que ainda têm
muito a aprender com Canuto e sua gente.
Importante, contudo, é que esta abertura de Eduardo Souto para novidades
musicais, ainda que em tom de brincadeira como a que Almirante e seus tangarás
acabam de gravar, será valiosíssima para a música popular. Como diretor
artístico-homem sem preconceitos de gêneros ou estilos, atento a tudo, ele
próprio gostando de ousar - franqueará os estúdios a muita gente nova e
talentosa, gravará outras experiências sonoras, apoiará artistas como Almirante
em suas iniciativas de trazerem para o disco a percussão dos morros, os
sambistas instintivos até aqui marginalizados da música como profissão. Vai-se
dever muito a isso a riqueza dos catálogos Odeon e Parlophon nos próximos
anos. Mas é necessário dizer que esta postura de Eduardo Souto - de abrir
sempre mais os horizontes da música popular através do disco, registrando todos
os gêneros, formas e tendências, mesmo as aparentemente mais inviáveis como
Lataria ou as confessadamente mais primitivas como as ouvidas nos terreiros de
macumba - é lúcida, consciente. O maestro acredita nela(11). Para sorte dos
tangarás.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro, substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a revista Phono-Arte dedicava
ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse acontecendo na música brasileira, do samba da moda ao ainda
pouco conhecido canto dos terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de experiências sonoras domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco contendo de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um Conjunto Africano, sairiam
Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na música dos escravos (e até mesmo uma "cena de escravidão" que o próprio Souto comporia com Newton Braga para Francisco Alves cantar),
desafios, cenas humorísticas, rancheiras, pregões, rumbas, danças orientais, uma "reza de malandro" (também de Souto), tudo isso seria gravado nos selos Odeon e Parlophon enquanto o maestro
estivesse à frente da direção artística da Casa Edison.
A música é melhor que a letra, mas não chegará ao público. Noel vai
preferir aproveitar a idéia, ou melhor, as idéias contidas no esboço e fazer dois
sambas de um. Num deles mantém o estribilho acima, com ligeiras modificações
na melodia, e acrescenta-lhe novas segundas partes, música totalmente diferente
e letra que nada tem a ver com a original:
Vivo alegre no meu barracão
Não preciso de mobilia
Pois toda a minha família
Consta de um chicote, de um facão,
De uma ripa ainda donzela
Que vai ter sua função
A esta segunda versão Noel dará o mesmo título do esboço, Vou Te Ripar,
gravando-a ele mesmo, ano que vem, para o carnaval de 1932(14).
14. Almirante se equivoca, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 178), ao dar a primeira versão de Vou te Ripar como a que foi cantada nas ruas no carnaval de 1932. Deve
ter-se baseado no esboço que Noel deixou em seu caderno de letras ou na partitura manuscrita, hoje parte do acervo do Arquivo Almirante do Museu da Imagem e do Som, Rio. A versão gravada,
popular no carnaval citado, é mesmo a segunda.
Mas, se vai pôr de lado a melodia da segunda parte original, não deixará de
aproveitar a idéia poética em outro samba que também gravará para o carnaval
de 1932, Nunca... Jamais!, de melodia, primeira e segunda partes, inteiramente
nova:
Meu bem, não me faças sofrer,
Tu queres ter liberdade demais.
Os homens tu conquistas um por um,
Sem amar nenhum...
Não, não pode ser, nunca... jamais...
Em tempo algum!
Este filho de Dona Martha só vive metido com gentinha. Noel ainda não
tem vinte anos e já pode considerar-se bastante familiarizado com as coisas da
malandragem, sua gente, suas leis, seu apaixonante ainda que estranho mundo.
Sente-se atraído por ele. Mesmo que não viva exatamente de acordo com suas
regras, aceita-as, faz sua apologia em letra de samba. Os malandros o fascinam,
sempre o fascinarão. A sociedade pode marginalizá-los, persegui-los, amaldiçoar
seu modo de vida. Mas quem mais - mesmo com todas as freqüentes passagens
pela cadeia - conhece tão de perto as cores da liberdade? O malandro é livre a
seu modo.
Mas quem é, afinal, este personagem que tanto fascina Noel? Onde vive, o
que faz, a que se deve sua fama, o que tem de tão fascinante?
O malandro, se for ver bem, sempre existiu. Em todas as épocas e em todos
os lugares. O Brasil mal tinha sido descoberto e já os italianos arregalavam os
olhos diante das façanhas de certo tipo de espertalhão a que chamavam de
malandrino. Vivo, sagaz, cheio de imaginação, ganhava a vida às custas de
golpes, nunca de trabalho. O nosso malandro descende do malandrino no nome e
no modo de vida. Não tem emprego fixo nem profissão definida. E acredita
muito mais na astúcia do que no batente. Costuma fazer aquilo que as pessoas
chamam de "viver de expediente", uma viração aqui, uma esparrela ali, um
grande golpe mais adiante. Suas atividades são tão incertas quanto ilícitas. Sabe,
como ninguém, burlar a vigilância policial. Sente-se orgulhoso e feliz toda vez
que passa a perna num homem da lei, a quem chama, entre outros "mil apelidos,
de samango. Aliás, no seu linguajar muito próprio, raramente dá às coisas os
nomes que elas têm. Trata cerveja de água benta, cachaça vagabunda de infiel,
jornalista de pena, maconha de rafo, roubo de ramoneio, elegância de estifa,
gente do morro de cabrito, revólver de berro ou cospe-fogo, pederasta de
indivídua, dendeca ou brilhante, navalha de aço, espada ou zinco, prostituta de
minestra, mariposa, maquininha ou mina. Definitivamente, detesta o trabalho.
Pelo menos o trabalho institucionalizado. E tem lá os seus motivos: em geral ele
pertence a uma das primeiras gerações descendentes de ex-escravos menos
afortunados - ou menos considerados pelos ex-senhores - que a sociedade
marginalizou, empurrado-os sem emprego, sem ofício, para longe de sua vista,
os morros, os subúrbios, os fins de mundo. Se no início não lhes davam trabalho,
condenando-os a uma sobrevivência difícil, hoje, na figura do malandro, são eles
que viram as costas ao trabalho. Preferem se dedicar a uma destas três
"especialidades" principais: o jogo, a mulher e a estia. Quando não às três ao
mesmo tempo.
O malandro jogador não faz fé em sorte. Confia muito mais nas próprias
artimanhas. Finge-se de pexote na sinuca até que o adversário se anime e suba a
aposta, vicia dados, esconde na unha a bolinha que deveria estar sob a chapinha
(como aquele que surrou Noel à saída do São Bento), carimba
imperceptivelmente as cartas do baralho com a goma preta que escorre de um
charuto marca Palhaço.
O que vive de mulher não gosta que o chamem de "cafifa" ou de qualquer
outro sinônimo. Segundo diz, não explora as minas:
- O que eu faço é dar cobertura a elas.
Cobertura no caso é uma espécie de proteção. Em troca de parte da féria
que ela consegue negociando o corpo, o malandro protege-a de clientes
caloteiros, de degenerados que a maltratam, de bêbados inconvenientes, de
policiais sem escrúpulos ou até de outros malandros. Um "protetor" ativo,
bonitão, de boas falas e atento aos interesses da protegida (inclusive, de vez em
quando, aplicando-lhe apaixonadas cocas), chega a ter sob sua guarda, quatro,
cinco, seis mulheres.
Estia é um tipo de gratificação paga ao malandro por pessoas que moram ou
trabalham em sua área de influência. Por respeito ou medo, os cidadãos pacatos
acham melhor molhar a mão deste malandro - considerado o mais perigoso - do
que ser por ele molestado. O profissional da estia é dos três o mais identificável
à distância. Sentado na sua mesa "particular" junto à porta do botequim (nunca
de costas para a rua), ali recebe a clientela metido num terno branco de linho
120, camisa de seda (dizem que para cegar o fio da navalha que eventualmente
deslizar por ela), gravata, chapéu, sapato de duas cores ou então um confortável
chinelo charlotte, o popular "cara de gato".
Todos esses códigos próprios de vida - somados ao fato de que por trás da
cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos leais, braços fortes
dispostos a ajudar em hora de aperto - é que fascinam Noel. Terá muitos
malandros entre seus amigos mais chegados, fará o que, puder por eles e por eles
será socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de sambas que comporá
sobre malandros e malandragem, mesmo não sendo exatamente este o seu
mundo, conhece-o bem, compreende-o.
Um dos sambas que criou neste 1930 - e que ele gravará sem os tangarás do
outro lado de Com Que Roupa?- inspira-se neste mundo. E fala do papel que o
próprio Noel representa nele, um malandro de fora, frágil, tímido, medroso,
acreditando nas leis da malandragem, mas só as seguindo até onde seu fôlego
permite. Embora seja um excelente samba - e um notável auto-retrato - a crítica
não lhe fará justiça. Eis, por exemplo, o que dirá a revista Phono-Arte: "No
complemento desse mesmo disco, ouve-se outro samba de Noel, Malandro
Medroso, peça que não se mostra companheira digna da que está do outro lado."
(15)
15. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25). Mulher Exigente, de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e Henrique Britto, dois sambas gravados um mês
depois, foram lançados primeiro, no suplemento Parlophon de junho.
Os irmãos de Clara podem não fazer gosto, mas Martha faz. E muito.
Nenhuma perspectiva a deixa mais feliz do que a de ver o filho casado com a
bonita e meiga Clarinha, filha caçula de dona Clara Souza Netto. Por isso,
enquanto os irmãos dela se alegram com a mudança da família para o Engenho
Novo, para um pouco mais longe dos olhos do seresteiro Noel Rosa, Martha
trata de fazer com que Clarinha permaneça perto: - Gostaria muito que você me
ajudasse na escolinha. Ensinando as primeiras letras às crianças menores. Posso
lhe pagar, digamos...
A Clara pouco importa quanto dona Martha pode ou não lhe pagar como
sua professora auxiliar. O simples fato de, mudando-se para o Engenho Novo,
continuar indo ao chalé todos os dias vale mais do que qualquer dinheiro. Aceita.
A partir de março de 1931, quando as crianças voltarem a sacudir as pequenas
salas de aula do Externato Santa Rita de Cássia, lá estará ela, ajudando dona
Martha. Do ponto de vista prático, uma solução também interessante: vó Rita
morta, Carmem e Arlinda longe, Martha decerto precisa de quem divida com ela
as tarefas da escolinha. Clara, portanto, é o agradável que se vem juntar ao útil.
- Você ainda vai ser minha nora - diz manifestando mais um desejo do que
uma certeza.
Clara ainda não tem dezoito anos, Noel tem apenas dezenove. E nem sequer
entrou para a Faculdade de Medicina, como é vontade de todos. De modo que
dona Martha sabe que muito tempo ainda terá de correr até que os dois possam
se casar. Mas faz gosto assim mesmo. E diz a Clara que ela mesma cuidará do
enxoval. É uma promessa.
Os Corrêas Netto vão morar na casa número 487 da Rua Barão de Bom
Retiro. É maior e mais barata. Quase na esquina da Rua Moju, pode-se dizer que
fica num território meio neutro, um pouco Engenho Novo, um pouco Grajaú, um
pouco Vila Isabel. A Vila Isabel de Noel Rosa.
Não hão de ser os dez minutros que se perdem do Ponto de 100 Réis até a
casa de Clara que irão separá-lo dela. Muito menos a cara feia dos irmãos. É que
os dez minutos costumam ser cinco, já que geralmente o bonde é trocado pelo
automóvel. Para quem tem tantos amigos motoristas de praça, todos dispostos a
dar uma carona, seja para onde for, não há distância que não se reduza à metade.
E Noel tem e terá sempre muitos amigos na praça.
Neste 1930, porém, três merecem especial atenção. São três boêmios, todos
devotos das noites e das serenatas. Mais velhos que Noel, mas também jovens,
solteiros, boêmios. Um deles é o amigo Alegria, que ainda não tem seu próprio
carro, mas costuma conseguir um emprestado para fazer biscates na praça. O
segundo, Valuche. O terceiro, Malhado. Dos três, Francisco Valuche é o mais
aprumado, o que tem melhor situação, funcionário do Ministério da Fazenda
pela manhã, motorista particular de um homem importante o resto do dia. Este
homem importante, o doutor Salles Filho(1), empresta-lhe seu reluzente Dodge
negro na parte da noite, não se interessando em saber com quem sai ou aonde vai
Valuche.
1. Francisco Antônio Rodrigues de Salles Filho, médico, general, conselheiro municipal, deputado federal, redator-chefe do Diário Carioca, diretor da Imprensa Nacional. Mais tarde,
Ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
Malhado não chega ao fim da valsa. Para seu espanto, em vez de aparecer
na janela uma das lindas moças de que Noel falara, surge um alucinado cidadão
de pijama, revólver em punho, aos gritos:
- Canalha! Imoral!
O coronel dispara um primeiro tiro para o alto. Quando aciona o gatilho
pela segunda vez, Malhado já passou correndo por Noel na porta da vila. Se
houve ou não um terceiro tiro, os dois jamais saberão, pois em poucos segundos
já estão quase no Jardim Zoológico, depois de dobrarem em disparada a Curva
da Morte(2).
2. Assim chamada em razão dos repetidos acidentes de automóvel e bonde ali ocorridos. Ainda hoje muito perigosa, a curva fica na Barão de Bom Retiro, entre Moju (atual Sebastião de
Paulo) e uma rua então sem nome (atual Acaú).
Já saí de Piedade
Já mudei de Cascadura
Eu vou pra Vila
Pois quem é bom não se mistura.
Com Eu Vou Pra Vila, Noel Rosa não só rende seu primeiro tributo ao
bairro onde nasceu, como também faz um dos primeiros registros de que se tem
notícia de um dos mais marcantes aspectos dessa fase pioneira da história de
nossa música popular: a perseguição policial aos batuqueiros, aos compositores e
cantores de samba.
É bom que se lembre: já existem na cidade pelo menos dois tipos de samba.
Um é aquele que se faz, toca e dança nas casas de Ciata e outras "tias" baianas.
O outro, o do Estácio e cercanias, dos morros e subúrbios distantes. Com o
primeiro, freqüentado por doutores, intelectuais, políticos, gente importante, a
polícia não se mete. Com o segundo, lazer das populações pobres daquelas
localidades um tanto à margem da sociedade, o desemprego e o subemprego
compelindo os homens a atividades malvistas ou mesmo proibidas (o jogo, o
servicinho sujo, a exploração de mulheres, mil e um expedientes, mas nunca o
trabalho fixo), cumpre-se a lei: lugar de malandro é na cadeia.
Os dois tipos de samba-aquele amaxixado da Cidade Nova e o outro da
turma do Estácio - não dividem a cidade apenas musicalmente. Se se for ver
bem, há uma separação social entre eles. Perseguições a ex-escravos, filhos e
netos de escravos que fazem música, dançam, cultuam seus orixás, existem no
Rio desde os últimos anos do século passado. Embora não chegasse a haver uma
lei contra tais manifestações, a polícia sempre deu batidas em terreiros onde se
evocavam os santos e se trocavam umbigadas. A própria Igreja, em certa época
preocupada com a disseminação dos cultos afros, andou abençoando tais batidas.
Hoje, contudo, já se fazem nítidas diferenças: a polícia tolera e até participa dos
fungangás nas casas das "tias" baianas, agora pomposamente rotulados de
"cultura afro-brasileira", mas continua perseguindo o pessoal do morro, cujo
rótulo não muda: são todos malandros.
Os músicos daquele tipo de samba são respeitados como profissionais,
tocam em teatro, cinema, casas de família rica. Como Pixinguinha e seus
amigos, tão respeitados que um homem da posição social de Arnaldo Guinle
financiou-lhes uma viagem a Paris, há oito anos, em 1922.
Nous sommes batutas
Venus du Brésil
Nous faisons tout le monde
Danser le samba!
Pura verdade.
A 30 de setembro, uma terça-feira, Noel Rosa entra no estúdio da Odeon
para finalmente gravar Com Que Roupa?, cuja partitura será dedicada ao Diário
da Noite, "o arauto das aspirações cariocas". Do outro lado do disco, Malandro
Medroso. Os outros tangarás não estão com ele. Por quê? Haverá nessa decisão
de se fazer acompanhar por um bando regional (na verdade apenas o bandolim
de Luperce Miranda e dois violões) algum ressentimento de Noel por ter sido
Com Que Roupa preterido por Almirante um ano atrás? Talvez. A gravação é
feita em clima bem-humorado, Eduardo Souto improvisando um conselho ao fim
do último refrão: - Vai de roupa velha e tutu, seu trouxa!(6)
6. Os precários recursos de gravação da época, Eduardo Souto falando longe do microfone, não permitiram que se entendesse bem o que ele dizia. Muitos pensaram ter sido: "Vai de roupa
velha no eu, seu trouxa!" Pouco provável. Por mais brincalhão que fosse, o maestro não se atreveria a tanto. Principalmente, como diretor musical da Casa Edison.
Fina
Capítulo 15
MODÉSTIA À PARTE, MEUS
SENHORES
Meu bem, o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém
Bom Elemento
Nem só de tangarás vive a Vila. Não é demais repetir que, neste 1930, o
bairro onde nasceu Noel Rosa é peculiarmente musical. Multiplicam-se em suas
esquinas, nas mesas de seus botequins, sob a luz de seus lampiões, jovens de
talento que, com maior ou menor intensidade, brilharão na música popular,
ajudando a criar e a sustentar a reputação de Vila Isabel como terra do samba.
Alguns desses jovens nasceram, cresceram e vivem aqui. Outros estão de
passagem, visitantes que ouviram falar da musicalidade do lugar e a partir disso
se transformaram em hóspedes freqüentes da "grande família". Os cinco
tangarás, neste e nos próximos dois anos, já seriam o bastante para confirmar
que Vila Isabel é mesmo um "celeiro". Mas há mais, muito mais. Tantos e tão
expressivos moços interessados em música que, por algum tempo, toda vez que
um novo nome surgir, no disco ou no rádio, haverá quem pergunte: "É de Vila
Isabel?"
Os tangarás e seus principais adendos são apenas parte dessa efervescência
musical. Parte importante, mas apenas parte. Aos poucos irá se saber, hoje, no
ano que vem, no máximo até o carnaval de 1932, que muita gente boa -
moradores ou visitantes, membros da grande família ou filhos adotivos - vive
por aqui: os tangarás, Francisco Alves, Lamartine Babo, Nássara, Christovam de
Alencar, Seringa, Orestes Barbosa e os outros Barbosas de famílias distintas, os
negros e os brancos, Quidinho, Arnaldo Amaral, Kalua, os irmãos Newton e
Valzinho Teixeira, Antônio Almeida e Cyro de Souza, Homero Dornellas,
Henrique Gonçales, J. Cascata, os seresteiros, chorões e sambistas de morro que
poucos conhecem.
O mais famoso é mesmo Francisco Alves, espécie de ídolo de todos os
outros, respeitado, cultuado quase. Alguns de seus admiradores, como Paulo
Netto de Freitas e Castro Barbosa, costumam fazer serenatas sob sua janela, no
185 da Rua Justiniano da Rocha, como se ele fosse a musa de suas canções. É
claro que Zélia, a mulher de Francisco Alves, aparece para agradecer com
sorrisos a homenagem, talvez sem saber que é para o marido que eles cantam.
Por mais inusitadas que pareçam essas serestas, elas têm sua razão de ser.
Todos querem agradar Francisco Alves, querem ser ouvidos por ele, homem
influente que tem força o bastante para dar a um cantor iniciante um contrato de
experiência na Odeon. Vez por outra, a Paulo Netto de Freitas e Castro Barbosa
juntam-se seresteiros ocasionais, Almirante, João Petra de Barros e seu irmão
Mário, Arnaldo Amaral, Alvinho, os rapazes da família Boamorte, Alegria e sua
turma, João de Barro, Leonel Faria. E Noel Rosa também.
Neste 1930, Francisco Alves ainda é um ídolo distante, inatingível aos
olhos desses jovens seresteiros ansiosos por impressioná-lo. O simples fato de
vir o famoso cantor a tomar conhecimento da existência de algum deles já seria
motivo de contentamento e orgulho(1).
1. Conta Christovam de Alencar aos autores: "O homem tinha um cartaz danado. íamos todos cantar para ele, na esperança de que nos notasse. Se isso acontecesse, era a glória." Almirante,
em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (pagina 60), fala da emoção que lhe causou Francisco Alves em 1929, quando o Bando de Tangarás ouvia a prova de gravação de Mulher Exigente. O cantor
aproximou-se do grupo, sorridente, e se pôs a cantar também. Diz Almirante: "Nada no mundo me poderia ser mais grato do que verificar que aquela celebridade conhecia minha melodia, pois sabia de
cor meus modestos versos."
Mas não está nisso o seu aspecto mais interessante e sim no detalhe de
formarem os versos, borrifados de non sense, a primeira letra surreal de que se
tem notícia da música popular brasileira. Noel e Lamartine, dois cariocas totais,
donos de um humor e uma ironia típicos da cidade em que nasceram, parecem
não levar nada a sério nesta falsa marcha de pouco sentido e muita graça. O
futurismo a que eles se referem tem muito menos a ver com Felippo Tommaso
Marinetti e seu movimento do que com a mania brasileira de chamar-se de
"futurista" a tudo aquilo que não se entende em arte. Lamartine e Noel não
levam mesmo nada a sério em seus versos. Nem a arte, nem Marinetti, nem a
morte: A.B. Surdo.
Nasci na Praia do Vizinho, 86
Vai fazer um mês
(Vai fazer um mês)
É futurismo, menina,
É futurismo, menina,
Pois não é marcha
Nem aqui nem lá na China
Se A.B. Surdo é uma amostra de como Noel Rosa e Lamartine Babo são
atentos à originalidade, Nega está no caso oposto. Também de 1930, incluído
pelos tangaràs no seu repertório para o carnaval seguinte, é um samba sem muita
inventiva melódica, de versos banais, as formas amatutadas muito presas aos
primeiros dias do grupo (por exemplo, "metá" rimando com "navá"). Apesar dos
esforços dos percussionistas no sentido de fazê-lo ritmicamente interessante
(chegam a retomar a idéia de Na Pavuna, usando batidas de surdo após cada
enunciado do título no refrão, só que seis em vez das três do samba de Almirante
e Homero Dornellas), o melhor mesmo fica por conta das passagens de violão
entre o estribilho e cada quadrinha gravada pela voz miúda de João de Barro.
Noel e Henrique Britto produzem com seus instrumentos, aí sim, interessantes
acordes que acabam dando certa cor a um pálido samba: Nega.
Nega...Nega...
Já te dei de tudo
Agora chega.
Tu é nega prosa
Tu é palpiteira
Não vai à macumba
Não dança em gafieira.
A.E.I.O.U
Dabliú, dabliú
Na cartilha da Juju,
Juju
A.E.I.O.U
Dabliú, dabliú
Na cartilha da Juju,
Juju
A Juju já sabe ler,
a Juju sabe escrever
Há dez anos na carti...lha
A Juju já sabe ler,
a Juju sabe escrever
Escreve sal com cê-cedilha!
Fica emocionado. Então o estribilho cantado pela primeira vez nas ruas
ontem já está na boca dos foliões do Meyer hoje? É um milagre de comunicação,
a música tendo um poder literalmente "contagiante", de aproximar do povo, em
tão pouco tempo, os seus criadores. Resolve ser compositor. Uma decisão
acertada.
O gaúcho Sylvio Pinto, o Seringa, é mais do que mero parceiro do Reis.
Também de Vila Isabel, presença obrigatória nos papos do Ponto de 100 Réis,
companheiro de Noel, Alegria, Clóvis, Waldemar e os irmãos Anacleto naquelas
inesquecíveis serestas pelo bairro, será como quase todos esquecido em pouco
tempo. Mas é muito bom compositor.
Contam que começou a sumir das rodas boêmias do bairro no dia que lhe
disseram que a polícia andava prendendo seresteiro. Passou a fazer ponto no
Mangue, na Lapa, em lugares onde a noite não é feita para dormir. Pode ser. Mas
Alegria acha que o motivo deve ser outro. A polícia da Vila nunca perseguiu
seresteiro. Pelo contrário, sempre teve pela classe um grande respeito.
- Não vê o Paes da Rosa?
E Alegria lembra mais uma vez a passagem vivida por ele e Noel numa de
suas serenatas. Os dois cantavam sob a janela de uma casa de vila na-Rua
Maxwell quando viram parar, lá na entrada, o carro da polícia. Eram quase duas
da manhã. Alegria engoliu seco, o violão de Noel emudeceu, os dois pensando
tratar-se do delegado Palhares, um apaixonado pelo Fluminense que sai por aí
engaiolando gente toda vez que o seu time perde (e o Fluminense havia perdido
feio o jogo de domingo). Mas não era o Palhares e sim o Paes da Rosa,
comissário do 18° Distrito. Os dois seresteiros continuaram calados, imóveis,
esperando pelo pior.
- Escute aqui - disse o comissário para Alegria.
- Pois não, seu doutor.
- Vocês conhecem Última Lágrima? Noel e Alegria se entreolharam. Não
conheciam, não.
- Aquela valsa do Cândido das Neves.
- Ah! - exclamou Alegria aliviado. - O doutor deve estar falando de Intima
Lágrima.
- Sim, esta mesma.
- Conhecemos, sim, seu comissário. -Então vamos lá. Cantem. Mas
depressa.
Tenho ronda pra fazer.
E Alegria, Noel ao violão, cantou:
Ai, a fonte dos meus olhos
Entre mil escolhos
Desta dor nenhuma lágrima derrama...
A outra colaboração dos dois também permanecerá inédita pelo menos até
muito depois de ambos se terem ido para sempre(4).
4. Sylvlo Pinto morreu em Porto Alegre em 1980.
Fala de outra desilusão amorosa, mentira, traição, temas tão usados por
Noel. No título, algo em que eles não acreditam: Amar Com Sinceridade:
Amar com sinceridade
Não há quem consiga uma só vez
Pode haver muita amizade
Mas há sempre falsidade
Como outrora Judas fez!
De ingratidão
Já estou farto e inteirado
E meu pobre coração
Vive sempre amargurado
A cruel realidade
É amar por interesse
Mas todo o bem dura pouco
Todo mal tem sempre fim
As mulheres quero bem longe de mim
Vizinho de Noel, amando tanto o seu bairro quanto Noel a Vila, Quidinho
fará vários sambas louvando a Aldeia Campista. Um desses sambas, Bom
Elemento, é interessante não só porque Noel e Quidinho juntam forças para
enaltecer seus respectivos redutos, mas também por ser uma espécie de atestado
da adesão de ambos à batucada. Como elementos estranhos a ela, é verdade, mas
capazes de não fazerem feio num confronto com batuqueiros autênticos:
Entrei no samba,
Os malandros perguntaram
Se eu era bamba
No bater do tamborim
E o batuque
Eles logo improvisaram,
Eu dei a cadência assim:
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
(O que é que tem?)
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
Com violência
Enfrentei a batucada,
A harmonia
Do meu simples instrumento
Fez toda a turma
Ficar muito admirada
Porque sou bom elemento
Lamentavelmente, poucos se lembrarão de Quidinho daqui a algum tempo.
Melhor sorte terá Arnaldo Amaral. Falante, contador de vantagens, cheio de
pose. Levará muito tempo sem saber exatamente o que quer ser, cantor ou ator.
E quando chegar a se decidir já não será uma coisa nem outra, mas locutor de
rádio. É de se deixar influenciar pelo que os outros dizem, desde que isso lhe
alimente a vaidade. Uns garantem que tem bela voz (na verdade, é um dos
muitos pastiches que Francisco Alves vai carregar vida afora). Outros elogiam-
lhe a estampa, comparam-no a um galã de cinema, acham que poderia fazer
carreira no teatro. Arnaldo bem que vai tentar todos esses caminhos, gravará
discos, cantará no rádio, trabalhará como ator em peças e filmes. Mas jamais
passará de promessa não cumprida. É uma das figuras mais animadas do Ponto
de 100 Réis. Bom jogador de sinuca, excelente contador de anedotas. Para quem
não se deixa assustar por sua pose, um bom companheiro de conversa, de
serenatas, de festas onde haja cerveja e mulher. De Noel guardará a alegria de
um longo convívio no bairro e a pena de só ter gravado uma música sua: Vejo
Amanhecer. Assim mesmo, com sua voz empostada sendo quase tragada pelo
coro e seu nome não figurando no selo do disco.
Mas a posteridade de Arnaldo será menos diluída que a de Seringa,
Quidinho e outros de dotes musicais bem maiores que os seus. Como é o caso de
Kalua. Impossível não gostar desse moreno de sorriso branco e cativante que
rivaliza com Homero Dornellas em matéria de generosidade: são os dois que
costumam passar para a pauta, quase sempre em troca de um simples "muito
obrigado", as criações dos compositores orelhudos do bairro, isto é, daqueles que
não sabem ler ou escrever música. Como Noel Rosa, cuja quase totalidade do
que vem fazendo nestes seus primeiros anos de carreira virou partitura por obra
de Kalua (Dornellas limitou-se àquele histórico episódio de Com Que Roupa?).
Pianista com curso de orquestração e regência, Kalua compõe para o teatro.
Canções de amor, duetos, peças humorísticas e pequenos bales ouvidos em
revistas e operetas. Mas nada do que produz ficará por muito tempo na memória
do público. Será mais lembrado por seus solos de piano, ou por sua figura
miúda, ágil, a equilibrar-se no pódio sobre uma perna mais curta que a outra,
enquanto rege com a batuta comprida a pequena orquestra do Recreio ou do
Carlos Gomes.
Chama-se José Antônio Lopes Filho e morou por alguns anos no 103 da
Tneodoro da Silva, não muito longe do chalé. Hoje vive com a mãe e os irmãos,
todos pianistas, numa casa de porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos. As
reuniões musicais que se realizam ali são versões menores e mais modestas dos
saraus que têm lugar nas casas abastadas do bairro, entre elas a dos Boamortes.
Curioso: Kalua é sempre convidado para estes saraus. Assim como para
aniversários, batizados e casamentos grãfinos. Apenas ele e não os irmãos ou a
namorada, mulatos pobres que essas famílias geralmente discriminam. A
exceção que fazem não é a ele, mas a seu piano. Nunca recusa tais convites.
Mesmo que a namorada, com razão, proteste: "Por que não me chamam
também? Não me acham boa o bastante para eles?"(9) 9. Disse aos autores Heloísa Brandão de Marsillac, filha do Dr.
Heleno Brandão: "Nossa casa era das únicas que abriam suas portas não só para o Kalua, mas também para sua namorada, irmãos e amigos, muito discriminados naquela época."
Kalua não se amofina. Veste o melhor terno, gravata, vai aonde o chamam.
Entra pela casa, puxando da perna, guardando o sorriso, mas cheio de si: sabe
que todos aqui adoram ouvi-lo, os dedos ligeiros, elegantes, improvisando em
cima de choros e fox-trots. Nessas reuniões sempre há quem peça: - Toque o Ka-
lu-a!
A esta velha canção americana(10) deve seu apelido. De tanto tocá-la - e
sempre bem - o José Antônio virou Kalua.
10. Ka-lu-a, música de Jerome Kern, letra de Anne Caldwell, sucesso lançado na comédia musical Good Moming, Dearie, encenada na Broadway em 1921.
Outra figura muito querida e musical de um bairro todo ele musical. Amigo
de Noel Rosa. Que sempre vai preferir ouvi-lo na casa de porta e duas janelas da
Rua Gonzaga Bastos do que nestas festas emproadas onde a namorada e os
irmãos de Kalua não entram.
Assim é a Vila Isabel musical destes dias. Um bairro que daqui a algum
tempo seu poeta maior vai imortalizar em versos assim:
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo
Ou assim:
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.
CONQUISTANDO A CIDADE
Um sucesso como nunca se viu. Parece até que o Rio despertou agora há
pouco ao som de um só samba, ouvindo a voz de um só cantor, recitando os
versos de um só poema. Música e letra de Com Que Roupa? ressoam por toda
parte, conquistam todos os bairros.
Neste primeiros dias de dezembro de 1930, outros sambas e marchas
prometem se destacar no próximo carnaval. Alguns são de fato muito bons. Ou
mais que isso. Se Você Jurar, Deixa Essa Mulher Chorar, Cor de Prata,
Batucada, Batente, Apanhando Papel, O Barbado Foi-se, Seu Getúlio Vem,
Minha Cabrocha vieram para ficar por longo tempo na memória do povo. Mas
nenhum fará o sucesso de Com Que Roupa?, cujo apelo e originalidade
envolvem as pessoas desde o primeiro instante. Se não for a melhor composição
desta safra, é decerto a que maior impacto causa, a mais cantada, tocada,
comentada, elogiada. Não só por sua melodia contagiante, mas sobretudo pelo
sabor de seus versos, é a que mais intimamente sensibilizará a alma do carioca,
tornando-se parte de sua vida, de suas conversas, de seus hábitos, de sua
linguagem: "Jantar no Assyrius? Com que roupa, meu caro?"
As emissoras de rádio tocam o disco sem parar. Alto-falantes instalados em
alguns pontos da cidade, Rua Dona Zulmira, Praça Saenz Pena, Avenida
Atlântica, projetam a voz de Noel a cantar, queixoso:
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu...
"... quando fiz o Com Que Roupa? não tive em mira fazer alusão ao povo, que, apesar de tudo, sei que
ainda tem roupa e faço votos que continue a tê-la em profusão, e que não lhe falte roupa, e muita, para
brincar no carnaval. Com Que Roupa? é uma pergunta que se aplica a diversos casos. Por exemplo: se um
camarada está sem dinheiro e alguém o convida para um baile ou uma festa qualquer, ele retruca, com um
gesto significativo: 'Com que roupa?' (isto é, com que dinheiro?). Se precisa resolver qualquer assunto
intrincado, sem descobrir os meios para tal, recorre ainda à mesma interrogação: 'Com que roupa?' Al
está."
Ao Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931
"Com Que Roupa? tem uma história interessantíssima que vale a pena contar aqui, a título de curiosidade.
Foi um caso que se passou comigo mesmo. Com sangue de boêmio, eu passei a chegar em casa, em
determinada época, a altas horas da noite. Vinha de festas ou de serenatas, ou de simples conversas. Mas o
fato é que essa vida, passada toda em claro, devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu (...) Mas
quem mais se assustava era mamãe. Pressentiu, antes que ninguém, o meu estado. E, dia-a-dia, renovava
as suas advertências, os seus apelos, para que não me demorasse na rua tanto tempo, para que dormisse
mais, que eu acabava doente. Eu prometia que sim. Mas a minha vontade era nula. E chegava, fatalmente,
às mesmas horas, com as mesmas olheiras e com aquele emagrecimento progressivo, que estava
alarmando todo o mundo. Desesperada de conseguir a minha obediência pelos recursos da persuasão,
minha mãe lembrou-se de um antigo recurso, mas cujo efeito é sempre eficaz. Assim é que escondeu todas
as minhas roupas. Sem exceção. Fiquei desesperado. O pior é que, na véspera, mandara que alguns amigos
me viessem buscar para irmos a uma festa. Os amigos não faltaram. À noite, batiam lá em casa; 'Como é,
Noel, vamos para o baile?' E eu, dentro do meu quarto: 'Mas com que roupa?' Mal eu tinha acabado de
soltar a frase, e ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema. Daí o estribilho:
Com que roupa eu vou
"Não gosto do Com Que Roupa? Foi feito para o povo, e os sambas de que eu mais gosto são feitos para
mim."
À Carioca, 14 de dezembro de 1935
"Não gosto desta música. Foi feita em 1930, sobre o momento político brasileiro, onde os partidos se
apresentavam e se desfaziam porque não tinham roupa para aparecer. E saiu o estribilho que todo o Rio
cantou:
Com que roupa que vou
Maurício de Lacerda, por exemplo, é perspicaz o bastante para perceber que os versos de Noel não
devem ser tomados literalmente e escreve longo artigo que, além de ter o mesmo título do samba, aproveita-
lhe a metáfora para falar dos rumos ainda indefinidos da Revolução de 30:
Com que roupa?
"Vamos, povo carioca, a quem e com quem ficará o teu aplauso e vê bem nesta hora com a lente de
tua ironia carnavalesca que não é possível acompanhar ao mesmo tempo as três Histórias de um samba,
tendências tão opostas que serpentinam no espaço e lançam aos teus olhos os confetes multi-cores da sua
convicção.
Tu pensaste no entrudo antigo para afogar com o teu coração esta pantomima tão larga quanto
insossa da regeneração republicana do Brasil pelos políticos que fizeram a sua degeneração oligárquica.
Mas, ergue neste momento, sem o teu verso e sem tua prosa, a tua voz vingadora na estrofe do teu
último carnaval, perguntando a esta democracia de três forças incoerentes como vias no teu samba: de
camisa preta, de camisa vermelha, ou de camisa verde-amarelo, isto é, 'com que roupa', fascista, comunista
ou socialista? Desta tua pergunta, ó carioca, não esperes a resposta, samba à vontade, canta a teu modo a tua
desventura e, seja com que roupa for, põe pela tua ironia, pela tua sátira e pelo teu espírito de fronda, sem
qualquer roupa, nu na praça o rei de uma democracia que procurando ser livre caiu no bico da cegonha da
Revolução de outubro."(4)
4. Diário de Notícias, 19 de fevereiro de 1931.
Também alcança as intenções de Noel, num texto muito rebuscado, Vivaldo Coaracy:
"A cidade inteira é um caos que endoideceu. E servindo de tapete uniforme à apoteose do barulho,
acompanhamento uniforme da sintonia de todos os ruídos, surda, mas sempre presente, a toada uniforme do
samba:
Com que roupa eu vou Ao samba que você me convidou?...
É a resposta instintiva da alma popular ao convite da República Nova. É a consciência latente da
miséria, em meio ao delírio das esperanças. É o sentimento pertinaz da realidade a resistir à vertigem de três
dias de embriaguez.
Já estou coberto de farrapo Eu vou acabar ficando nu... Meu terno já virou estopa... "(6)
6. O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1931.
Este é de fato o carnaval de Com Que Roupa?, o carnaval de Noel Rosa. Repórteres o procuram para
que conte a história do samba, diretores de clubes o convidam para recitais, com ou sem os outros tangarás.
Não há um dia em que não se ouça no rádio ou se leia no jornal um elogio ao jovem compositor ou ao seu
samba. Um musicólogo da estatura de Renato Almeida não esconde seu entusiasmo:
"Mário de Andrade, para o Pinião, descobriu quatro versões rítmicas diferentes, além de variantes
melódicas em geral leves. Este ano, de quantos modos se cantou Com Que Roupa?"
Mais adiante, o alcance idêntico ao dos observadores políticos:
"Música de dança, samba, música enrascada, mole, sensual, nela só o ritmo marca o elemento
masculino e viril, porque tudo mais é languidez. Não raro, há lamúria, a exemplo de Com Que Roupa?, no
qual, excepcionalmente, a letra é deliciosa, desse desgraçado que vai mudar sua conduta e vai pra luta..."(7)
7. Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 1931.
No bairro, todos cumprimentam Noel. Até aqueles vizinhos que lhe
viravam o nariz por vê-lo "sempre metido com gentinha". Os amigos sorriem
para ele, dão-lhe tapinhas nas costas. Um ou outro estranho aproxima-se, finge-
se de íntimo, quer ser visto conversando com o autor de Com Que Roupa? Nos
dias de folia, 15, 16, 17 de fevereiro, é impossível sair às ruas sem ouvir a
composição. Noel tem mais sete gravadas para este carnaval, por ele ou por
outros artistas: Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso, A.B. Surdo, Nega, Por Esta
Vez Passa, Dona Aracy e Dona Emília. Para um estreante em carnaval, um
respeitável lote, mas ofuscado por Com Que Roupa?. Em Por Esta Vez Passa a
cachaça é o tema. I.G. Loyola, o Ximbuca, é seu intérprete.
Por esta vez passa
Por esta vez passa
Mas não volte à minha casa
Assim cheirando à cachaça.
Acabou-se o parati
Em casa de dona Antônia
Por isso dona Didi
(que foi?)
Só bebe água da Colônia.
Dona Emília é uma das marchas cantadas pelo Faz Vergonha em seu
desfile de domingo de carnaval. Tem música de Glauco Vianna e versos de
Noel, todos eles alusivos aos valentes foliões da Rua Maxwell, capazes, se a
concorrência assim o exigir, de ganhar até um prêmio de violência:
Sai da frente
Dona Emilia!
Que o nosso bloco
Só tem gente de família...
Mais do que nunca Noel é uma das atrações do Faz Vergonha. E, embora se
cante sua marcha com Glauco e outras composições do pessoal do bloco, à sua
passagem o comentário não muda: "Ele é que fez o Com Que Roupa?". Mas
Noel nem dá importância, tão envolvido está com a alegria do bloco, a sua
própria alegria. Este ano ele sai entre os improvisadores com uma fantasia
arranjada à última hora: sapatos, bolsa, chapéu e vestido de dona Martha. Um
vestido estampado, colorido, há muito fora de uso, dentro do qual o corpo
mirrado de Noel quase some. Está contente com o sucesso, com a vida, com
tudo. Canta, dança, inventa passos entre uma cerveja e outra. O bloco sai da
Maxwell, toma a Piza de Almeida, Dona Elisa, Souza Franco, cruza a Theodoro
da Silva e deságua, triunfal, no Ponto de 100 Réis. Para mostrar ao Cara de Vaca
que o Faz Vergonha ainda é o melhor, tem batuqueiros, passistas, moças bonitas,
improvisadores, Noel Rosa. Um Noel Rosa que não pára de dançar. O bloco vai
até a Praça 7, faz o contorno e volta ao Boulevard para o percurso na direção do
Largo do Maracanã. Noel segue inventando passos, requebra, faz uma pirueta,
planta uma bananeira. Na altura da Felipe Camarão, um guarda atravessa a
corda, puxa-o pelo braço e lhe diz baixinho, em tom de paternal reprimenda: -
Assim não dá, Noel.
- O que é que houve, seu guarda?
- Esta fantasia. Não dá para dançar com ela.
-Mas é um vestido, seu guarda. Como de todo mundo.
- Sim, seu Noel. Mas me faz um favor: se é para dançar, trate pelo menos
de botar um calção por baixo.
Os anos 30 caminham para se converterem num período bom para o teatro
de revistas carioca. Desde fins da década passada a Praça Tiradentes e arredores
vivem dias de fulgor, comédias musicais estreando a todo momento, revelando
estrelas, humoristas, autores, músicos, novos nomes da música popular.
Ninguém nega que o cinema é moda que ganha corpo a cada dia, principalmente
nos últimos dois anos, em que os atores e atrizes da tela, por uma dessas mágicas
do progresso, começaram a falar. Mas ainda vai demorar para o cinema
substituir o teatro na preferência do carioca. Estão aí, como exemplos
eloqüentes, o Recreio, o República, o Carlos Gomes, o Phoenix, o Trianon, todos
acolhendo público numeroso e empolgado a cada nova revista que encenam.
Noel Rosa deve também a Com Que Roupa? o seu ingresso, mesmo que por
pouco tempo, no mundo do teatro musical. O samba é incluído entre os números
carnavalescos da "super-revista de fantasia e comicidade" que os irmãos
Quintiliano escreveram para Aracy Cortes e Mesquitinha. O espetáculo intitula-
se Deixa Essa Mulher Chorar e tem, além deste samba de Brancura, outros
sucessos do carnaval, Batente, Cavanhaque, Se Você Jurar, Sorris, Maria, Deixa
Disso, Nem É Bom Falar. Um quadro inteiro é dedicado a Com Que Roupa?,
reunindo no palco a malícia de Aracy Cortes, o humor de Mesquitinha, as belas
pernas de um grupo de coristas não muito preocupadas com a roupa ou com a
falta dela. A peça estreou no Teatro Recreio, a 9 de janeiro de 1931, e tem entre
suas novidades mais uma das muitas ousadias de Aracy: em vez da tradicional
orquestra, o acompanhamento é feito por um grupo de sambistas que ela própria
foi buscar no Salgueiro, não se importando com a advertência de alguns amigos
sobre os perigos de subir o morro. Um grupo de salgueirenses de poucos
sorrisos, meio desconfiados por pisarem um palco pela primeira vez, ajuda a
tornar mais irresistíveis as interpretações da grande estrela que é Aracy Cortes.
São apenas sete: surdo, chocalho, pandeiro, cuíca, tamborim, violão e
cavaquinho. Mas que riqueza sonora eles extraem de seus instrumentos!
Deixa Essa Mulher Chorar é um triunfo. Não só por Aracy, mas também
pelo repertório, sambas do Estácio, do Salgueiro, do jovem Noel Rosa,
deliciando uma platéia que constata ser possível produzir uma revista com
ingredientes cem por cento brasileiros, das piadas à música. Sendo este um
gênero importado - com muito da revue parisiense, do music hall londrino, das
extravagâncias dos palcos da Broadway - parece ter nascido e se desenvolvido
aqui, no Brasil de Aracy Cortes, quando as atrações são o nosso samba, os
nossos sambistas, o cenário carioca, o humor de nossas esquinas, uma realidade
nossa. É por isso que, enquanto a revista trilhar por este caminho e o cinema vier
de fora, o teatro continuará insubstituível.
Nas pegadas do sucesso da peça do Recreio - e em particular do quadro
sobre o samba de Noel - Luís Peixoto, outro poeta, grande letrista de música
popular, homem de teatro e revistógrafo (por sinal um dos que se mostram
inclinados a trocar sua formação um tanto Folies Bergère por um estilo brasileiro
de crônica e crítica às nossas coisas), decide escrever uma revista especialmente
para a Companhia Mulata Brasileira levar ao palco do República. Título: Com
Que Roupa? Para estrear ainda antes do carnaval, a 23 de janeiro de 1931.
Pretendendo ser uma "burleta de costumes cariocas", se apoiará num texto leve,
bem-humorado, e nestas canções que o povo canta, uma delas, evidentemente, o
samba que fez o Brasil descobrir Noel Rosa. Se a porta do teatro de revistas
começou a abrir-se para Noel Rosa em Deixa Essa Mulher Chorar, escancara-se
de vez com a proposta de Eratósthenes Frazão logo após o carnaval.
Embora profissional do jornalismo, Frazão faz hoje incursões ao teatro e à
música popular. Nesta, atingirá a notoriedade no carnaval, daqui a oito anos,
com Florisbela, em parceria com Nássara. Filho do maestro da Capela Imperial,
Sebastião Alves Frazão, traz a música no sangue. Nasceu em 1891 e seu nome é
uma homenagem ao astrônomo e matemático grego Eratósthenes(8).
8. Para dar entrada em seu processo de aposentadoria, Frazão obteve uma falsa certidão na qual consta ser carioca de 1901. Na realidade, nasceu em 1891, fora do Rio de Janeiro, apesar de
desconhecer-se o local exato, segundo informação de seu amigo e advogado Bruno Ferreira Gomes. Na ocasião, ao procurar Bruno, Frazão declarou: "Em vida não cheguei nem aos pés do meu xará
grego, mas parece que na morte vou igualá-lo: ele terminou seus dias na miséria. Se você não conseguir me aposentar, vou acabar na maior merda!"
Malandro medroso. E fingidor. Não é bem assim Noel Rosa. Não, pelo
menos, com as duas mulheres que repartem seus carinhos neste começo de 1931:
Clara e Fina. Tem sido difícil sair, sem despertar suspeitas, dos braços de uma
para os da outra. Afinal, elas continuam sendo quase vizinhas. Mas ele sabe
dividir seus horários, vendo Clara à saída da escolinha em Vila Isabel, Fina em
noturnos e escondidos passeios de carro e ainda conquistando outras garotas em
suas andanças pela madrugada.
É muito carinhoso com Clara. Especialmente agora que ela chora um duro e
repentino golpe: a morte da mãe. Dona Clara não chegou a ficar um ano na casa
da Barão de Bom Retiro, o coração deixando de bater numa triste manhã de
chuva. Noel é sensível à dor da namorada, trata-a com afeto, cerca-a de atenções.
Martha também. Gosta muito de Clarinha, ainda acredita que ela será a filha que
não teve, a bonita e meiga professorinha com que a vida presenteou Noel.
Com Fina, ficam as saídas noturnas no carro de Valuche ou de Malhado.
Sempre a quatro, pois não é problema para nenhum deles arranjar uma pequena
que queira fazer companhia a Fina numa viagem de prazeres até o Alto da Boa
Vista, Leblon, Jacarepaguá e outros recantos desertos. Tudo escondido de dona
Luísa, evidentemente. E dos outros moradores da casa da Rua Moju. Imagine se
soubessem por onde anda a travessa Fina...
Alegria já não faz parte desses passeios. Nem das serenatas. Como tinha
dito a Noel, seria capaz de qualquer coisa por Martha Clara. Até se casar. E foi
exatamente o que fez, de repente, nos primeiros dias do ano. Comprou um carro
de praça, montou casa no Boulevard e para lá levou, apaixonadíssimo, Martha
Clara, Nelson, Walter, Juquinha, os três filhos do comissário que criará como
seus. Para Alegria, os tempos de boêmia terminaram. Daqui a alguns meses - 22
de outubro de 1931 - nascerá o único filho de seu casamento. Chamará o amigo
Noel Rosa para irem juntos registrar o menino. E lhe fará uma surpresa.
- Sabe que nome vamos dar a ele?
- Não.
- Noel(10)!
10. Noel Souza Pinto seria motorista profissional como o pai. Morreria assassinado a tiros, no bairro carioca do Meyer, a 29 de outubro de 1980, por três homens com os quais tinha velha
rixa.
Capítulo 17
O MIGUEL COUTO DO SAMBA
Ninguém foge ao seu destino. Eu sou um exemplo: quiseram que eu fosse
médico e eu acabei sambista...
entrevista ao Diário Carioca
O Vasco paga
o lote na batata
E em vez de barata
Oferece ao Russinho
uma mulata.
Quem dá mais...
Por um violão
que toca em falsete,
Que só não tem braço,
fundo e cavalete,
Pertenceu a dom Pedro,
morou no palácio,
Foi posto no prego
por José Bonifácio?
21 e 500,
50 mil réis!
Ninguém dá mais
de 50 mil réis?
Quem arremata
o lote é um judeu,
Quem garante sou eu,
Pra vendê-lo
pelo dobro no museu.
Quem dá mais...
Por um samba feito
nas regras da arte,
Sem introdução
e sem segunda parte,
Só tem estribilho,
nasceu no Salgueiro,
E exprime dois terços
do Rio de Janeiro.
Quem dá mais?
Quem é que dá mais
de um conto de réis?
Quem dá mais?
Quem dá mais?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!
Efêmera, sem dúvida, mas não de todo silenciosa. Pois a medicina serviu ao
menos para inspirá-lo na criação de um de seus mais apreciados sambas,
composto ainda no primeiro semestre de 1931: Coração. Classificado pelo
próprio Noel como "samba anatômico", é um curioso jogo de imagens, a
anatomia e a fisiologia do coração confrontadas com o seu significado
simbólico. A melodia é muito bonita. Eis a letra original:
Coração,
grande órgão propulsor,
Transformador do sangue
venoso em arterial
Coração,
não és sentimental,
Mas entretanto dizem
que és o cofre da paixão.
Coração,
não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
eis a verdade.
Tu és
pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade.
Coração
de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio,
Mas não ataca o coração.
Conheci
um sujeito convencido
Com mania de grandeza
e instinto de nobreza,
Que por saber
que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
sem pensar no seu futuro.
Não achando
quem lhe arrancasse as veias,
Onde corre o sangue impuro,
Viajou a procurar de norte a sul
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.
Uma vantagem que, segundo consta, nasceu após uma aula na Santa Casa,
Noel e alguns colegas parando para conversar no Café Nice. Ali, partindo de
uma descrição nada poética do "cofre da paixão", feita por um dos assistentes do
catedrático Fróes da Fonseca, escreveu o samba. Uma lição mal-aprendida, diga-
se, pois não cabe ao coração transformar o sangue venoso em arterial. Noel
gravou a letra com essa impropriedade e tentou corrigi-la nas edições impressas,
desta forma:
Coração, grande órgão propulsor,
Distribuidor do sangue venoso em arterial...
Emenda pior que o soneto. Tempos depois, nova correção será feita por
Noel, mas não nestes versos. Num caderno escolar onde começa a guardar suas
letras, faz de próprio punho uma alteração no fecho do samba que jamais será
gravada ou editada:
Alguém capaz de trocar o seu sangue
Por azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.
Cantar o seu bairro, a sua cidade, o seu país. Retratar os personagens que
trafegam por aí, focalizar os episódios que testemunha, captar o espírito de tudo
isso, eis o destino de Noel Rosa, poeta e cronista. Neste 1931, mais cronista que
poeta, pois quase todas as músicas que lança têm sabor de crônica. Do Brasil, de
seus absurdos, sua gente, suas contradições. Como em Quem Dá Mais?. Ou
como neste sugestivo Samba da Boa Vontade, de parceria com João de Barro.
Sua perenidade é de tal ordem que daqui a mais de meio século ainda caberá
como uma luva no país em que Noel nasceu. Um samba que vale como uma aula
de economia, Noel deixando claro o que pensa do capitalismo que acaba de se
confirmar como o sistema escolhido pelos neo-republicanos para administrarem
o Brasil: os ricos podem gastar seu dinheiro à vontade, pois ele sempre acaba
voltando às suas mãos. Um estranho país que espera alcançar o grau de
desenvolvimento dos europeus atirando o seu café ao mar. E que - como pede
Getúlio Vargas, conservando seu sorriso - exige de seu povo não apenas
sacrifícios, mas acima de tudo boa vontade:
- Campanha da boa vontade!
Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje sinto saudades
Daqueles 10 mil réis que eu te emprestei.
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho,
Um chute na empregada,
Porque já se acabou o meu carinho.
Minha mulher
Sempre quer me dar pancada
Quando eu olho o mostrador
Do relógio da empregada.
E eu já danado
Com intriga e com trancinha
Arranquei hoje o cabelo
Do relógio da vizinha.
Fiquem sabendo
Os senhores e as senhoras
Que o pai da minha pequena
Me manda embora às 10 horas,
Mas a pequena,
Que é sabida e muito sonsa,
Com este pulo da hora
Já deu o pulo da onça.
Há muito tempo
Briguei com o batedor,
Troquei de mal com as horas,
Quebrei o despertador.
O meu relógio
Anda agora viciado
De tanto andar no meu bolso,
Ele anda sempre atrasado.
Noel parece gostar muito deste samba que ele mesmo grava no selo
Parlophon. Tanto que continuará produzindo acréscimos que não chegarão ao
disco, mas que serão registrados no seu caderno de letras. Neles, em O Pulo da
Hora, em vez de duplas leituras como as sugeridas acima ("mostrador",
"cabelo", "atrasado(s)"), Noel prefere falar da paz perdida pelo brasileiro por
causa da hora e voltar a um velho personagem de sua história: o credor.
O meu relógio
É de ouro brasileiro
Trabalha bem sem a corda,
Sem ter vidro nem ponteiro.
Em minha casa
Surgiu hoje uma briga,
Meu credor usa a moderna
E eu adoto a hora antiga.
O carioca
Perdeu a calma e a paz:
A hora pulou pra frente
E a nota pulou pra trás.
Mas eu agora
Já gostei desse brinquedo,
Para me vingar da hora
Janto três horas mais cedo.
O segundo samba sobre o tema, Por Causa da Hora, é ainda melhor. Tanto
na melodia como na letra, Noel traduzindo o caos reinante em dois versos do
mais absoluto non sense, o brasileiro sem saber o que diz e o que faz:
Olho, ninguém me responde,
Chamo, não vejo ninguém...
Yvone! Yvone!
Eu ando roxo pra te dizer um picilone!
Críticas políticas, frontais, abertas, com todos os pingos nos is, Noel Rosa
não é ousado o bastante para fazê-las. Nem ele, nem nenhum compositor destes
tempos, a maioria por sinal interessada em render homenagens ao novo
presidente. Mas sempre é possível recorrer ao duplo sentido, como faz Noel,
com a cumplicidade do Visconde de Bicohyba e Henrique Vogeler, na marcha a
que dão o nome de Tenentes... do Diabo.
Visconde de Bicohyba - pseudônimo que Horácio Dantas adota desde que
Humberto de Campos o levou para trabalhar com ele na revista semanal A Maçã
- com nossa combinação de jornalista, humorista político, boêmio e compositor
popular de horas vagas. Será parceiro de José Luís de Moraes, o Caninha, na
buliçosa É Batucada:
Samba de morro não é samba,
É batucada! É batucada! É batucada!
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
E o que queres tu que eu faça
Se o samba é minha cachaça
E a tristeza passa?
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
No samba vivemos nós dois
E viva Deus e chova arroz!
O resto vem depois
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Ó morena feiticeira,
Coração de tamborim
Quando canta a noite inteira
Sem talvez lembrar de mim
Ela:
Se tu és bom brasileiro
E dançares bem assim
Seja alegre e prazenteiro
Venha pra perto de mim
Ele:
O samba sempre crescendo
Não é coisa que se faça
A lua se escondendo
Mostrando que tudo passa
Ela:
Se a lua se esconder
O sol começa a nascer
Pra não deixar morrer
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Os dois:
Oi, uma, duas, três e quatro,
Cinco, seis, sete, oito, nove,
Dez e onze e meia-noite
Já passou... tudo acabou.
Sou folião,
Não sou sargento, não sou cabo,
Nem tenente de galão,
Sou Tenente do Diabo!
Um coronel muito vermelho
Por uma preta teve amor
Resultou desse dueto
Um guri vermelho e preto
Que é Tenente até na cor..."
Marcha-discurso.
Palavras do Visconde de Bicohyba, música de Henrique Vogeler, letra de Noel Rosa.
Três semanas antes, Noel faz duas gravações do seu Cordiais Saudações,
uma acompanhado pela Orquestra Copacabana, que ele rejeita chegando a
escrever sobre o selo branco do disco de prova: "Não gostei, horrível!". A outra,
com o Bando de Tangarás (na verdade apenas o piano de Eduardo Souto e o
violão de Henrique Britto por sinal num soberbo diálogo instrumental), é a que
vai ser editada. Aproveitando a viagem, Almirante leva na bagagem o disco de
prova dessa segunda versão.
Homem cheio de truques e idéias, sempre engendrando um modo de se
promover e ao grupo que lidera, Almirante imagina um quadro para ser
apresentado durante o espetáculo beneficente. Lembrando-se de que no final da
gravação, para rimar com "podendo, mandame algum...", Noel conclui com a
data "7 de setembro de 31", arma toda uma cena. Consegue uma vitrola
emprestada com o delegado, leva-a para o palco e, lá pelas tantas, anuncia à
platéia que os tangarás vão gravar um disco. Sim, aqui mesmo, no palco. E
agora. Faz uma longa exposição técnica, falando de microfones, válvulas,
agulhas, ceras e outros aparatos, e em seguida pede silêncio. Os tangarás, Noel
solando, interpretam Cordiais Saudações. Terminado o número, Almirante põe o
disco de prova na vitrola, pede novamente silêncio e reproduz "o que se acabou
de gravar". O teatro vem abaixo, impressionado com esta mágica de se fazer um
disco de maneira tão simples. A esperteza de Almirante vale mais um ponto à
reputação do conjunto.
Uma breve estada em São José dos Campos, breve e tranqüila, só agitada
pelos gritos que Almirante e os outros ouvem na hora de dormir. Todos, quase
ao mesmo tempo, correm a abrir as portas de seus quartos. O que será?
Constatam, pasmos, que Noel Rosa simplesmente assusta os outros hóspedes da
pensão, correndo sem roupa pelo corredor. O que terá havido? Estará bêbado?
Terá saído às pressas de alguma alcova proibida? Uma cena inesquecível que
ninguém jamais chegará a entender, os bem-comportados tangarás com os olhos
arregalados de espanto, Noel correndo de um lado para outro. Nu.
Capítulo 18
RISO DE CRIANÇA
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente Que dá ordens a você
Três Apitos
•Jack Dempsey - "massa bruta"; Peixe - massa de tomate; índio Aymoré - massa alimentícia; tacape -
massa de briga; Assembléia - massa popular; "3a. Corista" - massa de vidraceiro; Ruy Barbosa - massa
cinzenta; Padeiro - amassador das massas; Rockeíeller - o homem das "massas"; Tapa-alvo - "massa de
mira"; Sogra - massa falida.
• Um gatuno seria um ótimo policial se... fosse bem pago.
• Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para ganhar o insuficiente.
• O lavrador mais honesto é muito menos gentil e agradável do que o maior gatuno.
• A vocação é necessária até para se dar um laço na gravata.
• Qualquer autor pode, sem receio, desafiar um crítico profissional do folclore brasileiro - para fazer
versos estudados ou improvisados.
• Os garis falam mal dos deputados: Nunca vi um deputado falar de um gari!
• A idéia mais original é sempre expressa por gestos e palavras comuns.
• A mulher original é aquela que não procura se diferençar das outras.
• A mulher que mais entendi até hoje foi uma "cocotte" que se queixava da sorte por ser "muito mal
compreendida" pelas outras mulheres!
• O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que este não quer aprender.
• O "savoir par coeur" é, em português, um grande defeito que o papagaio tem. O francês "saberá de
cor" qual é a cor do papagaio?
• Rodolfo Valentino seria mais artista do que seu alfaiate?
• Um literato nunca se exprime bem quando escreve, porque nunca ele escreve como fala.
• Para o bom entendedor meia palavra... não basta, porque ele sempre exige o "porquê" do seu
interlocutor.
• Qualquer poeta aprende a varrer mais depressa as ruas do que um varredor a fazer versos.
• O empresário explora o trabalho dos cantores e das cantoras. O proxeneta explora o trabalho das
mulheres perdidas, com seu prejuízo moral. Qual destes empresários é mais criminoso?
Comparações
Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa!
Este samba - primoroso - não renderá a Noel mais do que 50 mil réis,
importância em troca da qual ele cede seus direitos autorais ao violinista Rogério
Guimarães. Mas não faz mal. Vale pela parceria.
É evidente que a musicalidade de Ary impressiona Noel. Seus sambas,
melódica e ritmicamente originais,- instigam o jovem poeta de Vila Isabel. Do
contrário, ao ouvir num dos quadros de Vai Com Fé, revista estreada no mesmo
Recreio a 12 de agosto de 1932 (portanto, daqui a um ano) um samba com
música e letra de Ary e nada menos de três títulos (Santa Padroeira, Zélia
Fortunata e Não Tem Bandeira), não se sentiria tentado a criar para ele nova
letra.
Manteve o refrão e, com a permissão de Ary, escreveu novas segundas
partes, rebatizando o samba como De Qualquer Maneira:
Quem tudo olha quase nada enxerga
Quem não quebra se enverga
A favor do vento
Eu não sou perfeito
Sei que tenho de pecar
Mas arranjo sempre jeito
De me desculpar
Todos excelentes. É que seus habitats são muito diversos, Ary mais
próximo do pessoal do teatro, de uma classe média mais refinada, jamais se
misturando à gente do morro, pouco freqüentando o Café Nice (prefere fazer
ponto no Rio Branco, ali na Rua São José, onde se reúne a turma de futebol do
Flamengo, uma das suas grandes paixões). Vive enfim em outro sistema
planetário, tocando piano em festas grãfinas, cultivando uma boêmia mais
moderada, em nada parecida com o quase submundo em que anda Noel.
Com a ajuda de Viramundo é fácil para Noel seguir Fina, descobrir onde ela
trabalha. Certo dia, à hora do almoço, passando pela Barão de Mesquita, ele a vê
com uma marmita na mão, à porta da América Fabril. Não sabendo que ela leva
a refeição para Bazinha, supõe que trabalhe ali. E passa a esperá-la, todos os
dias, à saída da fábrica. Claro, pura perda de tempo. Saem homens, saem moças,
sai Bazinha, mas não Fina. Alguns meses terão se passado até que Noel saiba
onde é.
- Um dia te conto - diz ela matreiramente.
Fina faz longa caminhada de sua casa até a Hachiya. Desce a Moju, toma a
Barão de Bom Retiro, atravessa a Visconde de Santa Isabel, passa pelo Largo do
Verdun e entra na Barão de Mesquita. Um estirão. Faz isso de manhã cedinho,
ao lado da irmã, e às cinco da tarde, quando volta sozinha. São moças pobres que
almoçam de marmita (é Fina quem leva todos os dias o almoço para Bazinha) e
jantam em casa, arroz, feijão, macarronada, num prato fundo que dona Luísa
prepara. Usam roupas modestas, sapatos baixos, sem meias. E pouca pintura.
Mas não têm de se envergonhar do que fazem, do trabalho humilde, de serem
operárias de fábrica. É pensando nesta Fina que se esconde - e pensando com
muito enternecimento - que Noel escreve um samba eterno:
Três Apitos.(4)
4. Há muita confusão em torno deste samba, em especial sobre quem seria sua inspiradora. Mas é certo que foi mesmo Fina. Diria Noel em entrevista ao Diário Carioca de 4 de janeiro de
1936: "Três Apitos resume o romance mais sincero de minha vida gloriosamente romântica..." Que outra operária de fábrica se encaixaria nessa declaração? A confusão parece ter crescido quando se
sabe que nem a América Fabril nem a Hachiya tinham apito, enquanto a Confiança, perto da casa de Noel, esta sim emitia nada menos de sete silvos diários. Esses detalhes, porém, não mudam nada. Não
significam que a musa de Noel trabalhasse na Confiança. Apenas, como está claro na letra, ao ouvir o apito da fábrica, ferindo seus ouvidos, ele se lembrava da amada. Quanto aos "três apitos" do título,
eram os primeiros que a Confiança fazia soar de manhã, um às 5 horas e 45 minutos, para despertar os operários que moravam nas redondezas; outro às 7, longo, de uns 20 segundos de duração,
marcando a hora de entrada; e o terceiro às 7 horas e 45 minutos, curto, a que chamavam de "pu". Queria dizer que quem chegasse depois dele perdia o dia.
Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Sou do sereno,
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê
Tanto Noel insiste que Fina acaba lhe dizendo onde trabalha. Como previa,
para que ele por lá apareça com muita freqüência, roubando-lhe um pouco da
liberdade. Num fim de tarde, à saída da fábrica, o contramestre Jerônimo
Feliciano da Encarnação - que há muito vem cercando Fina de propostas e
galanteios - aponta para Noel e diz: - Olha lá o seu poetinha. Está te esperando,
de novo.
Fina fala a Noel sobre o assédio do contramestre e novos versos são
acrescentados a Três Apitos:
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você.
Não há dúvida, dona Martha sabe o filho que tem. O fim do ano vai
chegando, os estudos abandonados, a matrícula trancada, nenhum indício de que
Noel pretende retomar o curso em 1932. Seu Medeiros, cada vez mais mudado,
pouco diz. Ao contrário de tia Carmem, que vem de Belo Horizonte
inconformada.
- Cantor de rádio? Isso não é profissão. Suas palavras são as mais
veementes, de pura indignação por saber que o sobrinho está propenso a virar as
costas à medicina. E para quê? Para fazer sambas. Não há nada mais fora de
propósito. Ouve-se tio Eduardo. Surpresa: ele não desaprova o sobrinho. Ouve-
se também o Dr. José Graça Mello, padrinho de Noel, o médico que o viu
nascer. Quem sabe ele não o convence a tomar juízo? Outra surpresa-.
- Noel está certo. Antes ser um bom sambista que um mau médico.
A reação familiar não conduz a nada. Noel logo sai para a noite, deixando
atrás de si uma família desapontada. O que fazer? O importante, como padrinho
diz, é seguir seu destino. A noite, as estrelas, a liberdade. E por falar em
liberdade, passa pela casa de Fina. Encontra-a à mesa com a irmã, as tias, a avó.
Comem todos em prato fundo.
A minha mana
Para inteirar o almoço
Come casca de banana
Depois engole o caroço
E o meu titio
Faz vergonha a todo instante
Foi ao circo com fastio
E engoliu o elefante
A minha tia
Já engoliu uma fruteira
Estou vendo ainda o dia
Que ela almoça a cozinheira
E depois disso
Leva sempre a dar palpite
Toma chumbo derretido
Para abrir o apetite
Meu bisavô
Que era um índio botocudo
Devorou a tribo inteira
Com pajé, cacique e tudo
E a minha avó
Que comia à portuguesa
Reduziu dois bois a pó
E ainda quis a sobremesa
Homem alto, magro, elegante no smoking sob medida, bem penteado, bem
barbeado, simpático, sorridente, Francisco Alves tem a aparência de um
gentleman. Quem o vê no palco, dominando a platéia não só com sua voz e seu
estilo, mas sobretudo com uma personalidade que há de incluí-lo entre os mais
carismáticos ídolos de toda a história da música popular brasileira, quem o vê no
palco, enfim, seja cantando um samba do Estácio: Nem tudo que se diz se faz
Eu digo e serei capaz ..
.. seja uma nostálgica canção sua e de Horácio Campos:
Saudades infinitas me devoram
Lembranças do teu vulto que nem sei...
.. é sempre tomado da mesma emoção. É um artista raro, desses que
estabelecem entre sua arte e o público uma ligação íntima, indesatável. Um dia
seu amigo e companheiro de dupla, Mário Reis, definirá essa ligação como "pura
mágica"(1), à qual nem mesmo os músicos que o acompanham conseguem ficar
indiferentes:
1. Depoimento de Mário Reis aos autores em 10 de abril de 1981
É, sem dúvida, a grande estrela da música popular destes dias. Há quem lhe
exagere a importância ao afirmar que, Midas a converter em ouro tudo que toca,
ele possui o poder de transformar em sucesso tudo que canta. Não é bem assim.
Mas pode-se dizer que muitas das canções que o povo tem consagrado
ultimamente só se tornaram populares por causa dele, de sua voz e carisma.
Francisco Alves é um cantor que vale por dois. Literalmente. Grava discos com
o próprio nome na Odeon e com o de Chico Viola na Parlophon. Desta vez não
há exagero quando se diz que, em termos de conquista da preferência do público,
Chico Viola é mesmo o único que pode competir com Francisco Alves.
Uma estrela. No palco, um gentleman. E fora dele? Igualmente fascinante,
igualmente carismático, igualmente personagem raro, o Francisco Alves da vida
real é no entanto muito diferente do artista que leva às lágrimas o comovido
Tute. E, como se verá, pouco tem de gentleman.
Noel Rosa conheceu Francisco Alves há três anos. Portanto, em 1928,
quando cursava ainda o último ano do São Bento. Muito tempo depois, num dos
seus livros de memórias(3), o cantor recordará o encontro:
3. Francisco Alves talvez seja caso único de autor de três autobiografias. A primeira, Minha Vida, teria sido ditada por ele ao jornalista Mário Cordeiro. Quando do seu lançamento, A Voz do
Rádio de 15 de setembro de 1936 (página 14) fez o seguinte comentário: "Francisco Alves se converteu em verdadeiro herói de filme em série. Era criança incompreendida e mal julgada. Era o estudante
irrequieto e inimigo dos livros. Era o amante infeliz e não-correspondido. Era o operário brioso e trabalhador, mas sempre mal visto pelos superiores." A segunda autobiografia do cantor foi editada pela
Rádio Nacional, em fins dos anos 40, em forma de folhetim. A terceira, segundo narrativa ao jornalista David Nasser, apareceu inicialmente em O Cruzeiro, publicada em capítulos de 17 de novembro de
1951 a 24 de maio de 1952, sob o título de Minha Vida Verdadeira. Reescrita e reintitulada Chico Viola, sairia em livro em 1966.
"O rapaz aproximou-se de mim, à porta de uma loja de discos da Rua do
Ouvidor. Ficou me olhando demoradamente. Depois, tomou ânimo:
- O senhor é o Francisco Alves?
- Sou. Por quê?
- Queria conhecê-lo. Chamo-me Noel Rosa e sou aluno do São Bento.
Sorri para o adolescente. Fazer sambas, ele mesmo diria depois em versos
memoráveis, não é privilégio de ninguém, no Brasil. Entre dez cariocas, cinco
fazem samba.
- Muito bem - respondi-lhe. - Quando quiser apareça.
Ele se despediu e foi andando. Durante alguns momentos fiquei com aquela
fisionomia na lembrança. Lembrei-me dos olhos inteligentes, do queixo
defeituoso (Noel tinha o maxilar afundado), do corpo magro e daquela fala
mole."
É bem possível que tenha acontecido exatamente assim. Naquela época
Noel e Hélio, na maioria das vezes acompanhados de Glauco Vianna, viviam
percorrendo as lojas de música do Centro, comprando métodos de violão,
ouvindo os útimos lançamentos em disco, tentando fazer contato com gente do
meio.
Depois daquele primeiro encontro, Francisco Alves reviu Noel muitas
vezes, principalmente quando o jovem compositor, já integrando o Bando de
Tangarás, passou a freqüentar o ambiente musical. Em inúmeras ocasiões os dois
se cruzaram na cúpula do Teatro Phoenix, no pequeno estúdio da Odeon. Ou nos
bastidores dos teatros em que Francisco Alves costuma aparecer, mesmo quando
não toma parte do espetáculo (é impressionante a onipresença do cantor, nos
teatros, nas rádios, nos botequins, nos fins de mundo aonde os outros artistas não
se atrevem ir, sempre seguindo a sua intuição, sempre à procura de novidades,
quem sabe um samba inédito que sua voz talvez transforme em sucesso). Mas
esses encontros de Noel com Francisco Alves têm sido sempre breves, um
"como vai" apressado ou pouco mais que isso. Distância que não diminuirá
mesmo depois de Francisco Alves ter gravado Palpite, brincadeira que Eduardo
Souto fez para o próximo carnaval, com letra de Noel:
Palpite! Palpite!
Nasceu no crânio
De quem teve meningite.
Bom exemplo de que nem tudo que Midas toca vira ouro. A marchinha - na
verdade meio marcha, meio fox-trot - não será muito cantada no carnaval de
1932 e depois disso cairá no esquecimento. Mas a possibilidade de ter outras
composições suas incluídas no repertório de Francisco Alves não pode deixar de
atrair Noel. Nesse ponto ele não é diferente de ninguém. Pouco importa que
muita gente diga que o cantor é homem para se manter longe, difícil, nada
parecido com o elegante e simpático artista que se vê no palco, grosseiro até a
violência, ambicioso até a avareza, capaz de tudo quando quer alguma coisa (até
de passar para trás o melhor amigo), inescrupuloso, insensível, menos gentleman
que cafajeste, mais demônio que anjo.
- Há muita inveja em tudo isso - diz Almirante, um dos que mais defendem
Francisco Alves dos maledicentes.
- Verdade-garante Gastão Cottini. - Tudo isso e muito mais.
Cottini - barítono que vende partituras musicais nos subúrbios para custear
os estudos que lhe darão um lugar no coro do Teatro Municipal - odeia Francisco
Alves. Inveja? Não neste caso. Jamais esquecerá o episódio acontecido à porta
do Nice. Estava conversando com dois amigos, o contra-regra Fernando Pereira
e o futuro médico homeopata Alberto Ribeiro (que ainda não se sabia destinado
a tornar-se um dos grandes poetas da música popular), quando Francisco Alves
passou distraído. De repente, tropeçou não se sabe em que, saiu catando cavaco,
quase foi ao chão. Ficou irritadíssimo, mas conseguiu se equilibrar. Vendo os
três parados ali perto, emitiu meio sem jeito um vago e frio "boa tarde".
- Boa tarde-respondeu Alberto Ribeiro.
-Boa tarde, Chico-acrescentou Cottini.
Francisco Alves, então, enfureceu-se, como se querendo atirar em cima de
alguém a culpa pelo tropeção:
- Eu cumprimentei o doutor Alberto Ribeiro e não você, seu facão.(4)
4. Na gíria da época, mau cantor.
Cottini, homem forte, de braços curtos mas pesados, deu alguns passos,
chegou a meio metro de Francisco Alves e, com rapidez e firmeza, deu-lhe uma
bofetada. O cantor, desta vez, não pôde evitar a queda.
- Calma, Cottini! - interveio Fernando Pereira.
Francisco Alves levantou-se e ameaçou:
- Vou em casa buscar um revólver para acabar com você!
E entrou no primeiro táxi. Eram quatro e meia da tarde. À uma da manhã, o
Nice já fechando, Cottini ainda estava lá, esperando, firme na esquina da Rio
Branco com Bittencourt da Silva. Tirou o relógio do bolso, conferiu a hora e
chamou o garçom:
- Por favor, diga ao doutor Francisco Alves que esperei até agora. Qualquer
coisa, ele sabe onde eu moro.
Verdade. Como diz o Cottini, tudo isso e muito mais. E não só por causa
dessa briga que o próprio Francisco Alves achou melhor esquecer. O decidido
barítono e outros juram ter muitos motivos para afirmarem que de fato o cantor é
mais demônio que anjo, menos gentleman que cafajeste. Mas que motivos,
exatamente? Não estarão exagerando? Não terá razão Almirante quando diz que
a inveja é a grande semente de toda essa falação?
Francisco Alves é e será sempre um personagem controvertido. Sobre ele,
toda verdade não passa de meia-verdade, toda certeza se cerca de interrogações.
Quem o conhece, de fato? Quem será capaz de dizer onde acaba o anjo e onde
começa o demônio? O que parece certo é que esta estrela maior da música
popular, este gentleman dos palcos cariocas, este cantor que vale por dois, vem
vivendo uma vida que vai fornecer rico material aos seus biógrafos. Nesta vida,
o acontecido se confunde a toda hora com o imaginado, a realidade com a ficção.
E quem será, afinal, este herói (ou vilão)? Na verdade existem no mínimo três
histórias de Francisco Alves: a primeira, a que ele mesmo conta; a segunda, a
que contam os outros, geralmente os que não gostam dele; e a terceira, a que
ninguém conta, o próprio Francisco Alves envolvendo em mistério certos
episódios de seu passado (ou mesmo do presente), os outros tentando desvendar
tais segredos com as armas da imaginação. São três histórias muito diferentes.
A primeira é, por assim dizer, a sua biografia oficial, a que ele passa para os
livros, a que os departamentos de publicidade das gravadoras divulgarão. Neste
final de 1931 está ele com 33 anos (doze mais que Noel) e orgulha-se de ter
vivido uma vida de lutas e sacrifícios. Costuma falar da infância pobre passada
na Rua da Prainha(5), no bairro da Saúde, onde nasceu, e do pai português, dono
de botequim, homem trabalhador e honrado de quem teria herdado estas e outras
virtudes.
5. Atual Rua do Acre.
Conta como não se deixou contagiar pelos maus elementos do lugar, reduto
do temível Camisa Preta: enquanto os outros meninos de sua idade arranjavam
dinheiro pedindo esmola ou furtando, ele cantava. Emociona-se ao fazer a
descrição de seus primeiros passos como cantor, menino de calças curtas
interpretando canções pelas esquinas, as pessoas passando, comovendo-se,
atirando-lhe moedas. Depois, os empregos humildes, engraxate, operário da
Fábrica de Chapéus Mangueira, biscateiro, o dinheirinho contado para assistir às
apresentações em circo de seu grande ídolo, Vicente Celestino. Passou fome,
ficou doente, dormiu ao relento. Até que lhe deram oportunidade para cantar em
público, profissionalmente, primeiro no Pavilhão do Meyer, depois no circo
Spinelli, em teatros, em clubes. Vieram as gravações, a popularidade, o estrelato.
Foram muitos anos de luta, de perseverança. Hoje, Francisco Alves estufa o
peito para afirmar que não deve a ninguém ou a nada, além de sua voz, tudo que
conquistou. E está certo. Por isso, não aceita que lhe venham pedir esmolas,
mendigar: "Que trabalhem como eu trabalhei!" Por isso, também, diz ajudar a
todos os que precisam, desde que tenham talento e vontade, os que se
aproximam dele não com a mão estendida, mas pedindo uma chance de trabalho.
No que talvez não esteja absolutamente certo.
É aqui que entra a segunda história que fala de um Francisco Alves meio
herói, meio vilão, grande alma, pobre espírito. Homem de muitos amigos e não
menos inimigos. íntimo de gente da alta, banqueiros, industriais, grãfinos de toda
espécie, é capaz de sair de um palacete da Glória, onde acabou de cantar de
graça, para se juntar a um bando de pés-rapados num botequim do subúrbio,
onde na certa brigará por vinténs na hora de pagar a conta. A fama de sovina não
é de agora:"... desde a infância" - confessará na mesma autobiografia em que
recordará o primeiro encontro com Noel - "tive a fama que nunca mais me
largou o resto da vida: a fama de avarento. Sinceramente nunca o fui..." Do que
o pessoal do meio artístico discorda: segundo eles, Francisco Alves é mais pão-
duro que o próprio Pão-Duro(6).
6. Pão-Duro, famoso personagem da cidade, ia de padaria em padaria esmolando pão dormido para comer. Descobriu-se um dia que era homem de razoável situação financeira. Vem do seu
apelido o substantivo "pão-duro" como sinônimo de avarento.
Ou neste breque:
Que eu não vim ao mundo
Somente com o fito de eterno sofrer
Chico:
Na introdução deste samba,
Quero avisar por um modo qualquer
Que esta briga é por causa de uma mulher.
Mário:
E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto.
Mário:
É preciso discutir...
Chico:
Mas não quero discussão...
Mário:
Da discussão sai a razão...
Chico:
Mas às vezes sai pancada...
Mário:
A questão é complicada...
Chico:
Quero ver a decisão...
Mário:
A mulher tem que ser minha...
Chico:
A mulher não traz letreiro...
Mário:
Foi comigo que ela vinha...
Chico:
Mas fui eu quem viu primeiro...
Mário:
Ela é minha porque vi...
Chico:
Mas quem segurou fui eu...
Mário:
A conversa já meti...
Chico:
A mulher não escolheu...
(E podes crer que é...)
Mário:
Já perdi a paciência...
Chico:
Eu por ela me arrisco...
Mário:
Sou capaz de violência...
Chico:
Mas não vai quebrar o disco...
Mário:
Quanto tempo foi perdido...
Chico:
Perdi tempo pra ganhar...
Mário:
Ganhar fama de atrevido...
Chico:
Quem se atreve quer brigar...
(E podes crer que é...)
Assim, a partir dos primeiros dias de 1932, Noel Rosa e Francisco Alves
estarão mais próximos. Pela música e pelos carros, uma coisa ligada à outra. Ao
perceber em Noel uma mina de ouro, um possível "compositor exclusivo" como
muitos que já tem, o cantor põe em jogo sua habitual sagacidade:
- Você ainda está interessado naquele Chevrolet?
Interessado Noel está, mas pelo preço é melhor que nem reabram o assunto.
- Vamos fazer uma coisa: você fica com o carro e me paga em samba.
Noel ouve os detalhes da proposta, a cada samba cujos direitos autorais
ceder a Francisco Alves, este vai tirando uma fatia do total. Cinqüenta hoje, 30
amanhã, 100 depois, Noel verá como o Chevrolet se pagará rápido, sairá quase
de graça. Que pelo menos estude a proposta. Francisco Alves diz que está para ir
a Buenos Aires numa excursão com Mário Reis, Carmem Miranda, Luperce
Miranda, Tute, só gente boa. Na volta conversam.
Não resta a menor dúvida: Noel vai aceitar a proposta. O Viramundo lhe dá
dores de cabeça demais. Tantas que um dia, ao bater com ele num poste da Rua
Visconde de Santa Isabel, o deixará lá para sempre. Que alguém trate de rebocar
o velho Chandler. Sim, vai aceitar a proposta. Tem até um nome para o novo
carro: Pavão.
Mário Reis e Francisco Alves
Capítulo 20
SUBINDO O MORRO
O samba, na realidade,
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.
Feitio de Oração
Se deixei de te amar
Foi só pela ingratidão
Que fizeste sem pensar,
Sem lembrar de uma paixão.
Mas agora estou mudado,
Meu coração não se cansa.
Por saber que sou amado
A minh'alma hoje descansa
(Vivo só de esperança...)
Se conversa adiantasse,
Eu seria conselheiro.
Se fraseado vingasse,
Não andava sem dinheiro.
Num terceiro samba, Já Não Posso Mais, Noel e Canuto terão dois
colaboradores: Puruca, outro negro do Salgueiro que faz ponto nas esquinas de
Vila Isabel, e Almirante, que será seu intérprete em disco:
Adeus, mulher fingida,
Eu já vou-me embora.
Tu estás arrependida,
Já não posso mais!
Deus que me perdoe
Pelo que fiz
Deixando abandonada
Aquela pobre infeliz.
Se tu fosses processada,
Diante de um auditório,
Tu ficavas bem calada,
Pois tens culpa no cartório.
Há bastantes testemunhas
Do que fui e do que sou.
Quando me botaste as unhas,
Meu dinheiro se pirou. (Por quê?)
Briguinhas de samba, nada para se levar a sério. E das quais Noel não
participa, ele que respeita tanto o Salgueiro que lhe dedicará, além dos geniais
versos de Quem Dá Mais?, pelo menos mais duas citações em letra de samba. O
que conta é que Gargalhada, até sua morte em 1941, também de tuberculose,
será uma das legendas maiores do seu morro. Praticamente desconhecido dos
rapazes de Vila Isabel desta época. Mas não de Noel, que será parceiro dele em
Eu Agora Fiquei Mal. Canuto, amigo e padrinho da dupla, é quem o gravará.
Tenho vontade de ir à Penha,
Mas me falta o principal:
A mulher que me ajudava tanto.
Ela deu o fora!
Eu agora fiquei mal
(Eu agora fiquei mal)
Outra, a morte:
Eu tive um só amor
Em toda a minha mocidade.
Daqueles tempos felizes
Até hoje eu tenho saudades.
Lauro dos Santos, o Gradim, fértil como sempre, fará um punhado. Tristes,
alegres, cheios de orgulho, inglórios. Um deles:
Ri da desgraça que me abraça agora
Ri, pode sorrir,
Meu coração por você tanto chora.
Cartola não fica atrás. Compõe uma primeira parte, de letra rudimentar mas
melodia pungente, para a qual Noel fará as segundas. O resultado é este Rir(7),
também gravado por Chico e Mário:
7. A autoria de Rir é um desafio aos pesquisadores. No selo do disco e na partitura impressa, editada por Irmãos Vitale, é atribuída a um certo José Oliveira. Mas o único em Mangueira - e
não há dúvidas de que o samba é de lá - que tinha este nome era o Zé Criança, que morreu em 1939 sem jamais ter reivindicado o samba para si. Carlos Cachaça acha que o autor é o Zé Com Fome.
Fernando Pimenta, grande memória do morro, garante que é o Gradim. Mas Harmonia, jornal de modinhas que Noel e Hélio Rosa editaram por curto período em 1932, é claro. Publicou a letra sob os
seguintes créditos: coro de Agenor (sic) de Oliveira, versos de Francisco Alves e Noel Rosa. Para quem acredita em "prova de estilo" - participação de Chico à parte - como é possível duvidar de que Rir
seja mesmo de Cartola e Noel?
Às vezes é um sorriso
Que acompanha uma esperança,
Outras vezes é um riso
Que provoca uma vingança.
Francisco Alves - sempre ele - foi o primeiro a levar Cartola para os meios
musicais da cidade. Familiarizado com a Mangueira, desde que trabalhava na
fábrica de chapéus, bateu no seu barraco, comprou-lhe sambas, gravou o
antológico Divina Dama. E ainda levou Mário Reis para conhecê-lo, sugerindo -
que o "doutor em samba" também investisse no talento de Cartola (dias depois,
tendo como intermediário o Clovis Miguelão, pois ele mesmo não tem coragem
de ir ao morro, Mário compraria o Que Infeliz Sorte!, que no entanto daria para
Francisco Alves gravar). Uma mina. Chico nunca duvidou disso. Via a
Mangueira desfilar com uma beleza de samba, música e letra nada devendo às
melhores produções do Estácio, e podia apostar: ou era de Gradim, ou era de
Cartola. Como o refrão com que a escola de samba desfila em 1932:
Não faz, amor,
deixa-me dormir,
Oh, minha flor,
tenha dó de mim!
Sonhei, acordei assustado,
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)
Gradim - o tal que se alterna com Cartola na feitura dos melhores refrões da
escola - vive na Mangueira, mas o pessoal do morro diz que ele é muito mais um
cigano do que propriamente de lá. Anda errando por aí, de toca em toca, de
esquina em esquina. Vive de vender samba, como este que passa às mãos de
Amaro Silva por alguns mil réis:
Se está contrariada, esquece,
Eu não quero mais o seu amor...
Está longe, porém, de ser um atleta: é mais um que vai morrer moço com os
pulmões estragados. E sem que a cidade reconheça o talento que tem, muitos o
considerando um dos dois ou três maiores compositores que já pisaram em
Mangueira. O outro ou um dos outros sendo, evidentemente, Cartola.
Mas Noel conhece Gradim o bastante para fazerem juntos pelo menos dois
sambas. Um deles está dentro do tema rir, intitula-se Sorrindo Sempre e
também começou como um dos refrãos do desfile de 1932:
Sorrindo, sorrindo sempre,
Porque eternamente
É um samba muito bom, ao contrário do que pode sugerir a letra lida sem a
melodia. Outro dos muitos problemas de autoria da música popular desta época:
no disco, apenas o nome de Lauro dos Santos; na partitura impressa, além dos
nomes de Lauro e Noel, entram também os de Francisco Alves e Ismael Silva.
Quem terá feito o quê? Já Quero Falar Com Você é mesmo só de Gradim e
Noel, embora mais uma vez o nome deste não esteja no selo do disco. A letra é
bem estruturada - certamente de Noel - em cima de uma imaginária conversa
telefônica durante a qual o amor e as quatro operações se misturam:
Quero falar com você,
Mas em segredo...
Que ninguém venha a saber
Do nosso amor!
Será que para sempre
Havemos de guardar
Para a felicidade algum dia nos chegar?
Mas nem todos são desconhecidos como Manuel Ferreira e Ernani Silva,
Gradim ou mesmo Cartola. A "compositores de morro" já consagrados, sejam de
onde forem, Noel se associará em diferentes épocas. É o caso de Alcebíades
Barcellos, o grande Bidê do Estácio, emérito ritmista e compositor de primeira,
autor de inúmeras obras-primas do samba carioca, em especial as que vem
criando em dupla com Armando Marcai, outro negro de imenso talento. Com
Noel, porém, Bidê fará apenas Fui Louco, em cima do tema da regeneração em
que nenhum dos dois acredita muito.
Fui louco, resolvi tomar juizo,
A idade vem chegando e é preciso.
Se eu choro, meu sentimento é profundo,
Por ter perdido a mocidade na orgia.
Maior desgosto do mundo!
Neste mundo ingrato e cruel,
Eu já desempenhei meu papel
E da orgia então
Vou pedir minha demissão.
João da Bahiana, outro gigante, só que mais ligado à Cidade Nova, não
ficou insensível à explosão do garoto em 1931 e jamais deixará de gostar do que
faz:
"Eu gosto muito dos versos de Noel Rosa. O seu Com Que Roupa? e o meu
Cabide de Molambo fizeram-nos os sambistas da miséria..."(10)
10. Ibidem, 7 de janeiro de 1933. Cabide de Molambo, de João da Bahiana, diz:
Meu Deus, eu ando com o sapato furado,
Tenho a mania de andar engravatado
A minha cama é um pedaço de esteira
E é uma lata velha que me serve de cadeira.
Nem todos manterão para o resto da vida suas opiniões entusiasmadas sobre
o poeta de Vila Isabel. Ernesto dos Santos, o Donga, outro da turma da Cidade
Nova, é uma das exceções. Depois de um elogio como este:
"Há aqui na cidade um moço que pode desbancar muita gente: o Noel Rosa.
Todas as suas produções são sempre recebidas com agrado."(11)
11. De um jornal de 1933, guardado por Noel em seu álbum de recortes.
Depois ainda de serem parceiros em outro samba, Este Meio Não Serve:
É feio! É feio!
Menina de família
Andar metida em certo meio
(É muito feio!)
As sobrinhas do almirante
Já saíram do Sion
Vão tomar vinho chianti
Lá pras bandas do Leblon.
Os filhinhos da Candinha
Que andam sempre de má-fé,
Fazem queixa à mãe da zinha
E ela diz: "Sei lá se é..."
Depois de tudo isso, enfim, Donga mudará. Ainda vai acusar Noel de
plagiar-lhe um samba. E envelhecerá resmungando conceitos nada lisonjeiros
sobre o antigo parceiro:
- Noel não entendia de samba coisa nenhuma. Nada. Nem tocar, nem coisa
nenhuma!(12)
12. Entrevista a Juvenal Portella, Nuno Veloso, Luiz Gleizer e Lygia Santos, esta filha de Donga. Realizada provavelmente em fevereiro de 1973 com vistas a um especial para a Rádio Jornal
do Brasil. O programa não chegou a ir ao ar, mas o depoimento gravado por Donga foi preservado pelo Arquivo Sonoro do Centro de Documentação do JB.
Mas todos sabem que não é assim. Cartola principalmente. Seu coração e o
de Noel batem no mesmo compasso. Como as almas do morro e da cidade para
os que crêem que o samba, a música, pode operar o milagre de unir as pessoas.
Os habitantes da Mangueira jamais se esquecerão da parceria e amizade entre
Cartola e Noel. Para sempre hão de recordar, comovidos, a figura dos dois,
muito magros, sentados à porta do barraco deste negro de fala e gestos delicados,
produzindo horas a fio dezenas e dezenas de sambas. Quase todos se perderão.
Mas a alegria que Noel e Cartola sentem ao criá-los, a emoção que os envolve ao
fazerem da vida fonte de música e poesia, isso ficará. Há coisas que o morro não
esquece.
Cartola nos anos 30
Capítulo 21
UM CERTO ISMAEL
Ele canta um simples estribilho, sem maior importância, e eis que Noel,
ninguém menos que Noel Rosa, a quem todos vivem implorando parceria, vem
lhe pedir, com toda a humildade, para fazer a segunda parte. Ismael mal pode
acreditar. Sente-se de tal forma tocado que nem sabe o que dizer.
- Repete esse estribilho aí, Ismael-pede Francisco Alves.
Ismael canta de novo. Depois, vira-se para Noel:
- A segunda é sua.
Noel não fará uma, mas duas segundas partes:
Supliquei humildemente
Pra você endireitar
Mas agora, infelizmente,
Nosso amor tem que acabar.
Dias depois, mostra-as a Ismael Silva e Francisco Alves. E este também não
perde tempo : decide gravar o novo samba, Para Me Livrar do Mal, do qual,
desde logo, intitula-se "co-autor". Trato é trato, lembra ele a Ismael. O que Noel
ouve sem a menor surpresa.
Tem sido assim há muito tempo. Todo o mundo sabe que nesse acordo de
boca entre Ismael e Francisco Alves um entra com o samba e o outro com a voz.
Nenhum dos dois faz segredo disso. E não adianta dizerem que Ismael está
sendo explorado: no fundo, ele se sente até grato.
Recorda-se da época ruim que viveu em 1927, seus exames de sangue
acusando uma penca de cruzes, a sífilis obrigando-o a se recolher a um leito do
Hospital da Gamboa. Estava lá, triste da vida, com medo mesmo de morrer, de
nunca mais voltar ao Estácio e aos seus sambas, quando Alcebíades Barcellos, o
Bidê, veio lhe fazer uma visita.
- Te trago uma proposta, Ismael.
- Que proposta?
- Sabe o Francisco Alves?
- Claro, o cantor.
- Pois é. Ele andou ouvindo uns sambas teus por aí. Gostou. Mandou que eu
viesse aqui com estes 100 mil réis.
- Pra que tanto dinheiro?
- O Francisco Alves quer te comprar o Me Faz Carinhos.
Há cinco anos, 100 mil réis era muito mais do que Ismael Silva poderia
ganhar em quase um mês de biscates e empregos fixos. a vida era bem mais dura
que a de hoje, obrigando-o a pegar o que lhe aparecesse, a ser de menino de
recados num escritório de advocacia a servente da Central do Brasil e vendedor
de remédios. Samba não passava de coisa de hora vaga, prazer cultivado nas
mesas de botequim, nas tendinhas, nos terreiros. Cem mil réis! Então o Bidê lhe
aparecia com aquele dinheirão todo, no hospital, para comprar-lhe um simples
samba?
Desde rapazinho, no Catumbi, quando participava de uma roda onde
brilhavam o Nonô, o Avelino, os irmãos Armando e Norberto Marcai, este mais
conhecido por Manga, fazer samba para Ismael é quase um brinquedo. Mais
tarde, ao mudar-se para o Estácio, passou a freqüentar o Apollo, o Café do
Compadre, os lugares onde se reuniam os bambas do bairro. E não demorou
muito a tornar-se tão ou mais respeitado que qualquer um deles. Bidê, Mano
Edgar, Baiaco, Brancura, todos podiam ser muito bons, mas era quase sempre
com sambas de Mano Rubem e Ismael Silva que saíam os blocos da redondeza,
um dos quais o famoso Deixa Falar. Uma tuberculose galopante matou Rubem
aos 23 anos em 1927, o mesmo ano da compra do Me Faz Carinhos. De modo
que desde então, Ismael reinou mais ou menos absoluto. Nestes blocos desfilava,
só para aprender o que se cantava, o mesmo e sempre atento Francisco Alves.
No hospital, Bidê explicou a Ismael que o cantor ficava cada vez mais
admirado quando, ao perguntar de quem era determinado samba, lhe
respondiam, quase que invariavelmente: "E do Ismael..." Pelos cem mil réis o
negócio foi fechado ali, Francisco Alves tornando-se dono do Me Faz Carinhos,
como logo depois, novamente por cem mil réis, compraria outro samba de
Ismael, o Não é Isso Que Eu Procuro, e já em 1929 o Amor de Malandro,
destinado a ser um dos sucessos do carnaval de 1930(2): 2. Nos selos dos discos originais, Ismael Silva divide com
Francisco Alves a autoria tanto de Me Faz Carinhos como de Não E Isso Que Eu Procuro. Já em Amor de Malandro o nome de Ismael simplesmente desaparece. O próprio Francisco Alves gravou os
dois primeiros. Amor de Malandro é caso raro de samba daquela época a merecer mais de uma gravação: a de Chico, uma de solo de assovio por João Gabriel de Faria e a terceira de Nicola Pasceli.
- Entre ali no meu carro. Vamos dar umas voltas pela cidade.
Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro.
Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas,
das vantagens de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom
que Ismael fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos
discos. Em troca, Ismael entregaria a Francisco Alves tudo que fosse compondo.
Os sambas gravados e editados, naturalmente, levariam a assinatura dos dois.
Ismael pensou um pouco, o carro dando voltas. E disse.- - Acontece que já tenho
trato com um amigo.
Explicou, então, que o amigo era Nílton Bastos, excelente compositor dali
mesmo, do Estácio. Muitos dos sambas que Francisco Alves acabara de ouvir
tinham sido feitos pelos dois, Ismael e Nílton. Eram tão amigos, tão afinados,
que acabaram fazendo um acordo: - Faça ele, faça eu, o que for feito é dos dois.
Para Francisco Alves não havia o menor problema:
- Então a gente inclui ele na parceria.
O resto é parte da história, o trio Ismael Silva-Nílton Bastos-Francisco
Alves assinando uma sucessão de jóias do samba carioca. Sambas que, nos dois
anos seguintes, conquistariam não só a cidade, mas todo o país: Nem É Bom
Falar, Não Há, Olê-Lê-Ô, Arrependido, O Que Será De Mim?, Ironia, Eu Bem
Sei. Quem não se lembra da ovação que os dois sambistas do Estácio receberam
quando Francisco Alves chamou-os ao palco do Teatro Lyrico, depois de cantar,
no concurso de sambas e marchas para o carnaval de 1931, o irresistível Se Você
jurar?
Se você jurar que me tem amor,
Eu posso me regenerar...
Agora, Chico quer que Noel ocupe o lugar de Nílton. E por que não? O
acordo em torno do Chevrolet cor de azeitona obriga o comprador a desembolsar
sambas para o vendedor. Quanto mais Noel trabalhar para Chico, mais rápido
pagará o Pavão. Concorda. Mas há um detalhe: os sambas que Noel fizer serão
só seus, sem intromissões indevidas. Como este Tudo Que Você Diz, feito tão
rigorosamente dentro do figurino do Estácio que Ismael Silva bem poderia
assiná-lo:
Tudo que você diz
Com a maior lealdade
É mentira
É usar de falsidade
(Fale a verdade)
Os versos tanto servem para falar de um amigo que se foi como de um amor
que se perdeu. Noel, contudo, é explícito. Prefere a segunda vertente ao criar as
segundas partes, embora o breque dado pelos cantores ao final das mesmas,
antes de retornar ao refrão, "Foi o último adeus...", traga de volta a morte como
tema.
Adeus é bem triste
Que não se resiste
Ninguém, jamais,
Com adeus pode viver em paz
(Foi o último adeus...)
Ismael e Noel criarão muito juntos. Nenhum outro comporá tanto com o
poeta de Vila Isabel quanto o sambista do Estácio(6).
6. As musicografias até aqui levantadas, inclusive a partir de informações do próprio Ismael Silva, fornecidas em entrevistas diversas de 1954 até sua morte em 1978, nos dão conta de apenas
nove composições suas de parceria com Noel: Para Me Livrar do Mal, Adeus, Gosto, Mas Não É Muito, Uma Jura Que Fiz, Assim, Sim, Quem Não Quer Sou Eu, Ando Cismado, A Razão Dá-se a Quem
Tem e Boa Viagem. Baseados em dados que poderão ser encontrados no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no final do volume, os autores relacionam mais nove: Escola de Malandro, Já Sei Que Tens
Um Novo Amor, Nunca Dei a Perceber, Não Digas, Deus Sabe o Que Faz, Dona do Lugar, Isso Não se Faz, É Peso e Sorrindo Sempre, esta em parceria também com Gradim e Francisco Alves, já
estudada no capítulo anterior.
Ou de Não Digas:
Oh! Não digas
Que ainda eu não te esqueci
Quem não sabe há de pensar
Que eu ando atrás de ti.
Ou ainda de Deus Sabe o Que Faz, todos sambas que aparecerão em disco
assinados por Ismael Silva e Francisco Alves. O nome de Noel, só na partitura.
Tu sendo infeliz como se vê
Bancas tanto chiquê
Que a mim até já faz horror
Quanto mais se tivesses valor
Não tens e nem terás.
Deus sabe o que faz.
RUMO AO SUL
Numa das faces, uma embolada de Noel, que assim retorna, ainda que por
pouco, aos primeiros tempos do conjunto. Chama-se Não Brinca Não, que
Almirante canta com muita graça.
Pega na saca,
Tira a jaca,
Leva a faca,
Que a macaca
Sai da estaca
E te ataca
À traição.
Seu Fortunato,
Olha o rato
No sapato.
E o seu gato,
Que é de fato,
Foi pro mato
Com meu cão.
Dona Adalgisa
Só me avisa,
Só me frisa
Que a camisa
Não é lisa
Nem precisa
De botão.
Eu bem dizia
Que eu sabia
Que a Maria
Fazia
Na sacristia
Cortesia
Ao sacristão.
Dois dias depois, sem João de Barro e enxertado de Paulo Netto, Gorgulho
e Helvécio de Barros, um bando que dos tangarás originais só tem o nome segue
de automóvel para um ou dois espetáculos em Nova Friburgo. Uma viagem tão
cansativa quanto financeiramente desastrosa. Será a última participação de Noel
na história do conjunto.
De início Francisco Alves pretendia que a estréia se desse a 8 de abril em
Porto Alegre. Mas a escolha dos cantores e músicos que o acompanharão foi
menos simples do que esperava. Mário Reis está confirmado desde o começo. Já
Noel Rosa só passou a fazer parte do grupo depois que Lamartine Babo, doente,
recomendado pelo médico a fazer uma estação de águas em São Lourenço, não
pôde viajar. É sempre difícil precisar o que Francisco Alves tem na cabeça,
homem de muitas e variadas idéias. Mas é bem possível que Lamartine Babo
tenha sido o primeiro nome em que pensou para substituir Nílton Bastos. Quem
sabe? Afinal, logo após a morte do grande sambista do Estácio, o cantor tratou
logo de aproximar Lamartine de Ismael Silva, os três assinando um samba que
Mário Reis gravou no fim do ano:
A aurora vem raiando
Anunciando o nosso amor
Ô...
O mulato
É de fato
E sabe fazer frente
A qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.
Sei que ele anda agora
Aborrecido
Porque vive perseguido
Sempre e a toda hora.
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá.
Mário Reis apaixona-se por este samba. Apossa-se dele, diz que vai lançá-
lo em Porto Alegre antes que Francisco Alves o ouça e o pegue para si. Mário
acha, com razão, que música e letra de Mulato Bamba são feitas sob medida para
a sua voz suave, seu estilo pausado e meduloso, tão de acordo com a gente e as
coisas deste Rio malandro de que falam os versos. Mas em quem terá se
inspirado Noel para criar personagem tão singular como este mulato forte do
Salgueiro? Todos os bons malandros, do morro ou não, parecem nele contidos, a
intimidade com o tintureiro(4), a habilidade inata com o baralho, a astúcia que o
permite viver sem trabalhar, a facilidade com que faz um novo samba.
4. Carro de polícia para transporte de presos. O camburão da época.
Pode não ser o Grande Hotel, mas tem lá os seus a favores. De pontos em
pontos, numa e noutra calçada, venezianas entreabertas apenas insinuam vultos
de mulher que lá de dentro chamam os transeuntes para um "instante". Ou seja,
um amor ligeiro e econômico. São as chamadas casas alegres de uma rua onde se
encontram também dois ou três botequins vagabundos, freqüentados por uma
população pobre, noturna e meio vadia.
É nesta viagem, certamente, que Noel descobre Nonô. Ou melhor, um
descobre o outro. Já se conheciam, mas foi a bordo do Itaquera que ensaiaram a
amizade que se vai fortalecer agora. Constatam afinidades, fazem planos para as
madrugadas, depois dos espetáculos. Já em Porto Alegre, viram companheiros
inseparáveis. O que desde o primeiro minuto deixa visivelmente apreensivo o
zeloso Francisco Alves.
Nonô é um mulato bonito, olhos claros, sorriso sestroso. Nasceu em Niterói
há 31 anos, toca piano de ouvido desde os nove, é profissional há quase dez e
pertence a uma família toda ela muito musical(8).
8. Romualdo Peixoto, o Nonô, que morreria em sua Niterói natal a 13 de novembro de 1954, era tio do cantor Cyro Monteiro. E também do pianista Moacyr Peixoto, do pistonista Arakem
Peixoto e dos cantores Andiara e Cauby Peixoto.
Eu me escangalho
De pular de galho em galho
Seu Ministro do Trabalho
Não me dá colocação...
Meu esqueleto
Está pior que um graveto
Eu já estou virando espeto
Meus olhos já estão no fundo.
O teatro explode numa ovação quando ele, boina quase tapando os olhos,
conclui com estas quadras:
Inda outro dia
Fui até a Galeria
Só para ver se mordia
O primeiro a aparecer...
Chegou a hora,
Eu quis dizer:
"É agora!"
Mas, Virgem Nossa Senhora!
Cadê dente pra morder?
Os Ases do Samba deixam Pelotas contentes com seu êxito. Mas Francisco
Alves não esquece a boina. Lamuriento, confessa: - Sabe, seu Mário.. .Já estou
começando a achar que ele faz essas coisas de propósito. Só para esbandalhar
com os meus nervos.
Em Rio Grande não é diferente, Mário e Chico no melhor hotel, os outros
três na Pensão Mangache. Noel e Nonô continuam se evaporando horas antes do
espetáculo. O desespero do líder do grupo se repete: - Santo Deus! Desta vez
eles não vêm mesmo!
Mas sempre acabam vindo.
Voltam a Porto Alegre para uma nova série de apresentações nos últimos
dias de maio. A essa altura já é quase impossível encontrar Noel fora do palco.
Ele e Nonô continuam entregues às suas expedições boêmias à Rua da Praia, aos
cabarés mais ordinários, aos botequins mais escondidos. Isso enquanto Mário e
Chico vão engravatados ao Clube Jocotó divertir-se com a alta classe média
porto-alegrense, ou ao Caçadores, na Rua Nova, em velhos tempos o preferido
de Getúlio Vargas e ainda hoje recebendo figurões em suas mesas de jogo. Mas
os desaparecimentos de Noel são ainda mais demorados que os de Nonô. Na
verdade, ele é o mais "ocupado" de todo o grupo. Bem em frente à pensão da
Rua Clara - na qual volta a hospedar-se - mora uma bonita morena que ele
conheceu uma noite dessas, talvez de janela, talvez de prosa de esquina. Noel,
como de hábito, se apaixona. Uma paixão breve, mas intensa, que o agasalha
nestes frios dias de outono. Já não adianta Francisco Alves correr atrás dele,
reunir os outros Ases do Samba para uma busca pela cidade. Não vai encontrá-
lo. Nonô e Pery sabem, mas não dizem, que em vez dos ensaios à tarde o amigo
prefere os carinhos do novo amor. Como se chama?
Em toda a excursão, Francisco Alves nunca esteve tão enfezado:
-Já sei o que vou fazer.
- O que foi, Chico? - pergunta Mário. -Já descobri um modo de botar o
Noel na linha. E o Nonô também.
Francisco Alves, na primeira oportunidade, lembra aos dois irrequietos
Ases do Samba que a viagem vai prosseguir em Florianópolis e só acabar em
Curitiba. Quer dizer que ainda há muito pela frente. E como eles insistem em
chegar atrasados, em faltar aos ensaios, em não agir como verdadeiros
profissionais, Chico sente-se obrigado a tomar uma atitude extrema: segurar-lhes
o dinheiro. É isso mesmo! Depois de cada espetáculo, Noel e Nonô só receberão
o bastante para pagarem a hospedagem e as refeições. O restante que lhes couber
Francisco Alves guardará.
O cantor não fica nisso. Passa por todos os lugares em que
presumivelmente os dois costumam beber e pede aos gerentes, garçons e
freqüentadores assíduos que não lhes fiem ou paguem bebida. Noel e Nonô,
como era inevitável, ficam mordidos. Chico não tem esse direito, o dinheiro é
deles, ganho com o seu trabalho. A vida também é deles, podem beber onde
quiserem e com quem quiserem. Onde já se viu? Mas, bons malandros que às
vezes são, agüentam firmes, engolem a indignação, dizem aceitar as imposições
do chefe. Para que existe o dia de amanhã? Hoje é Francisco Alves quem dá as
cartas. Não é demais lembrar que quem voa em grande altura leva sempre grande
queda. Mesmo que seja um Francisco Alves.
Uma paixão breve, mas intensa. O suficiente, pelo menos, para encher de
tristeza o coração de Noel Rosa no dia do embarque para Florianópolis. Como o
próprio Noel contará daqui a alguns anos numa entrevista(11), na véspera de
tomar o navio conversa com a morena, ele da sua pensão, ela na janela da casa
em frente.
11. Carioca, 18 de julho de 1936 (página 41).
Chove muito. Noel gostaria que estivessem juntos em vez de separados pelo
aguaceiro que desaba sobre a rua estreita. Alguém a chama lá dentro. A morena
entra apressada, com tempo apenas para dizer: - Até amanhã...
Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de
Porto Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu
quarto de pensão: (Até Amanhã)
Até amanhã, se Deus quiser,
Se não chover eu volto pra te ver,
Oh, mulher!
De ti gosto mais que outra qualquer,
Não vou por gosto,
O destino é quem quer.
E mais uma quadrinha que esperará seis décadas para ser conhecida pelo
público(12): 12. Gravada em 1983 como uma das vinhetas do disco Noel Rosa Inédito e Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).
Dois meses é uma longa ausência, uma considerável pausa nas atividades
de qualquer profissional do rádio e da música popular. Por isso, como se tendo
pressa de recuperar o tempo em que estiveram fora, os cinco Ases do Samba,
juntos ou separados, tratam de se mobilizar. Nonô e Pery Cunha voltam às
gravações. Mário Reis - cada vez mais apaixonado por Mulato Bamba - registra-
o na Odeon, destinando o outro lado do disco a um novo samba de Noel e Ismael
Silva: Uma Jura Que Fiz.
Não tenho amor, nem posso amar
Pra não quebrar uma jura que fiz
E pra não ter em quem pensar
Eu vivo só e sou muito feliz.
Este samba, Uma Jura Que Fiz, retoma sob as bênçãos de Francisco Alves a
sociedade que a viagem obrigou-os a interromper. É um samba perfeito, primeira
e segunda partes impecavelmente encaixadas. É um dos mais representativos da
parceria Ismael Noel. Na música e na letra. É importante notar como se
completam, sem qualquer conflito, as diferentes visões que Ismael e Noel têm do
amor. O que para um é recusa, não querer amar, não gostar ("Esse negócio de
amor não convém", dizia Ismael na primeira composição que Noel lhe
completou), no outro é desilusão, sofrimento, traição. Ambos - Ismael na
primeira, Noel na segunda - acreditam em viver só e ser feliz, mas chegam a tal
conclusão por caminhos diversos, Ismael por não querer problemas, Noel por já
ter superado os seus. Essas distintas visões do amor, um se recusando a amar, o
outro sofrendo por não se ter recusado, vai se repetir em outros sambas dos dois.
Mas com tal habilidade de Noel na condução da segunda parte (a fórmula
praticamente não varia, primeira de Ismael, segunda de Noel), que só com algum
esforço se percebe que os poetas são dois e não um.
Mais três sambas Noel e Ismael fazem pela mesma época, isto é, logo
depois da viagem ao Sul. Um deles é Ando Cismado.
Mulher, eu ando cismado
Que me enganei com você
Se algum dia não ficar mais a seu lado
Não precisa perguntar por quê.
A mentira é fatal
Creio que não é por mal
Que a mulher nos faz descrer
Mas se é realidade
Sua grande falsidade
Eu hei de ver você sofrer.
A letra da primeira parte, lida simplesmente, pouco vale. Mas, vestida com
melodia de Ismael, se transforma. A segunda é legítimo Noel. Na estrofe final,
são primorosos os duplos sentidos, os jogos de palavras, "peso" podendo ser azar
ou carga, e "pena", castigo ou coisa leve.
É peso, estou pesado
O meu viver é uma sentença
Que eu fui condenado a cumprir
Esta pena o remorso condena
Eu serei sentenciado.
Ismael e Noel produzindo muito, o primeiro para não deixar sem material
novo o sócio Francisco Alves, o segundo para amortizar a dívida do Pavão. Tudo
como antes. Especialmente para Francisco Alves. Profissional é profissional, de
modo que já esqueceu os problemas que Noel lhe causou durante a viagem.
Acertadas as contas, pago o que era devido a Noel e a Nonô, o cantor acha que o
que passou, passou. É hora de seguir em frente. Por isso, procura o parceiro e diz
que quer gravar Até Amanhã. A reação de Noel é quase infantil, birrenta como a
de um garoto zangado.
- Desculpe, mas eu prefiro dar pro João Petra.
Francisco Alves não se queima. Deixa o garoto Noel se zangar. Como não
se queima, tampouco, ao saber que Nonô e Noel fizeram um samba mexendo
com ele, desforrando-se do que aconteceu em Porto Alegre, provocando-o
musicalmente. Tanto assim que, informado de que Sílvio Caldas vai gravar o tal
samba, Vitória, na tarde de 13 de julho, aparece no estúdio da Victor e se
oferece para participar da gravação. E de graça! Sílvio fica honrado e surpreso.
O que terá dado no Chico? Contratado da Odeon e não cobrando nada para
reforçar um disco da Victor? O samba é gravado, Francisco Alves fazendo uma
nítida, afinada e harmoniosa segunda voz para Sílvio:
Antes da vitória
Não se deve cantar glória
Você criou fama
Deitou-se na cama
E eu que não estou dormindo
Vou subindo, vou subindo...
Enquanto você vai decaindo.
Noel Rosa não é, nunca será um romântico. Nem na poesia, nem na vida.
Não será jamais um poeta transbordante de sentimentos, lírico até a raiz dos
cabelos, derramado como os que ele mesmo gostava de cantar com o amigo
Alegria à época de Queixumes ("Por que te esquivas assim, coração...?"), nem
será um amante dado a enlevos de um Romeu ("Ah! Querida Julieta! Por que
ainda és tão bela?"). Uma coisa está refletida na outra. Não há lugar nos
relacionamentos amorosos de Noel para flores e bombons, bilhetinhos
apaixonados e gestos galantes, carinhos e nobrezas. Da mesma forma, sua
poesia, suas letras de música raramente terão o acento lírico dos menestréis das
noites de Vila Isabel.
Das 250 para 300 músicas que comporá, não chegarão a meia dúzia as que
falam do amor de maneira direta, a mulher como objeto de seus sentimentos, de
suas juras, de suas promessas, da alegria de gostar dela. Quantas vezes o "eu te
amo" fará parte de suas letras? Nenhuma. Quando muito dirá como em Até
Amanhã:
De ti gosto mais que outra qualquer
Um remate definidor: no campo do amor, a mulher que não mente não tem
valor. Para ele, contudo, todas as mulheres mentem. E é quase sempre a partir da
mentira, da arte de enganar, do dom de saber iludir, que ele vai criar o universo
de suas canções de amor. Tudo, evidentemente, intercalado de humor, ironia,
astúcia.
Noel Rosa não é nem será um romântico. Mas nunca isso ficou tão
manifesto, tão claramente explícito, tão confessado por ele mesmo, como neste
segundo semestre de 1932. Quem será sua musa então?
Clara e Fina. Não são apenas as duas que dividem os carinhos de Noel
nestes dias. Entre uma e outra caberá lugar para uma terceira, nova musa:
Julinha. Clara continua sendo a namoradinha dos tempos de colégio, a única com
quem talvez se casasse. Isto é, se acreditasse em casamento, em ser feliz preso a
uma mulher, uma família, uma vida rotineira e sossegada. Fina foi, sem dúvida,
a primeira paixão. De certo modo, Noel jamais deixará de gostar dela, de seu
jeito de criança alegre, atirada, travessa, parecida com ele em sua sede de vida,
mas uma vida sem freios nem grades, de coração e braços abertos para o mundo.
Julinha é diferente de Clara e de Fina, pode-se dizer, em quase tudo.
Chama-se Júlia Bernardes, diz pertencer a importante família mineira, a
mesma que deu ao Brasil um Presidente da República, e exige ser tratada à altura
de seu nome. Mas Noel a conheceu num dos muitos cabarés da Lapa onde tem
trabalhado, o Roxy, o Flórida, o Rex, o Tabu. Tem entre 30 e 35 anos, a
maquiagem carregada tornando mais difícil precisar-lhe a idade. É alta, vistosa.
Muda de cabarés e namorados com a mesma freqüência com que muda de
cabelo, loura hoje, ruiva amanhã, cor indefinida depois. Quando sóbria, ostenta
maneiras que não chegariam a envergonhar os Bernardes de Viçosa. Mas
raramente está sóbria. E quando bebe, tudo é possível. Julinha é muito diferente
de Clara e Fina.
Sempre propenso a grandes paixões, Noel se vê empurrado para os braços
de Julinha desde o primeiro momento. Testemunha deste começo de romance é
Ignácio Jorge, o Pará, motorista de táxi que costumava levar Noel para todo
canto antes da compra do Pavão. Como Noel quase não fala de Julinha (procura
vê-la longe dos olhos dos amigos, sempre temendo suas cenas, algumas delas
violentas), às informações de Pará se deverá o pouco que se vai saber deste
agitado caso de amor. Mais velha e experiente que Noel, levando uma vida a que
Clara e Fina jamais se atreveriam, Julinha não será propriamente a inspiradora
do anti-romantismo de Noel neste 1932. Mas, para quem vivia fazendo versos
sobre a mentira, a falsidade das mulheres, o amor como um jogo de regras
baixas, desprovido de qualquer lirismo, ela parece a musa ideal. Prática que
confirma a teoria, modelo perfeito para os sambas que Noel vai fazer por agora.
Julinha mora na Penha, numa modesta casa de morro pouca coisa melhor
do que um daqueles barracões da Mangueira que Noel conhece tão bem. É esta
casa que abriga o amor dos dois nos primeiros tempos. Um amor complicado,
entremeado de brigas e bebedeiras, ciúmes e escândalos. É impossível saber ao
certo quantas e quais músicas Noel comporá inspirado em Julinha(2).
2. De acordo com Almirante, teriam sido cinco os sambas de Noel Rosa inspirados em Julinha: Feitio de Oração, Vai Para Casa Depressa, Cor de Cinza, Pra Esquecer e Meu Barracão.
Nenhum deles, porém, parece conter elementos autobiográficos que permitam concluir que a musa era de fato ela. O primeiro é muito mais um hino de louvor ao samba e à Penha do que à mulher amada.
O segundo, como se verá no capítulo seguinte, é uma digressão filosófica, do ponto de vista do malandro, em torno de uma disputa amorosa. Em entrevista à revista Carioca - da qual se transcreve trecho,
logo adiante, neste mesmo capítulo - Noel esclarece a origem de Pra Esquecer, em nada ligada a Julinha. Meu Barracão, que também será estudado mais à frente, é menos um canto de amor do que uma
referência saudosa à Penha e ao barraco, embora este bem possa ser a modesta casa onde Noel viveu com Julinha. Quanto a Cor de Cinza, assunto bem mais complexo, será focalizado no Capítulo 41.
Julieta
Tu não ouves meu grito de esperança
Que afinal de tão fraco não alcança
As alturas do teu arranha-céu.
Tu decretaste a morte aos madrigais
E constróis um castelo de ideais
No formato elegante de um chapéu.
Julieta
Nem falar em Romeu tu hoje queres
Borboleta sem asas, tu preferes
Que te façam carícias de papel.
Nos teus anseios loucos, delirantes
Em lugar de canções queres brilhantes
Em lugar de Romeu, um coronel.
Noel Rosa e Ismael Silva estreitam sua colaboração, produzem cada vez
mais juntos, formam dupla para gravar. Gente Boa e Batutas do Estácio são
algumas designações com que os dois, quase sempre reforçados por Francisco
Alves, atuam em discos e em recitais. Gravam coisas menores do próprio Noel,
como Quem Não Dança, samba em forma de partido-alto cujos improvisos não
vão além de dois versos, o segundo tendo de rimar com "criança".
Quem não dança, quem não dança
Pega na criança
Quem não dança, quem não dança
Pega na criança.
Você é um contrapeso
Que não entra na balança.
Seu Jacinto, no caso, é o brasileiro destes tempos, que deve manter a pose
apesar da fome ("O que eu sinto e não consinto é seu cinto se afrouxar"). Apertar
o cinto é a palavra de ordem, economizar, não se gastar o pouco que se tem.
Uma marcha que - por outros motivos que não o retrato que traça do Brasil de
agora - vai provocar um protesto pela imprensa assinado por Jota Tojeiro,
pianista e compositor que em carta aberta refere-se à campanha liderada por
Renato Murce pela moralização e restauração do bom-gosto nas letras da música
popular brasileira. Tojeiro diz: "... lamento ter Renato Murce apresentado em
público o nome do Sr. Noel Rosa e outros como poetas-moralistas nas músicas
de sabor popular; talvez o senhor Renato Murce não conheça a marcha Seu
Jacinto de autoria do poeta-moralista, cuja letra é bem... interessante. O final da
letra desta marcha é bem desagradável para quem tem família e tem a
infelicidade de ter um rádio em casa ligado para qualquer das nossas estações."
(4)4. Diário Carioca, 5 de janeiro de 1933.
Devias pagar
Por fazer chorar
A quem te tratava tão bem
Mas eu aprendi
O que fiz por ti
Não hei de fazer por mais ninguém.
Eu só quero ver
O teu proceder
Se a tua promessa é fatal
Eu tenho razão
Não digas que não
Porque tu já me fizeste mal.
Os dois sambas serão gravados por Castro Barbosa & Jonioca, o primeiro, e
João Petra de Barros, o segundo, mas em nenhum deles o nome de Noel constará
do selo do disco. Ao contrário de Assim, Sim!, marcha, uma das poucas de toda
obra de Ismael Silva. Gravada por Carmem Miranda enquanto Noel e os Ases do
Samba estavam no Sul, possui refrão suave e elegante, como quase tudo que
Ismael faz, e aquela imprecisão de que ele tanto gosta. Interessante, também, a
estrutura dos versos de Noel: um alexandrino e duas redondilhas maiores.
Assim, sim
Mas assim também não
Já não gostas mais de mim
Mas eu não te dei razão.
Mundos, sem dúvida, muito diferentes. Mas se fosse este o motivo das
reservas de Noel, na certa o refinado Mário Reis não seria um de seus intérpretes
preferidos e mais constantes.
A questão envolve apenas aspectos musicais. E só. Sabemos que, ao
escolher o caminho da música popular, Noel entregou se de corpo e alma ao
samba. Não o velho samba, qualquer samba, ou o samba que eventualmente
Carmem Miranda também canta, mas aquele que se traja rigorosamente dentro
do figurino do Estácio. Assim como o que faz Ismael Silva, ou Cartola. Carmem
Miranda jamais se sentirá inteiramente à vontade nesse campo. Tem clara
predileção pelas marchas(8).
8. Segundo levantamento de Abel Cardoso Júnior em Carmem Miranda, a Cantora do Brasil (páginas 235 e 236), das 281 músicas gravadas pela cantora antes de ir para os Estados Unidos,
107 eram marchas, 36 menos que o total de sambas.
E aos sambas que canta imprime sempre a sua marca, brejeira, interessante,
pessoal, notável principalmente pelo fraseado, pela habilidade com que
pronuncia nítida e rapidamente versos longos nos quais uma cantora menos ágil
tropeçaria. Mas uma marca que nem de longe se afina com a alma dos sambas do
Estado. Carmem será melhor intérprete de sambas ligeiros, quase choros
cantados, à maneira de Gadé, Vicente Paiva, Heitor Catumby, do que de
composições de Alcebíades Barcellos. Cantará melhor Ary Barroso e Joubert de
Carvalho do que Armando Marcai. Ismael Silva? Tirando Assim, Sim, por sinal
uma marcha, nada mais gravará dele. Cartola? Noel Rosa estava no Sul com os
Ases do Samba quando Carmem gravou Tenho Um Novo Amor, dele com Noel
Torna-se impossível reconhecer por trás da interpretação da cantora, sem calor,
aos arranques, vestígios do mesmo compositor que há dois anos, pela voz de
Francisco Alves, começou a sair do anonimato:
Que infeliz sorte!
Que infeliz sorte!
Que vale que o meu coração
Pra resistir esta paixão é forte.
Tão pouco identificada está Carmem com o universo de Cartola e Noel que
(talvez por estar este ausente do Rio) decidiu fazer modificações na letra de
Tenho Um Novo Amor para torná-lo mais digno de uma amiga dos Guinles, de
uma freqüentadora do Fluminense. Assim era o coro original, possivelmente só
de Cartola:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver sujo nem rasgado
Gosta que eu ande assim bem trajado.
Eis como ficou o coro após a alteração, seguindo-se as duas segundas partes
de Noel:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver triste nem zangada
Gosta que eu ande assim engraçada.
Cabe também a Francisco Alves lançar aqui Julieta, embora não seja ele,
mas Castro Barbosa, quem o levará ao disco. Enfim, sem que muitos se dêem
conta, não é pelo humor, mas por sua efetiva presença como compositor que
Noel Rosa se destaca no segundo Broadway Cocktail. Alguns jornais, como A
Noite, verão nele não mais que um humorista, ainda que o batizando de "Bernard
Shaw do Samba": "O Almirante conquistou numerosas palmas com as suas
emboladas tão do agrado do público nosso. Por último, Noel Rosa disse muita
coisa de espírito, fazendo rir durante quase todo o tempo em que esteve em
cena."(9)9. A Noite, 9 de agosto de 1932 (página 5).
Outros, como o Diário Carioca, serão mais efusivos: "A Almirante e Noel
Rosa cabem, sem dúvida alguma, as honras do cocktail. O primeiro, com suas
emboladas características, entusiasma o público, que custa a deixá-lo sair de
cena. Quanto a Noel Rosa, nós já prevíamos o sucesso que obteria. Canta três
sambas de sua autoria, cada qual melhor."(10) 10. Diário Carioca, 10 de agosto de 19.32.
Puro anti-romantismo.
Está mesmo dividido por três. Com Clara ele é um namorado mais ou
menos esporádico, conversando com ela no portão do chalé numa tardinha de
segunda-feira para desaparecer na terça. Inventa desculpas, diz andar ocupado,
some por semanas, meses, mas volta sempre, com novas desculpas. Que ela
aceita. Dona Martha não a desanima.- - É assim mesmo. Um dia ele toma jeito.
Não desiste do sonho de ver o filho casado com Clara, ainda dando aulas
aos alunos de alfabetização no Externato Santa Rita de Cássia. É tão acalentado
o sonho de Martha que ela chega mesmo a aproveitar as horinhas de folga para
preparar o enxoval de Clarinha. Uma fronha hoje, um pano de mesa amanhã,
peças simples, baratas, mas sempre úteis. Para que deixar tudo para a última
hora?
Às vezes, Clara pensa em desistir, em tratar da própria vida. Enquanto isso,
Noel continua sumindo. E fugindo de Fina também. Esta não é tão calma, tão
aceitativa. Noel pode fazer-lhe das suas, mas jamais ficará sem resposta. Um
domingo, combinam ir a uma festa na casa de uma família amiga. Noel tem um
violão guardado na Rua Moju. Fina sabe disso e está certa de que o namorado,
na hora de seguirem para a festa, levará o violão. Imaginem o que as pessoas
irão dizer ao vê-la chegar.- - Olhem, é a namorada do Noel. E ele trouxe o
violão!
Mas, neste domingo, o atraso de Noel é maior do que das outras vezes. Fina
espera, vai ao portão, impacienta-se, volta, queixa-se com a avó, roga pragas,
xinga. O atraso é tanto que jura por todos os santos que nunca mais olhará para
ele. Como ousa deixá-la esperando, numa noite de domingo, todo o mundo lá na
festa querendo saber onde estão ela, Noel Rosa e o violão? Fina começa a trocar
de roupa, abandona a idéia de sair. Sente vontade de chorar. Ouve então o portão
da rua se abrir e por ele entrar, trocando pernas, o namorado.
- Boa noite, dona Luísa.
Pelo andar, pela voz, por tudo, deve ter bebido um barril de chope. Está
pálido, passando mal. Vomita na varandinha, apóia-se na grade. Fina está cada
vez mais furiosa.
- Você não presta, Noel!
- Não fale assim com ele, Fina intervém dona Luísa.
Noel começa a dar uma desculpa, mas a voz de Fina, estridente, abafa-lhe
as palavras.
- Nunca mais fale comigo!Nunca mais!
Fina vai lá dentro apanhar o violão. Enquanto isso, sempre se apoiando na
grade da varanda, fazendo força para não cair, Noel fala.- -Sabe de uma coisa,
dona Luísa?Eu amo sua neta! Eu amo...
Fina volta com o violão. Coloca-o no chão da sala, arrebenta-lhe-as cordas,
salta com os dois pés sobre ele, rachando-o.
- Fina! - protesta a avó.
- Deixa ela, dona Luísa. Deixa ela. Dona Luísa está sempre do lado de
Noel.
Não só pelo cafezinho, as broas de milho, as delicadezas várias, mas pela
compreensão que tenta passar à neta. No dia seguinte, chama-a para pedir-lhe
que tenha paciência com o namorado. Se bebeu demais, deve ter seus motivos.
Quem sabe algum desgosto?
- Porque Noel, minha filha, no fundo é um moço triste. Trate-o bem. As
pessoas tristes precisam de mais atenção.
Fina vai continuar tratando Noel bem.
Com Julinha tudo é diferente. Nem bons tratos, nem atenções. Muito menos
uma aliada como dona Luísa para tornar menos azedas as brigas de amor. Um
amor que se revela mais complicado e penoso cada vez que ela abusa de bebida.
Os dois, Julinha e Noel, gostam de beber. Também ele, quando ultrapassa
determinado limite, pode fazer-se difícil, inconveniente, provocador e até
agressivo. As bebedeiras nos cabarés em nada se parecem com aquela, dada a
arroubos, que dona Luísa testemunhou.- "Eu amo sua neta!" São bebedeiras que
às vezes incomodam os outros. E quando os incomodados reagem, o magrícemo
Noel se pondo a postos para uma briga que na certa perderá, é sempre bom estar
por perto um dos muitos valentes da Lapa que se incluem entre os seus amigos.
Não havendo por perto este defensor oportuno Noel invariavelmente apanha. E
feio. Mas, ainda assim, sua embriaguez é menos tumultuosa que a de Julinha.
- Vou me matar!- costuma ameaçar no auge dos seus pileques.
Tudo que faz - desde as ameaças de suicídio às desagradáveis cenas em que
tanto pode xingar gratuitamente um dos fregueses como quebrar copos e garrafas
- é para chamar a atenção. Um dia tenta afogar-se mergulhando nos dois palmos
de profundidade do riacho do Passeio Publico. No outro, tenta atirar-se do carro
de Pará em movimento. Sempre motivada pela bebida. Nas discussões com
Noel, enquanto ele procura falar baixo, para que ninguém mais o ouça, ela grita,
desgrenha-se, faz tudo para envergonhá-lo. Também Julinha, numa das
incontáveis brigas entre eles, quebrou-lhe o violão. Por que será que as mulheres
vivem se vingando no violão de Noel? Bem pode ter sido para Júlia Bernardes
que ele compôs este É Difícil Saber Fingir, que não chegará a ser gravado.
É difícil
Saber fingir, meu bem
Mas você tirou patente
Privilégio que ninguém tem.
É capaz
De beber um litro de perfume
Só pra fingir
Que está louca de ciúme.
Não hei de me admirar
Se algum dia
Você se atirar no meio da baía
Pondo a família
Em grande agitação
Só por fingimento,
Pura tapeação!
Dividido por três, a Clara dos olhos meigos, a Fina do riso de criança, a
Julinha das brigas de amor, o anti-romântico Noel vai vivendo intensamente.
Francisco Alves, Noel Rosa, Carlos Lentini, Carmen Miranda, Josué de Barros, Almirante, Betinho e João Martins no 2o Broadway Cocktail em 1932. No destaque, Francisco Alves.
Capítulo 24
DO CHÁ DAS QUINTAS AO CAFÉ NO
NICE
Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular com verdadeira
paixão. E apresentou sambas e canções do outro mundo.
entrevista ao Diário Carioca
Como ser romântico num mundo desses, de amores nada parecidos com o
de Romeu e Julieta, de relacionamentos complicados que se constróem sobre
mentiras e hipocrisias? Noel tem alguns motivos para encarar com os olhos da
incredulidade o mundo à sua volta. Um deles, sua própria casa. Quando se tinha
a impressão de que as coisas voltavam a correr bem por lá, Hélio já se
preparando para ingressar na Escola de Veterinária, Martha cuidando do
externato com a ajuda de Clara, Neca finalmente sossegado, eis que o chalé mais
uma vez estremece.
O próprio Noel guardará numa pasta de papelão os documentos que
ajudarão a contar a história desses novos tempos desinsofridos que o pai vai
enfrentar(1).
1. Estes documentos pertencem hoje aos arquivos dos autores.
Como quase tudo de novo que Noel lança por esta época, Sem Tradução,
depois editado e gravado como Não Tem Tradução, é muito comentado.
Jurandyr Santos, autor das marchas Alô, John e Bon Soir, enfia a carapuça. Acha
que foi pensando nele, apenas nele, que Noel fez seu samba. Publica na imprensa
uma polida carta aberta em que diz: "O seu carinho, Noel, pelas coisas corretas,
dessa vez falhou." E defende o emprego por ele mesmo, Jurandyr, de palavras
estrangeiras: "Eu coligi, apenas, um punhado de expressões usuais, deturpadas,
que todos nós compreendemos o que vêm a ser..." Mais adiante, em tom
lamentoso: "Você, porém, foi impiedoso. Não pôde, sequer, sopitar a revolta do
seu espírito erudito, amigo das expressões castiças puras... E compôs o Sem
Tradução para esmagar o seu pobre amigo..." Jurandyr arremata com votos de
prosperidade e confessada admiração. Mas perde tempo. O samba não foi feito
para ele.
Xenófobo mesmo é Orestes Barbosa, que odeia tudo que vem de fora. À
distância ainda lhe é possível deglutir ou mesmo apreciar coisas estrangeiras, os
poetas franceses, o nacionalismo mexicano, a forma com que os Estados Unidos
"se recusaram a ficar de cócoras diante do túmulo de Byron". Aqui no Brasil,
porém, estrangeiro é estrangeiro, seja francês, mexicano ou americano. Não se
conforma com o desamor brasileiro às suas tradições, com o pouco carinho que
temos por nossa cultura e nossa memória: - O brasileiro pensa que este país
nasceu na última segunda-feira e vai acabar na próxima sexta - esbraveja numa
das mesas do Nice.(3)
3. Samba, segunda edição (páginas 69 e 70). Também foram colhidos neste livro outros pensamentos ligados à xenofobia de Orestes Barbosa.
Todos o ouvem com atenção neste café que lhe serve de tribuna. Um café
que na verdade se chama Casa Nice e que vai entrar para a história como dos
mais importantes pontos de reunião do pessoal do rádio e da música popular.
Mais que o Carlos Gomes, o Belas-Artes, o Papagaio e o Chave de Ouro juntos.
O Nice ocupa, desde sua inauguração a 18 de junho de 1926, o número 174 da
Avenida Rio Branco, bem na esquina de Bittencourt da Silva. Portanto, no
mesmo prédio do Cinema Eldorado. E no mesmo quarteirão do Liceu de Artes e
Ofícios, da Leiteria Nevada, do Cordão do Bola Preta e da redação de O Globo.
Do lado de fora do café, dispõem-se mesas e cadeiras de vime entre as quais
pode-se tropeçar em cocos verdes espalhados pela calçada. No lado de dentro,
dois ambientes. Um deles, o mais elegante, separa-se do outro por divisória de
madeira treliçada. Cadeiras forradas, mesas com toalhas muito limpas, onde são
servidos almoços e jantar es, lanches, queijos importados, bebidas finas. No
segundo ambiente, de mesas de mármore e cadeiras austríacas, fica a turma do
rádio e da música popular. E também uma multiforme comunidade de boêmios,
contraventores, jogadores.
- Você tem certeza de que sabe mesmo o que é um poeta? Se pensa que
somos nós, versejadores pretensamente cultos, se engana. Os verdadeiros poetas
são os homens do povo cujas rimas todos sabem de cor.
O outro não se atreve a contestar.
- Ouça isto... E canta:
A maçã melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde o tal fruto saboroso
E oferece ao homem que o aceita pressuroso.
- O que me diz?
E antes que o outro responda, Orestes dispara:
- Uma porcaria! E é de Bastos Tigre, homem culto. Agora veja o que fez
para a mesma melodia o homem do povo Sinhô...
E torna a cantar:
Dizem que a mulher é parte fraca
Nisto é que eu não posso acreditar
Entre beijos e abraços e carinhos
O homem não tendo é bem capaz de roubar.
Já Noel não se preocupa muito com isso. No máximo, vale-se de suas letras
para descarregar possíveis desagrados.
Quando não gosta de alguém - e de fato não gosta de muita gente - Orestes
Barbosa sequer lhe aceita os elogios:
- Como vai o grande poeta?
- Poeta? Quem disse?
O outro se desarma, já sabendo que vem por aí um terremoto.
- Não sou poeta. Nem eu, nem o Bastos Tigre. Poeta é Sinhô. E também
Ismael Silva, Cartola, Noel Rosa.
A história das letras diferentes que Bastos Tigre e Sinhô escreveram para a
mesma melodia do último, a de Bastos Tigre não fazendo o menor sucesso, a de
Sinhô transformando Gosto Que Me Enrosco num clássico, é uma das favoritas
de Orestes. Para afugentar chatos que o bajulam chamando-o de "grande poeta" e
para deixar bem clara a sua atual - e definitiva - posição diante da poesia. Em
lugar dos versos declamados, ou postos no papel, ou reunidos em livros que
poucos lêem, estão agora as letras para a canção popular. Em vez da glória
literária, dos formais chás das quintas-feiras na casa dos imortais, do sonho
acadêmico que alimentou um dia, ficaram a boêmia, os papos sem fim à mesa do
Nice, a música. Confessadamente, foi muito por influência de Noel Rosa que o
poeta Orestes Barbosa converteu-se, para sempre, no letrista Orestes Barbosa.
Coube ao autor de Não Tem Tradução convencê-lo de que a melhor maneira de
tornar seus versos conhecidos, de levá-los mais fundo à alma das pessoas, é
mesmo enfeitá-los com música.
Orestes será um grande letrista. Dos maiores que o Brasil vai conhecer.
Muito diferente, em estilo, de Noel Rosa. Diferente até dele mesmo, isto é, do
impiedoso e maledicente conversador do Nice. O Orestes das canções é antes de
tudo um romântico. Como ele próprio ainda vai se definir, um "eterno
sentimental", o coração sempre aberto a grandes paixões. Será o cantor dos
amores frustrados, impossíveis, secretos, mas também das flores e dos
passarinhos, das luas e das estrelas, dos perfumes e das pedras da rua. Jamais
resistirá a uma imagem, o palco iluminado, o olhar entardecente, a flora do
coração, o pássaro roxo, a vespa da intriga, o chão de estrelas. Letras de rara
força visual escritas por um poeta maior da canção popular(4).
4. Sobre a força visual das letras de Orestes, Paulo Mendes Campos nos dá em Manchete de 12 de novembro de 1974 (página 50) esta apreciação definitiva: "Visualizar a emoção é marca
certa do poeta forte. As melhores canções de Orestes parecem roteiros cinematográficos, e o conjunto de todas elas é o scriptde uma época do Rio." Para Paulo Mendes Campos, "... sem dúvida nenhuma,
Orestes Barbosa e Noel Rosa são os mais altos poetas da nossa música popular." Manuel Bandeira é outro que fala de Orestes com admiração. Diz ele em Chão de Estrelas (página 144): "Grande poeta da
canção, esse Orestes! Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na França, para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes que diz: 'Tu pisavas os astros
distraída...' Só mesmo num Chão de estrelas era possível achar este verso. De certo Orestes rojava no sublime, e a mulher que o inspirou pisou lhe, acinte ou inadvertidamente, o coração, que se abriu na
queixa imortal. Sei de muito poeta (Onestaldo de Pennafort é um e eu sou outro) que se rala de inveja porque não é o autor daquele verso. E com razão: nunca se endeusou tanto uma mulher como
naquelas cinco palavras."
A admiração que Orestes e Noel têm um pelo outro é tanta que era
inevitável tornarem-se parceiros. A primeira das quatro composições que criam
juntos mal será notada. É um samba, Araruta, que só daqui a sessenta anos vai
virar disco(5).
5. O que terá levado pesquisadores da estatura de Lúcio Rangel e Almirante a concluir que Araruta e Positivismo são o mesmo samba ou, pelo menos, duas letras diferentes para a mesma
música? Em Samba, segunda edição (página 50), Orestes Barbosa já citava os dois como obras distintas. O jornal de modinhas Harmonia, de dezembro de 1932, publicava a letra de Araruta, ficando
claro não só que ela não cabe na música de Positivismo mas também que se trata da primeira criação da dupla Noel-Orestes, já que as outras são de 1933 e 1934. A partir dessas pistas, os autores partiram
no encalço da melodia da Araruta, que acabou lhes sendo ensinada por Armênio Mesquita Veiga, amigo e aluno de violão de Noel, ele próprio compositor (Molambo, Aperto de Mão, Amar Foi Minha
Ruína).
Tu pedes
Mandando
"Faça o favor" a tua boca nunca diz.
Tu cedes
Negando
Com esses olhos que pra mim são dois fuzis.
Sou mole,
Manhoso,
Teus impropérios retribuo com brandura,
Pois água mole
Na pedra dura tanto bate até que fura!
Tu beijas
Mentindo
A tua boca beija e mente sem sentir.
Desejas
Sorrindo
Que o teu perdão humildemente eu vá pedir.
Não peço,
Espero
Ainda ver-te entre lágrimas bem mal.
Meu bem, escuta:
A araruta tem seu dia de mingau!
"O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa autêntica expressão
artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A poesia espontânea do nosso povo levou a melhor na
luta contra o feitiço do academismo a que os intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos
ingloriamente escravizados. Poetas autênticos, anquilosados no manejo do soneto, depauperados pela
torturante lapidação de decassílabos e alexandrinos sonoros, sentiram em tempo a verdade. E o samba
tomou conta de alguns deles. Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular com verdadeira paixão. E
apresentou sambas e canções do outro mundo. O gosto do público foi se aprimorando. Outros poetas vieram
dizer, em linguagem limpa e bonita, coisas maravilhosas. Mais recentemente, Jorge Faraj, outro que
abandonou os alexandrinos, tirou a prova dos nove com Telefone do Amor. Esse bonito samba-canção,
comovente romance de amor musicado por Benedicto Lacerda, acabou com as últimas dúvidas. É preciso,
porém, acentuar que esses poetas tiveram, também, que se modificar, abandonando uma porção de
preconceitos literários. Influíram sobre o público, mas foram, também, por ele influenciados. Da ação
recíproca dessas duas tendências, resultou a elevação do samba, como expressão de arte, e resultou na
humanização de poetas condenados a estacionar pelo sortilégio do academismo. Não duvido que Bilac, se
fosse vivo, tomasse o bonde do samba..."
Entrevista ao Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.
Noel e Orestes anotarão em seus papéis letras não exatamente iguais para
este mesmo samba. Diferenças pequenas, de uma ou outra palavra, ou
significativas, como acontece nos dois primeiros versos da última quadra. Os de
Noel são mesmo estes:
Tu vais ser deportada do meu peito
Porque teu crime encheu-me de pavor.
Os de Orestes, estes:
No exílio vais pagar a crueldade
Com que desabafaste o teu furor.
Felicidade...
A mentira, infelizmente,
O mais forte amor destrói
Mas, se eu não tenho remorso,
O meu coração não dói.
O samba ganha o título de Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?. Francisco Alves
gosta e promete gravá-lo. Paga os 50 mil réis a Cartola e avisa que amanhã ou
depois terão de assinar o contrato de cessão de direitos na Odeon. Noel, porém,
abre mão de sua parte. O combinado era cada um fazer um samba, de modo que
este vale como sendo o de Cartola.
- Isso é lá com vocês - diz Francisco Alves.
Com cada compositor o cantor mantém um tipo de relação comercial. Suas
transações com Cartola são diferentes dás que faz, por exemplo, com Ismael
Silva. O compositor da Mangueira cede-lhe os direitos de execução, mas não lhe
dá parceria. Um detalhe muito importante que ficou acertado logo no primeiro
negócio que fecharam, há dois, quase três anos. Já Noel pouco se importa em dar
ou não parceria. Nem faz questão de ver seu nome no selo do disco.
- Muito bem, Noel. Vamos agora ao seu samba.
Em quem ou em que se inspirará ele para criar, em troca de um modesto
adiantamento de 50 mil réis, um novo samba? Nas dores de amor? Em Clara?
Em Julinha? Aparentemente é para a mulher amada que Noel canta os versos de
Estamos Esperando, o samba que vai compondo, música e letra, à mesa do
botequim:
Estamos esperando,
Vem logo escutar,
O samba que fizemos pra te dar.
A rua adormeceu
E nós vamos cantar
Aquilo que é só teu
E que nos faz penar
Já a outra segunda parte é direta e cortante como Noel sabe ser quando
quer: o samba feito de parceria que acaba não sendo seu nem de Cartola, o
violão a gemer a mágoa de saber que Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz? será,
mesmo, todo de Francisco Alves(5).
5. O samba será assinado apenas por Cartola, mas os direitos autorais pertencerão integralmente a Francisco Alves.
Pelo presente declaro que cedo todos os meus direitos sobre a letra de minha autoria denominada "UMA COISA FICOU",( letra esta musicada por Hervé Cordovil,) ao Sr. Enéas Martins
Barros, que poderá fazer com a mesma o uso que mais lhe convier,
Em tempo:- o titulo foi alterado para "Uma COISA DEIXEI"
Cessão de direitos de Uma Coisa Deixei.
Se existe alma,
Se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão
Meus inimigos,
Que hoje falam mal de mim,
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim
Não satisfeito, Noel produz duas outras quadras que no entanto não serão
gravadas. Terá Chico percebido o seu sentido?
O meu dinheiro é macho e não cresce
Só o teu cresce, mas não aparece
Teu grande medo lá no botequim
É pagar um café pra mim!
Ou assim:
Quando eu morrer
Não digam nada
Basta muito beber
Por minha vida danada
Tema muito explorado, seja por poetas conhecidos, seja por sambistas
anônimos, é um mote, pode-se dizer, de domínio público. No entanto vale a Noel
uma incômoda acusação de plágio. O acusador, Donga, lançou recentemente um
samba seu e do maestro Aldo Taranto que diz:
Quando você morrer
Não pense que eu vou chorar
Vou procurar quem me dê
O que você não me dá
Desde que Fita Amarela começou a ser ouvido nas emissoras de rádio, na
gravação de Francisco Alves e Mário Reis, Donga faz campanha contra Noel.
Onde quer que chegue, nos bares, nas esquinas, nas rodas de música, nunca
deixa de tocar no assunto:
- Vocês conhecem o samba que o Noel Rosa copiou do meu?
E canta Fita Amarela. A campanha só vai acabar no dia em que Almirante,
tomando as dores de seu companheiro de Bando de Tangarás, contar que ele
mesmo ensinou a Noel a quadrinha que lhe deu a idéia para seu samba. Os dois
se encontraram no Boulevard e Almirante cantou:
Quando eu morrer
Não quero choro nem nada
Eu quero ouvir um samba
Ao romper da madrugada
Está bem, vou acabar tudo com ele. Diante de novas promessas de Noel, de
que desta vez não desaparecerá mais, Clara diz que vai romper com o novo
namorado. Noel sabe que realmente será assim. Basta reaparecer, sempre com o
jeito de quem está arrependido e disposto a "entrar no sério", para que Clara
troque tudo pela esperança que ele traz entre sorrisos. O namorado com quem foi
à festa na Tijuca chama-se Mário, boa família, direito, bem-intencionado,
concluindo já seu curso de veterinária e quase em condições de pedi-la em
casamento. Aliás, é mesmo o que planeja. Os zelosos irmãos dela fazem gosto.
Muito mais do que vê-la perdendo tempo com um cantor de rádio, boêmio
incurável. A festa na Tijuca, reacendendo em Noel a vontade de voltar para
Clara, vai frustrar para sempre os planos do bom moço Mário.
- ... Vou acabar tudo com ele.
Clara cumprirá a promessa. Noel logo esquecerá a sua.
Custódio Mesquita
Capítulo 26
EM BOA COMPANHIA
Cigarro no canto da boca, Noel Rosa conversa com Ismael Silva numa das
esquinas da Galeria Cruzeiro, acompanhando à distância o que se passa em
frente, no interior do Nice. Nenhum dos dois se inclui entre os freqüentadores
assíduos do café. Raramente se sentam a uma das mesas, nunca participam
dessas intermináveis conversações que se arrastam pela tarde inteira e entram
noite adentro. Mesmo que quem esteja com a palavra seja Orestes Barbosa. Noel
e Ismael só vão ao Nice a trabalho, para arrancar um vale de Francisco Alves,
marcar com este ou outro cantor o horário de uma gravação, combinar com um
diretor de broadcast um ou dois programas em sua estação de rádio.
Noel, principalmente, é meio oblíquo em relação ao Nice. Passa por ali de
raspão, rápido, diz e ouve o essencial e se vai. Isso quando não fica mesmo de
longe, do outro lado da Avenida Rio Branco, balançando a cabeça de um lado
para o outro como se a procurar alguém. Esta esquina da Galeria Cruzeiro é o
mais próximo que Noel e Ismael constumam ficar do Nice. Conversando sobre
samba, jogo, boêmia e malandragem. Alguém chega por trás e bate no ombro de
Noel.
- Noel, Noel Rosa! Que bom você estar aqui! Andava mesmo à sua procura.
O sujeito tira do bolso algumas folhas amassadas de papel. Diz que acabou
de fazer um samba, coisa muito boa, música e letra caprichadas, de uma
qualidade que nenhum Francisco Alves, nenhuma Carmem Miranda terá
coragem de recusar. Um samba quase pronto, precisando apenas de alguns
retoques, uma vírgula aqui, um acentozinho ali, no máximo a correção de um ou
dois versos.
- Será que você me dava uma ajuda, Noel?
Noel pede-lhe que cante o samba. Ele e Ismael ficam ouvindo, calados,
atentos. Noel puxa o cotoco de lápis e nas mesmas folhas amarrotadas vai
fazendo emendas. Sugere, também, modificações na linha melódica, a primeira
parte ficando assim, a segunda assim, a letra mudando aqui, ganhando mais dois
versos ali, cortando-se três mais adiante. Pronto, Noel canta para o "autor" do
samba o que resultou de seus retoques. O homem e Ismael Silva ficam
assombrados. É um novo samba, infinitamente superior à pedra bruta original.
Uma beleza.
- Obrigado, Noel. Era isso mesmo que estava faltando.
E o sujeito se vai, folhas amarrotadas no bolso, melodia na cabeça. Ismael,
ainda impressionado, diz a Noel que o samba realmente ficou muito bom, a letra
é inspiradíssima, o Chico haveria de gostar.
- Você nem tirou cópia.
- Deixa pra lá.
- E o camarada, quem é?
- Não sei. Nunca o vi antes.
Noel Rosa tem sido, nestes três, quatro primeiros anos de carreira, um
constante experimentador de parceiros. Jamais recusará proposta para um
trabalho a dois, seja de um grande amigo, seja de um desconhecido que o aborde
na Galeria Cruzeiro ou num botequim qualquer. Muitas vezes - e por razões
várias - a proposta parte dele mesmo. Como acontece com os chamados
"compositores de morro", dos quais sempre se aproxima com a humildade de um
consciente e aplicado discípulo (e a lição desses mestres tem enriquecido,
melódica e harmonicamente, a sua obra). Ou como acontece quando ele se
entusiasma muito por uma melodia e pede ao seu autor permissão para fazer a
letra. Do que De Qualquer Maneira, de Ary Barroso, ainda é o melhor exemplo.
Mas, na maioria das vezes, são os outros que o procuram. Nomes consagrados
ou meros principiantes.
O número de seus parceiros em vida alcançará o total de 56(1).
1. Número baseado em levantamento feito pelos autores e publicado em detalhes no final do volume. Embora seja o mais completo realizado até aqui, nada impede que outras composições,
outros parceiros, venham a ser redescobertos após a publicação deste livro. O fato de Noel não assinar grande parte do que fazia torna quase impossível um inventário completo de sua obra. A essas 56
citadas no texto, contudo, devem se somar desde já pelo menos três parcerias póstumas, perfazendo o total de 59.
Para o qual Noel faz três segundas partes. Duas ele próprio gravará na
Columbia, a voz não nos seus melhores dias (chega a engolir uma palavra), mas
com interpretação triste como o samba pede:
Trago no peito
O sinal duma saudade
Cicatriz de uma amizade
Que tão cedo vi morrer
Eu fico triste
Quando vejo alguém contente
Tenho inveja desta gente
Que não sabe o que é sofrer
O meu destino
Foi traçado no baralho
Não fui feito pra trabalho
Eu nasci pra batucar
Eis o motivo
Que do meu viver agora
A alegria foi-se embora
Pra tristeza vir morar
Felicidade
Não está sempre ao nosso alcance
É o tema de um romance
Onde os corações são dois
Quando começa
A alegria nos domina
Com a tristeza ela termina
E a saudade vem depois
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim,
Vou fingindo que sou rico,
Pra ninguém zombar de mim.
Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga.
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
Muito embora vagabundo.
Quanto a você
Da aristocracia,
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria,
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hiprocrisia.
Francisco de Queiroz Mattoso. Três anos mais novo que Noel, poeta,
pianista. Mais pianista que poeta, virtuoso executante que é de valsas de
Nazareth, Souto e Tupynambá. No entanto - fato curioso - suas atuações na
música popular se concentrarão sempre mais nas letras do que nas melodias. Um
dia será o autor, com Lamartine Babo, de um dos clássicos da música romântica
brasileira: Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda. Por enquanto, isto é, na época
em que Noel o conhece, é apenas um dos muitos anônimos que rondam os
corredores das emissoras de rádio.
Noel e Mattoso - apresentados um ao outro pelo Dr. Cid Prado, de Vila
Isabel - farão juntos dois sambas. Num deles, Esquina Da Vida, partirão de
versos de Noel para criarem algo muito bonito que Mário Reis - mais uma vez
Mário - gravará acompanhado pelo piano de Nonô:
É na esquina da vida
Que assisto à descida
De quem subiu
Faço o confronto
Entre o malandro pronto
E o otário
Que nasceu pra milionário
E na esquina da vida
Observo o valor
Que o homem dá à mulher e ao amor
E é por isso que ela
Em qualquer situação
Zomba da gente, sempre cheia de razão
É na esquina da vida
Que espero ver você
Estendendo a mão
E implorando
Já desiludida
O meu perdão
Para eu dizer que não
O outro samba, que permanecerá inédito por muito tempo, teria sido
inspirado em Julinha. Será conhecido indistintamente por dois títulos, Vai Para
Casa Depressa e Cara ou Coroa.
Vai para casa depressa
Vai prevenir teu senhor
Que eu vou cumprir a promessa
Que fiz de possuir teu amor.
O amor de falsidade
Vem da parte da mulher
Nunca vi coisa tão certa
O orgulho tem seu fim
Quando a tua fome aperta
Tu vens procurar por mim
O capricho da mulher
Faz o homem padecer
É veneno quando quer
Que maltrata e faz morrer
Pra me vingar de ti
Farei o que puder,
Não é assim
Que se despreza uma mulher.
Jerônimo Cabral e Noel têm pelo menos dois gostos em comum: a música e
a bebida. Só que, enquanto Noel pende bem mais para a primeira, Jerônimo tem
indisfarçável preferência pela última. Não se pode dizer que viva bêbado, mas
quase. É raro vê-lo longe de um copo. Vez por outra surge numa esquina do
Centro, em plena luz do dia, trôpego, o corpo alto e robusto dançando, a fala
enrolada de quem mais uma vez passou da conta. É pianista e compositor de
talento, escreve música para o teatro, rege a orquestra em revistas e operetas
montadas na Praça Tiradentes. Isto é, quando pode. Porque a única hora em que
está em condições de render tudo que sabe é na parte da manhã, quando se senta
ao piano, compõe e toca suas canções. Depois do meio-dia, tudo depende do
quanto saciar sua sede.
Simpático, grande coração, amigo dos amigos. Boêmio impenitente, é
capaz de trocar tudo por uma noitada embebida em música e vermute. No dia em
que se casou, saiu da festa com alguns amigos para uma comemoraçãozinha
adicional no botequim da esquina. E só voltou no dia seguinte. Um trago aqui,
outro ali, Jerônimo esquecendo-se de que acabara de se transformar num homem
casado, a noiva em casa esperando, buquê na mão, aflita.
Uma das noitadas inesquecíveis de Jerônimo Cabral é vivida na companhia
de Noel, Custódio Mesquita, Milton Amaral, Jurandyr Santos e Alfredo Motta da
Silva. Voltam todos meio altos de uma festa em Cascadura e esperam cada qual
o seu bonde no Largo de São Francisco. Noel, desta vez, consegue estar mais
chumbado do que o Cabral. Mal se mantendo em pé, deixa os amigos no ponto
do bonde, vai até a igreja, encosta o violão, tira o chapéu e deita-se no degrau da
escadaria. Quando o Vila Isabel-Engenho Novo aponta na Avenida Passos,
Milton e Cabral vão chamá-lo. São quase seis da manhã, a igreja já está aberta,
os fiéis começam a chegar para a primeira missa. Os dois sacodem Noel, agora
imerso em mais um sono profundo. Uma vez acordado, Noel pega o violão e
logo em seguida o chapéu, dentro do qual, para surpresa dos três, há um punhado
de notas e moedas. Os fiéis, supondo tratar-se de um mendigo, foram ali
depositando seus caridosos óbulos. Um bom dinheiro. Tão bom que Noel
convida Milton e Cabral para darem um pulo até a Lapa, onde vão acabar a noite
- ou melhor, começar o dia - comendo carne-seca com farinha num botequim dos
Arcos, em parte financiados pelos piedosos devotos de São Francisco de Paula.
Cabral e Noel, companheiros de copo, serão também parceiros na música.
Farão juntos um fox-trot sobre o qual se contarão algumas histórias. Cabral, de
tanta encomenda que recebe para escrever música para números de dança e
sapateado nos moldes das ZiegfekTs "Follies" tornou-se muito familiarizado
com os ritmos norte-americanos. Gosta muito de compor fox-trots, de modo que
é com um deles que vai vestir os versos de Noel para a única obra que criarão
juntos: Estátua da Paciência.
Das histórias que correm sobre as origens de tais versos, a mais plausível
está ligada ao pessoal da Rua Moju. Terezinha, uma das filhas de dona Luísa,
fugiu de casa para viver com um polonês que bancava jogo de roleta em Ramos.
(4) 4. Era mesmo um polonês, banqueiro de roleta em Ramos, e não um bicheiro como conta Almirante. Alegria e Fina, em depoimentos aos autores, narram sobre a fuga de Terezinha a mesma
história, um pouco diferente da que Almirante nos dá em No Tempo de Noél Rosa, segunda edição (página 195), na qual Noel entra apenas como mero ajudante da família na busca da moça. Ele era de
fato o único que sabia onde Terezinha estava.
Eu sou na estação
A estátua da paciência
E acabei sendo agência
De informação
Sei os itinerários
Já decorei os horários
O nome dos maquinistas
E dos foguistas!
Mas é apenas uma história, que não parece casar bem com o apaixonado
cantor dos versos que espera, não tão paciente, a sua amada.
Mas, bom compositor, ótimo pianista, Jota Machado não merece entrar para
a história apenas por esta crise de falta de imaginação. Tem boas músicas de
criação própria, as valsas Páginas do Coração e Fonte da Saudade, o fox-trot
Annita, a canção Saudade Que Mata.
Certa tarde, Noel entra na Casa Viúva Guerreiro, editora de música que
funciona na Rua 7 de Setembro, e lá encontra Jota Machado. Vai direto ao
assunto: - Tenho aqui um samba pra te vender. Cinco mil réis.
- Que samba é este, Noel?
-Por enquanto só fiz os versos. Chama-se Que se Dane!
E ali mesmo - como se os inventando na hora - Noel escreve-os para Jota
Machado, que vai musicá-los.
Vivo contente embora esteja na miséria
Que se dane! Que se dane!
Com esta crise levo a vida na pilhéria
Que se dane! Que se dane!
Não amola! Não amola!
Não deixo o samba
Porque o samba me consola
Ainda de teatro é Arthur Costa, carioca cheio de aptidão para muitas coisas.
Foi torneiro mecânico, tocador de bandolim, motorista de táxi. Embora morando
na Tijuca, fazia ponto na Praça da Bandeira onde, entre uma corrida e outra,
cantava sambas no estilo de Luís Barbosa. De tanto agradar, acabou no rádio e
no disco. Claro, antes de descobrir o teatro.
Conheceu Noel Rosa no Café Nice. Começaram a fazer juntos um samba
esquisito, Estricnina, do qual só restarão os tragicômicos versos iniciais:
Estricnina não é ruim de se tomar
Eu vou me envenenar!
Eu vou me envenenar!
Arthur Costa, com malabarismos vocais que lembram mesmo Luís Barbosa,
o jeito de embaralhar as sílabas fazendo a voz soar como um instrumento de
percussão ("teu-teu-balaco-baco-chico-pã..."), grava em dupla com Noel Bom
Elemento. E também Espera Mais Um Ano, que acabará não saindo, talvez por
causa de um mau agudo de Noel(6).
6. Ver Capítulo 21 e nota sobre Espera Mais Um Ano no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no final do volume.
E ainda Você Foi o Meu Azar, os dois alternando-se, com muita bossa, de
verso para verso. É outra gravação que ficará arquivada, mas Arthur, parceiro de
Noel na autoria, vai refazê-la com Neneo das Neves, usando o mesmo arranjo:
Você foi o meu azar
(Você foi o meu azar)
Estragou a minha vida
(Por ser falsa e convencida)
Para me fazer chorar
(Quis me deixar)
Hoje volta arrependida
(Por ser mal-sucedida)
O mesmo Arthur Costa é quem grava outro samba seu com Noel Rosa, sem
dúvida melhor que os outros. Senão pela música, de molejo carioca como seus
autores, ao menos pela letra, o tema da fome, da penúria, dos bolsos vazios, mais
uma vez focalizado pelo acridoce humor de Noel. O título já antecipa o que se
vai ouvir: Sem Tostão.
De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje sai do plantão
Sem tostão! Sem tostão!
Já perguntei na Prefeitura
Quanto tenho que pagar:
Quero ter uma licença
Pra viver sem almoçar.
Veio um funcionário
E gritou bem indisposto
Que pra ser assim tão magro
Tenho que pagar imposto!
(Mas vejam só!)
E invariavelmente,
Sem ter o menor motivo,
Em um tom de voz altivo,
Você quando fala, mente
Mesmo involuntariamente.
Faço cara de contente,
Pois sua maior mentira
É dizer à gente
Que você não mente.
Noel e Hélio Rosa, irmãos tão diferentes, separados na vida em quase tudo,
dificilmente chegariam a manter um casamento musical harmonioso, uma
parceria longa e perfeita.
Parcerias longas e perfeitas são raras. Nesses muitos encontros que Noel
tem vivido por aí, marcados ou ocasionais, com compositores de talento ou
estranhos que lhe batem no ombro, quantas durarão? Poucas. E quantas atingirão
a perfeição? Pouquíssimas. A rigor, em termos de durabilidade e afinação,
Ismael Silva ocupa lugar único na obra de Noel Rosa. E vice-versa. Os dois
formaram desde o começo uma parceria perfeita. E destinada a durar. Mas será
mesmo um caso único?
Em fins de 1932, no estúdio da Odeon, Eduardo Souto passa pelo pianista
que dentro de poucos instantes vai acompanhar Francisco Alves numa gravação.
É um sujeito magro, de bigodinho fino, cabelo ondulado dividido ao meio,
óculos de aro de metal. Os dedos ágeis deslizam pelo teclado na execução de
uma melodia que chama a atenção do maestro. Uma melodia de incomum
beleza.
- De quem é?
- Minha.
- Tem nome?
- Não.
- Tem letra?
- Também não.
O maestro pára para pensar. Uma composição que desde a primeira frase
musical deixa claro que quem a fez não é um melodista de soluções fáceis. A
passagem da primeira para a segunda parte confirma essa constatação. Ao
contrário da maioria, quase totalidade dos compositores populares, que fazem da
segunda parte um mero complemento da primeira, na qual colocam todos os seus
trunfos melódicos e harmônicos, este aqui desdobra um fragmento em outro, cria
um coro que toca Eduardo Souto e um verso tão ou mais apreciável.
- Espere um instante - diz o maestro. Em pouco ele está de volta trazendo
pelo braço Noel Rosa, que cuidava na sala ao lado de suas próprias gravações. O
maestro apresenta-o ao pianista, sem formalidades nem rodeios.
- Este é o Vadico, Noel. Pianista de São Paulo. Acho que vocês deviam
pensar em trabalhar juntos. Ouça esta música que ele fez.
A pedido do maestro, o pianista executa mais uma vez sua composição.
Noel ouve em silêncio, atento, a cabeça meio de lado, o queixo defeituoso
apoiado nas costas da mão direita. E quando o pianista volta mais uma vez à
primeira parte, Noel pega papel e lápis e começa a trabalhar num monstro, isto é,
uma letra provisória destinada apenas a assinalar o número de sílabas de cada
frase musical, a pontuação e a acentuação que deve ter cada uma. Ao fim, diz: -
Vou tentar a letra.
O maestro Eduardo Souto vê Noel se afastar com o monstro no bolso.
Sensível como sempre, talvez saiba, lá no íntimo, que acaba de dar à música
popular brasileira, nesta simples apresentação, um presente tão valioso quanto
suas próprias composições.
Não se engana o maestro. Vadico, Oswaldo Gogliano, tem 22 anos e a
música no sangue. Tanto a mãe mineira como o pai paulista, descendente de
italianos, fizeram questão de dar aos filhos uma educação musical. A todos eles.
De modo que Vadico estudou piano, harmonia, composição. Corajoso, para não
dizer ousado, decidiu muito cedo ganhar a vida tocando e compondo música. De
preferência, popular. Largou o emprego de datilógrafo numa firma de São Paulo
e tratou de seguir sua vocação. Nos últimos quatro anos, não tem descansado.
Empregos de pianista em cafés e hotéis, músico de orquestras e pequenos
conjuntos, tentativas de ter seus sambas e marchas gravados por algum cartaz do
rádio. Tornou-se um ganhador de concursos, na esperança de que isso lhe abrisse
portas. Engano. A marcha Isso Mesmo É Que Eu Quero, por exemplo, valeu-lhe
uma medalha de ouro em São Paulo, mas não o tornou conhecido. Achou melhor
mudar-se para o Rio, onde afinal estão as gravadoras, os músicos mais
importantes, os cantores que vendem discos. Embora lentamente, sua sorte
começou a mudar. Tinha apenas vinte anos quando chegou por aqui.
Foi Eduardo Souto quem lhe deu emprego de pianista e orquestrador na
Odeon. Menos por serem conterrâneos do que por ter o diretor musical da
gravadora, perspicaz como sempre, percebido logo que a Odeon é que tinha a
ganhar: Vadico era talentoso e custava pouco. Não mais do que alguns mil réis à
pouco generosa folha de Fred Figner.
No Rio, o jovem pianista foi avançando devagar. Teve seu samba Arranjei
Outra, letra de Dan Malio Carneiro, gravado por Francisco Alves. Mal foi
notado. Outro samba, Silêncio, música e letra suas, chegou ao disco nas vozes de
Luís Barbosa e Vitorio Lattari, ganhou um concurso do Correio da Manhã
(competindo com Mulher de Malandro, de Heitor dos Prazeres, e Na Piedade, de
Ary Barroso, entre outros) e foi incluído na revista musical Bibelot, de De
Chocolat. Veio avançando devagar.
Agora, o encontro com Noel. Que dois dias depois procura-o na Odeon para
dizer-lhe que o samba já tem título e letra. Vadico, ansioso para ver o resultado,
vai para o piano. Gosta do título: Feitio de Oração. E mais ainda da letra: Feitio
de Oração. (Samba de Vadico e Noel Rosa.)
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
O tempo dirá que Eduardo Souto está certo, Vadico e Noel começam com
uma obra-prima e vão criar outras obras-primas pela vida afora. Nada do que
farão juntos - onze composições daqui até 1936 - é menos do que bom. E quase
tudo é mais do que excelente.
Um encontro abençoado aquele, no estúdio da Odeon. Ismael Silva não é
caso único de durabilidade e afinação na obra de Noel Rosa. Vadico, dono de
outro estilo (e Noel parece adaptar-se a todos os estilos), entra nela como se para
provar que parcerias longas e perfeitas são raras, mas existem.
Vadico
Capítulo 27
NOTURNAS E VESPERTINAS
Mário Reis assiste ao ensaio dos Diabos do Céu no estúdio da Victor e fica
maravilhado com a orquestração de Pixinguinha para Ride, palhaço, marcha que
Lamartine Babo acaba de compor para ele gravar, com nítida inspiração em
Leoncavallo. Pixinguinha é um gênio, conclui Mário pela milésima vez. Mas é
preciso pensar no outro lado do disco. Se conseguir algo tão bom, terá mais dois
valiosos trunfos para o carnaval de 1934. Ainda está com os sons da orquestra de
Pixinguinha na cabeça quando estaciona seu carro em frente ao Nice. Numa
mesa de canto, falando e gesticulando muito, está Lamartine Babo. Fora do café,
encostado num poste, alheio à multidão que passa pela esquina, Noel Rosa.
Mário tem uma idéia. Faz sinal para Lamartine e outro para Noel. Os dois
se aproximam.
- Tenho um assunto para falar com vocês. Vamos jantar lá em casa.
Pede que os dois esperem e procura o telefone mais próximo. Liga para
casa e recomenda que se ponha champanhe no gelo. Champanhe? Pensa melhor:
- Cascatinha, cerveja Cascatinha. Uma dúzia.
No automóvel, a caminho da Rua Affonso Penna, Mário vai explicando
tudo. Lamartine e Noel ouvem calados.
- Quero que vocês façam um samba para o outro lado de Ride, Palhaço.
Hoje mesmo. Senão, Pixinguinha não terá tempo de escrever a orquestração.
Temos de gravá-lo nos primeiros dias de novembro.
Lamartine e Noel concordam. Na casa da Rua Affonso Penna, onde Mário
criou e cultiva a fama de impecável anfitrião, tomam-se aperitivos, janta-se,
sorvem-se goles e mais goles de Cascatinha bem gelada e só no cafezinho
começa-se a falar do samba.
- Como é que você quer, Mário? Em tom maior ou menor?
- Menor, Lamartine. É mais nostálgico. Quero um samba no mesmo clima
de Ride, Palhaço.
- Muito bem, tom menor. Lamartine batuca com os dedos na mesa de vidro
e começa a cantarolar. As notas vão saindo em sua voz fanhosa. Aqui e ali,
tirando acordes do violão de Mário, Noel interfere. Nenhum dos dois conhece
música, fusas e colcheias sendo elementos cujos sentidos jamais compreenderão
bem. Para quê? Mário, de início, também dá seus palpites na construção da
melodia, mas logo fica imóvel, em silêncio, bebendo deliciado os sons que
Lamartine vai criando com a ajuda de Noel. Música e letra da primeira parte
ficam prontas em minutos: (O Sol Nasceu Pra Todos)
O dia vem chegando,
Vou rezar minha oração,
A igreja é a floresta
E o sino é o violão.
Por que você me nega
A esmola de um olhar?
O Sol nasceu pra todos,
Também quero aproveitar.
Lamartine cantarola mais uma vez a bonita primeira parte. Antes que
chegue ao fim, Mário propõe: -Muito bem. Agora, cada um de vocês faz uma
segunda parte. Vamos ver qual dos dois é o melhor.
Lamartine e Noel se entreolham. Mário percebe que a proposta, em tom de
desafio, surte efeito. Uma competição entre aqueles que são, provavelmente, os
dois maiores poetas do carnaval brasileiro terá de resultar, no mínimo, em duas
excelentes segundas partes. Mário é inteligente, conhece os brios de Lamartine e
as astúcias de Noel. Brios e astúcias que, postas em confronto, em forma de
disputa, podem ser as sementes de um grande samba. Por isso insiste: - Vamos
lá, quero ver quem é o melhor.
- Você primeiro, Lamartine - diz Noel. Mário sai da sala. Quinze, vinte
minutos depois, com outra garrafa de cerveja na mão, volta. Lamartine acabou
de fazer a sua segunda:
Deus, quando inventou o mundo,
Fez o Sol e fez a Lua,
Fez o homem e a mulher,
Fez o amor em um segundo,
Sou o Sol, você é a Lua,
Seja lá o que Deus quiser!
Mário Reis quer dizer alguma coisa, mas não pode. Enleva-se pelos versos
de Noel, a mesma idéia de Lamartine aprofundada, um sentimento semi-oculto
em cada frase. Numa sextilha ainda mais perfeita que a do parceiro, o primeiro
verso rimando com o segundo, o quarto com o quinto, o terceiro com o sexto.
Para não confessar aqui que gostou mais da segunda parte de Noel que da de
Lamartine, resume todo o entusiasmo no mesmo elogio: - Você é um craque,
Noel!
Mas lá no fundo, consigo mesmo, dirá que nem toda a admiração que tem
por Lamartine o impedirá de admitir que Noel Rosa é imbatível: "Quem mais
seria capaz de misturar amor e cosmografia em letra de música?" Mário brinda
com goles de Cascatinha o novo samba, aqui mesmo intitulado O Sol Nasceu Pra
Todos. O nome de Noel jamais aparecerá no selo do disco ou nas partituras
impressas. Mas não faz mal. Madrugada já, caminha sozinho até o ponto do
bonde que o levará de volta a Vila Isabel, talvez cantando, baixinho e triunfante:
.. uma Lua diferente,
Que é do Sol independente,
Com luz própria e com calor...
Mário Reis e Lamartine Babo, juntos ou não, terão mais do que dois
valiosos trunfos para o carnaval de 1934. Noel, nem tanto. Mário arrebatará os
foliões com um samba de Alcebíades Barcellos e Armando Marcai destinado a
transformar-se num dos clássicos da música popular brasileira: Agora É Cinza.
Em dupla com Carmem Miranda, levará ao sucesso um samba de André Filho:
Alô, Alô. De quebra, fará o povo cantar, nos bailes e nas ruas, Uma Andorinha
Não Faz Verão, de João de Barro e Lamartine. Este, entre outras, brilhará
também com História do Brasil, irreverente e bem-humorada releitura do
descobrimento: Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril, Dois meses depois do carnaval...
Já Noel, desde sua vitoriosa estréia em 1931, quando Com Que Roupa? o
fez famoso quase da noite para o dia, nunca produziu tão pouco para o carnaval
como agora: não mais do que uma marcha e dois sambas. Tão pouco que a
Odeon e a Victor tentarão prolongar a atualidade de algumas de suas
composições, sucessos de meio de ano, mantendo-as em suplemento até
fevereiro. São os casos de Feitio de Oração e Quem Não Quer Sou Eu. É o caso
também de Eu Queria Um Retratinho de Você, outra vez dele e Lamartine. Há
originalidade na letra, uma declaração de amor feita com imagens e expressões
pedidas emprestadas ao jornalismo, mas usadas com bastante graça,
especialmente na interpretação de Mário Reis. A melodia, porém, lembra muito
Wonder Who 's Kissing Her Now, canção americana de 25 anos atrás(1).
1. Escrita em 1909 por Joe Howard, Will Hough e Frank R. Adams.
Meu cortinado
é o vasto céu de anil
E o meu despertador
é o guarda-civil
(Que o salário ainda não viu!)
A minha terra
dá banana e aipim,
Meu trabalho é achar
quem descasque por mim
(Vivo triste mesmo assim!)
A minha sopa
não tem osso nem tem sal,
Se um dia passo bem,
dois e três passo mal
(Isto é muito natural!)
Além desses versos gravados por Almirante, Noel escreveu pelo menos
mais uma estrofe:
O meu chapéu
vai de mal para pior
E o meu terno pertenceu
a um defunto maior
(Dez tostões no belchior!)
A Lapa. Não há boêmio que resista aos apelos deste bairro carioca que
alguns intelectuais gostam de chamar de Montmartre brasileira(5) .
5. Não era raro entre os intelectuais que freqüentavam a noite a associação da Lapa com Montmartre. Como se de fato considerassem o bairro carioca uma réplica da Paris boêmia que tinham
conhecido ou sonhavam conhecer. Estudantes das muitas repúblicas ali existentes intitulavam se "montmartroises". Henrique Pongetti, em sua crônica Lapa 1930, publicada em 1962 em O Globo, fala de
"atmosfera montmartroise" ao se referir especificamente ao cabaré Royal Pigalle. Diz Gastão Cruls em Aparência do Rio de Janeiro (volume II, página 727): "A zona da Lapa prepara-se para ser o nosso
Montmartre, um Montmartre rasteiro, na verdade, mas que nas perspectivas abertas pelo álcool talvez fizesse do Convento de Santa Teresa o Sacrê-Coeur sobre a butte." E Brito Broca, na crônica A
Lapa: Ontem e Hoje, publicada postumamente em 1965 na Antologia da Lapa organizada por Gasparino Damata, observa "um certo ar montmartroise" no quarteirão do Grande Hotel da Lapa, depois
Cine Colonial, hoje Sala Cecília Meireles.
Noel Rosa não é exceção. Adora suas ruas estreitas, os sobrados suspeitos,
os cabarés mal-iluminados, os botequins sujos, locais onde bebem, cantam,
amam, sofrem, mas acima de tudo vivem - tirando da noite o que de melhor a
noite tem para dar - turbulentas populações de mulheres, rufiões, artistas,
malandros, poetas, pederastas, mendigos, jogadores, policiais, viciados, grã-
finos, políticos e o que mais se possa imaginar. Só a Lapa daria todo um livro.
Na verdade, muito ainda se escreverá sobre ela. Romances, contos, poemas,
músicas, memórias. A Lapa é um grande cenário, uma grande história. E Noel,
um de seus personagens.
Ainda é um freqüentador de bordéis. Sente-se bem mais à vontade numa
dessas pensões da Lapa do que em certas festinhas familiares onde só consegue
se desinibir a custo de muitos goles de Cascatinha, sorvidos após uma saudação
peculiar, copo erguido sobre a cabeça: - Loura como as louras espigas de milho,
falsa como as mulheres... Eu bato com ela no bucho, ela bate comigo no Chão!
Não é muito exigente com as mulheres que fazem amor por profissão.
Pouco importa que sejam feias, já passadas, gordas ou esquálidas. Não esconde a
preferência pelas morenas, mas isso não quer dizer que rejeite as ruivas ou as
louras alquimiadas como Julinha. Não é propriamente um malandro, desses que
exploram mulheres e acreditam que só pancada as amacia. Seus sambas
pregando esse tipo de malandragem não devem ser tomados ao pé da letra. São
mais pose do que convicção, menos vontade de agir do que de cantar como
malandro. Sempre foi assim. Já em 1930, quando tinha apenas dezenove anos,
compunha sambas como este Vingança de Malandro, falando de uma esperteza
que na verdade nunca teve:
É vivendo que se aprende
O malandro tudo entende
Eu espero a minha vez
Já faz hoje mais de um mês
Que ela me abandonou
Pra morar com um português.
A maioria dos rapazes de classe média de Vila Isabel tem pouca intimidade
com este mundo de desocupados que vivem à custa de mulher. Almirante, João
de Barro, Alvinho, é impensável vê-los consumindo noites em bares e bordéis
baratos. Ou pregando, ainda que só em teoria, o tipo de malandragem que Noel e
Ismael cantam. Mesmo os outros, Nássara, Christovam de Alencar, mais
boêmios que os ex-integrantes do Bando de Tangarás (e certamente mais
identificados com o espírito vagabundo do Ponto de 100 Réis), raramente andam
por onde Noel anda. E nunca tão à vontade.
À vontade, mesmo, eles se sentem com as moças do bairro. As noturnas e
as vespertinas. Distinção que aprendem a fazer muito cedo, a partir dos padrões
conservadores e indisfarçadamente elitistas da comunidade pequeno-burguesa a
que pertencem. Vespertinas são as moças de famílias iguais às suas, Caseiras e
bem-comportadas, vivendo numa espécie de redoma enquanto o casamento não
chega. Nas raras vezes em que saem, o fazem em grupo, de braços dados com as
amigas, de tardinha, para breves e vigiados passeios pelo Boulevard. Namoram
às escondidas. No portão, por bilhetes, recados ou olhares. Misteriosas,
indecifráveis, desejadas, mas respeitadas (para não dizer intocáveis) , são as
irmãs ou futuras esposas dos rapazes de classe média de Vila Isabel.
Já as noturnas não se podem dar ao luxo de passear pelo Boulevard à luz do
sol. Trabalham o dia todo. Como operárias de fábrica, domésticas, balconistas,
lavadeiras. Largaram cedo os bancos de escola. Pobres, vestem-se
modestamente. Não são misteriosas nem indecifráveis, muito menos respeitadas
como as outras. Pelo contrário, sua humildade - refletida não só nas roupas
baratas, mas também nos gestos, no modo de falar - é tomada como sinal verde.
De fato, raramente dizem "não". Ou por medo (alguns de seu conquistadores são
filhos de gente importante, quando não de seus próprios patrões). Ou porque,
ingenuamente, acreditam que eles possam gostar delas. Não gostam. Gostam das
vespertinas. As noturnas não passam de quebra-galhos, raparigas tratadas
pejorativamente como "empregadinhas" e que eles só assediam nas ruas escuras,
nos terrenos baldios, nos lugares ermos, longe dos olhos de suas famílias.
Aqui, Noel é exceção. Não só prefere as noturnas como não se importa em
tornar ostensiva essa preferência. A rigor, Clara tem sido a única vespertina de
sua vida, um namoro cujas constantes fugas dele expressam nítida resistência a
um tipo de relacionamento que sempre acaba diante do altar (e o casamento é
algo que jamais fará parte de seus planos). Com as noturnas não corre esse risco,
além de gostar, sinceramente, delas. São moças simples, boas, amigas, pouco
importa se pobres.
O fato de desfilar pelas ruas, a pé ou de carro, ao lado das namoradas
humildes que seus companheiros preferem esconder - as "empregadinhas" da
noite - e de fazer isso feliz da vida, escandaliza as pessoas. E mantém sempre
atual o velho comentário dos vizinhos: - Este filho de dona Martha só vive
metido com gentinha.
Lapa, na região central do Rio de Janeiro, anos 1900. Em segundo plano, os Arcos da Carioca e o Morro de Santo Antônio, seguidos das fachadas da rua Evaristo da Veiga. No fundo, o
Mosteiro de São Bento, as torres e a cúpula da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, a Ilha das Cobras e as torres da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
Desde que comprou o Pavão, pago a peso de samba, Noel Rosa tem podido
levar suas namoradas a passeios bem mais distantes e prolongados. Capota
arriada, morena de fábrica sentada ao seu lado no banco da frente (nenhuma
vespertina lhe aceitaria carona), ele passa pelo Ponto de 100 Réis fazendo soar a
bizarra buzina do seu carro e acenando para os amigos que conversam na
esquina. Pé no acelerador, toma o caminho de Jacarepaguá, Leblon, Campinho,
Deus sabe onde.
- Não é justo!- protesta um dos amigos. - De carro, não é justo.
Uma reunião é feita no Martinez para que os rapazes do bairro estudem
uma forma de enfrentar a "concorrência desleal" de Noel, que agora, com o
Pavão, leva nítida vantagem sobre todos eles na caça às "empregadinhas" das
redondezas. Qual delas vai querer sair a pé, passar pelo desconforto dos muros e
dos capinzais, quando Noel tem a lhes oferecer a maciez dos bancos do
Chevrolet? É evidente que, nessa corrida, os motorizados sempre chegam na
frente. Por isso a turma se reúne. O que fazer? De quem é a sugestão não se sabe
ao certo, mas é Christovam de Alencar, o Armando Reis, quem fica incumbido
de transmiti-la a Nássara.
- O Noel ouve muito o Nássara - justifica alguém.
Nássara é convocado às pressas a uma das mesas do Martinez. E
Christovam vai dizendo o que a turma quer: que ele convença Noel de que a
concorrência é mesmo desleal, de que o carro é trunfo forte demais.
-Eo que querem vocês que ele faça? Venda o carro?
- Não - intervém Christovam. -Que pelo menos, cada vez que saia com uma
pequena, chame um de nós. Quer dizer, seremos sempre dois casais. É mais
justo.
Nássara concorda em servir de intermediário:
- Que diabo, Noel! Não custa nada. Você sai com a sua menina no banco da
frente e deixa o de trás para que um de nós leve alguém. É justo. A gente faz um
revezamento, hoje eu, amanhã o Reis, depois o Seringa, o Arnaldo Amaral, até
que todos tenham sua vez.
Noel não se opõe. Pensando bem, até que a reivindicação de Nássara traz
vantagens. É verdade: onde cabem dois cabem quatro. E além disso... Bem, Noel
aceita dividir o conforto do Pavão com qualquer dos amigos e sua respectiva
pequena. Depois do protesto da turma - condignamente representada por
Nássara-ele continua passando pelo Ponto de 100 Réis, fazendo soar a buzina do
carro, acenando para os amigos que conversam na esquina, morena de fábrica
sentada ao seu lado no banco da frente. Só que agora, no de trás, vai sempre
outro casal.
Lindaura é morena, mas não de fábrica. Trabalha na Lavanderia
Cooperativa, na Rua Maxwell, e já foi aluna da escolinha de dona Martha. Ali,
ele tocando violão à sombra da goiabeira, ela brincando de roda no quintal
transformado em recreio, os dois se conheceram faz algum tempo. Lindaura era
então uma menina recém-saída do bê-a-bá da Escola Rio Grande do Sul, na
Praça 7. Hoje, dezessete anos, crescida, corpo de mulher feita, nada tem a ver
com a garotinha daqueles tempos. É, sim, uma das muitas moças que Noel
assedia ao volante do Pavão neste outubro de 1933. Ou uma das tantas garotas
humildes que os rapazes do bairro perseguem pelas ruas escuras, segundo as
regras do seu jogo.
Lindaura, naturalmente, sabe que Noel é cantor de rádio, grava discos, faz
música para o carnaval. Mas impressiona-se menos com isso do que com o velho
Chevrolet cuja buzina Noel aciona, repetidas vezes, sempre que a vê. Ela não
tarda a aceitar o convite para umas voltas.
Os dois passam a sair juntos quase todas as noites. De início, sozinhos.
Depois, diante do protesto da comitiva chefiada por Nássara, sempre outro casal
lhes faz companhia, ocupando o banco de trás. Os passeios são a princípio curtos
e inocentes, até a Praça Saenz Pena, o Grajaú, no máximo até o Rio Comprido
ou Boca do Mato. Mais tarde Noel envereda por lugares mais distantes e
desertos, Leblon, Joá, Alto da Boa Vista. Nem sempre os amigos se divertem.
Quando os passeios se alongam, por exemplo, até onde haja ladeiras puxadas
demais para o fôlego do Pavão, surgem problemas. Se o carro enguiça - e já que
dentro dele quem dá as ordens é Noel - cabe ao outro descer e empurrar. O que
acontece muitas vezes, pois o Pavão não é mesmo de subir ladeira. Christovam
de Alencar, Sylvio Pinto, um dos irmãos Anacleto, Waldemar, Henrique
Gonçales, nenhum deles escapa.
Gonçales - cujo nome se escreve mesmo com cedilha e não com zê como o
dos antepassados espanhóis - também é sambista. Com ele Noel compôs Faz de
Conta Que Eu Morri, samba que os dois jamais ouvirão gravado e que
Gonçales, sobrevivendo a Noel em alguns anos, terá sempre dificuldade de
provar que também é seu:
Faz de conta que eu não vivo,
Faz de conta que eu morri,
Que eu me encarrego de sumir.
Faz de conta que a saudade,
Essa dor que nos invade,
Já deixou de existir.
Um dia Gonçales ainda será conhecido no meio, terá um samba seu gravado
com sucesso por Antônio Moreira da Silva, apesar do erro de português logo na
primeira rima ("Amigo urso, saudações polares... Ao leres esta hás de te
lembrares...")- Mas, por hora, é apenas o Laranja, figura conhecida no Ponto de
100 Réis, aprendiz de compositor e companheiro de Noel nas aventuras
amorosas a bordo do Pavão.
Uma dessas aventuras os leva certa noite ao Alto da Boa Vista. Cansado
como sempre, o Pavão enguiça. O local está deserto, a escuridão é assustadora.
Nem um lampião, nem uma mísera lâmpada acesa numa janela qualquer. Na
verdade, nem parece haver janela. Este é um lugar ermo, desolado, um
cemitério. Noel tenta fazer o carro pegar.
- Pelo jeito, Laranja, vamos ter de passar a noite aqui.
- Que história é essa?- reage Lindaura.
- O Pavão morreu.
As moças se apavoram. A namorada de Gonçales começa a chorar,
Lindaura prende a respiração. Se houvesse luz o bastante para se saber como
estão os rostos das duas, só se veria palidez, suor, medo. A namorada de
Gonçales continua chorando, cada vez mais alto. Lindaura, aparentemente mais
corajosa, nada diz. Noel insiste, Gonçales torce e - alívio geral - o carro pega.
Na descida, a namorada do amigo, mais calma, choro já superado, talvez
ocorra a Noel elogiar a bravura de Lindaura. Se isso lhe passa pela cabeça, é por
pouco tempo. Só até ele ver o banco molhado do carro, as pernas de Lindaura
escorrendo. Não é tão corajosa como parecia.
- Desculpe-me... - diz embaraçada. - Mas quase morri de medo.
Esse susto, mais o fato de o Pavão não ser mesmo um local confortável e
romântico o bastante para se namorar, leva Noel a só usar o automóvel como
transporte. Ele e Lindaura passam a se encontrar em outros lugares. Como as
cabines (na verdade, barracões de madeira) que dona Chiquinha aluga na Ponta
do Caju, de dia para banhistas trocarem de roupa, de noite para casais. Ou como
um dos muitos hotéis baratos que há no centro da cidade. E já agora,
evidentemente, os dois e mais ninguém.
QQ-r -r-ma voz do Rio para todo o Brasil." É com esta divisa que
Christovam de Alencar abre e fecha o seu programa semanal pela PRB-7, Rádio
Sociedade Educadora do Brasil. Um programa cada vez mais ouvido, não só por
suas próprias qualidades mas também por haver, em relação ao espetáculo
radiofônico rival o de Ademar Casé produz, já agora na Transmissora, uma certa
má vontade que ainda vai se transformar em campanha. O Casé paga mal,
queixam-se alguns artistas. É muito exigente, dizem outros. Não faz nada senão
reclamar, garantem outros mais. Noel é um que vive ameaçando deixar o Casé.
Diz isso a Orestes Barbosa e este passa a ser uma espécie de mentor da
campanha, escrevendo um artigo em que acusa Casé de nunca ter sabido
preservar seus artistas, ao contrário de Christovam de Alencar(1).
1. Avante!, 2 de dezembro de 1933 (página 5).
Mas essas briguinhas são muito comuns, hoje fustigam o Casé, amanhã o
cobrem de elogios. Christovam pode ser o rei agora e daqui a alguns meses a
coroa estar na cabeça de Waldo de Abreu, Luís Vassalo ou Gastão Lamounier.
Nos últimos meses de 1933, contudo, grande número de artistas tenta amotinar o
Casé dando apoio aos programas concorrentes. O sabor do rádio está muito no
molho dessas contendas.
Sexta-feira, 10 de novembro. O Teatro João Caetano está lotado. Há gente
até dos lados, sentada entre as cadeiras e a parede. Ou mesmo de pé, lá atrás,
onde haja espaço. O festival de samba que Christovam de Alencar organizou
congrega alguns dos grandes astros do momento. Todos apoiando o Amigo
Velho (ou fustigando o Casé?). Um festival de alto nível, Sílvio Caldas, seu
irmão Murilo, João Petra de Barros, Custódio Mesquita, Nonô, Luís Americano,
Russo do Pandeiro. Embora sendo de samba, há nele lugar para as emboladas de
Manezinho Araújo e para as anedotas de Jorge Murad. Num dos melhores
momentos da noite, Noel Rosa canta um de seus recentes lançamentos: Arranjei
um Fraseado.
Arranjei um fraseado
Que já trago decorado
Para quando lhe encontrar:
"Como é que você se chama?
Quando é que você me ama?
Onde é que vamos morar?"
Dias depois, Noel sobe ao primeiro andar do prédio número 144 da Rua
Uruguaiana, onde funciona a redação do Avante!.
- Eu queria falar com o Nacim Adese.
Quem o atende não pode deixar de reconhecê-lo. E de tirar suas conclusões:
indignado com a reportagem da página oito, Noel Rosa na certa veio pedir
satisfações ao Adese. Talvez queira briga, talvez lhe diga alguns desaforos.
Outros, na redação, pensam o mesmo. Até que o próprio Adese, meio sem jeito,
já pensando numa desculpa, aparece:
- Você é o Adese?
- Sim.
-Eu sou o Noel Rosa. Será que se incomodaria de me emprestar o original
daquela caricatura para a capa da partitura do Três Apitos?
Contente e tranqüilo. Tem motivos para isso. A vida lhe parece boa, nada
de trabalho pesado, só samba, boêmia, liberdade para fazer o que mais lhe
agrada. Casamento? Prefere ser preso. Pelo menos seria uma prisão temporária.
Contente e tranqüilo. Mais do que nunca acredita nos versos que fez para
Capricho de Rapaz Solteiro, samba do ano passado em que fala de sua filosofia
de vida:
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!
Quem vive sambando
Leva a vida para o lado que quer.
De fome não se morre
Neste Rio de Janeiro.
Ser malandro é um capricho
De rapaz solteiro.
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa.
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa
A vida é de quem sabe se esquivar, dos espertos, dos peixes que não caem
em rede. Casamento? Só se estiver louco. Tudo que pensa da necessidade de
permanecer livre, do não cair em armadilhas (o casamento parecendo-lhe a mais
aprisionante de todas as armadilhas), ele resumiu nestes versos escritos para o
mesmo samba, mas não aproveitados:
Muito mais que a canoa,
O malandro em terra joga.
A canoa afunda à toa,
Ele vira e não se afoga.
Mas esse estado de espírito - assim como seus caprichos de rapaz solteiro -
só dura até ele saber da ida da mãe à delegacia. Pois foi graças a ela que o caso
não viajou para outra jurisdição, o comissário concordando em deixar que tudo
se resolva sem os transtornos de um processo judicial. Como terá Martha
conseguido isso? Muito simples: prometendo ao comissário que fará o filho se
casar com Lindaura. Noel não a perdoa. Com que direito promete coisas que
implicam mudar sua vida, seu destino? Muitas discussões se travam no chalé em
torno da questão, o casamento, a "reparação do erro". Pela primeira vez se faz
entre Martha e Noel um abismo de desentendimento, ela insistindo, ele
resistindo. Discussões, brigas. Como nunca houve antes, como nunca haverá
depois. E que se exacerbam a cada nova visita de dona Olindina ao chalé, a cada
nova cena na casa de Dorica. O contentamento e a tranqüilidade começam a
desvanecer-se. Janeiro se vai, fevereiro também. Está cada vez mais difícil para
o rapaz solteiro Noel Rosa enfrentar as pressões que ameaçam seus caprichos.
Fala disso com alguns amigos. Às vezes, em tom grave quando não patético: -
Prefiro morrer a engolir este casamento.
Enquanto ele reluta, dona Olindina resolve tentar o outro lado. Já que o
comissário confiou em dona Martha e esta nada consegue com o filho, Noel
quase não parando em casa, fugindo, evitando encará-la, a solução parece-lhe ser
coagir a filha. E o faz em forma de ultimato: ou convence Noel Rosa a se casar
com ela, ou rua. Lindaura o põe a par da ameaça, a mãe querendo expulsá-la de
casa. Sente medo.
Certa noite, Olindina Pereira da Motta prova que não é só de ameaças. Abre
a porta da rua, manda que a filha saia e jura que só a receberá de volta, no
honrado lar da Rua Maxwell, 74, casa 2, quando estiver casada. De papel
passado e tudo.
E é com os olhos esgazeados de espanto, mas sempre em silêncio, que
Clara acompanha toda essa terrível história. Ainda bem que a escolinha está
fechada, as férias de verão transformando numa sala vazia e quieta o local onde
até bem pouco as crianças faziam algazarra. As aulas suspensas, só de vez em
quando Clara aparece no chalé. Mora tão perto que não teria como se desculpar
com dona Martha, caso sumisse de vez como é seu desejo. Senão de vez, ao
menos até que a tempestade passe.
O sempre imprevisível Noel. Tão irresponsável, tão insensível, tão
desprovido de nobreza nestes sete anos em que povoou de incertezas os sonhos
de Clara, eis que agora ele decide dedicar-lhe um gesto, último gesto, de
grandeza. Desde aquela tarde em que os dois policiais o foram buscar em casa,
ele a tem evitado. Não mais se falaram. Sequer seus olhos se cruzaram ao acaso
num dos muitos e apressados entra e sai dele. Não haveria de ser ela que iria
abordá-lo. Pedir explicações? Nunca. Não se acha com esse direito. Noel é que a
procura.
- Preciso falar com você. Às sete da noite. Na esquina de Visconde de
Abaeté.
A mesma esquina do primeiro encontro há sete anos. Na hora marcada, lá
estará Clara. Noel também. É bem possível que tenha sido pensando nela, em
momentos como este, que ele um dia escreveu um samba fadado a permanecer,
como uma relíquia, entre seus guardados : Não Morre Tão Cedo. Com uma
terna primeira parte e uma segunda em forma de soneto:
Você não morre tão cedo,
Você não morre tão cedo...
Juro que, neste momento,
Pensava nesta sua pessoa,
Tão. boa, tão boa,
Que até dormindo perdoa.
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção.
Uma forra que Wilson Baptista não poderá deixar sem resposta. Porque os
versos foram muito claramente dirigidos ao seu samba, à sua pessoa. E porque
uma briguinha musical com Noel Rosa é uma forma de ganhar evidência:
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão
Barracão e outras coisas mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone
E deixe quem é malandro em paz.
Tanto me sacrificava
Sem ter o menor direito
Juro que não esperava
Levar fama sem proveito.
De quebra - e para ser grato a dois de uma só vez - Noel vai presentear
Germano Augusto e Zé Pretinho com um terceiro samba, Não Foi Por Amor.
Um primor. Sem repetições melódicas, a primeira e a segunda quase que
fundidas como se fossem uma só. Uma espécie de cavatina em forma de samba.
Não foi por amor, meu bem,
Que por mim você chorou
Você foi interesseira
Quis amar de brincadeira
Só enquanto me explorou...
Só enquanto me explorou!
Pra depois ficar dizendo
Que a sorte não lhe ajudou,
Pra depois ficar dizendo,
Soluçando e gemendo,
Que a sorte não lhe ajudou.
RUMO AO NORTE
Deves te acostumar
A fazer o que eu mandar
E a me respeitar
Fica estabelecido
Que não mentes nunca mais
Para atender a pedido.
Antes de esquecer
O teu triste proceder
Que me fez padecer
Eu já tinha me convencido
Que havia de voltar
Para atender a pedido.
Eu padeço demais
Sem me desabafar
Por você sou capaz
De aprender a chorar!
Noel, com aquele jeito todo seu de não dizer claramente quando não gosta
de alguma coisa (nem precisava), perguntou a Vadico se podia fazer uma letra
inteiramente nova. O parceiro concordou, nascendo assim o novo samba que só
terá sua primeira gravação daqui a muito tempo(3).
3. O samba, escrito em fins de 1933, começo de 1934, só seria gravado em 1954 por Ana Cristina com o conjunto de Luís Bittencourt, no antigo selo Sinter. De volta de uma longa
permanência nos Estados Unidos, só então Vadico o desarquivou.
Gastão Meirelles de Freitas Pacheco trabalha muito e ganha pouco. Mal tem
tempo para sorrir. Noel esbarra com seu ar fechado e o desmorona numa frase: -
Primo, enquanto a gente estiver aqui você vai ter que deixar sua caturrice de
lado. Nós vamos invadir sua casa. Por nossa conta.
E Gente do Morro de fato invade o lar dos Pachecos. Com música e alegria,
no tempo em que estiverem em Campos, promovendo ali alguns saraus.
Todas as madrugadas são madrugadas para Noel. No Rio de Janeiro ou em
Campos. Aqui, de noite, pouco importa a que horas tenha começado o
espetáculo, quanto tenha durado, se está ou não cansado, seu rumo nunca é o do
Hotel Gaspar, na Praça São Salvador, onde estão hospedados. Não antes das
cinco, seis da manhã. Até Russo, boêmio incorrigível, desses que vivem batendo
recordes de noites em claro na Lapa e outras plagas, tem dificuldades em
acompanhar o ritmo do amigo.
Sarau campista
"Nossa casa se enche de moças e rapazes, de intelectuais, músicos, boêmios, gente do povo. Caras
conhecidas. Caras estranhas. Os penetras. Eram todos de casa, naquela noite. lá para as 20 horas chegam
dois barris de chope. Na sala de visitas Célia toca piano e a dança tem início. Noel chega com Benedicto
Lacerda e os demais elementos do Gente do Morro. Entra em ação a flauta mágica, o pandeiro do Russo. O
baile se anima. Pouco depois, a sala vai se esvaziando, enquanto a copa está intransitável. Por que motivo o
pessoal se desloca da sala para o interior da casa? Ah! O Noel está junto ao barril de chope, pegado num
tremendo desafio com o poeta Claudinier Martins. Então podemos apreciar versos saborosíssimos, que são
improvisados pelos dois artistas. Forma-se a roda. Em seguida, as moças puxam Noel para a sala de visitas
e Obrigam-no a empunhar o violão. Pedem que ele faça uma quadrinha para cada uma delas. Noel forma
um perfumado círculo feminino. Entra na roda. Canta. Aponta para os brincos de uma e improvisa versos de
bela feitura. Sobre os cabelos louros de outra, os olhos negros daquela outra, faz uma segura demonstração
de seu talento poético, monopolizando atenções e aplausos. Sua agilidade mental é espantosa. As moças
pedem bis, querem copiar os versos que ele improvisa, guardar de lembrança os galanteios.
De madrugada, quando a festa terminou, a rapaziada acompanhou Noel na serenata que se seguiu, até
o sol iluminar a planície..."
Jacy Pacheco - Noel Rosa e Sua Época
Russo - na verdade Antônio Cardoso Martins - é alegre, cheio de espírito.
Virou pandeirista por acaso. Vendia medalhinhas milagrosas nos domingos de
festa da Penha, uma forma de complementar seu esquálido salário como
mecânico e depois como vendedor de inseticida Flit, quando teve a atenção
atraída por um grupo de choro que se apresentava numa das barraquinhas. Viu
um pandeiro largado sobre a cadeira, pegou-o, brincou com ele. Um dos músicos
do grupo gostou, achou que Russo tinha bossa e convidou-o a entrar para a
turma. Desde então, não largou mais o instrumento. Tão ligado está a ele que,
daqui a algum tempo (e para sempre), ficará conhecido não como Antônio, ou
mesmo Russo, mas como Russo do Pandeiro. Russo passa a recusar os convites
de Noel para as madrugadas campistas. Não tem fôlego para tanto. Conforme
ficara acertado por Cantuária com Antônio Mattos, o Gente do Morro deveria
fazer várias matinês no Coliseu. Noel, sempre dormindo, recuperando-se da
noite em claro, jamais participou de uma matinê. Grijó Sobrinho dirigia-se ao
público para explicar tal ausência, uma vez que o nome de Noel estava no
programa.
- Senhoras e senhores, lamento informar-lhes que, por motivos de saúde,
nossa principal atração, o grande Noel Rosa, o Bernard Shaw do samba, não
estará conosco esta tarde. À noite, porém, nós o teremos aqui cantando como
ninguém os seus sambas.
Toda matinê a mesma coisa. Muitos dos que vão ao Coliseu à tarde o fazem
porque trabalham a noite. E acabam saindo frustrados com a repetida ausência
de Noel Rosa. Um desses trabalhadores noturnos, na terceira ou quarta vez em
que Grijó recomeça suas explicações, "Senhoras e senhores, lamento informar-
lhes...", interrompe lá das torrinhas:
-Já sei, não precisa dizer. O homem esta doente!
A estada de Noel Rosa e o Gente do Morro em Campos é, por muitos
motivos, agradável. Os boêmios da terra tentam acompanhar Noel, ouvem-no
cantar na zona boêmia, ficam impressionados com seu jeito de levar na conversa,
entre um samba e outro, mulheres escoladas, aparentemente imunes a qualquer
tipo de lábia. Os amigos de Jacy se aproximam dele. Como o Claudinier Martins,
poeta também. Meio doente, sifilítico, estranho.
- Vou me matar!- costuma exclamar durante uma conversa.
Jamais cumprirá a ameaça. Mas uma noite, Noel e todos os outros
acompanhando-o num passeio à margem do Paraíba, Claudinier levará um susto.
Primeiro, repete:
- Hoje eu vou mesmo me matar!
Os companheiros todos o agarram, gritando:
- Ou você se joga no rio, ou o jogamos nós!
Claudinier, apavorado, consegue desvencilhar-se. E sumir em disparada na
noite campista.
Jacy Pacheco escreve um artigo sobre os artistas cariocas. Tem conhecidos
na imprensa, os jornais abrem-lhe espaço:
"Ninguém contesta. Noel Rosa e Benedicto Lacerda não precisam mais de
reclame. Estão imortalizados em inúmeros discos com suas belas composições.
No último carnaval, tivemos, de Noel, O Orvalho Vem Caindo, Você por
Exemplo e outras cousas boas que iriam encher muitas linhas se fosse mencioná-
las aqui."(4)
4. Folha do Comércio, 25 de março de 1934.
Quando não está no Félix, pode ser encontrado na Pensão do Badu, lugar
que não deve sequer ser mencionado por gente de família, quanto mais
freqüentado. É ali que conhece Alagoano. É ali também que vai conhecer Isaura,
uma das melhores coisas que lhe acontecem nesta viagem. Alagoano é um
moreno alto, magro, cara de mau, amigo de gente influente do lugar. Mais que
isso, é um desses muitos capangas que os coronéis do interior têm a seu serviço.
Só anda armado e um de seus prazeres é provocar gente da polícia, espécie de
prova de fogo em que ele, costas largas, acaba sempre levando a melhor.
Alagoano fica amigo de Noel. E vai esperá-lo todas as noites à saída do
Politeama. Benedicto, Russo, Canhoto, ninguém mais do grupo participa desses
programas que se prolongam até de manhã. Russo só vai uma vez, dança na
Pensão do Badu, canta, bebe e com o sol surgindo acompanha Noel em seu
passeio diário até o Mercado Municipal, onde ostras frescas com limão são o
café da manhã do amigo.
- Tomo isso todos os dias. É o que me dá forças - explica Noel.
Canhoto também só vai uma vez. Para nunca mais. Passam pelo cabaré,
bebem, saem para tomar ar na Praça Independência, a principal da cidade(10).
10. Atual Praça Costa Pereira.
Noel e Doidinho acham melhor continuar por aqui, cada qual com seu par.
Isaura. Pouco se saberá dela daqui a alguns anos. De Alagoano ainda se
falará muito, sobretudo quando, poucos meses depois daquela prosaica cena na
Praça Independência, ele morrer anavalhado numa feia briga de botequim. Mas
de Isaura, nada. Paixão que Noel alimentou por pouco tempo, pois Martha, ao
saber no Rio que o filho não quer mais voltar - e que deixou desamparada a
pobre Lindaura - não pensa duas vezes: toma um trem para Vitória, entra
decidida na Pensão do Badu, fecha os olhos para o que não quer ver e manda
Noel fazer as malas.
A falta de juízo, deve ter pensado, tem limites. E por mais liberdade que
arranque da vida, Noel sabe que a mãe está certa.
Benedicto Lacerda e Pixinguinha
Benedicto Lacerda e grupo Gente do Morro: Russo no pandeiro, Gorgulho, violão; Benedicto, flauta; Canhoto no cavaquinho e Carlos Lentine, violão
Capítulo 31
NUMA FESTA DE SÃO JOÃO
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro, entornando champanhe
No seu soirée...
Dama do Cabaré
Amanhece e anoitece,
Sem parar o meu tormento
Por saber que quem me esquece
Não me sai do pensamento
Já não durmo, já não sonho,
De pensar fugiu-me a paz
Num passado tão risonho
Que não volta nunca mais.
Começaste me humilhando,
Me fizeste de capacho,
Mas agora estou mandando
E tu já ficaste por baixo!
Ceci sabe quem é Noel, de sua fama, do quanto essas pessoas que lotam o
Apollo o admiram. Mas nunca ouvira outro samba dele que não fosse Com Que
Roupa? e O Orvalho Vem Caindo. A mãe queria que se tornasse pianista
clássica; de modo que entre ela e a música popular sempre houve certa distância.
Noel termina seus números e começa a circular por entre as mesas. Ceci não o
conhece. Muito menos ele a ela. Até que seus olhares se encontram.
Ele não pode deixar de notar que a moça de verde-claro sentada mais
adiante é muito diferente das outras mulheres daqui. Não só pela idade. Ou pelo
fato de trajar um costume em vez de soirée. São suas maneiras - a delicadeza, o
recato, a curiosa mistura de timidez e embevecimento impossível de encontrar
em qualquer outra das meninas do Cunha - que parecem atraí-lo. Há muito
tempo freqüenta cabarés. São todos iguais. Como pouca diferença existe entre
uma mulher e outra, a mesma aparência, os mesmos gestos, o mesmo modo de
falar, os mesmos truques. O cabaré é um teatro em permanente função. Dramas e
comédias são encenados aqui todas as noites. É como se estivessem num palco,
representando, que homens e mulheres se relacionam neste lugar. Mas a moça de
verde-claro não parece fazer parte do cenário.
- Trabalha aqui?
- Posso dizer que sim.
Os dois conversam, falam sobre trivialidades, comentam a decoração do
Apollo, a animação da festa, a qualidade da bebida. Ao contrário do que irão
sugerir os versos que daqui a algum tempo Noel escreverá inspirado neste
primeiro encontro, Ceci não fuma. Não ainda. Nem entorna champanhe no seu
soirée (na verdade, sequer veste um). Mas realmente os dois dançam um samba e
trocam um tango por uma palestra. Samba que Noel explica gostar de fazer e
cantar, mas não de dançar. Este nunca foi o seu forte, preferindo os passos
óbvios à ousadia de improvisar uma volta, um enfeite, uma queda de corpo.
Como ele mesmo diz, dança samba à moda paulista, na base do "vai no liso".
Quanto ao tango, Ceci já havia avisado ao Cunha que não sabia dançar. Se ela
não sabe, o que dirá ele?
Dançam, palestram, fazem-se perguntas. Noel está deslumbrado com Ceci,
ela está deslumbrada com o cabaré. Já passa das quatro da manhã de domingo
quando a festa termina. Ele se oferece para levá-la em casa.
- Obrigada, mas estou com amigos.
- Quer dizer que você trabalha no Apollo?
- Sim.
- Então eu te vejo por aqui amanhã ou depois.
A vida de Ceci vai mesmo mudar - e muito - a partir desta noite de 23 de
junho de 1934. Para começar, a tímida caixa de um restaurante da Rua do
Rosário dará lugar a uma fulgurante danseuse do Cabaré Apollo. O costume
verde-claro será guardado para sempre, o chapeuzinho preto também. As roupas
baratas que trouxe de Frigurgo e as poucas que comprou no Rio com suas
minguadas economias serão substituídas por elegantes soirées que em pouco
tempo ocuparão duas divisões inteiras de seu guarda-roupa. O Cunha é muito
exigente com a aparência das garotas: - Nada de me repetirem vestido na mesma
semana.
Tudo ou quase tudo vai mudar em sua vida. As roupas, as amizades, os
hábitos, as maneiras. Em breve a casa da Barão de São Félix será trocada por um
apartamento que dividirá com uma colega de trabalho num primeiro andar da
Avenida Gomes Freyre.
- É mais perto do emprego - explica à tia Jacinta sem maiores detalhes
sobre o que faz, onde e a que horas.
Também terão fim seus dias e noites de solidão, a saudade que começa a
sentir de casa sendo amenizada pela pequena multidão que faz do Apollo um dos
lugares mais freqüentados da Lapa. Como é possível sentir-se só no meio de
tanta gente, especialmente dos fregueses que desde o primeiro dia a cercam de
amabilidades? Gosta de ouvir esses fregueses dizerem que é a mulher mais
bonita do Apollo, mesmo sabendo que tais elogios não passam de confete barato.
Mas um ou outro manifesta sua admiração por ela de forma mais sincera e
objetiva, sugerindo-lhe usar a beleza e a juventude o mais que possa.
- Por que não trabalha em teatro? Tenho amigos que lhe podem conseguir
um lugar de corista numa dessas revistas da Praça Tiradentes.
Ou então:
- Não gostaria de posar profissionalmente?
Sugestões que mais cedo ou mais tarde acabará aceitando. Vai servir por
algum tempo de modelo dos alunos da Escola Nacional de Belas-Artes,
ganhando entre 100 e 200 mil réis por mês para deixar que seu corpo miúdo e
bem-feito seja transformado em esboços, quadros, esculturas. Quanto à carreira
teatral, ainda custará um pouco a tentar. Por ora nem lhe passa pela cabeça que
um dia será mesmo uma corista, trabalhando inclusive na Companhia de Alda
Garrido(1).
1. Durante o tempo de vida de Noel, as atividades profissionais de Ceci se limitarão ao cabaré, a um breve período como modelo dos alunos da Escola Nacional de Belas-Artes e a trabalhos
esporádicos como girl em espetáculos de circo e companhias itinerantes. O teatro, mesmo, virá mais tarde, sua estréia se dando dois meses depois da morte de Noel, como uma das dançarinas de Rumo ao
Catete, revista estrelada no Recreio por Aracy Cortes.
Sua vida realmente muda. Nas roupas, nas amizades, nos hábitos, nas
maneiras. Para Noel Rosa, porém, Ceci continua a mesma daquela primeira noite
do Apollo. É com sintomática freqüência que ele aparece no cabaré para vê-la.
Puxa conversa, tira-a para dançar, convida-a para saírem juntos depois do
expediente. Ceci gosta de Noel, acha-o simpático, divertido, muito inteligente,
mas não pretende envolver-se. É muito moça, está encantada com a vida
noturna, não quer abrir mão de ser cortejada por todos os fregueses, não quer
prender-se a um só. Mesmo que este seja um Noel Rosa, em cima de quem as
colegas de trabalho vivem a pôr os olhos, sabendo-o famoso, importante,
festejado.
- Vamos continuar assim, amigos-a resposta se repete a cada novo convite
de Noel.
As colegas de trabalho vivem mesmo a pôr os olhos nele. Sobretudo
Julinha, a mesma 'Julinha que Noel conheceu na Penha, amou, deixou de amar e
por fim esqueceu, depois de longo e tumultuado relacionamento. Julinha já
percorreu praticamente todos os recantos da Lapa, é hoje uma mulher castigada
pelas noites e pela bebida, a caminho dos quarenta anos. Engordou, pouco tem
da antiga beleza. Pinta-se com exagero, na ilusão de que os homens não lhe
notem as olheiras e as prematuras rugas. Julinha é a mesma mulher briguenta de
sempre.
- O que é que você tanto conversa com o Noel?
- Somos amigos.
- Isso já passou de amizade - Não, não passou. E se passou não é da sua
conta!
-É sim. Você não sabia que eu fui mulher dele?
- Foi, não é mais.
Julinha ameaça Ceci, diz que não quer vê-la conversando com Noel, toma-
se de ciúmes, muitas vezes instigada pela bebida. Ceci não tem medo de nada, é
altiva e teimosa. Coragem e teimosia que um dia atribuirá à juventude e ao
signo. Quanto mais a outra ameaça ("Se você continuar dando atenção ao Noel,
vai ver"...), mais se mostra sensível à idéia de deixar que as coisas realmente
passem do plano da amizade. Pura teimosia. Só para mostrar a Julinha que não
há nada ou ninguém que lhe diga o que deve ou não fazer.
- Se você quiser, Noel, pode me esperar logo mais.
Vai sair? - Não demoro. Vou até a Rádio Guanabara e volto em meia hora.
- Não posso ir com você?
- Melhor me esperar aqui. Mais tarde a gente sai junto.
Por mais que a cena se repita, Noel não cumprindo a promessa de voltar
logo, Lindaura não aprende, condenada a esperas intermináveis. Enquanto Noel
sai para não voltar, passando toda a noite fora, às vezes sumindo por dois ou três
dias, ela fica trancada com seus pensamentos no pequeno e sombrio quarto
alugado num primeiro andar da Rua do Acre. De dia ainda tem com quem
conversar, as colegas de trabalho na lavanderia, uma ou outra pessoa conhecida
que encontra em Vila Isabel. De noite, porém, só lhe resta rezar para que Noel
volte o mais depressa possível.
Desde que estão morando juntos, os dois aninharam-se em muitos lugares,
hotéis, casas de conhecidos, a pensão de mulheres da amiga do Germano, um
quarto de aluguel aqui e ali. Mas as lembranças que guardará mais fortemente
pela vida afora serão mesmo a deste quarto de sobrado na Rua do Acre, o melhor
que Zé Pretinho pôde conseguir pelo pouco que Noel se dispõe a pagar. Um
quarto realmente pequeno e sombrio. Os proprietários do prédio, não satisfeitos
em locar todos os cômodos que se alinham de um lado e do outro de um corredor
comprido e escuro, dividiram com tênues paredes de papelão os cômodos
maiores, transformando cada um deles em dois. O dinheiro que entra é sempre
mais importante do que o conforto do inquilino. É numa dessas metades de
quarto que Noel e Lindaura se instalaram.
Depois daquela festa de São João - e mais ainda depois que Ceci parou de
resistir-lhe ao assédio - Noel está cada vez menos no sobrado da Rua do Acre. É
um tempo de solidão e angústias para Lindaura, que costuma passar a maior
parte das noites em claro, sem saber se quem vai entrar pela porta é Noel ou um
dos muitos estranhos que passam ruidosamente pelo corredor. Todo e qualquer
ruído a assusta, sejam os passos dos outros inquilinos, sejam gritos que ouve (ou
supõe ouvir), vindos da rua deserta. Numa dessas noites de insônia, salta da
cama assustada. Um dos marinheiros que moram na metade de quarto ao lado
espichou o pescoço para olhá-la por cima da parede de papelão. Ela ali deitada e
o marinheiro simplesmente olhando, olhos bem abertos, a fisionomia estranha,
indefinível. Lindaura corre até a porta que dá para a sacada, abre-a, sai. Não
fosse tão alto, talvez saltasse, e saísse correndo, de camisola mesmo, até o
primeiro táxi que a levasse de volta a Vila Isabel. Mas não tem coragem. Limita-
se a sentar-se no Chão da sacada. Encosta o rosto nas grades de ferro e abre bem
os olhos para a rua. Quem sabe Noel já não está vindo? Para dentro do quarto é
que não volta. A parede de papelão é tão frágil que o marinheiro a derrubaria
com um sopro. Mas por onde andará Noel? Uma, duas, talvez três horas se
passam, Lindaura sentada cheia de pavor no Chão da sacada, os olhos sempre
postos na rua. É então que vê, como se vindo da direção da Rádio Mayrink
Veiga, elegante, os passos lentos, firmes, um amigo de Noel que ela só conhece
de vista, mas que já lhe é muito familiar: Mário Reis. Deve estar indo encontrar-
se com alguém lá pelos lados da Rua da Carioca. Ou talvez tenha estacionado o
carro a algumas quadras da Rua Mayrink Veiga. Seja lá o que for, é muita sorte
que passe por aqui agora. Lindaura grita cá de cima: - Mário! Mário Reis!
Mário pára. Olha para o alto procurando descobrir de onde vem a voz.
- Aqui, Mário! Sou eu, Lindaura, a noiva do Noel Rosa!
Mário afasta-se um pouco, de modo a ver, da outra calçada, a moça sentada
no Chão da sacada.
- Aqui, Mário!
Ele finalmente a vê:
- Pois não.
- Por favor, Mário. Sou a noiva do Noel Rosa. Ele me deixou aqui sozinha e
estou morrendo de medo. Será que você podia ir à casa da minha sogra pedir a
ela para vir me buscar?
-Pois não, pois não... - diz Mário sem entender nada.
A noiva do Noel sozinha numa sacada da Rua do Acre, gritando para ele,
pedindo-lhe socorro, e Noel perdido em algum lugar da noite carioca. Homem
estranho este Noel Rosa. No dia seguinte, atendendo ao pedido de Lindaura, vai
falar com dona Martha. Esta, por sua vez, na primeira oportunidade chama a
atenção do filho, está tudo errado, não é direito o que ele está fazendo. O pessoal
da delegacia cobrando-lhe a promessa de que o convenceria a casar-se. Por que
não toma juízo?
Noel raramente vai ao chalé. É tão difícil encontrá-lo lá quanto no sobrado
da Rua do Acre. A casa dos pais é uma espécie de ponto de referência, o local
onde recebe e deixa recados, endereço para correspondência. Trabalha muito
nesse terceiro semestre de 1934. Canta em programas de rádio, apresenta-se em
cinemas e teatros, compõe. Por exemplo, Pra Lá da Cidade, mais uma letra
com muito jeito de Julinha.
Lá, bem pra lá da cidade
Onde não cabe a vaidade
Foi que matei minha ilusão
E enterrei meu coração,
Que ficou muito pra lá
Bem pra lá da cidade
Além do trabalho, o amor. Está apaixonado por Ceci, vive atrás dela, vai
esperá-la todas as noites à saída do Apollo. Se uma gripe ou indisposição
passageira impede-a de ir trabalhar, preocupa-se. É assim que um dia vai
procurá-la na casa da tia na Barão de São Félix.
- Ouvi dizer que ela está doente. - Quem disse?
- O pessoal lá do Apollo.
- Do Apollo?
- Sim, o cabaré.
A inabilidade de Noel acaba fazendo com que tia Jacinta fique sabendo o
que Ceci com tanto cuidado vinha tentando esconder. Então a sobrinha trabalha
num cabaré? E onde ou com quem estará morando?
É o que Noel também gostaria de saber. Só depois desse pequeno incidente
- dessa involuntária indiscrição junto à tia Jacinta - vai ele descobrir que Ceci
mora com uma colega no apartamento da Avenida Gomes Freyre. Teve ela suas
razões para não lhe dizer a verdade. Ainda é o desejo de liberdade que guia seus
passos. Para que ficar presa aos carinhos - e também aos ciúmes - de um só
homem, se bem melhor e menos limitador é dividir-se entre muitos? Não se
conforma em ver algumas de suas amigas padecerem nas mãos de homens
insofridos e possessivos que começam prometendo-lhes tudo, inclusive
compreensão para com a vida que levam, e no entanto mudam assim que se
apaixonam. Ceci é pouco mais do que uma adolescente, mais jovem do que
qualquer outra aqui, mas viva, inteligente, aprende depressa. É impossível viver
na Lapa sem aceitar-lhe as leis. Leis que ela não só aceita como aprova,
principalmente em sua profissão, as dançarinas de cabaré obrigadas a vender
sorrisos a todos os fregueses, sem se prenderem a nenhum. Batem asas de mesa
em mesa, realizando muitas e sempre breves escalas. Ora aqui, ora ali, não é por
acaso que muitos as chamam, ainda que pejorativamente, de mariposas. São as
leis daqui.
Noel sempre conheceu e respeitou essas leis. Mas quando o coração se
envolve, de que adiantam? Passa-se a achar absurdos todos os códigos que
regem os amores nascidos e vividos à luz desses cabarés? No começo de seu
relacionamento com Ceci parece aceitar tacitamente que ela seja como é, livre,
não só sua, mas da noite. E a noite sempre teve muitos habitantes. Depois
mudará. Mas a aceitação dos primeiros tempos - uma aceitação de quem
compreende perfeitamente como vivem as mulheres da Lapa - ele chega a
registrar num samba que só daqui a dois anos lançará, um samba ironicamente
intitulado Dama do Cabaré, no qual fala não apenas do seu primeiro encontro
com Ceci, mas do quanto sabe serem sagradas para ela as leis da boêmia..
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée.
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra.
Há muito tempo Nássara não aparecia no Ponto de 100 Réis. Anda ocupado
demais, produzindo caricaturas para jornal, redigindo anúncios para programas
de rádio, fazendo cursos de desenho na Escola Nacional de Belas-Artes. Neste
fim de tarde, indo pelo Boulevard na direção da casa do amigo Luís de Moura,
ouve gritarem seu nome de uma das mesas do Café Ponto Chie. Sentado sozinho
diante de uma garrafa de cerveja, cotoco de lápis quase sumindo por entre os
dedos, Noel Rosa rabiscava alguma coisa quando o viu passar (Nássara não pode
deixar de pensar que este cotoco é no mínimo uma superstiçãozinha, Noel não o
trocando por nada, nem mesmo um lápis novinho, de desenho, importado, como
os que ele usa).
- Está sumido, Nássara - diz Noel apontando-lhe a cadeira.
Nássara se senta. Conta como anda ocupado, o tempo não dando para tudo
que tem de fazer, ele quase não parando em Vila Isabel. Noel mostra-lhe o
estribilho de uma música em que está trabalhando:
Quando por amor suspiro
A saudade vem então
Encontrar o seu retiro
(encontrar o seu retiro)
Dentro do meu coração
Por que Noel terá feito um samba a respeito? O amigo explica-lhe que não é
samba, mas marcha. E que ainda não fez, está fazendo. Será que Nássara não
gostaria de ajudá-lo nos versos?
Antônio Gabriel Nássara ainda não é exatamente um compositor.
Influenciado pelos amigos do bairro, já produziu alguma coisa, uma letra aqui,
um pedaço de melodia ali, meia dúzia de sambas e marchas escritos entre uma
caricatura e outra. É verdade que uma dessas composições ocasionais fez
sucesso no último carnaval: Formosa, de parceria com Jota Ruy, gravada pela
dupla Francisco Alves e Mário Reis. Mas nem isso o animou muito a dedicar-se
à música tanto quanto aos desenhos. Sente que a proposta que Noel lhe faz para
se tornarem parceiros nada mais é do que um generoso oferecimento de amigo,
um gesto simpático no sentido de que ele aproveite sua criatividade também para
compor.
A marcha é construída a quatro mãos, trechos de melodia de um e de outro.
A mesma coisa em relação à letra. Nássara, homem de muito humor, vê na idéia
grandes possibilidades carnavalescas. Não resiste a fazer, num de seus versos,
um "trocadilho urbanístico".
Arranjei um trocadilho
Pra cantar como estribilho:
"Teu retiro dá... saudade"(2)
2. "Noel não precisava de parceiros", disse Nássara aos autores ao contar esta história de Retiro da saudade. Segundo ele, o amigo só lhe teria proposto parceria para ajudá-lo a firmar-se no
meio musical. Uma ajuda de fato valiosa, Nássara tornando-se logo em seguida o autor ou co-autor de excelentes sambas e marchas como Florisbela, História Antiga, Maria Rosa, Me Queimei, Na Casa
do Seu Tomás, Periquitinho Verde, Tipo Sete, ou bem depois, Balzaqueana, Mundo de Zinco, Chico Viola.
Uma marcha feita sob medida para ser cantada por uma dupla mista. Pelo
menos é o que sugere o caminho que Noel e Nássara tomam juntos ao fazerem a
letra em forma de diálogo.
Uma dupla mista. Quanto ao cantor, nenhum problema. Mas e a cantora? É
curioso como neste 1934, já com cinco anos de atividades profisionais como
compositor, Noel Rosa ainda não possa falar de uma intérprete feminina de sua
predileção. Quando se trata de vozes de homem, as preferências são muitas,
Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, Luís Barbosa, João Petra, Almirante
e alguns mais. Todos bons, todos capazes de criar para suas composições o clima
perfeito. Mas o que dizer das mulheres?
Continua fazendo restrições a Carmem Miranda. E também a Aurora, que
jamais conseguirá libertar-se da influência da irmã, a ponto de ser confundida
com ela por ouvidos menos atentos. Elisinha Coelho? Uma artista de indiscutível
talento, delicada, sensível, mas que nunca chegará a gravar nada de Noel Rosa.
Aracy Cortes, Otília Amorim, Gesy Barbosa? Se andaram cantando músicas suas
no teatro ou no rádio, não se deram ao cuidado de levá-las ao disco. Madelou
Assis, Ruth Franklin, Lucilla, Helena Barreto? Se o fizeram, foi de forma
passageira, um disco apenas, para depois seguirem outros caminhos. Não, Noel
Rosa ainda não tem uma cantora de sua predileção.
É justamente neste 1934, em lugares e circunstâncias diversas, que entram
em sua vida aquelas que disputarão para sempre a honra de ser a melhor
intérprete de sua obra: Marília Baptista e Aracy de Almeida. Diferentes em tudo,
no temperamento, nos hábitos, na formação musical, no timbre de voz, no modo
de cantar, no tipo físico, nos mundos em que nasceram e vivem. Continuarão
assim pelo tempo afora. Jamais convergirão, mas cumprirão carreiras, pode-se
dizer, paralelas, a música e a poesia de Noel Rosa não deixando que se afastem
de todo.
Marília Baptista tem um Monteiro de Barros entre o primeiro e o último
nome, herança materna que manterá de lado na vida artística, mas da qual se
orgulhará sempre: o Barão Luís Monteiro de Barros, seu avô, era poeta. Como a
própria Marília, que gosta de escrever versos e musicá-los.
Cantora, compositora, violonista. Desde pequena vive agarrada ao
instrumento, para o qual chegará a escrever um canto de amor:
Fala tudo que meu peito sente
Pois, meu amigo verdadeiro,
Nem brincando você mente.
Tinha apenas seis anos de idade quando o barbeiro que ia à sua casa cortar
os cabelos dos irmãos e do pai - o médico do Exército Renato Hutto Baptista -
esqueceu por lá o violão. Não o largou mais, a mãe pianista, Edith, ensinando-
lhe as primeiras posições. Ela e os irmãos Renatinho e Henrique, muito unidos,
gostavam de inventar músicas e fazer versos. Com oito anos, Marília já
compunha. Impressionado com essa precocidade, um amigo do pai, Pascoal
Américo, apresentou-a ao jornalista que se assinava Terra de Sena(3) e este
decidiu levá-la a um festival de música no Cassino Beira-Mar em 1930.
3. Pseudônimo de Lauro Sarno Nunes, pai do humorista Max Nunes.
Foi há dois anos, em 1932, que Marília e Noel se conheceram. Desde então,
não mais se viram. Jamais esquecerá a primeira impressão que ele lhe causou,
acompanhando-se ao violão num de seus sucessos de então: Gago Apaixonado.
Em São José dos Campos, no Sul, em Campos, Muqui, Vitória ou qualquer outro
lugar em que se apresente Noel Rosa, este samba é e será por muito tempo ainda
um número obrigatório.
Não só por ser uma de suas melhores produções, das mais identificadas
com seu estilo, mas também porque ninguém a interpreta com tanto sabor, sua
figura magra entrando no palco, apoiando o pé na cadeira, começando a emitir
com a boca defeituosa os sons prolongados e aflitos do pobre gago:
Mu... mu... mulher Tu me... me... fi.fi.zeste um estrago Os apresentadores
sempre procuram tirar partido do encanto que Gago Apaixonado, na
interpretação de Noel, desperta nas mais diversas platéias. Entre outras coisas,
costumam criar um clima de expectativa que tem muito dos velhos truques do
vaudeville. Foi justamente assim no dia em que Noel e Marília Baptista se
conheceram. Lamartine Babo era o apresentador de uma hora de arte no Grêmio
Esportivo 11 de Junho, no Riachuelo. Coube a ele anunciar as atrações, Gastão
Formenti, Pereira Filho, Noel Rosa. Na vez deste, apelou para o velho truque: -
Senhoras e senhores! Tenho agora a honra de vos apresentar um excelente
cantor, jovem de muita bossa...
Fez uma pausa, olhou para os lados e baixou o tom de voz:
- ... mas eu pediria a simpatia e a compreensão da seleta platéia para um
detalhe: nosso cantor... nosso cantor cheio de bossa... é um pouco gago. Estou
certo de que todos saberão relevar qualquer dificuldade.
E aumentando novamente o tom de voz:
- E agora, com os senhores, Noel Rosa!
É evidente que nem todos da platéia engoliram a história de Lamartine. A
maioria conhecia Noel, já tinha ouvido inúmeras vezes Gago Apaixonado.
Mesmo assim, criou-se o clima dentro do qual Noel brilhou mais uma vez, entre
aplausos, gritos, assobios, gargalhadas, pedidos de bis.
Terminado o número, Noel saiu para uma cerveja. O Grêmio Esportivo 11
de Junho jactava-se de sua condição de "entidade cultural e recreativa".
Costumava organizar espetáculos de música e poesia, receber artistas e escritores
que se exibiam num amplo salão ao fundo do qual improvisava-se, sobre um
estrado de madeira, o palco. Mas nem todos os artistas que se apresentavam ali
eram famosos como Lamartine, Formenti e Noel. Havia, também, cantores e
músicos amadores sonhando ainda em serem descobertos. Alguns já adultos,
outros pouco mais do que crianças, como Marília Baptista, com apenas quatorze
anos naquele 1932.
Era uma mocinha miúda, magra, de cabelos castanhos muito claros, os
olhos ligeiramente rasgados, gestos discretos. Aguardava sua vez de subir ao
palco quando notou que seu violão - justamente o violão de estimação, de um
modelo premiado em Sevilha, presente do pai - estava nas mãos de Noel, que
acabara de tomar sua cerveja e agora parecia experimentar o instrumento.
Marília lembrou-se de ter deixado o violão sobre uma mesa perto do palco.
Distraíra-se. Chegou apressada e apreensiva perto do moço magro que ela não
conhecia e que agora, sem gagueira, cantava um samba desconhecido: (Verdade
Duvidosa)
Deus vê tudo e tudo sabe,
Mas não sabe calcular
A hipocrisia que cabe
Dentro deste teu olhar.
Eu te fito humildemente,
Mas meus lábios te censuram,
Porque teu olhar desmente
O que os teus lábios juram.
O que ele quis dizer exatamente com samba de batida não fica esclarecido,
mas é possível que se referisse ao samba de ritmo bem marcado, ligeiro, com
bossa, em contraposição ao samba-canção, mais lento, ou aos outros, mais duros,
no estilo de Carmem Miranda (que por sinal, na mesma entrevista, é citada por
Noel como "a rainha da marcha", com um reforço exclamativo não desprovido
de ironia: "longe!"). Em outra entrevista, será mais claro: "- Que tal essa Aracy?
- Um valor. É nova, mas das melhores"(5)
5. Folha de Minas, 16 de fevereiro de 1935.
Seja como for, serão estas as únicas referências que fará abertamente a uma
das duas cantoras. Na intimidade, nem isso. Marília ou Aracy?
Uma coisa é certa: do ponto de vista pessoal, como companhia para o que
der e vier, suas afinidades serão sempre maiores com Aracy. Poderá perder a
paciência quando chegar a hora de ensinar-lhe suas músicas, ela custando a
familiarizar-se com a melodia, claudicando em certas passagens, tropeçando na
letra. Mas tão logo aprenda a lição e o trabalho dê lugar ao lazer, Noel se
transforma, a impaciência cede vez a um sorriso, os dois saem para uma boêmia
que a bem-comportada Marília - o pai vigilante acompanhando-a a toda parte,
festas, programas de rádio, recitais - nem imagina existir.
Noel e Aracy conhecem-se no estúdio da PRB-7, Sociedade Rádio
Educadora do Brasil, na Rua Senador Dantas, 82. A moça pobre, artista intuitiva,
teve de esperar muito até lhe darem a chance de cantar naquele microfone.
Passara a adolescência entre o coro da igreja e os blocos de rua do Encantado ao
Engenho de Dentro. Queria mesmo cantar no rádio, tentou várias vezes - sem
sucesso - um teste na Rádio Suburbana. Dizia para si mesma, com aquele seu
jeito crítico que nunca perderá: - Se a Carmem Barbosa pode, por que não eu?
Manuel, um violonista do bairro, gostava da voz dela. Era amigo de
Custódio Mesquita, na época pianista de orquestra, já com conhecimento em
várias estações de rádio. Foi graças a ele que ganhou um contrato na Educadora.
A família, naturalmente, resistiu. A irmã do pastor Alcides cantando no rádio?
Mas Renato Murce, sempre querendo dar oportunidade aos novos, foi até o
Encantado e convenceu os Almeidas: - Eu me responsabilizo por ela.
Na primeira vez que Noel a vê, ela canta um dos últimos sucessos de
Carmem Miranda. Não espera para serem apresentados.
- Você tem jeito. Canta bem. Mas que tal aprender uns sambas novos e
deixar pra lá o repertório de Carmem Miranda?
Na mesma noite, vão à Taberna da Glória, cantam e bebem juntos. Noel
apresenta-a aos malandros seus amigos, ensina-lhe sambas seus, entre os quais
Riso de Criança, o primeiro que gravará dele. Depois leva-a até a Central para
que tome o trem de volta ao Encantado.
Ficam amigos. Muitas vezes voltarão a beber juntos, na Lapa, no Estácio,
nos botequins da Barão de São Félix. A pedido dele, Aracy vai cantar para suas
meninas no Mangue ou nas casas ainda mais baratas das imediações da Central.
Ela não se importa. Conhece a vida, não tem os chiquês de Marília, faz o que
quer, desde beber e fumar até jogar sinuca e cantar para as mulheres do Noel
num prostíbulo de terceira categoria. Ficam realmente amigos, para todas as
horas. Inclusive para que ela freqüente o chalé, tome com ele uma sopa
requentada de feijão no quartinho dos fundos, aprenda novos sambas. Dona
Martha, de início, estranha a espontaneidade, o jeito de ser de Aracy.
- Nunca vi uma mulher dizer tanto nome feio.
Muito diferente de Marília.
A sirene soa longa e estridente como se para despertar algum ouvinte
eventualmente sonolento. Em seguida, os acordes vibrantes de Gallito,
pasodoble de Santiago Lope, completam o sinal de alerta: está no ar o Programa
Casé. Todos os domingos, de meio-dia às seis da tarde, os radiomaníacos do Rio
de Janeiro se grudam aos seus receptores para acompanharem uma a uma as
atrações desse longo e variado caleidoscópio radiofônico. Um líder absoluto de
audiência, desde o primeiro domingo em que foi ao ar, a 14 de fevereiro de
1932, até sua última transmissão, dezoito anos depois, passando por este 1934
em que Noel e Marília se reencontram.
Ademar Casé é um pernambucano empreendedor. É cheio de idéias. De
vendedor de aparelhos de rádio a prazo (um pioneiro neste tipo de negócio),
transformou-se no dono de um programa que será sempre muito imitado (nas sua
pegadas seguirão Renato Murce, Christovam de Alencar, Eratósthenes Frazão,
Waldo Abreu, Paulo Netto de Freitas, Gastão Lamounier e tantos outros). Casé
teve a coragem - e também nisso é pioneiro - de comprar um horário da Rádio
Philips, cujos estúdios funcionam na Rua Sacadura Cabral, 43, perto do Cais do
Porto. No começo, um horário de oito à meia-noite cabendo ao próprio Casé
acumular as funções de produtor, agenciador, selecionador de artistas, corretor
de anúncios e tudo mais que não o obrigasse a ir ao microfone (sempre teve
medo deste milagroso engenho que leva a voz das pessoas a distâncias
incalculáveis). Mas o programa, depois de dificuldades iniciais superadas pela
ajuda de patrocinadores importantes (entre eles F.M. Moreira, o Laboratório
Queirós e, mais tarde, o Dragão), cresceu. Casé contratou Sílvio Salema para
contactar os artistas, chamou Noel Rosa para ser, ao mesmo tempo, cantor e
contra-regra, mudou o horário para toda a tarde de domingo.
Não há grande cartaz da música popular que não tenha passado ou ainda
não vá passar pelo Programa Casé. Atraído por algo que é praticamente outra
invenção do pernambucano empreendedor: o cachê. Antes dele, os artista se
apresentavam em emissoras de rádio quase de favor. Casé, porém, achou melhor
profissionalizar seu espetáculo, pagando a todos - na hora - cachês que variam de
acordo com o cartaz de cada um. Francisco Alves, por exemplo, é o mais bem
pago: 35 mil réis. Carmem Miranda vem em seguida: 30. Os outros variam de 10
a 20.
Um programa em grande estilo, que nos primeiros tempos tentou ser até
ambicioso demais, dividindo-se em duas partes, a primeira dedicada à música
popular, a segunda à erudita, os pianistas Mário de Azevedo, Arnaldo Estrella, a
cantora lírica Violeta Coelho Netto de Freitas, o violinista Romeu Ghipsmann
vestindo a rigor as tardes cariocas de domingo. Mas Casé logo constatou que,
finda a primeira parte, nenhum ouvinte telefonava mais para a emissora,
ninguém mais parecia interessar-se pelo programa. E tratou de diminuir o tempo
dos eruditos para um ou no máximo dois quartos de hora.
Um programa em grande estilo através do qual se pode ouvir a orquestra de
Pixinguinha, o regional de Benedicto Lacerda, o piano de Nonô, os melhores
cantores, os melhores locutores. E humoristas como Jorge Murad, Pinto Filho,
Napoleão Aguiar, Quintanilha, Manuel Durães. A função de contra-regra é
justamente dosar os vários ingredientes do programa (Casé faz questão de que se
obtenha a mesma dinâmica dos shows radiofônicos americanos que ele ouve
pelas ondas curtas). E a Noel cabe, nos primeiros tempos, essa difícil dosagem,
intercalando canções ligeiras com lentas, sambas com valsas, músicas com
anedotas. Como se tem saído? Eis o que diz do seu desempenho o crítico de
rádio que se assina R.S.: "Noel Rosa acumula as funções de cantor e contra-regra
no Programa Casé. Ouvimos domingo a irradiação desse popular programa e
notamos que na divisão das apresentações dos números Noel tem atuação
bastante feliz.
Os números se sucedem sem repetição: um samba, uma canção, um número
com orquestra, uma anedota, tudo a seu tempo."(7)
7. A Hora, 19 de outubro de 1933.
Para o público, porém, não é o contra-regra Noel Rosa que mais conta, mas
o cantor, o compositor e ainda mais o improvisador que se destaca num quarto
de hora que Casé criou para emboladas e desafios à moda do Norte. Muita gente
fará bonito nesses improvisos, Manezinho Araújo, Patrício Teixeira, Almirante,
a própria Marília Baptista que acaba de ser contratada. Mas Noel é imbatível -
pela rapidez e originalidade - nessas disputas em forma de música e verso.
Um dia ele chega com um estribilho que lhe parece excelente para o quarto
de hora dos improvisos:
De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado, não
Mina, como tantos outros parceiros de Noel, logo será esquecido. E até
contestado. Embora goze de algum prestígio no meio do samba, a ponto de haver
quem o considere o introdutor da cuíca na percussão das escolas (João da
Bahiana e Donga, por exemplo, acreditam nisso), haverá também quem diga que
esse estribilho não é dele, mas de um tal de Papai da Cancela. Talvez. Mas Noel
não se envolve com essas querelas de sambistas. Do Mina ou do Cancela, o
estribilho vai ganhar através de sua voz, de suas segundas partes, de seus
improvisos, enorme popularidade.
Quando Marília o reencontra nos estúdios da Philips, o estribilho, com o
nome de De Babado, já é número obrigatório de seu repertório. E há muito.
Desde aqueles tempos difíceis da Revolução Constitucionalista de São Paulo,
quando as rádios de todo o país viviam sob atenta e implacável censura. O
censor da Philips, um certo Brandão, podia ser homem atento e implacável, mas
não primava muito pela inteligência. Ficava observando os cantores do Casé
para ver se eles faziam, durante seus números, gestos que pudessem ser captados
pelos revoltosos em São Paulo. Um dos improvisos de Noel é dedicado a esse
portentoso censor:
Eu não falo pra São Paulo
Sem tomar o meu xerez,
O censor ai do lado
Me levando pro xadrez
(E eu não quero ir pro xadrez)
Nos próximos dois anos, um número obrigatório nas apresentações de Noel.
Em pouco tempo, dele e de Marília, os dois se incumbindo dos improvisos que
às vezes durarão dez, quinze minutos sem repetição de versos. É no Programa
Casé que os dois se aproximam. E que Marília começa a se tornar conhecida. Ao
lado de Noel ou no seu próprio quarto de hora, para o qual haverá em breve um
prefixo que ela mesma comporá:
Fala o Programa Casé!
Veja se adivinha quem é...
Faço a pergunta por troça
Pois todo mundo já conhece
A garota da voz grossa.
Mas Retiro da Saudade é gravada pelos dois, faz sucesso e sai no disco
assim:
Quando li o teu recado,
por ti assinado
Encontrei no teu cartão
minha desilusão
"Retirei" saudosamente,
pra mostrar a essa gente
Que não tenho coração
HUMOR DE PRIMAVERA
Leia Casatle, uma pequena de Vila Isabel, é eleita Rainha da Primavera e passa a ser cortejada por
toda a cidade. Fotografias suas são publicadas nas primeiras páginas de jornais e revistas, clubes a
convidam para enfeitar suas reuniões, compositores inspiram-se nela. A Vila tem motivos para estar
orgulhosa.
Mas se todos rendem homenagens a Leia - e até "forasteiros" como Benedicto Lacerda e Jayme
Florence lhe dedicam músicas(1) -por que não haveria Noel de reverenciar a primaveril rainha de seu bairro
com um samba caprichado?
1. Do ponto de vista de Vila Isabel, Benedicto Lacerda, na época morando no Estácio, e Jayme Florence, o Meira, em São Francisco Xavier, eram mesmo "forasteiros". Os dois fizeram
música para Leia Casatle, Benedicto a valsa Leia, Meira o choro Primavera, gravados em solo de flauta pelo primeiro em disco Odeon (11.167). Meses depois, Leia ganharia letra de Jorge Faraj, sendo
regravada por Jayme Vogeler também na Odeon (11.223).
Só que o samba será mais que caprichado. Com melodia de Vadico, uma das mais belas que seus
dedos já arrancaram do piano, Noel criará, na verdade, uma obra-prima que, além de dedicada a Leia, será
um hino de amor à sua terra: Feitiço da Vila.
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.
A Vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem.
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente.
A prima Vera,
Dizendo a idade
Não é sincera:
Diminui demais.
Se nos contasse as primaveras,
Era mais velha do que seus pais!
Linda pequena
Pequena que tens a cor morena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar
Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.
Seja como for, carnaval, São João, primavera, Penha, Reis, neste Rio de
Janeiro festeiro e musical de 1934, é aparentemente feliz seu cantor Noel Rosa.
Manuel Garcia de Medeiros Rosa já não dorme direito. Acorda com
freqüência, anda pela casa, vai até o portão, volta, deita-se outra vez,
desassossegado. A insônia mina-lhe a saúde, mas ele finge resistir. Chega a dizer
que essas horas em claro no meio da madrugada trazem-lhe grandes idéias,
inspiração para novos inventos. O primeiro, uma pílula para uniformizar o canto
dos galos. Está convencido de que uma das coisas que o fazem acordar muito
antes de o sol nascer são justamente as diferenças de timbres e tons que seus
ouvidos captam no coro dos galos da vizinhança. Daí a necessidade de
uniformizá-los, de criar uma espécie de diapasão pelo qual os galos de Vila
Isabel devem entoar sua cantoria. E enquanto não chega à fórmula da pílula
milagrosa, trata do outro invento, uma idéia já antiga que ele desarquiva
precisamente para as noites em claro: os tamancos luminosos. Não acha justo
acender a luz quando se levanta de noite. Se fizer isso, acaba acordando os
outros.
De Linda Pequena a Pastorinhas
"Num certo dia de 1934 eu ia passando pela Rua Gonçalves Dias quando resolvi entrar no Café
Papagaio. Lá encontrei, de terno branco, sentado a uma das mesas, Noel Rosa. Costumávamos nos ver ali
de vez em quando, pois o nosso editor ficava bem ao lado. Sentei-me com Noel e, no meio da conversa,
perguntei-lhe:
- Noel, você já prestou atenção no ritmo das músicas daquele rancho que sai em Vila Isabel no Dia
de Reis?
-Já. É interessante. - Que tal se a gente fizesse para o carnaval uma música naquele ritmo?
- Boa idéia.
Ali mesmo, papel e lápis na mão, fizemos entre um cafezinho e outro a música e a letra de uma
marcha que chamamos de Linda Pequena. Gravada pelo João Petra de Barros, não fez sucesso.
Em 1937, Noel morreu. No início do ano seguinte, houve um concurso de músicas de carnaval
patrocinado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, na Feira de Amostras. Eu e o Alberto
Ribeiro inscrevemos uma marcha nossa, Touradas em Madrid, que acabou ficando com o primeiro lugar.
Mas muita gente protestou, alegando que nossa música era, na verdade, um pasodoble. Como se marcha e
pasodoble não fossem a mesma coisa. De qualquer modo, o DIP acolheu os protestos e anulou o resultado,
marcando para duas semanas depois um novo concurso. Foi então que pensei em Linda Pequena, tão
pouco lembrada que era praticamente inédita. Mudei um pouco a letra, que ficou assim:
A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.
Linda pastora
Morena da cor de Madalena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar
Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.
Mudei também o título, que passou a ser Pastorinhas. Inscrevi-a no novo concurso e tirei outra vez o
primeiro lugar. Gravada pelo Sílvio Caldas, foi um sucesso. Pena que Noel já não estivesse aqui para ver."
(3)
3. João de Barro já dera este depoimento aos autores - e o repetido em várias oportunidades, inclusive gravando-o para Noel Rosa, álbum de dois discos lançado em 1982 pela Federação
Nacional das Associações Atléticas Banco do Brasil - quando chegou às livrarias, já em 1987, Yes, Nós Temos Braguinha, biografia do mesmo João de Barro escrita pelo pesquisador Jairo Severiano.
Nela, nas páginas 49-52, o autor nos dá, fartamente documentada, outra versão. Pastorinhas já estava inscrita no concurso antes da eliminação de Touradas em Madrid. Na verdade, obteve o segundo
lugar entre as marchas. Anulado o resultado - porque realmente se considerou a vencedora um pasodoble - fez-se novo julgamento, desta feita cabendo a Pastorinhas o primeiro lugar. Jairo Severiano
conta ainda a briga que houve durante o concurso entre João de Barro e Nássara. Inconformado com a não classificação da marcha Periquitinho Verde, sua e de Sá Roris, Nássara esbravejou para João de
Barro: "Foi a alma de Noel que ganhou o concurso!"
Os tamancos - que anos atrás seu Medeiros e o português Aníbal andaram
estudando com o pensamento voltado para os maridos que chegavam em casa de
madrugada - têm agora função bem mais nobre. Servem não só para os insones
como ele andarem dentro de casa a horas tardias, mas também para as pessoas
que, tendo banheiro fora, no quintal, como é comum nestas casas de centro de
terreno, são obrigadas a caminhar bom pedaço no escuro ao se levantarem de
noite movidas por uma necessidade qualquer. A idéia é adaptar ao bico de cada
tamanco uma pequena lanterna cujo facho de luz vai iluminando o trajeto dos
noctâmbulos.
Tanto os tamancos luminosos como a pílula para uniformizar o canto dos
galos roubam muito do tempo do inventor Manuel Garcia de Medeiros Rosa.
São projetos que jamais se consumarão, mas que constituem hoje a sua única
motivação de vida. A família se preocupa. Neca é cada vez menos o homem de
antigamente. As mudanças não são notadas apenas por Martha. Hélio, os outros
parentes, os amigos que freqüentam o chalé, todos já perceberam que ele não
está bem. Tirando os instantes em que fala de pílulas e tamancos imaginários,
quase não se ouve sua voz. Passa horas e horas perdido num silêncio
indevassável, os olhos distantes. Sequer responde às perguntas com que Martha
tenta trazê-lo de volta ao mundo nesses momentos de alheamento. Quando sai de
casa - o que faz cada vez menos - é com destino incerto. Anda de bonde em
viagens que incluem complicadas baldeações. Tanto pode puxar conversa com o
desconhecido passageiro ao lado, como encontrar um velho amigo e nem ao
menos o cumprimentar. Numa dessas viagens, acontece de sentar-se no mesmo
banco Almirante, que o saúda tirando o chapéu.
- Como vai, seu Medeiros?
Desta vez reconhece o amigo do filho, cumprimenta-o, pergunta-lhe pelo
rádio, a música, as novidades. A conversa vai indo muito bem até que a voz de
seu Medeiros começa a diminuir, a tornar-se pouco a pouco mais fraca,
imperceptível quase, obrigando Almirante a chegar mais perto num esforço para
ouvi-lo. Os lábios de seu Medeiros se movem mas já não emitem nenhum som.
Almirante não sabe o que fazer, limita-se a mover a cabeça num sinal de que está
compreendendo, mas com a leve desconfiança de que o pai de Noel na verdade
fala apenas para si mesmo(4).
4. Depoimento de Almirante aos autores.
Nas raras visitas que faz ao chalé, Noel vai sendo informado do estado de
saúde do pai e das preocupações da mãe. As coisas estão cada vez piores, até
mesmo pelos inventos começa a perder o interesse. Agora, já nem finge resistir,
abatido, entregue, a maior parte do tempo naquele silêncio, os mesmos olhos
distantes.
Certa manhã, a escolinha em pleno funcionamento, ouvem-se gritos no
fundo do chalé. Corre Clara, correm as crianças. Na cozinha, dona Martha
agarra-se desesperadamente ao marido, procurando conter-lhe as mãos grandes
com que ele tenta levar ao pescoço o fio de luz que pende do teto. Dona Martha
grita por socorro. Logo chegam os vizinhos e dominam um seu Medeiros
irreconhecível, desvairado, teimando em enforcar-se com o fio que quase lhe
corta as palmas das mãos.
- Eu o encontrei trepado na cadeira - conta dona Martha, entre lágrimas, à
apavorada Clarinha. - E já estava com o fio em volta do pescoço.
Psicose maníaco-depressiva. Os médicos que vão ao chalé a pedido de
Martha, entre eles os Graças Mello, não empregam exatamente tais palavras para
explicar o que seu Medeiros tem, mas recomendam tratamento sério, assistência
psiquiátrica permanente, internamente A Casa de Saúde da Gávea é bom lugar,
limpo, tranqüilo e não muito caro: 800 mil réis por mês. E os médicos são
competentes e atenciosos. Aqui, no chalé, Neca com idéia fixa de suicídio, quem
poderá vigiá-lo as 24 horas do dia? Sim, a solução é o internamento.
Oitocentos mil-réis por mês é mais do que dona Martha talvez possa pagar.
Mas, se todos fizerem um sacrifício, se Eduardinho ajudar um pouco, Noel outro
tanto, pode-se dar um jeito. A família se reúne no chalé para discutir o assunto,
Noel inclusive. O que tiver de ser feito será. Dias depois, contra a vontade,
repetindo que já não quer continuar vivendo, Neca é internado na Casa de Saúde
da Gávea. Logo quando se sentia tão perto de realizar seus inventos, o tomam
por louco. Se se lembrasse agora do seu herói - não o Napoleão das grandes
vitórias, mas o derrotado pelo inverno russo -, haveria de concluir como o
general que a distância que separa o sublime do ridículo muitas vezes é a de um
simples passo.
Novas mudanças na vida de todos. Martha volta a carregar sobre os ombros
pesada carga, o marido ausente, a casa para manter, um filho estudando, outro
vagando. Por que paragens andará Noel? Pesada carga que esta mulher carrega
com estranha força e coragem. Queixas? É coisa que ninguém ouvirá de seus
lábios, mesmo que sofra e sofra muito.
Também muda a vida de Noel. Trabalha mais, aumenta o número de
apresentações em cinemas e programas de rádio. Pela primeira vez contém-se
um pouco nos gastos. Entre outras coisas, desiste para sempre do Pavão. Ainda
outro dia saiu na seção Cama de Gato, de Syntonia(5), esta brincadeira inspirada
no automóvel de Noel: 5. Syntonia, 27 de setembro de 1934.
"Eu tive uma radiola nacionalista que só pegava estações do Brasil. Noel
tem, além de um rádio espírita (válvulas na sala de jantar e corneta na cozinha),
um automóvel cruz-vermelha.
É um chevrolet.
Para que Noel não faça desastres, ele desde que o comprou não sai da
garagem.
Tomara que o carro que Ary Barroso adquirir tenha o mesmo modo de
pensar..."
Verdade. Desde o começo do ano que o Pavão não faz outra coisa senão
sofrer reparos. Uma saidinha até ali e logo volta para o conserto. Tanto trabalho,
tanta letra de música dada a Francisco Alves, para que o Pavão não passe agora
de um imprestável monte de lata e ferro. Noel não pode perder mais dinheiro
com ele. Assim, em troca de alguns mil réis, deixa-o de vez na garagem.
Muda também a vida de Hélio, que passa a fazer verdadeiras acrobacias
para prosseguir sem muitos gastos no curso de Veterinária: copia à mão os livros
que os colegas lhe emprestam, descobre no fim do mundo animais mortos que
leva para casa, descarna, ferve os ossos em latas de banha, para depois estudar
neles anatomia de cães, gatos, aves, pássaros.
E muda, mais que a de todos, a vida de seu Medeiros, cujo mundo agora se
restringe a alguns poucos metros entre as quatro paredes brancas de um quarto
de hospício.
O importante é não perder o humor. E Noel de fato o conserva o mais que
pode. Tem Ceci a alegrar-lhe as noites e já não tem Francisco Alves a
apoquentar-lhe os dias. Acabaram-se as cobranças: o Pavão, além de morto e
enterrado, está pago. Lindaura ainda é uma pedra no sapato, mas o que fazer? O
tempo, remédio para tantas coisas, talvez resolva também esse problema.
Com o humor que lhe resta nestes tempos difíceis - duas mulheres, o pai
internado, dinheiro curto, o carro perdido - suas músicas contêm mais graças do
que queixas. Carregada de gírias, A Melhor do Planeta reativa a parceria com
Almirante:
Tu pensas que tu é que és
A melhor mulher do planeta
Mas eu é que não vou fazer
Tudo o que te der na veneta.
É ainda a bordo do humor que Noel viaja por um samba em que protesta
contra alguém abusado o bastante para filar-lhe o almoço, fumar-lhe o cigarro,
usar-lhe as roupas, falar mal do samba. Um samba com dois títulos: Você é um
Colosso e Pisou no Meu Calo:
Você é um colosso,
Andou no meu carro,
Filou meu almoço,
Fumou meu cigarro,
Vestiu meu pijama,
Senti um abalo,
Usou minha cama,
Pisou no meu calo!
E não adianta
Você me pedir perdão
Depois de você pisar
Meu calo de estimação.
Você é um colosso
E não faz chiquê.
Enrolou no pescoço
O meu cachenez,
Foi no galinheiro,
Matou o meu galo,
Falou em dinheiro,
Pisou no meu calo!
Você é um colosso,
Comeu sandwich
Falando bem grosso
Que samba é maxixe.
Eu disse! "Caramba!
Não sou seu vassalo"
Falou mal do samba,
Pisou no meu calo
Em parceria com Hervê Cordovil, mais uma vez o tema é a Festa da Penha.
Tendo trabalhado todos os domingos de outubro, infelizmente não pôde
comparecer aos folguedos, a morena reclama a ausência e ele se explica: Fiquei
Rachando Lenha.
O meu amor chorou
Porque não fui à Penha
Fiquei rachando lenha
No ano que passou.
Não há obrigação
Que faça te esquecer
Ela só me faz perder
Os momentos de prazer.
Eu trabalhei demais
Por ter necessidade
De ter ouro em quantidade
Pra comprar comodidade.
Noel diz a Ismael Silva que há alguma coisa errada na sua parceria com o
Chico. Ismael ouve com atenção. Tem mais ou menos idéia do que o parceiro e
amigo vai ponderar, mas prefere certificar-se.
- Você continua dando parceria a ele em todas as músicas?
- Sim, todas.
Talvez Ismael conte mentalmente quantas foram ao todo desde aquele
encontro com Francisco Alves sob o lampião defronte ao Café do Compadre. De
1930 até agora, quatro anos de muito samba bom de parceria com Nilton Bastos,
Noel Rosa e outros, quando não sozinho. E em quase todos eles, mais de trinta, o
nome de Francisco Alves ao lado do seu. Ou no selo do disco ou na partitura
impressa. E o próprio Chico se encarregando de dizer quem vai ou não gravar, se
ele mesmo, Mário Reis, João Petra, Castro Barbosa, Jonjoca ou quem seja.
Como se a obra de Ismael, toda ela, fosse propriedade sua. A pergunta de Noel,
irônica, maldosa, vai dar o que pensar ao bom Ismael: -Me diz uma coisa: e o
Chico, só grava o que você faz?
Por muito tempo Ismael Silva se lembrará da conversa em que Noel começa
a convencê-lo de que já é hora de também ele desalgemar-se de Francisco
Alves(7).
7. A influência de Noel Rosa no seu rompimento com Francisco Alves foi contada por Ismael Silva a um dos autores, à mesa de um bar da Rua Riachuelo com Lavradio, em 1962, na
presença dos jornalistas Mauro Affonso e Ito Coelho.
Não apenas por essa conversa - mas principalmente por ela - o grande
sambista do Estácio passa a pensar com seriedade em ir em frente sozinho,
seguindo o exemplo de Noel, que afinal continua por aí, fazendo sucesso,
gravando, sendo solicitado pelos cantores, sem precisar de Chico para nada. Se
Noel pode, por que não ele?
De fato foram reduzidos praticamente a zero os vínculos de Noel Rosa com
Francisco Alves. Ainda restam pequenos acertos de dinheiro entre eles, o cantor
sempre relutando em meter a mão no bolso. Ismael mesmo lembra de umas
contas que ele e Chico andaram fazendo outro dia na mesa de um botequim. O
cantor ia dividindo, mil réis por mil réis, o que lhes cabia de direito autoral de
determinada gravação. Dez mil réis para Ismael, dez para Chico; cinco mil para
um, cinco para outro. Até que chegaram à casa dos tostões. Sobrou uma moeda
de duzentos réis e era a vez de Ismael. Chico, no lugar de deixá-la para o
parceiro, não abriu mão do seu direito.- pediu que o português do botequim
trocasse por duas pratinhas de cem réis, uma para cada um.
Noel também continua não deixando passar nenhuma oportunidade de bulir
com Chico em suas letras. Por exemplo, aproveitando o sucesso no Rio do filme
alemão A Voz do Meu Coração(8), Francisco Alves gravou uma versão de
Orestes Barbosa para o fox-trotde Mischa Spoliansky, Tell Me Tonight.
8. A Voz do Meu Coração, filme alemão de 1932, chegou ao Brasil via Estados Unidos, dai ter sido exibido aqui com seu título americano, Be Mine Tonight, e não com o original, Das Lied
Einer Nacht. Dirigido por Anatole Litvak, tinha no elenco Jan Kiepura, Magda Schneider, Edmund Gwen, Fritz Schudz, Sonnie Hale e Ida Wuest. A canção que Orestes Barbosa converteu em Diga-me
Esta Noite - e Noel em Paga-me Esta Noite - também veio da versão americana, pois em alemão intitula-se Heute Nacht Oder Nie (Esta noite ou nunca).
Partindo dos primeiros versos ("Nesta noite tão linda venho cantando..."),
Noel transforma Diga-me Esta Noite em Paga-me Esta Noite para falar de um
ouvinte risonho, irmão do tal Pão-Duro, que é o próprio Francisco Alves:
Neste tempo medonho
Canto, tristonho
Ao microfone este prelúdio
O ouvinte risonho
Nem por um sonho
Sabe o que me traz ao estúdio.
A ti que és o irmão
Do tal Pão-Duro
Meu recibo vai assombrar
De revólver na mão
Eu vim aqui... cobrar.
Ainda há muito de humor em Noel neste mês de outubro. O que talvez não
haja é saúde. Esperando Ceci todas as madrugadas no Apollo, ficando com ela
até de manhã, trocando mais do que nunca a noite pelo dia, alimentando-se
pouco, não tendo ao lado de Lindaura os mesmos cuidados que recebia em casa
nos bons tempos em que Martha lhe servia refeições que não exigiam esforço na
mastigação, Noel emagrece. Aparecem-lhe olheiras que se acentuam e que só
dona Martha, quando ele vai ao chalé, parece notar.
Além disso, bebe muito. Não é um alcoólatra, não se inclui entre aqueles
freqüentadores da Lapa que mal sabem como é o bairro, porque só vão lá
bêbados de cair. Mas gosta de uma cerveja além da conta. E chega a tomar uma
ou outra bebida quente quando o tempo pede. Ismael Silva acompanha-o. Diz ter
tomado coragem para informar ao Chico que, daqui por diante, é cada qual por
si. Será que o homem vai achar ruim? Pouco importa. Sente-se mais seguro ao
lado de Noel. E é uma vez mais de parceria com Noel que compõe novo samba,
por muitos motivos, especial. Primeiro porque, depois de cinco anos, Francisco
Alves não entrará como co-autor. Segundo, porque a própria letra contém sutis
alfinetadas, Chico servindo mais uma vez de alvo. Terceiro, porque, sem que
eles saibam, será este samba, sugestivamente intitulado Boa Viagem, a última
obra que farão juntos.
O amor é como a chama:
Tem princípio, meio e fim.
Se você já não me ama,
Para que fingir assim...?
Não mandei você embora
Porque sou benevolente
Para que você agora
Quer sair ocultamente?
Não só em relação a Francisco Alves, mas a tudo, liberdade é algo que Noel
- o pai enclausurado num quarto de hospício - parece prezar mais do que nunca.
Deixa isso claro em todas as palavras e atitudes. E não é por outro motivo senão
a vontade de ficar livre que ele resiste às pressões de Martha para que ponha a
direito sua situação com Lindaura. A mãe que continue tenteando o pessoal da
delegacia.
Surpreende-se ao saber que Jacy Pacheco, o primo de Campos, pensa
diferente: tem a sua idade, 23 anos, e acaba de se casar. Por isso Noel lhe
escreve uma carta, datada de 24 de outubro, em que fala de seu espanto: "Meu
querido primo Jacy. Um abraço! Quero com ele dar os meus pêsames pelo seu
casamento. O que foi isso, Jacy? Alucinação?
- Perturbação dos sentidos - é o que você poderia responder."
À prima Célia, irmã de Jacy, escreve no mesmo dia outra carta cujo post-
scriptum reforça seu amor à liberdade: "Já dei os pêsames ao Jacy: Coitado! Ele
é mesmo um poeta: acha poesia até no casamento!"
Volta a escrever aos primos campistas uma semana depois, quando passa no
chalé a noite de 31 de outubro para 1.° de novembro. Na manhã deste último,
quinta-feira, dia de Todos os Santos, vai até a Casa de Saúde da Gávea visitar o
pai. Volta arrasado, sem a mínima esperança de que em breve - ao contrário do
que a mãe quer crer - Neca retorne, forte e alegre como antes. É o que conta a
Célia: "Ele continua com as mesmas idéias: não quer comer e prefere morrer a
continuar vivendo longe de nós. O médico, porém, garante que ele precisa ficar
três meses em tratamento, para se curar completamente. Eu não acredito (para
que mentir?) que ele fique bom. Além disso, a Casa de Saúde precisa dos 800
mil réis mensais que o cliente paga, não interessando portanto ao médico que o
doente saia de lá. Isto é a realidade. Entretanto não posso falar assim com minha
mãe. A única alegria que ela tem está na inteligência e na aplicação do nosso
Hélio."
Tem consciência, portanto, de que não há esperanças para o pai. E de que
ele, Noel, não é exatamente um filho do qual a mãe se orgulhe. Elogia o irmão,
fala com humor de sua vocação para veterinário: "Desde pequeno já matava
galinhas com cabo de vassoura e, depois de abri-las com o facão, separava os
diferentes órgãos e etc..." Menciona ainda o fato de Hélio estar "completamente
americanizado" e quase noivo.
Com Ceci, nunca fala do pai. Prefere perguntar sobre a vida dela do que
expor a sua própria. Como explicar-lhe a existência de Lindaura? Ou dizer que o
pai não pensa em outra coisa senão na morte?
O grande sucesso musical deste mês de novembro é mesmo Feitiço da Vila.
Noel vê-se constantemente solicitado a cantar o samba em todo espetáculo em
que se apresente. Continua trabalhando muito. Pensando bem, nunca teve vida
tão intensa, cada minuto do dia tomado, a música, os programas de rádio, o
disco, Ceci, Lindaura, o chalé. Compõe menos, sua produção musical caindo à
metade em relação ao ano passado. A correria em que se transformou sua vida,
somada ao fato de não mais necessitar compor para quitar o Pavão, pode explicar
a queda de produtividade.
Uma noite, canta no Cine Grajaú, na Rua José Vicente, que liga a Barão de
Mesquita à Theodoro da Silva. Excepcionalmente, Lindaura veio com ele, está
na platéia, sentada, orgulhosa do "noivo" que é uma das atrações da noite. Com
que música abrirá o espetáculo? Talvez Feitiço da Vila, talvez Suspiro, samba-
canção seu e de Orestes Barbosa:
Suspiro,
anseio secreto
Revelação de um afeto
Gemer que ninguém traduz.
Suspiro,
triste recado
De um coração ansiado
Na desventura da cruz.
Suspiro,
voz da desgraça
Voz da alegria que passa
Dando lugar ao sofrer.
Suspiro,
o peito se cala
Na dor que tanto apunhala
E não se pode dizer.
Suspiro,
que crueldade!
Tem que nascer da saudade
Enquanto o amor quiser.
Uma doença difícil. Cura-se com muita luta um pulmão afetado, mas tem-
se que apelar para os céus quando se trata dos dois. De que outros remédios,
além do milagre, dispõe hoje a medicina para guerrear contra milhões de vorazes
bacilos que se multiplicam aniquilando tecidos, arruinando vidas? Por enquanto,
nenhum medicamento específico, a cura sendo procurada através de repouso,
higiene, dieta. Tenta-se o clima das montanhas, frio e seco. Em alguns casos, o
pneumotórax. Em outros, a cirurgia. Mas sempre é preciso contar com a sorte,
muita sorte. E jamais desacreditar em milagres.
Edgar Graça Mello é franco:
- Uma lesão no pulmão direito. E já há qualquer coisa também no esquerdo.
Mas tenta tranqüilizar Noel. Não há razão para pânico, desespero ou algo
assim. A doença está no começo, pode ser contida. Noel é jovem, a idade sempre
ajuda. O problema maior é o seu estado geral, a magreza. Quantos quilos?
Quarenta e cinco? Definitivamente isso não é peso que se possa levar a sério. Ou
melhor, é peso para se levar a sério até demais, especialmente em alguém que
tem os dois pulmões afetados.
- Vamos tratar disso, Noel.
Edgar visita o chalé. O desmaio, o susto daquela primeira noite já passou.
Uns dias em casa devolveram a Noel algumas forças. Ele já está saindo, vai até a
esquina, conversa com amigos. Mas Edgar alerta dona Martha para as mudanças
que se impõem à rotina de Noel. Além dos remédios que receitou, dos exames
periódicos, da superalimentação e da supressão de gelados, é necessário que as
madrugadas sejam abandonadas. A tuberculose é difícil de curar com todos esses
cuidados. Sem eles, o difícil se torna impossível. Recomendável seria outro
clima, outra cidade. Assim como Teresópolis ou Friburgo. Ou Belo Horizonte.
Martha lembra-se da irmã. Carmem está morando em Belo Horizonte, tem
uma boa casa no bairro da Floresta. Ela e Mário Brown hão de receber de braços
abertos o sobrinho Noel. Lá não há boêmia, nem botequins, nem estações de
rádio. Nada dessa agitação em que o filho vive metido no Rio. Fala com ele. De
início Noel reluta. Não consegue se imaginar em Belo Horizonte. Vá lá que a
cidade, com suas montanhas e seu verde, tenha fama de curar milagrosamente
pulmões como os seus. Mas é quieta demais. Um carioca habituado ao
burburinho da Lapa, onde a vida só começa depois de meia-noite, na certa
morreria de tédio na acolhedora mas inerte capital mineira. A relutância,
contudo, acabará sendo vencida no dia em que Noel se convence de que a
melhora foi apenas passageira. Edgar encontra-o em casa ardendo de febre.
- Dona Martha está certa, Noel. Belo Horizonte te fará bem.
Concorda. Ficará lá alguns meses, seguirá as regras que tia Carmem
estabelecer, nada de madrugadas, de bebidas, de mulheres. E há de se alimentar
bem, legumes, verduras, leite, frutas. Ficará até que a primeira etapa da doença
seja vencida. Ganhará alguns quilos, fará a vontade da mãe e de Edgar. Cinco,
seis meses no máximo.
Mas... e Lindaura? No meio dessa confusão toda, desmaio, correria, idas ao
hospital, chapas de raio-x, conselhos de Edgar, ninguém se lembrou de Lindaura.
Noel sente-se na obrigação de levá-la com ele. O que seria dela sozinha?
- Só vou se ela for, mãe.
Martha, mulher corajosa e firme, mas acima de tudo ferrenhamente apegada
a seus princípios, mais uma vez deixa claro ao filho que, sem certidão de
casamento, ele não trará a moça para o chalé. Muito menos a levará para a casa
dos tios em Belo Horizonte. Nesse ponto, não é diferente da irmã: há códigos de
moral que precisam ser respeitados. Noel está febril, de cama. É muito mais
difícil resistir agora. A mãe volta ao assunto que há um ano vem sendo o ponto
de discórdia entre eles. Não passa muito tempo sem que o pessoal da delegacia
apareça para perguntar-lhe: "Como vai o Noel?" Uma forma polida e sutil de
lembrar-lhe que as promessas feitas por ela sobre o casamento do filho ainda não
foram cumpridas. Quarenta e cinco quilos! Noel está fraco, vulnerável. O que
será da Linda sem ele?
- Só vou se ela for, mãe.
- Então vamos resolver logo tudo isso.
- Como?
- Só há um jeito: o casamento.
Fraco, vulnerável. Como dizer não? Os proclamas correm mais rápido do
que de hábito, as autoridades policiais colaborando para que não se perca mais
tempo, cuidando para que se passe por cima de alguns trâmites burocráticos.
Dona Martha está satisfeita, até que enfim o problema se resolve. Está satisfeita
Lindaura, o casamento vai devolver-lhe a respeitabilidade, tornar possível a
reconciliação com dona Olindina, quem sabe até fazer com que Noel sossegue.
Estão satisfeitos todos, a ida para Belo Horizonte sendo mais do que uma
esperança de que ele se cure logo.
Mas o que pensa de tudo isso o próprio Noel?
Sábado, 1.° de dezembro de 1934. É acanhada, escura e fria a sala do
escrivão Santiago, a 2ª Pretória Cível em que acabam de se casar Noel de
Medeiros Rosa, carioca, 23 anos, e Lindaura Martins, sergipana, dezoito
completados no último 9 de junho. Os dois assinam o documento que os une até
que a morte os separe, o livro 104, folhas 177. Como testemunhas, Oswaldo
Gouveia do Carmo e Sylvio Cioclaro. O primeiro é chofer de praça, casado com
uma sobrinha de Clara, amigo de Noel que por esta época aluga
temporariamente um dos quartos do chalé. Tudo, portanto, como manda a lei e
recomendam os princípios das duas famílias. Dona Olindina, ainda magoada,
não veio desejar sorte à filha que passa a assinar-se Lindaura de Medeiros Rosa.
Terminada a cerimônia, os dois posam para a única fotografia em que
aparecerão juntos. Ela num vestido azul-marinho, meias de seda, buquê de rosas
na mão direita, aliança de ouro na esquerda e um ligeiro sorriso nos lábios. Ele
de terno de algodão cinza riscado, gravata borboleta, nenhum sorriso. O terno de
algodão se explica: ainda tinha um pouco de febre quando saiu de casa para vir
ao cartório. Puseram-no no carro como se não tivesse forças para chegar sozinho
até aqui. Ou como se relutasse, pela última vez. Não haverá festas. Nem doces,
nem convidados, nada.
Noel e Lindaura passam a ocupar o quarto dos fundos. Ali, diz dona
Martha, ficarão mais à vontade, terão mais liberdade. O casamento aconteceu
sem que ninguém esperasse ou fosse avisado. Não se mandaram convites. Por
enquanto, nenhuma notícia nos jornais. Mas a novidade vai se espalhar de boca
em boca no meio artístico. Muitos se surpreenderão: - Vejam só, pensei que ele
já estava livre desse problema!
Outros serão proféticos: - Noel e o casamento jamais se darão bem.
Jacy Pacheco, também recém-casado,vem ao Rio a trabalho. É bancário em
Campos, ganha pouco, não se pode dar ao luxo de trazer a mulher, Judith, tendo
de pagar do próprio bolso passagem, hospedagem, refeições. Vai até o chalé,
onde encontra o primo melhor de saúde. Na verdade, nem desconfiava de que
estivesse doente. Jacy talvez pense que Noel, casado de pouco, está
compenetrado de sua nova vida, Caseiro, fazendo companhia à mulher. Mas se
engana.
- Vamos dar uma volta.
- Onde?
- Pelo Centro.
- E Lindaura?
- Ela fica.
E fica mesmo. Noel e Jacy vão jantar juntos na Taberna da Glória. Nada
mudou na vida do primo, pensa Jacy. Noel conta-lhe as circunstâncias em que
ocorreu seu casamento, mas não lhe fala da doença. Fora a magreza, parece bem.
Nada mudou realmente.
Mais rápida do que a notícia do casamento, corre pela cidade a informação
de que Noel não anda bem, desmaiou durante um espetáculo, está sob severa
vigilância médica. Amigos o visitam no chalé. Sabem dos planos de viagem, da
recomendação de Edgar para que passe algum tempo em Belo Horizonte. Dona
Martha fala com os mais chegados das dificuldades cada vez maiores que
enfrenta. O marido internado, 800 mil réis por mês arrancados da pedra com as
próprias unhas. E agora Noel, casado, sem poder trabalhar, tendo de passar
tempos fora do Rio. Os amigos compreendem. Recorrem ao Casé. Afinal, Noel é
uma das estrelas de seu programa. Casé promete ajudar. Além disso, há a
simpática turma de Syntonia, o semanário especializado em rádio e música
popular. Na redação do jornal decide-se fazer um apelo ao meio artístico: que
todos ajudem como puderem o amigo Noel Rosa. O apelo será atendido. Em
poucos dias, dona Martha recebe no chalé o dinheiro arrecadado por Syntonia.
Noel é tratado como grande nome da música popular que de repente
necessita do amparo e da atenção de todos. Suas músicas são tocadas no rádio,
jornais publicam matérias a seu respeito. Uma dessas matérias será a principal
do primeiro número de um novo jornal e uma espécie de balanço de sua
carreira(3).
3. Jornal de Rádio, Rio de janeiro de 1935.
Apelo pelo poeta.
(Reprodução de Syntonia.)
SYNTONIA
Atenção, amigos de Noel Rosa!
Noel, o sambista philosopho, o queridíssimo autor popular cujas composições falam à alma pela sua
expressão de sinceridade e belleza, vae ser homenageado pelos seus innumeros amigos e admiradores. Esta
prova de carinho que será prestada a Noel Rosa, terá um cunho altamente significativo e prático.
A lista de adhesões está à disposição dos interessados no escriptorio do Programma Casé, á rua
Uruguayana, 39, 2* andar, tel. 2-7038, onde serão phornecidos esclarecimentos mais amplos.
Neste momento em que Noel Rosa atravessa, uma phase delicada de convalescença, esta prova
collectiva de admiração e sympathía será certamente para eile um conforto moral opportuno e bem
merecido.
O ano chega ao fim. Noel e Lindaura têm viagem marcada para os
primeiros dias de janeiro. O Natal é passado em casa, em torno da árvore e do
presépio que todos os anos dona Martha arma segundo tradição que vem de
longe, dos Corrêas de Azevedo. Noel - que ironia com seu próprio nome! -
jamais gostou do Natal:
- Para que esperar um ano para se dar presente a quem se gosta?
Não dá presentes a ninguém. Este é um Natal triste, especialmente porque o
pai está longe, sozinho. De Ceci despede-se laconicamente. Diz que a polícia
obrigou-o a casar-se. Anda adoentado. Vai sair do Rio por algum tempo, atrás de
bom clima. Ou de um milagre.
PARTE IV JANEIRO - ABRIL DE 1935
Capítulo 35
ENTREATO MINEIRO
A viagem mais barata é pelo rápido, trem que sai da Central do Brasil às
cinco da manhã e só chega ao destino pouco depois das nove da noite. Mais
barata porque, ao contrário do noturno, que oferece aos passageiros leitos
relativamente confortáveis, tudo que estes vagões de madeira e bitola larga têm
são bancos duros e apertados e um carro-restaurante onde as pessoas brigam por
uma mesa e pela vez de comerem pratos nada apetitosos: arroz empaçocado,
feijão ralo, bife raquítico. Mas é o que Noel e Lindaura puderam comprar com o
dinheiro levantado por Syntonia. Tia Carmem, o marido Mário Brown e os filhos
aguardam o casal. Carmem não mudou nem um pouco, ainda é a mesma mulher
austera, autoritária, muito diferente da irmã. Bondosa também, mas firmemente
decidida a impor ao sobrinho uma severa disciplina de tratamento: - Boa comida,
sempre em horas certas. E nada de noitadas!
A tia não pode evitar uma ou outra reprimenda:
- Eu sempre soube que essa história de rádio não ia acabar bem.
Noel nem tenta explicar que o rádio nada tem a ver com a doença. Fizesse
ele as vontades de tia Carmem, ficando com a medicina em vez do samba, ainda
assim teria se entregado à vida boêmia.
-Aqui você não terá muita coisa para fazer de noite - diz Mário Brown
tentando deixar claro que, querendo ou não, Noel será forçado a dormir cedo
numa cidade tão pouco boêmia como Belo Horizonte.
Ingênuo Mário Brown. Nem Belo Horizonte é uma cidade pouco boêmia,
nem é intenção de Noel renunciar às madrugadas. Na verdade, para um notívago
incurável como ele, não existe cidade pouco boêmia.
- Vou dar uma volta - diz depois do primeiro jantar, saindo com destino
ignorado.
Carmem e Mário Brown moram com Dulce, Sylvia e Mariozinho numa
casa de sala e três quartos da Rua São Manuel, 124. O local é um dos mais
tranqüilos e agradáveis do bairro da Floresta. A casa, um andar só, tem quintal,
varanda do lado, as janelas dos quartos dando para um terreno baldio. Lugar
acolhedor, mas quieto demais.
- Você precisa de repouso, Noel-lembra a tia.
É ela quem cuida pessoalmente da alimentação do sobrinho, leite fresco,
verduras, legumes, tudo à hora certa. Nos primeiros dias, os passeios noturnos de
Noel duram pouco, uma caminhada depois do jantar, um giro pelo Centro, saídas
rápidas que o trazem de volta sempre antes das dez. Às vezes Lindaura o
acompanha, mas em geral ele prefere ir só. A mulher pouco interfere em sua
vida, deixa que tia Carmem cuide da alimentação e Mário Brown se incumba de
controlar os horários.
-De nada adianta voltar para casa cedo, Noel. Já notei que você fica até
tarde com a luz do quarto acesa. Por quê?
Lindaura explica que o marido, sempre que volta da rua, nove, dez da noite,
põe-se a escrever. Num caderno de capa dura, com seu inseparável cotoco de
lápis, deixa esboçados pensamentos, versos, letras de música, coisas que nunca
chegará a mostrar a ninguém. Mário Brown sugere que passe a escrever de dia.
Por que não na parte da manhã, quando um sol gostoso cobre de luz e calor
toda a varanda? Mas Noel prefere a noite, o começo da madrugada. Já que não
pode sair, escreve.
Tia Carmem recorre a alguns artifícios para evitar que o sobrinho doente
perca horas de sono debruçado sobre seus versos. Um deles, o de tirar a lâmpada
do quarto.
Mas Noel também tem seus truques: surripia a lâmpada do quarto de um
dos primos e a coloca no seu. Carmem insiste. Com a cumplicidade de Lindaura,
faz sumir a outra lâmpada. Noel vai ao armazém da esquina e compra uma caixa
de velas. E continua acordado, madrugada adentro, agora movendo seu cotoco
de lápis à luz de uma chama trepidante.
Ao contrário do que Mário Brown pensa, há muito o que fazer nas ruas de
Belo Horizonte, mesmo altas horas da noite. É só procurar. O boêmio daqui,
Noel constata, é antes de tudo um tipo solitário. Vaga pelas madrugadas de ruas
vazias, perdido no imenso e silencioso deserto que é a cidade depois das onze.
Raramente encontra quem o acompanhe em suas caminhadas, mas quando isso
acontece sempre descobre um programa.
Belo Horizonte é mesmo um lugar deserto nessas horas tardias. A última
sessão de cinema acaba às dez, nas esquinas resta apenas um ou outro cidadão
comum à espera da condução que o levará para casa. Mas o boêmio não é um
cidadão comum. Sua casa é a rua, o botequim, os poucos cantos que nunca
dormem. Solitário, vive permanentemente à procura de uma alma gêmea, um
parceiro de noitada, como Noel Rosa.
Noel de fato será parceiro de muitos boêmios da terra, descobrindo com
eles o que fazer depois das onze. Vai peregrinar ao seu lado, beber em sua
companhia, cantar-lhes novidades como Amor de Parceria, composição que
revela seu interesse, nestes dias, por um gênero relativamente novo: o samba-
choro Isto é, um samba que utiliza certo fraseado do choro. Ou um choro que,
cantado, pede emprestado ao samba a sua pulsação rítmica. Sem que deixe de
estar presente o humor de Noel:
Saiba primeiro
Que fulano é meu amigo
E com ele eu não brigo
Com ciúmes de você.
Há muito tempo
Meu amigo já sabia
Que você me oferecia
Chocolate no jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ele e ele foi por mim.
Há muito tempo
Minha amiga me avisava
Que ela sempre conversava
Com você no seu jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ela e ela foi por mim.
Quando você
Se atrasava uma hora
Eu fingia não saber
A razão dessa demora.
E muita vez você perdeu a fala
Quando estava sem tostão
E eu pedia bala!
Nós aturamos
Os seus modos irritantes
Mas filamos bons jantares
Nos melhores restaurantes.
Você não sai do nosso pensamento,
Você foi negócio e foi divertimento.
São várias as rodas boêmias da Belo Horizonte destes tempos. A dos jovens
estudantes e a dos velhos paus-d'água, a dos intelectuais que se reúnem no Café
Estrela, como Elpídio Canabrava, Pedro Nava, Affonso Dutra, Stênio Caldeira,
Carlos Drummond de Andrade, e a do pessoal da música com o qual Noel vai
travando contato. Um dia ele descobre a existência de uma PRC-7, Rádio
Mineira, em pleno coração da cidade. Fica sabendo que a emissora funciona
precariamente, quase em caráter experimental, no porão do edifício do Conselho
Deliberativo, esquina das Ruas da Bahia e Augusto de Lima, com um modesto
transmissor no bairro de Carlos Prates. Noel toma um ônibus na Floresta e vai
conhecer a Rádio Mineira.
O jeito tímido, a fala mansa, entra, se apresenta aos locutores, operadores e
poucos artistas do cast. Fará novos amigos de alguns deles, Lourival Serra, os
irmãos Paulo e Chico Lessa, José Vaz, Milton Dias, Zetio Santa Rosa, Nelson
Orsini, jovens de vinte, vinte e poucos anos, loucos por rádio.
- Estou aqui de férias - explica. - Andava meio cansado, precisando de um
pouco de sossego.
Vê que seu nome é conhecido, todos sabendo cantar suas músicas, Nelson
Orsini tirando do violão exatamente os mesmos acordes que Noel utiliza, por
exemplo, ao se acompanhar em Até Amanhã. Os novos amigos o convidam para
comer, por apenas dois mil réis, o famoso prato feito do Colosso, restaurante que
fica a uns cinqüenta metros da Rádio Mineira. Lá, todos juntos, improvisam em
plena tarde uma roda de samba.
Noel se integra. Entusiasma-se com os novos amigos. Entre eles há até uma
réplica da dupla Francisco Alves e Mário Reis, Zeno tentando imitar Chico, José
Vaz nas águas de Mário. Fica conhecendo também Roberto Ceschiatti, muito
jovem e já sabendo tudo de eletrônica. É ele quem cuida da parte técnica da
emissora. Embora goste de samba - e vá acompanhar Noel e os outros nas
cantorias pelos botequins da cidade - seu negócio, mesmo, são válvulas e
antenas, chaves e botões, toda aquela complicada maquinaria que põe e mantém
no ar a Rádio Mineira.
O primeiro encontro dos dois ocorre em circunstâncias curiosas. Noel entra
no porão onde funciona a emissora e vê Ceschiatti não mexendo nos botões da
mesa de controle, mas com o telefone no ouvido.
-Alô, - diz engrossando a voz para que não o identifiquem do outro lado. -
Aqui fala o embaixador Bill!
E desliga, deixando Noel intrigado. Passam-se alguns segundos e Roberto
Ceschiatti disca de novo, repetindo, com a mesma voz grave: - Aqui fala o
embaixador Bill!
Noel, curioso, pergunta-lhe que diabo está fazendo com essa história de
embaixador Bill. Ceschiatti reconhece Noel. Meio sem jeito, conta que está
apaixonado pela secretária de um homem importante em Minas, um
desembargador.
- Quem é o homem?
-Antônio Ribeiro Júnior-responde Ceschiatti depois de olhar para os lados
para se certificar de que ninguém o ouve.
- E a moça?
Ceschiatti explica que já se dá por satisfeito ao ouvir apenas a voz dela.
Quanto ao embaixador Bill, é personagem de um filme que acaba de passar em
Belo Horizonte. O problema maior é quando o próprio Antônio Ribeiro Araújo
atende ao telefone, pois fica simplesmente furioso quando o ouve dizer: - Aqui é
o embaixador Bill!
Essa informação é o bastante para aguçar o lado moleque e menino de Noel.
Pensa no quanto seria divertido enfurecer um homem importante, um
desembargador, e pede o número do telefone a Ceschiatti.
- Pode deixar que eu não incomodo a moça.
Procura saber, também, de todos os outros números de Antônio Ribeiro de
Araújo, o do escritório, o de casa, o do tribunal, onde quer que possa ser
encontrado. Desse dia em diante, sempre que lhe sobra tempo - e não há nada
melhor para fazer - disca para o homem e diz, engrossando a voz como
Ceschiatti: - Alô, desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Dezenas de vezes repetirá a brincadeira, mesmo depois de Ceschiatti perder
o interesse pela secretária. Enfurecer um desembargador é mesmo divertido, mas
Antônio Ribeiro Araújo não pensa assim. Certa tarde, no tribunal, após ouvir
mais uma vez a voz cavernosa do embaixador Bill a perturbar-lhe o trabalho,
dirá a um de seus colegas: - No dia em que descobrir quem é este canalha, juro
que o mato!
Paulo, Chico, Lourival, Zeno, Ceschiatti são companheiros de Noel em sua
temporada mineira. Mas nenhum está tão próximo dele - ou tem tantas
afinidades com ele - como Nelson Orsini. Juntos cantam pelo microfone da
Rádio Mineira, freqüentam as biroscas dos bairros mais afastados, vão à zona
boêmia animar com seus violões as tristes noites das mulheres da vida. Nelson é
bom violonista. Dedica-se tanto aos fox-trots como a Albéniz, Granados,
Tãrrega. Noel ouve-o com atenção, o jeito de quem não quer perder uma nota,
mas é franco em suas opiniões: - Não sei o que é mais chato, Nelson, se estes
teus fox-trots ou se os clássicos espanhóis.
Em outras ocasiões, elogia:
- Este teu violão tem uma bela sonoridade. É muito melhor que o meu.
Nelson, com humildade, replica:
- Em compensação, você toca melhor do que eu.
- Não, não é verdade.
A zona boêmia se estende ao longo de três ruas paralelas, a Avenida do
Comércio, a Oiapoque e a Guaicurus. A turma de rádio percebe que Noel é
bandeira valiosa, sujeito cujo violão e cujas músicas encantam de tal maneira as
mulheres que eles, como amigos de tão talentoso e ilustre visitante, acabam
tirando suas vantagens.
- Sou amigo de Noel - diz Paulo Lessa. E a mulher, no mínimo, se mostra
mais acessível.
Nelson Orsini leva Noel para toda parte. Por exemplo, uma festa familiar na
casa de Manuel Maurício da Rocha, professor da Faculdade de Engenharia.
Doces, salgados, ponche, cerveja. Os amigos mineiros já sabem da predileção de
Noel pela Cascatinha e se lembrarão disso para sempre. Zeno adverte Manuel
Maurício da Rocha que, para animar o sambista Noel, a Cascatinha é
fundamental. O dono da casa providencia a cerveja para que a garganta do cantor
não fique seca. Em retribuição, Noel canta para os convidados, com
acompanhamento seu e de Nelson Orsini. Seu grande sucesso atual continua
sendo Feitiço da Vila, que todo o mundo conhece. Mas também está na boca do
povo mineiro Seja Breve, criação magistral de Luís Barbosa e João Petra, que a
gravaram acompanhados pelo piano de Custódio Mesquita.
Seja breve...
(Seja breve!)
Não percebi por que você se atreve
A prolongar sua conversa mole
(Que não adianta!)
Seja breve...
(Conversa de teso!)
Não amole!
Senão acabo perdendo o controle
E vou cobrar o tempo que você me deve.
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
Bom mesmo é estar aqui...
E a Rosinha,
Tão pobrezinha,
De inveja quis se matar...
Já apresento melhoras,
Pois levanto muito cedo
E... deitar às nove horas
Para mim, é um brinquedo!
A injeção me tortura
E muito medo me mete;
Mas... minha temperatura
Não passa de trinta e sete!
Logo, por que não promover um concurso entre todos aqueles que direta ou
indiretamente se ligam ao carnaval - foliões organizadores de bailes e batalhas,
integrantes de blocos, gente de rádio, cantores, compositores - destinado a saber
quem vai imperar em 1935, a loura ou a morena? O concurso é lançado a 15 de
janeiro, três dias depois da chegada de Fra Diavolo. Noel toma conhecimento
dele através do jornal, acompanha com interesse a enquete que Folha de Minas
faz, ouvindo jogadores de futebol, nomes da política, joalheiros, donas de lojas
de artigos para o carnaval, modistas, fotógrafos, maquiadores, poetas.
"O grande problema" - diz o jornal ao lançar o concurso - "está posto nos
seus termos: loura ou morena, qual a campeã do nosso carnaval ? Os poetas e
musicistas carnavalescos procuram resolver o caso, mas ainda não foi possível o
reajustamento..."
Propõe o concurso que não só cada clube e sociedade carnavalesca eleja,
entre suas sócias, uma loura ou morena para concorrer com as outras ao título de
Rainha do Carnaval Mineiro de 1935, segundo votação popular, mas também
que os compositores da terra mandem seus sambas ou marchas que sirvam de
réplica a Linda Lourinha, do ano passado.
Noel se interessa por essa parte do concurso e, na tarde de sexta-feira, 15 de
fevereiro, levado por Chico Lessa e Lourival Serra, entra na redação da Folha de
Minas para dizer a Fra Diavolo que também participará da disputa musical em
torno de louras e morenas. Aproveita para dar uma entrevista que o jornal
publica em alto de página no dia seguinte sob o título "Seja Breve". Entrevista?
Não exatamente.
- Você acha que é preciso? - pergunta Noel ao repórter. - Para mim esse
negócio de entrevista é muito solene. Vamos conversar.
Uma breve conversa, como sugere o título da matéria. A uma pergunta
sobre o que veio fazer em Belo Horizonte, é laconicamente sincero:
- Engordar.
Faz comentários vários, elogia Aracy de Almeida ("É nova, mas das
melhores"), fala de samba. Quando lhe indagam há quanto tempo está na cidade,
diz:
- Um mês. A já um mês?
- É como se não estivesse. Não saio, não ando, nem nada. Como e durmo.
Barba, assim... Como Deus dá, olha só...
- Papai Noel...
- Pra você ver.
Refere-se duas vezes, durante a conversa da qual participam Francisco
Lessa, Lourival Serra, Gennaro Maltez, Miranda e Castro e Fra Diavolo, a um
samba ainda inédito, Pela Décima Vez, que no momento ele considera o seu
melhor(4).
4. Pouco antes, ao Jornal de Rádio de 1o de janeiro de 1935, Noel tinha sido claro ao apontar Pela Décima Vez como seu samba favorito: "É a melodia que fala mais à minha alma, que me
sugestiona mais poderosamente a imaginação, que acorda em mim o desejo do sonho. Fiz Pela Décima Vez com verdadeiro carinho artístico, procurando fixar, malgrado a aparente leveza do tema, um
verdadeiro drama do coração."
Mais adiante, faz um pequeno discurso para antecipar que concorrerá com
um samba:
- Para mim, prefiro o samba, que é malandragem. Marcha, não. Isso é mais
sério. Impõe respeito.
Pois bem, o Noel que não gosta de concursos e prefere o samba, no dia
seguinte se inscreverá neste, da Folha de Minas, e com uma marcha.
Embora em todos os embates - enquetes entre os leitores, eleição da Rainha
do Carnaval pelo voto popular, escolha da musica por um júri onde houve de
tudo, até músicos - a morena tenha sido vencedora do concurso da Folha de
Minas, a marcha de Noel -onomatopaicamente intitulada Uatch! - não consegue
mais do que um quinto lugar.
Essa morena
Cheia de beleza e graça
É o símbolo da raça
Cor de leite com café
E essa loura
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
(Uatch!)
De tão fria que ela é
Essa morena
Tem que ter um bom destino
Fez do samba o seu hino
Pra cantar cheia de fé
Pela morena
Que há de ser a padroeira
Da folia brasileira
Tenho que bater o pé
Loura ou morena?
A marcha com que Noel Rosa obteve o quinto lugar no concurso da Folha
de Minas acabaria esquecida. Ou quase. Uns poucos mineiros que a ouviram
naquele verão de 1935 guardaram apenas alguns fragmentos da melodia que um
deles, Rômulo Paes, lembraria para os autores quase meio século depois. Quanto
à letra - publicada pelo jornal em sua edição de 17 de fevereiro - Noel não a
abandonou de todo. Retocou-lhe a primeira parte e escreveu uma outra segunda
inteiramente nova, dando ao resultado título também novo: Morena e Loura.
Essa morena
Que meu coração devassa
Simboliza a nossa raça
Cor de leite com café...
Essa lourinha
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
De tão fria que ela é!
Esta morena
Que eu amo imensamente
Ficará indiferente
Se souber que eu ando assim.
Na minha sorte
Há um golpe que eu receio:
A lourinha que eu odeio
É quem gosta mais de mim!
E a loura da cidade
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela sempre me constipo
De tão gelada que ela é.
"- Ninguém sabe como o samba nasceu. Ele foi um dia descoberto na rua e aperfeiçoado. Hoje, tem escola.
Criadores de estilo. J.B. Silva, o célebre Sinhô, foi um deles. Sinhô foi ao morro, captou vários estribilhos
de samba e os estilizou com grande sucesso. Jura, por exemplo, e também Gosto Que Me Enrosco. A
princípio o samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava bem
fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, 'vagou pelas ruas com um toco de cigarro
apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luva
branca nos salões de Copacabana. Mas o companheiro do samba será sempre o violão, que já obteve
também a sua vitória definitiva. O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito,
sem mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba. Mas o morro do Castelo foi
abaixo e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e 'escrachou' as cabrochas. Mas o malandro não
desapareceu. Transformou-se, simplesmente, com a sua cabrocha, pra tapear a polícia. Ele já está de gravata
e chapéu de palha e ela usa meias de seda. Quando se fala em ser doutor em samba, não se diz uma frase vã.
Não faltam médicos e advogados para elevar o samba. Aí estão os doutores Joubert de Carvalho, Ary
Barroso, Olegário Mariano e muitos outros. Futuramente, teremos coisa mais sólida, mais estilizada. Por
enquanto, o samba está evoluindo e o faz rapidamente. O fox-trot e o tango já se transformaram e hoje
representam duas raças distintas. Têm orquestras típicas. O samba ainda não a possui.
Quando houver aqui uma orquestra típica de samba, o brasileiro poderá dizer que o seu país tem a
sua música original.
- Mas, Noel, já existem alguns instrumentos próprios para o samba, não?
- Alguns, mas não todos. E apareceram agora, não se achando ainda popularizados. A cuíca que
ronca. O tamborim repicando em torno do 'centro' que faz a barrica. O omelê que floreia dentro de mil
variedades de ritmo. O afochê. São todos instrumentos destinados a embelezar o ritmo. Não há samba sem
ritmo (uns dizem 'cadência', outros 'batida'). O certo, porém, é que o samba foi inspirado no pisar da morena
carioca."
entrevista a O Debate,
Belo Horizonte, 9 de março de 1935.
Dois, três dias, uma semana, não mais. Não demora muito as noites voltam
a atrair Noel, a acenar para ele com sua lua e suas estrelas. Na praça da
Liberdade, passa a encontrar-se com Nelson Orsini, sempre por volta das onze.
Seus programas variam de incursões às casas da Rua Guaicurus a serenatas
românticas por onde quer que haja quem os ouça. Sabendo que os tios não o
perdoarão por essas madrugadas, tem de contar com a ajuda de Lindaura, que
parece ter esquecido a história da "irmãzinha".
Os dois arquitetam um insólito expediente de fuga para ele.
- Boa-noite, tia Carmem. Boa-noite, tio Mário - despede-se ele, ar inocente,
ao se recolher com a mulher às dez da noite.
Depois, sem trocar de roupa, apaga a luz e recomenda a Lindaura o mais
absoluto silêncio. É preciso convencer os tios de que já estão dormindo. Encosta
o ouvido na porta e se certifica de que Mário e Carmem Brown ainda estão na
sala. Então, vira-se para a mulher: - Preciso dar uma saída.
E tira do bolso uma cenoura crua. A janela do quarto dá para o terreno
baldio. Embora seja casa de um andar só, mais de dois metros separam a janela
do Chão do terreno.
Mas Noel já descobriu que ali pasta, em sossego, o burro de um vizinho.
Amigo e conhecedor de burros, ele acena com a cenoura para o animal. Este se
aproxima da janela, Noel estica-lhe a cenoura, o burro chega mais perto, Noel
pula em cima dele e finalmente sai pela noite. Lindaura, a segunda, terceira vez
em que isso acontece, sabe que o marido não diz a verdade ao prometer que não
demora. Só voltará com o sol.
Com Nelson Orsini, longas prosas, muitas canções. É justamente na Praça
da Liberdade que Noel conclui, na frente de Nelson, a melodia para uma letra em
que deixa toda a sua filosofia de vida, o homem do povo, as criaturas sem eira
nem beira (e muitas vezes sem nome), mas valendo mais que os figurões, os
graúdos importantes.
E a felicidade estando muito mais nas coisas simples do que na luta que,
por exemplo, tia Carmem garante ser necessário travar para se vencer na vida.
Noel como João Ninguém, personagem-título do seu novo samba, não acredita
nesta luta. Nem mesmo em ideais abstratos. Não acredita em nada além de um
canto para dormir, de um prato de comida, um cigarro. Nem sequer no trabalho é
possível acreditar. Lembra-se do pai, matando-se de trabalhar a vida inteira, para
parar entre as paredes de um quarto de hospício. Acredita, sim, em não fazer
inimigos. E em ter muitos amores. Por isso canta: (João Ninguém)
João Ninguém
Que não é velho nem moço,
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar.
Num vão de escada
Fez a sua moradia,
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar.
João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João nunca se expôs ao perigo,
Nunca teve um inimigo,
Nunca teve opinião.
João Ninguém
Não tem ideal na vida.
Além de casa e comida
Tem seus amores também.
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém.
Noel e Nelson ficam conversando até tarde. Todo fim de noite tiram a sorte
para ver quem vai levar o outro em casa. Muitas vezes é o Nelson, estudante de
odontologia, que tem de atravessar o viaduto de Santa Teresa para acompanhar o
amigo à Floresta. Numa dessas madrugadas, um guarda os surpreende no meio
de uma canção.
- Vão pra casa os dois! Isso não é lugar de desocupado.
Nelson e Noel protestam. O guarda pede-lhes os documentos. Ao ver que
está diante de Noel Rosa, muda o tom de voz. Tira do bolso do dólmã uma flauta
e diz: - Então, dá aí um si bemol.
E vão os três cantando e tocando até a São Manuel Às vezes há programas
menos estimulantes, Noel pouco à vontade, indo mais por força da insistência
dos amigos: - Vamos à festa na casa do tabelião Bolívar?
Família tradicional, gente meio grã-fina, Noel tenta escapar ao convite de
Chico Lessa. Mas acaba indo com toda a turma. Lá, como não pode deixar de
ser, os amigos pedem que cante alguma coisa.
- Outro dia - retruca ele, esquivo.
Os amigos insistem, Noel chama Nelson, Roberto, Zeno, todos a um canto.
Numa inesperada crise de modéstia, diz, cochichando: - Vocês me trouxeram
aqui para passar vergonha? Acha que eu vou cantar minhas musiquinhas para
esses grã-finos?
Os amigos insistem. Vendo que nada mais pode fazer, canta. E é aplaudido
de pé.
De tudo que compõe aqui, nada terá seu valor tão pouco reconhecido como
Cansei de Pedir. Neste samba o poeta fala de alguém - seria Clara? - que o fez
sofrer por amá-lo tanto sem que ele pudesse retribuir. A originalidade está
justamente na forma e na causa deste sofrimento. Ao contrário de todos os outros
letristas da música popular, sua queixa não está em ter sido traído, abandonado
ou não-correspondido. Mas no oposto. Sofre com o próprio desamor, peso afinal
de uma consciência que gostaria de ter leve. Um samba cheio de bossa, com uma
letra singular.
Já cansei de pedir
Pra você me deixar,
Dizendo que não posso mais
Continuar amando sem querer amar.
Meu Deus, estou pecando,
Amando sem querer
Me sacrificando
Sem você merecer.
Se me viro de frente,
Lá nas costas vai ficar.
Já estou até doente,
Não consigo decifrar.
Noel Rosa não hesita em recorrer a Cícero para dizer o quanto é bom estar
de volta. O Rio é seu mundo. E Vila Isabel, sua pátria. Faz questão de deixar isso
bem claro numa entrevista à Voz do Rádio, a primeira desde que chegou de Belo
Horizonte:
"Mineiras gentis, de tez amorenada, com esplêndidas vozes, e verdadeiros
tipos de beleza física também, interpretaram, com grande desvanecimento para
mim, as composições em que mais externei o meu sentimentalismo, envolto na
dolência excitante do samba-canção."
Mais adiante:
"Enternecime vivamente quando pressenti que o meu samba Feitiço da Vila
batera fundo no espírito daquela gente boa. Difundiram-no, popularizaram-no, e
numa mostra de curiosidade bem feminina as moças perqueriram as razões que
lhe inspiraram o título. Traduzi-o por Feitiço de Minha Pátria, pois, como já
disse Cícero, 'a pátria é onde se está bem', e nunca me senti melhor do que no
recanto calmo e bonançoso de Vila Isabel."(1)
1. A Voz do Radio, 11 de abril de 1935. Noel cita Cícero corretamente: Pátria est, ubicumque est bene, diz o orador latino em suas Tusculanae Disputationes, citando por sua vez frase
atribuída pelo poeta Marcus Pacuvius a Teucro, primeiro rei de Tróia.
É sincero. Nunca se sentiu - nem se sentirá jamais - tão bem quanto na Vila
Isabel destes dias de abril, quando começam a cair as folhas dos oitis do
Boulevard e a se cobrir de um sol meio esmaecido as montanhas que se divisam
das janelas do chalé, lá longe, na Tijuca. O verão passou. E embora possa
parecer ainda mais triste o sol da Vila durante os meses de outono, esta é a época
em que o bairro se torna mais agradável e acolhedor. Ou mais calmo e
bonançoso.
Noel Rosa está bem. Mais gordo e corado, as pessoas notam o quanto
lucrou em Belo Horizonte. É na mesma A Voz do Rádio que se lê:
"A novidade do dia é o retorno de Noel Rosa ao broadcasting. Fervilham os
comentários. No studio, Isis Silva relembra o tempo da célebre dupla Aracy-
Noel.
- A última novidade - intervém Solange Mara - vocês ainda não sabem. O
Noel veio de Minas tão forte que agora já não fará mais dupla.
- Como assim?
- Agora vai haver mesmo um trio. Odette Amaral, a um canto, resmungou:
- Vou me candidatar à tríade. Ele é tão interessante..."(2)
2. A Voz do Rádio, 11 de abril de 1935.
João Ninguém
Não trabalha um só minuto
Mas joga sem ter vintém
E vive a fumar charuto...
Homenagem à história.
De um amor cheio de glória
Que me pesa na memória.
Nosso amor cheio de glória,
De prazer e de ilusão,
Foi vencido e a vitória
Com a pá do fingimento
E cobriste o nosso amor
Com a cal do esquecimento.
Você foi má
Nunca mais conseguirá
Calcular a imensa dor
Mas vai ter sempre na lembrança
Que o prazer de uma vingança
É maior do que qualquer amor
Em tempo: ao contrário do que observou o Amor, Ismael sabia, sim. Entre os segredos do seu
passado, muitos, ficou guardada uma filha, Marlene, parecidíssima com ele. Mal chegou a conhecê-la.
Sequer quis registrá-la como sua, embora soubesse ser ela o resultado de um mês - apenas um mês - de
paixão por Diva, passista do Estácio, naquele mesmo 1935. Só 36 anos mais tarde pai e filha se
aproximariam. Mas já então muito tempo teria corrido. Chico, Edu, Diva, Noel, os sambas, o Estácio, tudo
se perdia no passado. E o presente de Ismael - cansado, doente e sempre só - fazia-se de tardias homenagens
e velhas memórias.
Só daqui a algum tempo será possível avaliar o quanto a morte do pai
afetou Noel. Em Martha a tragédia deixa marcas visíveis, no rosto sofrido, nos
olhos cansados, nos cabelos que a partir de agora vão embranquecer
rapidamente. Parte do seu mundo acaba de desmoronar. Tem 45 anos e ares de
muito mais. Sente-se abatida, sem forças. E cada vez mais só.
Em Hélio as marcas da tragédia têm a forma de resignação. Surpreende a
todos com sua firmeza. Ou com a sua cada vez mais forte espiritualidade: "Meu
pai não morreu. Está mais vivo que nunca!"
Noel não fala do suicídio com ninguém, nem mesmo com Ceci. Trabalha
normalmente, vai aos programas de rádio, às editoras, aos lugares de sempre.
Como se nada tivesse acontecido.
É muito solicitado para festas e espetáculos em clubes. No sábado anterior à
morte do pai, 27 de abril, já iniciava a verdadeira maratona de recitais que
ocuparão grande parte de seu tempo até o final de 1935. Naquela noite, a convite
de Leonel Azevedo, cantou velhos e novos sambas para os sócios do Light
Athlético Club, na Rua Figueira de Mello, em São Cristóvão. O sucesso foi tanto
que, desde então, os convites não param de chegar, de clubes, grêmios,
associações.
Participa também de espetáculos em teatros da Praça Tiradentes, entre eles
o João Caetano. É ali, durante um ensaio, que encontra Emma D'Ávila, jovem
atriz recentemente chegada do Sul, preparando-se para atuar na revista Rio
Folhes, produzida pela companhia de Jardel Jércolis. Emma está triste, murcha,
sentada a um canto dos bastidores. Mal se conhecem. Noel se aproxima,
pergunta-lhe o que aconteceu.
-É que vamos estrear na sexta-feira, 2 de agosto - explica ela. - Faltam
poucos dias. E eu até agora não tenho uma música para o meu quadro.
Emma diz que a revista é um alegre canto de amor ao Rio, aos bairros da
cidade. Em cada quadro se presta homenagem a um deles, Lapa, Tijuca,
Copacabana, Santa Teresa, Leblon, Estácio.
- O meu quadro éjustamente sobre o Estácio.
- E daí?
- Não tenho uma música original para cantar, falando no Estácio. Todos os
outros artistas vão cantar coisas novas. Eu, não.
- Emma, por isso não precisa ficar mais triste, não - diz Noel
carinhosamente. - Amanhã trago uma pra você.
No dia seguinte, ele aparece de novo no João Caetano. Os ensaios do Rio
Follies estão em andamento. Emma continua triste, pensando no samba que terá
de escolher, entre os muitos que falam do Estácio. Não crê que o compositor vá
cumprir sua promessa. Noel se aproxima mais uma vez.
- Aqui está.
- O quê?
- Um samba pra você. Sobre o Estácio. Não é dos melhores, pois foi feito às
pressas, de encomenda pro seu quadro.
Noel, acompanhando-se ao violão, ensina-lhe o samba escrito
especialmente para ela. Não é dos melhores? Feito às pressas? De encomenda? É
imprevisível este Noel Rosa. Todo cheio de desculpas e no entanto traz para
Emma D'Ávila cantar não menos que um samba irretocável, de melodia
perfeitamente ajustada a uma letra que é ele do primeiro ao último verso. A
simplicidade e a autenticidade do Estácio, sua escola de samba valendo muito
mais do que um palácio de Copacabana. O samba, O X do Problema, não podia
ter sido escrito por outro. Música e letra. Para identificar Noel nelas, bastariam
os dois versos finais:
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê.
Nasci no Estácio
O samba é a corda, eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você.
Uma breve volta à infância, não só pela referência ao choro pra mamar em
ritmo de samba, mas sobretudo àqueles tempos em que Vila Isabel gozava a má
fama de atrair ladrões, seus moradores sempre sobressaltados com assaltos que
ocorriam até nos bondes. Mas esse tempo, garante Noel nos novos versos de
Feitiço da Vila, já passou, todo o bairro podendo se orgulhar de dormir sem
cadeado no portão.
Era a oportunidade que Wilson Baptista esperava para entrar novamente em
ação. Depois que Noel nem ligou para o seu Mocinho da Vila, dando
praticamente por encerrada uma polêmica musical que não lhe convinha, Wilson
saiu de cena. Ainda é um malandreco, ainda anda de chapéu de lado e tamanco
arrastando, num permanente dividir-se entre subempregos e a desesperada busca
de uma chance de se firmar no meio artístico. Acaba de formar com o pianista
Lauro Paiva, o baterista Roberto Moreno e o cantor e compositor Erasmo Silva
um pequeno conjunto que se tem apresentado em cidades do interior fluminense.
Mas quem sabe disso? Quem toma conhecimento de suas músicas? Wilson
continua fiel ao seu sonho: "Ainda vou ser algum troço na vida..." Mas há
sonhos difíceis de realizar. Por isso é preciso aproveitar as oportunidades. Todas
elas. Sabe que nenhum compositor popular brasileiro está tão em evidência
quanto Noel nesses dias em que o Brasil inteiro canta Feitiço da Vila. E não
perde tempo. Certo de que, reabrindo a polêmica, provocando Noel, obrigando-o
a tomar conhecimento do que diz e faz, chamará a atenção do meio musical e
mesmo do grande público para o seu nome, compõe um samba, Conversa Fiada,
que responde literalmente a Feitiço da Vila.
É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço,
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.
E por economia
Pra não gastar seu sangue
Com as pulgas já famintas
Ficava sem dormir.
E o pesado 13
Em uma sexta-feira
Também num dia 13
Faz hoje quase um ano
A cena se passa no Meyer, entre dois namorados: Diogo, ladrão de galinha, e Josefina, cozinheira de
Madame Genoveva. Josefina, depois de muita insistência de Diogo, promete a este deixar o portão aberto.
Diogo penetra à meia-noite no galinheiro de Madame Genoveva e consegue agarrar um galo, por meio de
bomba de gás lacrimejante. Na volta, porém, ele tropeça na lata de lixo... O galo canta uma Canção do Galo
Capão(16) e Madame Genoveva apita:
16. Paródia de Marchinha do Grande Galo, de Lamartine Babo e Paulo Barbosa, gravada por Almirante em 1935.
Diogo levanta com o galo e corre vertiginosamente... mas, ao virar a esquina, é atropelado por uma
carrocinha de leite. Madame Genoveva, que vem correndo de camisola, efetua a prisão de Diogo. Chega o
comissário que leva ambos para o distrito. Madame Genoveva diz que o ladrão de galinha é namorado de
sua cozinheira. O comissário intima Madame Genoveva a voltar no dia seguinte com a cozinheira Josefina.
O comissário canta para Diogo a marcha Roubou, Mas Não Leva(17):
17. Paródia de Ganhou, Mas Não Leva, marcha de Benedicto Lacerda e Milton Amaral, gravada por Almirante em 1935.
Você roubou...
Roubou mas não leva
O galo é da Genoveva!
Você entrou... agarrou o galo e se pirou
Pirou mas tropeçou
Esse capão vagabundo que nem raça tem
E dela e de mais ninguém.
Fim do 1o ato.
O Barbeiro de Niterói
1º ato
Overture
Rosina: Dom Bartolo! Já estou cansada de aturar o senhor e sua casa de secos e molhados!
Dom Bartolo: Calma, Rosina! Estás nervosa hoje, meu benzinho?
Rosina: Sim, senhor! Estou nervosa e o senhor sabe por quê.
Dom Bartolo: Por quê?
Rosina: Então o senhor não sabe que minha neurastenia é causada pelo excesso de trabalho e pela
falta de distração? Eu trabalho mais que uma escrava e me divirto menos que uma freira. O senhor nunca
me deu mil e cem réis para um cinema!
Dom Bartolo:
(canta Condeno o Teu Nervoso)(11)
11. Paródia de Teus Ciúmes, valsa de Lacy Martins e Aldo Cabral, gravada por Sílvio Caldas em 1935.
Condeno o cinema
Que é mau conselheiro
E não é o meu sistema
Esbanjar dinheiro.
(Batem à porta)
Polícia: Abra em nome da Lei!
Dom Bartolo: Ah! É a polícia! Pode entrar! Eu sou negociante nonesto.
Polícia: Nós estamos procurando o bicheiro Alma Viva e... parece que ele entrou aqui!
Dom Bartolo: Viste o Alma Viva, Rosina?
Rosina: Se o senhor não viu, muito menos eu! A última vez que o vi foi anteontem, quando entreguei
a lista que o senhor mandou.
Polícia: Até logo! Se o senhor encontrar esse bicheiro telefone para o distrito.
Dom Bartolo: Está bem!
(Barulho de porta que se fecha)
Rosina: Boa-noite, Dom Bartolo! Já são horas de dormir!
Dom Bartolo: Boa noite, Rosina, e... não se esqueça de levantar mais cedo para conferir a caixa antes
do armazém abrir.
(Na rua)
Alma Viva: Ó, Fígaro! Como vais?
Fígaro: Alma Viva!? A polícia anda à tua procura. Tem cuidado! Todos os meus fregueses da
barbearia já sabem que estás em Niterói!
Alma Viva: Agora, eu mudei de nome e me chamo Lindoro, o empresário. Vou pôr um bigode
postiço e raspar o cabelo. Ficarei horrível e irreconhecível!
Fígaro: Soube que estas apaixonado pela Rosina. É verdade?
Alma Viva: É. E quero que me auxilies.
Fígaro: Por que não cantas agora debaixo de sua janela? Aqui está o meu violão! Rosina é louca por
uma serenata.
Alma Viva: É esta a janela?
Fígaro: É! Pode começar!
Alma Viva: (dá uns acordes no violão e canta)
Dom Bartolo: Ó, seu jardineiro! Vá cantar no jardim zoológico! Eu trabalhei o dia inteiro e... você
não me deixa dormir.
Alma Viva: A serenata não é para o senhor!
Dom Bartolo: Que não é para mim, eu bem sei! Você pensa que Rosina se deixa iludir com cantigas?
Alma Viva: O senhor está fazendo mais barulho do que eu e... daqui a pouco o guarda municipal nos
vem meter o pau!
Dom Bartolo: Eu faço barulho porque estou na minha casa e... ninguém me prende. Você é que vai
preso!
(Apitos, gritaria)
Fim do 1o ato.
2o ato
Em vão te procurei
Noticias tuas não encontrei
Mas, ontem, te escutei
E este bilhete ao Fígaro entreguei.
Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher?
Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher...
Quando ela quer?(14)
14. Primeiros versos de Que Vale a Nota Sem o Carinho da Mulher?, samba de Sinhô, que nada menos de três cantores registraram em disco em 1928: Mário Reis, Vicente Celestino e
Francisco Alves. Embora a gravação de Mário tenha sido lançada um mês antes das dos outros dois (e obtido mais popularidade), dom Bartolo prefere citar a de Chico Viola.
Fim do 2o ato.
3º ato
(Pancadas na porta)
Dom Bartolo: O que deseja?
Alma Viva: Eu sou o empresário, me chamo Lindoro e vim dar uma aula de canto a dona Rosina.
Dom Bartolo: Mas o professor de canto de Rosina é dom Basílio.
Alma Viva: Foi dom Basílio que me mandou substitui-lo hoje, porque ele está com coqueluche.
Dom Bartolo: Sim! Agora estou compreendendo. Tenha a bondade de sentar! Ó Rosina! Rosina!
Rosina: Pronto, dom Bartolo! O que deseja?
Dom Bartolo: Dom Basílio não pôde vir hoje e mandou um substituto para te ensinar a lição.
Rosina: Creio que conheço este meu novo professor. Acho que já o vi no Cinema Poeira!
Alma Viva: Ou então n'alguma gafieira... da Praça da Bandeira.
Rosina: Acho que não! Foi no jardim zoológico...
Alma Viva: É quase isso! Não é bem jardim zoológico, mas é negócio de bicho!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Agora sei de onde o conheço!
Alma Viva: Qual foi a sua última lição?
Rosina: Eu estava aprendendo a ária Precaução Inútil.
Alma Viva: Precaução Inútil? O título é muito bonito! Tenha a bondade de cantar essa ária.
Rosina: Eu hoje estou um pouquinho rouca. Por isso, espero que o senhor não repare...
(canta Precaução Inútil)(15)
15. Paródia de Boneca, valsa de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral, gravada por Sílvio Caldas em 1935. O próprio Noel escreveu uma variante para esta paródia, dando-lhe o título de Seu Zé.
Começa assim:
Eu vi num armazém de Cascadura
Seu Zé vendendo a mil e cem
Trezentos réis de rapadura
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou três mil
Botando água no vinho do barril...
Os versos seguintes são os mesmos de Precaução Inútil, até os dois finais, que ficam assim:
Enfim, eu vi neste seu Zé
Um imortal Pão-Duro!
Lá no Banco do Brasil
Depositou mais de três mil
Botando água no vinho do barril.
(Palmas)
Fim do 3o ato.
4o ato
(Tempestade)
Dom Bartolo: Rosina, tu não deves dar muita importância a esse tal Lindoro, que se intitula
empresário e professor de canto!
Rosina: Por que, dom Bartolo? Ele não é um rapaz distinto?
Dom Bartolo: Que distinto, qual nada! Ele é um malandro que pensa que tu és muito rica e, por isso,
quer casar com o teu dinheiro!
Rosina: O senhor está enganado!
Dom Bartolo: Tu é que estás enganada, Rosina!
(Batem à porta)
Dom Bartolo: Tenha a bondade de entrar.
Dom Basílio: Boa-noite! Aqui estou eu com o senhor reverendo.
Dom Bartolo: Sejam bem-vindos! Como estão molhados! Pensei que não viessem por causa da
chuva! Querem tomar um gole de vinho?
Dom Basílio: Em nome do senhor reverendo... aceitamos a oportuníssima oferta!
Dom Bartolo: Não é bem uma oferta! Vou debitar esses dois cálices na sua conta!
(Gargalhadas)
Rosina: Dom Bartolo, eu ouvi um barulho no armazém e... creio que são ladrões!
Dom Bartolo: Senhores, com licença! Eu vou até o armazém e volto já!
(Batem à porta)
Rosina: Quem é?
Alma Viva: É Fígaro e seu companheiro!
Rosina: Façam o favor de entrar!
Alma Viva: Onde está dom Bartolo, o velho que não tem miolo?
Rosina: Está no armazém, procurando gatunos imaginários!
Fígaro: Por que vocês dois não aproveitam a ocasião?
Alma Viva: Não é propriamente aproveitar a ocasião: é aproveitar o padre, para me casar com Rosina
dentro da casa de dom Bartolo! Tu queres casar comigo agora, Rosina?
Rosina: Não quero! Faço questão de me casar contigo agora mesmo!
(Dom Basílio forçado por Alma Viva a escolher entre uma bala de pistola e um anel de brilhantes,
opta pelo segundo presente e, ao lado de Figaro, torna-se padrinho do casamento. Para a imensa infelicidade
de dom Bartolo, este ao regressar do armazém encontra consumada a união entre o rival e sua pupila. O
enredo chega ao fim quando Fígaro, observando o desânimo de dom Bartolo, filosofa...)
Fígaro: Quando a juventude e o amor estão de acordo para enganar um velho, tudo que este fizer para
impedir deve-se chamar "precaução inútil"!
No caso de Noel, se alguém percebe mais do que meros indícios por trás
dos rascunhos radiofônicos, esse alguém é um húngaro de 38 anos, calvo, bigode
bem cuidado, pele morena, simpático na maioria das vezes, mas austero,
exigente até a rispidez, sempre que o assunto é música. Chama-se Arnold
Glückmann e está no Brasil há quinze anos, daí o português correto que fala,
carregando apenas um pouquinho nos erres brandos ou trocando, por distração, o
gênero de algumas palavras.
Pianista, compositor, regente, Glückmann é desde julho do ano passado o
diretor artístico da Rádio Club do Brasil. Nada se faz ali - nem mesmo os
programas de Almirante - sem sua aprovação. Um músico competente,
respeitado, que teve de trabalhar duro até chegar onde está. Tinha 23 anos
quando desembarcou na Praça Mauá com diplomas obtidos em conservatórios
europeus, mas de pouco valia num país de mornos interesses pela música erudita
e acirrados preconceitos contra artistas vindos de fora para competir com os da
terra. Bom pianista, começou ganhando a vida tocando onde quer que lhe
pagassem, fosse como acompanhante de cantores líricos medíocres em recitais
de caridade, fosse em casas de música. Numa dessas casas, na Avenida Rio
Branco, perto do Jornal do Brasil, seu trabalho era demonstrar aos fregueses as
qualidades de um piano fabricado no Paraná e vendido ali com exclusividade.
Mas tinha valor demais para tão pouco. Ajudado pelo maestro Francisco Braga -
o mesmo do Hino à Bandeira - foi conquistando lugar nas salas de concerto da
cidade. A 12 de agosto de 1925, já o encontrávamos no palco do Teatro
Municipal acompanhando o violinista Lambert Ribeiro num programa de peças
de Bach, Tchaikovsky, Paganini, Paderewsky, Kreisler e do próprio Lambert. E
há seis anos, mais precisamente na tarde de 24 de outubro de 1929, movia a
batuta à frente de grande orquestra, no mesmo Municipal, na execução do
Concerto em Si Bemol Maior, de Tchaikovsky. Ao piano, estreando na Capital
da República, um gaúcho de 23 anos que acabara de chegar aqui cheio de
ambições. Seu nome: Radamés Gnattali.
Foi ainda Francisco Braga quem indicou Glückmann para organizar a
primeira orquestra da Rádio Club, logo após a fundação da emissora em 1924.
Simpático na maioria das vezes, foi aí que o maestro revelou seu outro lado, a
austeridade, a rispidez, a intolerância no trato com os músicos sob seu comando.
E tem sido assim até hoje, difícil, apegado a minúcias, capaz de grandes zangas
quando ouve uma nota fora do lugar. Zangas que já fazem parte do anedotário da
PRA-3. Por exemplo, a seção que A Voz do Rádio publica sob o título Mentiras
Radiofônicas, com venenosas brincadeiras envolvendo o pessoal do meio, não
vai poupar o maestro. A seção é feita de frases deste tipo: "Carmem Miranda não
é portuguesa", "Gastão Formenti tem uma boca pequena e bem-feita quando ri",
"
Ary Barroso é gozado", "A ex-artista de rádio, Aracy Cortes, tem apenas 31
anos de idade", "Noel Rosa e Lamartine Babo são as mais bonitas figuras
masculinas do rádio". Do exigente músico, dirá:
"O maestro Glückmann é a pessoa mais cordata deste mundo."(21)
21. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
1o ato Prelúdio
Helena: Meu querido! Já faz um mês que nos amamos e tu ainda não me disseste o teu nome, nem a
tua profissão!
Joaquim: Não te disse porque isso para mim não tem importância! Mas se queres saber... eu me
chamo Joaquim.
Helena-. Joaquim?! Joaquim de quê?
Joaquim: Joaquim Barbosa, brasileiro, solteiro, com 22 anos, vacinado, reservista e advogado, com
escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29º andar... Estás satisfeita agora, queridinha?
Helena-. Então tu és advogado e tens escritório na Avenida, hein? Eu bem que desconfiava, mas o
que eu mais desconfio é da sinceridade do teu amor...
Joaquim: Tu não tens razão para duvidar de mim... Fica sabendo que eu dou a vida pelo teu amor!
(canta o samba-canção Tudo Pelo Teu Amor)
(Barulho de trem)
Dr. Henrique: (zangado) Minha filha! O que você faz aqui no portão com este desmiolado? Você
bem sabe que eu não quero você fora de casa depois das dez horas da noite!
Helena: Calma, papai! Não há motivo para você ficar tão zangado! Eu fui ao cinema e este rapaz veio
me acompanhar até aqui...
Dr. Henrique: Qual cinema, qual nada, minha filha! Já estou cansado de ouvir mentiras. Este rapaz é
seu namorado! Toda vizinhança já sabe disso...
Joaquim: Doutor Henrique, permita que eu me apresente...
Dr. Henrique: Eu dispenso a sua apresentação. Vá-se embora! Suma-se daqui!
Joaquim: Mas... doutor Henrique! Eu me chamo Joaquim e sou advogado...
Dr. Henrique: Já cansei de pedir para você sumir daqui...
(canta o samba Cansei de Implorar)
Já cansei de implorar
Pra você desguiar
Dizendo que a minha filha
Ainda é muito moça para namorar
Helena: Papai! É inútil você desfeitear o Joaquim! Eu gosto dele e não me casarei com outro!
Dr. Henrique: Ah! Ele se chama Joaquim? Mas... Joaquim de quê? Onde trabalha?
Joaquim: Joaquim Barbosa, advogado com escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29°
andar!
Dr. Henrique: Mas eu ignoro as suas intenções com minha filha!
Joaquim: As minhas intenções são as melhores possíveis... (canta a valsa Boas intenções)
Dr. Henrique: Como é para o bem de todos nós e... felicidade completa de minha filha Helena... eu
consinto que ela seja sua noiva! Mas olhe lá... (canta a marcha Para Bem de Todos Nós)
Joaquim e Helena:
(juntando-se ao Dr. Henrique, cantam a segunda parte de Para Bem de Todos Nós)
Fim do 1o ato
2o ato
(Técnica: ambiente de bonde)
Condutor (Joaquim): Olha à direita! A direita!
Dr. Henrique: Não olhe, não, minha filha! Deixe lá essa carroça!
Helena: Para que você quer ir ao escritório do Joaquim? Vai consultá-lo?
Dr. Henrique: Não vou procurá-lo como cliente! Apenas quero ver seu escritório!
Helena: Ora essa, papai! Você desconfia do Joaquim?
Joaquim: Faz favor...? A sua passagem...? Faz favor...?
Helena: Oh! Que horror...! Olhe, papai! O Joaquim...!
Dr. Henrique: O que, minha filha?
Helena: O Joaquim é condutor! Que falso! Que miserável! Bem que papai tinha razão! (canta a
marcha O Joaquim É Condutor)
Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim é condutor
Quase que a cara me cai
Estou mudando de cor.
Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim não é doutor
No bonde agora ele vai
Sempre a dizer "faz favor!"
Helena:
Eu sou condutor
Mas não há doutor
Que te ame assim... assim
Dr. Henrique: Qual charuto, qual nada! Eu dou é um cachimbo de turco a você para você nunca mais
me amolar!
Joaquim: Não sabia que se comprava cachimbo a prestação!
Dr. Henrique: Mas... que prestação?
Joaquim: De cachimbo!
Dr. Henrique: Que cachimbo?
Joaquim: Cachimbo turco!
Dr. Henrique: Por falar em turco, o senhor é mais cacete do que o turco da prestação!
Joaquim: Que prestação?
Dr. Henrique: De bofetão.
Joaquim: Que bofetão?
Dr. Henrique: Bofetão na cara dos tipos incorrigíveis como você!
Joaquim: Pelo que vejo o senhor gosta de uma palestra.
Dr. Henrique: Isso de palestra é jogo para São Paulo...! Você é um tipo que está em toda parte sem
ser nada em parte alguma! Você é capaz de trair um amigo por causa de 200 réis e de matar uma família
inteira por causa de uma média com pão e manteiga. Você é um tipo que não existe nem nas tipografias.
Você é um tipo que não tem tipo. É um tipo desclassificado. O seu nome devia ser "Tipo Zero" (canta o
samba Tipo Zero)
Jota Barbosa: Ó Joaquim, meu rico filho! Ando à tua procura há três dias. Soube que eras condutor!
Estás maluco?
Dr. Henrique: Quem é o senhor?
Jota Barbosa: Eu sou banqueiro e me chamo Jota Barbosa! E sou pai do Joaquim!
Helena: Jota Barbosa...? Ah! Conheço de nome! O senhor é dono de vários cinemas na Europa, não
é?
Jota Barbosa: Perfeitamente, senhorita. E agora estou para comprar uma mina de bronze na China!
Dr. Henrique: É melhor o senhor comprar o bonde do seu filho.
Helena: Então o Joaquim quis ser condutor de bonde para contrariar o senhor?
Jota Barbosa: Justamente, senhorita. Nós discutimos e ele resolveu sair de casa dizendo que não
precisava nem de mim e nem do meu dinheiro.
Dr. Henrique: Por que brigaram?
Jota Barbosa: Porque o Joaquim queria se casar com uma tal de Helena!
Helena: Tudo por minha causa, Joaquim...? Desta vez quem te pede perdão sou eu.
Joaquim: Tu não tens culpa, queridinha.
Dr. Henrique: Os senhores não desejam entrar para tomarmos chá?
Jota Barbosa: É muito incômodo! Já é muito tarde!
Helena: Aceite, senhor Barbosa! O prazer é todo nosso!
Jota Barbosa: Nunca pensei que a senhorita fosse tão gentil e... tão bonita!
Dr. Henrique: E eu nunca pensei que minha filha tivesse um sogro tão amável e... tão rico!
Helena: Tenham a bondade de entrar. Não façam cerimônia. Façam de conta que estão em casa! (os
quatro cantam a marcha Tudo Nos Une)
Finaletto
Joaquim, Helena e Dr. Henrique:
(cantam com a mesma melodia de Tudo Pelo Teu Amor)
Joaquim:
Helena:
Dr. Henrique:
Joaquim:
Helena:
Os três:
E quando se manifesta
O que merece é entrar no açoite
Ela é mais indigesta do que prato
De salada de pepino à meia-noite.
Vizinhas que nem sempre dizem a verdade, como esta que ele retrata em
Mentiras de Mulher:
São mentiras de mulher,
Pode crer quem quiser...
Esta vizinha que alerta Lindaura pode adorar uma intriga, mas não se pode
dizer que tenha mentido: Noel e Fina realmente conversavam perto do Jardim
Zoológico. E têm conversado muito por aí, quase que como nos velhos tempos.
Pode parecer incrível, mas a ex-namorada ainda não sabe que ele se casou. Que
esteve meio doente, passando uma temporada em Belo Horizonte, isso o próprio
Noel lhe contou. Mas só. Para ela, está tudo como antes. A única diferença é que
Noel anda ocupado demais, programas de rádio, espetáculos em teatros e
cinemas, gravações.
- Onde é que mora essa tal de Fina?
A vizinha dá o endereço: Rua Moju, 5. Na noite seguinte, Noel tem um
espetáculo para fazer no Cine Meyer, com outros artistas de rádio. Desta vez
Lindaura deixa que ele vá só. Pouco depois do jantar, sai de casa, toma o bonde
no Ponto de 100 Réis, dirige-se para a Barão de Bom Retiro. Em quinze minutos
está batendo no número 5 da Rua Moju. Dona Luísa chega à janela.
- Boa-noite.
- Boa-noite.
- Por favor, não mora aí uma moça... - e Lindaura começa a descrever Fina
segundo as informações da vizinha.
- Sim, é a Fina, minha neta - diz dona Luísa.
-Pois é, eu a vi entrar aqui outro dia. Sou uma vizinha nova, estou atrás de
uma moça de minha idade para me acompanhar ao cinema. Um festival de
artistas de rádio no Cine Meyer. Será que ela gostaria de ir comigo?
Dona Luísa grita lá para dentro.
- Fina! Ó Fina, minha filha. Está aqui uma moça te procurando!
Fina estava no banho, vem enrolada na toalha. A avó explica-lhe que a nova
vizinha gostaria de ter companhia para o cinema.
- Muito prazer - balbucia.
- Prazer.
São muito comuns, nestes tempos e neste lugar, amizades que se fazem
assim, sem cerimônia, uma moça convidando para um cinema, um passeio, uma
festa de família, a nova vizinha que acaba de conhecer de vista. Um espírito de
vizinhança aproxima rapidamente as pessoas nos bairros como Vila Isabel e
Engenho Novo, a pouca intimidade ou mesmo o desconhecimento sendo
quebrado pela mais absoluta falta de protocolos. Por isso, ninguém estranha,
nem dona Luísa, nem Fina, que Lindaura apareça assim, querendo fazer
amizade, apresentando-se por conta própria.
- Artistas de rádio?
- É. Alguns dos melhores. Luís Barbosa, Noel Rosa, muitos...
- Está bem. Vou me arrumar. Amizades que se fazem sem cerimônia e com
muita rapidez. Menos de uma hora depois, Lindaura e Fina estão entrando de
braços dados no Cine Meyer, como velhas e íntimas amigas. Há muitos
motoristas de táxi na platéia, vários deles conhecidos de Noel, de modo que, ao
verem entrar e sentar-se juntas as duas mulheres, a primeira reação é de surpresa.
Depois, porém, vem o pânico. Um deles levanta-se, vai até a porta por onde
devem ingressar os artistas e fica ali parado, esperando Noel. É preciso avisá-lo.
Lá dentro, tranqüilas, Lindaura e Fina. Noel chega.
- Pelo amor de Deus, Noel, não entre neste cinema.
- O que aconteceu?
- Você nem imagina quem está com tua mulher lá dentro, - Minha mulher?
- Sim, sentadas lado a lado.
- Linda e quem?
- Dona Linda e Fina.
É evidente que Noel não entra. Pede que se avise aos outros artistas que
motivos de força maior o impediram de participar do espetáculo. E trata de ficar
no botequim da esquina até que a função termine. Enquanto isso, Lindaura e
Fina assistem ao desfile de cantores, instrumentistas, contadores de piadas, todos
os artistas do programa. Todos menos Noel. As duas, cada qual por um motivo,
ficam frustradas. Por que será que Noel não apareceu? Talvez tivesse outro
compromisso. Talvez os organizadores do espetáculo usassem seu nome para
atrair gente. Talvez.
Dez e pouco, saem as duas no meio de um público que gostou muito do que
ouviu, apesar da ausência de Noel. O mesmo motorista que o alertou aproxima-
se de Linda e Fina.
- Estou indo para Vila Isabel, dona Linda. Quer carona?
Noel vê de longe as duas entrarem no carro. Sai do botequim e vai com
cuidado até a porta do cinema. Outro motorista amigo está por ali, Noel pede-lhe
para seguir o táxi que acabou de partir, tomando o caminho da Dias da Cruz, 24
de Maio e, depois, estação do Engenho Novo até a Barão de Bom Retiro. O
segundo carro vai a uns 100 metros de distância do primeiro, Noel do lado de
fora, em pé no estribo, agarrado no suporte da capota de lona. O carro da frente
entra na Rua Moju, Noel pede que o amigo motorista freie. Observa Linda se
despedindo de Fina e voltando para o carro, que prossegue na direção de
Visconde de Santa Isabel. Noel agradece ao amigo, salta e corre para a casa de
Fina. Assim que ela atravessa o portão, ele a segura pelo braço.
- Noel! Você aqui?
- Aonde é que você foi?
- Ao cinema com uma amiga. Aliás, você também devia ter ido. Não estava
entre os artistas que iam se apresentar esta noite no Cine Meyer? Por que não
foi?
- Não pude. Quer dizer que a moça é sua amiga?
- Sim, nos conhecemos hoje. É muito boazinha. Chama-se Lindaura.
- Só isso?
Fina não entende bem a pergunta. Não faz mal. Ao se certificar de que ela
não sabe de nada, Noel desconversa. Mas terá sido mesmo uma simples
coincidência? Um desses terríveis acasos? Ou haverá algo mais por trás dessa
nova e inquietante amizade entre as duas mulheres? Noel e Fina conversam por
algum tempo no portão, até que ele se vai. Em casa, encontra Lindaura
preparando-se para dormir. É melhor não lhe perguntar nada. Aliás, os dois
preferem não tocar no assunto.
Dias depois, sabendo que Noel foi convidado para cantar numa tarde
dançante na sede do Andaraí Atlético Clube, na Praça 7, Lindaura volta à casa de
Fina. Sempre a propósito de querer companhia, convida-a para irem juntas
dançar um pouco. No domingo, às cinco da tarde. Se Fina quiser, pode dormir na
casa de Lindaura, ali pertinho.
O Andaraí é um clube decadente mas familiar. A comunidade do bairro
anda empenhada em tornar sua sobrevivência menos penosa. Tem um time de
futebol que disputa, Deus sabe como, o Campeonato Carioca. Sofrer goleadas
faz parte de sua rotina, até que uma dessas goleadas acabe funcionando como um
tiro de misericórdia e liquide de vez o pobre Andaraí. Essas tardes dançantes
visam arrecadar um dinheirinho para ajudar o clube a se manter. Apesar do
nome, o Andaraí pertence muito mais a Vila Isabel do que ao bairro vizinho.
Todo o mundo aqui é um pouco torcedor desse saco de pancadas dos campos do
Rio. Noel inclusive. Ele que nunca foi mesmo de se interessar por futebol(1).
1. Por que clube torcia Noel Rosa? Provavelmente por nenhum. Jacy Pacheco nos informa em Noel Rosa e Sua Época (página 50) que o primo "era mengo". Lindaura de Medeiros Rosa já
diz ter "a impressão" de que o marido torcia pelo América. Assim como Lamartine Babo, Sílvio Caldas, Francisco Alves e Mário Reis. Este, porém, autoridade tanto em Noel como em futebol, garantiu
aos autores: "Ele não ligava pra isso. No máximo, torcia pelo Andaraí ou um daqueles clubezinhos decadentes de Vila Isabel." Velhos amigos de bairro, entre eles Arnaldo Araújo e Affonso Guimarães, o
Affonsinho da Copa do Mundo de 1938, concordam com Mário. Noel vivia o futebol meio à distância. Interessava-se, apenas, pelo destino dos modestos clubes do lugar, o Vila, o Confiança, o Andaraí,
condenados a desaparecer. O Andaraí disputava o Campeonato Carioca de Futebol desde 1916 (ausentando-se apenas nos anos de 1925 e 1926). E quase sempre andara rondando os últimos lugares. Foi
menos mal nas disputas de 1933 a 1936, quando a cisão causada pela implantação do profissionalismo enfraqueceu a entidade a que pertencia (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, depois
Federação Metropolitana de Futebol). Com a pacificação em 1937, levaria o tiro de misericórdia. Voltando a enfrentar os chamados "grandes" do futebol da cidade, perderia 41 pontos em 44 possíveis no
Campeonato Carioca daquele ano e ainda por cima sofreria para o Vasco da Gama, no segundo turno, uma impiedosa e humilhante goleada de doze a zero. Nunca mais participou da divisão principal.
Conta-se que o negro Arubinha, famoso macumbeiro de Vila Isabel, fiel torcedor do Andaraí, tomou-se de tal ódio que enterrou um sapo no campo de São Januário como parte de um "trabalho" para que
o Vasco da Gama completasse dez anos sem ser campeão. Em 1945, ao iniciar-se o oitavo ano da "escrita" e o nono sem seu time conquistar um título, os dirigentes vascaínos mandaram revolver todo o
gramado na esperança de neutralizarem os maus fluidos do tal sapo. Deu certo: meses depois o Vasco da Gama se sagraria campeão invicto. De qualquer forma, naquele 1935 em que Fina e Linda foram
juntas ao baile na sede da Praça 7, o Andaraí ainda fazia força para sobreviver. E Noel, como tantos moradores do bairro, ajudava como podia.
FITA DE CINEMA
E um novo pretendente
Aparece de repente
Do cavalo dando um salto
Pegou na mocinha e gritou:
"Mãos ao alto!"
O mocinho neurastênico
Avançou no tal bandido
Levando um tiro bem no peito
E outro dentro do ouvido.
Com Noel, Lamartine não tem feito tantas músicas como era de supor a
partir da preocupação com a originalidade que, há seis, sete anos, parecia
aproximá-los. Mesmo assim, ainda é possível se unirem para compor com vistas
ao carnaval de 1936 uma marcha que é bem a soma de seus talentos e
temperamentos: Menina dos Meus Olhos.
Menina dos olhos castanhos,
Que reside lá na serra,
Bem juntinho de Deus...
Tu és a menina dos meus olhos,
Estou cego de saudade
Pelos olhos teus.
Quem devia gravar a marcha era a dupla Joel & Gaúcho. Acontece que na
noite anterior Joel de Almeida saiu com Russo do Pandeiro para uns goles pelos
botequins da Central. Goles de boêmios sedentos, destes que quanto mais se
sorvem, mais aumentam a sede. Quando Joel chegou em casa na Praça Saenz
Pena, já de manhã, avisou à mãe:
- Tenho uma gravação à uma da tarde. Vou tirar um cochilo, mas a senhora
não esquece de me chamar antes do meio-dia.
Mas a mãe de Joel, vendo-o dormir tão profundamente, depois de uma noite
em claro, ficou com pena de acordá-lo. E ele perdeu a hora. No estúdio da
Victor, pouco antes da uma, mister Evans, sempre impaciente, procurava pelo
parceiro de Gaúcho. Os minutos foram passando, os músicos de Pixinguinha
entraram no estúdio, Gaúcho e o pessoal do coro também. E Joel? Nada. Mister
Evans, uma hora em ponto, sentenciou: - Vamos gravar sem ele.
-Mas ensaiamos para uma dupla, mister Evans - protestou Gaúcho.
- Não interessa. Vamos gravar já! Se quiser, arranja alguém para cantar com
você. Por que não aquele moço afinadinho do coro? - e apontou para um mulato
magro, de olhos rasgados, tímido, encolhido a um canto.
- Está bem - concordou Gaúcho.
O moço afinadinho chamava-se Orlando Silva. Graças à farra do Joel, ele
acabou fazendo dupla com Gaúcho em Menina dos Meus Olhos, depois de
ensaiar às pressas, ali mesmo, no estúdio, acompanhado pelo piano de José
Maria de Abreu.
Além de cinema, Lamartine Babo gosta de cassino. Por esta época, vai a um
deles - Beira-Mar, Atlântico, Urca - todas as noites. Mas não joga. Pelo simples
fato de não ter dinheiro. Essa é uma época de dificuldades para ele. Às vezes mal
tem para comer. Nessa história de sentar-se à mesa de um café, comer e não
botar a mão no bolso, ou de ir ao cassino, acompanhar todas as rodadas da roleta,
ou todas as mãos do carteado, sem comprar uma ficha, Lamartine goza no Nice a
fama de "vagolino"(3).
3. O termo tanto podia significar "vagabundo", "folgado", como também algo parecido com o atual "bicão", como era mais o caso de Lamartine.
No dia em que o filme Picolino (Top Hat) estréia no Rio, com Fred Astaire
e Ginger Rogers formando um par inesquecível, as canções de Irving Berlin
conquistando todas as platéias, Noel vai-se inspirar numa delas, Cheek To
Cheek, para criar uma paródia em homenagem ao amigo Lamartine:
Esse Vagolino
Que atrapalha o movimento do cassino,
Com seu jogo complicado e pequenino,
Na roleta ele é um pente-fino.
Perguntou ao pagador
Por que é que o diretor
Não põe em circulação
Fichinhas de tostão.
Uma paródia que é tão bem recebida que chega a ser publicada num jornal
de modinhas(4), só que com o título de Virgulino do Cassino, o Vagolino da
letra cedendo lugar a um intrometido Virgulino. Engano ou o próprio Noel fez a
mudança?
4. Jornal de Modinhas, 24 de outubro de 1936.
De qualquer modo, para Noel a vida não é mesmo séria. Ou é tão séria
quanto uma fita de cinema, divertida mas quimérica. Ou como o dinheiro e a
mulher, dois dos principais motes de sua poesia, valores pelos quais tanto se
briga e que mais cedo ou mais tarde acabam parando em mãos alheias.
Difícil precisar a causa maior desse pessimismo, se tantas batalhas travadas
e perdidas pelo pai, para acabar daquela forma, atado aos pés de um leito de
hospício, ou se aos pulmões escangalhados. Mas por que não a soma de tudo isso
ajudando a emergir o temperamento, senão autodestrutivo, ao menos de
desapego à vida de um Noel que ninguém conhecerá jamais?
Nem mesmo Ceci. Ele, sim, é que a conhece como ninguém.
- Sabe como é que eu sei que você está mentindo?
- Não.
- Pelos olhos.
O princípio de esmorecimento não chega para arrefecer-lhe os ciúmes. Ceci
tem mudado de emprego com freqüência, Apollo, Roxy, Assyrius, já pensando
em aceitar proposta para ganhar um pouco mais no Royal Pigalle. E quando
Noel não está por perto, muda também de companhia. Continuam brigando
muito, vivendo cenas, trocando insultos. Ele pode até segurá-la pelos braços,
dizer-lhe malquerências. Mas já não é tão convincente quanto antes, os
xingamentos bem menos ofensivos. Ceci, nos momentos de paz, procura cuidar
dele. Repreende-o : - Você é um artista de rádio, Noel. Tem de se vestir bem, se
preocupar com a aparência. Olha essas unhas.
Leva-o à manicure. Noel senta-se diante da moça e estende-lhe as mãos
magras. As unhas estão realmente maltratadas, grandes, sujas. A moça pede-lhe
que mergulhe os dedos numa pequena vasilha de água morna. Ceci está do lado,
observando. Puxa assunto com Noel, nota que ele acompanha com atenção os
movimentos da moça, agora cortando-lhe as cutículas, bem rentes, em alguns
momentos chegando a feri-lo. Noel, num impulso, levanta-se: - Moça, Ceci...
Desculpem-me, só agora me lembrei de que tenho um compromisso inadiável...
É ali pertinho. Esperem que não demoro.
Nunca mais fará as unhas. Nem tampouco cuidará dos dentes, a ida ao
dentista sendo um suplício maior para ele do que para qualquer outro, obturações
e curativos tornando-se mais dolorosos pela dificuldade em abrir a boca. O
defeito agravou-se com o tempo.
É muito amigo de Joaquim Bruno de Moraes, um dentista que mora e tem
consultório quase em frente ao chalé. Sempre que se vêem, passam bom tempo
conversando. Sobre política, espiritismo e samba. Seu Bruno (prefere que o
chamem assim do que por "doutor", já que é apenas prático licenciado) tem uns
vinte anos mais que Noel. Costuma contar-lhe passagens de sua atuação política,
tempos atrás, em Botucatu, Sorocaba, Votorantim e outros pontos do interior
paulista. Liderou greves de operários, andou fugindo da polícia. Foi para não ser
preso que veio parar no Rio, na tranqüila Vila Isabel. Fala com emoção, também,
de velhos companheiros de causa, anarquistas italianos que chegaram ao Brasil
no começo do século e que, consta, as forças de repressão do Marechal Hermes
fizeram sumir como fumaça. O dentista era muito jovem naquela época, mas já
simpatizava com causas em defesa de uma sociedade mais justa, ricos menos
ricos, pobres menos pobres, ou mesmo sem pobres nem ricos. Hoje, seu Bruno é
um comunista animado pela esperança de que o Brasil ainda possa fazer uma
revolução como a da Rússia em 1917. Acredita nisso. Mesmo que, no ano
passado, uma tentativa nesse sentido tenha sido esmagada rapidamente. O que
não o desanimou: continua distribuindo folhetos conclamando os trabalhadores
de todo o mundo a se unirem. Folhetos que o prróprio Noel passa adiante.
O espiritismo é um dos assuntos que mais interessam a seu Bruno. Neste
país de tantas bizarrias, ele é um dos muitos comunistas que, materialistas até a
raiz dos cabelos, acreditam na reencarnação, Karl Marx e Allan Kardec
coexistindo pacificamente. Quanto ao samba, o dentista é apenas um ouvinte,
apreciador da arte do amigo e vizinho Noel Rosa.
Joaquim Bruno de Moraes sempre recomendou a este cliente especial que
cuidasse dos dentes. Os posteriores estão muito estragados, alguns
possivelmente não têm mais jeito. O fato de não doerem não quer dizer nada.
Além de tudo, não adianta Noel beber cerveja ou conhaque como recurso para
disfarçar o mau hálito. É pior, as pessoas o sentem sem que precise chegar muito
perto. O que Noel já havia notado (daí o hábito de usar a mão em concha sobre a
boca quando fala com os outros). Ouve os conselhos do dentista e, em troca,
mente: - Qualquer dia desses venho aqui começar um tratamento.
Também nas questões de dinheiro Noel Rosa é homem difícil de se
compreender. Detesta emprestar, não se importa em dar. Se um amigo ou mesmo
um estranho o aborda num botequim, à porta de uma estação de rádio, na rua,
mordendo-o sem cerimônia - "Tem algum aí, Noel? Quando puder eu te pago..."
- ele tira do bolso o que lhe sobra, põe na mão do outro e esquece o assunto.
Nunca cobrará a ninguém, como também não gosta de ser cobrado. Na verdade,
tem pavor a dívidas, bastando-lhe as que conheceu na infância, os prestamistas
asfixiando toda a família, ou aquelas outras do negócio com Francisco Alves a
propósito do Pavão.
Mas este mesmo Noel, desprendido, indiferente ao "vil metal", pode
surpreender as pessoas. Por exemplo, entregando ao Papagaio um maço de notas
para que ele mande reformar seu carro de praça:
- É o seu ganha-pão. Cuide bem dele.
E negando a Ceci 100 mil réis para que ela compre um soirée. Em vez disso
fará novo samba de parceria com Vadico, dando-lhe por título exatamente a
quantia que negou à amante: (Cem Mil Réis)
Você me pediu cem mil-réis
Pra comprar um soirée
E um tamborim
O organdi anda barato pra cachorro
E um gato lá no morro
Não é tão caro assim.
De soirée
Você num baile se destaca,
Mas não quero mais você
Porque não sei vestir casaca.
Casé anda sempre muito preocupado com os concorrentes. Sabe que, nesse
negócio de rádio, a criatividade é tudo. O ouvinte adora novidades, vive
permanentemente à espera de uma primeira audição. É por isso que agora, mais
que nunca, recomenda ao seu cast um cuidado maior para que se evitem
repetições. Aos humoristas, pede novas piadas. Aos cantores, que tratem de
incluir em seus repertórios canções inéditas. Chega a prometer 100 mil réis de
abono a cada intérprete que apresentar um número inédito em seu programa.
Noel não perde tempo.
- Tenho um samba novo para hoje, Casé.
- Qual?
- Você Me Pediu.
Casé, péssimo ouvido, pior memória, não nota que o "novo samba" nada
mais é do que Cem Mil-Réis com outro título. Semana após semana, Noel
consegue passar o dono do programa para trás, sempre na base de outros títulos
para o mesmo samba: Soirée e Tamborim, Não É Tão Caro Assim, Barato Pra
Cachorro. E vai ganhando abonos por conta do desligamento do Casé. Até que
este descobre tudo.
- Francamente, Noel, você não tem jeito!
De outra vez, garante a Casé que tem mesmo uma primeira audição para
lançar no programa do próximo domingo.
- Qual o título? - pergunta o outro já desconfiado.
- Ilusão - responde Noel.
Chegado o dia, Casé vai para o estúdio acompanhar de perto a tal primeira
audição. Com ele ali, Noel não terá coragem de pregar-lhe mais uma peça. São
todos chamados para ouvir, os outros cantores, músicos, pessoal técnico,
locutores, funcionários de rádio.
- É uma primeiríssima audição - diz Noel criando expectativa cada vez
maior.
É então que ele canta:
Seu garçom faça o favor
De me trazer depressa...
A ilusão, no caso, era a do Casé. De que Noel, desta vez, cumpriria a
promessa de lhe trazer uma novidade.
Sua falta de pontualidade faz parte do folclore do programa. Ou melhor, as
desculpas que ele dá ao Casé, beirando o inacreditável, vão sendo ouvidas e
passadas adiante pelos outros artistas: - Desculpe, Casé, mas furou o pneu do
bonde.
Ou então:
-Me esqueci de onde era a Rádio Sociedade e fui parar em Cascadura. Ou
ainda: - Sinto muito, Casé, mas hoje não pude chegar mais tarde.
Ademar Casé ainda esboça começos de zanga que ele próprio, o primeiro a
rir das desculpas de Noel, desmoraliza. Mas a questão do horário é importante.
Sendo Noel o contra-regra, o ideal é chegar à rádio às onze e meia, isto é, meia
hora antes da abertura do programa. Assim, teria tempo de sobra para saber com
que artistas contaria, a que horas e em que ordem se apresentariam. Mas as
noites de sábado são longas, invadem sem cerimônia as manhãs de domingo, é
quase impossível Noel acordar antes que a sirene e os primeiros acordes de
Gallito anunciem que o Casé já está no ar. No vão da escada, atrás do piano de
Hervê Cordovil, no banheiro das mulheres, em muitos lugares Noel se esconde
quando não está disposto a inventar desculpas. Ou quando Casé não está com
humor para ouvi-las. Mas basta que o contra-regra troque a papeleta de
programação pelo violão e o cantor Noel Rosa ocupe o microfone para que Casé
esqueça seus atrasos. Por exemplo, quando ele interpreta Cabrocha do Rocha,
primeira parte de Sílvio Caldas, segunda sua, os dois registrando como cronistas
atentos essa mania que certos malandros têm de falar carregando nos x e nos ch:
- Poxxxxxxa! Chhhhhhhhato...
Eu tenho uma cabrocha
Que mora no Rocha
E não relaxa.
Mas nem sempre torna as coisas difíceis para o Casé. Às vezes chega a
prestar-lhe favores, embora sempre a seu modo.
- Um favor de amigo, Noel.
- Pois não.
- O doutor Oscar vai dar uma grande festa para os seus empregados depois
de amanhã, no Dragão. Além de patrocinador, é grande amigo do programa.
Precisamos ter um artista nos representando nessa festa. Gostaria que fosse você.
- Conte comigo, Casé.
Noel vai. O local está enfeitado, mesa de doces, salgadinhos, o barril de
chope mais adiante. É perto do barril que ele se instala. Lá para o final da festa,
Casé aparece para ver como estão as coisas. Percebe no ar um certo
constrangimento, os empregados da loja olhando para ele. Pergunta por Noel.
Será que não veio?
- Veio sim - informa um dos empregados. - Está lá em cima.
Ainda sob os olhares de todos, Casé vai até o andar superior. Justamente o
local da festa, da mesa de doces, do barril de chope. E encontra Noel, deitado a
um canto, bêbado, uma poça de vômito tendo afugentado dali todos os
convidados da festa de O Dragão.
De vez em quando Casé tenta aconselhá-lo. Chama-o à saída do programa,
pergunta se não quer uma carona de carro até Vila Isabel. Durante a viagem, fala
como amigo, quase como pai. Por que não toma jeito? A vida desregrada já lhe
trouxe problemas, obrigando-o a um período de tratamento em Belo Horizonte.
Já não é hora de levar a vida a sério, de agir como todo o mundo? A poucos
metros da Rua Carlos Vasconcellos, na Tijuca, Noel o interrompe.
- Pare o carro aqui, Casé.
- Onde?
- Aqui. Em frente à delegacia.
Casé obedece, mesmo sem entender. Vê Noel saltar do carro, caminhar em
volta como se a procurar alguma coisa no chão.
-Agora põe o carro em movimento, Casé.
- Que história é essa, Noel?
-Ligue o motor. Quando eu mandar, acelera.
É então que Noel faz seu braço girar em círculo, à maneira dos atletas
lançadores de disco, e joga um pedregulho na janela envidraçada da delegacia.
Voam estilhaços por todo lado. Ele dá uma gargalhada.
- Pé na tábua, Casé! Pé na tábua! Não é a primeira vez que Noel perturba
uma delegacia de polícia. Tempos atrás, quando voltava com João de Barro de
uma festa de São João em Jacarepaguá, decidiu soltar buscapés. A fim de tornar
mais emocionante o brinquedo, Noel cortou as flechas que guiam os foguetes.
Sem direção, um deles entrou, assobiando, dentro de uma delegacia próxima.
Mais adiante, Noel decidiu-se vingar de um homem que não apreciava suas
cantorias de madrugada, reclamava que lhe tiravam o sossego.
- Conheço um careca que não gosta de serenatas. Vamos fazer uma serenata
de bombas para ele.
Noite alta, juntaram os fogos que lhes sobravam e os colocaram
estrategicamente dentro do porão do homem. Fizeram o rastilho de pólvora.
Noel acendeu. A casa quase veio abaixo.
Em outra carona com Casé, o sermão é estritamente profissional. Por que
ele não se fixa num só programa em vez de cantar aqui e ali como judeu errante?
Os ouvintes nunca sabem onde encontrá-lo. E é preciso respeitar os
compromissos, não faltar, não chegar atrasado. Hoje em dia, até o Sílvio Caldas,
outro nômade do microfone, já sentou pé, cantor exclusivo do próprio Casé,
obedecendo direitinho aos tratos e horários. Noel interrompe-o mais uma vez.
- Dá pra aumentar um pouquinho esse teu rádio?
Casé é uma das poucas pessoas do Rio que tem rádio no carro. Não por
luxo, mas por necessidade. Precisa estar informado sobre tudo que acontece na
sua e em outras emissoras, os novos programas, os artistas que começam a se
revelar, os anunciantes em potencial. Não pode perder tempo. Mesmo nas
viagens de carro tem de estar ouvindo rádio.
- Bonita a voz deste cantor - diz Noel.
- É novo. Um tal de Mário Vieira.
- Quem disse?
- O locutor das Horas do Outro Mundo acaba de anunciar.
O cantor tem mesmo linda voz. E é com muito sentimento que interpreta os
versos de Orestes Barbosa para a melodia de Francisco Alves: Meu companheiro
dileto,
Violão és meu afeto
És minha consolação...
Noel, o ar de quem sabe e não quer dizer, observa:
- Engraçado, Casé. Nem o Sílvio Caldas tem a voz tão parecida com a do
Sílvio Caldas como este cantor.
Casé aumenta ainda mais o volume do rádio.
- Espere aí, Noel! Mas este cara... este cara é o Sílvio Caldas!
Mário Vieira é um dos muitos nomes atrás dos quais se esconde o
caboclinho para não ser exclusivo de nenhum programa. Ele, como Noel,
conserva o espírito nômade, definitivamente avesso a tratos e contratos.
Marília Baptista gosta de tricotar. E nos intervalos entre um número e outro,
seja no Casé, seja no programa Samba e Outras Coisas que apresenta com o
irmão Henrique pelas ondas da PRB-7, Rádio Educadora, vai fazendo casacos e
sapatos de lã que uma vez prontos são dados a Noel.
- São para o bebê.
Neste 1936 intensifica-se a amizade entre os dois, Marília freqüenta o
chalé, é amiga de Lindaura, dona Martha a adora. Intensificam-se também suas
relações no campo profissional. Não chegarão a compor juntos, embora a
produção musical de Marília já seja bastante expressiva por esta época. Produção
que ela não perde tempo em mostrar toda vez que lhe cabe como intérprete, "a
menina da voz grossa", ir ao microfone. Há quem a critique por estes impulsos
autopromocionais, achando que tanto a Educadora como a Transmissora a
contrataram como cantora e não como compositora. Mentiras Radiofônicas,
aquela seção com que A Voz do Rádio costuma alfinetar os artistas (a mesma
que disse ser muito cordato o maestro Glückmann e muito bonitos Noel Rosa e
Lamartine Babo), faz de Marília uma de suas vítimas: "Marília Baptista não
interpreta sambas de sua autoria."(5)5. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
NO PICADEIRO DA VIDA
Antes que chegue ao fim da canção - sua voz de sambista de bossa nada
tendo a ver com a de um grande seresteiro - ouvem-se as primeiras vaias,
assobios esparsos, um ou outro grito de "Fora! Fora!", até que começam a voar
objetos, ovos, tomates sobre o picadeiro. Heitor pára, tira o chapéu, mostra o
rosto e diz, bem alto:
- Calma, pessoal!Eu não sou o Sílvio Caldas, não!
Ao que um cidadão, lá do último degrau da arquibancada, responde
atirando-lhe mais coisas:
- Por isso mesmo, seu filho da puta!
Por pouco o público indignado não destrói todo o circo. Parte das torrinhas
chega mesmo a ser quebrada, um sujeito ameaça rasgar a lona, outro pensa em
incendiá-la. Só meia hora depois, com a intervenção da polícia, a calma se
restabelece.
Heitor Catumby sai de cena, entram outros artistas, estes sim, agradando em
cheio, ganhando aplausos, deixando Christovam de Alencar feliz(1).
1. Este episódio, um dos mais difundidos do anedotário do circo carioca daquele tempo, tem sido contado de várias maneiras, cada versão sempre mais enriquecida que a outra. Os autores
optaram por esta (muito diferente, por exemplo, da contada por Nestor de Hollanda em Memórias do Café Nice, páginas 185 e 186). Basearam-se nos depoimentos de Christovam de Alencar e Newton
Teixeira, que afinal estavam lá.
A poeira cinzenta
Da dúvida me atormenta,
Nem sei se ela morreu.
A luva é um documento
De pelica e bem cinzento
Que lembra quem me esqueceu.
Yolanda Rhodes, a Yola.
Cor de Cinza
"Gosto em geral dos versos que convivem com a cidade. Nisso Noel foi o craque absoluto, e não
apareceu no Brasil mais expressivo poeta popular do que ele. O X do Problema, Último Desejo, Três
Apitos, Dama do Cabaré, Feitio de Oração, São Coisas Nossas, Só Pode Ser Você incluem-se todas no
gênero de poesia brasileira popular que me fala. Noel tinha vocação para a coisa, e ele próprio sabia que a
'vocação é necessária até para dar-se laço na gravata'. Há uma letra de Noel maravilhosa servindo a uma
música também muito bonita, raramente tocada. Chama-se Cor de Cinza: 'A poeira cinzenta da dúvida me
atormenta... A luva é um documento de pelica e bem cinzento...' A história narrada pelos versos não é nada
clara, mesmo depois de termos lido a interpretação que o esclarecido Almirante faz para os mesmos. Mas
não importa; trata-se do mais belo e hermético poema impressionista do nosso cancioneiro popular."
Paulo Mendes Campos
Manchete, 20 de abril de 1974.
Mas pode ser também que sofra. E sofra muito. Como acontece no dia em
que Wilson Baptista, ainda lutando para se tornar mais conhecido, reabre uma
polêmica que se supunha encerrada com Palpite Infeliz. Compõe novo samba,
desta vez focalizando a feiúra de Noel. Dá-lhe o título de Frankenstein da Vila,
publica-o no Jornal de Modinhas, canta para os amigos no Nice. O samba, muito
bem-feito, apesar da pronúncia incorreta para Frankenstein, rimando com
alguém, acaba chegando ao rádio.
As testemunhas se dividem. Uns afirmam que Noel não deu maior
importância, chegando mesmo a achar engraçada a provocação de Wilson.
Outros asseguram que foi muito diferente. Nássara conta que viu o amigo
furioso, correndo de banca em banca para comprar todos os exemplares do
Jornal de Modinhas em que estivesse a letra. Cícero Nunes, companheiro de
muitas cervejadas (numa das quais Noel pagou a conta deixando o violão com o
dono do botequim), jura que o viu chorar - um momento raro - quando lhe falou
da crueldade de Wilson.
Mas, eterno simulador, é outra a impressão que dá ao rival em seu primeiro
encontro após Frankenstein da Vila. Wilson está no Café Leitão, nos Arcos, com
Erasmo Silva, seu parceiro na Dupla Verde e Amarelo, quando Noel passa.
- Noel! - grita com o sorriso matreiro. Os dois se cumprimentam. Noel
brinca, diz ter ouvido o samba em que ele o coloca na primeira fila dos feios,
gostou muito, coisa e tal. Wilson fica satisfeito. E aproveita para emendar: - Pois
saiba que eu já fiz mais um.
- Mais um o quê?
- Mais um samba. Para a nossa briga. E canta Terra de Cego:
Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
Noel acha a melodia interessante. Mas pede para colocar-lhe outra letra.
Elogia Wilson, diz que ele é mesmo terrível, tirou-lhe aquela morena há dois
anos e também andou de namorico com Ceci. De fato terrível. Aqui mesmo no
botequim, faz a nova letra. Sempre se dirá que o alvo de Noel nestes versos para
a melodia de Terra de Cego é o próprio Wilson: "Deixa de ser convencido...",
diz logo de saída. Mas não. Uma análise menos apressada mostrará que é para
uma mulher que ele canta. A começar pela rima, "convencida" com "vida". Uma
mulher que tem um "velho modo de vida". Uma perfeita artista por quem é
obrigado a viver um "amor de parceria". A mulher é Ceci. O parceiro, Wilson.
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
"Foi o seguinte: o povo não sabia que o negócio do Palpite Infeliz era comigo. Na verdade, o povo
pouco ligava àquelas questões. Se alguém tivesse de pensar alguma coisa, havia de ser que o samba era uma
resposta ao Mangueira, de Zequinha Reis e Assis Valente ('Não há, nem pode haver, como Mangueira não
há...') - Mas o pessoal do rádio todo sabia que era comigo. E eu comecei a ouvir indiretas de todo lado.
Vinha um e me dizia uma coisa, vinha outro e me dizia outra coisa. Diziam que o Noel estava preparando
uma porção de sambas que mexiam comigo, sambas que ele cantava pelos cafés. Então, pra não ficar atrás,
eu também fiz um samba pra mexer com Noel. O samba não foi publicado nem gravado(4), mas foi tão
cantado também pelos botequins que um dia, pra minha surpresa, eu o ouvi no rádio por um conjunto
chamado Os Quatro Diabos.
4. Não ainda, à época deste depoimento. A primeira gravação de Frankenstein da Vila seria a de Roberto Paiva, em 1956, na Odeon.
Meu samba era uma pilhéria com o Noel e se chamava Frankenstein da Vila. Noel era homem e não
há mal nenhum em se chamar um homem de feio. Por isso eu fiz o samba, que ficou assim:
Wilson Baptista
Rádio Tupi, 22 de junho de 1951
Com toda essa agitação, é um ano em que Noel compõe pouco. Desde que
se tornou profissional, nunca foi tão preguiçoso. Preguiçoso ou desmotivado.
Aquela entrega, presente em tudo o mais, começa a se fazer sentir também no
trabalho. Pouco a pouco. Durante todo o 1936, não chegará a vinte o total de
suas composições, apenas onze delas gravadas.
Assim mesmo, se fará tanto é porque Carmem Santos o convida a escrever
músicas originais para seu filme Cidade Mulher. Convite aceito, ele trabalha,
sozinho ou a quatro mãos com José Maria de Abreu ou Vadico, nas canções que
sustentarão a qualidade musical do filme (o programa inclui também
composições de Assis Valente, Waldemar Henrique, Heriberto Muraro e Raul
Roulien, um brasileiro que começou interpretando tango e acabou cantando fox
em filme americano).
Em termos de roteiro, Cidade Mulher é um pouco mais ambicioso que Alô,
Alô, Carnaval. Não é uma revista carnavalesca em que os quadros musicais se
sucedem meio sem pé nem cabeça, mas uma comédia com ligeiro fio de história
ligando os diferentes números, boa parte deles focalizando o Rio, seus bairros e
tipos. A direção é de Humberto Mauro e o elenco, atores e cantores, bem inferior
ao de Alô, Alô, Carnaval.
Mas o filme, estreando no Alhambra a 27 de julho de 1936, é muito bem
recebido pelo público. E os poucos que tiverem oportunidade de vê-lo daqui a
muito tempo(6) talvez possam sentir nas entrelinhas de cada cena o clima alegre
em que foi produzido, contagiando todos que dele participaram, Noel Rosa
inclusive.
6. Até onde os autores conseguiram saber, perderam-se todas as cópias de Cidade Mulher.
Orlando Silva vai gravá-la em disco três dias depois da estréia do filme, no
qual ele divide a cena com Carmem Santos, ela declamando os versos de Noel:
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra...
Cidade notável,
Inimitável,
Maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher!
Cuidado criança,
Que qualquer dia um tufão
Derruba os teus castelos de esperança
E enche de areia o teu coração.
Se na praia tu souberes
Que o teu nome eu escrevi
Entre mais de dez nomes de mulheres,
Terás certeza que te amei mas te esqueci.
A minha Bahia
Forneceu a fantasia
Mais original
Que se vê no carnaval.
Em São Salvador,
Terra de luz e de amor,
Só o samba cabe,
Disso todo mundo sabe.
Maria Fumaça
Não diz mais chalaça,
Não faz mais trapaça,
Somente ameaça
Que acaba com a raça
Bebendo potassa.
Perdeu o rompante,
Foi presa em flagrante
Roubando um baralho,
Não faz mais conflito,
Está no distrito
Lavando o assoalho.
Seja como for, o samba acabou ficando fora do filme, para tristeza de Noel
que parecia apostar no seu sucesso.
Compõe pouco neste 1936. E começa a sentir que a saúde lhe falta. Gripes
freqüentes, sempre acompanhadas de febre, o levam a recorrer ao amigo Edgar
mais vezes do que desejava, os sermões sempre o aborrecendo: - Cuidado, Noel.
Você está perto de uma recaída.
Preguiça, desmotivação, entrega, saúde fraquejando. Se tinha algum motivo
para pensar no futuro, no dia de amanhã, nas coisas que ainda pode ter ou fazer,
talvez esse motivo tenha chegado ao fim de forma tão triste quanto prosaica:
Lindaura, de gestos e impulsos infantis, sobe na goiabeira, estica a mão para um
galho distante, desequilibra-se e cai. Perde os sentidos. A mesma goiabeira sob a
qual Noel costumava tocar ("Coitado, tão moço...") - e que um dia, para fazer
surpresa ao filho, Martha resolveu iluminar, mandando instalar nela um jogo de
lâmpadas. De noite, diante da surpresa, Noel exclamou: - Prostituíram minha
goiabeira! Ela só pode ser iluminada pela lua...
Foi de um de seus galhos que Lindaura caiu. Martha manda que chamem o
médico, Heleno Brandão, o velho Graça Mello, Renato Baptista, o primeiro que
estiver disponível. O médico chega. Lindaura está bem, mas perdeu o filho.
Nunca se saberá o que Noel sente em relação a isso.
1936. CIDADE MULHER Cia. Prod: Brasil Vita Filmes. Dir: Humberto Mauro
Capítulo 42
A sala não é das maiores, mas tem aquela tal "atmosfera montmartroise" de
que falam os cronistas da Lapa. Pelo menos Max Darly se esforça para que
assim seja, adotando gestos e mesuras de um cabaretier de Place Pigalle,
arriscando até um pouco de francês ao recepcionar os habitues mais respeitáveis:
"S'il vous plait, monsieur..." Como se a dizer consigo mesmo: "Já que os
boêmios da Lapa não podem ir a Paris, por que não trazer um pouco de Paris aos
boêmios da Lapa?" O mesmo pensamento, aliás, de Helena, que cuida das moças
de modo tão parisiense quanto sua brasilidade permite.
A luz tímida entre o vermelho e o azul, as paredes em tons escuros, as
cadeiras forradas de veludo, tudo procura "afrancesar" o ambiente. Inclusive o
som que vem da orquestra, o acordeom imprimindo a valsinhas e fox-trots um
acento tipicamente francês ainda que seus autores sejam músicos que jamais
atravessaram as fronteiras da Lapa. É assim o lugar, pobre réplica de
Montmartre. Pois tão logo entram, se sentam, pedem a primeira bebida e lançam
um olhar à volta, por onde as mulheres circulam, tão logo os fregueses deixem
que a primeira impressão dê lugar a um exame mais atento, serão forçados a
concluir que o Royal Pigalle, por mais que Max, Helena, Gus Brown e outros
pensem que não, no fundo não passa de um cabaré da Lapa. Ceci, mais que os
donos da casa, sabe que não há muita diferença entre um cabaré e outro, o
Apollo dos primeiros tempos, o Royal Pigalle de agora. As luzes coloridas, a
decoração fingidamente belle époque, os maneirismos de Max, a estudada
finesse de Helena, nada disso a impressiona como antes. Talvez comece a se
sentir cansada, os dezoito anos feitos há pouco pesando-lhe como se fossem
trinta. Já é indisfarçável o tédio com que sente o champanhe borbulhar-lhe no
rosto e ouve, noite após noite, os repetitivos galanteios que os fregueses
sussurram-lhe ao ouvido. Como tudo é diferente de dois anos atrás! A menina
que então se deixara seduzir pelos encantos da noite (e que divisara entre as
luzes fracas de um cabaré os contornos vagos do que lhe parecia uma nova vida,
repleta de emoções) é hoje uma mulher que se anima de outros desejos. O maior
deles, rever o irmão, reconciliar-se com o pai, voltar para casa. O sonho em que
começou a mergulhar, naquela festa de São João, durou pouco. O brilho dos
cabarés é fugaz e enganoso como o de uma estrela cadente.
Seja como for, é aqui, numa das noites de maior movimento do Royal
Pigalle - as pessoas transitando por entre as mesas, dois ou três pares rodopiando
na pista de dança, Max saudando clientes em francês, Helena perto do bar - que
Ceci tem a atenção atraída por um moço alto, magro, elegante, simpático, a
quem conhece de vista e de nome. Tem uns vinte e poucos anos e, dizem,
enorme talento para escrever peças de teatro, algumas já encenadas com sucesso
na Praça Tiradentes. Os dois se olham. Ele não fica indiferente à figura mignon,
graciosa, da morena de poucas palavras e muitos sorrisos que o fita à distância.
Aproxima-se: - Eu me chamo Mário Lago.
Ao contrário dos demais fregueses que a tratam com extrema
insensibilidade e até com autoritarismo (os homens que freqüentam a Lapa têm a
arrogância dos compradores, plenamente convencidos de que uma garrafa de
champanhe francês lhes dá direito a tudo, inclusive a tratar mal as mulheres que
lhes vendem atenções), Mário Lago chega-se a Ceci com as maneiras de um
cavalheiro. E é justamente esse cavalheirismo, esse respeito tão raro por aqui, o
que mais a impressiona.
- Saio lá pelas quatro da manhã.
-Não, não quero ver você na hora da saída. Quando é sua folga?
- Terça-feira.
- Pois vou buscá-la em casa para irmos ao teatro.
- Ao teatro?
- Sim.
- E você vai entrar comigo, vai se sentar ao meu lado?
- Claro.
Surpresa e encantamento se misturam no rosto bonito de Ceci. Tudo que ela
sabe de teatro são aqueles festivais caipiras de Jararaca & Ratinho, espetáculos
musicais com gente de rádio, coisas assim. Nenhum freguês lhe fez antes
qualquer convite além do óbvio. Mesmo Noel Rosa jamais a chamou para um
cinema, um programa mais divertido do que os jantares de madrugada, as festas
ligadas a seus compromissos profissionais. Mário é diferente, atencioso, de trato
cortês e carinhoso como só as namoradas de fé inspiram. Inteligente, também.
Sabe poesias de cor, fala de coisas que nunca lhe passaram pela cabeça, assuntos
sérios, complicados, adornados de palavras difíceis. E como conhece gente
famosa!
- Ceci, quero te apresentar o Procópio Ferreira.
- O ator?
Procópio sorri. Está todas as noites no Teatro Regina, com Paulo Gracindo,
Delorges Caminha, Elza Gomes, Restier Júnior, Abel Pera, o grande elenco de
Tabu, comédia de Svoboda. Não gostaria de ir? Ceci não vai querer perder a
oportunidade de ver todos aqueles artistas no palco e, depois, convidada a
prolongar a noite de folga num jantar, conhecê-los pessoalmente. Mário promete
apresentá-la a eles. E também a outros grandes nomes do teatro, autores, atores,
diretores, gente interessante, culta, múltipla. Ficar confinada à Lapa, trabalhar de
noite no cabaré e mal sair de dia, não é vida para ninguém. Mário diz isso a Ceci
em tom afetuoso e não de reprimenda. Gente moça - e ela acaba de fazer dezoito
anos - tem de se divertir, conhecer pessoas, aprender com elas. Ceci fica
fascinada.
Seus programas, a partir do momento em que conhece Mário na quase
penumbra do Royal Pigalle, passam a ser outros, teatro, cinema, ceias em
restaurantes de primeira, a mesa sempre cheia de homens e mulheres do meio
artístico, Procópio, Cordélia, Rodolfo Mayer, Modesto de Souza, Óswaldo
Lousada. E também Walter Pinto, filho do produtor Manuel Pinto, ele próprio
produtor em potencial, jurando que um dia ainda vai montar na Praça Tiradentes
revistas ainda mais luxuosas que as do pai. É realmente múltipla essa gente de
teatro. Engraçada como Grande Othelo, cujas caretas, os beiços tomando a forma
de uma flor, matam Ceci de rir, ou altiva como Custódio Mesquita, cuja
personalidade, pelo contrário, a assusta.
Grande Othelo, aquele mesmo crioulinho que veio de Minas sonhando com
o teatro (e que tentou roubar o show de Oscarito na mesma revista em que
lançou Mais Um Samba Popular), já não é um ator tão desconhecido, desses que
vivem correndo coxia cavando pontas. Mas ainda tem os bolsos vazios.
Permanentemente. Ceci gosta muito dele, costuma chamá-lo para dormir em seu
quarto sempre que o sabe sem destino e sem teto - o que não é raro. Quando
encontra Noel, Grande Othelo faz questão de esclarecer: - Pernoite respeitoso.
Na mesma cama, mas pés com cabeças.
Verdade. Ceci e ele são fraternos amigos. Um dia, sempre abusado depois
do quarto trago, o crioulinho de um metro e cinqüenta e poucos chama para
briga um cidadão muito mais forte com quem se desentendeu no Primor. O outro
avança para ele disposto a trucidá-lo! Mas, no meio do caminho, é atingido na
cabeça por uma garrafada e cai. Só depois Grande Othelo vai saber que quem
golpeou o adversário foi Ceci, salvando-o do pior. Naturalmente, também
encorajada por um quarto gole.
Com Custódio Mesquita, não há dessas proximidades.
- Ele é meu parceiro - diz Mário. Parceiro em Menina, Eu Sei de Uma
Coisa, marchinha despretensiosa que os dois fizeram para o carnaval passado,
gravada sem sucesso por Mário Reis. Parceiro, também, em peças de teatro que
os dois ainda vão escrever a quatro mãos, Custódio referindo-se a elas como
"minhas peças" e deixando para Mário e todos os outros eventuais colaboradores
os papéis secundários dos espetáculos onde o astro terá de ser sempre ele,
Custódio.
- Não sabia que você também fazia música - diz Ceci surpreendendo-se
mais uma vez com os talentos de Mário.
Fazer, propriamente, não faz. Não ainda. Um dia Mário Lago ainda porá
sua veia poética a serviço da música popular, criando algumas letras excelentes
para sambas, valsas, foxs, canções, com melodias inspiradas de Custódio,
Benedicto Lacerda, Roberto Martins, Ataulpho Alves e suas próprias(1).
1. A obra de Mário Lago no campo da música popular seria mais do que expressiva, incluindo composições com Custódio Mesquita (Nada Além, Enquanto Houver Saudade), Benedicto
Lacerda (Número Um), Roberto Martins (Dá-me Tuas Mãos), Roberto Roberti (Aurora), Ataulpho Alves (Ai, Que Saudades da Amélia, Atire a Primeira Pedra) e sozinho (Será?, Fracasso, Devolve).
Mas, por ora, seu negócio é mesmo o teatro, aquela marchinha não
passando de uma tentativa, quase brincadeira, a que foi induzido por Custódio.
Ceci passa a viver, nos últimos meses de 1936, seus melhores tempos desde
que chegou ao Rio. E não apenas por encontrar em Mário Lago o amante gentil e
atencioso que a leva a teatros e ceias, passeios e reuniões agradáveis, jamais
limitando seus encontros às mesas do cabaré ou às quatro paredes de um quarto
de sobrado. Isso também conta. E muito. Mas o que de fato a sensibiliza é a
forma pela qual ele sempre lhe abre espaços em sua vida, fazendo-a participar de
tudo, atribuindo-lhe uma importância que já supunha não ter, dividindo com ela
amigos, hábitos, idéias, coisas ligadas ao trabalho. O que faz Noel Rosa quando
não está aqui? Por onde andará durante seus costumeiros sumiços? Ceci não
sabe. Mário é homem aparentemente sem mistérios. Nem mesmo de suas
posições políticas faz segredo.
- Você não tem medo?
- De quê?
- Ouvi dizer que muita gente foi morta ou presa no ano passado.
Mário não tem medo. Ele mesmo foi preso durante as perseguições ao
pessoal da esquerda. E já havia sido preso antes, em 1932, quando andou metido
em greve de operários, sendo obrigado a fugir para o Uruguai. É um dos poucos,
nesse meio de teatro e música, que parecem se importar com política. Os amigos
às vezes se preocupam ao ouvi-lo chamar Getúlio Vargas de caudilho. E mais
ainda ao vê-lo erguer-se inflamado, à mesa de um restaurante, e discursar, para
quem quiser ouvir, sobre a exploração do homem pelo homem, a luta do
proletariado, as injustiças sociais. Tirando ele e Alberto Ribeiro, praticamente
ninguém por aqui se interessa por política. Podem contar à meia-voz uma
anedota sobre Getúlio. Podem fazer músicas de carnaval gozando veladamente
os homens da política. Podem até, os mais sérios, comentar a Guerra Civil que
acaba de eclodir na Espanha. Mas a revolta dos comunistas, aqui mesmo, no ano
passado, é assunto proibido. Só Mário Lago parece lembrar-se dela: - Os
inocentes estão presos. Os criminosos, no poder!
Ceci fica impressionadíssima com tal arrebatamento. E se sente ainda mais
importante ao saber-se incluída entre as pessoas nas quais Mário confia o
bastante para dizer-lhes o que pensa. Na verdade, ele a inclui em quase tudo, nos
debates políticos, sérios, ruidosos, e nas pequenas molecagens que seu humor
eventualmente concebe para gozar um amigo, um companheiro de teatro. Ceci
será sua cúmplice numa dessas brincadeiras. E a vítima, Oswaldo Sampaio,
cenógrafo da companhia de Procópio. A idéia tem um pouco de Mário, um
pouco de Modesto de Souza. Sendo Oswaldo um homem solitário, fechadão,
sempre trancado no seu quarto de hotel na Avenida Gomes Freyre, Modesto e
Mário inventam uma admiradora para preencher, senão a vida, ao menos a
imaginação do amigo. Uma admiradora que teria se apaixonado pelos cenários
de Oswaldo e graças a isso passado a escrever-lhe cartas de amor. Cartas de uma
mulher sensível para um grande artista. Mário capricha nos textos e pede a Ceci
que, com sua caligrafia bonita, passe-os a limpo. Tem início então uma
correspondência que mudará por algum tempo a vida de Oswaldo Sampaio, ele
escrevendo cartas ainda mais apaixonadas à admiradora. O endereço? Também
isso terá a cumplicidade de Ceci, que concorda em emprestar o seu próprio.
Mário e Modesto, a cada nova carta de Oswaldo, dobram-se de rir. Até que
exageram na brincadeira fazendo com que a admiradora desconhecida proponha
ao cenógrafo um encontro em frente ao relógio da Glória, a uma da manhã. Um
encontro ao qual, evidentemente, só Oswaldo irá, tendo quase um acesso de
loucura quando, de um carro estacionado mais adiante, Mário, Modesto e Restier
Júnior aplicam-lhe impiedosa vaia.
- Foram vocês, seus filhos da puta! Seus malditos filhos da puta!
Sim, de todas as formas Ceci participa da vida de Mário. Não há entre eles -
ao contrário do que é comum nos casos de amor nascidos na Lapa - qualquer
relacionamento que envolva dinheiro. Fazendo questão de representar,
impecavelmente, seu papel de amant de coeur, Mário não presta nem recebe
favores materiais. No máximo, ajudará Ceci a restabelecer-se de assustadora
gripe.
- Gripe?- especula apreensivo o médico que Mário chama para examiná-la.
- Esta moça tem mais que gripe. Vamos tirar uma radiografia.
Estava certo o médico: mais que gripe, uma afecção pulmonar, uma
"sombra" como se diz. Um mal que se pode tornar mais sério se não for tratado
logo. É hora de Ceci se cuidar, de ficar algum tempo sem aparecer no Royal
Pigalle, repousando, comendo bem, trocando os remédios caseiros
recomendados pelas colegas de trabalho, o peitoral de mel, guaco e agrião, por
algo mais forte e eficaz. Pérolas Tonka, por exemplo, que Mário vai comprar
depressa na farmácia da esquina.
Noel não está por perto quando Ceci adoece. Como não estava por perto
naquela noite em que Mário entrou na vida dela:
- Não, não quero ver você na hora da saída...
Em parte pelas repetidas brigas que acabaram amornando sua convivência
com Ceci, em parte por seus próprios problemas de saúde, ele anda sumido da
Lapa. E foi justamente no vazio dessa ausência que Mário se instalou. Edgar
Graça Mello, paciente, incansável, obstinado médico e amigo, recomendou-lhe
ficar em casa por alguns dias, depois que dona Martha o chamou ao chalé,
assustada com a tosse, a falta de ar, a febre que mais uma vez derrubam o filho.
- Por favor, Noel, tome juízo e trate de se cuidar.
Conselho inútil, sabe o médico. Mas nem por isso deixa de repeti-lo,
sempre acompanhando-o de receitas e instruções que Noel porá de lado na
primeira oportunidade. Passada a febre - a temperatura sendo a determinante de
seu comportamento - lá estará ele novamente na rua, dando uma espiada no
Ponto de 100 Réis, procurando velhos amigos e até se sentando despreocupado a
uma das mesas do Rio Club.
- Martinez, que tal uma cerveja? Anselmo Seixas, um dos empregados do
bicheiro Lourenço, o vê de longe. A garrafa de Cascatinha, bem gelada, ali posta
pelo Martinez, chama sua atenção. Não lhe tinham dito que Noel estava doente,
com febre, de cama? Então como é que agora se enchafurda numa cerveja?
Aproxima-se.
- Me faz companhia, Anselmo?
- Obrigado, Noel. Mas você não estava de cama?
- Estava, mas agora estou mais forte que um leão.
Anselmo pergunta-lhe se a cerveja gelada não fará mal aos pulmões, se não
poderá provocar uma recaída, trazer a tosse de volta.
- Pelo contrário.
Diante da estranheza de Anselmo, Noel expõe sua teoria:
- Quanto mais gelada a cerveja, melhor. O gelo, não sei se você sabe,
paralisa os micróbios. Congelados, os bichinhos sossegam. E não me fazem
tossir. Como vê, cerveja é um santo remédio.
E, virando-se para o Martinez, ordena:
-Doutor, mais um xarope pra tosse. Bem gelado!
Por esses dias, o máximo que pode fazer para não contrariar Edgar é dormir
cedo, não ir à cidade, evitar certos lugares, principalmente a Lapa. Fica pelo
bairro, visita velhos amigos, quando muito dá uma esticada até o barraco de
Cartola, em Mangueira. Mas nada de saídas muito prolongadas. Mesmo porque
às vezes o fôlego lhe falta. Quanto a largar os botequins do bairro, a cerveja, isso
não pode prometer a Edgar, que agora, quando o encontra entre garrafas vazias
nos cafés do Ponto de 100 Réis, já não se chega como antes. Guarda sua zanga
de médico e amigo, os conselhos, tudo que tem a dizer. Prefere passar ao largo,
cumprimentar Noel com um aceno, seguir em frente.
A teoria do congelamento dos micróbios não é a única que expõe entre uma
Cascatinha e outra a companheiros que acham graça em tudo o que diz, não
percebendo o quanto de irônico e sinistro há em tais histórias. Alguns têm
consciência de seu estado. Como Floriano Belham:
- Não acha que está se matando, Noel?
- Ora, Floriano... Senta e toma uma cerveja por minha conta.
Ou como Nássara, que ouve outra de suas teorias ao encontrá-lo, já de
manhã, a intercalar goles de cerveja com outros de conhaque.
- Por que não come alguma coisa, Noel? Beber assim, cerveja e conhaque,
de estômago vazio, não faz bem. Você tem de se alimentar.
- E o que pensa que estou fazendo?
É então que se põe a discorrer sobre o alto valor nutritivo da cerveja, o
poder sedativo do lúpulo, a riqueza da cevada que é até usada para engordar
gado, os glicídios e as enzimas contidos no malte. Pensando bem, uma cerveja
vale por um almoço.
- Está certo - conforma-se Nássara. - Mas e o conhaque?
- Bem, o conhaque é porque não gosto de comer sem beber.
Noel não pode ou talvez não queira ver o que lhe vai por dentro, os dois
pulmões castiga-os por um mal que se alastra mais rápido do que seus
companheiros de botequim imaginam. A temperatura é de fato o que determina
seu comportamento diante da doença. Se está com febre, deixa-se frear um
pouco, recolhe-se, concorda em tomar os remédios. Se a febre se vai, é hora de
voltar a viver sua vida. Quer dizer, reconciliar-se com as madrugadas, rever a
Lapa, Ceci.
- Como estão as coisas?
- Na mesma.
Uma vez mais ela prefere não dizer a verdade. Para quê? Recomeçar as
discussões, tornar ainda mais penoso o diálogo entre eles? Talvez Noel ainda
não saiba de Mário Lago. Melhor, portanto, que outros lhe contem. E mesmo
que já saiba resta a possibilidade de pensar que o outro é apenas mais um de seus
tantos namorados ocasionais, daqueles a que ela, "por gentileza", não sabe dizer
não. Namorados que sempre fizeram Noel crispar-se de ciúme, mas só por
pouco, até que a voz suave de Ceci lhe viesse segredar: - Gostar, mesmo, só
gosto de você... Ceci espera que ele custe a perceber que Mário não é um
namorado ocasional. Tenta adiar, tanto quanto possível, o impensável momento
em que Noel descobrirá que não é só dele que ela gosta. Frágil esperança,
ingênua tentativa. Então não se lembra que Noel a conhece pelo olhar, pelo
modo de dizer as coisas, pelo tom de voz?
- Você ainda não aprendeu a mentir... - disse ele tantas vezes.
Algo mais, porém, a perturba nesse dividir-se entre Noel e Mário. Mais que
a antevisão de um possível desenlace, ela, Noel, todos sofrendo, o que a
incomoda, de verdade, é a dúvida. Antes, Noel sem aparecer na Lapa, Mário
sempre presente, sentia-se mais segura de seus sentimentos, feliz como nunca,
tudo muito simples. Agora, Noel de volta, ela alternando entre os dois seus
começos de tarde ou fins de noite, a situação muda, tudo muito complicado.
Sente-se repartida, fracionada, feita em pedaços. Por quê? Qual a razão de tanta
dúvida, de não poder se decidir logo entre os dois, sempre pensando em um
quando está nos braços do outro? Uma dúvida tão grande, tão angustiante, que
mesmo daqui a muitos anos, os amores de hoje já convertidos em longínquas
lembranças, ainda se sentirá presa dessas interrogações(2).
2. Por longas horas Ceci conversou com os autores sobre aqueles dias em que se dividia entre Noel Rosa e Mário Lago. Quarenta e cinco anos depois ainda passava de frases como "Eu já
estava apaixonada pelo Mário..." para outras como "Eu amava muito Noel..." Tudo naqueles últimos meses de 1936.
Vadico está todas as noites no Lido com seu piano, o sax-tenor de Quincas,
o sax-alto de Lupercílio Lyra, o pistom de Gumercindo Mello, o contrabaixo de
Lilico e a bateria de Busquet. Um conjunto de formação jazzística que toca
choros e sambas porque os dançarinos assim o exigem, mas que se sente bem
mais à vontade num fox dolente, melodioso, sobre cujas frases Vadico improvisa
harmonias, enquanto Quincas e Lupercílio perdem-se em complicados solos.
Terminado o trabalho, o pianista costuma passar pela Lapa para um trago com
algum amigo que esteja vagando por ali. Amigos como Noel Rosa. Eles tanto
podem se encontrar no Indígena como no Leitão, no 1900 como no Siri, mas é
geralmente no Café Club que se reúnem para falar de samba. Porque Vadico, se
é jazzístico no Lido, nem se atreve a pensar em música americana quando está
com o parceiro. Nesses momentos, o assunto é mesmo samba. E samba triste,
pois nada além de tristeza sabe cantar Noel neste crepúsculo de 1936.
É com Vadico que ele escreve mais um inspirado em Ceci, a mentira, a
traição colorindo tudo, os carinhos, as frases sem sentido ditas por ela ao seu
ouvido: (Quantos Beijos)
Quantos beijos quando eu saía!
Meu Deus, quanta hipocrisia!
Meu amor fiel você traía
Só eu é que não sabia.
UM GOSTO DE DESPEDIDA
Este fragmento de samba não é a única idéia que leva a Cartola. Explica-lhe
que terá de gravar até o fim do mês um disco para o suplemento carnavalesco da
Victor e outro para o da Odeon. São quatro sambas que pretende cantar em dupla
com Marília Baptista. Três serão composições recentes: Provei, Quantos Beijos!
e Quem Ri Melhor. O quarto foi feito no começo do ano, aquele único inspirado
em Lindaura: Você Vai Se Quiser. Um dos discos, o da Odeon, terá
acompanhamento do regional de Benedicto Lacerda. O segundo - e esta é a outra
idéia que leva a Cartola - poderia aproveitar o molho do pessoal da Mangueira, a
bossa dos ritmistas de verdade, a perícia dos melhores tocadores de surdo, cuíca
e tamborim que há por aí. Noel recorda que no início de sua carreira em disco o
Bando de Tangarás fez precisamente isso, Canuto, Puruca, a turma do morro
invadindo os estúdios de gravação. Por que não fazer o mesmo agora? Cartola
aprova a sugestão e se incumbe de arregimentar entre os bambas do lugar alguns
ritmistas para acompanhar Noel e Marília.
No dia 12 de novembro, quinta-feira, é um pouco apreensiva que Marília
espera pelo companheiro de dupla em sua casa na Rua General Rocca, perto da
Praça Saenz Pena. A essa altura Benedicto Lacerda Já deve estar a postos no
estúdio da Odeon. E Noel, como sempre, atrasadíssimo. E o pior é que ela nem
aprendeu as músicas direito. Um dos lados do disco, Você Vai Se Quiser, não
chega a ser problema maior. É samba que ela já cantou muitas vezes no
Programa Casé. Mas e o outro? Noel já cantarolou o refrão para Marília, diz que
ele e Vadico ficaram de terminá-lo, mas que até agora nada. Isso a poucos
minutos do início da gravação.
Noel chega, Marília está nervosa. Ele a tranqüiliza. Enquanto ela vai lá
dentro apanhar a bolsa e ajeitar o cabelo, ele se senta no sofá da sala, tira papel e
lápis do bolso, pega o violão. Quando Marília volta, diz estar fazendo umas
alterações na melodia, retocando a segunda parte da letra, acabando enfim o
outro samba.
- Mas já está na hora da gravação!
No táxi que os leva para o estúdio da Odeon, na Almirante Barroso, um
tanto sem jeito para tocar o violão no banco de trás, o carro em disparada na
tentativa de descontar o atraso, Noel vai ensinando a Marília o samba intitulado
Provei. Ela o canta em tom bem mais baixo que o dele, os dois buscam um
ponto em comum. As modificações que Noel faz na melodia são muito em
função disso, um esplêndido trabalho de recriação.
Provei do amor todo o amargor que ele tem.
Então jurei nunca mais amar ninguém.
Porém, eu agora encontrei alguém
Que me compreende e que me quer bem!
"Foi lá por 1936, 1937. Estávamos num cabaré da Lapa, eu e o Djalma Ferreira, quando Noel entrou,
veio até nossa mesa, sentou-se, pediu uma cerveja. Começamos a conversar. Lá pelas tantas, uma das
dançarinas aproximou-se dele pelas costas, tapou-lhe os olhos com as duas mãos e disse: 'Adivinha quem é.'
Noel citou dois ou três nomes, mas nenhum era o da dançarina. Ela então se pôs de pé diante dele: 'Sou eu',
disse. Mas Noel simplesmente não a reconheceu. Desculpou-se muito, mas não se lembrava de tê-la visto
antes. A moça, desapontada, tentou reavivar-lhe a memória: 'Não se lembra daquela festa de São João? No
ano passado... Nós saímos às escondidas, fugindo dos outros convidados...' Noel começou a se lembrar.
Havia saído da festa com a moça, foram para um terreno baldio, um hotel, sei lá. Ele tinha sido o primeiro.
Agora, a moça estava ali, na nossa frente, uma dançarina de cabaré. Noel ficou visivelmente perturbado:
'Sim, claro, eu me lembro...' A moça se afastou e ele começou a escrever alguma coisa na toalha da mesa.
Pediu mais uma cerveja, mais outra. Quando saímos, notamos que ele estava transfigurado, o pensamento
longe. Pois bem, dias depois eu voltei ao cabaré. O garçom que nos servira perguntou: 'Cadê o Noel? Eu
queria dar a ele esta toalha. Tem uns versos escritos. Será que ele não vai precisar?' Tomei a toalha nas
mãos. Ali estava, inteirinha, a letra de Ultimo Desejo."
Cyro de Souza
"Sempre demos grandes festas de São João em nossa casa. Era assim que a gente comemorava os
aniversários de Heloísa, minha irmã. Noel não perdia uma. Naquele ano, estava um pouco triste, jururu.
Ofereci-lhe um prato de canjica. Ele aceitou, mas pediu-me que levasse para o quarto dos fundos, onde
ninguém pudesse vê-lo. Noel era muito feio comendo, raramente fazia uma refeição na frente de estranhos.
Mas nós éramos como gente de casa, da família. Terminada a canjica, pegou o violão e começou a tirar
alguma coisa. Me pediu que lhe trouxesse lápis e papel para anotar a letra de um samba que acabava de lhe
vir à cabeça. Era o Ultimo Desejo"
Theodorica dos Santos Lima, Dorica
"Em fins de 1936, encontrei o Noel no Programa Casé. Já estava muito magro, doente. Ficamos
conversando sobre música. Ele me disse:
- Engraçado, Floriano, a gente se conhece há tanto tempo, já fez tanta serenata, nos encontramos em
tantos lugares, e no entanto você nunca gravou nada meu. Sabe de uma coisa? Acho que tenho aqui um
samba que casa muito bem com teu jeito de cantar.
Sempre cantei no estilo do Sílvio Caldas, um repertório mais romântico, de valsas-canções, serestas,
sambas dolentes. Noel me mostrou então o tal samba que casava com meu jeito de cantar. Era simplesmente
o Ultimo Desejo. Sabe o que eu disse a ele?
- Muito bonito, Noel, mas não é bem o meu gênero.
Até hoje não me perdôo."
Floriano da Costa Belham
- Quero te fazer um pedido, Ceci.
Ela move a cabeça afirmativamente. Como negar-lhe alguma coisa?
- Gostaria que passássemos a noite juntos.
Vão para um hotel das imediações. De madrugada, quase amanhecendo, ela
desperta. Abre os olhos aos poucos, vê que ele não está a seu lado. Vira a
cabeça, assusta-se ao encontrá-lo na mesma posição em que o deixara ao
adormecer, sentado numa cadeira aos pés da cama, imóvel, os olhos fixos nos
seus. Os primeiros raios de sol entram pela janela do quarto de hotel. E Noel ali,
imóvel, como uma pedra, olhando para ela.
Há muito de adeus nesse olhar. Um adeus, porém, que parece significar
mais do que uma simples separação amorosa. Exatamente como outro samba que
Noel compõe inspirado em Ceci, talvez sua obra-prima. Um samba que fala não
só de um amor que se extingue, mas também de uma vida que perde o seu sopro.
Como terá sido feito? Pelas várias histórias que se contarão, é de se suspeitar que
há muito tempo Noel vem trabalhando em sua melodia comovida, que passa do
lírico ao patético para enfeixar versos alusivos à memória, ternura, magoa,
consciência, vontade de chorar, ironia, desesperança, adeus. Um samba-canção
que, a começar pelo título, Último Desejo, tem a força de um testamento:
Nosso amor que eu não esqueço,
E que teve o seu começo,
Numa festa de São João,
A ARTE DO SOFRIMENTO
Os últimos dias de 1936 são passados em casa. Janeiro chega e, com ele, os
dias mais quentes do verão. Alguém sugere que Noel e Lindaura saiam do Rio
por algumas semanas. Não precisam ir muito longe, como a Belo Horizonte de
tia Carmem. Basta que seja um lugar tranqüilo, fresco, de ar puro. Por que não
Friburgo? Bom clima, a montanha, o verde. E é perto, apenas algumas horas de
trem e já se está numa terra abençoada, milagrosa.
Mas os pulmões não são o único problema de saúde que Noel enfrenta neste
começo de janeiro. Um molar inferior esquerdo causa-lhe grandes padecimentos.
É uma dor que se reflete por todo o rosto, impiedosa. Nunca teve muito cuidado
com os dentes. Um pouco por relaxamento, mas principalmente porque o defeito
jamais lhe permitiu abrir a boca o suficiente para que o dentista trabalhasse sem
lhe causar dor na articulação. O tal molar já não passa de um caco. Infeccionado,
deu origem a um abcesso que faz inchar o lado esquerdo do rosto. O processo
avança, uma fístula vai deixar-lhe mais uma marca. Noel, sofrendo muito,
atravessa a rua e recorre outra vez ao seu Bruno. A intervenção é difícil,
demorada, dolorosa. Antes de extrair o molar, o dentista lanceta o abcesso a
sangue-frio. Tenta encarar tudo com resignação. E até com uma dose de humor.
Pega lápis e nanquim, desenha-se de perfil, o lábio inferior pendurado como se
fosse uma gota prestes a cair-lhe do resto da cabeça. Seu nome faz as vezes da
bandagem que seu Bruno recomendou, compressa quente para ajudar a vencer o
abcesso. A caricatura é colada na segunda capa de Este Álbum. O dentista será
pago com a maior riqueza que Noel tem para dar: gratidão em forma de samba.
A ele, "distinto amigo e ilustre dentista Bruno de Moraes", será dedicada a
partitura impressa de Quantos Beijos!
Alguns dias em casa, repousando, levam a febre embora. Mas não
devolvem a Noel as forças que aparenta vir perdendo desde o último encontro
com Ceci. Está meio prostrado, sem ânimo, muito diferente do clima que se
respira lá fora, nas ruas, neste começo de ano. O carnaval está perto. Integrantes
dos pequenos blocos de sujo batem de casa em casa, pires na mão, arrecadando
os mil réis que talvez lhes permitam fazer melhor figura do que no ano passado.
De quando em vez, mesmo lá dos fundos do chalé, ouvem-se os sons que vêm de
pontos distantes, um surdo que pulsa lá pela Maxwell, tamborins que repenicam
na Souza Franco, ecos de batalha no Boulevard. A animação é grande. O Cara de
Vaca e o Faz Vergonha, como de hábito separados pela principal avenida do
bairro (e, mais que isso, por uma rivalidade que a cada ano aumenta), tratam de
se articular. No Ponto de 100 Réis, o pessoal do lado de cá passa a cumprimentar
ressabiado o pessoal do lado de lá: em fevereiro, com a proximidade do
carnaval, Cara de Vaca e Faz Vergonha vão esquecer que são partes de uma
mesma família e se transformar, quase, em duas comunidades distintas. Vizinhas
mas de forma alguma aliadas. Enquanto isso, alheio a essa emulação, o Meninas
Loucas da Vila faz força para tornar-se um bloco, tanto quanto possível, da
estatura dos outros dois. Já conta com verba extra do bicheiro Lourenço, um dos
seus fundadores, e também com a promessa de Affonsinho de trazer para o
desfile um punhado de craques do São Cristóvão, o Carreiro, o Roberto, o Dodô,
sem falar no Quintanilha, que já é daqui mesmo, de Vila Isabel. O clima lá fora,
nestes dias, é mesmo de carnaval. E pela primeira vez na vida - desde que se fez
crescido o bastante para batucar um tamborim - Noel não participa de tudo isso,
dos blocos, das batalhas, das músicas que o povo canta.
Em casa, ouve o rádio. Interessa-se por programas que transmitem, desde
manhã, os sambas e marchas que disputam a preferência popular neste começo
de 1937. Musicalmente, não é um bom carnaval. Basta que se observe que a
marcha de maior sucesso é Mamãe Eu Quero, o maestro Vicente Paiva lançando
mão de antiga canção de ninar para musicar, sem muita inventiva, os versos
maliciosos, mas pobres, de Jararaca. Lig-Lig-Lig-Lé e Como "Vais" Você? (Ary
Barroso aproveitando-se de expressão coloquial da moda para se permitir
intencional ofensa à gramática) também não são lá grande coisa, embora muito
cantadas. Nem mesmo sambas como Falso Amor e Acorda, Escola de Samba
conseguem elevar o nível do que se ouve no rádio.
Será exagero afirmar que as melhores músicas deste carnaval são mesmo as
de Noel Rosa? É inegável que nenhuma delas tem espírito muito carnavalesco.
Tarzan, Cidade Mulher, Dama do Cabaré, Na Bahia e Pela Primeira Vez são
todas músicas de meio de ano, ouvidas já no filme Cidade Mulher. Só foram
incluídas nos catálogos de carnaval porque levam a assinatura de Noel Rosa. O
X do Problema, que o público também já conhece de teatro e de rádio (afinal, foi
lançado há quase dois anos), é gravado por Aracy de Almeida com vistas ao
carnaval, mas, positivamente, de carnaval pouco tem. O mesmo pode-se dizer
dos quatro sambas que o próprio Noel levou ao disco em dupla com
MaríliaBaptista. Nota-se que foi feito esforço no sentido de tornar esses sambas
"carnavalescos", seus andamentos mais acelerados, gente de escola de samba
atuando no ritmo. Mas nem assim foi possível ocultar-lhes a nostalgia. Não tanto
no caso de Você Vai Se Quiser, mas no dos outros três, Quantos Beijos!, 'Provei
e Quem Ri Melhor. Por mais que o ritmo tenha sido adaptado a esta festa de
alegria, o que fica mesmo é o desconsolo de certos versos e a melancolia de cada
frase musical. Dois deles eram feitos de parceria com Vadico, mas todos são
obras bem de acordo com o Noel desses dias. Tristes, mas certamente o que de
melhor se ouve neste carnaval. Não é por acaso que Quem Ri Melhor ganhará o
primeiro prêmio da Prefeitura.
No domingo de carnaval, 7 de fevereiro, Noel sente-se bem o bastante para
fugir, ainda que por poucas horas, da clausura do chalé.
- Quero ver o movimento na cidade-diz ele convidando Lindaura.
Hélio chama um dos motoristas de táxi, amigo do Ponto de 100 Réis, e o
contrata para, capota arriada, levar Noel, Linda, toda a família até a Avenida
Central. Blocos passam, blocos cantam:
Pobre de quem já sofreu neste mundo
são exemplos - Noel sempre evitava os versos livres, preferindo formas mais tradicionais, metrificadas, como o terceto, a trova, etc. O samba só seria gravado um ano e quatro meses após a morte de
Noel, na Victor, por Sílvio Caldas e os Diabos do Céu.
O que passará pela cabeça de Noel enquanto o irmão vai pintando, talvez
com cores demasiado carregadas, quadros de uma Ceci amada por um, insultada
por outro, mas sempre tão diferente da que conheceu numa festa de São João? O
episódio do copo de cerveja o impressiona tanto que não vê outra saída senão
quebrar intenção de nunca mais procurá-la. No dia seguinte, febril, vai até a
Avenida Mem de Sá. À porta do velho sobrado, não tem coragem de subir. A
essa hora, cinco da tarde, Ceci deve estar em casa. Mas com quem? Sozinha? Ou
repartirá com outro amor o quarto em que viveram juntos tantos momentos de
paixão? Não, Noel não tem coragem de subir. Passa um conhecido e ele pede: -
Você me faz o favor de chamar a Ceci lá em cima?
O conhecido sobe, demora-se alguns instantes e volta. O recado está dado.
Noel espera. Dez, quinze minutos, Ceci desce. Veio tão rápido quanto lhe foi
possível. Ou quanto as explicações a Mário permitiram: "Que diabo! É só ele
chamar e você vai..." Sim, é só Noel chamar que Ceci vai. Os tempos podem ser
outros, muita coisa pode ter mudado, mas ainda guarda pelo ex-amor uma
grande ternura.
- Você está bem de saúde?
- Sim, ótimo.
- Mas parece com febre. Por que saiu de casa? E esta cicatriz no rosto?
- Tinha de falar com você.
Ceci diz que o levará de volta a Vila Isabel, que vai chamar um táxi, cuidar
para que ele não saia até que a febre passe. Por um momento pensa em Mário.
Terá que esperar. Faz parar o primeiro táxi, entra, Noel a segue. Ceci nem sequer
avisou ao Mário. No caminho, Noel pouco fala de si. Explica a cicatriz no rosto,
jura que está melhor, apenas um pouco gripado. Fala do prazer de revê-la,
sempre tão bonita, sempre tão gentil. Desta vez, diz tudo isso sem ironias.
- Mas eu te procurei, mesmo, pra pedir desculpas.
Desculpas pelo primo Jacy, jovem, intempestivo, mas no fundo um bom
homem. Foi por amizade a ele, Noel, que Jacy fez o que fez. Imperdoável, é
verdade, mas mesmo assim Noel espera que Ceci o perdoe. Por que não? Ela não
é de guardar rancor. Promete esquecer, se é que já não esqueceu.
O resto do encontro é feito de poucas palavras, como se já não houvesse
muito mais a dizer. Poucas palavras, muita tristeza. De parte a parte. Por último,
as despedidas. Desta vez, sem que eles saibam, para nunca mais.
Um gosto de despedida. O chalé transformado em retiro, Noel ausenta-se
cada vez mais do mundo lá fora. Armênio Mesquita Veiga aparece para dizer-lhe
que acaba de ouvir Aracy de Almeida cantando Último Desejo. Sim, no rádio.
Noel não sabia.
- Mas ela nem aprendeu o samba direito - espanta-se.
Armênio havia notado. Basta dizer que em vez de "Mas meu último
desejo..." ela canta a Pois meu último desejo..." E em lugar de "que o meu lar é o
botequim" ela diz "que o meu lar é um botequim...". Pode parecer a mesma
coisa, mas não é.
Juro que nunca mais dou música minha para ela gravar.
Uma zanga que dura pouco. Noel gosta de Aracy. Como cantora e como
gente. Tirando esses escorregões, que fabulosa intérprete ela é! Inclusive
cantando Último Desejo. Armênio recorda quando serviu de mediador numa
discussão entre Noel e Aracy, faz tempo. Noel ensinava a ela a letra de O Maior
Castigo Que Eu Te Dou, samba de dois anos atrás, primeiros tempos de um
romance ainda cheio de vida, o anti-romântico Noel dirigindo-se à jovem
dançarina Ceci:
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer do que te ver me provocar
Pois Aracy teimava em querer cantar "não há ninguém mais calma do que
eu sou..." Afinal, argumentava, era uma mulher.
- Este "calmo" aí, depois do "ninguém", não varia, Aracy.
- Não interessa! Não vou cantar como se fosse homem.
- Mas é "calmo", Aracy - insistia Noel já irritado.
- Calma!
- Calmo!
Foi então que Armênio chegou. Ao ver a discussão esquentar, achou melhor
fazer-se de apaziguador. Explicou a Aracy que Noel estava certo, o "ninguém"
não significando alguém específico, nem homem, nem mulher. Neste caso,
sendo um pronome indefinido, o certo era mesmo "calmo". Aracy não ficou
muito convencida. Isso foi tempos atrás, Noel ainda com forças para discutir o
gênero de uma simples palavra. Hoje, suas zangas realmente duram pouco. Hélio
aparece. Vem de dentro do chalé atraído pelo barulho de um avião que faz
piruetas, rasante, tracejando desenhos de fumaça no céu muito azul de abril. É
um monomotor, desses em que pilotos civis ou militares realizam seus
treinamentos. Voa tão baixo que dá a impressão de que vai derrubar a chaminé
da fábrica de tecidos.
- Será o Mello Maluco? - pergunta Armênio pensando no piloto famoso por
suas acrobacias aéreas(7).
7. Major do Exército naquela ocasião, Francisco de Assis Corrêa de Mello, o Mello Maluco, como era conhecido por suas arriscadas acrobacias aéreas, pilotou em 1931 o primeiro vôo
transcontinental militar brasileiro. Em 1941, passaria aos quadros da Aeronáutica, que então ganhava ministério próprio. Chegaria a marechal-do-ar e a ministro da Aeronáutica no governo Juscelino
Kubitschek e mais tarde no de Ranieri Mazili, no curto período em que este presidiu o Brasil logo após o golpe militar de 1964. Era muito popular no Rio de Janeiro dos anos 30.
"Vila Isabel é hoje o bairro de Noel Rosa, homem estranho que morreu moço e que foi um gênio carioca.
Noel um dia cantou-me um samba, creio que no Café Nice, batendo numa caixa de fósforos, como
acompanhamento. Era admirável, sua voz rouca de rapaz doente, cheia de um sentimento profundo,
acentuando nas palavras a força melancólica de um segredo à bem-amada. Exultei, mas o rapaz, dias
depois, procurava-me noutra mesa do café para mostrar uns desenhos seus, de pouco valor. Disse-lhe que
não desenhasse e fizesse sambas, muitos sambas! Desde então passou a me tratar mal e por minha culpa não
mais tive o seu convívio. Só sabia dele através de Antônio Nássara, outro homem maravilhosamente carioca
e de São Cristóvão. Nascido na Rua Abílio, esquina da Rua Vileta. Nássara é tão carioca como é carioca o
Largo da Lapa. Poderia ser considerado monumento desta cidade: com Orestes Barbosa e Sílvio Caldas faz
um trio que encontra no meu coração um aconchegado recanto de carinhos."
Di Cavalcanti
Diário de Notícias, 11 de março de 1962
Se já não faz novas músicas, ainda tem muitas guardadas, inéditas, prontas
para serem lançadas no rádio ou gravadas em disco. Aracy de Almeida sabe
disso. Ela também aparece no chalé, acompanhada de Benedicto Lacerda,
querendo saber se ele não teria umas coisinhas para mostrar. Claro que tem. A
zanga? Noel nem se lembra mais da troca do mas pelo pois e do o pelo um.
Recebe-a bem, pega o violão, mostra lhe o que tem: quatro grandes sambas. Dois
deles Aracy decide gravar logo. Um é O Maior Castigo Que Eu Te Dou, que ela
promete cantar com a letra certa (a promessa não será cumprida). O outro é Eu
Sei Sofrer, iniciado em Friburgo, terminado aqui. A cantora gosta não apenas do
samba, mas também do desenho que Noel fez para a partitura.
- Me dá esse desenho, Noel?
- Quando estiver pronto.
Os dois outros sambas Aracy deixa para gravá-los depois. É pena. Um
deles, Século do Progresso, de três anos atrás, conta a história daquela briga já
superada com Zé Pretinho. Tudo são reminiscências nestas "coisinhas" que Noel
vai mostrando a Aracy. Inclusive - e principalmente - no mais bonito de tudo que
ele tem guardado: Último Desejo. Sim, é pena que a cantora deixe para gravá-lo
só daqui a dois meses. O tempo já não é muito. Ela e Benedicto Lacerda talvez
não percebam que Noel tem pressa, mais pressa do que muitos imaginam.
Nova visita de Vadico ao chalé, Noel cantarola para ele, nota por nota, o
mesmo Último Desejo. O parceiro vai passando a melodia para a pauta,
prometendo escrever a parte de piano e entregá-la a Mangione.
- Quero mais um favor seu, Vadico. Gostaria que você desse uma cópia da
letra a Ceci.
Vadico promete que o fará. O mais rápido possível. Sai dali, vai para casa,
senta-se ao piano, passa as notas para o pentagrama. A melodia da segunda parte
que Noel lhe cantou é um pouco diferente da aprendida por Aracy de Almeida,
mas exatamente igual à que o mesmo Noel ensinou a Marília Baptista. Uma
diferença que um dia dividirá as duas grandes intérpretes em torno da verdade
que cada qual, com razão, diz conhecer(9).
9. A versão que se tornou clássica de Último Desejo é a que Aracy realmente gravou dois meses depois da morte de Noel. A que Marília aprendeu do próprio compositor - a mesma que está
na partitura escrita por Vadico - tem melodia diferente no terceiro, quarto, quinto e sexto versos da segunda parte. Quanto à letra, na partitura está a forma errada "um botequim" em lugar de "o
botequim", como Noel escreveu.
Vadico passa a pauta a limpo, tira uma cópia da letra e leva-a para Ceci.
Exatamente como Noel pediu. O pianista encontra-a no Caverna, de noitinha,
põe os versos sobre a mesa.
- O que é?
- Um, samba de Noel. Acabei de escrevê-lo(10).
10. Em entrevista a Ary Vasconcelos (Fairplay, 1967), Ceci diz que Vadico lhe entregou o samba no exato momento em que lhe comunicava a morte de Noel. Aos autores ela dá esta outra
versão. Nos dois depoimentos, porém, afirma que Último Desejo tinha música de Vadico. Uma confusão a que deve ter sido induzida pela frase "Acabei de escrevê-lo..." Vadico jamais reivindicou a
autoria deste samba. Na certa queria dizer que acabara de passá-lo para a pauta, como fez com tantas outras composições de Noel.
- Para mim?
- Sim, ele me pediu que eu te desse. Vadico não consegue evitar o
comentário:
- Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceci.
Capítulo 45
O FIM
Um espanhol
Que está me ouvindo desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que abala Caxambu
Esse espanhol
Que na mentira não me apanha
Garantiu que lá na Espanha
Chove bala pra chuchu!
Chuva de vento
É quando o vento dá na chuva
Sol com chuva - céu cinzento,
Casamento de viúva
Zeca Secura
Da fazenda do Anzol
Quando chove não vê sol
Vai comprar feijão no centro
Bebe dez litros
De cachaça em meia hora
Pra agüentá chuva por fora
Tem que se molhar por dentro.
Vento danado
É aquele lá de Minas
Sopra em cima das meninas
Diverte a população
Até os velhos
Vão correndo pras janelas
Para ver se algumas delas
Já usa combinação
Um Zé Pau-d'Água
Tem um amigo parasita
Não trabalha e sempre grita:
"Viva Deus e chova arroz!"
Gritando assim
Do seu povo ele se vinga
Viva Deus e chova pinga
Que arroz nasce depois.
Chuva de vento
Muita gente desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que eu vi em Caxambu
Se o espanhol
Contar a dele não me ganha
Vai dizer que na Espanha
Chove bala pra chuchu!
É quase noite. As pessoas que entram e saem do chalé o fazem na ponta dos
pés, comunicam-se por sussurros. Em frente, no 385, acertam-se os últimos
detalhes da festa que Vicente Gagliano - o Vicente Sabonete das serenatas de
antigamente - faz questão de dar pelo aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a
mesa de doces, fura-se o bolo com as quarenta velinhas, manda-se entrar o
chope. Heitor Bateria - um negro alto e magro, tocador de pandeiro, surdo e
tamborim, cuja jazz band costuma alegrar as festas do bairro em troca apenas de
comida e bebida - chega com seus músicos. Os convidados também. Pouco
depois de oito da noite, a casa de Vicente Sabonete está cheia e animada.
O silêncio e a penumbra do chalé contrastam com a barulhenta e iluminada
residência em frente. Alguns amigos vêm ver Noel, entram devagar, olham da
porta do quarto para o corpo consumido, cansado, a palidez disfarçada pela
pouca luz. Depois se afastam em silêncio, trocam palavras com dona Martha e
Hélio, saem como entraram, mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato
Baptista, bons amigos, estão entre as visitas cautelosas. A dança na casa de
Vicente Sabonete fica mais animada, a música se espalha, todos homenageando
Emília. Dorica, que não perde uma festa nas vizinhanças, desta vez faz diferente:
vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor de ferver a seringa. O filho está
prostrado, talvez uma injeção o reanime. A música atravessa a rua, chega até o
chalé.
- Seu Vicente, ouvi dizer que o Noel está muito mal aí defronte - alguém
avisa, voz baixa, ao dono da casa.
Vicente Sabonete manda um de seus filhos saber se é verdade. Talvez a
música esteja incomodando o doente. Dona Martha diz que não, a música nunca
incomodou Noel, seu Vicente que se tranqüilize, que prossiga com a festa.
Heitor Bateria comanda compenetrado a sua jazz band. É ele quem sugere, como
próximo número, um samba de Noel Rosa:
De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado, não
Noel, provavelmente, já não ouve. Tem a cabeça pousada no colo de
Lindaura, os olhos semicerrados. Dorica ferveu a seringa, Hélio vai até a sala
buscar a caixa de Canphydral. No portão, Martha despede-se de Orestes e do Dr.
Renato. Do outro lado, a música continua:
Passeando a meu lado
Você sobe de valor
Seu vestido sem babado
É você sem meu amor
(É assistência sem doutor...)
Hélio prepara a injeção, Dorica vem da cozinha com uma xícara de café
bem quente. Noel, a cabeça no colo de Lindaura, parece dormir um sono calmo,
profundo. Um fio de respiração é todo o vestígio de vida que há nele. Por pouco
tempo, porém. A mãe já se despediu das visitas e está agora de pé à porta do
quarto. Chega a tempo de ver aquele fio de respiração se extinguir. Pouco antes
das onze da noite, no mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte
e seis anos, quatro meses e vinte e três dias, morre Noel Rosa.
Cometas e outros corpos celestes passam ligeiros deixando em seu rastro
um mundo de superstições. Foi assim com o Halley naquele 1910 e volta a ser
assim com o Hermes neste 1937. Vinte e seis anos e alguns meses separam os
rumores apocalíticos inspirados na passagem de um e de outro. Tempo de uma
vida, ainda que curta como a de Noel Rosa. Quando ele nasceu, falava-se no fim
do mundo. A mesma coisa agora, os jornais abrindo espaço para que cientistas,
profetas e loucos digam o que pensam. Assis Valente - com quem Noel conviveu
em muitas noites da Lapa - chegará a converter tais rumores num samba que será
sucesso no próximo carnaval. O primeiro carnaval sem Noel Rosa:
Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso lá no morro nessa noite não se fez batucada...
Será que alguém associa a morte de Noel Rosa, esta pequena tragédia
carioca, aos maus presságios que cercam a vinda do Hermes? É mais certo que
não. Mas é em clima de grande confusão que são vividas, no chalé, as horas
entre a morte do compositor e seu sepultamento. A casa é literalmente invadida
por amigos, vizinhos, curiosos, gente de rádio, estranhos. A imprensa se
mobiliza. Um jovem repórter, David Nasser, avisado por Marino Pinto, acorda
fotógrafo e motorista do plantão noturno de O Globo e vão todos correndo para a
Theodoro da Silva no Ford 37 que Roberto Marinho acaba de comprar para dar
velocidade e aparência à reportagem do jornal. Ao voltar, David terá dificuldade
para convencer o secretário de redação, José Maria Pereira, de que o assunto
merece a primeira página. Sua matéria de dez laudas será reduzida a dez
linhas(2).
2. "Noel Rosa nasceu depois da morte", artigo de David Nasser, Manchete, 13 de fevereiro de 1971 (página 111).
"O cantor querido do povo carioca expirou ao som do samba De Babado de sua autoria. Foi a sua
última vontade. Pressentindo a sua hora final, Noel Rosa, que ouvia os acordes de uma orquestra próximo à
sua residência, pediu que tocassem uma de suas composições. Transmitida a solicitação, a família vizinha
atendeu. E o cantor do morro e da cidade, que guardava o leito desde algum tempo, atacado de pertinaz
enfermidade, ficou atento à música. Em dado momento, a esposa e a progenitora do compositor notaram
que uma lágrima corria pela face do enfermo. Era o fim de Noel Rosa que cerrava as pálpebras para sempre.
Um colapso cadíaco punha termo àquela existência."
O Globo 5 de maio de 1937
"Noel Rosa expirou, vitima de atroz dispnéia, pouco depois das 23 horas de ontem. Seu estado,
embora despertasse cuidados por parte da família, não era de gravidade assustadora. Por isso, a surpresa
dolorosa que tomou os seus depois do desenlace.
Assistiram-no sua genitora e seu irmão Hélio Rosa, também artista de rádio. Expirou serenamente,
não obstante a moléstia pulmonar. Pouco antes, mandou que um irmãozinho fosse à residência de uma
família amiga, bem próxima à sua casa, à rua Theodoro da Silva 385, onde havia festa, para que tocassem
uma música sua. O garoto ao chegar lá ouviu os primeiros compassos do grande êxito de Noel Rosa: De
Babado.
Pouco depois, o compositor falecia, ao som longínquo da música. Quando a triste nova chegou à
festa, todos correram à casa onde expirara o príncipe dos compositores populares."
Diário da Noite 6 de maio de 1937
"Noel Rosa, o conhecido compositor e cantor de rádio, faleceu ontem à noite vitimado por uma
síncope cardíaca.
O artista, que residia à rua Theodoro da Silva 382, achava-se na ocasião em uma festa na casa de uma
família amiga sita à mesma rua n? 385. Havia grande alegria na casa e o cantor e compositor tinha
começado a cantar um samba de sua autoria quando foi acometido do mal súbito, extinguindo-lhe a voz nos
lábios e a vida também."
Jornal do Brasil 5 de maio de 1937
"O compositor Noel Rosa, que se encontrava doente há tempos, quando cantava um samba inédito na
casa de uma família amiga foi acometido de uma síncope cardíaca falecendo repentinamente."
A Manhã 6 de maio de 1937
"O autor do O X do Problema estava doente há meses. E descansando em Friburgo, chegara há três
dias. No sanatório em que estava, sentiu saudades do morro e seus fãs. Veio porém para durar poucos dias.
E anteontem morreu de um colapso cardíaco. Conversava com a sua progenitora e com a sua esposa quando
a morte chegou."
A Nação 6 de maio de 1937
As carteiras da sala de aula são afastadas. Sobre quatro delas improvisa-se
uma mesa. Em cima, coloca-se o caixão de pinho barato, o único que a família
pôde comprar (um dinheiro recolhido durante o velório por gente do rádio, com
o intuito de ajudar nos funerais, desapareceu das gavetas da cômoda de Martha,
impossível saber, neste entra-e-sai, nos bolsos de quem). O corpo será velado
durante toda a madrugada e parte da tarde de quarta-feira, 5 de maio. Martha tem
esperanças de que Carmem, o marido e os filhos cheguem a tempo de Belo
Horizonte. Não quer que o enterro seja antes das cinco.
Os que passam pelo caixão nunca esquecerão este último olhar. Noel, o
corpo mirrado, exaurido pela doença, quarenta quilos no máximo, tem a
aparência de um menino. Apesar dos olhos encovados, dos ossos salientes, dos
fios de barba ruiva no queixo torto. É um rosto sem vida, mas sereno. Vestiram-
no com um terno branco, a gravata borboleta de que tanto gostava, os sapatos
fantasia. Pela manhã, esta roupa desaparecerá sob as flores com que Martha,
Lindaura, Arlinda, Nilda, Heloísa, Dorica, Emília enfeitarão o caixão. Um
quadro que se repete nos velórios do bairro: enquanto bocas masculinas falam do
morto, sempre bem, mãos femininas o cobrem de rosas, cravos, palmas e
saudades.
É um estranho velório. Exatamente como a integradora democracia dos
botequins de Vila Isabel, que Noel freqüentou desde garoto, reúnem-se aqui
pessoas das mais importantes famílias do bairro, os artistas mais conhecidos do
rádio, as figuras mais representativas da vida mundana da cidade. E ao lado
delas, chorando mais que todos, compositores de pés descalços, bêbados em raro
instante de sobriedade, mendigos como o Bela Idéia, sambistas humildes como o
Osso, que não tardará a fazer aquele que talvez seja o primeiro samba em
memória de Noel Rosa:
Havia grande festa em meu barraco
Quando a noticia do fato
Veio o morro entristecer
Era o filósofo Noel
Que Vila Isabel acabava de perder...
Constrangimento geral
De luto o morro ficou
Samba ninguém mais cantou.
Tu não te lembras do filósofo,
Sambista por excelência?
Uma primazia que pode ser discutida por Cartola, o amigo Cartola, que
também faz, ainda sob o impacto da notícia, um samba para Noel:
A Vila emudeceu
Dolorosamente chora
O que perdeu
Ninguém é imortal
Morrer é natural
Ó, Deus, perdoa
Se é que estou pecando
Que mal lhe fez a Vila
Que lhe estás torturando?
Lado a lado, pela mesma alameda, vão Eduardinho e o Dr. José Rodrigues
da Graça Mello. Pensativos, num silêncio que o primeiro quebra:
- Sabe, Graça Mello, acho que ele próprio causou a sua morte.
Novo silêncio. O médico que o ajudou a nascer, naquele domingo
ensolarado de 1910, pensa no menino que acaba de enterrar nesta quarta-feira
chuvosa:
- Não, Eduardo. Noel apenas viveu a vida que quis viver.
"O desenlace ocorreu inesperadamente, quando no seu leito e na presença de sua esposa, genitora e
diversas outras pessoas, cantava o samba De Babado Sim."
Monitor Juvenil, maio de 1937
"Por volta das 21h30m, enquanto dona Martha e Lindaura, no portão, se despediam de amigos da
família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira, notou que o doente abria os olhos, esgazeadamente.
Parecia querer dizer algo. E como Hélio lhe indagasse o que sentia, Noel respondeu em voz quase
imperceptível:
- Estou me sentindo mal. Quero virar para o outro lado...
O irmão o ajudou. Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a mesinha de cabeceira,
em cujo tampo, como que obedecendo a um tique nervoso, ficou batendo pancadas surdas, ritmadas,
esmorecendo, ralentando. Por fim, a mão de Noel quedou imóvel.
Estava morto o maior compositor de samba do Brasil."
Almirante, No Tempo de Noel Rosa
"Conta-se muita história por aí, tudo mentira. Noel Rosa, pode escrever no seu livro, morreu nos
meus braços. Sim, nos meus braços."(4)
4. Bucy Moreira, depoimento aos autores.
O adeus de Ary
POSTERIDADE
Meus inimigos
Que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim
Fita Amarela
Ceci, a inesquecível dama do cabaré, não ficou muito tempo mais com
Mário Lago. Os amores da boêmia, afinal, não foram feitos para durar. Mas não
se esqueceriam um do outro. Embora ele o negasse, ela seguiria convencida de
ter sido a inspiradora dos versos que, com música de Benedicto Lacerda,
correram o Brasil na voz de Orlando Silva:
Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado,
Com outro que te encontrou
Este "outro" seria José Antônio de Araújo, que tirou Ceci da noite, casou-se
com ela, ajudou-a a reencontrar o caminho de casa, onde um pai arrependido
recebeu-a de braços abertos. Mas não é este o final feliz de sua história. Um ano
e cinco meses depois do casamento - exatamente no dia em que Noel estaria
fazendo 35 anos -José Antônio morreria intoxicado por uma injeção deteriorada
de Necroton na veia. Ceci voltou a ganhar a vida como antes, cabarés, dancings,
casas noturnas baratas, no Rio e no interior. Mas conseguiu juntar o dinheiro que
lhe permitiu comprar seu próprio chalé modesto na Vila Kennedy, subúrbio
carioca, onde envelheceria como professora particular de crianças pobres.
Ceci, como as demais mulheres da vida de Noel, se lembraria dele sempre
com ternura. Musas e exceções num tempo de esquecimento.
Tempo de esquecimento porque tempo de mudanças. Depois da morte de
Noel Rosa - embora não necessariamente por causa dela - o mundo em que ele
vivera realmente desmoronava. Ou melhor, mudava. A música popular, o Rio
boêmio, o Brasil, nada seria como antes.
A 10 de novembro daquele mesmo 1937, a decretação do Estado Novo
aplicava duro golpe nas esperanças brasileiras de democracia. Uma ditadura
populista nos moldes do fascismo era importada da Europa por Getúlio Vargas
para substituir o regime de trajes imprecisos - com que roupa? - que aqui se
implantara sete anos antes. Como toda ditadura, dada a arroubos ufanistas. De
repente, segundo a propaganda oficial, além de gigante pela própria natureza, o
Brasil tornava-se o país do futuro.
Dentro desse espírito (ainda que ingenuamente, sem perceber que servia aos
propósitos da nova ordem que dizia combater), Ary Barroso criaria com a sua
Aquarela do Brasil uma grandiloqüente novidade: o samba-exaltação:
Brasil, meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos...
Com maior ou menor êxito, mas sempre tendo de amoldar sua arte aos
gostos de lá, também tentaram fazer a América inúmeros seguidores de Carmem:
o Bando da Lua que a acompanhava e os Anjos do Inferno, Laurindo de Almeida
e Garoto, o agitado Russo do Pandeiro, ao lado de quem Noel vivera a deliciosa
aventura do Gente do Morro, e o equivocado Cândido de Arruda Botelho, a
quem o Departamento de Imprensa e Propaganda, o temível DIP da ditadura
Vargas, mandou à América para divulgar não só nossas canções, mas certa
fantasia de mamoeiro, desenhada por Santa Rosa a partir de detalhes de trajes
típicos de todo o Brasil, das bombachas do gaúcho ao chapéu de couro do
cangaceiro. Um sonho que a muitos atraiu, inclusive ao ufanista Ary Barroso,
contratado para escrever música de filmes e até de uma peça da Broadway,
Pedro Song, jamais encenada. E também ao talentoso Vadico, que viajou com a
orquestra de Romeu Silva, incorporou-se ao grupo de Carmem e mais tarde
serviu como pianista e arranjador à companhia da bailarina negra Katherine Du-
nham. Sonhos, enfim, muito diferentes do que poderia alimentar, olhos e
corações voltados para a realidade à sua volta, o poeta Noel Rosa.
A terceira determinante é sem dúvida a mais importante: a cultura que os
americanos exportaram às toneladas desde fins dos anos 30 e que recrudesceria,
já no pós-guerra, através do mesmo "intercâmbio" patrocinado pela Comissão
Coordenadora dos Assuntos Interamericanos, do Departamento de Estado já
agora do governo Harry Truman, política esta a cargo do magnata americano
Nelson David Rockefeller. Se o samba-exaltação e a necessidade de adaptar
nossas coisas ao sabor americano já haviam, por motivos vários, provocado
mudanças, esta terceira determinante não seria menos que uma revolução:
mudaria literalmente tudo, os hábitos, os valores, a moda, o comportamento, a
cultura, o Brasil.
Na música popular, os sons vindos da América ecoavam mais alto que
quaisquer outros. Através dos filmes, dos discos, dos programas de rádio
retransmitidos aqui, entre os quais o célebre Your Hit Parade, ganhavam a cada
dia novos adeptos. Enquanto nos Estados Unidos muitos intelectuais reagiam,
nos anos 40, ao excesso de importação do que consideravam "bizarrias latino-
americanas" (o venezuelano Carlos Ramírez, o mexicano Tito Guízar, os
Lecuona Cuban Boys, os rumbeiros do espanhol Xavier Cugat e até mesmo a
brasileira Carmem Miranda), a ponto de um deles ter escrito uma protest song
que os próprios brasileiros aprenderiam a cantar pelo Your Hit Parade...
Take back your samba,
Ai, your rumba,
Ai, your conga...
Ai, ai, ai!(8)
8. Este detalhe, que escapou a Tinhorão em seu estudo, é importante por mostrar as diferenças de postura nos dois países. South America Take it Away, a começar pelo título, era uma
verdadeira canção de protesto. Harold Rome escreveu-a em 1944 e Betty Garrett lançou-a dois anos depois no musical da Broadway Call Me Mister, mas se popularizaria no Brasil através da gravação
best-seller de Bing Crosby com as Andrews Sisters.
É verdade que Vila Isabel não mudara tanto. Ainda guardava vestígios da
"grande família" de que falava vó Rita, o mesmo espírito de vizinhança, a
mesma solidariedade. Um bairro residencial de classe média, fábricas de um
lado, casas novas do outro, o Boulevard no meio, correndo como um rio por
entre margens contrastantes. Mas já não era o grande "celeiro", deixara de ser o
bairro musical dos tempos dos Tangarás.
É verdade, também, que ali, mesmo nos anos de esquecimento, todos se
lembravam de Noel. Mas um Noel mais personagem, mais mito que compositor.
Os velhos moradores, em especial os boêmios, quando se reuniam nos botequins
para conversas e cervejas, falavam de Noel sempre com carinho, mas pareciam
mais interessados em contar-lhe as histórias do que em cantar-lhe os sambas. Os
sambas saíam de moda; as histórias, não. E os mais jovens, os que vinham
chegando, aprendiam a admirar o poeta sem lhe conhecer a poesia.
Noel Rosa tornou-se realmente uma espécie de mito no bairro. Quase tudo
que se ligava ao seu nome tinha sabor de anedota. Ou de lenda. Como naquela
manhã de 1946 em que os moradores da Tobias Barreto se depararam com a
praça vazia, apenas um buraco onde até a véspera estava o monumento a Noel.
Uns telefonaram para os jornais, outros chamaram a polícia. Quem o teria
roubado? Quando os repórteres de A Noite chegaram, representantes que eram
do órgão que encampara a idéia de Nássara e Orestes, havia uma multidão no
centro da praça. Um dos moradores apontava para os lados da Mangueira: - Na
certa foi o pessoal do morro.
E explicava que os negros lá de cima viviam dizendo que Noel era mais da
Mangueira do que daquele lado meio grã-fino da Vila. Talvez, naquelas horas, o
monumento já estivesse em frente a uma birosca do Buraco Quente. Outros
acreditavam que algum vizinho, apaixonado pelas músicas de Noel, tivesse
carregado o bloco de pedra para o próprio quintal. Afinal, o bairro estava cheio
de doidos. Mas não. Antes do fim da tarde o mistério se desfez: a Prefeitura do
Distrito Federal, sem avisar a ninguém, decidira levar o monumento para a Praça
7, que agora se chamava Barão de Drummond. Vila Isabel não mudara tanto,
mas mudara.
Aos poucos, arrefecera-se a rivalidade entre o Cara de Vaca e o Faz
Vergonha, este, nos dias de carnaval, desfilando com um estandarte oval onde se
via o retrato de Noel pintado por humilde artista do bairro. As batalhas de
confete já não eram as mesmas. Nem as do Boulevard, nem as do Maracanã,
todas em extinção. Só os blocos resistiam, embora menos animados, sem rixas e
principalmente sem os improvisadores de antigamente. Foi em homenagem a
Noel Rosa que surgiu, na década de 40, novo bloco que nada tinha a ver com as
emulações entre o Faz Vergonha e o Cara de Vaca. Era o Unidos de Theodoro,
que em seu primeiro desfile cantou:
O orgulho que eu tenho na vida
Fica na vila querida
Onde morava Noel
O mesmo bloco, a cada ano, lembrava seu patrono. Afinal, poeta que
nasceu, viveu e morreu na rua que lhe emprestava o nome:
Vila, terra querida,
Foi lá onde eu nasci
De lá vem o samba
Terra de gente bamba
Berço do grande Noel...
A vila toda emudeceu
No dia em que Noel Rosa morreu.
E eu hoje em dia
Vivo com ódio até de mim
Eu sofro com pena do teu remorso
E muito me esforço
Para não ter tanta pena assim.
Nem José Lins, nem Marques Rebelo, nem Prudente de Moraes Neto.
Quem realizou a empreitada, quatorze anos depois, foi Jacy Pacheco, o primo
Jacy. O mesmo que Noel e o Gente do Morro haviam conhecido em Campos em
1932 (o mesmo também que, segundo Ceci, a culpara pelos pulmões doentes do
amante). Em 1955 vinha à luz Noel Rosa e Sua Época, escrito com carinho, de
poeta para poeta:
"Cheio de ternura, de saudade dele, vou contar o que sei.
As palavras serão simples e claras.
Uma história para se guardar no coração.
Era uma vez uma cigarra boêmia, cantora das madrugadas..."
Cantado por milhares de vozes nos dias de carnaval. Vozes da escola do seu
bairro no desfile de 1975:
Noel, és amor, és poesia,
Tua Vila, carnaval
Cantando nostalgia...
Ou no de 1982:
De azul e branco,
Por este mundo sem fim,
Lembrando Noel Rosa
Eu vou cantando assim
O Noel Rosa do outro mundo aconteceu pela mesma época. Em São Paulo,
Hervê Cordovil - seu parceiro em Triste Cuíca - via o amigo Batista Lima, da
Editora Allan Kardec, cometer uma inconfidência e publicar no jornal espírita O
Porvir - a letra de Noel que ele, Hervê, psicografara numa sessão em casa do
próprio Batista. A intenção de Hervê era não dar publicidade ao assunto : "Estou
lhe dando um pouco do que eu fui para que você possa interpretar o que eu sou",
teria dito Noel antes de ditar-lhe os versos de Vila Isabel do Espaço:
Minha Vila agora é outra
Muito longe da Isabel
Meu papel agora é doutra
Qualidade de papel
Que representei na terra
Andando de déu em déu
Alma voltada pro samba
Nada voltado pro céu
Polêmico. Mas uma coisa, aos estudiosos de Noel, parece certa: o poeta da
outra Vila é bem menos inspirado do que o da Isabel.
Estudiosos muitos, antigos ou recentes, obstinados ou ocasionais, atentos ou
apressados, interjetivos ou contidos, fãs irrestritos ou críticos eventuais. Nenhum
compositor popular brasileiro foi tão estudado. Estudos que Rubem Braga já
reclamava em 1955 ao ressaltar em Noel Rosa excepcionais qualidades de
cronista. Paulo Mendes Campos, com sua autoridade de poeta, foi um que
percorreu atentamente a obra de Noel para concluir que "os melhores versos de
nossa lírica popular são encontrados facilmente nas palavras espontâneas do
rapaz de Vila Isabel". Ary Barroso, ciumento como sempre, escreveu que o
parceiro, "como melodista, às vezes tinha sorte". Mas admitiu venerar "a
memória daquele que criou uma escola de poesia para o samba". Sylvio Tullio
Cardoso, em sua coluna de discos em O Globo, foi o primeiro a apontar no Billy
Blanco de Banca do Distinto, Camelô e Piston de Gafieira um novo Noel. Outros
fariam o mesmo com Chico Buarque de Hollanda quinze anos depois. Na
verdade, tornou-se quase inevitável dissociar os letristas do cotidiano do Noel
das melhores crônicas, ainda que tais letristas estejam, como Billy, tão pouco
identificados com o povo, ou tenham, como Chico, forma e conteúdo próprios.
Jorge Mautner romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda pop -
preferiu esquecer o Noel compositor e letrista para denunciar nele o anti-semita
de Cordiais Saudações e Quem Dá mais?. Se os entusiasmos de um admirador
como Nássara o ligam a um Baudelaire, um Rimbaud, um François Villon, ou se
outros recorrem ao cinema para pensá-lo em termos de Chaplin, Bunuel, Fellini,
o escritor João Antônio desconsidera todas essas analogias para dizer,
simplesmente, que "Noel é noelino". Também têm sido tentadas aproximações
com movimentos literários e musicais de diferentes épocas. O Modernismo, a
Bossa Nova, o rock'n roll. No ensaio As origens do samba, Noel Rosa e o
Modernismo(15), Affonso Romano de Sant'Anna ressalta a instintiva afinidade
do poeta de Vila Isabel com a plataforma estética de 1922, "o antiliterário, as
expressões corriqueiras, o humor, as soluções imprevistas e outros efeitos"
presentes no criador de Conversa de Botequim tanto quanto nos modernistas.
15. In Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (páginas 183 187).
Vila Isabel,
agosto de 1980-abril de 1988.
FOTOS
fonte: WEB
Tombadilho do couraçado S. Paulo, durante revolta. Fotografia tirada dois dias antes da rendição.
João Cândido na prisão da Ilha das Cobras
A localização estratégica do bairro de Noel Rosa
Vista da igreja e do mosteiro de São Bento, anos 1900. Em segundo plano, à direita, prédios e oficinas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e a chaminé da Companhia City
Improvements (fundada em 1866).
Arsenal da Marinha e Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro, anos 1900.
Fina
Antonio Nássara e autocaricatura
001. AEIOU
002. A Melhor do Planeta
003. A Noiva do Condutor ("Revista Radiofônica")
004. A Razão Dá-se A Quem Tem
005. A.B. Surdo
006. Adeus
007. Agora
008. Alô Beleza
009. Amar Com Sinceridade
010. Amor de Parceria
011. Ando Cismado
012. Ao Meu Amigo Edgar (Carta de Noel musicada por João Nogueira)
013. Araruta
014. Arranjei um Fraseado
015. Assim, Sim!
016. Até Amanhã
017. Balão Apagado
018. Belo Horizonte
019. Boa Viagem
020. Bom Elemento
021. Cabrocha do Rocha
022. Cadê Trabalho?
023. Cansei de Pedir
024. Capricho de Rapaz Solteiro
025. Cem Mil Réis
026. Chuva de vento
027. Cidade Mulher
028. Com Mulher Não Quero Mais Nada
029. Com Que Roupa? (1)
Com Que Roupa? (2)
030. Contraste
031. Conversa de Botequim
032. Cor de Cinza
033. Coração
034. Cordiais Saudações
035. Cumprindo a Promessa
036. Dama do Cabaré
037. De Babado
038. De Qualquer Maneira
039. Deus Sabe o Que Faz
040. Devo Esquecer
041. Disse-Me-Disse
042. Dona Aracy
043. Dona do Lugar
044. Dona Emília
045. Dono do Meu Nariz (paródia de Dona da Minha Vontade)
046. É Difícil Saber Fingir
047. É Peso
048. É Preciso Discutir
049. Escola de Malandro
050. Espera Mais Um Ano
051. Esquecer e Perdoar
052. Esquina Da Vida
053. Estamos Esperando
054. Estátua da Paciência
055. Este Meio Não Serve
056. Estrela da Manhã
057. Eu Agora Fiquei Mal
058. Eu Não Preciso Mais do Seu Amor
059. Eu Queria Um Retratinho de Você
060. Eu Sei Sofrer
061. Eu Vou Pra Vila
062. Faz de Conta Que Eu Morri
063. Feitiço da Vila
064. Feitio de Oração
065. Felicidade
066. Festa no Céu
067. Filosofia
068. Fiquei Rachando Lenha
069. Fiquei Sozinha
070. Fita Amarela
071. Fita de Cinema
072. Fui Louco
073. Gago Apaixonado
074. Gosto, Mas Não É Muito
075. Habeas-Corpus
076. Ilustre Visita
077. Ingênua
078. Isso Não Se Faz
079. Já Não Posso Mais
080. Já Sei Que Tens Um Novo Amor
081. João Ninguém
082. João Teimoso
083. Julieta
084. Ladrão de Galinha ("Revista Radiofônica" com paródia de Marchinha do Grande Galo)
085. Leite Com Café
086. Linda Pequena (1)
Linda Pequena (2) (ou Pastorinhas)
087. Mais Um Samba Popular
088. Malandro Medroso
089. Mão no Remo (ou Iça Vela)
090. Marcha da Prima... Vera
091. Mardade de Cabocla
092. Maria Fumaça
093. Mas Como... Outra Vez?
094. Mas Quem Te Deu Tudo Isso?
095. Menina dos Meus Olhos
096. Mentir
097. Mentiras de Mulher
098. Meu Barracão
099. Meu Sofrer
100. Minha Viola
101. Morena e Loura
102. Morena Sereia
103. Mulata Fuzarqueira
104. Mulato Bamba
105. Mulher indigesta
106. Na Bahia
107. Não Brinca Não
108. Não Digas
109. Não Faz, Amor
110. Não Foi Por Amor
111. Não Há Castigo
112. Não Me Deixam Comer
113. Não Morre Tão Cedo
114. Não Resta a Menor Dúvida
115. Não Tem Tradução (ou Sem Tradução)
116. Nega
117. Negócio de Turco
118. Nem Com Uma Flor
119. No Baile da Flor-de-Lis
120. Numa Noite à Beira-Mar
121. Nunca Dei A Perceber
122. Nunca... Jamais!
123. Nuvem Que Passou
124. O Barbeiro de Niterói ("Revista Radiofônica" com paródia de Il Barbieri di Siviglia)
125. O Maior Castigo Que Eu Te Dou
126. O Orvalho Vem Caindo
127. O Pulo da Hora
128. O Que é Que Você Fazia?
129. O Sol Nasceu Pra Todos
130. O X do Problema
131. Onde Está a Honestidade?
132. Paga-me Esta Noite
133. Palpite
134. Palpite Infeliz
135. Para Atender a Pedido
136. Para Me Livrar do Mal
137. Pela Décima Vez
138. Pela Primeira Vez
139. Perna Bamba
140. Pesado 13 (paródia de El Penado)
141. Picilone
142. Pierrô Apaixonado
143. Por Causa da Hora
144. Por Esta Vez Passa
145. Por Você Sou Capaz
146. Positivismo
147. Pra Esquecer
148. Pra Lá da Cidade
149. Pra Que mentir?
150. Prato Fundo
151. Prazer em Conhecê-lo
152. Primeiro Amor
153. Provei
154. Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?
155. Quando o Samba Acabou
156. Quantos Beijos
157. Que a Terra Se Abra
158. Que Baixo
159. Que Horas São?
160. Que Orgulho
161. Que se Dane!
162. Queimei Teu Retrato
163. Quem Dá Mais?
164. Quem Não Dança
165. Quem Não Quer Sou Eu
166. Quem Parte Não Parte Sorrindo
167. Quem Ri Melhor
168. Quero Falar Com Você
169. Rapaz Folgado
170. Remorso
171. Retiro da Saudade
172. Rir
173. Riso de Criança
174. Rumba da Meia-Noite
175. Saber Amar
176. Salada Russa
177. Samba da Boa Vontade
178. São Coisas Nossas
179. Se a Sorte Me Ajudar
180. Século do Progresso
181. Sei Que Vou Perder
182. Seja Breve
183. Sem Tostão
184. Seu Jacinto
185. Silêncio de Um Minuto
186. Sinhá Ritinha
187. Só Pra Contrariar
188. Só Você
189. Sorrindo Sempre
190. Suspiro
191. Tarzan, o Filho do Alfaiate
192. Tenentes... do Diabo
193. Tenho Raiva de Quem Sabe
194. Tenho Um Novo Amor
195. Terra de Cego
196. Tipo Zero
197. Três Apitos
198. Triste Cuíca
199. Tudo Que Você Diz
200. Uatch!
201. Último Desejo
202. Uma Jura Que Fiz
203. Vai Haver Barulho No Chateau
204. Vai Para Casa Depressa (ou Cara ou Coroa)
205. Vejo Amanhecer
206. Verdade Duvidosa
207. Vingança de Malandro
208. Vitória
209. Você é um Colosso (ou Pisou no Meu Calo)
210. Você Foi o Meu Azar
211. Você Só... Mente
212. Você Vai Se Quiser
213. Você, Por Exemplo
214. Voltaste
215. Vou Te Ripar
216. Yolanda
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provavelmente em fevereiro de 1973, para um especial da Rádio Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Inédita.
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Rio de Janeiro.
ISMAEL Silva. Entrevista a Ricardo Cravo Albim, gravada a 16 de julho de 1969, para o acervo do
Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro.
ISMAEL Silva. Entrevista a Antônio Crisóstomo para um especial da Rádio Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro. Levado ao ar a 27 de fevereiro de 1973.
NO TEMPO de Noel Rosa. Série de 22 programas radiofônicos semanais, produzidos e apresentados
por Almirante pela Rádio Tupi, Rio de Janeiro. Levados ao ar de 6 de abril a 31 de agosto de 1951.
Lançados comercialmente pela Collec-tor's Editora Ltda; em 1987. em onze fitas cassetes de 60 minutos
cada.