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João Máximo e Carlos Didier

NOEL ROSA
Uma biografia
EDITORA UNB
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor:
Antônio Ibanez Ruiz
Vice-Reitor:
Eduardo Flávio Oliveira Queiroz

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Conselho Editorial:
Antônio Agenor Briquet de Lemos (Presidente)
Cristovam Buarque
Elliot Watanabe Kitajima
Emanuel Araújo
Everardo de Almeida Maciel
José de Lima Acioli
Luiz Humberto Miranda Martins Pereira
Odilon Pereira da Silva
Roberto Boccacio Piscitelli
Ronaldes de Melo e Souza
Vanize de Oliveira Macedo
Copyright (©) 1990 by João Máximo & Carlos Didier
Direitos adquiridos para esta edição pela Editora Universidade de Brasília
Caixa Postal 15-3001 70910 Brasília, DF

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do editor.

Supervisão Editorial: Regina Coeli Andrade Marques


Preparação de Original:
Antônio Carlos Ayres Maranhão
Fátima Refane de Meneses
José Raimundo Reis da Silva
Maria Helena de Aragão Miranda
Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli
Revisão e índice:
Fátima Rejane de Meneses
Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli
Projeto Gráfico, Capa, Diagramação e Arte-final: Resa, Nanche Las-Casas
Supervisão Gráfica: Antônio Baptista Filho, Elmano Rodrigues Pinheiro
ISBN 85-230-0254-5
Ficha catolográfíca elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

Máximo, João R788t Noel Rosa: uma biografia/João Máximo e Carlos Didier.
- Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica Editora, 1990. 533p.il.
78.071.1(81) R788m Didier, Carlos, colab.
784.4(81)
Joao Maximo & Carlos Didier - Noel Rosa Uma Biografia
Para Elca e Adriana
AGRADECIMENTOS

A Henrique Foréis Domingues (Almirante), a quem tanto se deve a


posteridade de Noel Rosa, e a Jacy Pacheco, primo e primeiro biógrafo, tão
desprendido e generoso quando se trata de revisitar Noel.
A Eduardo Corrêa de Azevedo, o tio Eduardo, que com tanto zelo e orgulho
documentou e guardou memórias do chalé e das pessoas que nele viveram, e
também a Aldílio Tostes Malta, Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo e Nair
Goya-no Mathias, parentes próximos e distantes.
A Alceu de Miranda, almirante Antônio Fernandes Lopes, César Dacorso
Netto, Heitor Lino de Moraes, Hélio Lobo, Hélio Raynsford, Hermenegildo de
Barros Filho, Jocelyn Pereira da Silva, Dr. Lauro de Abreu Coutinho, brigadeiro
Lucílio Urrutigaray, Marcello. Menezes, Manuel Jansen Muller, general Moacyr
Mattos de Oliveira e Pedro Pereira da Rocha, que conviveram com o poeta além
dos muros do São Bento.
Ao almirante Adalberto de Barros Nunes, Affonso Guimarães (Affonsinho),
Angelina do Carmo, Anselmo Seixas, almirante Antônio de Barros Nunes
(Cacao), Arnaldo Araújo, Dr. Carlos Sant'Anna, Carmem Reis, Heloísa Brandão
de Marsillac, Jocelyn Corrêa da Encarnação, José Fernandes Xavier Neto, José
Maria Arantes, José Souza Pinto (Alegria), Maria do Carmo Coelho da Costa,
Nilda da Graça Mello Miranda, Raymundo Paesler, general Sylvestre Travassos,
Theodorica Fontes dos Santos Lima (Dorica) e Zaluar Moura, membros da
grande família que foi um dia a Vila de Noel.
A Angenor de Oliveira (Cartola), Antônio Cardoso Martins (Russo do
Pandeiro), Antônio (Gabriel) Nássara, Armando de Lima Reis (Christovam de
Alencar), Carlos Alberto Ferreira Braga (João de Barro), Glauco Vianna, Ismael
Silva, Manuel do Espírito Santo (Zé Pretinho), Manuel Ferreira, Renato Murce e
Sílvio (Narciso do Figueiredo) Caldas, parceiros que ficaram para ajudar a
contar a história.
A Aracy de Almeida e Marília (Monteiro de Barros) Baptista, as grandes
intérpretes, linhas paralelas se encontrando no infinito de Noel.
A Alberto de Castro Simões da Silva (Bororó), Alcir Pires Vermelho,
Antônio Almeida, Armênio Mesquita Veiga (Augusto Mesquita), Bucy Moreira,
Cícero Nunes. Cyro de Souza, Demóstnenes González, Djalma (Neves) Ferreira,
Elizeth (Moreira) Cardoso, Erasmo Silva, Este-van Sciangula Mangione,
Farnésio Dutra e Silva (Dick Farney), Floriano (da Costa) Belham, Homero
Dornelías (Candoca da Anunciação) João Freitas Ferreira (Jonjoca), Joel de
Almeida, Linda Rodrigues, Luciano Perrone, Mário (da Silveira) Reis, Milton
Amaral, (Antônio) Moreira da Silva, Murillo (de Figueiredo) Caldas, Newton
(Carlos) Teixeira, Odette Amaral, Pandiá Pires, Paulo Tapajós (Gomes), Pedro
Caetano, Radamés Gnattali, Raul Marques, Roberto Martins, Rubens Soares,
Yolanda Rhodes (Yola) e Zilda de Carvalho Espíndola (Aracy Cortes),
personagens da música popular, que viram, ouviram, viveram e passaram
adiante.
A Alberto Abrantes Martins, Aloísio Dias, Carlos Moreira de Castro
(Carlos Cachaça), Creuza dos Santos, Eusébia Silva do Nascimento (Zica),
Fernando Pimenta, José Bispo Clementino dos Santos (Jamelão) e Neuma
Gonçalves da Silva, gente boa da Mangueira, de depoimentos tão entusiasmados
quanto esclarecedores.
Aos Drs. Carlos Henrique Fernandes, Herculano Mesquita de Siqueira e
Nicandro Bittencourt, raras testemunhas da meteórica passagem de Noel Rosa
pela Faculdade de Medicina.
A Nelson (Vittorio Emanuel) Pilo, Paulo Lessa, Roberto Ceschiatti e
Rômulo Paes, boêmios das velhas noites de Belo Horizonte.
A Ademar Casé, Arthur Costa Filho, Emma DÁvila, Fernando Pereira,
Henriqueta Brieba, Jorge Murad e Sebastião Bernardes de Souza Prata (Grande
Othelo), nomes do rádio e do teatro, daqueles e destes tempos.
A Ary Vasconcelos, Humberto de Moraes Franceschi, Jairo Severiano e
Miécio Caffé, cujas coleções, somadas, tornaram possível o acesso dos autores a
todas as gravações originais da obra de Noel Rosa.
À João Ferreira Gomes (Jota Etegê) e José Ramos Tinhorão, pesquisadores,
historiadores, separados no tempo mas unidos pela mesma paixão, cujos
conhecimentos sempre fizeram questão de repartir.
A Clara Cinelli (nascida Corrêa Neto), Josefina Telles Nunes (nascida
Félix, a Fina), Juracy Corrêa de Moraes (Ceci) e Lindaura de Medeiros Rosa
(nascida Martins), musas todas, que concordaram em viajar de volta ao passado
para longos reencontros com o seu poeta.
Aos funcionários do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional de Artes
Cênicas, da Secretaria Geral da Divisão de Educação e Ensino da Diretoria do
Colégio Pedro II, do "arquivo morto" do mesmo estabelecimento, do Ginásio de
São Bento, da seção de arquivo da Santa Casa da Misericórdia, da Embrafilme,
do Arquivo Público Mineiro, da Companhia Nestlé do Brasil, do Convento de
Nossa Senhora da Ajuda, da Matriz de Nossa Senhora de Lourdes, da Igreja de
São Francisco Xavier do Engenho Velho, do Arquivo Sonoro da Rádio Jornal do
Brasil, das gravadoras Odeon, RCA Victor, Polygram e Collector's.
A Adília Bittencourt (viúva de Jacob do Bandolim), Alfredo Herculano,
Antoninho de Paula, Antônio Carlos Sant'Anna (Perna), Bruno Ferreira Gomes,
Bruno Liberati, Cláudio Marcelo Arreguy Corrêa, Daicy Portugal Cordovil
(viúva de Hervê), Francisco Duarte, Geraldo Pinto Penna, Herberto Salles, Ilka
Domingues (viúva de Almirante), general João Baptista Figueiredo, Jonas
Vieira, Jorge Martins, Jorge NatalPinheiro da Costa, Jorge Thibaud, José Lino
Grunewald, José Mariani, José Silas Xavier, Lanfranco Vaselli (Lan), dom
Lourenço de Almeida Prado, Luís Carlos Saroldi, Luís Fernando Barciela Vieira,
Moacyr Andrade, Ruy Castro, Simon Khouri, Tárik de Souza, Victor Henrique
Woitschach (Ique) e Zózimo Barroso do Amaral, pequenas e grandes ajudas,
empurrões vários, incentivos, bênçãos.
A Almir Veiga, o fotógrafo, e a Édio Xavier Piais, o dos retoques mágicos.
A Sérgio Cabral, que apresentou os autores um ao outro, e que desde o
início acreditou neste livro.
E, últimos mas não menos importantes, os rapazes do conjunto Coisas
Nossas: Beto, Bolão, Dazinho, Henrique, Luíta e Zé Carlos.

A todos enfim - os que puderam esperar e os que já viraram saudade - a


gratidão dos autores.
Sumário
Duas palavras

PARTE I 1834-1910
1. Na cauda de um cometa

PARTE II 1910-1928
2. Crescendo com bossa
3. Pelas ruas do bairro
4. Entre a cruz e o violão
5. O que se aprende no colégio
6. O encanto da música
7. A morte de perto
8. Adeus ao mosteiro

PARTE III 1929-1934


9. À luz das estrelas
10. Um bando de pássaros
11. Nasce o compositor
12. Tangará abraça o samba
13. Do faz vergonha à malandragem
14. Nem rei, nem general
15. Modéstia à parte, meus senhores
16. Conquistando a cidade
17. O Miguel Couto do samba
18. Riso de criança
19. O rei da voz e o doutor em samba
20. Subindo o morro
21. Um certo Ismael
22. Rumo ao sul
23. Onde estão os madrigais?
24. Do chá das quintas ao café no Nice
25. Prazer em conhecê-lo
26. Em boa companhia
27. Noturnas e vespertinas
28. Casa, não casa
29. Valentes e amigos (mas nem sempre)
30. Rumo ao norte
31. Numa festa de São João
32. Um parceiro e duas intérpretes
33. Humor de primavera
34. Perturbação dos sentidos

PARTE IV JANEIRO - ABRIL DE 1935


35. Entreato mineiro

PARTE V ABRIL DE 1935 MAIO DE 1937


36. Ilustre visita, trágico regresso
37. Operetas e conversas de esquina
38. Começo e recomeço
39. Fita de cinema
40. Noel versus Noel
41. No picadeiro da vida
42. O dom de saber iludir
43. Um gosto de despedida
44. A arte do sofrimento
45. O fim

PARTE VI MAIO DE 1937


46. Posteridade

FOTOS

ÍNDICE DE MÚSICAS

Obras
Musicografia / Discografia
Teatro
Cinema / Televisão
Bibliografia
DUAS PALAVRAS

Os autores, desde o primeiro instante dos mais de sete anos consumidos


neste trabalho, optaram por contar uma história, tão detalhada quanto possível,
de Noel Rosa, sua época, sua cidade, sua gente, sua obra. Uma narrativa linear,
cronológica, jornalística, sem outras ambições literárias. Com as liberdades
permitidas a todo biógrafo (transcrição de diálogos a partir do que lhes foi
contado, uma ou outra especulação, este ou aquele 'deve ter sido' em lugar do
que 'não se sabe como foi'), mas de modo algum uma biografia romanceada.
Amigos que tiveram acesso aos originais - e cuja opinião os autores prezam -
fizeram ponderações a respeito do primeiro capítulo. Não se teria dedicado
tempo e espaço demais à pré-história de Noel Rosa, seus pais, avós e bisavós?
Não poderia o leitor estancar diante deste longo preâmbulo e, impaciente, virar
as costas aos outros 45 capítulos? Os autores preferiram correr o risco e deixar o
primeiro tal qual está. Convenceu-os uma esperança: a de que o eventual leitor
deste livro não seja de virar as costas ao que quer que diga respeito a Noel Rosa.
Nem mesmo às suíças de vovô Eduardo.

João Máximo e Carlos Didier


PARTE I 1834-1910
Capítulo 1

NA CAUDA DE UM COMETA

A estrela d'alva no céu desponta


E a Lua anda tonta com tamanho esplendor
Linda Pequena

Eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui, neste chalé


modesto, pronto para saudar a qualquer momento a chegada do primeiro neto.
Na certa releria várias vezes os versos acabados de fazer para a ocasião. Depois,
se fosse mesmo um menino, é provável que agisse exatamente como no dia em
que nasceu Eduardinho, seu único filho: penduraria um lenço branco no portão e,
aos curiosos, diria: "É macho!" Ou talvez se limitasse a celebrar o acontecimento
com um brinde em família, seguido de votos de que o neto se tornasse médico e
poeta. Como ele próprio.
Mais do que nunca se lamenta que Eduardo Corrêa de Azevedo já não
esteja aqui. Era um homem raro, especial. Desses que, ao partirem, deixam
lembranças tão vivas que às vezes parece que não se foram de verdade.
Dedicado marido, pai exemplar. Bom médico, bom poeta, capaz de sonetos
como "Cuidado, Menina!", por ele mesmo declamado no dia do sexto
aniversário de uma das filhas, justamente a que lhe daria agora o primeiro neto:
Pois quê?! Mais um ano? Isso não tem graça!
Pois então não bastavam tantos... (cinco)
Que tinhas? E cuidas, talvez, que é brinco
A rapidez com que a vida passa?

Se anos fazendo vais com tal afinco


A velhice, que já por perto esvoaça,
É capaz de fazer-te uma pirraça
Abrindo-te na face um feio vinco.

Fica-te quieta! Volta aos teus folguedos


E não repitas mais esses brinquedos;
Jà te fizeste velha o quanto basta.

Não troques os teus sonhos cor-de-rosa


Por esta neve densa e pavorosa
Que à voragem da morte nos arrasta.

Ou de pensamentos em versos como este, em que reescreve a lição da Igreja


sobre não cobiçar a mulher do próximo:
Só se entende este nono mandamento
Com o sexo masculino.
Pode as asas abrir, então, sedento,
O desejo feminino.

Médico, poeta e jornalista. Dono de um humor fino e irônico, tempero de


certos perfis que andou publicando na imprensa de anos atrás. Como o de
Affonso Penna Sobrinho:
"Baixo, magro, tipo miudinho de galã de sala. Chegou há pouco diplomado
(...) e foi ocupar a promotoria. Além de outros méritos próprios, tem a grande
felicidade de ser sobrinho do senhor seu tio, gozando das vantagens inerentes de
um nome feito. Ele era capaz de o fazer por si (...) mas, por caiporismo, veio
tarde e achou a cama já pronta. Como promotor, mesmo acusando tem 'pena', o
que atesta generosidade de coração."
Um apaixonado pela música, escreveu várias peças poéticas para serem
recitadas ao som de viola. Uma delas dedicada a uma prima indiferente:
Tudo isso, eu juro, fizera
Por egoísmo, somente,
Pois vivera eternamente
A teu lado, oh! prima Vera.

Mas Eduardo Corrêa de Azevedo já não está aqui. Morreu há um ano e


meio, antes de completar seus 53, deixando nos moradores do chalé um enorme
vazio, muito sentido em dias como o de hoje.
É sábado, 10 de dezembro. Desde a madrugada respira-se desassossego nas
ruas do centro do Rio. A cidade parece estremecer. Ouvem-se ao longe tiros de
canhão e estrondos de prédios que tombam atingidos por bombas e granadas.
Famílias inteiras saem em pânico de suas casas. Correm para bondes,
automóveis, trens. Fogem do fogo e da destruição, procurando um porto seguro
em alguma parte. Se os moradores do chalé fossem supersticiosos - ou de
acreditar que certos fenômenos cósmicos significam maus presságios - talvez
pensassem, como tantos, que o fim do mundo começou.
Explica-se, desde os primeiros dias deste 1910, quando os jornais se
puseram a falar da passagem da Terra pela cauda do cometa de Halley, há quem
afirme que o mundo realmente agoniza. Profetas, visionários, lunáticos, crentes.
Cometas e outros corpos celestes passam ligeiros, deixando em seu rastro um
punhado de superstições. Está sendo assim agora com o Halley e há de ser assim
daqui a alguns anos com o Hermes. Por mais que os astrônomos garantam que
tais fenômenos são inofensivos, muitos acreditam no contrário, que os cometas
sejam prenúncio de grandes catástrofes. Conta-se que até mesmo um homem
culto como Ruy Barbosa responsabilizou o Halley por sua recente derrota para o
marechal Hermes nas eleições presidenciais. E por que não? Se por causa deste
cometa houve quem se matasse na Europa, enlouquecesse nos Estados Unidos,
se refugiasse em mosteiros por toda parte, para ali aguardar entre preces a hora
final, por que não haveria Ruy de ver na cauda do Halley uma ave agourenta a
riscar o céu no exato momento em que pretendia mudar-se para o Catete?
Marinheiros em revolta

Por duas vezes os marinheiros fizeram estremecer o Rio de Janeiro em 1910, num sombrio capítulo
de história que ficaria conhecido como Revolta da Chibata. Uma, a 22 de novembro, sete dias após ser
empossado na Presidência da República o marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. A segunda, na noite de
9 para 10 de dezembro, na véspera de vir ao mundo o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
João Cândido, filho de tropeiro gaúcho que lutara na Guerra do Paraguai, negrinho do pastoreio em
menino, praça-de-pré aos 30 anos, servia a bordo do encouraçado Minas Gerais quando liderou os
companheiros deste e de mais três navios (o Bahia, o São Paulo e o Deodoro) no levante para que se
abolissem os castigos corporais e outros maus-tratos aos marinheiros. O ponto de partida foram as 250
chibatadas aplicadas no fuzileiro Marcelino Rodrigues de Menezes, no convés do navio, diante da tropa
perfilada e de tambores rufando solenemente:"... as costas deste marinheiro - diria depois o comandante da
Marinha José Carlos de Carvalho, mandado ao Minas Gerais para parlamentar com os revoltosos -
assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada." Um disparo de canhão, naquela noite de 22,
deflagrava o levante e estremecia a cidade.
A Marinha de então ainda levava a extremos sua tradição elitista, escravagista quase. Recrutava
soldados à força entre as populações pobres, impunha-lhes um tempo de serviço de quinze anos, pagava-
lhes baixos soldos, obrigava-os a trabalhos pesados, alimentava-os de má comida. Tudo sob um regime
disciplinar controlado por certa Companhia Correcional que, apoiada em decreto-lei dos tempos de
Deodoro, ainda adotava prisão em solitária, a ferro, pão e água, e castigos físicos que incluíam bolos e
chibatadas. Foi principalmente contra estas últimas que se insurgiram João Cândido e seus companheiros.
Oficiais e marinheiros foram mortos nas primeiras ações a bordo dos quatro navios. Uma bomba com
que os revoltosos pretendiam atingir o Arsenal de Marinha foi cair, por erro de cálculo, numa casa de
cômodos da Rua da Misericórdia. Duas crianças morreram. Outras bombas fizeram estragos e vítimas no
Centro. Por quatro dias João Cândido comandou a pequena frota e 2 mil 379 homens, passando a ser
chamado, por seus simpatizantes, de o Almirante Negro. Por quatro dias a cidade viveu de respiração
suspensa: os revoltosos ameaçavam bombardeá-la caso suas exigências não fossem atendidas. Quatro dias
de indignação para o alto comando da Armada, de discussões parlamentares, de reuniões ministeriais. E o
novo presidente sem saber o que fazer. Ao fim do quarto dia, o Congresso votou pela anistia. Os
marinheiros deveriam se entregar, nenhuma punição lhes seria imposta. Ficava claro que os castigos
corporais seriam abolidos.
Mas logo se viu que a anistia não passava de uma fraude. A maioria dos revoltosos seria expulsa da
Marinha. Muitos, sob a acusação de conspiração, foram presos, abarrotando as celas da ilha das Cobras.
Sentindo-se desmoralizado, o próprio Governo se incumbia de alimentar rumores de que novo levante
estava para acontecer a qualquer momento. Hermes queria o estado de sítio, precisava de um pretexto. Até
que as tensões transformaram os rumores em fatos: às 10 horas da noite de 9 de dezembro um toque de
avançar e gritos de "viva a liberdade!" foram ouvidos no pátio da ilha das Cobras. O Batalhão Naval se
amotinava, libertava os presos, destruía as comunicações, tomava a casa das armas, disparava os canhões.
Desta feita, porém, o Governo estava de sobreaviso. Navios, já agora sob o comando de oficiais,
bombardearam o local. O mesmo fariam os canhões do Exército instalados na Praça 15 de Novembro, nos
morros da Conceição e do Castelo, no Mosteiro de São Bento. Conta Edmar Morei, o historiador da revolta,
que os disparos foram menos certeiros do que pretendiam os artilheiros da Armada. Fez-se necessário que
um oficial austríaco, de passagem pelo Rio, calibrasse os canhões para que se atingissem os alvos. Até um
padre, colocando a medalha de um santo sobre a alça de mira, evocou a proteção divina às armas do
marechal. Antes, balas perdidas, de um lado e do outro, tinham atingido o Liceu de Artes e Ofícios, o
Museu Comercial, o Colégio Pedro II, o Tesouro Nacional. Agora, balas legalistas abatiam dezenas,
centenas de marinheiros. O próprio presidente foi inspecionar algumas de suas cidadelas. No Mosteiro de
São Bento, soube que uma bomba rebelde destruíra parcialmente as celas dos monges. Um deles, Dom
Joaquim de Luna, teve arrancados três dedos da mão direita.
Mais estragos: na Rua Dom Manuel, no Catumbi, Frei Caneca, Carmo, São Salvador. O Rio ficou em
pânico. Famílias inteiras realmente apertaram-se em trens rumo a cidades serranas. Outras, em bondes,
carroças, charretes, tomaram o caminho dos subúrbios.
O levante foi por fim sufocado. João Cândido, que nada tivera com as ações da ilha das Cobras,
acabou preso. Incontáveis marinheiros, entre culpados e inocentes, revoltosos e anistiados, também. Muitos
foram deportados para os seringais do Acre, onde morreriam como escravos de senhores da borracha.
Outros seriam sumariamente fuzilados a bordo do Satélite, cargueiro do Lloyd que os levou para o Norte,
quase secretamente. Escrevia-se então um dos mais trágicos episódios da história militar do Brasil. João
Cândido e dezessete outros líderes da primeira revolta, todos já anistiados, foram atirados no fundo de uma
masmorra na ilha das Cobras. Dezesseis morreriam asfixiados pela cal que lhe atiraram sobre os corpos.
Torturas e fuzilamentos se seguiram. Ali João Cândido permaneceu por dezoito meses, até que o mandaram
para o Hospital dos Alienados, supondo-se ter enlouquecido. Engano. Mas o Almirante Negro ainda ouvia
em seus pesadelos o som da chibata sobre as costas dos companheiros, seus próprios gemidos na masmorra,
o troar de canhões que ele não disparara naquele dezembro.
Tombadilho do couraçado S. Paulo, durante revolta. Fotografia tirada dois dias antes da rendição.
João Cândido na prisão da Ilha das Cobras
Foi no meio de tudo isso - numa cidade respirando ares de fim de mundo -
que começou a nascer o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
Seja como for, o mundo não está mesmo acabando. O que se passa no Rio
de Janeiro, desde as primeiras horas da madrugada, tombando prédios,
produzindo nuvens de fumaça, roubando vidas, é mais uma rebelião de
marinheiros contra oficiais que os tratam a golpes de chibata.
Mas os moradores do chalé estão alheios; à confusão lá fora. Não pensam
em tiros de canhão, revoltas, mortes, fim de mundo, e sim num começo de vida.
Uma vida que está para chegar a qualquer momento. Martha de Medeiros Rosa e
Manuel Garcia de Medeiros Rosa - o casal da casa - só pensam no filho que vai
nascer. E nas questões costumeiras, se será menino ou menina, se terá a beleza
de uma ou a força de outro, se puxará aos dois ou a ninguém. Terá algo em
comum com os antepassados ilustres, nobres mesmo, do lado materno, ou
herdará o recato, quase mistério, da família do pai? Quem sabe não será parecido
com vovô Eduardo?
Martha e Manuel talvez pensem em tudo isso. E em como o destino uniu
suas vidas para que delas uma nova vida surgisse.
Em nome do destino tudo se explica. Por exemplo: o fato de um médico
inteligente e sensato como Luís Corrêa d'Azevedo ter escolhido justamente o
lado menos inteligente e nada sensato da luta que dividiu Portugal de 1828 a
1834. Como explicar, senão pelo destino, que sendo ele um gentil-homem a se
pôr invariavelmente do lado certo, da lei e da ordem, ficasse logo do errado
naquela disputa pelo trono português? Aos olhos da História, vale lembrar, o
lado errado é sempre o que perde. E o que Luís escolheu acabou perdendo. Sua
vida, seus equívocos políticos, suas aventuras e desventuras são até hoje
lembrados pelos moradores do chalé, que o consideram uma espécie de ponto de
partida da família.
A tal luta pelo trono português foi travada por Pedro I, o mesmo do nosso
"independência ou morte!", e seu irmão Miguel, que durante quase seis anos,
apoiado pela mãe absolutista Carlota Joaquina, manteve na cabeça uma coroa
que não era sua, mas da filha de Pedro. Este, porém, venceu. Miguel acabou no
exílio e seus seguidores também.
Luís Corrêa de Azevedo era miguelista convicto. Mesmo sendo Miguel um
antiliberal (ou talvez por isso). Com medo de ter idêntico fim de muitos de seus
correligionários - a deportação para a África - mudou-se para o Brasil. Ele, a
mulher e prima Eleziária Pereira Drummond e os filhos, entre os quais Fortunato
Corrêa d'Azevedo, nascido a 4 de junho de 1825, na ilha da Madeira, terra natal
de Eleziária. Vieram todos em 1834.
A família estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde Fortunato abraçou a
carreira do pai. Formou-se em 1850 e logo começou a clinicar em Cantagalo,
Estado do Rio, lugar de poucos médicos e muitos doentes. Também se casou
com uma prima, Maria Adelina (filha de Manuel, irmão de Luís, também
miguelista, também exilado). Lá mesmo, em Cantagalo, nasceram os três filhos
de Fortunato: Eduardo, a 26 de setembro de 1856, Fortunatinho e César.
A família guarda algumas lembranças de Fortunato Corrêa d'Azevedo, uma
delas a caixa de instrumentos cirúrgicos com cabos de madeira que os bisnetos -
principalmente este que está para nascer - ainda vão transformar em brinquedo.
Era um homem austero, mandão, de gostos aristocráticos. Sempre manteve um
namoro com a nobreza, a ponto de já no fim da vida, de volta ao Rio, só ter
clientes ricos e bem-nascidos. Certa vez, percorrendo pacientemente os galhos
de uma árvore genealógica alta e frondejante, descobriu-se, cheio de orgulho,
hexaneto de ninguém menos que Maria Stuart (os moradores do chalé perderam
o documento que Fortunato costumava exibir aos incrédulos). Depois disso,
passou a se considerar um sangue azul. Como tal, monarquista. E escravagista
também: castigava duramente seus negros e a nenhum deles alforriou.
Lusitanista, nunca quis se naturalizar. Mau negociante, por três vezes fez fortuna
e por outras tantas perdeu tudo.
Numa delas, mudando-se de Cantagalo para Nova Friburgo, fundou ali o
primeiro estabelecimento hidroterápico do Brasil. Faliu em pouco tempo. Ao
morrer, em 1877, pouco deixou para a família.
Eduardo Corrêa d'Azevedo era um homem realmente especial, que do pai
parece não ter herdado mais do que uma chácara em Boca do Mato (perto de
Nova Friburgo), um escravo e a vocação para a medicina. A chácara foi logo
vendida por um conto e quinhentos e o escravo alugado para ajudá-lo a pagar os
estudos (depois do que Eduardo o libertou). Quanto à medicina, foi meta difícil
de atingir. Fortunato não quis que os filhos seguissem sua carreira: "É um
ingrato ofício", justificava. Impositivo, fez com que Eduardo se matriculasse
primeiro na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, na esperança de vê-lo
engenheiro. No segundo ano, o filho convenceu-o de que se daria melhor como
farmacêutico. Chegou a se formar, a montar farmácia com seu nome. Depois,
estudou odontologia - algo bem mais próximo da medicina - e tão logo concluiu
o curso o pai morreu. Estava finalmente livre para fazer o que queria.
Começou nova vida, rompeu não só com a vontade do pai mas também com
muitos de seus valores. Detestando a nobreza, os bajuladores de uma monarquia
que achava decadente, os cidadãos empertigados que compravam títulos,
começou por substituir no sobrenome o fidalgo D' pelo menos pretensioso de.
Passou a ser Eduardo Corrêa de Azevedo.
Recebeu o diploma de médico a 27 de dezembro de 1882. Meses depois, foi
chamado por um amigo, gerente do Hotel Giorelli, no Campo da Aclamação(1),
para atender a uma jovem mineira de Leopoldina que viera assistir com os
irmãos à abertura da temporada lírica.
1. Atual Praça da República.

A moça sentira-se mal. tivera algo assim como um desmaio, estava de


cama. Lá chegando, Eduardo examinou-a demoradamente. Cansaço de viagem,
diagnosticou. Afinal, era quase um dia de trem de Leopoldina ao Rio. Nada que
uma boa noite de sono não curasse.
Entre médico e paciente, porém, nasceu ali mesmo um interesse maior, um
descobrindo no outro irresistíveis afinidades. A moça, Rita de Cássia, tocava
bem piano e Eduardo adorava música. Ele já era um amante da poesia, no que
ela não lhe ficava atrás. Bons conversadores, espirituosos, românticos,
combinavam em tudo. Quando a moça se foi com os irmãos levou e deixou
saudades. Amenizadas, contudo, pelas cartas que passaram a trocar. As dele, em
versos.
Rita de Cássia de Freitas Pacheco é de uma família que também se
preocupa em descobrir homens e mulheres importantes entre seus ancestrais.
Ninguém como Maria Stuart, é fato, mas pelo menos um fidalgo como Manuel
da Rocha Brandão, bisavô de Rita, tronco do qual partiram ramos numerosos e,
senão fidalgos como ele, ao menos pessoas destinadas a alcançar projeção social,
seja por conta própria, seja unindo-se a outras famílias, os Barros, os Seixas, os
Segadas Viana, os Coelhos Neto.
Mas nessa busca nem sempre científica de antepassados, alguns desvios e
exageros vão ocorrendo. Como os Freitas Pacheco dizerem-se descendentes de
Caramuru, ou de Garcia d'Ávila, ou de Marília de Dirceu. Mas não é bem assim.
A quinta avó de Rita, Maria da Silva Figueiredo, era prima de Garcia d'Ávila(2),
cuja filha, Isabel, casou-se com Diogo Dias, neto de Diogo Álvares Corrêa, o
Caramuru, e sua mulher Catarina Álvares, a Paraguaçu.
2. Sertanista português. Veio com Tomé de Souza, fundou na Bahia a Casa da Torre, cujas ruínas ainda existem. Morreu em 1609 e hoje é nome de rua no bairro carioca de Ipanema.

Quanto a Marília de Dirceu, Maria Dorothea Joaquina de Seixas, era filha


de uma irmã de Joana Rosa Marcelina de Seixas Brandão, bisavó de Rita. Como
se vê, desvios e exageros. Nem Caramuru, nem Garcia d'Ávila, nem a musa do
poeta inconfidente Thomás Antônio Gonzaga.
Rita, filha de José e Emília Augusta de Freitas Pacheco, nasceu em
Leopoldina mesmo, a 5 de maio de 1859. Perdeu os pais cedo e foi criada pela
irmã mais velha, Maria Augusta, professora em cuja casa funcionava pequena
escola de alfabetização de crianças. Foi nesta casa que um dia Eduardo bateu
para pedir a Maria Augusta permissão de lhe cortejar a irmã. Mudara-se do Rio
para Brejo(3), cidadezinha do município de Leopoldina, só para ficar mais perto
de Rita.
3. Atual Tebas.

Estava apaixonado. Para o casamento só faltava a aprovação da mãe, Maria


Adelina, ainda morando no Rio, Eduardo escreveu-lhe. Resposta:
"Criar um filho com tanto esmero para o ver casado com uma mineira?
Nunca!"
Para ela - que guardava do marido a afetação aristocrática - um médico
deveria casar-se com uma dama. E sua idéia de mulher mineira era literalmente
uma caricatura: uma rapariga esquálida, desdentada, pés descalços, analfabeta,
cachimbo de espiga pendurado no canto da boca.
Eduardo achou perda de tempo tentar desfazer tal idéia. Em 1885, casou-se
com Rita mesmo sem as bênçãos da mãe. Foram morar na casa dele em Brejo.
Os dois, mais uma irmã de criação de Rita, Bellarmina, e o tio desta, Manuel.
Dos quais muito mais se falará adiante.
A primeira filha de Rita com Eduardo, Carmem, nasceu na casa de Brejo
em 1886. De um parto tão complicado - a bacia estreita da mulher dando muito
trabalho ao médico e marido - que quando chegou a vez de terem a segunda filha
ele achou mais prudente levar Rita ao Rio para que a menina viesse ao mundo na
casa da avó Maria Adelina e pelas mãos de outro médico.
Começou aí a reaproximação entre mãe e filho. É verdade que no começo
Maria Adelina não se impressionou nem um pouco com aquela "mineira
diferente", pianista, professora, lendo poesia em francês, uma dama: "Na certa
ele a educou depois de casados", comentou com os outros filhos. Mas, enquanto
a sogra se apegava a esses pensamentos, Rita ia observando seus hábitos e
gostos, os pratos de sua predileção, como preferia o chá, as flores que fazia
questão de ver enfeitando a mesa. Tempos depois, quando coube a Maria
Adelina ir para Minas (Fortunatinho morrera, deixando-a só com a mãe idosa,
Vozinha, e o filho menor, César, o que levou Eduardo a convidar os três para
morarem com ele), Rita poria em prática o que observara atentamente nas
últimas semanas de gravidez. Maria Adelina foi recebida com todas as honras e
agrados, nem as flores faltaram, perfumadas gentilezas de uma anfitriã fina e
educada.
- Quero pedir-te desculpas pelos meus maus juízos - disse.
- Não se fala mais nisso - sentenciou Rita.
Mas já então havia nascido, a 4 de junho de 1889, na casa que Maria
Adelina ainda mantinha no bairro carioca do Rio Comprido, a segunda filha de
Rita e Eduardo: Martha Corrêa de Azevedo. A família se completaria três anos
depois com a vinda de Eduardinho, em Ponte do Cágado, município de Santana
do Deserto, comarca de Juiz de Fora(4), para onde todos se haviam mudado
pouco antes.
4. Atual Ericeira.

A melhor fase da vida de Eduardo Corrêa de Azevedo - ou pelo menos


aquela de que os moradores do chalé têm mais saudade - é a da infância e
adolescência dos filhos, já em Juiz de Fora, onde ele clinicava em sua própria
farmácia. São de então os seus primeiros lampejos poéticos, versos que ia
escrevendo, mostrando aos amigos, guardando. Quis que as crianças desde cedo
convivessem com a música, por isso comprou para elas um Pleyel de segunda
mão. Carmem, de ouvido absoluto, domina cinco instrumentos (piano, violino,
violão, bandolim e cítara) e acabará se tornando professora de conservatório.
Martha sempre será melhor no bandolim que no piano. Eduardinho, o de pior
ouvido, jamais passou das primeiras lições domésticas dadas pela mãe. Mas toda
a família é muito musical. E teatral também. Ainda na casa de Ponte de Cágado,
Eduardo mandara construir um galpão no qual instalou oficina para exercitar
duas de suas muitas habilidades, a de ferreiro e a de seleiro. Com forja, bigorna,
fole e outros apetrechos, ele próprio fizera os aros do seu tílburi, as ferraduras,
cravos e arreios de seus cavalos. Ao lado do galpão, improvisou um teatrinho
onde os filhos e vizinhos representavam sketches e pequenas peças, muitas vezes
escritos por ele mesmo. Toda a família gostava de teatro.
Martha nasceu com a República, sendo o próprio Eduardo, desde os tempos
de estudante, um republicano. Tão fervoroso que por muitos anos carregou na
lapela um minúsculo retrato do marechal Floriano Peixoto. Gostava de lembrar à
família e aos amigos um episódio ocorrido em 1894, durante a revolta da
Armada sob o comando de Custódio de Mello, líderes estrangeiros, notadamente
o ministro britânico Hugh Wyndham, indagando a Floriano como suas tropas
seriam recebidas se aqui desembarcassem para proteger seus compatriotas
residentes no Brasil. Eduardo fazia uma pausa e dava mais ênfase à já enfática
resposta do Marechal de Ferro: - A bala!
Nacionalista, mas sobretudo detestando ingleses, chegaria a renunciar às
suíças de que tanto gostava por um incidente à toa. Num dia de carnaval,
esguichou uma bisnaga de água na perna de uma menina que se assustou e se
pôs a gritar. O pai, irritado, reagiu:
- Seu inglês!
Não poderia haver maior ofensa. E como Eduardo a atribuiu às suíças,
raspou-as no mesmo dia.
Um antimonarquista que escreveu longo poema, "Pobre República", para
Martha declamar no palco do teatrinho, enquanto ele, orgulhoso na platéia,
parecia ver na filha a imagem de um Brasil muito diferente do de seu pai: um
Brasil jovem, promissor, livre, republicano.
Foi em Juiz de Fora que Eduardo Corrêa de Azevedo começou a estudar
esperanto, gabando-se mais tarde de ser "o primeiro esperantista do Brasil".
Chegou a trabalhar num dicionário que jamais publicou. Ao mesmo tempo,
sentia-se atraído pelo jornalismo. Embora tenha assinado seus primeiros artigos
em O Povo, semanário republicano e abolicionista de Cataguases, foi também
em Juiz de Fora que se fez conhecido. Fundou com o amigo e poeta Oscar da
Gama o jornalzinho A Cigarra, de curta duração, e tornou-se colaborador dos
mais presentes nas páginas do Diário da Tarde local, onde criou e manteve por
muito tempo aquela seção semanal em que traçava perfis de amigos e habitantes
ilustres da cidade. A seção intitulava-se Galeria e seu autor assim a definia:
"Uma espécie de recreação intelectual com que descanso dos labores diários (...)
não tendo outro fim senão tornar o jornal simpático aos leitores e retratados."
A pedido de alguns desses leitores, o próprio Eduardo deixou-se retratar na
seção, permitindo assim, democraticamente, que seus personagens também
dissessem o que pensavam dele. Foi o que fez Belmiro Braga(5), jornalista,
teatrólogo, poeta, escritor de algum prestígio:
5. Belmiro Bellarmino de Barros Braga, conhecido como o "Rouxinol Mineiro", autor de peças de teatro, crônicas, poesias, seria o fundador da cadeira número 8 da Academia Mineira de
Letras. Nascido em Juiz de Fora, a cidade mandaria erguer-lhe um monumento após sua morte em 1937.

"Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem velho nem moço (...) É
médico e medica de graça; é escritor e escreve com graça; é, às vezes, brigão e
ao adversário desgraça.
Os óculos que traz sobre o nariz não servem para aumentar a vista e sim de
muralha ao brilho vivíssimo de seus olhos.
Ama os poetas de França, adora as filhas da Itália, gosta e usa barbas
suíças.
Numa redação de jornal é tudo. Com a mesma facilidade com que escreve
um artigo de fundo, rabisca uma crônica, com ou sem fundo, ou põe pilhérias a
dois de fundo. É o nosso Ferreira de Araújo(6), com a vantagem de ser poeta.
6. José Ferreira de Sousa Araújo, teatrólogo e jornalista carioca. Médico também. Realizou importantes reformas na imprensa de seu tempo a partir da fundação da Gazeta de Notícias em
1874. Cronista muito lido, assinava-se às vezes como José Telha ou Lulu Sênior.

E, terminando: aqui está um nó numa 'correia'; o A.Z. Vedo que o desate."


A.Z. Vedo era como Eduardo se assinava de vez em quando, pseudônimo
que alternava com outros, Mãozinha, Zut, d'Amorim, conforme a ocasião. Mas o
perfil mais fiel que nos chega dele, de como era naqueles dias de Juiz de Fora,
talvez seja o que lhe fez um primo de Rita, Christovam Malta, também médico e
escritor. Diz ele que Eduardo era homem de pés e mãos pequenos, cabeça
grande, cabelos e suíças brancos. Vestia-se invariavelmente de brim, "ainda que
o termômetro baixe a zero", e parecia cada vez mais inclinado a trocar o bisturi
pela pena. Habitavam nele, além do médico, do jornalista e do poeta, pelo menos
um músico, um jacobino, um funcionário público e um funileiro. A cada dia
idolatrava mais Floriano e, ainda segundo Christovam Malta, embora não
quisesse por modéstia publicar seus versos em livro, "quando o fizer conseguirá
um sucesso brilhante, pois tem talento como o diabo".
Na realidade, seu primeiro livro foi mesmo um apanhado daqueles perfis,
editado em 1899 sob o título Galeria: Caricaturas a Pena. No prefácio, Eduardo
esclarecia que só o lançava "para ceder às instâncias dos editores amáveis e
corajosos". E que com ele não tinha nenhuma preocupação literária. "À crítica -
concluía no mesmo prefácio - eu apenas pedirei que o trate como ele merecer, se
é que merece crítica."
No mesmo ano, ainda incentivado por amigos e editores "amáveis e
corajosos", reuniu em livro sua produção poética. Nesta coletânea, Rimas Sem
Arte, há poemas bem construídos e inspirados, na maioria sonetos como aquele
para o sexto aniversário de Martha. Seus temas são a vida e a morte, a dor e a
descrença, o amor e a família, à qual devotava profunda afeição. O segundo livro
de versos, editado cinco anos depois, é ainda mais interessante. Intitula-se
Catecismo e pretende ser uma versão revista e muito pouco ortodoxa de temas
ligados à doutrina católica, os Dez Mandamentos, os Sete Sacramentos, os
Pecados Capitais. A ironia, o humor e o não-conformismo de Eduardo Corrêa de
Azevedo estão nítidos em todos os poemas. Como neste "Ato de Confissão":
Eu nunca fui ateu, nem sou converso
Essas contradições, que há no meu verso,
São como gritos de incontida fúria

Deve existir um Deus - Pai e infinito


Bem diferente desse odioso mito
Simples invento da romana cúria

Ou neste, sobre amar a Deus sobre todas as coisas, dedicado à mãe, Maria
Adelina, pouco depois de sua morte:
Amarei mais que a tudo - santamente
A ti querida morta!...
És o Deus que eu adoro, reverente
O mais... pouco me importa

Ou neste, sobre não roubar:


Contra o duro rigor do mandamento vosso
Serei um revoltado eterno... (bem o vejo!)
Não tentarei, sequer, obedecer... não posso
Vê-la sem lhe furtar um delicioso beijo.

Ou ainda neste, sobre não pecar contra a castidade:


Ser virgem, sim... não ter na carne pura
A deliciosa mácula do beijo...
Não suportar as angústias do desejo
Isentar-se do crime da ventura...

E sobretudo neste "Ato de Fé", que vale lembrar por encerrar uma idéia de
Deus a ser convertida em estranho legado, o neto que está para nascer,
retomando-a daqui a muitos anos, também em versos:
Eu não quero esse Deus das velhas escrituras
Que pune e vinga o mal, faz sofrer e extermina;
Um Deus que os corações ingênuos assassina
Metendo-lhes por dentro insanáveis ternuras

Quero um Deus mais humano, um que não quer torturas


Que não fale de inferno e, em pavor, não domina;
Brando, consolador, cheio de unção divina
Antes pai que juiz, na terra e nas alturas (...)

Um homem raro, especial, em torno de quem a família viveu unida e em


paz. Os filhos cresceram entre música e poesia, o teatrinho e os brinquedos, os
estudos e as amenidades. Crianças alegres, que de início zombavam do sotaque
ilhéu de Vozinha e acabaram aprendendo com ela um antigo costume da
Madeira: conversar por ditados.
-Do prato à boca se perde a sopa - dizia uma.
- Quem o alheio veste na praça o despe - acrescentava a outra.
Carmem nunca foi bonita. Séria, ajuizada, econômica, autoritária, mas
generosa e com uma grande noção de família. Martha sempre será bonita, a boca
bem feita, o rosto delicado, os olhos verdes. Prefere sonhar a exercer autoridade
sobre o irmão menor ou quem quer que seja. Eduardinho, bom menino, será
companhia do pai em suas soirées literárias, embora nem sempre compreenda do
que tratam os versos. Obediente, responsável, terá mais afinidades com Carmem
do que com Martha.
A educação que Rita deu aos três foi, de certa maneira, severa. De bons
tratos, mas muita disciplina. Hora certa para tudo, refeições, estudos, a música, o
bordado, o brinquedo. Jamais permitirá que entrem na cozinha, espécie de
santuário: "Isso aqui não é lugar para crianças." Até completarem treze, quatorze
anos, também não podiam falar à mesa. Andar descalço era falta de educação.
Falar com estranhos, conduta imperdoável. As moças jamais namoraram. O
rapaz, só escondido. Como ressaltou Christovam Malta, um funcionário público.
Também habitava Eduardo Corrêa de Azevedo. Quando em Juiz de Fora,
paralelamente à medicina e ao jornalismo, exerceu as funções de inspetor
municipal de higiene e de fiscal estadual da Loteria Mineira Agave Americano.
Assistia às extrações, atestava ou não sua lisura, tudo com muita diligência e
retidão. Parece que, em razão de sua atenta vigilância, os lucros da empresa
começaram a cair. O dono, o mexicano Manuel Zevada, tentou primeiro
suborná-lo com um aumento de salário (os fiscais lotéricos eram pagos pelos
fiscalizados e não por quem os incumbia de fiscalizar). Foi então que Eduardo
escreveu ao Secretário de Finanças de Minas Gerais, David Campista(7), dando-
lhe conta de tudo, os novos planos de extração adotados por Zevada ("...
contendo em seu bojo o condenado jogo dos bichos"), o não pagamento de taxas
devidas, fraudes, a tentativa de suborno(8).
7. David Morethson Campista foi nomeado secretário de Finanças de Minas em 1899. Seria ministro da Fazenda de Affonso Penna de 1906 a 1909.
8. O Dia, de Juiz de Fora, por exemplo, fornece detalhes do caso em seus números de abril e maio de 1901. Neles os autores colheram boa parte do material aqui reunido sobre a questão entre
Eduardo Corrêa de Azevedo e a Agave Americano. Ainda a propósito de Zevada, Manuel Ismael Zevada, tinha mesmo muito a ver com "o condenado jogo dos bichos". Em O Rio de Janeiro do Meu
Tempo, segunda edição, volume 4 (páginas 864 a 870), Luís Edmundo cita-o como uma espécie de inspirador do Barão de Drummond na criação dos sorteios que se faziam no Jardim Zoológico de Vila
Isabel. Zevada já bancava jogo de apostas semelhante, com flores em vez de bichos, que funcionou na Rua do Ouvidor em 1892 ou 93. Teria sido sua a sugestão para que o Barão fizesse o mesmo, só que
com bichos em vez de flores (ver boxe A Vila do Barão no Capítulo 3). Mais tarde, Zevada tentaria implantar a novidade em Juiz de Fora, ao que se oporia o fiscal Eduardo Corrêa de Azevedo.

Ao fim do relatório, "por escrúpulos de consciência", pedia exoneração do


cargo. David Campista não só indeferiu o pedido como autorizou Eduardo a
aceitar o aumento de salário oferecido pela Agave. E mais: quando Zevada, em
busca de melhor sorte, transferiu-se para o Rio de Janeiro, instalando na Capital
e em Petrópolis dois novos postos de extração, o secretário de Finanças mandou
que Eduardo viesse atrás. Afinal, aquela companhia lotérica ainda era uma
concessionária do Governo de Minas Gerais, estando sob sua jurisdição e
controle. Mesmo preferindo continuar em Juiz de Fora, o funcionário público
que habitava o médico e poeta Eduardo Corrêa de Azevedo sentiu-se obrigado a
obedecer.
Os jornais de Juiz de Fora deram cobertura a todas aquelas peripécias que
envolveram o fiscal, o dono da casa lotérica e o secretário de Finanças.
Noticiaram também sua mudança para o Rio, começo, ao menos para ele, de
tempos muito difíceis. Os últimos meses em Minas já não tinham sido muito
bons. Eduardo levara um tombo, caíra sentado, passara a sentir fortes dores por
toda a região sacra. Recorreu à cocaína. Primeiro para aliviar o sofrimento,
depois por dependência. O vício dispendioso, somado à clínica que já não ia tão
bem, pesou sobre a família. Reduziram-se as despesas, Rita economizou o
quanto pôde, chegou a limitar as refeições da casa ao chuchu que plantava no
quintal e ao arroz que alguns parentes caridosos lhes mandavam. Tempos muito
difíceis.
Eduardo desembarcou no Rio em fins de 1900. Instalou-se neste mesmo
chalé modesto, o número 30 da Rua Theodoro da Silva, em Vila Isabel. Uma
casa semi-abandonada, sem móveis, canos furados, portas e janelas emperradas,
goteiras. De propriedade da família da mulher de um grande amigo, o maestro
Leopoldo Miguez, Eduardo nem precisava pagar aluguel. Republicano também,
autor inclusive do Hino da Proclamação da República(9), Miguez era homem
desprendido, de gestos nobres, sempre pronto a ajudar quem precisasse (morreria
em 1902, mas sua viúva, Alice Dantas Miguez, como se a traduzir-lhe a vontade,
ainda acabará passando a casa para o nome dos Corrêas de Azevedo sem receber
um real em troca).
9. Composto na verdade para substituir o Hino Nacional Brasileiro que Francisco Manuel da Silva escrevera em 1831. Dias depois da proclamação, o primeiro governo republicano, julgando
que o antigo fora feito em homenagem a Pedro I (o que não era exato), instituiu concurso para a escolha de novo hino. Venceu o de Miguez. O prêmio de vinte contos de réis ele o doou ao Instituto
Nacional de Música para a compra de seu primeiro órgão. Foi Serzedelo Corrêa, recém-nomeado governador do Paraná e futuro ministro da Fazenda, quem convenceu o marechal Deodoro da Fonseca de
que a composição de Francisco Manuel da Silva tinha grande apelo patriótico. Em sua opinião, ela deveria ser mantida como o Hino Nacional Brasileiro, uma vez substituídos os versos originais de
inspiração realmente monarquista (a maioria de autoria desconhecida). Foi o que se fez. Os novos versos ficaram sendo os do poeta e jornalista Osório Duque Estrada. A obra premiada de Miguez, com
letra do também poeta e jornalista Medeiros e Albuquerque ("Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós..."), passou a ser o Hino da Proclamação da República.

Eduardo não tinha mesmo condições de procurar moradia melhor. Zevada,


para se vingar, susteve-lhe o pagamento, deixando-o por conta de modestas
economias que trouxera de Juiz de Fora. Tempos realmente difíceis.
Mas não duraram para sempre. Por influência de David Campista, a Agave
Americano pagaria a Eduardo todos os atrasados, com os quais ele pôde
reformar a casa, portas e janelas, encanamento novo, consertos no teto,
construção de um quarto adicional de madeira, mais um banheiro, pintura. Outro
amigo, Alfredo Barbosa, emprestou-lhe móveis até que pudesse comprar os seus
próprios. A solidariedade era bem menos rara naqueles dias. Assim, casa
arrumada, antes que o segundo ano do século chegasse ao fim, Eduardo Corrêa
de Azevedo trazia a família para o Rio.
A Rua Theodoro da Silva é paralela à avenida principal de Vila Isabel,
conhecida por Boulevard 28 de Setembro. O chalé fica entre Visconde de Abaeté
e Souza Franco. Construído em terreno de 11 metros de frente por 66 de fundos,
tem salas de jantar e visita, três quartos (incluindo o que Eduardo mandou fazer),
cozinha, dois banheiros. O quintal é espaçoso, tanque, galinheiro, árvores que
dão frutos o ano inteiro: araçá, goiaba, pitomba, limão, abacate, romã, pitanga.
Rita, seguindo o exemplo da irmã, já tinha uma escolinha de alfabetização
em Juiz de Fora. Agora, no Rio, aproveitava a sala da frente e improvisava nela
algumas carteiras. Fundou novo educandário que, em homenagem à sua
padroeira, chamou de Externato Santa Rita de Cássia.
Se da família materna do menino que vai nascer tudo se sabe, sobre o lado
paterno paira mesmo uma nuvem de mistério. Bellarmina de Medeiros, a Bella,
nasceu em 1863, também em Leopoldina. Ficou órfã muito menina e foi
praticamente criada por Maria Augusta, a mesma que já cuidava de Rita. Ao
mudar-se para a nova casa, só levou a roupa do corpo. Até mesmo os nomes dos
pais foram deixados do lado de fora. E para sempre. Supunha-se que, não se
falando no passado da menina, mais depressa se esqueceria a tragédia que todos
queriam esquecer: seu pai se suicidara. Tinha ela apenas quatro anos e Rita oito
quando se tornaram, por assim dizer, irmãs de criação. E grandes amigas. Uma
amizade que vai durar enquanto viverem.
Aos dezesseis anos, Bellarmina casou-se com Manuel Garcia da Rosa,
outro obscuro personagem desta história. Quem era, o que fazia, de onde viera,
tudo isso também se perderá na determinação, que até hoje perdura, de se falar o
menos possível no passado de Bella. Sabe-se apenas que morreu jovem, pouco
depois de nascer-lhes, a 24 de maio de 1880, o único filho: Manuel Garcia de
Medeiros Rosa. Viúva, Bella voltou para a casa de Maria Augusta.
Naturalmente, com o menino. Rita jurou que jamais se separariam outra vez.
Daí, ao casar-se com Eduardo, ter levado para Brejo, além de seus projetos de
noiva, a irmã de criação e seu filho de cinco anos.
Se Eduardo Corrêa de Azevedo era homem raro, especial, Manuel - Neca
para os de casa - veio predestinado a não ficar atrás, embora por outros motivos.
Também é desses que se vêem uma vez e não se esquece em tempo algum. Por
mais dura, malograda ou mesmo trágica que venha a ser sua existência, passará
por ela com a maltrapilha dignidade de um dom Quixote. Sonhando muito,
lutando, tropeçando repetidas vezes, reerguendo-se, investindo contra moinhos
de vento, caindo, levantando-se para novas batalhas inglórias. Positivamente,
não nasceu para vitórias, mas para sonhar com elas. Até que suas fantasias
comecem a transformá-lo, será um homem bondoso, altruísta, dócil, as maneiras
gentis contrastando com o corpo avantajado, mais de um metro e noventa, as
mãos enormes, o jeito pesadão. Um lutador. Sempre acreditando que o trabalho é
o alimento da vida. E a honestidade, o condimento. Fará dessa crença um de seus
lemas.
Tinha apenas dez anos de idade quando deixou a mãe com os Corrêas de
Azevedo, em Ponte do Cágado, e foi para Juiz de Fora lutar pelo próprio
sustento. Fez pequenos serviços, trabalhou como estafeta, tentou o que pôde.
Pouco conseguiu. Um ano depois, o Rio. Um menino, apenas um menino a
enfrentar a cidade grande com seus desafios e armadilhas. Fez um pouco de
muito, biscates vários, foi vendedor ambulante, empregou-se numa casa
comissária de café. Já rapaz, quase morreu de febre amarela, mas aproveitou o
período de tratamento e convalescença para estudar. Inteligente, memória
assombrosa, aprendeu sozinho matemática, francês, inglês, geografia e história.
Conseguiu o lugar de guarda-livros numa importadora (impressionava a todos
pela rapidez e precisão com que fazia de cabeça cálculos complicados). Até que
o dono da empresa decidiu promovê-lo. Ia familiarizá-lo com o processo de
"batismo" do vinho que trazia de Portugal, tantos por cento do legítimo, tantos
de um nacional ordinário. Ofendeu-se. Jamais trabalharia numa firma que se
valesse de tais expedientes. Pediu as contas. Sua noção de honestidade sempre
foi exemplar, rígida, não raro obsessiva. Desempregado, dividiu-se entre
incontáveis ocupações. Uma delas a de recolher trocados em esquinas do Centro,
ele vestido de palhaço, tocando violão e cantando, enquanto um amigo, metido
na pele de um urso, passava o pires. Quando ou com quem aprendeu a tocar
violão não se sabe, mas é provável que tenha sido como tudo mais: sozinho.
Apenas uma vez visitou a família em Minas desde que se lançou à sorte no Rio.
Oito anos depois da partida, ele já com dezoito, as pessoas mal o reconhecendo.
Também achou muita coisa mudada, as meninas crescidas, Eduardinho - que
nascera em sua ausência - com seis anos, as senhoras começando a ficar
grisalhas, doutor Eduardo precocemente envelhecido. Depois, voltou ao Rio.
Não só para se afogar novamente no trabalho, mas também para se isolar. Desde
moço e para sempre precisará disso, de trancar-se com seus pensamentos,
construindo castelos, vivendo em silêncio num mundo só seu. Para Manuel
Garcia de Medeiros Rosa, a solidão é quase tão preciosa quanto o ar que respira,
fundamental. Por isso, muitas vezes o veremos correr, compulsivamente, atrás
dela.
Em 1907, a saúde muito abalada, a clínica em decadência, ainda assim
Eduardo Corrêa de Azevedo teve forças para mais uma mudança. Alugou casa
menor, porém mais nova, no número 19 da Rua Silva Pinto, a dois quarteirões
do chalé. Foram todos para lá, Neca inclusive. Nova moradia, novos ares,
parecia boa idéia. Na casa antiga ficaria apenas a escolinha, que assim podia ser
ampliada, abrigando maior número de alunos. Mas foi idéia que durou pouco.
Em menos de um ano estavam de volta ao número 30 da Theodoro da Silva(10),
Eduardo mais doente, às dores que já sentia e à dependência da cocaína vindo se
juntar um rebelde ferimento na perna. Arruinava-se cada vez mais o corpo do
poeta.
10. O chalé tinha mesmo o número 30 naquela época, quando a Theodoro da Silva começava na Visconde de Abaeté. Em 1917, com o alongamento da rua até a Duque de Caxias (no trecho
desta que mais tarde seria incorporado à Gonzaga Bastos), o número mudaria para 130. Em 1936, a Theodoro da Silva sendo novamente alongada, começando então na Pereira Nunes, o chalé ganharia
uma terceira numeração: 392. A mesma do edifício de apartamentos que hoje ocupa o seu lugar.

Mesmo assim, procurava-se agir como se os dias felizes não se tivessem


acabado de todo. Mantinham-se os saraus domingueiros, trovas recitadas em
torno do piano Pleyel trazido de Minas, versos do dono da casa, Neca a
acompanhar-se ao violão em canções aprendidas com um certo Catulo da Paixão
Cearense, modinheiro que conheceu em suas andanças pelas noites da cidade.
Nos dois anos seguintes, uniram-se todos para que o trem da família não saísse
dos trilhos. As despesas não eram muitas, as moças estudando em casa,
Eduardinho sem pagar mensalidade como aluno do Ginásio de São Bento(11),
Alice Dantas Miguez não cobrando aluguel.
11. Em troca de impostos em atraso que o Governo lhe perdoou, o Ginásio de São Bento passou alguns anos sem cobrar mensalidades aos seus alunos.

Rita, muito ajudada pelas filhas, continuava trabalhando na escolinha,


enquanto o marido ainda tentava manter, embora precariamente, um consultório
nos fundos da Farmácia Dantas, no Boulevard. Ia-se sobrevivendo. Mas Eduardo
já pressentia a morte. "Será num mês de julho", vaticinava. Lembrava-se de que
o pai havia nascido no sétimo mês do ano e morrido no nono. Com ele, achava
que aconteceria justamente o contrário, o nascimento em setembro, a morte em
julho. Sem ter concluído sua última obra, o livro de poesias intitulado últimos
Amores, morreria em 1909. No dia 3 de julho.
Hábitos conservadores têm as famílias destes tempos. A dos Corrêas de
Azevedo, por exemplo, crê em valores como a viuvez eterna, a estabilidade dos
patriarcados, a moral mais ou menos abstrata que faz de parentes e vizinhos a
sua consciência, os guardiães de seus passos pelos caminhos da virtude. Em
outras palavras, acreditam que reputação vale mais que felicidade. Rita e Bella
jamais voltarão a se casar. Sequer admitem que se insinue tal traição à memória
dos maridos. Por confiarem no patriarcado, acham que o chefe da casa tem de
ser um homem. E fizeram de Neca, então com 29 anos, este chefe. Não só por
ser o mais velho (Eduardinho tinha apenas 17), mas também por ser o único em
condições de ajudá-las nas despesas (Eduardinho queria estudar medicina como
o pai, o avô e o bisavô, mas por enquanto ainda estava no ginásio). Havia,
contudo, um problema: exatamente a reputação. O que diriam parentes e
vizinhos de duas moças solteiras vivendo sob o mesmo teto com um homem
ainda jovem e também solteiro? Rita e Bella, preocupadas, viram apenas duas
saídas: ou Neca ia morar noutra casa, afastando-se mais uma vez da família, ou
se casava com uma das moças. Ele próprio optou por esta última. Já gostava de
Martha, de seus olhos verdes, de seu jeito mais doce que o de Carmem. Para Rita
e Bella, uma solução adequada. Para Neca, mais um gesto galante. Para Martha,
quase um ato de obediência, facilitado pela admiração e estima que tinha ao
noivo. O amor, nisso tudo, pouco pesou.
Nenhum dos dois aceitou uma das exigências da Paróquia de Nossa
Senhora de Lourdes para casá-los: tinham ambos de se submeter à confissão. A
família, possivelmente influenciada por Eduardo, o poeta do Catecismo, é
religiosa à sua maneira. Católica, mas aceitando com reservas (ou mesmo não
aceitando) certas regras da Igreja. A confissão está entre as que não aceitam.
Mas Eduardinho contornou o problema com uma pequena trapaça. Foi com um
amigo à Igreja de Santa Rita, no Centro, e os dois se confessaram, um com o
nome de Manuel Garcia de Medeiros Rosa e o outro com o de Márcio Corrêa de
Azevedo. O vigário cobrou-lhes vinte mil réis pelas certidões. Numa delas, com
borracha e caneta, Eduardinho mudou o nome de Márcio para Martha e tudo se
arranjou. Entregues os documentos à Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes,
funcionando num esmaecido prédio da Praça 7 de Março(12), marcou-se a data.
12. A Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes foi criada a 19 de agosto de 1900 e nos dezoito anos seguintes funcionou no prédio que hoje corresponde ao primeiro pavimento do Mosteiro de
Nossa Senhora da Ajuda, na Praça Barão de Drummond, então Praça 7 de Março. Diante de confusões que ainda fazem alguns dos que se têm dedicado a escrever sobre a história de Vila Isabel, cabem
aqui certos esclarecimentos. O mosteiro original - conhecido como Convento da Ajuda (no qual viviam as freiras da Ordem da Imaculada Conceição, fundada em 1484, na Espanha, pela beata portuguesa
Beatriz da Silva e Meneses) - esteve de 30 de maio de 1750 a 19 de outubro de 1911 num prédio que se estendia por toda a atual Cinelândia, da Rua do Passeio à Evaristo da Veiga. No mesmo dia em
que as freiras dali se retiraram para um casarão da Rua Conde de Bonfim, na Tijuca, o prédio começou a ser demolido. Parte do que era transformou-se num hotel de 300 quartos construído pela Light &
Power. A outra foi aproveitada para o alargamento da rua, sendo agora a praça em frente ao Teatro Municipal. Em 1918, a Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes transferiu se para a nova igreja que até
hoje está no número 200 do Boulevard 28 de Setembro. O esmaecido prédio da Praça 7 de Março entrou em reformas. Mais dois andares foram construídos. Dois anos depois - exatamente a 26 de julho
de 1920 - as freiras mudaram-se da Conde de Bonfim para lá, onde estão até hoje. Portanto, ao contrário do que se tem dito, a paróquia e o convento jamais chegaram a dividir o mesmo prédio.

Casaram-se a 29 de janeiro de 1910, no próprio chalé. A cerimônia, tendo


por testemunhas Bellarmina, César (irmão de Eduardo) e Rodolpho Ambrone,
foi celebrada pelo Monsenhor Francisco Ignacio de Souza. Menos de um ano
depois, o primeiro filho.
O menino nasce nesta manhã de domingo, 11 de dezembro de 1910. A
cidade já está calma, a revolta dos marinheiros sufocada, o azul substituindo as
nuvens de fumaça que ontem obscureciam o céu. Ninguém na família ligou para
a má sorte que tantos temem viajar na cauda de um cometa. Quando muito,
pensou-se numa estrela imensa, cheia de esplendor, que mesmo invisível dizem
iluminar os nascimentos de dezembro.
Começo de vida, alegria no chalé modesto. Mas nem tudo corre como se
esperava. É um parto difícil, a bacia estreita de Martha não dando passagem ao
menino de quatro quilos. O médico esteve ao lado dela desde ontem cedo,
quando lá fora se falava em fim do mundo. Por muito tempo, aliás, haverá quem
associe as dificuldades do parto ao clima de guerra que inquieta a população(13).
13. Diz Jacy Pacheco em NoelRosa e Sua Época (página 22): "Contam alguns parentes que dona Martha assustou-se com o canhoneio que abalou o Rio, na revolta dos marinheiros chefiada
pelo valente João Cândido. O susto complicou-lhe a gestação e o parto."

Um parto tão difícil que o médico chamou outro para ajudá-lo, este se
decidindo pelo emprego do fórceps. Um menino extraído a ferro, penosamente.
Tudo muito complicado, sofrido, longas horas de espera madrugada adentro.
Eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui.
PARTE II 1910-1928
Capítulo 2

CRESCENDO COM BOSSA

Eu nascendo pobre e feio,


Ia ser triste o meu fim
Mas, crescendo, a bossa veio
Deus teve pena de mim
Riso de Criança

O menino se chamará Noel. Noel de Medeiros Rosa. Por ter nascido às


vésperas do Natal e pelo amor do pai às coisas de França, o idioma, a cultura, a
história do país de Bonaparte. Que por sinal é o maior de todos os heróis para
este mineiro calado, introspectivo, que se faz repentinamente falante quando se
trata de lembrar episódios como a queda da Bastilha e as campanhas
napoleônicas. Com sua formidável memória, gosta de citar no original frases
atribuídas ao grande general, principalmente as do discurso de Toulon em 1793:
- Le boulet qui doit me tuer n 'estpas en-corefondu!
Noel como o Natal dos franceses. É assim que vai à pia batismal da Matriz
de São Francisco Xavier do Engenho Velho, domingo, 29 de janeiro de 1911,
primeiro aniversário de casamento dos pais. Embora os moradores da Theodoro
da Silva, como os de toda Vila Isabel, pertençam à Paróquia de Nossa Senhora
de Lourdes, mais ligados portanto à igreja que ainda ocupa aquele prédio da
Praça 7 de Março, muitos preferem realizar seus casamentos e batizados neste
templo cheio de histórias erguido na Rua São Francisco Xavier, a duas esquinas
do largo da Segunda-Feira, no mesmo terreno onde outrora ficavam os
cemitérios (o dos cidadãos comuns onde é hoje a alameda de entrada, o dos
escravos nos fundos e o dos nobres na área destinada ao templo, guardando-se
assim, para além da vida, as diferenças de classes, cada morto em seu lugar).
Fundada por José de Anchieta em 1625, é mesmo uma igreja cheia de
histórias. Uma das favoritas de Pedro I, que a ela mandou o comendador
Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, com uma declaração reconhecendo como
sua filha a menina Isabel Maria. Para rubor do vigário Manuel Joaquim
Rodrigues Dantas, a quem coubera batizá-la, segundo registro original, como
"filha de pais incógnitos". Não era segredo para ninguém que Isabel Maria
nascera do romance de Pedro I com Domitila de Castro Canto e Mello, então
Viscondessa de Santos. O que o vigário não esperava é que o Imperador tivesse
coragem de reconhecê-la. Sim, uma das igrejas favoritas de Pedro I, que em
honra ao santo estendeu um pouco mais o nome do filho e herdeiro: Pedro de
Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula
Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, o futuro Pedro II. Mas a igreja favorita também
de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Ao voltar coberto de
medalhas da Guerra do Paraguai, prepararam-lhe uma série de homenagens. Por
aquela mesma época uma ventania fizera tombar lá do alto uma das torres da
igreja. Caxias soube, recusou as homenagens: "Quando a casa de Deus está em
ruínas - sentenciou ele - o soldado não recebe festas. Ide reconstruir a igreja da
minha Freguesia do Engenho Velho(1).
1. As palavras de Caxias estão gravadas numa das placas hoje afixadas na fachada da igreja.

Pois é ali - na mesma pia em que recebeu os primeiros sacramentos a "filha


de pais incógnitos" Isabel Maria - que Noel é batizado em cerimônia celebrada
pelo cônego Antônio Boucher Pinto. O padrinho é José Rodrigues da Graça
Mello, o médico que acompanhou Martha durante toda a gravidez e chamou o
colega Heleno Brandão para ajudá-lo a vencer as dificuldades do parto. Algumas
pessoas da família acharão que foi um erro seu não ter notado, senão meses mais
tarde, que o menino nasceu com um problema no maxilar inferior, o fórceps
usado pelo outro médico pegando-o de mau jeito, fraturando-lhe o osso num
ponto vital, deformando-o para sempre. Martha e Neca, contudo, têm grande
carinho por Graça Mello, jamais o culparão de coisa alguma. Quem sabe não foi
mesmo o canhoneio?
A madrinha é Maria Arlinda Rodrigues de Almeida Madureira. Ou
simplesmente Arlinda. Uma menina de nove anos que desde os seis mora no
chalé como se fosse da família. Os Madureiras e os Corrêas de Azevedo são
amigos dos tempos de Cantagalo e Nova Friburgo. Arlinda nasceu ali perto, em
Bom Jardim. A mãe morreu de parto, o pai passou a vida viajando, a menina foi
criada por uma tia. Num certo dia de 1907, veio de visita, todos gostaram dela,
pediram à tia que a deixasse ficar por uma ou duas semanas. A menina adorou.
Era a única criança da casa (Eduardinho já estava com quinze anos), tratada com
todas as atenções. Acabou ficando de vez, Eduardo e Rita fazendo dela uma filha
caçula.
Arlinda e Martha serão sempre amigas muito chegadas, íntimas mesmo.
Devem isso a umas tantas afinidades, o gosto pela vida, o temperamento bem
mais extrovertido que o de Carmem, uma certa sensualidade que, nesses dias, as
moças costumam reprimir. Arlinda foi batizada no chalé, cabendo a Martha
representar-lhe a madrinha, Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A partir de
agora, mais que amigas, vão se considerar parentas de fato, irmãs de verdade. Os
Corrêas de Azevedo, os Pachecos, os Madureiras sempre levaram muito a sério
os laços que o batismo cria.
A madrinha de Noel crescerá no chalé. Para se transformar numa moça
meiga, de olhos estivos, os lábios grossos, o nariz de turca conferindo-lhe beleza
próxima do exótico. Terá a mesma educação das irmãs de criação, tocará piano,
se dedicará aos trabalhos manuais, o crochê, a pintura, a pirogravura. Ficará
indecisa entre o Instituto Nacional de Música e a Escola Normal. Depois de
aprovada nos exames de admissão a ambos, optará pelo primeiro. Só sairá daqui
casada. Um casamento que também a aproximará de Martha, uma
compreendendo na outra a falta de entusiasmo, desencanto mesmo, por uma
união sem amor. Antes disso, quando tiver seus vinte anos, Arlinda vai se
apaixonar por um bom rapaz. Chegarão a ficar noivos, mas por pouco tempo: ao
descobrir que o moço morava com uma tia, dona de pensão familiar, que à noite
mantinha a porta de seu quarto aberta a um dos inquilinos, Rita exigirá que a
filha de criação rompa o noivado. Imagine vê-la casada com um homem que faz
vista grossa à falta de compostura da tia! E assim será, fim de noivado, Arlinda
enchendo-se de tristeza. Mais tarde, conhecerá um farmacêutico de São Paulo,
amigo da família, e aceitará seu pedido de casamento. Como Martha, apenas por
amizade.
O defeito começa a ser notado assim que o menino troca a mamadeira pelas
primeiras refeições sólidas. O lado direito do rosto pouco ou nada se movendo,
pensa-se de início numa paralisia temporária. É um bebê gordo, rosado, de
aparência saudável, que chega a participar de um desses muitos concursos de
robustez infantil tão em voga(2).
2. Jacy Pacheco se equivoca ao afirmar em Noel Rosa e Sua Época (página 24) e O Cantor da Vila (página 40) que aos dez meses o menino venceu um concurso de robustez infantil
patrocinado pela Nestlé. Esta firma só em 1921 iniciou suas atividades no Brasil. Portanto, quando Noel já estava com dez para onze anos. Eram muito comuns na época os concursos desse tipo
promovidos pela Prefeitura do então Distrito Federal. Embora Eduardo Corrêa de Azevedo, o filho, tenha garantido aos autores que o sobrinho realmente venceu um deles, não se encontrou registro disso
nos arquivos municipais ou na imprensa de 1911 e 1912.

Mas, à medida que cresce, mais se nota a diferença: enquanto o lado


esquerdo desenvolve-se normalmente, o direito parece atrofiado. Graça Mello e
depois outros médicos são consultados. O diagnóstico da fratura realmente vem
tarde, o osso formado assimetricamente, nada mais podendo ser feito. Tenta-se
uma operação aos seis anos. E uma prótese aos doze. Ambas sem sucesso.
Eduardinho, já acadêmico de medicina, terá oportunidade de testemunhar a
primeira dessas tentativas frustradas. A família gastará parte de suas economias -
600 mil réis - para que o menino seja assistido por famoso traumatologista.
Dinheiro jogado fora.
- Este médico é um charlatão! - dirá Eduardinho ao vê-lo forçar o maxilar
de Noel com um abridor de boca até romper-lhe as fibras do masseter, causando-
lhe traumatismo, dor e nenhuma melhora(3).
3. Detalhes dessa operação foram narrados aos autores por Eduardo Corrêa de Azevedo. O traumatologista famoso que assistiu o sobrinho - e cujo nome, por questões éticas, negou-se
terminantemente a revelar - pretendia de início realizar uma intervenção mais ambiciosa: corte do osso e enxerto. O que provavelmente também não teria dado certo, em razão dos limitados recursos da
época. Optou, então, pelo abridor de boca.

Menos penosa, porém tão inútil, será a prótese improvisada seis anos
depois, um precário aparelhinho que Noel não usará por muito tempo.
Crescerá com o defeito. Viverá com ele. Carregará para sempre o queixo
torto que lhe enfeia o rosto. Tem a cabeça bem feita, os olhos acesos,
expressivos, castanho-claros. O nariz é afllado, nem como o da mãe, nem como
o do pai. E se parece maior, isso se deve à linha reta que parte do lábio inferior
ao pescoço, como se o mento lhe tivesse sido arrancado. Essa conformação de
rosto - que se vai acentuar com o tempo - lhe dá uma aparência estranhamente
indefinida, a metade superior harmoniosa, bonita até, e a inferior deformada, de
uma fealdade que pode ir do grotesco ao patético conforme esteja quieto, falando
ou, sempre com sacrifício, mastigando.
Desde pequeno e até seus últimos dias, enquanto estiver no chalé, a mãe
cuidará pessoalmente de sua alimentação, dietas que o permitam usar o menos
possível a mandíbula, não forçar quase a articulação. Ovos cozidos, massas,
purês, mingaus, sopas. Ao contrário do que se dirá um dia, embora feio, marcado
pelo defeito, não é uma criança infeliz. A idéia de um Noel Rosa mergulhado
numa infância sofrida, um pobre menino estigmatizado a suportar em silêncio as
estocadas dos outros meninos que o chamam de "Queixinho", está longe de
corresponder à realidade. É mais exato pensar nele alegre, despreocupado, solto.
Será sempre assim. Mesmo durante os períodos de dificuldades financeiras que a
família vai enfrentar. E mesmo, também depois da operação dolorosa e mal-
sucedida. Complexo por causa do queixo? Se o tem, não o demonstra. No
máximo, mostra-se meio constrangido ao comer na frente de estranhos,
consciente talvez da má impressão que causa. Em tudo mais será um menino
seguro. Ativo, desembaraçado, inteligente, sempre de bom humor. Na rua,
comanda as brincadeiras. Um líder. E em casa, é o número um, o favorito de
quase todos.
O número dois - a quem esta condição sempre incomodará um pouco -
nasce a 29 de dezembro de 1914. No mesmo chalé e também pelas mãos de José
Rodrigues da Graça Mello. Parto normal, nenhum problema. É um garoto forte,
bonito, a que dão o nome de Hélio. Hélio de Medeiros Rosa. Desta vez, sem
homenagens à França, ao Natal, ao que seja.
Mais do que quatro anos de idade vão separar os dois irmãos. Na aparência,
no modo de ser, em quase tudo, diferem-se muito. Todos vivem a dizer que
Hélio é um menino lindo. Os traços do rosto lembram muito os da mãe. É forte,
com ligeira tendência a engordar. Enquanto isso, Noel cresce feio, frágil,
mirrado. Hélio é caseiro, tem poucos amigos, prefere os livros aos brinquedos.
Noel ama a rua, os companheiros de algazarra. Gosta de subir descalço a
Pedreira do Simões para lá de cima ele e os amigos gritarem a plenos pulmões:
"Olê-lê-oooooooooo...!" O eco espalhando suas vozes pelo bairro, fazendo-as
atravessar portas e janelas até chegarem ao Andaraí). É um caroneiro a desafiar
os perigos de um bonde em disparada, risco que Hélio nem quer saber de correr.
Andará pendurado em balaústres, deslizando pelos estribos, saltando como um
trapezista para subir ou descer do veículo em movimento. Hélio está com a
roupa invariavelmente limpa. Noel traz na sua a poeira das calçadas.
Dois médicos

Por ocasião do nascimento de Noel, Martha de Medeiros Rosa foi assistida por dois médicos que
ainda se incluiriam entre os mais conhecidos e estimados personagens da história de Vila Isabel. Um deles,
José Rodrigues da Graça Mello - que acabaria sendo o padrinho do menino -, não era exatamente médico,
mas ultimanista de medicina, quando foi chamado ao chalé naquele explosivo sábado de dezembro.
Nascido no Rio a 23 de abril de 1881, já estava casado e com filhos no dia em que decidiu ser
médico. Só se formou em 1911, mais de um mês depois de ter nascido Noel. Era homem gentil, inteligente,
interessado em música e poesia como tantos de seu tempo. Todas as quartas-feiras, sua casa no Boulevard
transformava-se em ponto de reunião de seresteiros e chorões. Seus saraus ficaram famosos no bairro,
contando às vezes com a presença de artistas como Stefana Macedo e Vicente Celestino. Nos dias de São
Jorge, a festa era maior. Pixinguinha, que aniversariava com o dono da casa, costumava aparecer para um
gole de pinga e um solo de flauta. Choros, polcas, maxixes, valsas, lundus, tudo se ouvia nos saraus dos
Graças Mello.
Casado com Glorinha, tiveram quatro filhos, todos muito amigos de Noel. Pela ordem, Edgar,
Nelson, Nilda e Octávio. O primeiro também seria médico. O último, ator de teatro, cinema e televisão, pai
do compositor e arranjador Guto Graça Mello.
O ultimanista de medicina contava com um parto simples quando se dirigiu ao chalé naquele sábado.
Os problemas que o tomaram de surpresa - o bebê grande demais para a bacia estreita da mulher - levaram-
no a apelar para a maior experiência de um médico já formado, Heleno da Costa Brandão, com quem já
vinha trabalhando no pequeno consultório em cima de uma farmácia do Boulevard.
Ao contrário de Graça Mello, Heleno, que tinha distante parentesco com o pessoal do chalé (sua avó,
Antônia Eulália d'Ávila Brandão, era irmã da mãe de Rita, Emília Augusta de Freitas Pacheco), desde cedo
sonhou com a profissão. Nascido em Vila Isabel a 18 de agosto de 1883, estudou no Colégio Rachel Bessa,
em Campos, e depois no Anchieta, de Nova Friburgo, antes de ingressar na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro. Em 1907, formava-se. Médico e farmacêutico. No ano seguinte, defendia tese. Casou-se com
Maria José de Barros, a Cecé, de outra família tradicional do bairro. O pai dela, José Cândido de Barros,
depois de lutar na Guerra do Paraguai, ganhou cartório do Imperador e enriqueceu. Comprou uma bela
chácara em Vila Isabel, frente no Boulevard, fundos na Torres Homem, que mais tarde dividiria entre os
filhos (a rua que hoje reparte em dois o quarteirão correspondente à chácara chama-se, em sua homenagem,
Major Barros). Outra filha de José Cândido - e portanto irmã de Cecé - era Maria Cândida de Barros Nunes,
a Iaiá, cujos filhos Adalberto, Cacau, Heleno ejosé Peru também seriam muito conhecidos no bairro e fora
dele. Os três primeiros se destacariam em suas respectivas carreiras militares e políticas.
Heleno e Cecé tiveram três filhas.-Helena, Heloísa e Hilde. O marido de Heloísa, Jorge Sampaio de
Marsillac, seria em Vila Isabel um médico tão ilustre e estimado quanto o sogro. Ele e o filho, Jayme,
adquiririam grande reputação nos meios científicos como cancerologistas.
Foi de Heleno da Costa Brandão a decisão de usar o fórceps para ajudar Noel a nascer. O que ele
sempre fez questão de dizer e repetir, livrando assim de qualquer responsabilidade o amigo, ainda
acadêmico, Graça Mello. Como terá sido? De que forma deu-se o acidente? Por que, para vir ao mundo,
Noel Rosa teve de ser tão duramente marcado?
O Dr. Antônio Assis de Salles, professor de anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, com base em documentação fotográfica e nas informações dos
autores (que por sua vez as colheram com parentes e amigos da família de Noel, além de filhos dos dois
médicos que acompanharam o parto), permite-se formular a hipótese mais provável do que causou o defeito
(braquignatia) no queixo do poeta de Vila Isabel.
" 1. Devendo o fórceps segurar o bebê pelos dois lados superiores da cabeça (ossos parietais), uma de
suas extremidades o fez num ponto mais abaixo, na têmpora direita, mais precisamente no côndilo
mandibular, fraturando-o.
2. O côndilo é uma saliência oblonga que se destaca no bordo superior de cada ramo ascendente da
mandíbula. É através dele que este osso se articula com o temporal - a articulação-têmporo-mandibular e
responsável pelos movimentos da mandíbula.
3. O côndilo é também o principal centro osteogenético da mandíbula, ou seja, é sobretudo a partir
dele que se dá o crescimento do osso.
4. A fratura, destruindo nele microscópicas zonas osteogenéticas, acabou por afetar o crescimento do
osso no lado atingido.
5. Observe-se, pelas fotos de Noel, que o defeito acentuou-se na puberdade. Motivo: é dos doze aos
dezesseis anos que se torna maior o crescimento da face (e menor o do cérebro). Enfim, é durante estes
quatro, cinco anos que ocorre a conformação definitiva da face.
6. Este e outros dados devem servir para que não se leve muito em conta a hipótese de uma das
síndromes congênitas que também causam a braquignatia. Elas são quase sempre simétricas (o defeito de
Noel limitava-se ao lado direito) e acompanhadas de problemas outros não encontrados em seu quadro
clínico: surdez, estrabismo, exorbitismo, etc."
O fato de a fratura só ter sido constatada meses depois pode ter influído, mas apenas em parte. Com
os exíguos recursos médicos da época, é pouco provável que um diagnóstico precoce tivesse ajudado muito.
As tentativas de correção que se fizeram mais tarde - o calço de acrílico, o abridor de boca - foram tão
inúteis quanto improvisadas. Hoje, passadas mais de sete décadas, o problema poderia ser solucionado com
modernos métodos ortopédicos (por exemplo, aparelhos estimuladores de crescimento) ou cirúrgicos
(inclusive a extração do côndilo seguida de prótese), mas Graça Mello e Heleno Brandão nem sonhavam
com eles.
Daí, até o fim da vida, em vez de culpas, os dois médicos fizeram muito bem em carregar apenas o
orgulho de terem trazido Noel Rosa ao mundo.
Graça Mello morreu no Rio a 8 de fevereiro de 1942. Deram-lhe o nome de uma rua em Cavalcanti.
Heleno Brandão viveu um pouco mais, morrendo a 1.° de junho de 1947. Na Praça Tobias Barreto - a
mesma em que seria inaugurado um monumento a Noel - está até hoje um busto seu, sobre a inscrição: "Dr.
Heleno da Costa Brandão fez da medicina um apostolado e a este bairro onde nasceu, viveu e morreu legou
o tesouro de uma vida exemplar."
Nos temperamentos, água e vinho. Noel tem bom gênio, não é de se
queixar, trata os mais velhos com polidez. Hélio será um garoto meio difícil,
irritadiço, reclamão, ciumento:
- Aqui em casa é tudo pro Noel-protesta. - Eu vou buscar o leite, o pão, faço
isso, faço aquilo. Noel tem sorte, não mandam ele fazer nada. A madrinha dele é
a Arlinda, que é bonita. A minha é aquela bruxa horrorosa!
Noel comporta-se bem em casa, deixando para descarregar as energias na
rua. Suas travessuras domésticas são quase sempre perdoáveis e freqüentemente
enfeitadas de alguma graça. Como as habituais idas ao piano, tímidos esforços
para descobrir por conta própria a mágica de produzir música batucando em
teclas brancas e pretas. Mas este é um brinquedo proibido. Vó Rita não quer as
crianças perto do Pleyel. É em volta dele que a família continua se reunindo,
Arlinda no piano, Carmem no violino, Martha no bandolim, Neca no violão,
cantando com uma voz que se esforça para educar pondo no gramofone os
discos de Enrico Caruso e outros monstros sagrados da ópera. Nesses saraus, em
geral aos domingos, a participação dos meninos ainda é mínima. Saboreiam os
doces e biscoitos caseiros que se distribuem entre um número e outro, ficam
ouvindo. Não cantam, não tocam. Noel, quando muito, olha para as mãos de
Arlinda enquanto ela as faz passear pelo teclado. No dia seguinte, escondido da
avó, abre o piano e dá início ao seu sarau particular. É repreendido. A
reincidência obriga Arlinda a trancar o instrumento. Mas Noel sempre descobre
o esconderijo, pega a chave, volta ao sarau. Depois de tocar até se cansar, deixa
sobre o tampo um bilhete para a madrinha. "Minha Dinga...", começa ele. Em
versos, pede desculpas e diz que é tempo perdido esconder a chave: sempre será
encontrada. Arlinda sorri, convencida de que uma travessura que acaba em
poesia não merece castigo.
Hélio não tem mesmo a sorte do irmão. Seu comportamento, suas
desobediências preocupam a família. Não chega a ser um menino rebelde, mas
há nele, desde pequeno, uma tendência a irritabilidades repentinas que vão de
simples respostas atravessadas a desagradáveis estouros. A partir das convulsões
que começará a sofrer ainda na infância, vai se descobrir que tais reações se
devem à epilepsia, mal que o acompanhará por toda a vida(4).
4. Hélio de Medeiros Rosa jamais se livraria de todo dos ataques epiléticos. Já adulto - e anos depois da morte do irmão - se submeteria a uma operação destinada a aliviá-lo de uma
compressão no cérebro. Por algum tempo os ataques tornaram-se mais brandos e espaçados, mas a melhora seria apenas temporária.

Mas enquanto não se sabe disso - e até que passe a se medicar, controlando
na base da química os ataques cada vez mais freqüentes - será para a família um
menino difícil, "impossível". Em casa, tenta-se de tudo.
Com menos idade do que Noel o fez, deixa a escolinha e é matriculado num
colégio público, os pais achando que o convívio com outras crianças e a
disciplina imposta por uma professora estranha sejam o bastante para amoldá-lo.
Vó Rita chega a prometer-lhe prêmios para o caso de o boletim escolar registrar
boas notas em comportamento. Um dia entra em casa com um 100 que mostra,
correndo, à avó.
- Aqui está. Agora, meu prêmio.
Vó Rita cumpre a promessa. Convencida de que a tática funciona, insiste
nela. Acena-lhe com outros prêmios para que seja um bom menino o dia inteiro,
em todos os lugares, em casa como na escola. A proposta provoca-lhe nova
explosão. Dá um soco na mesa e vocifera:
- A senhora pensa que é pouco o sacrifício que já faço na escola e ainda
quer que me comporte bem em casa?
Irritabilidade sempre inesperada. Já rapazola, será protagonista de insólita
cena à mesa de jantar, a família recebendo visitas, vó Bella orgulhosa de seus
quitutes, ela que sempre cuidou, com gosto e capricho, da cozinha da casa. Será
servida uma sopa deliciosa, de caldo fino e deleitoso, elogiadíssima. O próprio
Hélio dará sua aprovação:
- Vovó, quero mais.
Terminado o jantar, as visitas ainda à mesa, alguém indagará:
- De que era aquela sopa, dona Bellarmina?
- De couve-flor.
Hélio se lembrará então que couve-flor está entre as coisas que mais
abomina. Só de pensar dá-lhe engulhos.
- Droga! Por que não me avisaram? Furioso, correrá até o banheiro, enfiará
o dedo na goela e porá para fora o jantar.
São realmente muitas as diferenças de comportamento entre os dois. Mas
faça-se justiça a Hélio: enquanto ele exterioriza seu modo de ser, mostrando-se
transparente e por inteiro, Noel é antes de tudo um simulador, um garoto que não
se expõe, astuto o bastante para que as pessoas se deixem levar por seu ar sonso
de anjo de igreja. Custarão um pouco a perceber que o número um é muito
menos "bem-comportado" que o número dois. De natureza na verdade mais
inconformista e rebelde, só que camuflada. Noel, simulador, medindo gestos e
palavras na frente dos mais velhos, sempre se sai bem. Hélio, extrovertido,
dizendo o que pensa e sente, custe o que custar, fica sendo o difícil, o
"impossível".
Martha e Neca não terão mais filhos. A esses dois darão o que de melhor
possuem: amor, generosidade, tolerância. Martha principalmente. Talvez
sensíveis aos handicaps de cada um - o queixo torto de Noel, as convulsões de
Hélio - não serão pais rigorosos, repressores. Os dois crescerão tão livres quanto
possam ser dois meninos desses tempos.
Desde que os Corrêas de Azevedo se mudaram para Vila Isabel, a família
vive numa espécie de gangorra financeira, um sobe-e-desce que se arrastará por
muito tempo ainda, as tempestades de dinheiro curto se seguindo a períodos
menos ou mais longos de bonança. Todas as mulheres trabalham, ajudando de
alguma forma na escolinha, mas é Neca, como em todo patriarcado, o verdadeiro
responsável pelo sustento da casa.
Seu primeiro emprego fixo no Rio, depois de casado, foi o de guarda-livros
da Camisaria Especial, na Rua do Ouvidor. Em poucos meses, já era o gerente
ou, mais que isso, o braço direito do proprietário que um dia, estando a firma
metida em apuros, chamou-o a um canto, pôs-lhe a mão no ombro e disselhe, em
tom paternal:
- Se tu me ajudares a sair deste buraco, faço-te meu sócio.
Neca passou a trabalhar em dobro, dedicou-se à camisaria como se fosse
sua. Reergueu em pouco tempo um negócio que parecia irremediavelmente
condenado.
O dono saiu afinal do buraco, mas dentro dele deixou enterrada a promessa
de sociedade. Neca, desapontado, propôs a outro empregado, um certo Rodrigo,
abrirem juntos sua própria firma. Por que não uma casa de classe, de roupas
masculinas, camisas, lenços, gravatas e cortes importados da Inglaterra? Neca
tinha algum dinheiro, Carmem ajudou com suas economias, enquanto Rodrigo,
embora filho de português rico, conhecido como "o rei do bacalhau", contava
mais com o apoio do sogro também rico. Fizeram negócio nas seguintes bases:
Neca entrava com o capital inicial, o sogro de Rodrigo punha sua parte depois.
Assim, embora fossem tempos de guerra, metade da Europa entrincheirada, os
dois instalaram, otimistas, sua importadora na Rua Gonçalves Dias.
São quatro ou cinco anos de nova bonança no chalé. Na verdade, o período
de maior conforto gozado pela família desde que Neca se tornou seu chefe. A
mesa faz-se farta, as mulheres vestem-se como nunca, Noel e Hélio ganham
roupas e brinquedos caros, Eduardinho já não precisa se preocupar com os
gastos, a faculdade, a alimentação, o transporte, os livros. De tal forma o
dinheiro parece sobrar que Neca nem liga para os calotes que volta e meia lhe
aplica um cliente ilustre: Ruy Barbosa. O que importa é o privilégio de servir a
tão grande brasileiro. Dinheiro farto o bastante para que Martha ganhe do marido
jóias de esmeralda: - São para combinar com os teus olhos - diz ele.
Mas desde 1914 a vida está mais difícil em toda parte, a guerra
recrudescendo, o bloqueio alemão às costas britânicas e francesas, navios
mercantes brasileiros sendo torpedeados. Os efeitos, claro, são sentidos também
no chalé. Suspensas até segunda ordem as importações da Europa, a casa de
roupas de classe da Rua Gonçalves Dias entra em crise. Títulos a resgatar em
vários bancos, empréstimos pessoais a saldar, os negócios parados, o estoque da
loja quase a zero, Neca recorre ao sogro de Rodrigo. É hora de entrar com sua
parte. O outro, porém, tira o corpo fora: - Ora, ora, seu Medeiros. Isso são
negócios de meninos.
Ao contrário dos homens com quem andou fazendo acordos, Neca jamais
deixa de honrar sua palavra. Mesmo quando não é preciso fazê-lo. No caso,
bastaria declarar-se falido, fechar as portas da firma, ir cuidar da vida em outro
ramo qualquer. Mas não. Honesto além dos limites (ou como se forçado por
estranha necessidade de assumir culpas, de pagar pelo que não deve, de sofrer
pelo que não fez), vira-se para Rodrigo e diz-lhe que arcará com tudo sozinho.
Vai aos bancos e outros credores, promete a cada um deles pagar até o último
tostão do que deve.
Depois da bonança, nova tempestade. Neca parte para o interior atrás de um
emprego de agrimensor (ofício que aprendeu sozinho, em pouco tempo de
estudo). Torna-se chefe de uma equipe que cuida de loteamento de terras no
noroeste paulista, para além de Araçatuba. Mete-se mata adentro, derrubando
árvores, abrindo esteiras, delimitando fazendas. Como se tivesse algo a esconder,
vive ali quase em segredo, identificando-se apenas como "doutor" Garcia (nome
que jamais assinou no Rio, onde todos o conhecem por Neca ou seu Medeiros).
Alguns de seus empregados têm mesmo o que esconder: são ladrões, assassinos,
foragidos da Justiça que sabem não ser mais possível voltar à cidade grande.
Naquele desterro, Neca satisfaz a um só tempo duas necessidades: a de ganhar
dinheiro para pagar as dívidas e a de ficar só mais uma vez. Continua precisando
desses isolamentos periódicos. E o interior paulista parece-lhe, nesse sentido, um
paraíso: terras abandonadas, matas virgens, a caça e a pesca, seus companheiros
de trabalho não fazendo perguntas e nada falando de si mesmos. As diversões
são poucas. Uma delas, matar cobras a tiros de revólver Passa por maus
momentos. Ao tentar ajudar uma comunidade indígena da região, quase toda ela
sofrendo de maleita, contrai a doença. Lembra-se então de que Eduardinho já se
formou. Está trabalhando em Aquidauana, Mato Grosso, como médico da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Com febre, tremores pelo corpo, toma um
trem para lá. Confia mais em Eduardinho do que em qualquer outro. Chegando a
Aquidauana, o enfermeiro que trabalha com o cunhado recebe-o com aterradora
informação : - O doutor? Está morrendo no hotel. Tifo.
Neca vai passar dias, semanas, à cabeceira do jovem médico. Tão
preocupado com o estado de saúde dele que se esquece do seu próprio. O
enfermeiro exagerou: Eduardinho não está morrendo. Mas precisa de cuidados.
Neca se incumbe disso até que o cunhado esteja em condições de viajar para o
Rio, ser melhor tratado no chalé. A maleita? Pensa consigo mesmo: "Estranho...
foi-se embora. Terá sido o choque daquela notícia?"
Fica seis anos fora, só voltando a cada dezembro para os aniversários dos
filhos e as festas. Numa dessas vindas, Noel e Hélio vão esperá-lo na estação.
Não o reconhecem. Ficam muito assustados quando um homem alto, barba por
fazer, modestamente vestido, aproxima-se deles na plataforma:
- Hélio, Noel... Sou eu, seu pai!
Volta depois dos seis anos. Paga as dívidas até o último tostão. Os bancos já
nem contavam com isso, um mineiro falido preocupado com a honra.
No chalé sempre cabe mais um. Ou mais quatro. Como Jocelyn da
Encarnação e os irmãos Dulce, Sylvia e Mariozinho Brown, crianças com as
quais Noel e Hélio vão dividir boa parte de sua infância, vivendo todos sob o
mesmo teto como uma só família.
Jocelyn, um ano mais velho que Noel, não chega propriamente a morar no
chalé. Vem cedinho, toma o café da manhã, estuda, almoça, estuda um pouco
mais, brinca, janta e só depois volta para sua verdadeira casa, na Rua Maxwell.
Dorme e no dia seguinte começa tudo de novo. O pai, Álvaro Pereira da
Encarnação, enviuvou quando Jocelyn tinha apenas onze meses. Do segundo
casamento, anos depois, nasceu uma menina. Submetida, ainda pequena, a
delicada operação pelos doutores Heleno Brandão e Graça Mello, morreu.
Eduardinho, já acadêmico de medicina, assistiu à operação. Ficou arrasado. Uma
perda a mais para seu Álvaro, uma dor muito grande para o pobre Jocelyn.
Comentou o fato em casa com a mãe e as irmãs, amigas da família Encarnação.
Rita teve uma idéia: - Por que não cuidamos do menino? Poderemos educá-lo
com as nossas crianças.
É desse modo que Jocelyn entra na vida do chalé, passa a freqüentar a
escolinha e, mais tarde, o mesmo colégio em que Noel completará o primário.
Dulce, Sylvia e Mariozinho são filhos de Mário Brown, viúvo amigo de
Perpétua, irmã de Rita. Na esperança de que se recupere de um pulmão doente,
os médicos recomendam-lhe passar uma temporada em Belo Horizonte. Vai e
teme-se que não volte. Tuberculose, nesses dias, é moléstia quase fatal. Tão
terrível que as pessoas lhe evitam o nome, preferindo dizer que Mário é "fraco"
ou simplesmente "doente", mas nunca tuberculoso. Perpétua dirige um internato
feminino na Rua São Francisco Xavier. Poderia abrigar nele Dulce e Sylvia, mas
não Mariozinho. Apela para a irmã. Seria uma dor de coração separá-los, já sem
mãe, o pai longe. Por que Rita não fica com os três? Como internos na escolinha.
Assim, para não os separar, Rita de fato os aceita como "internos" do seu
externato. Passam a ser seis, portanto, as crianças do chalé. As que chegam
agora sendo criadas como as de casa, os mesmos direitos, as mesmas obrigações.
E uma liberdade quase tão ampla quanto a que Martha e Neca dão a seus filhos.
Dulce, Sylvia e Mariozinho, nem tanto. Pois Carmem - que desde o início liga-se
muito a eles, cuidando mais diretamente de sua educação, tornando-se mesmo,
por iniciativa própria, uma espécie de segunda mãe - é mulher mais exigente,
disciplinadora e austera que a irmã.
Noel é atento também às diferenças entre a mãe e a tia, uma tão liberal, de
zangas poucas e sempre brandas, e a outra tão presa a regras, proibindo mais que
permitindo. Diferenças inclusive na maneira de administrar a casa e a escola, na
qual vão ser cada vez mais atuantes na medida em que Rita envelhecer. Martha é
perdulária, o dinheiro como coisa feita para entrar e sair logo, os tempos de
bonança devendo ser aproveitados antes que voltem os de tempestade. Carmem,
pelo contrário, é como a formiga da fábula, trabalhar e guardar nos dias bons
para sofrer menos nos ruins. Noel detesta este lado meio avaro da tia. Desde o
primeiro escorregão financeiro do pai, aprendeu a ver no dinheiro algo que para
o resto da vida chamará de "vil metal", necessário mas maldito, cobiçado mas
ilusório, instrumento de grandes bens e de males ainda maiores. O dinheiro, a
falta dele e sobretudo o apego a ele, alimentado desesperadamente por tanta
gente, o incomodarão sempre. Não gosta dessa mania de poupar. Como dirá,
com muito humor, nos versos que fará um dia, "qualquer economia acaba
sempre em porcaria..." Por isso atreve-se a confidenciar a Arlinda uma opinião
sobre tia Carmem: - É muito pão-dura. Come o caroço da banana e depois a
casca.
Estudam todos na escolinha, debruçados sobre carteiras que se distribuem
pelas duas salas e um dos quartos do chalé. Em março de 1920, porém, Noel e
Jocelyn, os dois mais crescidos, já estão matriculados no terceiro ano da Escola
Pública Cesário Motta, um casarão antigo no lado ímpar do Boulevard, esquina
de Silva Pinto(5).
5. Diz Almirante, nas duas edições de No Tempo de Noel Rosa, que após aprender as primeiras letras com a mãe Noel ingressou no Colégio Maisonette, não fazendo aquele biógrafo
qualquer referência à Cesário Motta. Os autores não conseguiram apurar nada sobre uma eventual passagem de Noel pelo Maisonette, desconhecida também de Eduardo Corrêa de Azevedo e outras
pessoas da família, amigos e vizinhos daquela época.

Tão perto de casa que os dois fazem o percurso a pé em menos de dez


minutos. Isso quando Noel não cisma de viajar o quarteirão, não mais que um
quarteirão, no estribo do bonde. É mais demorado, perde-se tempo esperando o
Vila Isabel-Engenho Novo ou o Aldeia Campista, mas vale a pena pelo prazer de
correr riscos, de brincar com o perigo nos saltos que o fazem subir ou descer, a
toda velocidade, em frente à Cesário Motta.
- Este menino é louco!- grita alguém ao vê-lo saltar.
Loucura, aliás, que ainda levará Martha a duas constatações. Uma, a de que
Noel, tão bem-comportado em casa, é outro na rua, a ponto de ser confundido
com os alegres e endiabrados moleques do bairro. A segunda, de que o
compenetrado Jocelyn, ao contrário do que ela pensava, é incapaz de tomar
conta do filho no caminho da escola. Martha passa certa manhã pelo Boulevard
quando vê Noel numa de suas arriscadas acrobacias. Em casa, chama Jocelyn.
- Você é mais velho, maior que ele. Promete que não vai deixá-lo mais
pegar carona de bonde?
- Prometo, dona Martha.
No outro dia, Noel volta a atirar-se ao estribo do bonde parado no ponto.
Jocelyn vai atrás. Quer impedi-lo de fazer as evoluções que dona Martha tanto
teme. O bonde sai, Noel corre pelo estribo, de balaústre em balaústre. Jocelyn
tenta segurá-lo, gritando para que pare. Neste momento Martha passa na calçada.
Apavora-se ao ver que não apenas o bem-comportado Noel pode ser confundido
com os moleques do bairro.
- Francamente! - dirá a Jocelyn. - Não confio mais em você.
Álvaro Pereira da Encarnação é homem pobre, batalhador, não pode dar ao
filho os confortos que gostaria. Mas o pessoal do chalé ajuda como pode. A
pelerine e o velocípede de Noel são dados a ele. Roupas, brinquedos, livros,
alimentação, Rita faz questão de que nada lhe falte. Os dias que passa no chalé
são os melhores de sua infância (aos treze começará a trabalhar, voltará para a
companhia do pai, não seguirá Noel no ginásio). É aqui que vê plantadas suas
alegrias de garoto, suas mais gratas lembranças. No modo como é tratado, no
convívio com os "irmãos", no jeitinho com que Noel consegue convencer as
pessoas de que é mesmo um anjo, enquanto Hélio goza de fama oposta. Jocelyn
deixa-se contagiar pelo irrequieto humor de Noel. Ainda que esse humor
eventualmente mude. Como no dia em que estão as seis crianças almoçando na
mesa da cozinha e Jocelyn se põe a imitar o jeito torto, esquisito, do amigo
mastigar. Exagera na imitação, faz caretas, provoca risos em Hélio, Dulce,
Sylvia, Mariozinho. A fisionomia de Noel, antes também risonha, vai mudando,
fecha-se, tinta-se de cólera. Mas ele não diz nada. Lentamente, enche a colher de
feijão, coloca-a no prato com o cabo do lado de fora. Usando o garfo e fazendo
da borda do prato um ponto de apoio, dá uma pancada no cabo da colher.
Espalha-se feijão por toda a mesa. A violência da cena assusta as outras crianças.
E depois que elas, olhos arregalados, chegam a sentir medo e param de rir, Noel
solta uma estrepitosa gargalhada. Foi a última vez que o imitaram.
O gosto pelas piadas proibidas, pelas brincadeiras obscenas, pelos mistérios
do sexo é cultivado desde cedo. No colégio e em casa.
-Já reparou como essas três são bonitas? - indaga a Jocelyn numa aula da
professora Adélia Lisboa Manzano, referindo-se às três meninotas que se sentam
na carteira de trás.
Na volta do recreio, entra na sala antes dos outros, senta-se, abre a
braguilha, põe o que tem de fora e fica esperando. O restante da turma começa a
entrar, as três meninotas passam por ele, ficam embaraçadas ao vê-lo
displicentemente em tal posição, pernas abertas, sexo à mostra. Uma delas,
Indalina, vai à mesa da professora e conta o que se passa. Dona Adélia olha para
Noel, ali sentado, o ar inocente, fíngindo-se de distraído, e acha melhor fingir
também: - Indalina, minha filha, faz de conta que não viu nada.
Em casa, vai um pouco mais longe. Decidido a ver Dulce nua, espera que
ela entre no banho e executa um plano cuidadosamente arquitetado. Uma divisão
de madeira separa o banheiro da pequena copa ao lado da cozinha. A divisão não
vai até o teto, havendo ali um vão que parece caído do céu: através dele pode-se
ver tudo que se passa dentro do banheiro. De início, Noel sobe na pia da copa.
Para seu desapontamento, não é o bastante. Olha para um lado e outro,
certificando-se de que não vem ninguém, e tenta subir um pouco mais, apoiando
os dois pés na torneira. Mas esta não suporta tanto peso. De repente, Noel quase
conseguindo alcançar o vão, a torneira salta da parede. Um esguicho d'água
começa a inundar toda a copa, enquanto Noel, estirado no Chão, recebe no rosto
o jato frio. Naturalmente, quem chega pouco depois estranha todo o quadro,
Noel caído, molhado, a água saindo de onde deveria haver uma torneira, a copa
alagada. E Dulce, alheia a tudo, cantando sob o chuveiro.
Suas brincadeiras, porém, nem sempre são tão inconfessáveis. Há, por
exemplo, o desenho, desde agora despontando nele o gosto pelos esboços a lápis,
as paisagens a guache e até mesmo os quadros a óleo, ele e Jocelyn pintando a
quatro mãos um transatlântico que ganhará lugar de destaque na "exposição de
arte" da Cesário Motta. E há também o cinema, mágica que sempre cerca de
encantamento os garotos do bairro, freqüentadores do Smart, cuja tela o velho
Oliveira molha antes de cada sessão. Ou do Cine Boulevard, na esquina de
Pereira Nunes. Ou ainda do Chie, perto da Praça 7 de Março, onde é possível
ouvir o piano de Sophonias Dornellas e, em ocasiões especiais, a voz de Helena
Cavalier. Mas Noel e Jocelyn estão mais interessados nos filmes. Dividem a
admiração por um herói dessas silenciosas aventuras em preto e branco: Tom
Mix. Para vê-lo em ação, montando seu cavalo negro Tony, derrubando
bandidos, ganhando os melhores olhares da mocinha, os dois muitas vezes vão
até o Centro atrás de um poeirinha que exiba filmes do famoso cowboy.
Não é mesmo infeliz a infância de Noel Rosa. O dinheiro pode faltar de vez
em quando, mas sempre há Tom Mix, a rua, o jogo de botões, a pipa, o balão, a
pedreira, o piano proibido, as garotas.
A localização estratégica do bairro de Noel Rosa
Capítulo 3
PELAS RUAS DO BAIRRO
Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista...
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa
São Coisas Nossas

Os dois são muito inteligentes. Mas em casa - diante da extroversão do mais


moço e do jeito meio guardado do mais velho (ou até que o menino Noel se
transforme no compositor popular Noel Rosa) - é Hélio quem se destaca. A
família chega mesmo a ver nele, com os olhos do exagero, uma criança prodígio.
Aos quatro anos, de tanto ouvir as aulas do Externato Santa Rita de Cássia e de
observar o irmão estudando na cartilha feita por Martha com suas próprias mãos
(letras recortadas de jornal e coladas num caderno escolar), já sabe ler e escrever.
Só que de cabeça para baixo, as letras invertidas, as palavras começando do fim.
-Foi assim que aprendi-explica aos que se admiram de tal façanha, talvez
sem saberem que, de frente para o irmão, enquanto este estudava, foi mesmo às
avessas que se alfabetizou. Aos seis, graças a um livro de inglês sem mestre que
descobre na estante, inicia-se sozinho num idioma que acabará dominando
inteiramente. Por este e por outros motivos, estará sempre impressionando os
mais velhos. Um dia, seis para sete anos, brincando com Sylvia no Chão da sala,
jornais velhos e lápis de cor espalhados, ele distraído, a menina faz um
comentário qualquer que Carmem acha inoportuno. Repreende-a: - Não diga
isso, Sylvia. É tolice.
Ali mesmo, mal a tia pronuncia essas palavras, Hélio escreve na margem de
uma folha de jornal uma quadrinha que logo estará passando de mão em mão.
Todos maravilhados com tanta precocidade:
Muitas vezes acontece
Como a Sylvia agora disse
Muitas vezes acontece
Não dizer senão tolice

Orgulhosa, vó Rita prevê para o neto um grande futuro. Na certa será


alguém, talvez um poeta como Bilac, ou um cientista como Oswaldo Cruz. Passa
a mão pela cabeça do menino e vaticina:
- Na entrada deste chalé, ainda colocarão uma placa com os dizeres: "Aqui
nasceu Hélio de Medeiros Rosa."
Desde menino se preocupa com assuntos de outras terras, outros tempos e
até outros mundos. Interessa-se por mitologia, gosta de ouvir e contar histórias
fantásticas, acredita no sobrenatural. São interesses que nasceram com ele. Com
apenas oito, nove anos, chega a corrigir o pai que à mesa recorda antiga lenda
grega, enganando-se ao atribuir a um personagem o que de fato se passou com
outro. Espantado, Neca pergunta-lhe como sabe.
- Li naquele livro - aponta para a estante.
Trata-se de Mythologie Élémentaire des Grecs et des Romains, de H. de Ia
Ville de Mirmont, editado pela Librairie Hachette em 1905.
- Mas está escrito em francês...
- Ora, é quase a mesma coisa - arremata com ar superior.
A atração pelas histórias fantásticas, o sobrenatural, o além, se tornará
maior com o tempo. Quando adulto, se sentirá fascinado pelo espiritismo, será
um estudioso dos mistérios da morte e da reencarnação.
Já Noel prefere o mundo à sua volta, visível, palpável. Enquanto o irmão
anda metido com abstrações, ele cuida de viver a rua, o bairro. E muito
especialmente as pessoas, seres vivos que o atraem bem mais que qualquer alma
penada. É um garoto atento, observador. Interessado em gente. De todo tipo. Do
figurão ao anônimo homem da rua. Gostará mais de uns que de outros, mas de
todos ou quase todos falará em seus versos, matéria-prima que são do poeta-
cronista que já existe nele. Um poeta-cronista não só da rua e do bairro, mas de
toda a cidade.
Hoje, porém, e por muito tempo ainda, a cidade, todo o mundo parece caber
em Vila Isabel. Como ele próprio dirá:
"Quando penso no Boulevard, nas ruas pacatas que guardam os meus
melhores segredos, nas esquinas prediletas para as reuniões da turma que
aprendeu a fazer samba vendo sambar o arvoredo, o meu coração,
incuravelmente sentimental, bate descompassado como um tamborim tocado por
estrangeiro. E eu vou alongando o pensamento e vou pensando que a cidade
inteira é Vila Isabel..."(1)
1. Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.

De certo modo, é mesmo. De todos os bairros do Rio, desde os que se


banham pelo mar aòs que se perdem nas lonjuras dos subúrbios, poucos terão
população tão múltipla, tão diversificada, como a Vila Isabel das quatro
primeiras décadas do século. Em quantos mais será possível encontrar,
convivendo nas mesmas ruas, bebendo nos mesmos botequins, participando das
mesmas atividades, tantos e tão diferentes espécimes da chamada "fauna
carioca"? Em que outro se verá elenco tão numeroso de homens e mulheres a
representar, na ribalta das esquinas, o drama, a tragédia, a farsa de todos os dias?
Embora Noel, ao crescer, vá se ajustar perfeitamente àquilo que João do Rio
chamou de flãneur(2), um carioca a percorrer todos os cantos da cidade,
espiando, farejando, perguntando, ouvindo, intuindo, conjeturando, descobrindo
gente e aprendendo assim a psicologia das ruas, é aqui, em Vila Isabel, que ele
começa a conhecer os personagens de sua história.
2. A Alma Encantadora das Ruas (páginas 12 e seguintes).

E de fato múltipla e rica a galeria de tipos que coexistem no Boulevard,


suas transversais e paralelas. Talvez por estar ilhado entre bairros tão diferentes -
a Tijuca de ricos e remediados, estes sonhando em ser como aqueles e fazendo
desse sonho a sua divisa; o Andaraí de contornos proletários, meia dúzia de
fábricas empregando quase um quin to da população; o Engenho Novo de ares
provincianos, cadeiras de vime pelas calçadas nas tardes de domingo, gente
debruçada na janela para ver o trem passar, pessoas que se cumprimentam sem
se conhecerem; o Maracanã de famílias conservadoras, que só daqui a algum
tempo se permitirão, nas batalhas de confete da Rua Dona Zulmira e redondezas,
umas tantas liberações; o Grajaú ainda meio deserto, recém-loteado, de
moradores poucos e indefinidos; os morros da Mangueira e dos Macacos, de
multidões pobres que se debatem contra a miséria sem perder o orgulho e a
esperança - Vila Isabel acaba tendo um pouco de cada um. Seus habitantes
formam mesmo um elenco variado. E que poderíamos dividir em três grupos: os
institucionais, os marginais e os demais.
Os primeiros são o médico, a professora e o padre, pessoas que gozam de
maior prestígio na comunidade (afinal, tão precisada de alento para o corpo, a
mente e o espírito). Médicos como os dois que ajudaram Noel a nascer. Ou como
Cid Prado, fabricante deste remédio milagroso que é o Jatahy Prado, homem que
vive subindo morros para aliviar de graça as dores lá de cima. Operosos,
abnegados, altruístas, nenhum deles na verdade se importa muito com
honorários. O bairro os vê como mistos de heróis e santos, sacerdotes do corpo,
bons samaritanos. Um vai virar estátua em praça pública, o outro nome de rua,
mas por ora a maior homenagem que os clientes lhes prestam é convidá-los para
compadres, como Martha e Neca fizeram com Graça Mello, ou dar a um dos
filhos o seu nome, como tanta gente faz com Heleno Brandão(3).
3. Muitos são os que, em Vila Isabel e bairros próximos, se chamaram Heleno em homenagem ao médico. Como o almirante Heleno de Barros Nunes, ex-presidente da extinta Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), no Rio de Janeiro, e também da antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Professoras como Rita e Martha, que também não cobram dos que não
podem pagar. Samaritanas à sua maneira, fazem do ensino o seu sacerdócio.
Nesse sentido, o chalé, a escolinha é o seu templo.
Padres como tantos das igrejas do bairro, a de Nossa Senhora de Lourdes, já
instalada no número 200 do Boulevard, ou a de Santo Antônio, que os
portugueses fizeram construir no alto de um morro onde só existe ela (e ao qual
se chega depois de se vencer uma escadaria de 150 degraus). O mais conhecido
desses padres é mesmo Jayme Sabba Batistoni, um italiano que desde 1918,
quando a Paróquia de Lourdes transferiu-se para o novo local, até o dia de sua
morte(4), será o seu vigário.
4. 2 de janeiro de 1951.

Padre e igreja que as pessoas respeitam muito, mas que, até onde se sabe,
Noel freqüentará pouco, ele e a família católicos meio à distância, quase de
longe.
Os marginais são todos os tipos que este bairro predominantemente de
classe média, pequeno-burguês, preocupado com a ascensão social, as
convenções, as regras, suporta mas não aceita. No máximo, tolera-os como
males necessários, inevitáveis. Todos farão parte do mundo de Noel, o bicheiro,
o malandro, o pessoal mais humilde que vez por outra desce dos morros, o
seresteiro (o que anda de violão a tiracolo sendo chamado de "capadócio"), o
desempregado crônico, o sinuqueiro, o carteador (a tavolagem nos sobrados do
Boulevard já existia quando Noel nasceu), o mendigo, o vigarista, o proxeneta, o
valentão, o pau-d'água.
Quanto aos demais, são os que não se enquadram em nenhum dos dois
primeiros grupos, a grande maioria das pessoas comuns que fazem parte da
colorida paisagem de Vila Isabel. Como a dona de casa, o chefe de família, os
colegiais, os universitários, os velhos que passam o dia debruçados na janela à
espera de nada. E também os operários a caminho das fábricas, motorneiros e
condutores que entram e saem da estação da Light(5), leiteiros, padeiros, garis,
entregadores de compra, carteiros, motoristas de táxi.
5. Atual garagem de ônibus da Companhia de Transportes Coletivos (CTC).

Moleques em algazarra e o guarda noturno que vela pelo sono do bairro


(em geral dormindo também). Os galãs de porta de confeitaria e as mocinhas do
footing vespertino.
A Vila do Barão

- Vila Isabel é uma grande família - costumava dizer vó Rita.


- Vila Isabel sempre foi uma grande família - repetiriam os moradores do bairro durante as quatro
primeiras décadas do século, ou seja, enquanto se mantivesse vivo o espírito comunitário que dava ao lugar
ares de cidadezinha do interior, as pessoas se conhecendo, se freqüentando, se ajudando umas às outras.
Enfim, uma fraterna e solidária instituição que o progresso e o crescimento da população fariam
desaparecer.
Entre os membros dessa grande família, os moradores do chalé tinham um parente de verdade do
qual muito se orgulhavam: ninguém menos que o Barão de Drummond, o fundador do bairro. Parentesco
distante, é fato, mas o suficiente para tornar partes da mesma linha de descendentes de João' Drummond
(também conhecido como João Escórbio, escocês que se fixou na ilha da Madeira antes do descobrimento
do Brasil), não só o Barão, mas também Carlos Drummond de Andrade e Noel Rosa.
João Baptista Vianna Drummond era mineiro de Nova Era, mas registrado em Itabira do Mato
Dentro (a mesma do poeta de Confidencia do Itabiranó). Nascido a 1o de maio de 1825, já tinha 35 anos
quando se mudou para o Rio. Alegre, comunicativo, liberal, sempre acreditou nas causas libertárias: antes
mesmo de a Princesa Isabel sonhar com a Lei Áurea, já havia ele libertado todos os seus escravos. Com
grande tino para os negócios, entregou-se a vários deles: foi banqueiro, comerciante de secos e molhados,
empresário teatral. Tudo isso antes de o fazerem barão. Na verdade, Drummond nunca escondeu ser mais
homem de negócios do que nobre. Valeu-se da amizade com a família imperial - e com alguns figurões da
política - para realizar vantajosas transações, obter concessões, abrir caminhos para seus projetos. Assim, já
em 1872, comprava da Princesa Leopoldina, duquesa de Bragança, segunda filha de Pedro I, as terras do
Andaraí Grande, antiga Fazenda do Macaco. Comprava-as por bom preço, abandonadas que estavam desde
uma epidemia de cólera havida ali anos antes. E comprava-as a prazo. Por muito tempo, houve quem visse
na operação uma esperta (e nada nobre) jogada de Drummond. Sabendo de uma cláusula do testamento de
Leopoldina - segundo a qual, com a morte dela, ficavam perdoadas todas as dívidas de que fosse credora - e
sabendo também que a saúde da duquesa ia de mal a pior, o astuto homem de negócios teria apostado. E
ganho. Leopoldina morreria sem que Drummond tivesse pago a segunda prestação. Pesquisas recentes, dos
historiadores Delane Borges e Marilane da Silva Borges, desmentem esta versão. Tudo teria se passado
dentro da maior lisura.
De qualquer modo, foi mesmo naquelas terras que Drummond fundou Vila Isabel, assim chamada
em homenagem à princesa que quinze anos depois libertaria os escravos (aliás, no começo, os nomes das
ruas, avenidas e praças do bairro eram todos de homens e datas ligados ao movimento abolicionista). Ao
contrário de outras áreas da cidade, cujos traçados se foram fazendo mais ou menos ao acaso, o loteamento
e urbanização de Vila Isabel obedeceram a cuidadoso planejamento. Uma Companhia Arquitetônica -
criada por Drummond e seus amigos Visconde de Silva, Temístocles Petrocochino e Bezerra de Menezes,
todos, naturalmente, também fadados a virar nome de rua - incumbiu-se desse planejamento. Basicamente,
aproveitando o antigo Caminho do Macaco para transformá-lo no Boulevard 28 de Setembro (data da
assinatura da Lei do Ventre Livre) e, em outro trecho, na Rua Visconde de Santa Isabel (grande amigo da
família imperial, médico da Princesa Isabel), para a partir deles traçar as paralelas e transversais que
formaram, em 1873, o esqueleto do bairro.
Mas Vila Isabel deve a Drummond, além de sua fundação, vários outros empreendimentos que a
enriqueceram como bairro e comunidade: a pioneira linha de bondes unindo a Praça 7 de Março ao Centro,
a primeira igreja de Nossa Senhora de Lourdes, atual Convento da Ajuda (o próprio Drummond mandou vir
da França a planta da gruta de Lourdes para reproduzi-la, em tamanho menor, no altar), o Asilo dos
Meninos Desvalidos, atual Instituto Profissional João Alfredo, e o jardim zoológico. Mas nenhuma dessas
iniciativas lhe daria mais notoriedade - e um lugar tão permanente na história do Rio - quanto um certo jogo
de apostas que inaugurou no seu zôo em 1892. Sem dinheiro para adquirir novos animais ou para cuidar dos
que já tinha, aceitou a sugestão do mexicano Manuel Ismael Zevada de transpor para seus bichos a loteria
que ele, Zevada, já realizava com suas flores na Rua do Ouvidor. Todos os domingos, cada freqüentador do
jardim zoológico ganhava um bilhete numerado correspondente a um dos 25 animais que entravam no
sorteio sempre às três da tarde.
A loteria, desde o início, foi um sucesso. As apostas tímidas do primeiro dia já eram vultosas no
segundo e acabaram virando mania. Dois anos antes da morte de Drummond - ocorrida a 7 de agosto de
1897 - o "jogo dos bichos", como era chamado, foi proibido pelo prefeito do Distrito Federal, Francisco
Furquim Werneck de Almeida. Apesar de nunca mais ter sido legalizado - ou talvez por isso - caminharia
para se transformar numa verdadeira instituição nacional.
Por todos esses motivos, o bairro tinha tudo para ficar conhecido como "A Vila do Barão". Mas a voz
do povo - mais sensível às rimas do poeta do que aos negócios de Drummond - preferiria de outro modo: "a
Vila de Noel". Mas esta é uma outra história.
Voltando a Drummond, lembremos que ele se tornou barão em 1888, dois meses depois de assinada
a Lei Áurea. Pedro II e sua filha Isabel reconheceram nele o grande abolicionista que de fato era, o amigo
leal, o servil admirador da família imperial. E lhe deram o título. Em tempo: Pedro II sempre foi muito
ligado a Vila Isabel. Tinha ali um bom amigo, Joseph Maxwell, inglês festeiro que possuía aprazível
chácara bem no coração do bairro. O imperador costumava visitá-lo. Anos mais tarde, moradores menos
ilustres, homens do povo sempre irreverentes ao falarem das coisas da realeza, iriam lembrar entre
gargalhadas essas visitas. É que Pedro II se sentia tão à vontade na chácara de Maxwell que, saindo com o
amigo em passeios pelas matas do lugar, não hesitava em mandar às favas o protocolo e arriar o culote para,
de cócoras, entre duas moitas, desapertar-se quando preciso. Como gostava de comentar o vulgo, "estrumes
reais adubaram o solo da Vila".
No ano em que Noel Rosa nasceu, Vila Isabel era um bairro tranqüilo. Podia haver, de vez em
quando, assaltos a passageiros dos bondes que pareciam carroças. Por sinal, motivos de glosa dos
moradores de outros lugares ("Na Vila só dá ladrão...", provável origem dos versos que um dia o filho
ilustre faria em sua defesa - ver Feitiço da Vila no Capítulo 34). Podia haver, também, uma ou outra
escaramuça quebrando o silêncio da noite. Ou mesmo algo mais grave, como o encontro, em pleno
Boulevard, de simpatizantes de Hermes com os de Ruy, no dia das eleições, resultando em um morto e duas
dúzias de feridos.
Podia ter tudo isso, mas eram episódios raros, bissextos, que não chegavam a desmentir o fato de que
a Vila era mesmo uma zona tranqüila. E, como gostava de dizer vó Rita, uma grande família.
Mas existe também uma fauna itinerante, gente que só aparece de vez em
quando, não propriamente do bairro, mas acrescentando à paisagem tons ainda
mais vivos: baianas de tabuleiro à cabeça, belchiores, funileiros, amoladores de
faca, sorveteiros, baleiros, vendedores ambulantes. Uns vendem mesmo alguma
coisa. Outros, não mais que ilusão. Há os que o fazem de maneira singelamente
poética e até ao som de música. São os realejos, para quem o futuro é feito só de
sorte, nunca de azar. Mas há também os que negociam tal mercadoria com uma
frieza que seu sorriso dilui, um sorriso que daqui a um, dois meses, se
transformará em sisudez. São os prestamistas, para quem o futuro tem a forma
de um cifrão.
Todos no bairro adoram o realejo. Crendo ou não no que dizem os versos
que o periquito ou o macaquinho pinça da pequena gaveta, deixam-se embalar
pelo som que o homem tira de seu instrumento no girar da manivela. Em troca
de alguns níqueis, mais do que sorte em forma de versos, consegue se mesmo
um pouco de ilusão. Já o prestamista não perde tempo com níqueis. Muito
menos com música e poesia. A ilusão que tem para vender aos moradores deste
bairro emergente (a maioria sonhando com mais conforto e algum luxo) é a de
que, afinal, tudo está ao alcance de todos.
- A senhora não gostaria de comprar uma cristaleira nova para a sua sala?
De madeira maciça, vidros e espelhos importados.
Os olhos da dona de casa se acendem.
-E o senhor? Não quer ficar com este belo corte de linho? Acaba de chegar
da Irlanda.
E o homem logo se imagina mais elegante que um lord. Mas onde arranjar
dinheiro? O prestamista sorri:
- Muito fácil: eu o empresto. O senhor compra o que quer, comigo mesmo.
E ainda lhe sobra algum dinheiro. Depois me paga em quantas prestações achar
melhor.
- E os juros?
- Pouca coisa... Pouca coisa...
Seja para adquirir alguns luxos, seja para enfrentar despesas inesperadas ou
mesmo grandes fracassos financeiros, é comum o morador do bairro cair nas
mãos do prestamista. Às vezes, asfixiado pelos juros, para não mais sair.
Emprestar dinheiro - e a domicílio - evidentemente não é profissão nova. Mas só
de uns tempos para cá os moradores de Vila Isabel esbarram nela com mais
freqüência. As principais lojas da cidade não trabalham com sistemas de crédito.
Os pequenos e médios negociantes também costumam afixar em sua porta avisos
de "não se fia". Assim, a classe média de dinheiro mais contado, que pensa que
pode e não pode (e que vê na aquisição de confortos, bens materiais, luxos, o
atestado de sua escalada social, seu sucesso na vida), rendese ao sorriso dos
prestamistas.
Mas quem são eles? De onde vêm esses emprestadores de dinheiro? Na
grande maioria, quase totalidade, são imigrantes europeus, muitos deles
acabados de chegar. Juntam um capital, fazem rolinhos de dinheiro que guardam
no fundo de uma pasta preta e saem por aí vendendo ilusão. Poloneses,
húngaros, belgas, romenos. E até portugueses. Vêm de todos os pontos da
Europa. Há também os sírios, árabes, libaneses. Os europeus, tenham a origem
que tiverem, são conhecidos genericamente por "judeus". Os outros, venham de
Beirute, Cairo ou Marrocos, são simplesmente "turcos".
Judeus, turcos, portugueses, não importa quem sejam. Noel aprende muito
cedo a ver no prestamista o fantasma que transforma em pesadelo os sonhos dos
moradores do bairro. Assimila o pavor que todos têm de suas visitas mensais
(muitos trancam portas e janelas, fingem que não estão em casa, escondem-se
para ver se o prestamista desiste e deixa para cobrar duas parcelas no mês que
vem). Um pavor vindo não só do convívio com os vizinhos, mas de experiências
em sua própria casa, o pai tantas vezes endividado, apelando para os
emprestadores de dinheiro. Quando a importadora faliu, hoje, sempre.
Judeus, turcos, portugueses. Noel não parece distingui-los. Jamais se livrará
inteiramente dos preconceitos que desde menino guarda em relação a todo
imigrante. Em versos, falará muitas vezes desse sentimento, lembrando-se
mesmo dos cobradores que lhe atormentavam o pai:
Miséria de quando em quando
Prestamistas recitando
Minhas contas no portão

E a criada calmamente
Diz que eu estou ausente
E não lhe deixei tostão

Vai lembrar também o patrão inescrupuloso que quis ensinar o pai a batizar
bebida importada de além-mar:
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou
três mil botando água
no vinho do barril...

Com mesma rima, mas outra idéia, fará versos como estes:
Seu Jorge turco tem três anos de Brasil
E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês

Ou como estes, mais diretos, sem meias palavras:


A vida lá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu...

Mas essas são cantigas de daqui a algum tempo. Nesses dias em que se
inicia no aprendizado da psicologia das ruas, do conhecimento de seus tipos, do
estudo da "fauna carioca" a partir deste microcosmo que é Vila Isabel, Noel
apenas colhe a matéria-prima de sua poesia, de sua crônica. Dramas, tragédias,
farsas. Em tudo isso o prestamista há de ser sempre o vilão de sua história. A
menos romântica e a mais constante musa de seus versos(6).
6. Como se poderá constatar ao longo das páginas deste livro, o prestamista e temas correlatos (dívidas, empréstimos, dinheiro, ganância, espertezas e malabarismos financeiros) estão muito
presentes na obra de Noel Rosa. Os autores anotaram 64 letras de música, incluindo paródias, que falam no assunto ainda que de forma indireta.

Mil novecentos e dezoito foi um ano ruim. A gripe espanhola matou mais
de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, 300 mil só no Brasil, 18 mil no Rio
de Janeiro. Uma pandemia que levou desespero a toda parte. No chalé, contudo,
a rotina só se alterou porque as aulas foram suspensas nos meses críticos de
outubro a dezembro e porque Eduardinho, no último ano de medicina, foi
requisitado para trabalhar dia e noite num posto de emergência instalado em
colégio do Meyer. À frente da campanha nacional de combate à doença, Carlos
Chagas apelou para médicos e acadêmicos de todo o país como se fossem
soldados convocados para a guerra.
A gripe adiou por alguns meses a formatura de Eduardinho, prevista para
dezembro de 1918, mas só concretizada a 22 de março do ano seguinte. Foi
então que ele partiu para aquela experiência profissional em Aquidauana, a tal
em que contraiu tifo e quase morreu. Depois de convalescer no chalé e de passar
algum tempo no Rio, vai outra vez para fora. Desta feita seu destino é Bica de
Pedra(7), perto de Jaú, interior de São Paulo.
7. Atual Itapoí.

Começa a ganhar dinheiro, a fazer seu pé-de-meia, a livrar-se de qualquer


preocupação financeira. Numa de suas esporádicas visitas ao Rio, pede em
casamento a namorada de infância, Odette Maria Ferreira Rego (o pai dela,
homem conservador e exigente, sempre disse que só consentiria quando
Eduardinho aparecesse com o anel de doutor no dedo). Casam-se a 13 de
dezembro de 1921, na Igreja de Santa Ifigênia, São Paulo.
Pouco depois, é a vez de Carmem. Quando já não se esperava que unisse
sua vida à de alguém (35 anos, nenhum namorado nesse tempo todo, nenhum
interesse aparente por homem algum, vivendo só para a música, os livros, a
escolinha, os filhos dos outros), eis que chega o seu dia. Não inteiramente curado
- pois tuberculose não é mal que se vença assim - mas com a doença mais ou
menos sob controle, permitindo-lhe inclusive trabalhar normalmente e levar vida
de poucas limitações, Mário Brown vem ao Rio buscar os filhos. Já se sente em
condições de cuidar deles em Belo Horizonte, onde comprou casa no bairro da
Floresta. Carmem estremece ao receber a notícia. Já se afeiçoou de tal modo a
Dulce, Sylvia e Mariozinho que mal pode se imaginar longe deles. São como
filhos. Ou mais que isso.
Vem de muito, porém, a admiração de Mário Brown por ela. Vá lá que
Carmem não seja bonita como a irmã, mas tem porte, é elegante, uma dama. Vá
lá também que sorria pouco, não seja muito efusiva, bem menos simpática que
Martha, mas tem coração generoso. Vá lá enfim que por vezes se torne
excessivamente enérgica, autoritária, meio repressiva, mas por trás de tudo isso
há um grande caráter e uma personalidade forte. É por todas essas qualidades - e
pelo que ela significa para as crianças - que Mário Brown acaba se interessando
por Carmem além da simples admiração. E é correspondido. Casam-se e vão
para Belo Horizonte. Os dois, os filhos, o piano que Eduardo Corrêa de Azevedo
havia comprado em Juiz de Fora. A partir de agora, além das tarefas de esposa e
mãe, Carmem vai assumir também as de professora de violino do Conservatório
Mineiro de Música.
É pela mesma época que os moradores do chalé - dentro do costume que
autoriza pais, avós, tios a projetar o futuro de suas crianças - traçam o caminho
que Noel deverá seguir, dos bancos de escola pública até formar-se em medicina.
Sim, porque não passa pela cabeça de ninguém que ele deixe de cumprir a
tradição da família (Luís Corrêa d'Azevedo, Fortunato, vovô Eduardo e agora
Eduardinho) e abrace qualquer outra carreira. Decide-se, então, que depois do
terceiro e quarto anos na Cesário Motta Noel será matriculado no Ateneu Luso-
Brasileiro, na Rua Pereira Nunes, ali se preparando, durante todo o 1922, para os
exames de admissão ao Ginásio de São Bento, no fim do ano. Depois,
finalmente, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Tudo como tio Eduardo.
Os novos tempos de bonança que a família vive serão provavelmente os
últimos. Numa carta à mãe, Eduardinho diz que sua clínica em Bica de Pedra vai
tão bem que já lhe sobra dinheiro para ajudá-la. Pede-lhe que discrimine, item
por item, o quanto é preciso para manter o chalé sem que tenha de continuar
trabalhando na escolinha. Quer que ela se aposente, que deixe as aulas por conta
de Martha. Rita escreve-lhe de volta: alimentação, luz, gás, lavagem de roupa,
despesas várias, o total de gastos da casa fica em torno de 450 mil réis por mês.
Eduardinho resolve mandar-lhe 500: "Os 50 a mais - explica - são para suas
caridades costumeiras." Mas a ajuda não fica nisso. Lá de longe, na pequena
cidade do interior de São Paulo, recorda-se de ter ouvido muitas vezes a mãe
queixar-se da precariedade do chalé: - Qualquer dia desses, o teto desaba sobre
nós.
Por isso, numa das próximas vindas ao Rio, trará mais uma boa novidade:
- Vamos construir uma casa nova.
Compra o terreno número 195 da mesma Theodoro da Silva, quase em
frente à Silva Pinto, e entrega ao "engenheiro" Neca o projeto de construção da
casa. Ele que faça como achar melhor, a planta, a escolha do material, tudo.
Afinal, não será só de Rita, mas de toda a família, Bella, Neca, Martha, Noel,
Hélio, Arlinda. Uma vez pronto, o chalé só será usado para as atividades do
Externato Santa Rita de Cássia.
Neca - que justamente por esta época acaba de voltar do interior - entrega-
se à tarefa com entusiasmo. Não tem emprego fixo. Vive de biscates e,
eventualmente, de sonhos (garante ter um punhado de idéias na cabeça,
invenções que ainda porá em prática e que o tornarão rico e famoso). Está um
pouco diferente de seis anos atrás, quando partiu em busca de dinheiro para
pagar as dívidas. Ainda toca violão, canta modinhas do amigo Catulo, ouve
discos de Caruso, mas soma a esses hábitos algumas atitudes que beiram a
esquisitice: o silêncio, o isolamento, o ar meditativo. Volta e meia é acometido
de tremores, acessos de febre, seqüelas da maleita que o pegou em Araçatuba.
Nessas horas, corre pela casa, dá voltas em torno da mesa de jantar, dança e
canta à maneira dos índios que encontrou por lá. Mas o projeto da casa o
entusiasma. É algo a que se entrega com os pés no Chão, sem sonhar. De certo
modo, um dos últimos empreendimentos a que se dedicará sem a postura de um
Quixote.
Uma ladeira íngreme à direita, outra proibida à esquerda e lá em cima o
Ginásio de São Bento, em cujas dependências, nesta quinta-feira, 1o de março,
reúnem-se todos para a abertura oficial do ano letivo de 1923. São quase 400
alunos dos 470 matriculados nos diversos cursos, o Ginasial, o Preliminar, o
Noturno, o Claustral. Entre eles, perneiras pretas, farda caqui, culote, dólmã
abotoado até a gola, quepe assentado na cabeça, o primeiranista Noel de
Medeiros Rosa.
Que impressões lhe causará este primeiro dia entre as paredes sombrias de
um mosteiro beneditino tão diferente das ensolaradas ruas de Vila Isabel? Difícil
saber. Talvez estranhe o caráter solene desta cerimônia que nem de longe lembra
as barulhentas salas de aula que freqüentou desde o bê-a-bá no chalé. Ou talvez
não estranhe coisa alguma, pouco se importando com tudo isso; é mesmo solene
a abertura oficial do ano letivo. A começar pela missa do Divino Espírito Santo
celebrada na igreja abacial pelo prior do Mosteiro, dom Pio Ziegenaus. Os
alunos ouvem compenetrados o longo sermão sobre a infância de Jesus ("... o
menino progredia em sabedoria e graça perante Deus e os homens...") e desde já
ficam sabendo que religião, aqui, é ar que se respira a todo instante. Dom Pio,
um dos professores de apologética do quarto e quinto anos, é quem está
incumbido de prepará-los para enfrentar, "tanto no campo do pensamento como
no da ação, os inimigos do cristianismo". Ou seja, é o sacerdote a quem foi
confiada a missão de fornecer-lhes razões e argumentos para usarem em
discussões que, no futuro, venham a pôr em dúvida suas crenças. É um homem
formal, de gestos afetados e fala eloqüente. Bem de acordo com a pompa secular
desta igreja coberta de ouro.
Com madeira da ilha das Cobras, aqui pertinho, pedra do morro da Viúva,
que se pode divisar mais além, entre Flamengo e Botafogo, e ouro de todo lugar,
a igreja, construída em quase dez anos, de 1633 a 1642, é justo orgulho da
ordem. O harmonioso conjunto arquitetônico do qual faz parte tem um dos
blocos cravado em rocha viva. São três edifícios: o do Mosteiro propriamente
dito (no andar superior, salões, celas, uma capela de relíquias e biblioteca; no
intermediário, mais dois salões, salas menores, o refeitório e o claustro; e no
térreo, as catacumbas), o do colégio (salas de aula, laboratórios e gabinetes
cercados de pátio, campo de futebol, ginásio e piscina, esta interditada) e a
igreja. Que é realmente soberba, embora não muito grande. O traçado da nave é
em cruz latina, os arcos e pilares que separam as naves laterais são em jacarandá
trabalhado, os lampadários de prata devem-se à arte de Mestre Valentim. Há
obras preciosas distribuídas aqui e ali, adornos riquíssimos no altar de Nossa
Senhora de Montserrat, quadros de frei Ricardo Pillar até na sacristia e um
imponente órgão que se ouve durante as missas. Enquanto estiverem por aqui, os
alunos ouvirão muitas histórias sobre esta abadia. Desde as chegadas dos
beneditinos ao Rio de Janeiro, com sua pioneira e heróica ocupação do antigo
morro de Nossa Senhora do Ó, em 1589, até a fundação do colégio, em 1859,
passando por alguns episódios históricos dos quais os monges preferem falar por
alto, pois envolvem guerras, conflitos, bombardeios, mortes(8).
8. "Por sua localização estratégica" - recorda Idacy Costa no livro Rio (página 151) - "o Mosteiro foi palco de vários acontecimentos históricos: em 1711, construção, pelos beneditinos, de
um forte para defesa da cidade quando da invasão de Duguay Trouin. A abadia foi bombardeada porque os franceses ocuparam a ilha das Cobras; em 1824, alojou dois batalhões de artilharia; em 1855,
serviu de quartel aos fuzileiros..." É feita referência, também, aos episódios de 1910, já mencionados no Capítulo 1.

Mas a cerimônia de abertura oficial do ano letivo não se limita à igreja.


Após a missa, os alunos são encaminhados ao ginásio para serem formalmente
apresentados ao reitor, dom Meinrado Mattman, e ao corpo docente, inspetores,
auxiliares, serventes. Há solenidade, também, nas palavras de dom Meinrado,
que lê pausadamente todos os artigos do regulamento interno, depois de breve
discurso: "Concito os alunos a honrarem com o trabalho perseverante o nome da
família, a farda do Ginásio e as gloriosas tradições de nossa Pátria..."
Dom Meinrado é bem diferente de dom Pio. Nem formal, nem afetado nos
gestos, nem eloqüente na fala. Suíço, está no Brasil há muitos anos, falando um
português quase irretocável.
À medida que o forem conhecendo, os alunos descobrirão nele um homem
gentil, compreensivo, benevolente. Para o resto de suas vidas guardarão as
melhores recordações de seu convívio com ele. Noel Rosa não será exceção.
Mas, neste primeiro dia, os alunos que chegam ainda não são capazes de
diferençar dom Meinrado de dom Pio ou de qualquer outro. Sobretudo porque
também sua fala é fria. E o regulamento lido impõe-lhes deveres em torno de
uma missa obrigatória nas manhãs de domingo, do rigor dos horários que terão
de cumprir, das exigências quanto ao silêncio e respeito em aula, da disciplina de
inspiração militar a que estarão sujeitos, de como é difícil o curso, os professores
orientados no sentido de exigir-lhes o máximo.
Por isso, tocados primeiro pelo sermão de dom Pio e logo depois pela
preleção do reitor, pode ser que os meninos que chegam já desconfiem de que os
dias alegres e despreocupados da infância começam a ficar para trás. Quanto
mais tiverem de se agarrar aos livros, mais terão de renunciar aos brinquedos. Os
tempos agora são outros, mais duros, menos de regalias do que de obrigações,
mais de coisas sérias do que de sorrisos. Pode ser. Mas não no caso de Noel.
Tanto quanto possível, não será tão solene. E fará tudo para que continue a
soprar para além dos muros do São Bento a brisa menina das ruas de seu bairro.
Capítulo 4
ENTRE A CRUZ E O VIOLÃO
Quero deixar o mundo alegremente,
Desde que eu tenha um violão por cruz
O Que é um Violão

Miúdo para seus doze anos, é um dos menores da turma. Por isso, senta-se
sempre numa das carteiras da frente. Ainda tem os cabelos compridos, fios
castanho-claros, quase louros, amontoando-se entre a aba do quepe e as orelhas.
Os colegas reparam que usa uma haste de madeira entre as arcadas dentárias, do
lado direito. A tal "prótese" que outro especialista recomendou, meio no palpite,
para lhe corrigir a articulação, e que acaba funcionando como mero calço. O
pedaço de madeira o incomoda.
E logo ele começa a mastigá-lo, passando-o de um lado a outro da boca,
certo de que não serve mesmo para nada. Mais tarde a madeira será substituída
por material mais resistente, paladon ou algo parecido. Mas o resultado é o
mesmo. No primeiro jogo de futebol, coloca-o no bolso:
- Esse troço pesa tanto que nem posso correr.
Até que um dia abandona para sempre o inútil aparelho. E com ele o resto
de esperança de desentortar o queixo.
Não come na frente dos colegas. Se traz um sanduíche como merenda, vai
mastigá-lo longe, num canto de recreio. Mas geralmente não traz coisa alguma
além dos livros e do maço de cigarros. Aliás, a guimba no canto direito da boca,
permanentemente grudada no lábio inferior, dando a impressão de que vai cair a
qualquer momento, acaba sendo mais um modo de disfarçar o defeito. É um de
seus traços mais característicos.
O São Bento mantém outros cursos além do ginasial que Noel começa a
freqüentar em 1923. Há o preliminar ou primário, o elementar que antecede o
preliminar, o popular para alfabetização de crianças pobres, o noturno para os
que trabalham e estudam. O pequeno mundo que os beneditinos construíram
nesta elevação cresce a cada dia.
É uma grande instituição abrigando várias outras, educacionais, culturais,
religiosas, recreativas e, estranho que pareça, militares. A não ser que seja
obrigado, de nenhuma delas Noel tomará conhecimento. Das instituições
religiosas, então, seu alheamento será absoluto. Por mais que os monges,
especialmente dom Meinrado, se esforcem para arrebanhar sua jovem alma.
Mas que instituições religiosas são estas? Naturalmente, a maior e principal
de todas é o próprio Mosteiro, do qual os alunos se mantêm mais ou menos
distantes, restrito que está aos monges e postulantes. Estes começam a se formar
na Escola Claustral, criada neste 1923 sob a direção de dom Plácido Roth com o
objetivo de "gasalhar e educar meninos que, movidos pelo toque d'uma graça
particular, se sentirem inclinados a consagrar a Deus, já desde a infância, a vida
toda, desejando ser discípulos e filhos de São Bento, monges beneditinos(1)".
1. A Alvorada, ano V, número 1, março de 1923 (página 21). A maioria das informações sobre as instituições do São Bento, constantes deste Capitulo, também foi colhida neste e em outros
números da revista.

Terá dez alunos neste seu primeiro ano de existência. Ao recebê-los, dirá
dom Plácido:
- Vivat! Crescat! Floreat!
As outras, abertas aos estudantes, são a Congregação Mariana de São
Bento, dirigida por dom Leão Dias Pereira, que a reorganizou este ano após um
período meio estacionado; a Conferência Vicentina de São Bento, destinada a
socorrer, com visitas e esmolas, famílias pobres; a Obra da Santa Infância,
também fundada este ano, também destinada a "angariar pequenos donativos
para a obra grandiosa das Missões Católicas"; o Apostolado da Oração, que
promove os retiros, as preces em grupo e as comunhões, estas obrigatórias a
todos os alunos no primeiro domingo de cada mês; e por último os Cavalheiros e
Pajens do Santíssimo Sacramento, de função vaga como seu nome, tendo como
diretor dom João Baptista Laué Lobão, homem tão bondoso quanto surdo.
As atividades culturais gravitam basicamente em torno de duas outras
instituições. A primeira é o Grêmio Literário de São Bento, que organiza sessões
periódicas para leitura de poesia, análise de obra de determinado autor,
comemorações de efemérides e julgamento de textos, em prosa ou verso, dos
próprios alunos. A segunda é A Alvorada, revista mensal de circulação interna.
Tão importante que, daqui a muitos anos, não será possível conhecer o Ginásio
de São Bento da década de 20, sua história, seus costumes, seu espírito, seus
mestres e seus alunos, sem lhe consultar as páginas.
Também são duas as instituições militares. Uma delas, o tiro de Guerra 2,
funciona no próprio ginásio sob as ordens de dois primeiros-sargentos nomeados
pelo comandante da 1a Região Militar. Qualquer aluno com mais de dezesseis
anos, aprovado em exame médico e mediante pequena taxa anual (50 mil réis em
1923), pode conseguir aqui uma carteira de reservista tão válida quanto as
obtidas nos quartéis lá de fora. Para isso, basta que se submeta, primeiro, a todo
o programa de exercícios, treinamento e estudos orientado pelos sargentos e,
depois, a um exame final perante banca presidida por um capitão. Mas ainda é
cedo para Noel Rosa pensar nisso.
Já a outra instituição militar, o Batalhão Escolar, nunca é cedo para se fazer
parte dela. Antes mesmo de passarem pelo admissão, os meninos já se integram
a esta curiosa corporação, formando um jovem e despreocupado exército de
colegiais. Soldados, cabos, sargentos, tenentes e capitães imaginários
obedecendo a uma hierarquia ditada pela idade e pela disciplina (mais por esta
do que por aquela). O São Bento, como muitos colégios de padres desta época,
parece acreditar tanto na educação militar como na religiosa, quase tanto na
espada quanto na cruz.
Mesmo sem Carmem e o Pleyel, continuam feitas de música as noites de
domingo da família. Agora com um novo instrumentista que se vem juntar a
Neca, Martha, Arlinda e eventuais convidados: o próprio Noel, pequeno,
franzino, dedilhando o bandolim que aprendeu a tocar com a mãe.
Noites de música e poesia, como gostava vovô Eduardo. Mas que música e
que poesia? Que canções se cantam e que versos se dizem nessas tertúlias
domingueiras? Saraus familiares ainda são muito comuns no Rio de Janeiro
desses dias. Acontecem não só nos chalés da classe média de Vila Isabel, mas
também em residências que vão desde os casebres que se equilibram num clivo
de morro às mansões mais para perto do mar, freqüentadas pelas elites, os ricos e
novos-ricos, ex-nobres e pretensos nobres, imigrantes que se endinheiraram por
aqui, famílias tradicionais, a nata das artes e da política, o que há enfim de mais
representativo dos salões da sociedade carioca. Mudam as pessoas, as posses, os
trajes, os comes, os bebes, o décor, mas a essência do sarau é a mesma.
Muda também a poesia. Nas mansões ainda se reverenciam os românticos
franceses, Lamartine, Vigny, o Musset mais triste, de coração partido por
George Sand. Tudo de Victor Hugo, alguma coisa de Sully Prudhomme. E os
simbolistas também. Impressiona conhecer Rimbaud, Verlaine, Mallarmé.
Talvez alguém lembre o Antônio Nobre de Só, mas nunca o nosso Cruz e Souza.
Os anglófilos ainda podem vir até Shelley e Keats, nada mais para cá. As nossas
elites raramente se sensibilizam com os movimentos de vanguarda. Se houve no
ano passado, em São Paulo, uma Semana de Arte Moderna, ninguém nestas
mansões parece ter ligado a mínima. Prefere-se a estética já aprovada pelos
salões lá de fora. Cultura, de verdade, é a européia. E têm sempre ar de
concessão as ocasionais incursões que os diseurs dessas reuniões elegantes
fazem às obras de Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela.
Ou mesmo às de Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac.
Nos chalés da Zona Norte, pelo contrário, os poetas brasileiros estão em
primeiro lugar. Bilac principalmente. As pessoas não se importam tanto com os
estrangeirismos, as regras do chie. Chegam mesmo a aplaudir poesia de
fabricação Caseira, cada participante do sarau julgando-se um grande vate em
potencial. E nos lugares mais humildes, os bairros pobres, são também humildes
os versos, em geral improvisados ao luar. Espontâneos, quebrados, simplórios,
incultos, modestos e malvestidos como os poetas que os criam.
Quanto à música, são ainda maiores as diferenças de lugar para lugar. É
mais ou menos por esta época que Raul Pederneiras desenha, com mãos de
artista e olhos de repórter, três tiras a que dá o título de "Dize-me o que cantas...
direi de que bairro és."(2)
2. Incluídas no livro Scenas da Vida Carioca - Caricaturas de Raul, 1924.

Nelas estão focalizados três tipos de reunião musical, a geografia humana


do que se toca e canta no Rio de Janeiro de agora. Nas mansões de Botafogo,
Copacabana, Gávea, bairros de beira-mar, a influência estrangeira é marcante.
Cultiva-se o bel canto, árias de ópera em italiano, canções e cançonetas em
francês, alemão, inglês. Gosta-se de Liszt, venera-se Chopin, conhece-se todo o
repertório pianístico clássico. Os que dançam preferem a valsa, a polca, o
schottis. Acham deliciosamente ousadas as modas que vão chegando da
América, o fox-trot, o charleston, o cake-walk, o one-step, o shimmy, mas
demasiado ousadas, para não dizer de mau gosto, coisas como o maxixe e o
corta-jaca, mesmo que uma primeira dama, mais ousada que as próprias danças,
já as tenha levado para além dos muros do Palácio das Águias(3).
3. Foi em 26 de outubro de 1914 que Nair de Teffé Hermes da Fonseca, a primeira-dama do país, organizou no Palácio do Catete uma hora de arte em que, depois de uma rapsódia de Liszt
executada ao piano, ela própria solou ao violão o Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, causando um pequeno escândalo na sociedade da época. Jota Efegê, em Maxixe - a Dança Excomungada (página
161), recorda o inflamado discurso de Ruy Barbosa no Congresso Nacional, criticando a mulher de seu grande adversário político: "Mas o Corta Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser
ele, senhor presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o Corta Jaca é
executado com todas as honras de música de Wagner. E não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!"

Tudo, portanto, afinado com uma estética importada, a idéia de requinte


sempre associada à de que o que é nosso é tosco, vulgar, enquanto o de outras
terras é culto, elegante. Se uma ou outra modinha daqui consegue penetrar nos
salões, em geral é obra de Catulo da Paixão Cearense, nordestino que se propõe
a "civilizar" a canção brasileira, vestindo-a de versos pedantes e empolados.
Embora já tenha cantado para quatro presidentes da República, é ainda gelo
exótico que estes saraus o recebem, pois bom mesmo é cantar poesia de Heine
com música de Schumann.
Nos subúrbios, nos morros, nos bairros onde vive o homem mais pobre,
notadamente as populações negras e mestiças da Cidade Nova, Gamboa, Saúde e
adjacências, canta-se e toca-se o samba, fazem-se rodas de batucada(4),
prevalecem os instrumentos de percussão, pontificam os grupos de choro na base
de violões, flauta e cavaquinho, dança-se sem cerimônia o maxixe e - que a
polícia não saiba - entoam-se pontos de macumba.
4. Mais se falará, no Capítulo 14, da batucada e de certas confusões que se fazem em torno dela.

Vila Isabel e os bairros de classe média ficam no meio do caminho entre a


simplicidade, o despojamento destes e o esnobismo daqueles. Os que tocam
piano, se também revivem Chopin e List, sentem-se mais à vontade com os
Chopins e os Liszts nacionais, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, os irmãos
Levys, Mário Pennaforte, ou um desses paulistas que começam a aparecer por
agora, Marcello Tupynambá, Eduardo Souto. Valsas, tangos brasileiros, uma
polca diferente da européia, choros estilizados, chulas, lundus, de vez em quando
um mg, um fox-trot, gêneros enfim bem diversos fazem parte de seu repertório.
Os que dançam, dançam de tudo. E os que cantam, ficam quase sempre na
modinha romântica, de melodia fácil, linear, letras invariavelmente derramadas,
por vezes pernósticas, de velhos e novos seresteiros como Eduardo das Neves,
Xisto Bahia, Satyro Bilhar, Guimarães Passos, o próprio Catulo. Canções como
esta:
Olhaste-me um só momento
E desde este triste instante
Tu me ficaste constante
Na vista e no pensamento...

Ou esta, citada por Pederneiras numa de suas tiras:


Que noite!
O plenilúnio é como um sonho
Assim risonho
Boiando lá no azul fitando o mar
As estrelas no céu vagam sorrindo
Estás dormindo?
Eu venho, meu amor, te despertar!

Noel se inicia embalado por essas canções e tudo mais que se ouve em sua
casa nas noites de domingo. A música logo o envolve, vira paixão, das coisas
mais importantes em sua vida. E não apenas o que se ouve nos saraus. Como ele
mesmo confessará:
"Mesmo em guri, a minha grande fascinação era a música. Qualquer
espécie de música. Fosse qual fosse. E amava os instrumentos musicais, sentido-
me sonhar ante qualquer melodia."(5)
5. Jornal de Rádio, 1" de janeiro de 1935.

Se foi Martha quem o ensinou a tocar bandolim, as primeiras posições no


violão são aprendidas com o pai. E à medida que for dominando a técnica deste
instrumento, irá abandonando o outro. Mas será para sempre grato ao bandolim:
"Foi graças ao bandolim que eu experimentei, pela primeira vez, a sensação
de importância. Tocava e logo se reuniam, ao derredor de mim, maravilhados
com a minha habilidade, os guris de minhas relações. A menina do lado cravava
em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente
importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos
de garoto que começava a espiar a vida."(6)
6. Ibidem.
No mesmo depoimento, a descoberta do violão:
"Verifiquei que era um instrumento mais completo, de maior beleza
comunicativa que o bandolim. O meu sonho absorvente passou a ser dominar
amplamente o violão. Tanto me esforcei que, no fim de certo tempo, já tocava
melodias várias. Ouvir o violão era como se ouvisse a mim mesmo, como se
ouvisse a voz do próprio coração, o lirismo que nasceu comigo."
O violão - por enquanto do pai - será o seu instrumento. De tal modo se
apegará a ele que ainda lhe dedicará um soneto, "O Que É um Violão", versos
verdes e imperfeitos de jovem poeta:
O violão meu amigo e conselheiro
Que sempre partilhou de minha dor
Na serenata sempre foi bom companheiro
Numa modinha, o meu melhor inspirador

Nem bandolim nem violino bem tocado


Nem mesmo um cavaquinho em boa mão
Me fizeram ficar tão inspirado
Quanto fiquei com o som do meu violão

Ele quem me ditou o canto e a rima


Ele quem a vibrar se acostumou
Soluça no bordão, geme na prima...

É ele quem me anima e me seduz


Juro deixar o mundo alegremente
Desde que tenha o violão por cruz

Nos próximos anos, raramente o veremos longe do pinho nas horas de


folga. Estudando ou ensinando, pois Noel vai ser o primeiro professor de Hélio.
Um paciente e compenetrado professor. Quase sempre, antes de ir para o São
Bento, senta-se sob uma das árvores do chalé, fica garimpando acordes,
inventando brincadeiras sonoras. Como as que servem de fundo às aulas da
escolinha. Martha lá dentro perguntando aos alunos: - Dois mais dois?
A turma respondendo em coro:
- Quatro!
- Cinco menos três?
- Dois!
E Noel ritmando a ladainha aritmética ao violão, seus dedos multiplicando
sons, sua voz somando-se ao coro da criançada. Martha chega à janela, pede que
o filho pare, que trate de não atrapalhar a aula. Ele pára. Mas só até a professora
reiniciar a cantilena:
- Sete menos quatro?
- Três!
O violão de Noel volta a se fazer ouvir. Para alegria dos alunos e novos,
inúteis protestos da mãe.
Se não há a menor dúvida quanto ao primeiro professor de Hélio, no que
diz respeito a Noel tudo se complica. No futuro, menos ou mais próximos da
verdade, vários moradores do bairro reclamarão para si esse privilégio: "Noel foi
meu aluno", dirá este. "Tudo que sabia de violão aprendeu comigo", garantirá
aquele outro. O mais provável, porém, é que depois das primeiras posições com
o pai, dos rudimentos que lhe chegaram através das lições caseiras, seu interesse
em aprimorar-se sempre mais, em realmente dominar o instrumento, o levará a
outros mestres, mas a nenhum deles por muito tempo. Aprender, mesmo, vai
aprender sozinho. Será, como a maioria dos violonistas de agora, um autodidata.
Desses que tudo descobrem. Vendo, ouvindo, perguntando, experimentando,
fazendo.

Em formato pequeno, quinze por vinte e dois, A Alvorada se apresenta


como "órgão oficial dos alunos do Mosteiro de São Bento". Capa fina, verde, o
título ao alto, o dístico Veritati et Virtuti logo abaixo, encimando o desenho de
um sol radioso a iluminar a igreja, o pátio, todo o colégio. Circula internamente
no primeiro dia de cada mês de aulas. Ao se matricular em janeiro ou fevereiro,
cada aluno paga cinco mil réis pela assinatura anual, dinheiro que, somado à
verba do próprio Mosteiro, cobre as despesas de composição, clicheria e
impressão.
Quando Noel começa a cursar o primeiro ano, A Alvorada entra em seu
quinto de existência. E é de fato em suas páginas que se podem encontrar as
melhores pistas para se conhecer o ginásio de hoje, o que fazem e o que pensam
(ou o que procuram transmitir aos alunos) os professores dirigidos por dom
Meinrado. Não é, como se diz, um órgão "dos alunos", mas uma publicação
pautada, editada e quase que inteiramente escrita pelos professores. Aos alunos
não são destinadas mais do que cinco, seis páginas, de um total de 56, nas quais,
sob o título de "Trabalhos Escolares", poderão incluir suas colaborações, em
geral croniquetas, histórias de caráter religioso, uma ou outra poesia, anedotas e
curiosidades furtadas aos almanaques.
De março de 1923 a dezembro de 1928, os seis anos que Noel passará no
São Bento, circularão 27 números de A Alvorada. E em nenhum deles seu nome
aparecerá a propósito do que for. Nem como colaborador nem como participante
das freqüentes campanhas que a revista realiza entre os alunos. Uma das
primeiras dessas campanhas pretende atender aos apelos de Pio XI para que os
brasileiros contribuam com donativos em dinheiro "em favor das crianças pobres
que na Rússia vão sofrendo à míngua de pão e roupa". Outra destina-se a
levantar fundos para a construção de uma colossal estátua do Cristo no alto do
morro do Corcovado. Alguns mil réis serão conseguidos tanto para "as
criancinhas vítimas do bolchevismo" como para o monumento a que se pretende
dar o nome de Cristo Redentor. De Noel, um níquel sequer. Sua ausência será
mesmo absoluta. Ao contrário de praticamente todos os seus contemporâneos.
O espírito de A Alvorada não é simplesmente religioso, mas sombriamente
religioso. Os artigos escritos pelos professores estão impregnados de um
catolicismo exacerbado, fanático às vezes. Os dos monges atacam outras
religiões, a protestante, a judaica, a espírita. Falam de milagres e castigos, céu e
inferno. E pregam uma moral que se apoia no desprendimento, no sacrifício e na
dor. Os meninos de 1923 - mais ainda os de sentimento religioso um tanto
inconsistente como Noel - devem estranhar o ar grave, carregado e até mesmo
mórbido do colégio, tão bem refletido nas páginas da revista. Um exemplo é
uma de suas seções permanentes, intitulada Sinite parvulos ventre ad Me.
Partindo das palavras do Evangelho ("Deixai vir a Mim os Pequeninos", Marcos,
10-14), a seção fala de "pequenos privilegiados de Jesus-Eucaristia", isto é,
crianças e adolescentes que tiveram "a ventura de morrer em tenra idade, de se
encontrarem com Cristo tão cedo, tão jovens".
A cada número da revista é contada a história de um desses privilegiados,
meninos e meninas que em meio a terríveis padecimentos "foram levados pelas
mãos do Senhor". Logo no primeiro número que cai nas mãos de Noel lê-se o
caso de Nêlia, católica irlandesa que morreu aos quatro anos de idade depois de
longa permanência no Hospital Bom Pastor, em Cork, sul da Irlanda. A matéria
fala da "abençoada agonia" da menina, de como manteve sua santidade nos
momentos de maior sofrimento, de sua morte ao lado da mãe e da enfermeira
que a acompanhou durante meses e de como, em seus últimos momentos, ainda
encontrou forças para erguer-se e dizer: "Mamãe, não sente que o Deus Santo se
aproxima? Eu o sinto!"
São ingênuos e sem graça os textos humorísticos reunidos sob o título de
"Chistes". De modo que nem isso ameniza o tom deprimido da revista.
Deprimido e doutrinário. A pregação religiosa não é a única que se faz em suas
páginas. Há muitas outras. Como o artigo de um dos professores, José Piragibe,
defendendo a República, conclamando os jovens às armas contra eventuais
exageros monarquistas. Ou as matérias não assinadas que volta e meia falam de
"indesejáveis novidades". Por exemplo, os ventos do feminismo que começam a
soprar da Europa. Diz A Alvorada: "Chama a atenção o Osservatore Romano
para o fato do acordo dos sacerdotes anglicanos em suprimir da Epístola de São
Paulo, que é lida na cerimônia de casamento por eles feita, as frases que
instituem a submissão da esposa ao marido. Tem essa supressão o fim de cortejar
o 'feminismo naturalista', como é impropriamente chamado o 'feminismo
desbragado'. Note-se, também, como respeitam os protestantes a Bíblia, que
dizem ser a sua única regra de fé."
A cada ano Noel tomará novos contatos com a filosofia editorial de A
Alvorada. Uma revista que procura vincar a posição do Mosteiro - em realidade
da própria Igreja - em relação a todos os assuntos que se passam lá fora, na
cidade, no país, no mundo. Como acontecerá com o caso do assassinato do
menino Robert Franks, em Chicago, Estados Unidos, por dois rapazes da alta
sociedade local, Nathan Leopold e Richard Loeb. É dos julgamentos mais
famosos da história das cortes americanas, o grande Clarence Darrow, advogado
de defesa, conseguindo o que se dizia impossível: livrar os dois rapazes da forca.
Leopold e Loeb confessaram ter cometido o crime numa tentativa de provar o
quanto suas inteligências eram superiores. Loucos? Monstros? A revista
assegura que não. Traduzindo o artigo publicado pelo órgão católico suíço
Schweizerische Allgemeine Volks-Zeitung, endossa a opinião de que toda a
crueldade dos dois assassinos de Chicago vem de uma sucessão de fatos que
pode ser resumida num ponto: seu afastamento de Deus. O artigo frisa que
Leopold e Loeb pertencem a famílias judaicas ortodoxas. Portanto, não são
católicos. Pouco vale que sejam ambos cultos: "... a cultura maldirigida -
costuma dizer José Piragibe - é pior que a ignorância!" Leopold já é um famoso
ornitólogo, embora muito jovem. São moços de muitas leituras. A Alvorada é
quem esclarece: "Seus heróis são os ímpios e absurdos filósofos Nietzsche,
Schopenhauer e Oscar Wilde. Nathan entrega-se, ao par de sua ciência, à leitura
da literatura pornográfica (Zola e outros cínicos) e criminal. É grande amigo de
mulheres. Inclina-se, porém, mais para as moças hipercultas e refinadas. Richard
Loeb é igualmente estudante talentoso, em tudo cópia fiel de seu amigo."(7)
7. Richard Loeb e Nathan Leopold tinham ambos dezenove anos quando mataram Robert Franks, de treze, a 24 de maio de 1924. Quatro meses depois foram condenados à prisão perpétua. O
caso é, de fato, um dos mais célebres das cortes americanas, tendo inspirado inúmeros livros, ensaios, artigos de jornal, peças de teatro e nada menos de três filmes: Festim Diabólico (Rope, de Alfred
Hitchcock, 1948), Estranha Compulsão (Compulsion, de Richard Fleischer, 1959), em que Orson Welles, no papel do advogado, repete ipsis litteris o discurso de Clarence Darrow no julgamento, e O
Homem de Alcatraz {Bird Man oj Alcatraz, de John Frankenheimer, 1962), focalizando os anos em que Leopold, interpretado por Burt Lancaster, cumpria pena e já se tornara tão famoso como
ornitólogo quanto pelo seu crime.

Assim, pelas conclusões da revista em relação ao caso Loeb & Leopold,


Noel e seus colegas ficam sabendo que o não-seguimento da religião católica, a
cultura maldirigida (Initium sapientiae timor Domini, ou seja, a base de toda a
sabedoria é o temor a Deus), as leituras pornográficas (que Noel muito aprecia),
as mulheres (que ele aprecia ainda mais) podem transformar dois jovens em
criminosos.
Não há grande assunto que A Alvorada deixe passar em branco. E, sempre
que possível, partindo dele para mostrar o quanto está próxima da verdade a
religião católica - ou o quanto dela estão afastadas todas as outras. Combate não
só o feminismo, mas muitos dos novos ismos que se proponham a transformar o
mundo. O comunismo, por exemplo. Depois do apelo de Pio XI para que se
socorram "as vítimas do bolchevismo", a revista retorna ao assunto sempre que
pode. Como neste artigo que sairá no número de agosto-setembro de 1925:
"Desde que o mundo é mundo e desde que a maldição divina feriu o primeiro
habitante sobre a Terra, há uma luta sem tréguas que se eterniza pelos séculos
adentro: fracos e potentados, ricos e paupérrimos, nobres e plebeus, servos e
senhores sempre se agitaram numa dualidade constante, num antagonismo
clássico, fatal. Não é de hoje que um ou outro inspirado tem quebrado lanças
contra as linhas fortíssimas que extremam os dois antiqüíssimos partidos.
Modernamente, os bolchevistas quiseram resolver, com dois decretos e quatro
bombas, toda a debatidíssima questão (..j Por todo o imenso território do ex-
império grassou então o domínio absoluto do sovietismo; em nome de uma
liberação absurda e incoerente, mais de dois milhões de vítimas tombaram para
sempre."
Liberação incoerente e absurda, diz A Alvorada, para a qual só há um modo
de se combater a pobreza: a caridade. Mas outros violentos ataques ao
comunismo aparecerão na revista, do primeiro número que cai nas mãos de Noel
ao último que lera já às vésperas de sair daqui. Assim, em 1928, quando no
mundo inteiro ainda ressoarem os protestos por Nicola Sacco e Bartolomeo
Vanzetti, condenados à morte nos Estados Unidos por um crime que jurarão não
ter cometido(8), A Alvorada mais uma vez não se omitirá.
8. O caso Sacco & Vanzetti foi ainda mais estrepitoso que o de Loeb & Leopold, notadamente por ter desencadeado debates políticos em todo o mundo, as direitas pedindo-lhes a execução,
as esquerdas usando-os como símbolos da "injustiça capitalista". Anarquistas italianos, acusados de participarem, a 15 de abril de 1920, de um assalto durante o qual foram mortos dois operários de uma
fábrica de sapatos, Sacco e Vanzetti começaram a ser julgados no ano seguinte. Depois de longas batalhas nos tribunais, manifestações populares e apelos de clemência assinados por intelectuais, artistas,
líderes religiosos e até chefes de Estado de várias partes do mundo, morreram na cadeira elétrica a 10 de julho de 1927.

Vai publicar, com base em dados da Igreja Ortodoxa Russa de Nova Iorque,
uma estatística das vítimas de duas décadas de Revolução Soviética ("Toda a
família imperial, 31 bispos, 1 mil 500 sacerdotes, 34 mil 585 magistrados e
médicos, 16 mil 367 estudantes e professores, 79 mil 900 funcionários públicos,
65 mil 890 nobres e aristocratas, 56 mil 340 oficiais, 196 mil operários, 268 mil
soldados e marujos, 890 mil camponeses, por tudo mais de 1 milhão 300 mil
mortos!") e arrematar com este comentário: "E encenaram tanto alvoroço quando
a justiça americana julgou dever condenar à morte os dois anarquistas Sacco e
Vanzetti."
As outras religiões? Não perde A Alvorada oportunidade de combatê-
las.Especialmente a protestante, adversária secular. Combates que se travam em
muitas frentes, sobre temas daqui e lá de fora. Aqui tanto pode a revista se
limitar a pendengas em torno da Bíblia ("... ninguém ignora que os protestantes,
por conveniência de sua doutrina, mutilaram e adulteraram muitos textos das
Sagradas Escrituras, excluindo livros inteiros..."), como investir, mais no campo
da ação que das idéias, sobre as instituições de alguma forma ligadas à outra
religião. É o caso da Associação Cristã de Moços (ACM), que jamais conseguiu
realizar uma campanha para ampliar suas instalações sem ter de carregar o peso -
por vezes insuportável - da oposição do Mosteiro e de sua revista. Nisso A
Alvorada é eficientemente apoiada por outras publicações católicas, uma delas A
Cruz, cujos artigos são transcritos pelo "órgão oficial dos alunos do Mosteiro de
São Bento do Rio de Janeiro". Um desses artigos fala da indignação da
comunidade católica por pretender a ACM fazer obras em sua sede com dinheiro
de donativos. Afinal, este é um país católico, de modo que dos católicos deve ser
o direito exclusivo de pedir donativos. Em 1917, o Mosteiro e outras instituições
já estiveram à frente de um movimento para evitar que uma das campanhas da
ACM tivesse sucesso: através de propaganda pelos jornais e de folhetos
distribuídos nas ruas por seus alunos, puderam "abalar consciências e, se de todo
não impediram o resultado da intrusa subscrição, sem dúvida lograram frustrar e
diminuir" o seu êxito. Um ano depois, quando a mesma ACM tentava junto ao
Governo a cessão de uma área de 3 mil 880 metros quadrados no morro do
Castelo para nela construir seu novo edifício, mais uma cruzada empreenderam o
Mosteiro e seus aliados, desta feita chegando aos gabinetes presidenciais -
primeiro de Delphim Moreira e depois de Epitácio Pessoa - para conseguirem
que a tentativa da ACM mais uma vez fracassasse. Em 1927, vai-se repetir a
história: nova campanha de donativos da ACM, nova cruzada católica contra ela.
Lá fora A Alvorada busca os casos mais rumorosos para com eles
demonstrar que um país indiferente às verdades do catolicismo não pode ir lá das
pernas. Não vêem os alunos o caso dos Estados Unidos? Por que existe lá a Ku
Klux Klan? Por que pode acontecer em seus colégios um professor como John
Thomas Scopes, que depois da segunda 'operação' frustrada. (Arquivo Dejacy
Pacheco.) ousou desafiar as lições da Bíblia e ensinar em suas aulas a herética
Teoria da Evolução, de Darwin? "Os Estados Unidos são o país dos assombros,
das novidades, dos empreendimentos a Júlio Verne...", diz ironicamente a revista
a propósito do show em que se converteu o julgamento de Scopes, processado
por ter informado aos seus alunos que o homem e o macaco descendiam de
ancestrais comuns(9).
9. É no número de junho-julho de 1925 que A Alvorada se refere ao caso Scopes associando-o gratuitamente à Ku Klux Klan e ao progresso alcançado pelos Estados Unidos sob a inspiração
de "heresias em declínio". John Thomas Scopes foi a julgamento na pequena cidade de Dayton, Tennessee, no verão americano de 1925, por ter desrespeitado a lei que proibia o ensino da teoria da
evolução nos colégios do Estado. Na defesa, mais uma vez em ação Clarence Darrow. O julgamento foi de fato transformado num show pelo advogado, que assim tentava atrair a atenção do país para os
debates. Seu adversário, o acusador de Scopes, foi o conservador William Jennings Bryan, três vezes derrotado como candidato do Partido Democrata à Casa Branca. O caso não foi ganho nem perdido
por ninguém, artifícios legais da Suprema Corte levando-o ao arquivamento para que não se tornasse ainda mais rumoroso (a opinião pública estava literalmente dividida). A exemplo dos casos Loeb &
Leopold e Sacco & Vanzetti, o julgamento de Scopes inspirou livros, peças de teatro e um excelente filme: O Vento Será Tua Herança (Inherit The Wind, de Stanley Kramer, 1960).

Tudo porque o país dos assombros cresce, cresce muito, mas distanciado
demais das luzes do catolicismo.
Nenhuma religião ou filosofia não-católica escapa à sanha de A Alvorada.
O espiritismo é freqüentemente ridicularizado como "a grande farsa do século".
A Maçonaria, apontada como "sanguinária perseguidora do catolicismo no
México". Os positivistas, como adeptos de uma ideologia do demônio. A vida de
Augusto Comte, uma tragicomédia (e assim realmente se parece, a se acreditar
na biografia publicada no número de junho-julho de 1926). E há mais:
fundamentalistas, batistas, presbiterianos, anglicanos, israelitas, contra tudo mais
que não seja catolicismo investe A Alvorada.
Curiosa revista esta, escrita com as tintas da intolerância, mas muito
esclarecedora sobre o São Bento de hoje. Uma revista que acha bonito morrer
cedo, um privilégio sofrer, uma dádiva divina entregar a alma aos céus depois
dos mais longos e terríveis martírios. E o que dizer dos prazeres terrenos, o jogo
de bola, a rua, as festas em casas de família onde se pode tomar escondido um
ponche ou dois e depois tirar para dançar a menina que se deseja? Pois até
quanto a isso - as festas, as diversões, os prazeres não exatamente do espírito - A
Alvorada recomenda que os alunos se ponham na defensiva. Noel não gosta
muito de dançar, mas se gostasse haveria de ler com amuo este trecho que a
revista foi buscar em Nova Floresta, do Padre Manuel Bernardes: "Que o que
baila e dança tem parte de louco furioso, basta vê-lo de fora para confessá-lo.
Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão violentos,
tão afetados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do seu
assento."
Não, Noel jamais se incluirá entre os colaboradores de A Alvorada. Quando
tiver algo a dizer, o fará à sua maneira. E no seu próprio "jornal".
Vista da igreja e do mosteiro de São Bento, anos 1900. Em segundo plano, à direita, prédios e oficinas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e a chaminé da Companhia City
Improvements (fundada em 1866).
Arsenal da Marinha e Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro, anos 1900.

Largo da Carioca com Mosteiro São Bento ao fundo, início do século.


Vista frontal da Igreja com prédio do antigo ginásio à esquerda, inaugurado em 1904 e demolido na década de 1970
Capítulo 5
O QUE SE APRENDE NO COLÉGIO
Satanás respondeu meu recado:
"Balão apagado
Não entra no céu...
No inferno tu serás respeitado
Tu tens tanto pecado
Que eu te tiro o chapéu!"
Balão Apagado

Os professores. Idosos, não tão idosos. Monges, militares, civis.


Conservadores, não tão conservadores. Bons, ótimos, regulares, ruins. De tudo
os alunos terão pela frente nos anos que passarão no São Bento. Gostarão mais
de uns que de outros. Levarão saudades destes, ressentimentos daqueles,
raramente a indiferença ou o esquecimento. São professores que pretendem mais
do que lhes ensinar o que determina o programa oficial. No fundo, cada um
deles, religioso ou não, carrega a esperança de representar importante papel na
educação desses jovens, de influir em sua formação, de atuar como engenheiros
na construção de seus valores, de seus alicerces morais. Acreditam ser esta a sua
missão: - Mais do que mestres, somos formadores de caracteres.
Quem diz isso é um deles, homem de meia-idade, baixo, atarracado, pernas
e braços curtos, cara larga. O bigode farto mais parece uma escova de piaçá
brigando por um espaço entre o nariz e a boca. Os óculos miúdos, de grossas
lentes, quase somem no rosto redondo. Chapéu e terno invariavelmente escuros,
punhos e colarinhos postiços, polainas, veste-se como um amanuense do fim do
século. Chama-se José Piragibe e ninguém mais que ele leva a sério o papel de
"forjador de caracteres". Participa de todas as atividades do ginásio, filia-se às
instituições religiosas, assessora o Grêmio Literário, escreve artigos para A
Alvorada, faz longos e incandescentes discursos sempre que lhe dão chance de
exercitar-uma retórica tão antiga quanto as roupas que veste: "Diga quem quiser
que o Brasil está à beira de um abismo: o moço patriota repele desdenhoso a
mentira revoltante e dedica-se com o maior ardor ao estudo da nossa religião, da
nossa língua, da nossa geografia e da nossa história."
Republicano fervoroso, vê nas críticas que se fazem ao governo Arthur
Bernardes (o país sob estado de sítio, liberdades cerceadas, Aurelino Leal
nomeado interventor no Rio de Janeiro, choques armados no Rio Grande do Sul)
impatrióticas maledicências de monarquistas interessados em ressuscitar o antigo
regime:
"Não se ilude, felizmente, a mocidade" - escreve ele em A Alvorada- "e na
igreja do Mosteiro, nas aulas do ginásio, nas sessões literárias e cívicas do nosso
Grêmio, nos exercícios militares, vai aprendendo o manejo das armas com que
terá de lutar para erguer bem alto o nome do Brasil."
José Piragibe será o professor de português de Noel no primeiro ano. Mais
adiante eles se reencontrarão nas salas de química, física e história natural. Mas
é aqui, a partir de agora, que os dois começam a manter um relacionamento feito
de provocações sem trégua, por parte de Noel, e de reações mal-humoradas,
quando não de cólera, por parte do professor. Tudo neste parece irritar aquele.
Ou, pelo menos, diverti-lo. Os cacoetes, por exemplo. O professor vive puxando
para baixo o colarinho engomado, acompanhando o movimento das mãos com
um estranho gorjeio, quase ronco, que Noel costuma imitar. A turma ri. As
imitações ocorrem em plena aula, Piragibe no quadro-negro, de costas para os
alunos, e Noel de pé, puxando o colarinho, roncando. Apelida-o de professor
Xixi, depois de constatar que um defeito de dicção faz com que peça silêncio à
turma não com um "psiu", mas com um agudo "xiiiii".
Piragibe gosta de rimar suas lições, convencido de que assim é mais fácil
decorá-las:
- No futuro e no condicional, faz-se sanduíche gramatical. Faz-se sanduíche
gramatical, no futuro e no condicional.
Ou então:
- Enfeia a redação qualquer repetição. Qualquer repetição enfeia a redação.
O mau humor de Piragibe em relação a Noel nunca irá além de uma
repreensão, uma zanga, ainda que eventualmente mais ríspida. O aluno
continuará fustigando-o com suas brincadeiras e deboches, mas o professor não
lhe guardará rancor. Ou será que sim?
O fato de não haver exames finais no primeiro ano - os alunos freqüentam
as aulas, estudam português, aritmética, geografia, francês, desenho e religião,
passam em dezembro por provas internas no próprio São Bento, mas não pelos
exames de bacharelato no Colégio Pedro II(1) - faz com que Noel Rosa se
permita o luxo de estudar muito pouco em 1923.
1. Quando Noel Rosa começou a cursar o ginásio em 1923, eram muito diferentes as normas do ensino. Todas as provas finais - os chamados exames de bacharelato ou preparatórios -
realizavam-se no Colégio Pedro II. Podia-se estudar em qualquer outro colégio (ou mesmo em casa, sozinho ou com professores particulares), mas os exames tinham de ser feitos perante banca do
estabelecimento oficial. O São Bento e alguns outros preparavam seus alunos dentro de um curso seriado de cinco anos. A partir do final do segundo, iam eles se apresentando para os exames de
bacharelato (aritmética e geografia, no segundo; francês, álgebra e história do Brasil, no terceiro; inglês, latim, geometria e história universal, no quarto; física e química e história natural, no quinto),
depois do que, bacharéis em ciências e letras, estavam habilitados a ingressar em qualquer curso superior do país. No São Bento, caso o aluno não fosse aprovado pela banca do Pedro II, repetia o ano,
ainda que tivesse se saído bem nas provas seletivas que o colégio realizava para só mandar aos exames de bacharelato os mais aplicados.

E vai estudar ainda menos no segundo ano, só que então correndo o risco de
enfrentar despreparado as provas finais de aritmética e geografia, aí sim,
prestadas às bancas do estabelecimento oficial.
São dois anos de muita brincadeira, de atitudes que não deixam de
neutralizar no espírito de Noel o ambiente de austeridade do São Bento. Os
amigos se lembrarão para sempre do seu jeito solto, alegre, um tanto
irresponsável, que mal cabe nos limites de sisudez do colégio.
Não se pode dizer que seja rígida a disciplina do São Bento, mas é rígida o
bastante para prender, vez por outra, as asas que Noel tem sempre prontas para
inquietos vôos.
Há no menino de doze anos uma incontrolável ânsia de liberdade, um
sentimento que o acompanhará por toda a vida - vôo permanente. Mas muitas
vezes a vontade de ser livre esbarra na vigilância de José Maria Gouvêa, inspetor
de disciplina que vive a percorrer salas de aula, corredores, pátios e banheiros
atrás de alunos que de alguma forma estejam fora da linha.
Gouvêa, até 1923, tem como única função lecionar matemática no curso
preliminar. De 1924 em diante, acumulará esta função com a de responsável pela
disciplina dos alunos. Quais serão os seus métodos? Que tipos de castigo vai
impor aos malcomportados? O mais comum é mandá-los ao gabinete de dom
Meinrado para ouvir um sermão do reitor, homem de quem todos gostam e pelo
qual, em nome desse gostar, detestam ser repreendidos. Como costuma dizer
Hélio Lobo, um dos alunos: - Prefiro a zanga do Gouvêa à fala mansa de dom
Meinrado.
Mas quase sempre o diretor de disciplina resolve tudo sozinho, deixando os
faltosos depois da hora de saída a copiar, repetidas vezes, frases em francês: "Je
crois en Dieux Père..." Ou em latim: "Beati mundo corde quoniam ipsi Deum
videbunt..."
Não é raro Noel se ver diante do Gouvêa com culpas a expiar, lápis e papel
a postos para copiar - quantas vezes? - uma sentença punitiva:
- Cem vezes!
- Mas...
- Então, duzentos.
- Seu Gouvêa...
- Trezentas está bom?
- Não, não está.
- E quatrocentas?
- Esta bom, seu Gouvêa, está bom.
Dona Martha e seu Medeiros são chamados com freqüência ao colégio,
dom Meinrado querendo falar-lhes sobre o filho, bom menino, muito inteligente,
mas que precisa observar melhor os regulamentos internos, comportar-se em
aula, brincar menos. Que tal uma leitura atenta do livrinho de normas a serem
seguidas pelos alunos? As aulas começando pontualmente às onze, as orações ao
meio-dia, a Santa Missa aos domingos, cedinho. E não esquecer o jejum nos dias
de comunhão. Em sala, é necessário observar silêncio, ouvir o professor, prestar
atenção à aula, nada de pândega.
Inúteis advertências. Mesmo durante as orações do meio-dia é impossível
ficar quieto. Dom Joaquim de Luna junta as mãos e fecha os olhos,
compenetrado, para dar início à prece, e já se ouve em algum lugar um
inesperado tilintar. Como se fossem sininhos em miniatura fazendo música de
fundo à oração. Dom Joaquim abre os olhos e pergunta aos alunos que barulho é
este. Estão todos quietos. Noel tem os braços cruzados sobre a carteira. O monge
nem desconfia de que ele amarrou numa das pontas de um barbante um punhado
de pregos e tampinhas de cerveja. A outra ponta está em sua mão, oculta sob os
braços cruzados. Noel retorce o barbante. E os pregos e as tampinhas, na outra
extremidade da sala, tilintam.
Lá fora, quando não está tocando violão, cantando indecorosas paródias ou
inventando quadrinhas para mexer com os colegas, tanto pode estar roubando
balas e mariolas do Altino, dono da cantina, como contando anedotas.
Às vezes vem surgindo, lá no alto da ladeira, dom João Baptista Laué
Lobão. Usa enrolada no pescoço uma cometa preta, sinuosa. Só com ela
consegue ouvir alguma coisa, a extremidade mais fina enfiada no ouvido, a outra
posta bem perto da boca do interlocutor. Noel vira-se para Heitor Lino:
- Por que você não vai lá segurar a cobra de dom João?
Ainda gosta de desenhar, mas muito pouco do que produz, com traços
firmes a lápis de cor, pode ser visto pelos professores. Se um dia algum desses
desenhos parasse nas mãos de dom Meinrado, todas as reservas de tolerância do
bom monge seriam insuficientes para impedi-lo de expulsar Noel do colégio.
São também obscenas as estranhas maquininhas que constrói, com imaginação e
habilidade, para divertir os colegas em aula. Uma dessas máquinas é um
conjunto de cartolinas presas umas às outras por alfinetes. De cada uma delas sai
uma linha que Noel amarra aos dedos como se fossem os fios de um fantoche. A
maquininha é colada por uma das partes no vidro da janela. De tarde, quando
bate o sol, a sombra do conjunto de cartolinas se projeta na parede atrás do
professor. Noel mexe coordenadamente os dedos, imprimindo aos pedaços de
cartolina movimentos ritmados. O que a turma vê projetado na parede é a
perfeita silhueta de um ato sexual.
Fuma muito. É um hábito que adquiriu cedo. E como é proibido sequer
portar cigarros dentro do colégio, aí está mais uma boa razão para a gazeta. Se
está calor, o melhor lugar é a praia das Virtudes(2).
2. Atual Aeroporto Santos Dumont.

De resto, qualquer lugar serve, a Quinta da Boa Vista, o campinho de


futebol ao lado do Moinho Fluminense, lá pelos lados da Saúde, ou mesmo a ilha
das Cobras, não muito longe do colégio. Pouco importa que ali, no segundo ano,
vá levar um grande susto. Ele e Marcello Menezes. Os dois fugindo pela ladeira
proibida, descendo até o Arsenal de Marinha e começando a atravessar a ponte
Alexandrino de Alencar, calmamente, a caminho da ilha das Cobras.
- Parem ou eu atiro! - gritará alguém. Noel e Marcello chegarão a ouvir o
ruído do ferrolho do fuzil sendo armado pelo marinheiro à sua frente.
- Aonde pensam que vão?
- Até a ilha das Cobras.
-Não vão, não. Se derem mais um passo, morrem!
E os dois voltarão correndo para o São Bento, pouco lhes interessando se
havia ou não um começo de revolução em São Paulo, levando Arthur Bernardes
a ordenar que as corporações militares ficassem de prontidão em todo o país(3).
3. Refletiu-se também no Rio a chamada Revolução Paulista de 1924, uma das muitas manifestações do "tenentismo" na década de 20.

Os sentinelas instruídos para atirar em qualquer pessoa estranha. Meninos


como Noel e Marcello inclusive.

A casa projetada e construída por Manuel Garcia de Medeiros Rosa não é


muito original. A fachada, por exemplo, um bloco de três faces ao lado da
varandinha de entrada, é quase igual a várias outras que existem no bairro há
muito mais tempo. A disposição dos cômodos é pouco funcional, ao comprido,
como a maioria das residências da rua, um dos quartos de dormir dando para a
sala, os dois banheiros lá nos fundos, colados à cozinha. O terreno é bem menor
que o do chalé (oito de frente por 26 de fundos). O quintal, pequeno, tem poucas
árvores e termina num barranco. Este faz parte do morro que separa trecho da
Theodoro da Silva da Maxwell. A uns cinqüenta metros desse morro acaba a
Conselheiro Paranaguá, rua paralela que começa na Souza Franco, baqueie
ponto, lá de cima, tem-se uma vista panorâmica de toda a casa, a área construída,
o quintal, o barranco. Uma casa nova, limpa, taqueada, ladrilho hidráulico,
fachada de pó-de-pedra, flores pintadas sobre a varanda. Já não há razão para se
temerem tetos desabando sobre a cabeça. E assim como o 130 é conhecido por
chalé, este 195 fica sendo o bangalô. Ou "a casa de vó Rita"(4).
4. A casa ainda existe, tendo hoje o número 483. Mesmo com as sucessivas reformas que sofreu nestes anos todos, não está muito diferente do que era.

Mudam-se todos em fins de 1924. Arlinda, por pouco tempo. Meses atrás
Eduardinho trouxe para passar dias no chalé Fábio de Lima Goyano,
farmacêutico paulista, filho de Augusto Rodrigues de Moraes Goyano, seu
grande amigo em Bica de Pedra. Fábio apaixonou-se por Arlinda no primeiro
instante. Estava ela de luto por um parente, sem pintura, a pele alva contrastando
com o vestido preto. Uma elegância meio mórbida, mas nem por isso desprovida
de sensualidade. Fábio sentiu o coração bater mais forte. Pouco depois, estava
lhe propondo casamento. E como era de gosto geral - Rita, Eduardinho, Odette,
Martha, todos muito impressionados com o farmacêutico - Arlinda concordou
em ficarem noivos. Casam-se a 22 de janeiro de 1925, dia do vigésimo quarto
aniversário dela. Vão morar em São Paulo, Arlinda sem ter esquecido de todo o
primeiro noivo. Na véspera da cerimônia - celebrada diante de um singelo altar
improvisado no chalé, Dr. Graça Mello e sua mulher, Dona Glorinha, como
padrinhos - Martha chama a noiva ao seu quarto, abre o porta-jóias onde guarda
todos os presentes de Neca, dados nos tempos de fartura, e diz: - Escolhe o que
quiser.
Comovida, Arlinda pegará apenas uma pulseira, simples, barata, para nunca
mais se separar dela.
Dos primeiros dias de dezembro de 1924 aos últimos de janeiro de 1925,
realizam-se as provas finais no Pedro II. Alunos de fora, os chamados candidatos
"estranhos", ou do próprio colégio misturam-se no amplo pátio, nos corredores,
nas salas de pé-direito alto, todos ansiosos por seus diplomas de bacharel.
Noel, segundanista do São Bento, presta exame em duas matérias. Primeiro
aritmética, quinta-feira, 8 de janeiro, e depois geografia (incluindo corografia e
elementos de cosmografia), na segunda-feira seguinte, dia 12. Não consegue a
média mínima de 3,5 e é reprovado nas duas. Talvez não esperasse isso. Na
irresponsabilidade de seus treze para quatorze anos, acreditava ser possível
brincar tanto e estudar tão pouco, sem esbarrar no rigor desses velhos
professores do Pedro II.
Tão despreparado estava - e é tanta a agitação em casa, a mudança para o
bangalô, o casamento de Arlinda, Hélio se preparando para também ele começar
a cursar o ginasial no São Bento - que Noel nem aparece para as provas de
segunda época no mesmo Pedro II, a de aritmética de 13 a 23 de março, a de
geografia de 12 a 25. Vai perder o ano.
Se a reprovação afetou-o ou não, ninguém sabe. A impressão que causa aos
novos colegas de turma, desde o primeiro momento, não é a de um repetente
arrependido, a de um menino a quem o fracasso serviu de lição. Parece o
mesmo. Despreocupado com os estudos ou o que seja. Alegre, vivo, inteligente,
irreverente, moleque.
É assim que o vêem.
Esta nova turma está destinada a ser uma das melhores que já passaram
pelo São Bento. Dela sairá gente fadada a vencer: médico, engenheiro,
almirante, general, brigadeiro, advogado, professor, homem de empresa. E Noel
Rosa. Que os novos colegas conhecem logo na primeira aula do surdo Mário
Barreto, ele se levantando lá atrás para perguntar:
- Professor, posso mijar no seu bolso?
- Sim, mas não demore.
Noutro dia, convencido de que Barreto está cada vez mais surdo, incapaz de
distinguir o que sai de sua boca apenas entreaberta, torna a se levantar, a mão
direita para o alto:
- Professor, posso comer sua mãe?
- Pode ir, mas rápido.
Ao ver que a turma se une numa gargalhada, Barreto adverte:
- Não riam, meninos. Afinal, qualquer um pode ter a mesma necessidade.
Nova turma, novo sistema de exames finais. A 13 de janeiro - exatamente
no dia que se seguiu à sua reprovação em geografia - foi assinada a Reforma
Rocha Vaz, pela qual, a partir de agora, as provas de bacharelato não têm
necessariamente de ser feitas no Pedro II, mas também nos próprios colégios em
que estudam os candidatos, embora sempre perante bancas nomeadas pelo
estabelecimento oficial(5).
5. A reforma que levou o nome de Juvenil da Rocha Vaz, diretor do Departamento Nacional de Ensino, foi implantada pelo Decreto-Lei 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925. Praticamente
institucionalizava o curso seriado de cinco anos, tornando-o obrigatório em todos os colégios, ao mesmo tempo que começava a pôr fim aos candidatos avulsos (ou "estranhos") que tentavam o
bacharelato no Pedro II. Os alunos que já tinham iniciado o ginasial em 1925 - casos de Noel e Hélio - podiam optar pelo antigo ou novo sistema. De acordo com este, a cada dezembro submetiam-se a
provas finais de determinadas matérias, só que no próprio colégio, perante banca de três professores, dois dos quais do Pedro II. Aprovados, bacharelavam-se naquelas matérias. Reprovados, iam à
segunda época. Novamente reprovados, repetiam o ano, ou então retornavam ao antigo sistema. Os primeiranístas de 1925 foram os últimos a terem as duas opções. Depois, vigoraria apenas o seriado.

A partir de 1925, dois serão os companheiros de Noel nas viagens de ida e


volta, todos os dias, no bonde Lins de Vasconcellos. Um deles é o irmão Hélio.
O outro, Moacyr Mattos de Oliveira.
Hélio, quatro anos mais moço que o irmão e apenas um atrás nos estudos. A
família continua orgulhando-se dele, esperando que venha a ser mesmo um
grande homem, como se a confirmar o vaticínio de vó Rita: "Aqui nasceu Hélio
de Medeiros Rosa." Os anos que passará no São Bento confirmarão que é de fato
muito inteligente. É bem mais estudioso que Noel, embora isso não chegue a ser
vantagem. Curioso, interessado em toda sorte de assuntos, atento. Mas sua
passagem pelo mosteiro estará longe de ser brilhante. Pelo contrário, assinalará,
ao lado de algumas aprovações com altas notas, várias outras de raspão e umas
tantas segundas épocas.
Jamais figurará nos quadros de honra, nunca se destacará em qualquer
matéria. E já neste primeiro ano, a exemplo do que acaba de acontecer com o
irmão, levará para casa um melancólico boletim final que incluirá uma
reprovação em aritmética. E como a Reforma Rocha Vaz já estará em vigor - o
São Bento apertando os alunos desde o primeiro ano para que só os mais
preparados cheguem às bancas de exame - a média 2 que Hélio conseguirá na
matéria do comandante Octávio Werneck Machado não será suficiente para que
passe de ano(6).
6. A maior média que Hélio Rosa obteria no primeiro ano ginasial de 1925 seria a de 6,5 em instrução moral e cívica. Nas demais matérias, 6 em francês, 4 em português, outro 4 em
geografia, 3,66 em desenho e o insuficiente 2 em aritmética. Ao longo do curso, ficaria várias vezes para segunda época, apelaria como Noel para os exames no Pedro II e só concluiria o ginasial em fins
de 1930. Como se verá, graças a um decreto presidencial. Um curso, portanto, bem aquém do que têm afirmado outros biógrafos, provavelmente com base em informações do próprio Hélio: "Bom aluno,
na expressão exata da palavra, foi seu único irmão, Hélio...", diz Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 56). Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua Época (página 29), afirma:
"Quando Hélio de Medeiros Rosa, mais moço quatro anos que Noel, entrou para o Ginásio de São Bento, vinha destinado a assinalar um curso brilhantíssimo. Dão atestado disso não só os cadernos
escolares e os registros do estabelecimento de ensino, mas também as cartas de Noel, explicando, orgulhoso, que o irmão sempre foi o primeiro da turma." Nem brilhantíssimo, nem primeiro da turma.
Os registros do São Bento, exaustivamente consultados pelos autores, revelam que Hélio foi aluno apenas mediano. E as cartas de Noel, como se constata mais adiante, referem-se a um bom estudante de
veterinária, já como universitário, e não a um Hélio "sempre primeiro" de sua turma no São Bento.

A diferença de quatro anos, considerável entre dois adolescentes, faz com


que Noel e Hélio sejam companheiros só de bonde. Neste 1925, como nos anos
que virão, raramente serão vistos juntos no colégio. Noel jogará bola com os
mais crescidos, se reunirá com os amigos no pátio para contar anedotas, tocar
violão, planejar gazetas. Hélio, mais quieto, andará em outra turma. Precoce,
Noel começa a fazer, aos quatorze anos, o que só os bem mais velhos ousam:
freqüentar lugares que Hélio só conhece de ouvir falar, beber cerveja, fumar.
Já Moacyr Mattos de Oliveira é companheiro constante. Mora na Dona
Zulmira, no Maracanã, e fica esperando o bonde de Noel passar para irem juntos.
Muitas afinidades os aproximam, o espírito brincalhão, o não levar muito a sério
certas coisas do São Bento, como a religião vivida entre exageros, certas
verdades, certos professores.
Noel gosta de Gonçalo Garcia Mattos. Um sentimento recíproco. Por isso,
nas aulas de aritmética e álgebra, se não chega a ter comportamento
irrepreensível, ao menos não leva as brincadeiras além da conta. Outros
professores, um deles Luís Gentil Feijó, deixam transparecer seus preconceitos
em relação a Gonçalo, um negro que conseguiu estudar, formar-se, conquistar
um lugar neste mundo de brancos. O enorme anel que usa no indicador direito
parece nos lembrar disso.
Feijó não se impressiona muito com o anel e a pose do colega. Quando
entra em sala para as aulas de francês, logo após dela ter saído Gonçalo, sorri
ironicamente e trocadilha:
- Quer dizer que vocês acabaram de ter a sua gon... çalada?
Noel não acha graça. Gonçalo pode ser posudo, mas por trás do seu orgulho
está um homem bom. É ótimo professor. No outro dia, Feijó repete o sorriso
irônico e o trocadilho:
- Muito bem, outra vez vocês tiveram a sua gon...çalada.
Noel não se contém, levanta-se e replica: -É...e agora vamos ter a nossafei..
joada!
Luís Gentil Feijó será um dos assuntos mais focalizados nas páginas de O
Mamão, jornalzinho manuscrito, exemplar único, do qual o próprio Noel é
idealizador, fundador, editor, redator, revisor, ilustrador e distribuidor.
Jornalzinho de curta duração, todo impresso, ou melhor, manufaturado de um
lado e do outro de uma folha dupla de caderno pautado. Começa a circular neste
1925, sempre sob as carteiras, nos banheiros, nos cantos do pátio não alcançados
pela vigilância do Gouvêa. E já com o logotipo que o tornará famoso entre os
colegas: um bebê sugando, faminto, sua mamadeira. Mas é bom lembrar o duplo
sentido do título, Noel é desde já e para sempre cultivador dos duplos sentidos.
Mamão é um dos muitos sinônimos de pederasta, o vulgo gostando de usar a
expressão: "O mamão é macho, mas é fruta."
Gentil Feijó será muitas vezes ridicularizado nas páginas de O Mamão.
Talvez nem saiba disso. Sabe, porém, que Noel não se inclui entre seus
admiradores. Num fim de tarde, ao ver o garoto numa das janelas do colégio,
olhando para o pátio onde pasta um veado dado aos monges por um fazendeiro
de Caraça, Minas, bate-lhe no ombro e diz:
- Aí, hein? Apreciando o coleguinha...
Suas aulas de francês são excelentes. Isto é, quando está com disposição
para o trabalho. Pois Feijó é muito freqüentemente dado a acessos de preguiça.
Nessas ocasiões, conta anedotas, mexe com Noel e outros alunos ou
simplesmente se justifica:
-Hoje eu estou tão cansado que nem posso me ter em pé...
O Mamão passa para outras turmas as anedotas de Feijó e também as
inventadas por Noel ou ouvidas por este de colegas, amigos de Vila Isabel,
companheiros de bonde. De certo modo, o jornalzinho é uma réplica a A
Alvorada, em cujas páginas, definitivamente, Noel não quer aparecer. Primeiro
por uma questão de estilo, o que o incompatibiliza também com o Grêmio
Literário. Quando começar a escrever seus versos, a pôr no papel a sua prosa (e
nada melhor para isso do que o O Mamão), jamais cometerá arrebatamentos
como os de Carlos Henrique Robertson Liberalli, orador oficial do Grêmio: "O
vento sibilava nas cristas dos penedos e a névoa densa vinha contra nós,
semelhando um exército disforme de fantasmas."
Muito menos os de Oswaldo d'Avila Furtado, também colaborador assíduo
das páginas literárias de A Alvorada:
"Iluminados pelos derradeiros raios apolíneos que agonizavam no
longínquo poente, os píncaros de cordilheiras assemelhavam-se a incomparáveis
blocos de oiro..."(7)
7. Tanto este trecho como o de Carlos Henrique Robertson Liberalli são de crônicas publicadas em A Alvorada, março de 1924.

Em vez de cantar ventos sibilantes e raios apolíneos, Noel prefere ter como
musa a figura de José Piragibe, por sinal um dos grandes, senão o maior
incentivador do Grêmio e da revista:
Quem não conhece um mestre rabugento
Urso de membros atrofiados
Professor e conselheiro do São Bento
Que julga ter modos educados

Chapéu preto, roupa preta, sempre a mesma


Chapéu que na cabeça mal lhe assenta
Roupa suja e pegajosa como a lesma
Bigode a cair-lhe pela venta.

Em dezembro de 1925, novamente as provas finais. De aritmética,


geografia e álgebra, esta incluída em cima da hora, pelo Departamento Nacional
de Ensino, entre os exames de bacharelato do segundo ano. Surpreendida, quase
toda a turma de Noel, ele inclusive, vai à segunda época. De nada adiantam as
aulas extras de Gonçalo Garcia Mattos, as centenas de páginas de livro
consumidas às carreiras, as fórmulas e os cálculos estudados da noite para o dia.
Se até Lauro de Abreu Coutinho, o primeiro da turma, vai à segunda época, por
que não Noel?
A álgebra será, porém, sua única tacada em falso. Assim mesmo, quando
fevereiro chegar, se livrará dela na segunda chance. E será promovido ao terceiro
ano.
Dom Meinrado gosta de ver Noel nas missas de domingo. Mesmo sabendo
que o principal motivo de sua assiduidade é o futebol que os alunos jogam
depois, no campinho lá de cima. Campo de formato irregular, devido à curvatura
do morro, semelhante a um retângulo ao qual decepou-se um dos cantos,
apelidado pelos alunos de "cartão de visitas". As partidas começam bem-
comportadas, dois times escolhidos no par ou ímpar, bola ao alto, os sem-camisa
contra os com-camisa, tudo com a aprovação do Gouvêa. Bem-comportado,
contudo, só no começo, pois geralmente estes embates dominicais, os sem-
camisa contra os com-camisa, terminam com os dois times usando o mesmo
uniforme: todos nus, brigando pela bola.
Noel, que não é, nunca será no futebol tão bom quanto no violão, empolga-
se com esses jogos de após missa. É ele o líder, o primeiro a dar ordem para que
todos tirem a roupa. Talvez a nudez, aqui neste colégio religioso e para-militar,
de dólmàs abotoados até a gola, não deixe de ser uma forma de libertação. Por
mais que tenha jeito de pecado, por exemplo, aos olhos de dom Joaquim de
Luna, o professor de religião.
Faltam três dedos - o médio, o anular, o mínimo - na mão direita deste
monge. Durante as aulas, em que defende sempre com ardor os princípios de sua
fé, o defeito fica mais evidente, dom Joaquim gesticulando muito, erguendo a
mão como se para tornar ainda mais inflamada sua fala aos jovens:
- Há que lutar contra as tentações do demônio!
O mundo de dom Joaquim é feito de um só Deus e muitos demônios, um
único céu e uma infinidade de infernos. É pregador eloqüente, às vezes furioso,
que crê tanto na virtude como no pecado, tanto na salvação como no castigo. O
inferno, por sinal, é seu tema preferido:
- Ali, naquelas chamas, queimam-se os impuros!
Faz-se no colégio certo mistério sobre a mão deformada de dom Joaquim.
Inventa-se uma série de histórias, todas fantasiosas. O São Bento é um colégio
onde as lendas comumente se criam e se difundem. Como no caso dos dois
meninos que teriam morrido por desobedecerem a proibição de usar a ladeira da
esquerda, perigosa, desembocando no Arsenal de Marinha. Rolaram ambos
pirambeira abaixo, diz a lenda. Ou a do outro que se afogou na piscina hoje
interditada. Ou a do que se teria curado de um mal incurável pela graça de ter
visto, em carne e osso, andando pelo pátio, ninguém menos que Nossa Senhora
de Montserrat. Os dedos de dom Joaquim são parte desse folclore.
O fato é que monges, professores, antigos funcionários do colégio preferem
não falar do que realmente aconteceu: aquela bomba dos marinheiros revoltosos
em 1910 vindo explodir dentro das dependências do São Bento, os estilhaços
fazendo estragos por toda parte, inclusive na mão de dom Joaquim de Luna,
arrancando-lhe os três dedos. Mas os monges evitam tocar no assunto, de modo
a não criar possíveis apreensões em pais e alunos. Não querem que se repita por
aí que o São Bento fica em lugar tão perigoso que pode acontecer de alguém
nele perder os dedos. Ou a vida.
É por causa desse segredo que Noel nem chegará a desconfiar que a mesma
bomba que mutilou a mão de dom Joaquim ecoou no chalé, assustadora, nas
horas que antecederam a sua chegada ao mundo. Sabe, apenas, que o professor
de religião, com suas aulas infestadas de pecados e demônios, de lendas e
histórias aterradoras, nas quais ele não acredita, é uma tentação às brincadeiras.
Por exemplo, numa das divagações do monge sobre o inferno.
- Vejam bem, meninos. Se uma brasa de cigarro nos cai na mão, o que
acontece? Queima, provoca uma dor horrível, não é mesmo? Imaginem o que
sentiriam nossas almas ardendo no fogo do inferno!
Noel pede a palavra:
-Dom Joaquim, o senhor já viu esse fogo? Queima, mesmo?
Ser expulso de sala é quase uma rotina. Numa aula o professor se põe a
falar da Igreja Católica Apostólica Romana, de como o apóstolo Pedro a fundou,
de sua eternidade, seus preceitos, sua grandeza.
- Dom Joaquim - levanta-se Noel -fale-nos da sinagoga.
-A sinagoga é a igreja dos judeus, senhor Noel. Não é assunto de nossa
lição.
- Obrigado - diz Noel sentando-se em seguida.
E quando dom Joaquim retoma a exposição sobre a Igreja de Pedro, sempre
com a mesma empolgação, Noel interrompe-o mais uma vez:
-Me desculpe, dom Joaquim, mas o que é mesmo a sinagoga?
Repetidas expulsões de sala Noel consegue às custas da mesma pergunta,
dom Joaquim nem querendo ouvir falar da igreja dos judeus. A exemplo da
maioria dos monges do São Bento, é radical na defesa da sua religião. Ou no
ataque às outras. Odeia os protestantes, atribui à reforma pelo menos metade dos
males que afligem a Humanidade, considera Martinho Lutero uma espécie de
anticristo. Se o assunto é arte, afirma: - A pintura luteranista é profana.
Se fala de literatura, recorre a Erasmo:
- Ubicumque regnat Lutheranismus, ibi Literarum est interitus.
Ou seja, onde quer que reine o luteranismo, lá está a decadência das letras.
Noel ergue o braço:
- Dom Joaquim, fale-nos de Goethe. Alguns castigos são em latim, as
verdades de dom Joaquim são ditas em latim, os monges vivem falando em
latim. Noel convive sem problemas com esta língua morta. Chega até a valer-se
dela ao arranjar um apelido para o Felipe, funcionário encarregado da limpeza
dos banheiros:
- Como vai o nosso Felipe Rex Latrinarum?
O latim está entre as matérias em que melhor se sai durante todo o curso.
Apesar de Luís Mendes de Aguiar, professor cujas mudanças de humor - ora tão
igual aos alunos, tomando chope com eles, ora parecendo querer arrancar-lhes os
olhos - deixam a turma permanentemente tensa. Dizem que foi seminarista, mas
desistiu do sacerdócio para se tornar um homem difícil, amargurado,
imprevisível.
- Senhor Lauro, vinde à nossa mesa. Toda vez que chama um dos alunos lá
na frente já se sabe que algo vai acontecer.
- Pois bem, declinai-me pica, picae... E Lauro de Abreu Coutinho começa:
- Pica, pica, picam, picae, picae, pica. Se o aluno que declina ou outro
qualquer se põe a rir, a fisionomia aparentemente serena de Mendes de Aguiar se
transfigura:
- Filhos do demônio! Mentes sujas! Devassos!
Diz isso quase com o dedo no rosto do aluno. Depois, se acalma:
- E nada de queixas ao papai, ouvistes? Se ele vier ao Mosteiro falar
conosco, discutiremos da pena ao pau.
Quando se exalta, não mede palavras:
- Espíritos imundos! Crias de Satanás! Pelo menos uma vez esses acessos
não ficaram sem resposta. Fala-se no colégio de um aluno que quase atirou um
tinteiro em cima de Mendes de Aguiar no dia em que este o chamou de 'mente
suja". O menino parecia um louco.-"Repete! Repete se é homem!" O professor
não repetiu. Mas continuou agindo da mesma forma. Até hoje. Ao entrar em
aula, diz:
- Ave!
Ao que os alunos devem responder em coro:
- Aveto!
Numa das primeiras aulas à turma de Noel, foi logo avisando:
- Somos exigentes. Quem não souber não passa! Ah... uma coisa: não
queremos nada, absolutamente nada sobre as carteiras.
Um dos alunos, distraído, deixou ali um caderno. Mendes de Aguiar viu,
correu até a carteira, tomou o caderno nas mãos e o fez em pedaços.
- Conosco é assim!
Fala sempre no plural, somos, conosco, nós, sois. Um dia, manda que Noel
decline avena mágica, isto é, flauta mágica.
- Nossa escolha se justifica: vós tendes a boca já pronta para soprar uma
flauta.
Felizmente para os alunos, o professor falta muito, sendo substituído por
dom Pio Ziegenaus ou outro versado em latim. Até que se descobre que o difícil,
amargurado e imprevisível Mendes de Aguiar é homem doente. Um dos meninos
seguiu-o por toda a Avenida Rio Branco, da Candelária à Galeria Cruzeiro, e em
cada botequim o professor parou para tomar um trago. Sabe-se agora que o
homem está sendo devorado por dentro. Segundo uns, pela bebida. Segundo
outros, os tragos são ingeridos na esperança de aliviar a dor causada por mal
maior que lhe corrói as vísceras. Quando voltarem das férias de 1926 para 1927,
matriculados portanto no quarto ano, Noel e seus companheiros de turma já não
o encontrarão: Mendes de Aguiar estará morto.
Nove - que para o incontentável professor vale o mesmo que 10 - é a última
nota conferida por Mendes de Aguiar no exame final de latim a Noel. No que é
acompanhado pelos outros examinadores da banca nomeada pelo Pedro II. Aliás,
os resultados por ele alcançados em dezembro de 1926, médias excelentes,
inclusive o 10 que lhe dá, feliz, Gonçalo Garcia de Mattos, serão os melhores de
todo o seu curso. Nenhuma segunda época, passagem do terceiro para o quarto
ano sem ao menos um susto. Hélio, que repetia o primeiro ano, também se sai
bem, aprovado em tudo. Chegam as férias. E pelo menos até março ficará entre
os moradores do bangalô a impressão de que os meninos se reconciliaram para
sempre com os estudos.
Chalé Modesto de Noel Rosa
Rua Teodoro Silva – Anos 30
Capítulo 6
O ENCANTO DA MÚSICA
Canções de simples amas-secas, ninando crianças; coisas sem nexo,
brotadas da inspiração musical improvisada; ou cantos de pássaros, de pardais,
de cigarras; ou mesmo a rude música urbana, como os rumores desconcertantes
dos bondes, carroças, pregões - tudo isso me encantava.
entrevista ao Jornal de Rádio

No bangalô pouco pára. Prefere passar as manhãs à sombra de uma das


árvores do chalé, ainda teimando em animar com seu ritmo as aulas de tabuada
da mãe: "dois vezes um... dois, dois vezes dois... quatro". Quanto às noites, não
foram mesmo feitas para se ficar em casa. Já agora - quatorze para quinze anos -
o violão, as canções, a música enfim é prazer de todos os momentos. "Qualquer
espécie de música..." A dos realejos e a dos vendedores que passam com as
cantigas de seus negócios. A que sai do velho gramofone do pai e a que boêmios
cantores rumorejam em noites de lua. São noites que ele realmente começa a
percorrer, pinho no peito. Noites, porém, de desassossego para Martha, que
gostaria de vê-lo na cama mais cedo. Música, afinal, que aprende em todo tipo
de lição, com os seresteiros que eventualmente conhece, nos métodos de violão,
em jornais de modinha, nos saraus Caseiros ou com alguns exímios violonistas
que, durante todo o ginásio, vai conhecendo pela cidade.
Mais crescido, já nos últimos tempos de São Bento, freqüentará com o
irmão e o amigo Glauco Vianna O Cavaquinho de Ouro, na Rua da Alfândega,
onde se reúne a melhor gente do violão brasileiro desta década. Freqüentar
talvez não seja bem exato, pois os três ficarão sempre meio à distância de
Quincas Laranjeiras, que ali dá aulas de violão por música, e de outros virtuoses
como João Pernambuco, que todas as tardes aparece para tocar com Quincas.
Farão o mesmo em relação aos violonistas de uma loja rival, A Guitarra de Prata,
onde pontificará o grande José Barbosa da Silva, o J.B. Silva, ou simplesmente
Sinhô, o Rei do Samba. E também em outras casas, a Carlos Wehrs, a Ao
Pingüim, a Carlos Gomes, a Edison, a Vieira Machado, a Phoenix, importantes
pontos em que a música popular-em forma de discos, partituras, aulas de violão -
será tocada, difundida e comercializada cada vez mais.
Ouvindo e vendo, eis como Noel aprende. É mesmo um autodidata. Não se
pode negar que foram muito úteis os primeiros ensinamentos do pai e da mãe.
Muito útil, também, a experiência com o bandolim. Mas é por conta própria,
pela persistente consulta aos métodos, pelo ver e ouvir quem sabe mais, que se
fará íntimo do violão. Aos dezesseis anos, solando ou acompanhando, já poderá
considerar-se bom violonista.
Esse autodidatismo, como foi dito, não impedirá que alguém ainda venha
um dia a se orgulhar de ter sido "professor de Noel". Como Humberto Francisco
de Souza, o Betinho, um dos muitos amigos que ele faz em Vila Isabel em nome
das afinidades musicais. Amigos chegados, fiéis, que jamais se afastarão dele, o
que quer que o futuro lhes reserve.
Betinho é marceneiro, ótimo sujeito, alma boêmia. Ainda será companheiro
de Noel em namoros de portão, cada qual com uma irmã. Só que um se amarrará
e o outro não. Um marceneiro de mãos delicadas, amante das valsas. Um dos
que poderão dizer que ensinaram alguma coisa a Noel. Já Fausto Josino de
Oliveira, o Cobrinha, é padeiro. Ou melhor, entregador de pão, tarefa que
cumpre bem cedinho, antes que o sol surja. Por isso não é muito de serenatas, de
perder horas de sono. Aprende violão com Noel, no chalé, as aulas começando
assim que entrega a última bisnaga. José Sabiá, negro, alto, magro, tocador de
cavaquinho, cantador de emboladas, não ensina nem aprende com Noel. Faz-lhe
companhia, apenas. Como os irmãos Araújo, Arnaldo e Antônio, filhos de um
alfaiate português e eles próprios iniciando-se cedo no ofício. Conheceram Noel
quando os três, vestidos de mulher, batom, ruge, sapatos altos, dançavam no
estribo de um bonde num domingo de carnaval. Tinham nove, dez anos. Jamais
deixarão de ser amigos. Antônio não é de música, mas Arnaldo ainda vai tentar
acompanhar Noel nas aulas com Betinho. Até que um dia, constatando que Noel
já deixou o professor para trás, enquanto ele, Arnaldo, continua no mesmo lugar,
fará do violão peça decorativa na parede de seu quarto.
São muitos os amigos, violonistas, seresteiros, gente que gosta de música.
Impossível enumerá-los todos. Glauco Vianna virá mais tarde. Da idade de
Hélio, da turma deste no São Bento. Será, dos três atentos observadores de
Quincas e João em O Cavaquinho de Ouro, o que realizará mais plenamente seu
sonho de violonista(1).
1. Glauco Vianna chegaria a gravar vários discos como solista na Victor, Odeon e Parlophon, o primeiro deles em 1928. Quase sempre intérprete de suas próprias composições, cumpriria
carreira fonográfica de mais de trinta anos.

Também não é possível precisar quando o executante começou a conviver


com o compositor. É certo que as primeiras letras serão feitas para melodias
alheias, paródias com que divertirá os colegas no recreio do São Bento. Mas o
próprio Noel fará publicar daqui a alguns anos aquela que, até prova em
contrário, ficará como sua primeira composição, música e letra: Cumprindo a
Promessa(2).
2. Jornal de Modinhas, de um número de 1929-O próprio Noel assinalou na margem de um recorte da letra publicada o ano de sua criação: "Feito em 1925".
Eu já jurei ir à Penha, meu bem!
Juro, eu não posso faltar
Pois tenho medo que a santa
Então venha
Zangada me castigar

Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade

Pois desta vez


Eu jurei , não é garganta,
Que quando chegasse o mês
Ajoelhava aos pés da santa

No ano passado
Eu bem quis ir visitar
Quem meus pecados
Sempre soube perdoar

Que crueldade!
Vou brigar com meu amor
Pois pela dificuldade
É que a promessa tem valor

Nas muitas e sempre bulhentas andanças do menino Noel por sua cidade,
nada mais importante que o bonde. Um dia, já não tão menino, vai homenagear,
em forma de samba, este precário e cambalçante veículo que percorre
ruidosamente as ruas do Rio:
E o bonde que parece uma carroça?
Coisa nossa, muito nossa!

Por enquanto, porém, bastam-lhe as viagens, o prazer de apurar suas


piruetas no estribo, de usar o balaústre como ponto de apoio de seus rodopios.
Tudo a cinqüenta, sessenta quilômetros por hora, espécie de salto sem rede. Os
amigos, do São Bento e de Vila Isabel, impressionam-se com essa habilidade do
ágil menino de circo Noel Rosa.
Mas o bonde não é apenas o trapézio de suas acrobacias. É também o
picadeiro de suas graças imaginativas, debochadas, marotas, inoportunas,
obscenas. Quando não está no balaústre, o espaço final do primeiro carro, mais
conhecido por "cozinha", é o preferido. Ali, viajando quase sempre de pé,
costuma apoquentar os passageiros com seus arremedos de ventríloquo, ou
provocar os que estão no ponto, quando o bonde pára: - Veado!
Todos olham para a "cozinha". Noel emenda:
- Só chamei um!
Vez por outra promove concursos inusitados, desenhando um pênis gigante
numa folha de cartolina. A cada detalhe do desenho corresponde um número que
repete em pedaços de papel, dobrando-os e colocando-os dentro do quepe. Em
seguida, pede que cada colega tire um e vai cantando, alto, o "prêmio" que cabe
a este ou àquele: - Dacorso, número cinco! Fica com os pentelhos.
Outro pedaço de papel:
- Moacyr, três! O cabresto... Ou ainda:
- Alceu deu mais sorte... quatro! Leva os bagos.
Isso aos gritos, para que todos os passageiros ouçam. Em outras ocasiões,
bem pode preceder o sorteio com bocageanos poemas que ele mesmo cria para
alardear as qualidades o prêmio em disputa:
O caralho é o pai de todos os mortais
Consolador de pombas e bocetas
Alma dos eus e coração das gretas...

Quanto mais os amigos olham, quanto mais se encabulam os passageiros,


mais ênfase presta à declamação:
Foi com quem sua mãe sempre se viu
Ele é meu pai, seu pai, pai do soneto
Pai da puta que o pariu!

Nas salas de aula, imita condutores a exclamar o seu lusitano "faz favor",
manipula manivelas imaginárias, fabrica estranhíssimas maquininhas sobre a
carteira, canaletas de cartolina que fazem às vezes de trilhos, bilhas que se
transformam em bondes que ele mesmo dirige. Mas dirigir bondes pode,
ocasionalmente, converter-se em algo real. Basta fazer amizade com os
motorneiros que circulam pela Praça Mauá, Lourenço, Nazareth Bigodão,
Nascimento. Bigodão é um português risonho, simpático, que não se importa que
o chamem pelo apelido. De todos, porém, Nascimento é o mais camarada.
Mulato forte, um e oitenta de altura, Noel tanto pede que ele o deixa manobrar o
bonde no ponto final.
- Olha a direita!
As brincadeiras que o bonde inspira nem sempre são tão inocentes.
Principalmente agora que a moda importada da América começa a encurtar as
saias da mulher carioca. Antes, e Noel bem se recorda, usavam-se saias muito
abaixo dos joelhos, quase na altura das canelas. Saias que tudo escondiam. Hoje,
e Noel bem observa, sobem-se as bainhas, revelam-se as pernas, tudo está mais à
mostra. O menino percebe que o estribo do bonde é lugar estratégico de onde,
num simples virar de olhos, devassam-se intimidades de passageiras
descuidadas. E passa a viajar ali.
Mais tarde, o voyeur Noel dá lugar a um audacioso pingente que prefere a
ação à visão. É quando vê mulher bonita sentada na extremidade do banco, saia
curta, distraída. Toma o bonde perto do colégio, põe-se de pé no estribo, ao lado
da mulher, e espera que o motorneiro dê a partida. Assim que o veículo ganha
velocidade, aproxima-se sorrateiramente, mete a mão coxas acima da mulher e
salta, o bonde já correndo. A vítima, apavorada, grita: - Socorro! Um louco!
No segundo semestre de 1926 O Mamão ainda circulará clandestinamente
sob as carteiras, divertindo uma turma que constata o caráter cada vez mais
irreverente da linha editorial do jornalzinho. Com uma periodicidade que o
próprio Noel estabelece em função de ter ou não o que dizer por escrito (por esta
época ele já prefere a música, as paródias, como veículo do seu humor), O
Mamão faz o mesmo sucesso do ano anterior. Só que não por muito tempo mais.
Como também já não durarão muito as brincadeiras de que é vítima dom
Joaquim de Luna em suas apaixonadas aulas de religião.
As duas coisas - o fechamento de O Mamão e o fim das provocações de
Noel a dom Joaquim - estão interligadas. É que em seu último número o
jornalzinho traz, entre anedotas imorais, croniquetas apimentadas, versos chulos,
textos enfim que Noel criou ou colheu entre o que há de mais impublicável, uma
caricatura de dom Joaquim. E logo na primeira página. A identificação do
monge se faz muito menos pelos traços de Noel, imprecisos, não muito
parecidos com o original, do que por outros detalhes. Por exemplo, frases que
habitualmente dom Joaquim emprega em aula quando repreende ou mesmo pune
um dos alunos: - Lembrem-se, eu não castigo ninguém. Vocês é que se castigam.
Ou quando tenta que os alunos parem de conversar em sala:
- Atenção, atenção, isto não esta no manual!
As frases aparecem saindo da boca de dom Joaquim na caricatura. Mas o
que realmente torna o personagem do desenho inconfundível é sua mão direita:
apenas dois dedos. Com eles, o anular e o polegar, dom Joaquim segura o seu
lápis enquanto diz as duas frases.
Por um descuido qualquer, este número de O Mamão vai parar nas mãos do
Gouvêa que o entrega a dom Meinrado. O reitor manda chamar Noel. Talvez
finja não ter lido as críticas ao colégio contidas numa das matérias. Ou não
entender as piadas tão diferentes dos chistes de A Alvorada. Nem toca nesses
assuntos. Limita-se a falar do desenho, do quanto de cruel há nele. É no mínimo
falta de sensibilidade brincar com o defeito físico dos outros. E logo o bondoso
dom Joaquim...
Os alunos têm razão quando dizem que uma reprimenda de dom Meinrado,
por mais branda que seja, é muito pior que qualquer castigo aplicado pelo
Gouvêa ou um dos professores. Dom Meinrado sempre atinge o alvo. Noel
promete deixar dom Joaquim em paz. E fechar de vez O Mamão.
Foi em fins de 1926 que um navio de guerra italiano aportou em Santos,
dele desembarcando, para não mais voltar, o capitão-tenente da Marinha
Carmine Carbone. Justamente nesta época, em que seu país militariza-se a olhos
vistos, Carbone decide deixar para trás a farda e tentar nova vida em terra
brasileira. Dizem que saiu do navio como quem vai conhecer a cidade, suas
praias, sua gente. Irrepreensivelmente uniformizado, subiu ao convés, dirigiu-se
ao portaló, olhou na direção da popa, fez continência à bandeira, desceu, sumiu.
Ao que consta, rumo a São Paulo, de onde tomou um trem noturno para o Rio.
Como ou por que veio bater às portas do São Bento não está bem explicado.
Talvez viesse a convite de seu velho amigo, dom Matheus Roccati. Ou talvez
trouxesse uma carta de recomendação dos monges beneditinos de Monte
Casino(3), em cujo colégio estudou antes de entrar para a Marinha.
3. Mosteiro de Monte Casino ou Mons Casinus. Situado entre Roma e Nápoles, é considerado o berço da Ordem Beneditina. Nele se encontra o túmulo de São Bento de Nursia, fundador da
ordem.

O fato é que veio pedir emprego a dom Meinrado, qualquer emprego, sem
maiores exigências quanto à função ou salário. O reitor logo viu estar diante de
um homem culto, conhecedor de matemática, química, física, falando vários
idiomas, incluindo latim e grego, e em vez de contratá-lo como inspetor de
disciplina, como chegou a pensar, fez dele professor.
Se a história se passou mesmo assim - a deserção, a viagem para o Rio, a
chegada ao Mosteiro, a conversa com dom Meinrado - também não se pode
precisar. O importante é que Carmine Carbone será o único novo professor que
os quartanistas de 1927 encontrarão ao voltarem de férias no dia 4 de março.
Lecionará latim e química, nesta cuidando das aulas práticas, enquanto Piragibe
se ocupa das teóricas.
Guarda sua farda para sempre. Sem jamais aceitar o rótulo de desertor. O
que ele fez - repetirá muitas vezes - foi uma escolha. Detesta Benito Mussolini, o
regime fascista que se instalou na Itália há quase cinco anos e mais ainda todo
esse pensamento belicoso que pode vir a destruir seu país. Daí ter vindo para o
Brasil. E a não ser que a Itália mude, nunca mais voltará(4).
4. Carmine Carbone de fato jamais voltaria à Itália. Morreu no Rio, ainda como professor do São Bento, a 16 de julho de 1939, meses antes de ter início a guerra que tanto temia pudesse
destruir seu país.

Toda a turma gosta dele. Noel, então, diverte-se com seu sotaque, seus
pequenos trejeitos, suas histórias curiosas que não se demorará a descobrir serem
colhidas nas páginas do Eu Sei Tudo. Noel, o ventríloquo, senta-se perto da
janela nas aulas de química para dali, sem mover os lábios, emitir um som
metálico, meio cantado.- - Carbone... Ó Carbone!
O "ó" bem aberto, prolongado, como se fosse uma sirene. Carbone vira-se,
estão todos quietos. Um ou outro faz força para não rir.
- Carbone... Ó Carbone!- repete Noel assim que ele se volta.
Em quase toda aula do ex-capitão-tenente italiano, pede para "ir lá fora".
Vai e geralmente não volta. Uma cena que se repete.
- Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo.
Carbone percebe que as escapulidas de Noel são crônicas. Com seu sotaque
ainda carregado, a voz grossa e cantante, muda de tática: - Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo... para o gabinete do dom reitor.
Dom Meinrado o repreende, diz que ele está crescido demais para estas
coisas, não é justo chamar seu Medeiros e dona Martha para dizer-lhes que o
filho não quer crescer. De volta à sala de aula, recomeça: - Carbone... ó
Carbone!
No recreio, acompanhando-se no violão, canta para os colegas a paródia
que acaba de fazer sobre a melodia de Yes, Sir, That's My Babe(5): 5. Escrita em 1925 por Walter
Donaldson e Gus Kahn, a canção foi um dos maiores sucessos da música popular americana dos anos 20.

Quando
Pelas aulas ando,
Vai me perguntando:

E imitando a voz de Carbone


"Que quer o senhor?"

Voltando à própria voz:


Meu Deus,
Se o homem me chama,
Preparo logo a cama
Com o dom reitor

Por último, imitando o som de um trombone:


É gozado,
Ó Carbone,
Seu Trombone
Desafinado
Mas nem tudo é provocação e irreverência. Há, por exemplo, a prova
mensal sobre os halogênios. Carbone sorteia o ponto: bromo. Os alunos devem
escrever tudo o que sabem a respeito, número, peso atômico, as propriedades do
elemento sorteado. Têm quarenta minutos para isso. Dois dias depois, maço de
provas na mão, o professor entra em sala, faz a chamada, pede silêncio e diz,
segurando uma das provas: - Faço questão de ler bem alto, para que todos
ouçam, a extraordinária dissertação que o senhor Noel de Medeiros Rosa nos
fez.
E lê. Ali está tudo sobre o assunto, número, peso atômico, propriedades, tal
como ensinam os compêndios de química. Sem erros nem omissões, como
queria Carbone. Só que em versos. Métrica e rimas perfeitas, prosaico bromo
transformado em poema, uma simples prova mensal destinada a ficar como um
dos mais originais e comentados textos já produzidos nas salas do colégio.
Naturalmente, agraciado com um 10(6).
6. A dissertação em versos sobre o bromo seria para sempre lembrada não só pelos colegas de turma de Noel, mas por todos os seus contemporâneos e muitos de seus sucessores no Ginásio
de São Bento. Guardada durante anos nos arquivos do Mosteiro, a prova, lamentavelmente, se perdeu.

Das muitas descobertas que Noel vai empreendendo - mundos que se abrem
diante de seus olhos atentos, emoções que mexem com seu espírito já inquieto -
nenhuma o fascina tanto quanto as casas onde é possível comprar, por alguns mil
réis, os carinhos de uma mulher.
Sua iniciação sexual deu-se cedo. Aos doze, treze anos, idade em que
geralmente os meninos querem mas não ousam, já ousava até demais. Por
iniciativa própria ou na trilha dos rapazes mais velhos da Praça 7 de Março ou
do Ponto de 100 Réis, já andava enredado com as raparigas que, em troca de
pouco, entregavam o corpo ao prazer apressado e desconfortável dos terrenos
baldios, dos capinzais, do muro do açude da Fábrica Confiança, onde quer que
fosse possível.
Mas só agora, aos quinze anos, Noel descobre o amor menos apressado e
menos desconfortável oferecido pelas pensões de mulheres. Será com algum
espanto e muita inveja que os amigos de sua idade o ouvirão narrar, com
detalhes, suas visitas a esses lugares, seja uma casa do Mangue, seja uma alfurja
dos arredores da Estação de Pedro II. No São Bento ou no bairro, sente
indisfarçável satisfação ao relatar tais experiências, façanhas de conquistador de
bordel. Os amigos jamais se esquecerão dessa aparente precocidade(7).
7. Almirante refere-se a esta precocidade - e às gabarolices de Noel - na segunda edição de No Tempo de Noel Rosa (página 187). Depoimentos de amigos de bairro e de contemporâneos de
São Bento ajudam a compor o quadro de suas primeiras aventuras amorosas, de suas visitas às pensões de mulheres e de como gostava de se exibir a respeito.

Inútil tentar saber através de quem Noel entrou pela primeira vez numa casa
dessas. Pode ter sido levado por um amigo de Vila Isabel, como pode ter sido
atraído pelos sorrisos da bela, sinuosa e perfumada Santinha. Moça de seus vinte
anos, mora numa casa de frente de rua, duas janelas e portão de ferro, na
Visconde de Abaeté, bem no meio do caminho entre Theodoro da Silva e o
Boulevard. Ela, os pais e cinco irmãos, tudo gente direita e trabalhadora. Quando
a moça sai, de noitinha, metida num vestido curto e justo, o Ponto de 100 Réis
inteiro lhe põe os olhos. É dessas pequenas que, ao passarem, deixam um rastro
de sugestões. Até que se descobre que seus passeios noturnos não são
propriamente passeios. E que o apelido carinhoso que ganhou dos pais há muito
tempo virou ironia: Santinha peca todas as noites numa pensão de mulheres da
Rua Visconde de Itamarati, no Maracanã, na qual o garoto Noel é um dos seus
clientes, senão dos mais assíduos, pelo menos dos mais jovens.
Mesmo sem chegar a ser um habitue, um desses fregueses que as mulheres
consideram "de casa" (mesmo porque o dinheiro é curto demais para isso), Noel
já é freqüentador dessas pensões à época em que cursa os últimos anos do São
Bento. De certa maneira, jamais deixará de ser até o final da vida. Sente-se bem
nesses ambientes, aprende a aceitar os seus códigos, não exige mais do que as
mulheres lhe podem dar, nem espera mais do que seus contados níqueis podem
comprar. Será sempre assim. Ou quase sempre. Já adulto, trocará a gabarolice
por certo retraimento, já não se jactará dessas aventuras tantas vezes repetidas.
Mas, por enquanto, ainda em fase de descobertas, é um falastrão.
No recreio do São Bento, a um grupo formado à sua volta, narra com versos
seus e a melodia de Gigoletté(8) uma de suas aventuras: 8. Canção de Franz Lehár, sucesso internacional na época.

Fui uma vez


À chupadeira
Para que ela me chupasse o caralho

Que putaria!
Ela queria
Que eu lhe pagasse adiantado o trabalho.

Então eu disse:
"Por favor, meu coração,
Caralho na boca,
Dinheiro na mão."

E ela então, afinal,


Se conformando,
Lentamente o meu caralho foi chupando.

Paródias sobre o mesmo tema constituem a maior parte do seu repertório de


agora. E também do ano que vem - seu último no São Bento - em que
aproveitará o sucesso de A Casinha da Colina(9) para contar com a mesma
melodia outra história inspirada nas casas do Mangue: 9. Canção de Pedro de Sá Pereira e Luís Peixoto. Gravada por
Vicente Celestino em 1928, seria também registrada em disco no ano seguinte por Gastão Formenti e Nina Nabuzzi.
Você sabe de onde eu venho?
É de um rendezvous que eu tenho
Lá na Pinto de Azevedo.
É uma casa esculhambada,
De mulher toda arrombada,
Horrorosa de dar medo...

É sem dúvida um Noel muito diferente o que Arlinda reencontra neste


1927, quando vem ao Rio para que seu filho nasça aos cuidados do Dr. José
Rodrigues da Graça Mello. Ela e o marido Fábio hospedam-se no bangalô.
Surpreendem-se com um Noel tão atirado, tão independente e sobretudo tão
boêmio. Ficam maravilhados. Acompanham os malogrados empenhos de Martha
para que o menino estude mais e saia menos, deliciam-se ao conhecer cada
truque de que se vale para trocar o dormir cedo por mais uma noitada. Martha
esconde-lhe as roupas, zanga, suplica. Inútil. Quando vai ver, ele já saiu. Com
que roupa? Com a de Neca, bainha da calça dobrada, pano franzido na cintura.
Preocupa-se com sua saúde, com o fato de raramente ingerir sólidos. De que
adianta a superalimentação, o mingau, o chocolate com gema de ovo, se tudo
isso se perde numa noite em claro? Mesmo achando que Martha tem razão,
Arlinda e Fábio não podem deixar de sentir certo deslumbramento. Duas, três da
manhã, ouvem bater na janela do seu quarto. Uma voz sussurrante diz lá de fora:
- Minha Dinga, sou eu, o Noel. Abre a porta pra mim...
Arlinda levanta-se, vai abrir a porta que Martha trancou. Arregala os olhos
para ver Noel tirar os sapatos, ajoelhar-se, caminhar até seu quarto assim
mesmo, de joelhos, para que a mãe não o veja. Com muito cuidado, apoia nas
costas o violão do pai que o acompanha sempre.
Fábio, bem-comportado farmacêutico de São Paulo, tem por Noel grande
admiração. Por sua inteligência, sua música, mas muito especialmente por seu
jeito solto, livre. Um sentimento que mistura simpatia e algumas gotas de inveja.
Aliás, o mesmo que Noel vai inspirar pela vida afora a todos bem-comportados
que o conhecerem de perto.
Um dia, próximo ao nascimento do filho, Fábio vai à cidade, paga vinte mil
réis por um violão e o dá de presente ao "sobrinho" boêmio. O primeiro violão
de Noel.
Nestes anos de ginásio, raramente se separa do uniforme caqui. Até por
uma questão de economia. Desde que voltou de Araçatuba, há quase quatro
anos, Manuel Garcia de Medeiros Rosa não mais se aprumou. Cavou um
emprego aqui, outro ali, chegou a exercer por algum tempo as funções de "fiscal
do bucho"(10), sem no entanto firmar pé.
10. Funcionário municipal que fiscalizava o comércio de miúdos de boi nas feiras livres.

A escolinha não rende o bastante para que a família luxe, entendendo-se por
luxo a camisa de algodão, a calça de casimira, o sapato fantasia dos meninos.
Assim, o uniforme do São Bento, renovado a cada começo de ano, é forma de
poupar (os primeiros ternos de Noel serão feitos pelos Araújos, na
camaradagem, com cortes de Palm Beach mandados de presente por
Eduardinho). Mesmo a família morando numa casa mais nova e confortável que
o chalé, e contando com a mesada que Rita recebe do filho, a tormenta ainda não
passou de todo para os Medeiros Rosa. Motivo pelo qual Neca afasta-se de casa
mais uma vez, agora com destino a Bica de Pedra, onde espera ter, ao lado do
cunhado, um pouco mais de sorte. Lá se ocupará da contabilidade de casas de
negócio e da construção de uma estrada.
Por muito tempo, desde aquele primeiro dia de aula em 1923, quando se viu
enfiado em dólmã, culote, quepe e perneiras, a farda caqui tem sido a única
roupa de Noel. Ela e o uniforme branco para dias de festa. O mesmo acontece
com Hélio. Seja para ir à aula ou à missa, visitar um parente, ver um filme no
Smart, seja para as serenatas que tanto amofínam Martha, Noel raramente se
separa do uniforme. De tal modo que, daqui a tempos, quando se falar no
adolescente que ele é hoje, os moradores do bairro dirão: - Me lembro.
Magrinho, queixo torto, sempre com a farda caqui.
Não liga quando alguém o chama de "gafanhoto sem bunda", nome que os
garotos de outros colégios deram aos alunos do São Bento por causa das iniciais
GSB que trazem no emblema. Dificilmente irritam, encabulam, constrangem,
fazem perder a bossa ao menino Noel. Se alguém lhe põe um apelido, perde
tempo: logo arranjará outro de volta, transformando o agressor em agredido(11).
11. Não há fundamento na tão difundida versão de que Noel teria carregado, em sua passagem pelo São Bento, o apelido de "Queixinho". Nenhum de seus contemporâneos entrevistados
pelos autores, num total de quinze, lembra se disso: "Ninguém ligava para o defeito dele", assegura o Dr. Lauro de Abreu Coutinho, médico radiologista, primeiro aluno da turma, quatro anos colega de
sala de Noel. "Apelido?" - surpreende-se o almirante Antônio Fernandes Lopes, da mesma turma - "Nunca houve isso." César Dacorso Netto, engenheiro e professor de matemática, arremata:
"Gostávamos demais dele para isso. Além do mais, era o nosso líder." O general Moacyr Mattos de Oliveira, o companheiro mais chegado: "Noel é que vivia mexendo com todo o mundo."

Ele é quem gosta de rebatizar os colegas. Como no dia em que vem subindo
a ladeira do São Bento ao lado de Hélio Lobo. Por ter faltado às aulas de ontem
(e de anteontem também), esgueira-se pelo paredão para não ser notado por dom
Meinrado. Vai na ponta dos pés quando o reitor pega-o pela gola.
- Venha cá, seu Noel. Faltando às aulas, hein?
Dom Meinrado inicia em seguida um de seus habituais sermões, a fala
mansa mas firme, aquele jeito de envolver os alunos sem os destratar. O monge
pede que Hélio Lobo se aproxime. Coloca os dois meninos frente a frente e diz: -
Mire-se no Hélio, Noel. Mire-se no Hélio e veja o que é um aluno exemplar,
bem-comportado, incapaz de um deslize.
Noel faz que sim com a cabeça e dom Meinrado manda que os dois se
dirijam à sala de aula. Noel e Hélio Lobo caminham lado a lado, calados, até a
cantina do Al tino. Pedem dois refrescos. A certa altura, Noel passa a olhar fixo
nos olhos do colega Hélio encabula-se. Noel continua olhando-o nos olhos. Cada
vez mais embaraçado, o outro protesta: - Que diabo, Noel! Por que está me
olhando assim?
- Estou me mirando em você, Salammbô... virgem de Cartago!
Os cinemas exibiram semana passada o filme Salammbô, os olhos
lânguidos de Jeanne de Balzac pondo coisas na cabeça dos homens(12).
12. Salammbô, filme de Pierre Marodou baseado no romance de Gustave Flaubert, foi produzido em Viena em 1925 e exibido no Rio dois anos depois. Além de Jeanne de Balzac, estavam
no elenco Rolla Norman e Raphael Liévin.

De agora em diante, Hélio fica sendo "Salammbô".


Do mesmo modo, Antônio Fernandez Lopez, os dois sobrenomes
paroxítonos, passa a ser "Fernandes Lopes", o acento na última sílaba. Para
indignação dele, que acabará indo a cartório mudar o nome para Antônio
Fernandes Lopes, os esses substituindo os zês, garantia de que ninguém mais o
chamará daquele jeito.
Já Alceu de Miranda é simplesmente "Pinguilim", para quem Noel compõe
uma buliçosa quadrinha:
Pinguilim que bate, bate
Pinguilim que já bateu
Os pentelhos cá de baixo

Faz uma pausa, aponta para o sexo e arremata:


Vêm da bunda do Alceu!

Manuel Jansen Muller será "Mané Figueiredo". Por quê? Nunca saberá. E
Hermenegildo de Barros Filho fica sendo mesmo o "Ministrinho". E por razões
óbvias: o pai é ministro do Supremo Tribunal, homem importante, o nome
saindo todo dia nos jornais. Dos muitos alunos do São Bento, é um dos que mais
dinheiro leva no bolso. Será, de bom grado, patrocinador dos programas mais
dispendiosos de Noel. Embora seja da turma de Hélio Rosa, é com Noel que se
identifica mais: - Vamos, Ministrinho?
- Aonde?
- Lá.
O "lá" significando uma daquelas casas do Mangue que Noel, para
perplexidade de Hermenegildo, conhece tão bem. Os dois vão de uniforme,
livros. O filho do ministro treme de medo, mas concorda em pagar as despesas.
Os sanduíches, as cervejas, as mulheres, tudo isso por sua conta. Noel se
encarrega da boa conversa e da música. Dom Meinrado, que parece saber de
tudo, no dia seguinte interpela o turbulento desencaminhador de suas ovelhas: -
Noel, Noel. ..Já que não pode deixar de pecar, por que não peca sozinho?
Capítulo 7

A MORTE DE PERTO

Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta
Cor de Cinza

É uma casa grande, as portas e janelas laterais dando para uma comprida e
estreita varanda. Parede colada ao armazém da esquina de Theodoro da Silva
com Silva Pinto, fica bem em frente ao bangalô. Mas só neste fim de tarde, ao
voltar do São Bento, Noel parece notar que tal casa existe. No portão, brincando
com duas crianças, vê uma moça bonita. Morena, cabelos curtos, olhos
castanhos, redondos, brilhantes. Quantos anos terá? Noel vai saber depois que
ainda não fez quinze.
Desde esta tarde, a moça é o objeto de suas atenções. Mudou-se para ali há
poucos dias, mas os rapazes que fazem ponto na esquina já colheram
informações mais ou menos precisas para satisfazer a curiosidade de Noel.
- O nome dela é Clara - diz alguém. Clara Corrêa Netto. É a mais nova dos
quinze filhos de outra Clara, viúva de Serafim Corrêa Netto, vidraceiro que um
ataque cardíaco matou há alguns anos, quando moravam todos na Rua Theofilo
Ottoni, no Centro. Até hoje a família permanece unida. A não ser a filha mais
velha, Julieta, já casada; o segundo, também Serafim, que se casou, enviuvou e
se casou de novo; e Maria que morreu pequena; ajeitam-se todos aqui, na casa
em frente ao bangalô, à volta da figura matriarcal de dona Clara: os filhos
Alfredo, José, Manuel, Álvaro, Alberto, Lúcio, Antônio, Julião, Ananias (nome
de homem, mas na verdade a mais velha das moças depois de Julieta) , as
gêmeas Guilhermina e Marcolina. E Clara, a Clarinha. As crianças que Noel viu
com ela são os sobrinhos Edgar e Irene, que dona Clara, fazendo valer sua
autoridade, não deixou Serafim levar para a companhia da segunda mulher (ela é
do tempo em que toda madrasta era inevitavelmente uma megera).
Mas é apenas em Clarinha que Noel está interessado. Não importa que entre
e saia muita gente da casa, que aos domingos se sentem todos na varanda, que o
portão seja ponto de reunião de tantas pessoas, irmãos, irmãs, parentes em visita,
vizinhos. Noel só tem olhos para Clara.
Um dia percebe que é correspondido. Sempre com o uniforme do São
Bento, senta-se na varandinha do bangalô, toma o violão e canta coisas de amor.
Talvez Clara não o ouça do outro lado da rua, mas sabe, de alguma forma, que
são para ela as canções de Noel. São tantos os irmãos e irmãs, e é tão severa a
vigilância sobre Clara, que se torna quase impossível uma aproximação. Bem
que Noel tenta. Ouviu dizer que a moça estuda num colégio do bairro. Mas qual?
E a que horas? A troca de olhares, um ou outro sorriso, nada mais lhe resta.
- Os irmãos dela não deixam ninguém chegar perto - contam-lhe.
São todos homens feitos, trabalham fora), dividem entre si as despesas da
casa. À falta do pai, zelam com certo rigor pelas irmãs solteiras. E de maneira
muito especial por Clarinha, a caçula.
Por algum tempo Noel nada pode fazer além de contemplar à distância a
beleza de Clara. Se ela ao menos pudesse ouvir-lhe o violão...
Embora se fale muito em morte no Mosteiro - nao a morte fim de todas as
coisas, mas o começo de nova existência, melhor que esta e portanto a ser
encarada como graça divina - Noel é todo vida neste 1927. Um garoto bem mais
alegre do que o ensimesmado poeta que, aos treze anos, seguindo os passos do
avô, escreveu um de seus primeiros e ainda imperfeitos versos a que deu o título
de "Desilusão":
Quando começou
A nossa amizade,
Eu só te pedia
Sinceridade.

Poderás te esquecer
Do meu sofrer;
Pra fugir ao tormento,
Eu prefiro morrer.

Agora, tudo desfeito


Pela tua ingratidão,
Somente guardo no peito
Mais uma desilusão.

Se meu padecer
Te trouxer venturas,
Serei venturoso
Entre amarguras.

Mas não prefere morrer o Noel de agora. Não se deixa contagiar pelo
ambiente demasiado grave anuviado do colégio. Há muito de absurdo naquela
seção com que A Alvorada tenta convencer seus leitores de que morrer cedo é
um privilégio. Nenhum dos alunos, na verdade, acredita nisso. Respeitam mas
não compartilham da devoção dos monges a dom Pio Hemptinne beneditino
morto em 1907, aos 27 anos, e até lembrado por aqueles que lhe conhecem a
história marcada de muitos padecimentos e espantosa conformação. Foram suas
estas palavras: "Quão doces são as alegrias do sofrimento. Quão feliz é o
isolamento da cruz!
Nem morte, nem sofrimento. Noel prefere a vida, repleta de música e
esperança. Mesmo tendo O Mamão deixado de circular, não cessa as
brincadeiras com os deboches, as fustigadelas a pose de Piragibe, a tata melíflua
de certos monges, à surdez do Barreto, à colérica religiosidade de dom Joaquim,
ao sotaque de Carbone.
É mesmo um líder entre os companheiros. Convence muitos deles a se
desviarem do caminho do colégio, a jogarem futebol em Vila Isabel em vez de
assistirem à aula de Passos de Miranda. Mesmo sabendo que são atraentes suas
lições de história universal. Os mais atirados como ele continuam deixando-se
arrastar para o Mangue. O dinheiro é curto? Não tem importância. Sempre é
possível ficar por ali, num daqueles cafés de esquina, Noel tocando violão,
cantando, deixando impressionados os músicos do lugar, muitos dos quais
pedem-lhe que conserte seus pobres versos.
- Uma letra por uma cerveja! - propõe ele.
Às vezes vai ao poeirinha da Praça 11 de Junho onde César Dacorso Netto,
pianeiro estilo honky-tonk, faz música de fundo para os filmes de Carlitos, Chico
Bóia, Harold Lloyd, Ben Tur-pin, Buster Keaton, Buckjones, Pola Negri,
Valentino. É assim que ajuda o pai nas despesas com os estudos, seus e do irmão
Paulo Dacorso Filho. É um dos melhores alunos da turma, rival de Lauro de
Abreu Coutinho na luta pelo primeiro lugar no quadro de honra. Como Noel,
gosta de música. Os dois saem juntos da última sessão. Arranjara um passeio por
ali pertinho. O Mangue, naturalmente.
Mas nem todos os prazeres são tão adultos Como diz dom Meinrado, de
certa maneira Noel não quer crescer. Brinca como se a infância fosse eterna.
Surripia guloseimas do Altim, inventa piadas, canta paródias, ridiculariza
professores. Há muito de exibicionismo no que faz. Gosta de chamar a atenção,
de escandalizar as pessoas. À saída do São Bento, descendo a ladeira depois da
aula, não é raro vê-lo lançar estranhos desafios, propor esquisitas apostas.
- Caso dinheiro como vou do portão do colégio ao Largo de São Francisco
com a minha coisa de fora. Ninguém acredita que seja capaz de tanto. Cinco e
meia da tarde o centro da ciddade cheio de gente, hora de saída do trabalho. Da
Dom Gerardo ao Largo de São Francisco é uma considerável caminhada,
Avenida Rio Branco, Ouvidor, ruas movimentadas, terá Noel coragem? Diz um
dos colegas. Não Vai dar certo - prevê outro. Dois ou três aceitam a aposta.
Seguido a distância por todo um grupo de alunos do São Bento que riem, mais
de nervoso do que de outra coisa. Realiza pelo centro da cidade, braguilha
aberta, fingindo-se de distraído, homens e mulheres olhando-o perplexos, o mais
extravagante passeio de sua vida.
Contudo, por mais alegre, despreocupado e irreverente que seja, por mais
amor que tenha à vida, é justamente neste 1927 que vai travar seu primeiro
contato mais íntimo com a morte. Até aqui, tudo se passou mais ou menos longe,
o desaparecimento de alguém sendo algo que pouco lhe diz respeito, um parente
afastado, um vizinho a quem mal conhece, um nome nos anúncios fúnebres de
jornal. De volta das férias, no começo do ano já sabe da morte de Mendes de
Aguiar, homem com quem manteve relações tão pessoais: "... vós tendes a boca
já pronta para soprar uma flauta!" E pouco depois acontece a perda do colega de
turma João Carlos Corrêa.
Logo no primeiro dia de aula, 4 de março de 1927, dom Meinrado contou
aos quartanistas que João Carlos está com uma séria infecção intestinal,
contraída enquanto passava férias com os pais numa fazenda do sul de Minas.
Seu estado é grave. O reitor recomenda que todos vão à casa de João Carlos.
Mas a visita de pouco adianta. Noel e os colegas não conseguem vê-lo, o médico
não os deixando entrar no quarto. Sabem apenas que a febre não passa, que o
amigo sofre. No dia 17, morre. Tinha apenas dezesseis anos, a idade de Noel.
Como acreditar no que o aluno Arnaldo José Fernandes da Costa escreve nas
páginas de A Alvorada?
"Na véspera recebeu o João Carlos, com grande piedade, o conforto dos
Santos Sacramentos de nossa Santa Igreja e, pelas suas últimas palavras - 'Ó
Maria concebida sem pecados rogai por nós que recorremos a vós!' - se vê quão
resignado estava o seu espírito e pronto a ver Deus Nosso Senhor."
Como é possível alguém resignar-se a perder a vida aos 16 anos? A
ausência de João Carlos Corrêa é um choque para os alunos do São Bento. No
enterro, nas missas, nas salas de aula, sente-se isso. Mas ainda está por vir o
primeiro contato mais íntimo de Noel com a morte, neste ano em que ele é todo
vida.
Sábado, 15 de outubro de 1927. É quase de manhã quando Noel chega. O
bangalô ainda dorme. Como de hábito, o jovem boêmio de farda caqui
ziguezagueia silenciosamente por entre os móveis da sala, fazendo ginástica para
que ninguém o ouça. Atravessa toda a casa na ponta dos pés, passa pela cozinha,
sai no quintal. Talvez queira usar o banheiro de fora. Ou apenas sentir no rosto
um pouco mais da brisa da madrugada. Dá alguns passos, chega a poucos metros
do barranco. Súbito, pára. Jamais lhe sairá da lembrança o sinistro quadro que
seus olhos vêem: o corpo grande e pesado de vó Bella oscilando na ponta de
uma corda.
Seus gritos despertam toda a casa. Vai ser preciso algum tempo até que se
compreenda o que aconteceu. Bella, tão sem ânimo nos últimos meses, tão
desinteressada das pessoas e das coisas, levantou-se de madrugada, pegou uma
cadeira, foi para o quintal, amarrou uma corda de varal na trave do galinheiro,
enfiou o pescoço no laço que ela mesma preparou na outra extremidade, subiu na
cadeira. Tudo muito rápido, mas em silêncio, sem alarde, como sempre gostou
de viver.
Recato, discrição, o deixar-se ficar num canto sem incomodar os outros. A
vida toda foi assim Bellarmina de Medeiros Rosa. Aos 64 anos, porém, vinha-se
dizendo já sem forças, a idéia da morte perseguindo-a, as lamúrias substituindo o
falar pouco. Chamou-se um médico, Floriano de Araújo Góes, na esperança de
que algum remédio lhe devolvesse o ânimo. As queixas de Bella foram então
atribuídas a um cansaço passageiro, de forma alguma a uma efetiva vontade de
morrer. A sempre discreta Bella. Mas um suicídio é um suicídio. E por mais que
a família se empenhe para que o estrondo dessa tragédia não seja ouvido lá fora,
todos vão saber que dona Bellarmina se enforcou.
Na tarde deste mesmo sábado - enquanto o corpo estiver sendo velado na
sala do bangalô (o comissário do 16.° Distrito Policial, Ribeiro de Sá, e o médico
legista, Dr. Antenor Costa, concordaram que não se faça a autópsia), A Noite já
estará circulando com a notícia. Diz o título: "A vida era-lhe insuportável e a
pobre velhinha, atando um laço ao pescoço, suicidou-se."(1)
1. A Noite, 15 de outubro de 1927 (página 2).

O repórter comete algumas imprecisões, como dizer que o número da casa é


135, e não 195, ou chamar a morta de Moreira Rosa, em vez de Medeiros Rosa.
Por ser um matutino, só na edição do dia seguinte, domingo, o O Correio da
Manhã focaliza o assunto: "No silêncio da madrugada uma sexagenária deu cabo
da vida enforcando-se", diz o título(2).
2. Correio da Manhã, 16 de outubro de 1927 (página 7).

A matéria informa corretamente o número do bangalô e o nome de Bella, dá


um detalhe importante ("Uma das crianças da casa, tendo ido ao quintal, deparou
ali, baloiçando, um corpo de mulher, correndo a inocente aos gritos contar o que
vira..."), mas erra ao dizer que "a infeliz anciã" era mãe do Dr. Eduardo Corrêa
de Azevedo.
Mas não são essas imprecisões que deixam irritado o chefe de Polícia,
Coriolano de Góes, a ponto de vir ele, a partir do que publicam os jornais,
proibir que se continue a noticiar certos fatos policiais ocorridos na cidade. O
começo de tudo é a indignação dos moradores do bangalô, todos horrorizados ao
verem que uma indiscrição ao pessoal do Distrito, permitindo que os repórteres
tivessem acesso ao livro de ocorrências, converteu o suicídio de Bela num
assunto público. Lembrando que o Dr. Floriano é irmão do chefe de Polícia,
queixam-se a ele. É ainda A Noite, em sua edição de dois dias depois(3), que vai
falar da circular de Coriolano de Góes aos delegados distritais proibindo-os de
passarem à imprensa informações sobre suicídios, crimes de morte e casos
misteriosos.
3. A Noite, 17 de outubro de 1927 (página 2).

A circular é escrita em linguagem erudita, escaldante, segundo palavras de


A Noite. Citando Lombroso, Carrara e Zola, Coriolano considera a divulgação
pelos jornais de tais fatos influenciadora de espíritos fracos. Cita alguns casos
célebres, de suicídios e assassinatos, e de como, ao serem destacados pela
imprensa, desencadearam ondas de tragédias semelhantes. Além do mais, por
alertarem os criminosos sobre as diligências policiais, os jornais tornam
praticamente impossível sua captura. Portanto, conclui Coriolano, "proíba-se".
Pobre Bella, tão discreta, cuidando de morrer sem fazer barulho, e no
entanto causadora de uma ruidosa reação do chefe de Polícia, os jornais dando
por vários dias ainda cobertura às proibições. Está tendo depois de morta uma
notoriedade que sempre evitou em vida. Mas já não importa. Todos sentirão sua
falta. Noel inclusive. Mas o que ficará, na lembrança deste garoto de dezesseis
anos, são os contornos daquele quadro sinistro, a avó pendurada na ponta de uma
corda, o corpo sem vida balançando de um lado para o outro. Seu primeiro
contato mais íntimo com a morte.
Eduardinho providenciou tudo para que Neca viajasse na primeira hora.
Bica de Pedra, Jaú, São Paulo, Rio, um percurso aqui e ali interrompido por
atrasos e baldeações de trens. Assim, quando Neca chega ao bangalô,
reencontrando abalada e chorosa a família que não vê desde o ano passado, a
mãe já está enterrada há quase dois dias.
Não há dúvida: é outro homem este que volta. A mulher e os filhos logo
percebem o quanto ele mudou nos últimos meses. Já não é o mesmo marido
atencioso, o mesmo pai compreensivo e tolerante. Uma criatura difícil, por vezes
irascível, vai ocupar o lugar daquele Neca tão pródigo em agrados que cobria
Martha de carinhos e esmeraldas: "São para combinar com os teus olhos..."
Brigão, autoritário, já não será o amigo que os meninos aprenderam a admirar.
Com a mulher, é freqüentemente brusco, indialogável. Com os filhos, passa a
cometer injustiças que nunca foram do seu feitio, castigando-os por pouco ou
mesmo nada. Uma mudança que a família jamais chegará a entender.
Neca diz que voltou de vez. E é verdade. Mas até mesmo esta decisão, que
normalmente alegraria a todos, tem algo triste.
Martha insiste para que procure emprego, se fixe numa ocupação, trabalhe
como todo o mundo, em vez de ficar em casa nada fazendo. Discutem muito por
isso, ele surpreendendo a mulher, os filhos e a sogra com uma altivez que não
tinha antes: só fará o que estiver à altura do seu talento, de sua inteligência.
Afirma não ser homem para tarefas medíocres. Chega a recusar oferta para que
administre uma fábrica de tijolos na ilha do Governador, 500 mil réis mensais,
casa e comida. É incisivo: - Para a minha capacidade, têm que me pagar muito
mais.
Quinhentos mil réis! Quantos ganham tanto neste magro final de década?
Poucos, muito poucos. Em nome de que recusa tão boa proposta? Responde: em
nome da vocação de inventor que sempre existiu nele, mas que só agora, aos 47
anos, aflorou. Acredita que suas idéias sejam formidáveis. Está convencido de
que elas vão mesmo torná-lo rico e famoso. Fala muito de novo tipo de
embarcação que pretende desenvolver assim que consiga um sócio para ajudá-lo
a levantar capital. Grandes inventos custam dinheiro. E o novo tipo de
embarcação é um grande invento, por enquanto mantido em segredo. Martha mal
o reconhece. Onde está aquele homem responsável, sério, lutador, que ela
conheceu um dia? Discutem muito.
O Neca que volta é de fato outro homem. Mais que sonhador, delirante.
Que quando não está entregue às suas fantasias, irrita-se com a mulher, reprime
os filhos, torna-se mais diferente dele mesmo.

Clara pode não ter ouvido a música de Noel, mas decerto entendeu-lhe a
letra. Ou melhor, os versos que ele lhe mandou como fecho de um bilhete
perturbador. É uma garota tímida. Fez quinze anos três dias antes do suicídio de
vó Bella. Nunca teve namorado, os irmãos sempre exerceram sobre ela uma
vigilância de cão-de-guarda, o fato de ser a caçula avivando neles os instintos
protetores. Mas já é uma moça, uma linda moça. Todos - ela principalmente -
sabem disso. Um pássaro cheio de encantos que já não se pode prender. É isso
que a perturba, a certeza de que seu tempo chegou, de que os irmãos já não
tentarão contê-la, de que versos como estes, do rapaz ali em frente, exigem
resposta. Passou a época em que podia esconder-se sob a sua meninice.
O bilhete é breve, objetivo, sem rodeios. O rapaz, que se assina "Noel",
pede que ela o encontre amanhã à noite, três esquinas mais para lá. Isto é,
Theodoro da Silva com Visconde de Abaeté. Clara, se não chegou a ouvir a
música que Noel tantas vezes lhe cantou do outro lado da rua, acompanhando-se
ao violão, notou-lhe o interesse, os olhares tão significativos. Também gosta
dele. Pelo menos até onde a distância entre suas casas permite avaliá-lo. Toma
coragem e escreve um bilhete em resposta: estará amanhã à noite no local que
ele sugeriu. Uma esquina que verá nascer entre os dois uma grande afeição.
Não será - como alguns pensarão - um simples namoro de adolescentes,
ligeiro, inconseqüente, sem deixar marcas. Por quase sete anos farão parte da
vida um do outro. Querendo-se bem, afastando-se, trocando juras, cumprindo-as,
esquecendo-se delas, mas sempre próximos. De início, os irmãos não se
importarão. Até farão gosto, um rapaz de boa família, simpático, aluno do São
Bento, com intenção de ser médico. Mas um gosto só no início, até perceberem
que sob a pele do menino magro, pálido, quieto, oculta-se incorrigível alma de
boêmio.
Vão se encontrar na Praça 7, na esquina, no portão. Raramente irão a algum
lugar sozinhos, um cinema, um passeio mais longe. Betinho, o do violão,
começa a namorar uma das gêmeas, a Marcolina (com quem acabará se casando)
. Na maioria das vezes os quatro saem juntos. Mas isso também só no início,
enquanto não descobrem que dois sempre sobram.
Seis, quase sete anos fazendo parte da vida um do outro. Clara será a
primeira namoradinha de fé de Noel. De certo modo, a única. Como em muitos
aspectos ele há de ser único na vida dela. Seis, sete anos. Enganam-se os que
pensam que naquela esquina de Vila Isabel teve início um simples e passageiro
amor de adolescentes.

Na primeira quinzena de novembro e segunda de dezembro de 1927, os


alunos do quarto ano prestam seus exames de bacharelato e promoção. Noel em
química & física e história natural. É reprovado. Em fevereiro, não tem melhor
sorte nas segundas épocas. José Piragibe é o professor das duas matérias (na
primeira delas, alternando-se com Carbone). Será exigido de Noel mais do que
dos outros? Será possível que o tenha reprovado injustamente, apenas para se
vingar das brincadeiras, algumas delas cruéis, de que vem sendo vítima nos
últimos cinco anos?
Piragibe dificilmente esquecerá algumas dessas brincadeiras, as imitações,
os deboches, os abusos. Como o dia em que vinha caminhando, muito distraído,
pela ladeira em direção ao colégio. Noel, escondido na primeira curva atrás de
uma árvore, esperou que ele passasse perto e começou a metralhar-lhe as pernas
com pedrinhas miúdas catadas no morro. Às gargalhadas, imitando uma voz
fanhosa, gritou: - Salta, seu puto! Salta!
Piragibe saltou. Pôs-se a sapatear nervosamente por entre as pedrinhas que
lhe castigavam as pernas. Tão assustado que talvez nem tenha podido identificar
por trás daquela voz fanhosa o endiabrado Noel de Medeiros Rosa. Mas pode ser
que sim. Quem sabe, passado o susto e chegando à conclusão de que só um, dos
quase 500 alunos do Ginásio de São Bento, seria capaz de tanto, não terá dito
para si mesmo: "Este Noel ainda me paga."
Vingança do professor ou merecidas reprovações? Dos colegas, nenhum,
nem mesmo Moacyr Mattos de Oliveira (o amigo inseparável, que por sinal foi
reprovado nas mesmas duas matérias), acredita na primeira hipótese. Não
combina com Piragibe, homem bondoso e íntegro demais para fazer perder o ano
um aluno que não o merecesse. Não combina também com Noel. Todos sabem o
quanto ele brincou o ano todo. Química & física? História natural? Prefere o
violão.
No entanto, na família, todos pensam diferente. Hoje e para sempre,
atribuirão a Piragibe toda a culpa pelos insucessos de Noel. Por quê?(4)
4. José Piragibe, e não Mário Piragibe como cita Jacy Pacheco em Noel Rosa e Sua Época, é mostrado naquele livro como uma espécie de algoz de Noel durante os anos de São Bento. Era
exatamente esta a idéia que a família fazia do professor. Com base em informações de Hélio Rosa, Jacy fala de perseguições do professor ao aluno, causas mesmo de suas reprovações no próprio colégio
e mais tarde no Pedro II: "O único que brincou foi seu Noel Rosa" - teria dito Piragibe numa aula à turma de Hélio - "mas se arrependeu. Não foi física que estudou comigo, não! Foi história do Brasil.
Ele sabia a matéria. Mas não como eu queria. E brincava! E isso eu não admito! Ele foi ao pau três vezes. Quando apelou para o Colégio Pedro II, pedi a meus colegas de lá que o reprovassem. E ele foi
ao pau!" Esta versão, nos dando conta de um perverso e vingativo professor, realmente contraria as lembranças de todos os colegas de turma de Noel entrevistados pelos autores: nenhum deles sabe de
qualquer hostilidade de Piragibe ao seu irrequieto aluno. Além disso, como atestam os arquivos do São Bento, nos seis anos em que Noel estudou lá, Piragibe lecionou português, química, física e história
natural, nunca história do Brasil. Diz ainda Jacy Pacheco: "Anos mais tarde, o Sr. Aldílio Tostes Malta, primo de Noel, desposou a filha do desembargador Vicente Piragibe, irmão do professor Mário
(sic)... O primo Aldílio fez o possível para levar Noel à festa, porém não houve força humana capaz de amainar o ódio que lhe ia no espírito, contra o malvado professor que era figura indispensável na
cerimônia." Ouvido pelos autores, Dr. Aldílio Tostes Malta, poeta, parceiro de Joubert de Carvalho em algumas canções e mais tarde ministro do Tribunal Superior do Trabalho, negou o fato. Lembra-se
das visitas de Noel e Hélio a Vicente Piragibe, nas proximidades do seu casamento com Alzira, a 18 de junho de 1928, e de como os dois irmãos tocaram e cantaram para a família da noiva, sem maiores
problemas. Aldílio Tostes Malta é filho de Christovam Malta, aquele mesmo que traçou na imprensa de Juiz de Fora um fiel perfil de Eduardo Corrêa de Azevedo, o pai (ver capítulo 1).

Reprovado nas segundas épocas, a Noel só restam dois caminhos: ou repetir


o quarto ano, ou lançar mão do direito de voltar ao antigo sistema, isto é,
freqüentar as aulas do quinto ano no São Bento, mas passar a fazer os exames, a
partir de março de 1928, no Pedro II. Acha melhor seguir por este último.
Tais tropeços não deixam de surpreendê-lo. Em sua costumeira
irresponsabilidade, cada vez mais ligado à música e desligado dos estudos,
acreditava poder brincar o ano inteiro sem esbarrar no rigor das bancas
examinadoras. As reprovações o frustram. A que ponto, não é possível precisar.
O pai se zanga, a mãe se preocupa. Principalmente ao vê-lo tão acabrunhado
depois das primeiras provas no Pedro II, em março, quando é novamente
reprovado em história natural.
Certa manhã, ouvem-se gritos, correria), confusão no fundo do quintal.
Noel acaba de rolar do alto do barranco, fere braços e pernas, parece muito
machucado. Deve ter pisado em falso na terra úmida, escorregado, caído.
Portanto, um acidente. Mas Martha, mortificada, teme que não. Em sua cabeça -
muito sugestionada pela tragédia que se abateu sobre a família neste mesmo
quintal - ficará a certeza de que o filho, inconformado com o fracasso nos
exames, quis se matar. Por quê?(5) Mais um "por quê?"
5. Em entrevista a A Noite Ilustrada de 18 de maio de 1937, Martha de Medeiros Rosa faria referência ao episódio: "A tal ponto chegou seu estado de desânimo que, na outra casa (o 195),
tentou suicidar-se, atirando-se de uma ribanceira com a qual confinava o nosso terreno. Esteve muito tempo entre a vida e a morte, sendo necessário levá-lo para fora do Rio para restabelecer-se." Já o Dr.
Eduardo Corrêa de Azevedo, numa de suas muitas conversas com os autores, afasta a possibilidade de tentativa de suicídio: "Se tivesse havido, eu o saberia." De qualquer forma, a entrevista, concedida
ainda sob a emoção da morte do filho, revela que até o fim da vida Martha carregou consigo a certeza de que não fora um simples acidente.

Este como o outro parte de uma mesma e complicada questão: o que terá
acontecido realmente? A vingança de um professor levando o aluno à
reprovação e, depois, à tentativa de suicídio? Pode ser. É nesta versão patética,
beirando o trágico, que acreditam todos no bangalô. Mas são tantos os indícios
em contrário - o testemunho dos colegas, as tintas de inverossimilhança que
colorem a história, a reputação de Piragibe como homem sério e justo, o próprio
Noel - que não se deve desprezar a hipótese de tal versão não passar de uma
farsa. Ou seja, Noel inventando tudo para se livrar dos sermões do pai, cada vez
mais irritadiço e intolerante, e para ganhar a simpatia da mãe, cada vez mais
desapontada com o filho, bom boêmio, mau aluno. Afinal, foi ele quem contou
em casa sobre a "vingança de Piragibe" (só em 1929 Hélio conhecerá mais de
perto o professor). Desculpa, aliás, que voltará a usar em futuras reprovações.
Quanto à tentativa de suicídio, talvez não tenha chegado a inventá-la, mas tira
proveito dela. Em vez de zangas, é tratado com todo cuidado, atenções especiais,
repouso fora do Rio. Nenhum esforço fará para convencer a mãe de que foi
apenas um acidente.
Hipótese nem patética nem trágica, mas que cabe como uma luva no Noel
de agora, oprimido pelo pai, estudante pouco aplicado. E, já veremos, um garoto
de dezessete anos capaz de truques e simulações para enfrentar a vida, de mentir
para se salvar, de pôr no fogo um professor desde que se livre do fogo ele
próprio.
Capítulo 8

ADEUS AO MOSTEIRO

O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que ele não quer
aprender.
Meus Pensamentos

Pensando bem, não se parece com um suicida, nem tem jeito de quem leva
a sério os professores, o Noel Rosa que em março de 1928 está de volta às aulas
do São Bento. Nada mudou nele. O mesmo uniforme caqui (a cada lado da gola,
um 2 de metal substitui o escudo do colégio, único detalhe que distingue dos
demais os alunos alistados no Tiro de Guerra 2). O mesmo humor, a mesma
agitação nas aulas, a mesma irreverência para com os mestres. Antigos como
Piragibe, novos como dom Bento Villiger, dom Plácido Roth e o coronel
Eduardo de Albuquerque Sá.
Dom Bento chegou dos Estados Unidos há pouco. Não se sabe se é
americano, canadense ou suíço, como dom Meinrado. Sabe-se apenas que seu
português é muito limitado. Nas aulas práticas de química, recorre a todo
momento aos alunos quando uma palavra lhe escapa: - Como é mesmo! Cor...
Cor...
- Azul-completa um dos rapazes.
Numa de suas experiências, mistura nitrato de prata ao cloreto de sódio,
aquece o tubo de ensaio, faz surgir assim uma solução de cloreto de prata,
lactosa, quase branca. Mostra-a à turma e diz: - Aqui temos um líquido... Cor
de... Cor de...
Desta vez quem o socorre é Noel:
- De leite de pica.
- Isto, cor de leite de pica.
As aulas práticas de dom Bento são mais interessantes que as teóricas de
Piragibe, nas quais Noel costuma cantar, baixinho, modinhas e emboladas:
Eu fui no mato
Pra cortar o pau-pinheiro
Só pra ver se sou ligeiro
No cacete pra brigar
Dom Plácido leciona apologética. É mais camarada e bem menos empolado
que dom Pio Ziegenaus, que vive a atirar sobre os alunos seu palavrório em
latim: Quaerite primum regnum
Dei etjustitiam ejus haec omnia adjicientur vo-bis...
Dom Plácido é mais simples, só fala em português e prefere não complicar
as lições. É pouco exigente em suas sabatinas, fica satisfeito quando pode dar
nota alta a toda a turma.
Numa dessas sabatinas, vendo-o distraído, Noel apressa-se em abrir o livro,
colocá-lo sobre os joelhos e copiar o tema da prova. A janela está aberta, um
vento frio sopra de vez em quando. Tendo de fazer os olhos passarem rápido do
livro para o papel, deste para dom Plácido e novamente para o papel, não nota
que o vento vira uma das páginas do livro. E continua copiando, só que agora de
outro trecho mais adiante. Na aula seguinte, muito tranqüilo, dom Plácido manda
que ele se levante: - Vejamos sua prova, seu Noel.
E passa a ler. A certa altura, notam todos, Noel inclusive, o texto começa
com um assunto e repentinamente muda para outro. Embora bem escrito, palavra
por palavra igual ao livro, não faz sentido.
- Então, seu Noel, como é que o senhor explica isso?
Noel é sincero:
- O vento, dom Plácido. O vento explica.
Colar quase todos colam. Seja nas sabatinas do indulgente dom Plácido,
seja nas provas do implacável Albuquerque Sá, contratado nos primeiros dias do
ano para lecionar cosmografia, nova matéria do programa oficial (não mais
aquelas breves noções de astronomia descritiva aprendidas no segundo ano, mas
um programa mais extenso, aprofundado, que inclui desde o conhecimento, uma
a uma, das estrelas do Pólo Norte, por exemplo, até o estudo detalhado de
lunetas e aparelhos vários).
- Espero que vocês se adaptem aos seus métodos - adverte dom Meinrado
na véspera de apresentar o professor à turma. - É um coronel do Exército,
homem de rígida formação militar. Exigentíssimo, extremamente zeloso quanto
aos estudos e à disciplina.
E é verdade. Formação militar, porte marcial. Empertigado, cabelo cortado
curto, a fisionomia sempre fechada, parece estar em permanente posição de
sentido. Não é preciso zangar, ameaçar, falar alto para que os alunos assistam à
aula em silêncio. Sua simples presença, fria, impositiva, basta. Todos o
respeitam, alguns o temem. É mesmo um homem exigentíssimo, para quem a
correção, o agir direito, é mais que sagrado.
A primeira e difícil prova dada por ele ao quinto ano de 1928 versa sobre o
teodolito, instrumento astronômico e geodésico de medição. Três dias depois,
Albuquerque Sá entra em sala mais sisudo que de costume. Senta-se, tira da
pasta as provas corrigidas, coloca-as sobre a mesa.
- Senhor Noel de Medeiros Rosa! - chama com voz firme.
Niguém responde.
- Não está presente o senhor Noel? Alguém diz que não. Faltou, talvez
esteja doente.
- É pena...
Faz uma pausa como se para medir as palavras e continua:
- Pois eu gostaria de expor aqui, diante da turma, mas também na presença
do senhor Noel de Medeiros Rosa, tudo o que penso dele. Trata-se de um
desonesto, um moleque, um desqualificado!
Há espanto nos olhos dos alunos, mas Albuquerque Sá não pára por aí.
Vale-se de outros termos para expressar sua indignação, jura que não permitirá
que Noel continue freqüentando suas aulas, não o acha sequer merecedor de
estar num colégio como o São Bento. Chama à sua mesa Lauro de Abreu
Coutinho e César Dacorso Netto. Entrega a um a prova de Noel e a outro a
apostila em que está o ponto sobre o teodolito. Pede que leiam em voz alta, cada
um de uma vez. As duas são exatamente iguais, vírgula por vírgula. Até os
desenhos parecem copiados um por cima do outro.
- Seu Noel colou. Sim, colou vergonhosamente! Hei de fazê-lo pagar por
essa indignidade. Na minha sala, não entra mais!
No dia seguinte, assim que começa a subir a ladeira, Noel encontra os
colegas à sua espera. Contam-lhe o que houve, a fúria de Albuquerque Sá, suas
ameaças. Sem dizer nada, dá meia-volta. Só reaparece três dias depois,
justamente para a próxima aula de cosmografia. Ao vê-lo sentado numa das
carteiras da frente, o coronel não faz rodeios: - Foi bom o senhor ter vindo, seu
Noel, para que eu possa repetir na sua presença tudo que já disse a seu respeito
na aula passada.
E dispara a mesma fala enfezada, o desonesto, o moleque, o desqualificado
e tudo mais. Manda que Noel saia imediatamente de sala.
- Mas coronel...
- Assunto encerrado!
- Não é justo, coronel. Não se condena uma pessoa sem lhe dar o direito de
defesa. Logo o senhor, sempre do lado do certo.
Albuquerque Sá concorda em ouvir o que o aluno tem a dizer em sua
defesa. A explicação de Noel é simples: sabia a apostila de cor. Perdeu dias e
dias enfiando na cabeça cada palavra, cada traço de desenho sobre o teodolito. O
coronel não acredita. Noel jura que é verdade.
- Muito bem. Pois sente-se aí e faça aprova de novo. E basta que me ponha
uma vírgula fora do lugar que eu o expulso de sala!
Em menos de quinze minutos a nova prova está feita. Como a anterior,
igualzinha à apostila. Depois de lê-la, o professor empalidece.
- Santo Deus!
Pede aos alunos que esperem um instante. Não demora muito, retorna
acompanhado do reitor e de outros monges, Piragibe e outros professores. Na
frente de todos, visivelmente constrangido, diz: - Quero, na presença dos alunos
do quinto ano e de mestres do Ginásio de São Bento, pedir desculpas ao senhor
Noel de Medeiros Rosa. Cometi um erro terrível. Insultei-o, duvidei de sua
lisura, acusei-o de ter colado, quando na verdade, aluno exemplar que é, tudo
que fez foi uma prova perfeita. Humildemente, peço-lhe que me desculpe.
E Noel, com ar inocente:
- Está desculpado, coronel Albuquerque Sá e mais ninguém acredita na
prova perfeita. Porque, de resto, todo o São Bento sabe que Noel só decorou a
apostila depois daquela meia-volta na ladeira. É às gargalhadas que ele conta
isso aos colegas. Gargalhadas, afinal, de um garoto que realmente não hesita em
pôr um professor no fogo quando é ele que está para se queimar(1).
1. Nenhum dos quintanistas de 1928 se esqueceria do episódio que terminou com Albuquerque Sá pedindo desculpas a Noel diante da turma e dos demais professores. Os depoimentos só
divergem sobre o tema da prova, a maioria dizendo ter sido mesmo o teodolito, outros o sextante.

Desmontar e remontar fuzis em tempo determinado, fazer cálculos de


trajetória de tiro, suar muito nas sessões de ginástica, corrida, ordem unida. Noel
acha todas essas obrigações impostas pelo Tiro de Guerra 2 uma grande perda de
tempo. Os exercícios militares, incluindo táticas de combate a cargo dos
primeiros-sargentos Luís Corrêa Marques e José de Abreu Coutinho (nenhum
parentesco com Lauro), começam pela manhã, antes das seis. Para um jovem
boêmio como ele, um suplício. Acordar cedo, meter-se no uniforme, embarcar
ainda meio grogue no Lins de Vasconcellos, chegar bocejante no campo de
treinamento onde os alunos respondem à chamada em filas de três, tudo isso é
bastante penoso.
Noel, ao contrário de alguns colegas como Antônio Fernandes Lopes,
Lucílio Urrutigaray, Moacyr e o irmão Sylvio Mattos de Oliveira, não tem a
menor vocação para a vida militar. Já deixou isso claro como integrante do
Batalhão Escolar, aquele exército de mentirinha que o colégio mantém até hoje
na esperança de que seus alunos se habituem desde cedo à disciplina. Noel foi
rebaixado algumas vezes de posto. Numa delas, sargento, comandava o pelotão
numa dessas paradas cívicas de que o colégio participa no centro da cidade.
Vinha à frente dos outros, passo certo, a espada desembainhada. Em dado
momento, decidiu trocar a postura marcial pela de um desengonçado boneco a
fazer palhaçadas em plena marcha, rebolando, girando sobre os calcanhares,
rodando a espada no ar como se fosse baliza. O pelotão inteiro desacertou o
passo no meio de tantas risadas. E Noel, o sargento, virou cabo.
Foi ele quem ensinou a Alceu de Miranda que mais vale um sujeito esperto
que um soldado cumpridor dos deveres. Num começo de ano, o Batalhão Escolar
tendo de tirar do depósito os fuzis cobertos de graxa, cada aluno devendo limpar
o seu, o compenetrado Alceu já ia arregaçando as mangas quando Noel chegou
perto e murmurou: - Deixe que algum trouxa limpe isso pra você.
E assim que viu um fuzil livre de graxa, brilhando nas mãos de um dos
colegas, esperou que este se distraísse e trocou-o pelo seu, sujo. Alceu viu como
se fazia e passou a fazer igual.
Como Moacyr pretende seguir carreira - deixando para servir ao Exército
na ativa - será mesmo Hermenegildo de Barros Filho seu companheiro mais
chegado no Tiro de Guerra 2. Têm a mesma idade, dezessete anos, e embora
pertençam a mundos diferentes, Ministrinho sendo filho de homem importante
(tão importante que acabará dando seu nome à rua onde mora), enquanto a única
"importância" da família de Noel é aquele discutível parentesco com o Caramuru
(ou talvez com Garcia d'Ávila, ou ainda com Marília de Dirceu, ou quem sabe
com Maria Stuart), eles se entendem muito bem. Hermenegildo é tímido, mas
isso não é problema se Noel está por perto. Noel é pronto, o dinheiro sempre
contado, o que também não é problema se o programa é feito na companhia do
Ministrinho.
Jogar futebol, por exemplo. Os que são do Tiro de Guerra 2 incluem entre
seus exercícios uns divertidos chutes a gol no pátio. Ou até renhidos marches, os
soldados do São Bento contra um time de fora, num campo longe da vigilância
dos sargentos. São desafios quase sempre estimulados a vinho.
- Hoje estou com pouco dinheiro, Noel.
- Não faz mal, Ministrinho. Há vinho para todo preço.
Desse jeito, se para animar o futebol não podem comprar bebida de boa
qualidade, o remédio é recorrer a um moscatel de quinta categoria, que afinal só
mesmo Noel e alguns poucos têm coragem de beber.
- Puxa, mas esta droga está uma delícia!(2)
2. Hermenegildo de Barros Filho, em entrevista aos autores, recorda a careta de Noel toda vez que tomava moscatel ordinário, mas garante que o álcool estava longe de ser um hábito entre os
jovens de dezessete anos que eles eram em 1928. Bebiam, geralmente, no Mangue e nos jogos de futebol.

Outros podem perder o fôlego e o humor ao cumprirem as exigências feitas


pelos dois sargentos nos exercícios. Não Noel. Um dia, por sinal uma ensolarada
manhã de maio, os soldados saem para uma marcha de ida e volta à Vila Militar.
São 24 quilômetros para lá, outros tantos para cá. Perneiras, dólmàs abotoados,
mochilas, fuzis às costas, um calor de verão, o grupo começa a trocar passo de
tão cansado. É o sargento Luís Corrêa Marques quem sugere: - Vamos cantar
para não perdermos a cadência.
Ele mesmo começa:
Valente e altaneiro,
Soldado do Brasil!
Marcho eu, marchas tu, marcha ele,
Empunhando o fuzil...

Todos repetem em coro, percorrendo quase um quilômetro de terra batida


ao compasso da quadrinha. Notando que a cadência foi recuperada, o sargento dá
ordem para que os rapazes parem de cantar. Todos obedecem, menos Noel, que
insiste em continuar cadenciando a marcha, só que agora com nova quadrinha:
Mas que família é esta?
Igual nunca se viu...
Fode o pai, fode a mãe, fode a filha,
Fode a puta que pariu!

Até os dois sargentos aderem ao coro das risadas. A marcha é interrompida


para um breve descanso, Noel sendo advertido: - O Exército é coisa séria, seu
Noel.
Na marcha de volta, o bom humor não se perde. Desta vez ele se entrega a
um de seus prazeres maiores: parodiar o Hino Nacional.
Elvira cor de manga
Amarga e flácida...

O sargento já não acha graça. A repreensão adquire tom sério. O que de


forma alguma o fará desistir de brincar com o Hino Nacional, aliás um dos
gracejos favoritos dos jovens desta época. Noel, sempre que pode, diverte-se ao
violão solando a melodia de Francisco Manuel da Silva em ritmo de valsa,
tango, maxixe, ou arranjando para ela letras que fariam Osório Duque Estrada
tremer no túmulo onde o enterraram no ano passado. Paródias que, infelizmente,
serão esquecidas.
Fora o serviço militar, pouca coisa muda. A namorada, as serenatas, os
amigos, os prostíbulos, a música, gente. É nesta época, porém, que se começa a
notar seu fascínio por certo tipo de personagem que faz seu caminho por entre as
arestas da cidade: o malandro. Entendendo-se como tal o cidadão que vive de
truques e espertezas, o valente, o bordeleiro, o jogador, o rufião, homens enfim
sem ocupação definida e que fora ou dentro da lei, mas à margem da sociedade,
sobrevivem - ou até vivem muito bem - lutando apenas com as armas da ousadia
e da imaginação.
- Ministrinho, tem cinco mil réis aí?
- Pra quê?
- Vou multiplicar seu capital.
Noel garante que bastam dois olhos atentos para se transformar cinco mil
réis em trinta, talvez mais. Todos os fins de tarde, aproveitando o movimento à
saída do trabalho, um jogador de chapinha instala um caixote na esquina de Dom
Gerardo com Rio Branco e começa uma cantiga: - Quem quer tentar a sorte?
Vamos lá, o jogo é simples e honesto. Acerte onde está a bolinha e ganhe um
dinheirinho fácil.
O jogo de chapinha é muito popular na cidade, em especial nas imediações
do Mangue, Estácio, Lapa, Central do Brasil, desde que a polícia não esteja por
perto. E mesmo que esteja, sempre se dá um jeito de engarapá-la. Numa esquina
fica o farol, isto é, um molecote de olho em todos os carros que se aproximam.
Se for a polícia, grita.- "Olha a cana.'" E em poucos segundos desaparecem
todos, banqueiro e apostadores. Na outra esquina, o segundo farol. é entre os
dois que se faz o jogo. São três chapinhas de cerveja e uma bolinha preta, mais
parecendo um caroço de feijão. O banqueiro coloca a bolinha sob uma das
chapinhas e, com mãos ligeiras de prestidigitador, muda-as de posição: - Vamos
lá! Uma aqui, outra ali, esta outra pra cá, esta dança, a outra gira, uma rodopia,
esta vai, a outra vem... Pronto, o cavalheiro não quer tentar adivinhar onde se
meteu a bolinha preta?
Apostas são feitas, o banqueiro quase sempre ganhando. Não é um jogo
simples como pode parecer. Muito menos honesto. Homens de mãos ágeis e
unhas grandes, os banqueiros costumam fazer a bolinha sumir como num passe
de mágica. Onde está? Sob a unha, é claro. E o apostador só tem chance quando
convém ao malandro mostrar que o jogo é limpo.
Noel vem observando há vários dias o sujeito que faz ponto na esquina.
Agacha-se para que seus olhos fiquem ao nível do caixote, gruda-os nos
movimentos do banqueiro, não perde nada. Vem apostando mentalmente,
ganhando sempre. Daí ter apelado para o capital do Ministrinho.
Os dois se aproximam:
-Esta ganha, esta perde. Está aqui ou ali? Quem adivinha?
Noel levanta o dedo, quer apostar na próxima mão. O dobro ou nada, dizem
as regras. Muito bem, o banqueiro inicia a dança das mãos, mistura as chapinhas
com rapidez. Aponta o indicador para Noel.
- Vamos lá, rapaz. O dobro ou nada.
- Cinco mil réis.
- Feito. Onde está?
- Nesta aqui.
-Muito bem... Muito bem... - murmureja o banqueiro. - Mas esta mão foi só
para esquentar o jogo. Ainda não valeu.
- Mas que história é essa? Eu ganhei!
- Não valeu, rapaz. São as regras. Certo de que não há como perder, Noel
não leva o protesto adiante. Concorda com o banqueiro e volta a casar seus cinco
mil réis.
- Ótimo, agora é à vera.
Repete-se a dança das mãos, o homem pára e pergunta:
- E agora, onde está?
-Debaixo da sua unha-responde Noel.
- O que é isso, rapaz? - encabula-se o banqueiro, olhando para os lados. -
Está querendo arranjar sarrabulho?
- Está debaixo da sua unha!
- O jogo acabou, rapaz.
- Não! Quero os meus cinco e mais cinco. Eu acertei.
- Deixa isso pra lá. O jogo acabou. Enquanto o banqueiro vai recolhendo
seu caixote, suas chapinhas e a esvaecente bolinha preta, Noel é tomado de uma
fúria que apavora Ministrinho.
- Ladrão! Seu filho da puta ladrão!
- Vamos embora, Noel-diz o amigo puxando-o pelo braço.
- Só quando este ladrão me pagar... - e sem esperar resposta, a raiva
levando-o a perder a cabeça, faz a palma da mão estalar no rosto do banqueiro,
que por pouco não vai ao Chão.
- Vamos embora, Noel!
O outro, um mulato maciço, mal-encarado, mãos enormes, avança para seu
agressor aos socos e pontapés. Noel cai, o banqueiro salta sobre ele com fúria
ainda maior. Depois, some na direção da Praça Mauá.
- Você está bem, Noel?- indaga Ministrinho tentando levantá-lo.
Uma multidão forma-se em volta dos dois. Noel ergue-se com dificuldade.
Vaí caminhando lentamente para o ponto de bonde, os curiosos observando seu
jeito meio combalido, a farda do Tiro de Guerra 2 amarrotada e suja. Um jovem
soldado vencido. Um garoto que acaba de sobreviver à primeira grande surra de
sua vida.

O fim do ano se aproxima. Noel, comparecendo perante junta formada pelo


capitão Euclydes Telles Pires e os primeiros-tenentes Carlos Coelho Cintra e
Francisco Xavier da Graça, é aprovado e obtém sua carteira de reservista. Antes
disso, porém, os rumos do barco da família mudam mais uma vez ao sopro de
ventos maus.
Numa sexta-feira, 12 de outubro de 1928, morre vó Rita. Serenamente, o
coração de quase setenta anos, cansado e enfraquecido desde a partida de Bella,
parando de repente. Eduardinho volta para o enterro. Carmem também. Um e
outro percebem o quanto Neca se tornou estranho, assistem a algumas discussões
entre ele e Martha, ficam com pena da irmã. Sabem das dificuldades financeiras
que ela enfrenta, o marido ainda sonhando com barcos e virando as costas para
bons empregos. É de Eduardinho a decisão de que se mudem de novo para o
chalé, incumbindo Neca de realizar ali algumas obras. O bangalô será alugado, o
dinheiro indo para as mãos de Martha. Vai precisar cada vez mais, o marido
desempregado, as despesas aumentando, o filho mais velho prestes a acabar os
preparatórios e a entrar para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Assim
será feito. Para o chalé, onde já moraram doze, voltam agora apenas quatro.
É dezembro. Enquanto nove de seus colegas de turma concluem o curso
seriado como bacharéis em ciências e letras, habilitados portanto a fazerem
vestibular para qualquer escola superior do país, Noel constata ter sido
absolutamente inútil optar, meses atrás, pelo antigo sistema. A situação é crítica.
Tão crítica que, exames acumulados, já não lhe será possível bacharelar-se neste
1928. Livra-se de história natural, mas não de inglês e história do Brasil. Por
algum tempo ainda, a cada março e dezembro, terá de apresentar-se às bancas do
Pedro II para desvencilhar-se das matérias que ainda deve até completar o
ginasial (ver boxe Bacharel por decreto).
Em casa, a explosão de Neca. Com Noel e com Hélio, que nas provas do
terceiro para o quarto ano derrapou na álgebra. Como é possível? Enquanto ele
leva a vida a sério, empenhado num invento que há de torná-lo famoso (e de
fazer a família navegar num mar de dinheiro), os filhos vadiam nos estudos. Que
falta de consciência! Não pode tolerar tamanha irresponsabilidade. É preciso
castigá-los. Severamente. Daí a decisão de não os deixar sair de casa até as
próximas provas, em março. Nada de passeios, namoradas, serenatas. Carnaval?
É bom que nem pensem nisso!
Bacharel por decreto

Noel Rosa levou oito anos para completar os preparatórioss ou ginasial, ou melhor, para conseguir o
chamado "bacharelato em ciências e letras" sem o qual não poderia, conforme desejo da família, entrar para
a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Eis um resumo desse longo curso trespassado de tropeços e
escorregões:
1923 - Aluno número 175 do Ginásio de São Bento. Primeiro ano. Matérias: aritmética, português,
geografia, desenho, francês e religião. Não houve provas finais. Automaticamente promovido ao segundo
ano.
1924 - Aluno número 199 do Ginásio de São Bento. Segundo ano. Matérias: aritmética, álgebra,
português, geografia (corografia & cosmografía), latim, inglês, francês, desenho e religião. Apresentou-se
para exames de bacharelato de aritmética e geografia no Colégio Pedro II, em janeiro de 1925. Reprovado
em ambos. Não compareceu às segundas épocas.
1925 - Aluno número 389 do Ginásio de São Bento. Repetição do segundo ano. Matérias e médias
anuais, já em vigor a Reforma Rocha Vaz: português (7), francês (8), latim (6), religião (não eram
conferidas notas), aritmética (5), geografia (8) e álgebra (reprovado), as três últimas finais. Aprovado com
nota 5 na segunda época de álgebra. Promovido ao terceiro ano.
1926-Aluno número 25 do Ginásio de São Bento. Terceiro ano. Matérias e médias anuais: português
(9,5), inglês (10), história universal (8), latim (9), religião (não eram conferidas notas), francês (7,5) e
álgebra (5,5), as duas últimas finais. Promovido ao quarto ano.
1927 - Aluno número 179 do Ginásio de São Bento. Quarto ano. Matérias e médias anuais: inglês
(4); física & química (reprovado), história natural (reprovado), apologética (não eram conferidas notas),
geometria & trigonometria (4), história universal (5,5) e latim (7), as três últimas finais. Reprovado também
nas segundas épocas de física & química e história natural. Para não repetir o ano, lançou mão do direito de
voltar ao sistema antigo, isto é, os exames de bacharelato se fazendo no Pedro II e conforme o programa por
este adotado. Com isso, entre outras coisas, Noel teria de fazer não apenas a prova de física & química, mas
também as de química e física em separado (cada uma delas desdobrada nos programas do quarto e quinto
anos) e história natural (do mesmo modo desdobrada em programas do quarto e quinto anos).
1928 - Aluno número 468 do Ginásio de São Bento. Quinto ano, mas a partir de então prestando seus
exames no Pedro II, na qualidade de candidato "estranho", como se dizia então. Os primeiros desses exames
realizaram-se logo em março de 1928: foi aprovado em física & química (4) e novamente reprovado em
história natural, ambas as matérias do quarto ano. Em dezembro, novos exames no colégio oficial: química
do quarto ano (9), física do quarto ano (9), história natural do quarto ano (6), inglês (reprovado) e história
do Brasil (reprovado). Submetendo-se agora ao programa do Pedro II, enquanto nove de seus colegas de
turma (Lauro de Abreu Coutinho, César Dacorso Netto, Antônio Fernandes Lopes, Lucílio Urrutigaray,
Rozendo Marinho de Oliveira, Aulo Fiúza Cerqueira, João de Carvalho, Manuel Fernandes Meirelles e
Roberto Vianna Guilhon) bacharelavam-se no São Bento, ele chegava ao fim do curso seriado "devendo"
sete matérias: história do Brasil, inglês, química do quinto ano, física do quinto ano, história natural do
quinto ano, cosmografía (incluída no currículo em 1928) e filosofia (a partir de 1929).
1929 - Exames no Colégio Pedro II: em março, inglês (7) e história do Brasil (reprovado); e em
dezembro, história natural do quinto ano (3,55), física do quinto ano (5,22), química do quinto ano (4,22),
cosmografía (reprovado) e história do Brasil (reprovado).
1930 - Exames no Colégio Pedro II: em março, cosmografía (4,5), filosofia (7,5) e história do Brasil
(reprovado). A 14 de novembro, o Decreto-Lei 19.404, assinado pelo recém-empossado presidente da
República, Getúlio Vargas, estando as aulas de todos os colégios e faculdades do país suspensas desde o
início da revolução de outubro, determinava que os estudantes, sem exceção, fossem aprovados ou
promovidos em seus respectivos exames e cursos. Desse modo, por decreto presidencial, Noel livrou-se da
história do Brasil e fez-se bacharel.
Noel volta a culpar Piragibe por seu fracasso. É verdade que o professor já
não faz parte das bancas que o examinam. Mas, explica Noel, tem muitos amigos
no Pedro II e pediu-lhes que continuassem a espremê-lo. É mesmo vingativo o
"urso de membros atrofiados". Martha acredita. Escreve para Carmem
informando-a de tudo, as reprovações dos meninos, o castigo imposto por Neca,
o ambiente em casa. Diz que já não discute com o marido. É inútil. Hoje, quando
ele fala, reclama, zanga, sonha, ela prefere se calar. Mas tem pena dos filhos, tão
moços, tão oprimidos. Carmem, também penalizada, escreve ao cunhado em
termos veementes. Implora que não prenda os sobrinhos, que os deixe sair ao
menos no carnaval. "Em nome dos meus três filhos", acrescenta. Pela mesma
época, recebe de Bica de Pedra uma carta em que Eduardinho lhe pede opinião
sobre outra carta, escrita a ele por Neca. Manda-a anexada à sua, suplicando-lhe
reserva. Toda essa correspondência, trocada nos primeiros dias de 1929, vai
mostrar que os três irmãos, embora distantes, buscam solucionar juntos uma
crise familiar, por enquanto imprecisa, mas que o tempo acabará agravando de
forma irreversível.
Nesta troca de cartas, nenhuma será tão abrangente, tão lúcida, tão
esclarecedora quanto a que Carmem mandará em resposta a Eduardinho, datada
de 16 de fevereiro. Primeiro, atendendo ao pedido do irmão para que opine sobre
o que Neca lhe escrevera, é sucinta: "Ele julga dizer muito, dizer tudo, e no
entanto quase nada diz." Prefere alongar-se nos comentários à carta da irmã, que
ela acredita carecer de muita ajuda: "Não é, compreenda-se, o auxílio pecuniário
que ora precisamos dar-lhe e sim o moral, o conforto, alguma paz de espírito.
Não haverá um meio de afastá-lo ao menos temporariamente de junto dela, para
que a vida tenha uma feição mais calma? Ele está entregue à idéia dos barcos e
nós vemos naquilo uma utopia. Não é, não pode mesmo ser uma coisa vantajosa,
principalmente para a posição dele, precisando de manter a família, precisando
prestar mais atenção à pobre Martha, que se está exaurindo, não no trabalho
porque está habituada, não o temendo ou evitando, mas nesse desassossego
enorme em que está vivendo. É possível trabalhar assim? Ele não lhe dá tréguas.
Eu vi, assisti a muita coisa. Ela está bem modificada e não alterca mais. A cada
injustiça, a cada irreflexão dele, chora e chora muito. Eu calculo o que sofre a
nossa pobre Martha sem o carinho da inigualável e bondosa e insubstituível
Bella. Sem o carinho de mamãe, que era o seu consolo ultimamente. Responda-
me com franqueza: não se vê uma possibilidade dele fazer aí algum trabalho
numa fazenda dessas?"
Ou então, sugere ainda Carmem, Eduardinho poderia escrever a Neca
dizendo que vai ao Rio em março e perguntando se os reparos no chalé já estão
concluídos. Isso talvez fizesse com que ele se ocupasse mais em tais reparos, em
vez de apoquentar tanto a pobre Martha. Carmem refere-se a outras cartas da
irmã, todas no mesmo teor, queixando-se do marido, de seus incendimentos, das
economias que consome nos malditos barcos, ou então nos livros que adquire às
dúzias. Faz compras a crédito, voltam a bater em sua porta os prestamistas.
Martha sente-se envergonhada. E preocupada com o relacionamento de Neca
com os filhos: "Ela se queixou" - prossegue Carmem a Eduardinho - "que os
meninos estavam castigados demais e injustamente, pois Hélio fez todos os
exames e só tem de repetir o de álgebra para entrar no quarto ano. Noel perdeu
história do Brasil e inglês, mas ficou provado que não foi culpado nesse
fracasso."
Lúcida, Carmem fala ao irmão do "estado de exaltação" do cunhado. E num
tom sombriamente profético:
"... eu tenho muito medo que o fim seja terrível... Você sabe e disse há
pouco tempo que ele caminhava a passos largos para um triste fim. E eu só
penso nisso!"
Ventos maus seguem soprando. Para onde levam o barco da família?

É tempo de dar adeus ao Mosteiro. De certo modo, já se despediu daqui há


muito, os anos de ginásio agora convertidos em coisa do passado. O colégio
marcou a vida de todos os seus companheiros. Alguns, por sinal, continuarão
aqui como professores. São os casos de Dacorso e Fernandes. E marcou também
a vida do próprio Noel. Mas de uma forma muito peculiar, cujos contornos ainda
são difíceis definir. Para muitos, jamais pertenceu a este mundo. Desce as
ladeiras que subiu pela primeira vez, ainda menino, já faz seis anos, dando a
impressão de não ter guardado várias lições que lhe tentaram ensinar. Não se
tornou mais religioso, não passou a temer o fogo do inferno de que fala dom
Joaquim, não acredita que a morte seja uma dádiva. Não será propriamente
contra nada do que os monges tanto combatem, os espíritas, os protestantes, as
feministas, os positivistas, os maçons, os comunistas. Nem adquiriu lá em cima
aquela idéia de patriotismo de baionetas que alguns professores pregam. Muito
menos crê que o sofrimento possa aproximar os homens de Deus. Quantos
mártires consumiram-se na fogueira desta crença! Aos dezoito anos, confia na
vida. Claro, nem tudo entrou por um ouvido e saiu por outro. Algumas lições
foram aprendidas nas salas de aula. Só que agora parte para outro aprendizado.
Como ele mesmo confessa ao companheiro Hermenegildo de Barros Filho: -
Quer saber de uma coisa, Ministrinho? A verdadeira escola está lá fora.
PARTE III 1929-1934
Capítulo 9
À LUZ DAS ESTRELAS
Com a melodia que espalhávamos - eu, Nássara, Alegria, Canuto, Clóvis e
outros - a minha impressão era de que se tornava mais intensa a palpitação
longínqua das estrelas.
entrevista ao Jornal de Rádio

Naquele começo de madrugada, Noel vem pela rua deserta a caminho de


casa. Ele e o violão. Toda a Vila Isabel dorme. Ou quase toda. Ao vê-lo chegar à
esquina de Souza Franco com Theodoro da Silva, distingue adiante um pequeno
grupo. E ouve soar uma voz emocionada:
Este amor tristonho
Não devemos relembrar
Tantos beijos trocamos
Tudo esqueçamos
Tudo morreu...

É o bastante para que desista de dobrar à esquerda, na direção do chalé, e


tome o sentido oposto, aproximando-se do grupo. São quatro homens, todos
mais velhos que ele. Três tocam violão e o outro continua cantando:
E deixaste em minh'alma
Fragmentos de saudade
Devolveste a liberdade
Oh, sim, a um coração que sofreu...

Noel espera que chegue ao fim e pergunta:


- Que música é essa?
- Tudo Acabado-responde o cantor. - Um tango-canção do índio, o Cândido
das Neves.
- Pode cantar de novo? Do começo. Quero ver se o acompanho.
Depois da introdução improvisada por Noel, o cantor recomeça:
Este amor tristonho
Não devemos relembrar...

Finda a canção, já não são quatro os componentes do grupo. Noel ouve os


elogios dos três violonistas, agradece, se apresenta. Um deles, Vicente Gagliano,
é seu velho conhecido, um dos muitos que ainda vão encher a boca para lembrar
que foram "professores de Noel" (ensinou-lhe de fato alguma coisa, inclusive
uma valsa em mi menor). Casado, muitos filhos, mora em frente ao chalé numa
casa de porta e janela da qual só de vez em quando consegue sair para uma
reunião como esta. Hoje ele vive de um ou outro servicinho que aparece, mas
houve época em que ganhava o sustento vendendo essências, talcos, águas-de-
cheiro, sabonetes, daí o apelido de Vicente Sabonete que nunca o deixará. Dos
três desse grupo, é o único que terá reconhecimento fora das fronteiras das
serestas do bairro. Ex-tocador de ocarina, pleno domínio da técnica do violão,
ainda será citado em letra de fôrma pelos estudiosos do choro, sendo apreciado
acompanhante e solista de coisas à João Pernambuco e outros cultores do
gênero(1).
1. Diz Alexandre Gonçalves Pinto em O Choro (página 129): "Vicente, conheci muito menino quando nada tocava, ficando bem admirado quando num choro escutei o com seu mavioso
violão não só acompanhando admiravelmente como também fazendo solos de arrebatar."

O segundo violonista é o Julinho Ferramenta, de dia funcionário da Casa da


Moeda, de noite boêmio devoto para quem uma canção é como uma reza: toca
como se estivesse ajoelhado diante de um altar. O terceiro, Agenor Eloy Passos,
é filho de general e ele próprio homem de posição, técnico em contabilidade do
Ministério da Agricultura. Quando sua mão esquerda trabalha no braço do
violão, torna-se ainda mais reluzente o grande anel de grau que carrega no dedo,
cheio de pose. Muitos o chamam de "doutor", mas aqui, no sereno, ou lá no
Boulevard, nos botequins em que se senta para conversar fiado, cantar e tocar, é
simplesmente o Nonô, doutor em violão e nada mais. Por último, o cantor: - Meu
nome é José Souza Pinto. Alegria, para os amigos.
Não é difícil saber a razão do apelido. José, ou Jota como alguns o chamam,
ou ainda Alegria como o tratam quase todos, é homem de sorriso constante.
Adora cantar, vive desde menino com jornais de modinha debaixo do braço. É
verdade que nem sempre são alegres os números do seu repertório, como deixou
bem claro o tango-canção do Índio que acaba de interpretar. Mas quem lhe pôs o
apelido na certa não lhe conhecia o canto triste. E ficou Alegria mesmo.
Ele e Noel gostam logo um do outro. Uma simpatia mútua que, nascendo
nesta noite, ainda se transformará em grande amizade.
- Moro aqui perto, no 130 - diz Noel apontando para o chalé. - Aparece lá
em casa para ouvir umas musicas que ando fazendo.
Alegria vai aparecer. Será um dos freqüentadores mais assíduos do chalé,
desses que chegam na hora do café da manhã, vão ficando, almoçam, lancham,
jantam e só não dormem porque, afinal, está justamente no não dormir a
diferença entre visitar e morar. Desde este fim de noite, sob um poste de luz da
Theodoro da Silva, serão não apenas amigos, mas inseparáveis nas serenatas
pelas ruas de Vila Isabel. Ele, Julinho Ferramenta e Nonô. E depois outros, o
Clóvis Silva, o Octacílio Ramalho, os irmãos Paulo, Mário, João e Manuel
Anacleto, o Francisco Martins, o Waldemar Coroa. Gente de classe média como
Noel, mas também muitos batuqueiros que descem do morro dos Macacos, do
Salgueiro, da Mangueira, para pegar no pesado cá embaixo, e acabam ficando
para uma cantoria noturna: Canuto, Puruca, Pixó, Duas Covas, Maciste,
Ildebrando, Fortunato Melancia, Papo de Angu, Aristeu, Osso.
Vila Isabel é um bairro curiosamente musical. Curiosamente na medida em
que jurisdições vizinhas, aqui pertinho, como a Tijuca, o Maracanã, o Engenho
Novo, também parecem ter tudo para embeberem de ritmos e melodias as suas
noites e no entanto não possuem metade da alma sonora de Vila Isabel. É
evidente que também há música naqueles bairros. Música e músicos.
Mas não com a quantidade daqui. E, se se for pensar bem, tampouco com a
qualidade. Os melhores compositores e cantores dos que se encontram pelas ruas
da Tijuca descem do Salgueiro, dos que circulam pelo Engenho Novo vêm de
subúrbios mais distantes, dos que fazem ponto no Largo do Maracanã vivem
num daqueles barracos que, do outro lado da linha do trem, colorem de pobreza
a paisagem do morro da Mangueira.
Já aqui em Vila Isabel os seresteiros são quase todos gente do lugar,
membros da "grande família" de que falava vó Rita e de que ainda falam velhos
moradores. Os rapazes que tocam e cantam pelas esquinas, os que improvisam
versos e criam música nos botequins, nasceram, cresceram ou pelo menos
residem aqui há muito tempo.
Como se verá, este bairro de meio de caminho, ilhado entre outros, destina-
se a ser aquilo que um cronista chamará de "celeiro"(2).
2. É Araújo Lins quem escreve: "Vila Isabel do samba ainda não teve o seu cronista. E mesmo a música ainda não disse a verdade sobre o celeiro." Em A Nação de 19 de janeiro de 1936.

Não apenas de sambas e sambistas, mas de partidos, coisas do Norte,


choros, canções, boa música popular.
Como explicar esta fertilidade musical de Vila Isabel? Como justificar que
surjam aqui, todos os dias, todas as noites, meninos que tocam violão tão bem,
artistas que se interessam tanto pelo carnaval, poetas cultos que cedo ou tarde
aderirão ao coro das serenatas. Meninos como Noel, artistas como Antônio
Nássara, poetas cultos como Orestes Barbosa. Mas estes dois ilustres
personagens ainda não entram na história.
Por enquanto, os contatos de Noel são mesmo com os seresteiros e um ou
outro batuqueiro. Gente que gosta de cantar por cantar, de tocar pelo prazer de
extrair novos sons do violão. Como Clóvis Silva, o Clóvis Miguelão, que vive
acompanhando Noel nas idas a A Guitarra de Prata (o hábito adquirido nos
tempos de São Bento, ele, Hélio e Glauco Vianna indo ver e ouvir Quincas
Laranjeiras, João Pernambuco e outros, não foi abandonado). Noel e Clóvis
ficam ali, às vezes por horas, aprendendo com os mestres do instrumento. Pena
que a necessidade de sobrevivência obrigue o Miguelão a passar mais da metade
do dia trabalhando como policial (ainda vai ser um dos guardas de segurança do
futuro prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto Baptista). O violão será
esquecido. A mesma coisa com o Octacílio, mecânico da Light. Quem o vê
exibindo os músculos, gabando-se de ser um atleta, ginasta, levantador de peso,
lutador de greco-romana, não o imagina tão sensível à música. Outro bom
violonista que as serenatas perderão para a força policial.
É com essa turma - a voz de Alegria sempre pontificando - que Noel sai de
violão pela noite. Às vezes para atender ao apelo de um amigo como Arnaldo
Araújo:
- Noel, acabo de brigar com minha namorada. Desta vez foi feio. Será que a
gente não pode remediar as coisas com uma serenata?
E vão todos para debaixo da janela da moça, Noel ao violão, Alegria
cantando as mágoas pelo amigo e este esperando que as canções de amor
transformem a briga em pazes feitas. Se tudo correr bem, Arnaldo, feliz da vida,
pagará a ceia para todos. Em outras ocasiões,, porém, trocam a luz das estrelas
pelo prestígio que desfrutam no Café de Vila Isabel, ou melhor, no botequim do
Carvalho, numa das esquinas do Boulevard com Souza Franco.
Não se pode compreender bem o bairro sem se conhecer seus botequins e
suas esquinas, especialmente estas que formam o cruzamento conhecido como
Ponto de 100 Réis. O nome se deve a ser ali, de um lado e do outro da avenida
dividida por estreita calçada com canteiro, que os bondes "mudam de seção",
passando-se a cobrar de cada passageiro, a partir daquele ponto, mais 100 réis.
Os bondes procedentes do Lins de Vasconcellos e do Engenho Novo param em
frente à agência da Caixa Econômica. Os que vêm da cidade o fazem em frente
ao Café Rio Clube, de propriedade do Martinez.
Pois este cruzamento, completado pela quarta esquina, a da Confeitaria do
Ventura, é o centro nervoso do bairro. E seu coração também. É onde todos se
encontram para conversar, saber das novidades, ouvir e contar casos. À sua volta
ficam as principais casas de comércio da avenida, os sobrados onde a tavolagem
não descansa, a movimentada máquina de apostas do banqueiro de bicho
Lourenço Gilaberte com suas cinco, seis, às vezes sete extrações diárias: Para
Todos, Rio, Niterói, Salvação, Desespero e, havendo quem se disponha a arriscar
mais algum, a "doutor" Lourenço e a Mão na Saca, o próprio banqueiro
sorteando os números de uma sacola de víspora. No Ponto de 100 Réis reúne-se
toda sorte de gente, jovens e velhos, operários de fábrica e desocupados,
doutores e oportunistas, chefes de família e estudantes, policiais e sambistas. Os
botequins e as esquinas são entidades integradoras, em torno das quais se
conhecem, se aproximam, conversam, trocam idéias e até ficam amigas as
criaturas mais diversas, de níveis sociais tão distintos que muito provavelmente,
não houvesse os botequins e as esquinas, seus caminhos jamais se cruzariam. Os
botequins mais que as esquinas, uma vez que aqui, no Ponto de 100 Réis, cada
calçada costuma ser uma espécie de "território" próprio, um da turma do jogo,
outro dos estudantes, o terceiro do pessoal do futebol, o quarto da boêmia.
Já nos botequins, a música nivela todos, iguala os mais vários espíritos. Não
tanto o do Martinez, sempre cheio na hora da conversa, mas pouco musical, seu
dono não sendo muito amigo de cantorias. Diferente, portanto, do Carvalho. Um
dia, quando alguns dos moços que hoje o freqüentam se tornarem famosos como
compositores e cantores de rádio, o Carvalho há de ser lembrado em reportagens
de jornal. Numa delas, profeticamente: "Quando se escrever a história do nosso
samba, o Café de Vila Isabel, onde Noel Rosa faz ponto, merecerá capítulo
especial. Ali foi que o inspirado compositor fez a maior parte de suas
composições, depois de uma hora da madrugada."(3)
3. Diário de Notícias, Rio, 15 de fevereiro de 1931.

O dono desse café, um português pacato e de coração como doce de calda,


era 'amasiado' com os fados, mas não olhava com desprezo para o samba que era
como que uma mulatinha para seus ouvidos...
E como é democrático por índole, não fez como os outros donos de cafés do
bairro, deixou que Noel Rosa, com a turma que o acompanha em Vila Isabel,
continuasse ali a vibrar as cordas de seu pinho e a escrever suas letras. Com o
tempo, o bom luso mostrou achar-se enamorado de nossa música. Foi
desprezando os fadinhos e fazendo 'pés d'alferes' com os sambas. Hoje, é o
primeiro a gritar: -Eu sou do samba e quem disser que não sou... é porque não
sabe que... eu sou.
Hélio não anda, raramente andará pelos mesmos atalhos do irmão. Não só pelas
idades, um com dezoito, outro com quatorze, mas principalmente porque as
diferenças de gostos, hábitos e temperamentos, já nítidas na infância, se
acentuaram com o tempo. Hélio não pára no Ponto de 100 Réis, não é de se
misturar aos cantores dos botequins e das madrugadas. Violão bom para isso ele
tem, caminhando que está para ser ainda melhor que Noel como solista e
acompanhante. O que o afasta das noitadas é o seu jeito mais fechado, seu
retraimento natural, o interesse pelos livros, curiosidade em saber sempre mais
sobre tudo. Nesse passo, sobra-lhe pouco tempo para prazeres boêmios. Já vimos
que nunca foi aluno brilhante, agora mesmo recorrendo a provas no Pedro II para
livrar-se da álgebra do terceiro ano, já sabendo portanto que também não
conseguirá formar-se com sua turma no São Bento(4).
4. A exemplo de Noel, Hélio recorreu aos exames no Pedro II para se bacharelar. Também como o irmão, só'conseguiria em fins de 1930, graças ao Decreto-Lei 19.404.
Mas nem por isso deixa de ser um garoto excepcionalmente inteligente.
-Puxa, o Hélio sabe de tudo!-as pessoas costumam exclamar.
Surpreende a todos com seus conhecimentos de literatura francesa,
astronomia, zoologia, vida dos santos, generalidades e tudo que diga respeito às
culturas esotéricas. Os amigos ficam horas a ouvi-lo discorrer sobre todos esses
temas e a falar da morte, da reencarnação.
- Puxa, o Hélio sabe de tudo... Mas como é esquisito!
A fama de gente esquisita vai acompanhar para sempre os moradores do
chalé. Uma família que desde o enforcamento de Bellarmina o pessoal do bairro
acha um tanto dada a estranhezas. A começar pelos meninos, Hélio a falar de
almas do outro mundo, Noel a passar longo tempo sob a goiabeira, violão no
peito, cantando:
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade...

- Coitado! Tão moço...


E o que dizer de seu Medeiros, homem que passou tantos anos afastado da
família para pagar uma dívida que só existia em sua cabeça e que hoje se
endivida para consumar inventos que também só existem em sua cabeça? Não é
menos esquisito aos olhos dos vizinhos, embora um esquisito simpático,
educado, inofensivo. Mas a família sabe o quanto continua a mudar. Já foi um
bom pai, um marido generoso, responsável. Martha lembra-se daqueles tempos
com saudades. Depois, os acessos de febre fazendo-o correr pela casa imitando
índios, novas idas para o interior, aquela última volta após o suicídio da mãe,
mais mudado que nunca, castigando os filhos, apoquentando a mulher, delirando
projetos.
E vai mudar ainda mais. Desde que voltou de Bica de Pedra, há mais de um
ano, não trabalha. Sonha, apenas. Os que o vêem como um esquisito simpático,
inofensivo, não podem mesmo deixar de compará-lo a um dom Quixote, sempre
empenhado em batalhas enganosas, sempre investindo contra inimigos
imaginários. É mais ou menos este o caso dos barcos, a tal idéia que o persegue
desde que voltou, outro, de Bica de Pedra. Seu Medeiros acaba de tornar-se
amigo e sócio de Aníbal Teixeira Ribeiro, português que mora com a mulher e
cinco filhos quase em frente ao chalé. Convenceu-o de que é possível fazer
fortuna tirando patente das invenções e descobertas que tem em mente. Não vê
Aníbal aonde chegaram Nobel com a dinamite, Graham Bell com o telefone,
Edison com a lâmpada elétrica? E o que dizer do nosso Santos Dumont?
Os barcos na verdade não são barcos, mas uma espécie de bicicleta aquática
que os dois constróem com as próprias mãos, a partir de um desenho do
"engenheiro" Neca. São três cilindros de madeira leve, unidos pelas
extremidades de modo a formarem uma base triangular. Dessa base partem
hastes metálicas sobre as quais foi ajustado um selim de bicicleta. Na parte
inferior, também presos aos cilindros de madeira, dois pedais. E nada mais.
Construído esse protótipo, vão Aníbal e seu Medeiros testá-lo no açude da
Fábrica Confiança Industrial, na Rua Piza de Almeida, com a autorização de seu
diretor, Jerônimo José Ferreira Braga Netto. Pedem-lhe emprestado também um
motor de barco para adaptarem à base triangular, mas não chegam a usá-lo. A
experiência não é de todo fracassada. Aperfeiçoada aqui e ali, até que a idéia não
é má. Mas logo seus inventores e possíveis fabricantes ficam sabendo que jamais
poderão patenteá-la. Por um simples motivo: já o fizeram antes deles. Há muito
tempo os americanos conhecem, fabricam e usam em suas praias e lagos os
engenhosos water cycles. Mais uma frustração para seu Medeiros.
As novas mudanças partem justamente deste novo tropeço. Quando a
rapaziada do Ponto de 100 Réis sabe deste e de outros esforços de Aníbal e
Medeiros no campo das invenções, não perde oportunidade de fazer de tudo uma
grande, impagável galhofa. Uns passam pelo português e, em tom sério,
perguntam:
- Seu Aníbal, e aquela máquina de vincar meias?
Outros:
- É verdade que o senhor inventou um palito de três pontas?
Outros mais:
- E como vai o despertador silencioso? Com seu Medeiros há mais respeito.
Nada de piadas ou provocações. Apenas uma pergunta fingidamente interessada:
- Qual é a próxima descoberta, seu Medeiros?
Mas ele sabe que o projeto da bicicleta aquática, ao desmoronar, fez um
barulho tão grande que o arrancou de seus sonhos. De volta à realidade, perde
muito da autoconfiança, da coragem, da soberba. E também daquilo que o
convertera num homem duro, intratável, que levava desassossego à vida da
mulher e dos filhos. Fecha-se de novo. Recupera a humildade. E acabará
aceitando o modesto emprego que o compadre Graça Mello lhe conseguirá na
Prefeitura. O burocrata vai substituir o inventor.

O botequim é mesmo uma entidade integradora. E altamente democrática.


Se se for ver, é a instituição que mais serviços comunitários presta aos homens
do bairro. Mais que a igreja, o clube, a delegacia. Exagero? De modo algum.
Vendendo refeições fiado, emprestando dinheiro, fixando em suas paredes
anúncios manuscritos pedindo ou oferecendo empregos, pondo seu telefone à
disposição dos que não o têm (telefone é privilégio de poucos neste 1929),
oferecendo suas mesas para quem quer que seja, o botequim realmente serve e
integra a comunidade. Para os fregueses assíduos, homens como o Carvalho e o
Martinez jamais dizem "não posso". Eles sempre podem. Qualquer coisa, desde
pregar mentiras salvadoras (à namorada, à mulher, ao credor ou à polícia) até dar
e receber mensagens, funcionar como eficiente agência de recados.
É através do Carvalho, por exemplo, que Noel sabe de amigos ou simples
conhecidos que o querem ver à noite, em tal hora e lugar, para uma serenata de
esquina, uma festa em casa de família, um encontro em que se faça necessário o
som de seu violão. Esse tipo de recado é cada vez mais comum, Noel sendo tão
ou mais requisitado que Julinho Ferramenta, Nonô, violonistas mais velhos e
experientes, com os quais, diga-se, continua aprendendo bastante desde aquele
encontro na Theodoro da Silva.
Humor e repertório do violonista Noel Rosa variam de situação para
situação. Se são muitos a ouvi-lo, como ocorre em aniversários, batizados,
casamentos, limita-se a tocar o que lhe pedem, Abismo de Rosas, uma canção,
sambas, valsas, choros, nada de seu. Mas se a reunião é mais íntima e informal,
não mais do que cinco ou seis amigos em volta de um poste e luz, um banco de
praça, ou sob a janela de uma moça bonita, sente-se mais à vontade para criar.
Nessas horas, tanto pode ser romântico como divertido, fazer canções a Cândido
das Neves como paródias a Noel mesmo. Quase tudo que produz por esta época
- meros esboços de um jovem de dezoito anos que ainda não se compenetrou
inteiramente de sua condição de compositor popular - será esquecido. As
canções, as paródias e as peças instrumentais, um ou outro amigo se lembrará
desta ou daquela. Ainda não perdeu a mania de brincar com o Hino Nacional,
que gosta de solar a seu modo, mudando-lhe o andamento, fazendo sobre a
melodia improvisações as mais curiosas. Se não é o Hino Nacional, é La
Marsellaise. Entre amigos mais chegados e ex-colegas de São Bento que
aparecem para vê-lo, ou para visitar o Manuel Jansen Muller na Rua Torres
Homem, gosta de mostrar suas "últimas criações": - Ouçam esta. Chama-se
Valsa dos Peidos.
E começa a solar uma bonita melodia, aqui e ali acrescida de um som
característico produzido sobre o bordão:
- É o peido grosso. Ou sobre a prima:
- É o peido fino.
Heitor Lino, outro ex-aluno do São Bento, nunca esquecerá esta inusitada
valsa que ouve Noel solar na esquina do Boulevard com Silva Pinto, na presença
do Farias, pintor responsável pelos cartazes a mão que anunciam os filmes e
espetáculos do Cine Vila Isabel, inaugurado não faz muito tempo a alguns
passos da Praça 7. Primeiro, Noel os convida:
- Vamos fazer umas farras por aí? Heitor Lino, rapaz de vida sem ousadias,
diz que não, já é tarde, hora de dormir, amanhã é dia de batente. Noel canta e
toca mais algumas músicas, bisa o solo da tal valsa e some na noite com o
Farias.
Quando não é o Farias, é Sylvio Pinto, o Seringa. Õu então o Waldemar
Coroa, que além de bom companheiro de farra, desses sempre dispostos a esticar
um pouco mais uma noitada, é outro excelente seresteiro. Se não o melhor dos
que freqüentam o botequim do Carvalho, ao menos o mais compenetrado no seu
jeito de levar a mão ao peito, fechar os olhos e, compungido, soltar a voz:
Eu tenho um sentimento profundo
Da primeira jovem que amei no mundo...(5)
5. Era mesmo Waldemar Coroa - e não Canuto, como diz Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 68) - quem cantava assim tão compungido. É o próprio Noel quem
esclarece em entrevista ao Diário de Notícias de 15 de fevereiro de 1931: "O Waldemar Coroa tem um dom especial para cantar sambas. Às vezes, na maior orgia, ele se afasta para um canto, põe a mão
no peito e canta: 'Eu tenho um sentimento profundo da primeira jovem que amei no mundo'."

E quando não é o Farias, o Seringa ou o Coroa, tanto podem ser os crioulos


de morro, Canuto, Puruca, Telefone, Andaraí, pois Noel não é de fazer diferença
entre brancos e negros, pobres e menos pobres, como pode ser também um dos
irmãos Araújo:
- Vamos ao Mangue, Arnaldo?
Esses convites de Noel nem sempre encontram Arnaldo financeiramente
prevenido. Ele e o irmão Antônio trabalham com o pai alfaiate, estão aprendendo
o ofício, não ganham muito. Mas Noel não se abala:
- E quem precisa de dinheiro para ir ao Mangue?
Arnaldo e Noel tomam o Lins de Vasconcellos, saltam na Rua Senador
Euzébio, atravessam o canal para a Visconde de Itaúna e dobram numa das
transversais, a Comandante Maurity, a Carmo Netto, a Laura Araújo. Percorrem
as casas, entram nos botequins iluminados onde se ouve música tocada por
pequenos conjuntos, violões, violino, clarinete. Música triste que as mulheres de
suas janelas preferem não escutar. Noel talvez peça um violão emprestado,
talvez se sente para uma cerveja, uma conversa, uma canção. Mas não é para
isso que vieram aqui.
- Quer dizer que você esta mesmo duro? - pergunta a Arnaldo.
- Eu não te disse?
- Não faz mal.
Os dois circulam por Amoroso Lima, Corrêa Vasquez, Júlio do Carmo,
Nery Pinheiro, Benedicto Hipólito, cidadãos eminentes que emprestam seus
nomes às ruas do pecado. Param defronte de uma casa. Da janela, uma mulher os
chama com as mesmas palavras e gestos de todas as outras.
- Espera aqui que eu vou lá dentro te arranjar uma pequena.
Arnaldo espera. Noel não demora mais que dez minutos. Diz ter nesta casa
uma boa amiga, pessoa desinteressada que eventualmente não lhe cobra nada.
Nem a ele, Noel, nem a um amigo do peito como Arnaldo. É só entrar. A amiga
já o está esperando. Noel indica o quarto.
- Pode ir. É uma ótima pequena. é muito bonita.
Arnaldo vai, Noel fica aguardando no portão da casa, olhando o
movimento. Homens bem vestidos, marinheiros, bêbados, estudantes, cafetões,
policiais à paisana, mendigos, garotos fazendo força para aparentar mais idade
do que têm, batedores de carteira, atravessadores, músicos, poetas, viciados,
gente com sede de sexo. É estranhamente variada a população flutuante do
Mangue. Mais que a da Lapa, onde os sem-dinheiro não têm vez. Por qualquer
vinte, trinta mil réis, pode-se comprar por aqui alguns minutos de mulher. Na
Lapa, só com carteira bem mais provida. Ou então com a mesma boa conversa
que permite a Noel cavar companhia para um amigo. Menos de quinze minutos
depois de ter entrado no quarto, Arnaldo volta.
- Tão rápido?
- Pombas, Noel! Por que não me avisou?
- Avisar o quê?
- A pequena, Noel... A pequena!
- O que que há de errado com ela?É uma grande mulher.
- Talvez seja...
- Então? Está reclamando de quê?
- Você não me avisou que... ela não tem os dois braços.
Noel olha para o amigo, não se sensibiliza muito com seu espanto, puxa-o
para irem embora. Já no ponto de bonde, como se não entendendo bem o amuo
do outro, indaga:
- Ora, Arnaldo, que diferença iam fazer dois braços?
De certa forma, não é apenas topograficamente que o Boulevard divide Vila
Isabel em duas. Em muitos aspectos, são consideravelmente diversos os dois
lados repartidos pela avenida. O direito de quem vai para a Praça 7 é mais novo,
de casas recém-construídas, mais valorizadas e, por conseguinte, habitadas por
famílias de mais posses. O esquerdo, mais antigo, está muito ligado à vida das
fábricas, a Confiança principalmente, mas também outras, grandes e pequenas
indústrias montadas no eixo da Rua Maxwell até os limites do Andaraí. Lógico,
também há operários de fábrica e gente pobre morando do lado direito. E casas
boas, pessoas abastadas, do esquerdo, inclusive na Teodoro da Silva, perto do
chalé. Mas Vila Isabel, como todo bairro que cresce, não pode deixar de exibir
contrastes entre velhos moradores, mais pobres, e novos, endinheirados.
O Boulevard é linha mais ou menos neutra. E nele, mais neutra ainda, a
instituição do botequim. Não fosse isso, Noel e seus companheiros - Alegria e
todos os outros - não conviveriam ao mesmo tempo, em torno das mesas do
Carvalho, com Canuto, Osso e doutores de anel no dedo, rapazes de famílias
tradicionais como os Boamortes, os Barros Nunes, os Baldessarinis, os Farias
Lima. Não "fosse isso, também, aqueles humildes negros nascidos e criados no
morro não estariam trazendo para esta mesa sua valiosa contribuição à música
que começa a florescer em Vila Isabel. O samba, principalmente. Como se disse,
o botequim a todos integra.
Mas, nesses primeiros dias de 1929, os freqüentadores do Carvalho têm
clara preferência pelas canções, pelas modinhas, por um tipo de música que lhes
permite navegar em ondas de sentimentalismo:
Só é feliz quem não se diz
Saber vibrar os beijos flébios do luar...

Cândido das Neves, Freyre Júnior, Uriel Lourival, estes são os autores
prediletos dos seresteiros de Vila Isabel. E, claro, Catulo da Paixão Cearense,
palavroso como sempre:
Espúmeos ais que em branca areia
O quieto mar vem derramar
São fontes perenais de ingente amar...

Ou Hermes Fontes, que de vez em quando não fica atrás:


Vento, esfolhais!
Oh, Sol, crestais
Da rosa d'alva as frias pétalas de gelo.

Como todo seresteiro que se preza, estes, de Vila Isabel, descendem em


linha direta dos poetas românticos do século passado. Suas letras são rebuscadas,
cheias de afetação. As amadas são comparadas a flores, seus dentes a pérolas,
seus olhos a lagos e mares, seus cabelos a seda. Tudo são imagens, pompa
poética. De qualidade:
Como Deus é inspirado!
Inventou para o pecado
Estas noites de luar...

Ou não:
Prossegue embora em flóreas sendas, sempre ovante
De glórias cheia e no teu sólio triunfante...

O botequim é mesmo tudo, a segunda casa, o escritório, o clube, o centro


comunitário, o balcão de anúncios. E o palco onde estes jovens fazem sua
música. Noel entre eles, compenetrando-se na hora de acompanhar Alegria,
Miguelão, Coroa, numa canção do índio, divertindo-se com sua escatológica
valsa, fazendo os outros rirem com suas paródias. Muitas chegarão a ficar
conhecidas além dos limites de Vila Isabel. Como esta em que mais uma vez
recorre à melodia de A Casinha da Colina:
Você sabe de onde eu venho?
De uma latrina que eu tenho
Lá no fundo do quintal.

Tem um buraco na porta,


Do buraco vê-se a horta,
E da horta o repolhal.

Seja como for, tudo é música no botequim do Carvalho. Sobretudo música


romântica, seresta. Por isso, todas as noites, depois das onze, quem passa pela
esquina de Souza Franco com o Boulevard não pode deixar de ser tocado pelos
sons que vêm lá de dentro. Pára, fica ouvindo, gosta. Meia-noite, a mesa onde
Noel e seus companheiros se sentam vai sendo cercada por curiosos, por gente
que não se importa se a versalhada é boa ou má poesia. O que vale é a voz de
Alegria, o violão que o acompanha.
Meia-noite e meia, o botequim está cheio. Um dos fregueses aproveita a
pausa para ordenar ao Carvalho:
- Duas cervejas para os rapazes. Outro, lá da porta:
- Mais duas.
Há os que preferem municiar de sólidos estes cantores da noite:
- Carvalho, serve para a turma umas fatias de presunto.
Assim a noite avança. A cada canção, ouvida sempre em silêncio, Noel e os
outros são "pagos" pela platéia que vê neles verdadeiros artistas. Cervejas, fatias
de frios e queijos, às vezes uma sopa. Se a seresta é boa de verdade, ceia
completa para todos, por conta de um rateio feito ali mesmo, na porta do
botequim.
Estas serenatas - Noel ainda vai admitir - aumentam a sensação de
importância que já havia experimentado, anos atrás, no dia em que, ao trocar o
bandolim pelo violão, começou a descobrir que sua música tinha o raro poder de
encantar as pessoas.
Capítulo 10
UM BANDO DE PÁSSAROS
A vocação é necessária até para se dar o laço na gravata.
Meus Pensamentos

Menos pelos versos chulos, criados para melodias alheias, mas pelo que
sabe fazer ao violão, acompanhante de cantores da madrugada, Noel Rosa torna-
se conhecido. Seu nome já corre pelo bairro: "Só tem dezoito anos. E que
violão!" Triplicam os recados no Carvalho, repetem-se as solicitações para que
atue em festas e serenatas. Até que um dia é procurado por um grupo de jovens
como ele: - Somos do Flor do Tempo.
O nome não lhe diz muito. Mesmo depois que os rapazes explicam tratar-se
de um conjunto musical por eles formado há três anos para exibições em
residências, espetáculos amadoristas e festivais beneficentes. O conjunto
começou exclusivamente com alunos do Colégio Batista, da Rua José Higino, na
Tijuca, mas depois foi crescendo até ter gente - moças e rapazes - de toda parte.
Entre os fundadores estavam os filhos de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt,
firma que funciona na Rua Chile(1), vendendo e alugando máquinas
registradoras importadas da Inglaterra.
1. Atual Rua da Ajuda.

Por sinal, da residência dos Dales na Rua do Trapicheiro(2), é o nome


poético com que os rapazes batizaram o conjunto: Flor do Tempo.
2. Atual Rua Heitor Beltrão.

- Mas crescemos demais - explicam.


Com efeito, o Flor do Tempo cresceu tanto, violonistas, ritmistas, cantores,
que quase atinge as dimensões de uma grande orquestra. E isso é mau. Mesmo
sendo extremamente seletivo o espírito do conjunto (Dale é homem rico, reside
em confortável e luxuosa casa de dois andares, varanda, jardins, freqüentada pela
alta classe média tijucana), não foi possível evitar que o grupo se hipertrofiasse,
nele coexistindo, hoje, bons e maus músicos, bons e maus cantores. Noel ouve as
explicações.
-Estamos querendo organizar novo conjunto.
Os jovens que procuram Noel estão convencidos de que algo de muito
importante começa a acontecer na música popular: o disco. É verdade que desde
1902 fazem-se gravações no Brasil. E que nos últimos anos cresceram bastante a
indústria e o comércio fonográficos no Rio de Janeiro. Mas parece já ir longe o
tempo de Bahiano, Mário Pinheiro, Cadete, Eduardo das Neves e outros
pioneiros da Casa Edison. Agora, os melhores artistas do palco e do picadeiro
vão invadindo com suas vozes as privilegiadas residências que possuem um
aparelho capaz de reproduzir os sons gravados nestas delicadas chapas pretas:
Vicente Celestino, Zaíra de Oliveira, Patrício Teixeira, Aracy Cortes, Gastão
Formenti. E também Francisco Alves, cujo canto inaugurou há dois anos o
sistema de gravações elétricas entre nós. Seu cartaz, graças precisamente ao
disco, não pára de crescer.
Neste 1929, vai subir para cinco o número de gravadoras em atividade no
Brasil(3).
3. A Odeon e sua subsidiária Parlophon, ambas da Casa Edison do Rio de Janeiro, e mais a Victor, a Columbia e a Brunswick eram as cinco gravadoras em atividade no Brasil em 1929-A
Odeon foi a pioneira. E o disco com que Francisco Alves inaugurou em 1927 o sistema de gravação elétrica entre nós (número de catálogo 10.001) tinha de um lado a marcha Albertina e do outro o
samba Passarinho do Má, duas composições de Antônio Lopes de Amorim Dinis, o Duque.

E uma delas, a Parlophon, subsidiária da Odeon, acaba de oferecer a estes


rapazes a oportunidade de fazerem um disco. Por isso eles estão aqui,
conversando com Noel. Repetem que algo de muito importante realmente
começa a acontecer na música popular. As gravadoras, engatinhando ainda, de
estrutura e organização precárias, com dificuldades mesmo para formarem os
seus casts, estão recorrendo a cantores, instrumentistas e grupos amadores como
o Flor do Tempo para enriquecerem seus ainda modestos catálogos de
lançamentos. Rapazes de classe média - muito mais interessados na novidade do
disco do que nas incertas vantagens financeiras que podem obter da música -
passam a ser vistos nos estúdios, cantando, tocando. São "artistas" baratos, se é
que custam alguma coisa. Eles próprios fazem rigorosamente tudo, compõem,
cuidam dos arranjos, ensaiam, cantam e se acompanham, de modo que para as
gravadoras, a não ser no que diz respeito aos gastos materiais (estúdio,
eletricidade, cera, acetato), um disco sai praticamente de graça. Se acontecer de
fazer sucesso, tudo é ganho. Se não, pouco se perde.
É por esta porta espertamente aberta pelas gravadoras aos jovens da classe
média que os rapazes do Flor do Tempo pretendem entrar. Só que já não se
chamarão Flor do Tempo. O conjunto original, na verdade, começa a se
desintegrar. Vários de seus componentes já tocam e cantam muito além da
varanda dos Dales, em outras casas de família, clubes, teatrinhos, em todo lugar.
Foi numa dessas apresentações em clube que Carlos Lopes Campeão, diretor da
Odeon, ouviu-os, fazendo-lhes logo um convite para gravar. A partir desse
momento, o Flor do Tempo passou a ter seus dias contados. De tal modo que,
depois de saldados alguns compromissos já assumidos (uma excursão a Vitória,
em fins de junho, e um espetáculo em homenagem ao Rotary Club do Brasil, no
Cassino beira-Mar, a 12 de julho), o conjunto deixará de existir.
E justamente por ter crescido demais. Como colocar tanta gente, cantores,
violonistas, ritmistas, no apertado estúdio da Odeon, na cúpula do Teatro
Phoenix, na Rua Almirante Barroso? Se há necessidade de se reduzir o conjunto
para apenas quatro ou cinco componentes, como decidir quem vai ficar de fora?
Em razão disso, de ser preciso reduzir seu contingente para atender ao sedutor
convite da Odeon (e do embaraço que seria cortar moças e rapazes que estavam
entre seus fundadores), o Flor do Tempo sai de cena para que em seu lugar surja
novo conjunto. Uma seleção natural - apenas os mais talentosos sobrevivendo -
vai transformar a multidão que alegrava as reuniões dos Dales em não mais do
que quatro rapazes. Quem são eles? Noel conhece-os quase todos. Senão de
perto, pelo menos de vista, de encontros ocasionais pelas esquinas de Vila
Isabel.
Henrique Foréis Domingues, o Almirante, tem 21 anos. Cantor, compositor,
letrista, ritmista, é também um líder nato. Já o era no Flor do Tempo, que passou
a integrar numa época em que dele só faziam parte alunos do Colégio Batista.
Almirante, que nunca estudou lá, foi o primeiro a quebrar a regra, graças não só
às suas virtudes como pandeirista mas também à personalidade firme,
impositiva, que sempre lhe dará certa ascendência sobre os outros(4).
4. "... meu nome - conta Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 42) - foi levado a Eduardo Dale, cujas indagações revelavam sua intenção de não alterar as tradições
do conjunto:
- Mas esse 'Almirante' é ou foi aluno do Colégio Batista...?
- Não, mas canta e toca pandeiro que é um colosso - declarou Braguinha.

Tal habilidade, proclamada com tanta veemência, venceu qualquer resistência de Eduardo Dale e eu fui, imediatamente, admitido nas hostes do seleto agrupamento." A partir daquele
momento, mais do que um simples calouro do grupo, Almirante ficou sendo o seu líder.

Uma liderança que jamais perderá. Especialmente no novo conjunto que vai
surgir, cujas atividades serão rigorosamente regidas por suas vontades: caberá
invariavelmente a ele escolher o repertório, indicar o solista, decidir que músicos
de fora ajudarão no acompanhamento, dizer em que dia e hora será feita esta ou
aquela apresentação em público, neste ou naquele lugar. Opinará sobre os
arranjos, aprovará ou não as músicas e letras que os companheiros trarão para
seu julgamento. Será também o divulgador do conjunto. Um eficientíssimo
divulgador. Furão, vivo, cheio de idéias, sempre descobrindo um modo de
promover-se e aos colegas, vai se dever a ele a maior parte da notoriedade que o
novo grupo venha a conseguir. Noel conheceu-o há alguns anos, quando
Almirante tentou, sem êxito, comprar-lhe um velho projetor manual de cinema.
Depois disso, houve muitos encontros ligeiros pelas ruas do bairro, mas
nenhuma aproximação maior. Afinal, enquanto Almirante trabalhava no
comércio e, nas horas vagas, entregava-se ao convívio com os meninos ricos do
Flor do Tempo, raramente parando nos botequins e esquinas de Vila Isabel, Noel
estudava e fazia de sua rotina escolar uma permanente sucessão de horas vagas;
e enquanto Almirante levava vida pacata, metódica, Noel desde cedo seguia sua
vocação boêmia. Natural, portanto, que não houvesse entre eles maior
aproximação.
Encontro com Noel

"Foi em 1923 que conheci Noel Rosa. Eu fora aluno do Liceu Rio Branco, à Rua Conde de Bonfim,
186, na Tijuca, onde depois se instalou e ainda existe o Instituto LaFayette para meninas(5).
5. Já não existe o Instituto LaFayette. O casarão da Conde de Bonfim onde funcionava o setor feminino do colégio (e antes dele o Liceu Rio Branco) foi demolido. Em seu lugar está hoje o
prédio da Mesbla.

Ali, um dia, ganhei do meu colega Paulo Guerreiro um pequeno rolo de filme natural, colorido, sobre
o bicho da seda. Minha família morava no então Boulevard, hoje Avenida 28 de Setembro, número 287,
Vila Fontan, casa 4. Na ansiedade de ver o minúsculo filme, tentei obter um projetor e disso falei a todos os
meus conhecidos. Eis que meu irmão mais moço, Guido, lembrou-se de um colega que desejava desfazer-se
de um aparelho manual, baratíssimo. Fiquei aos pulos e apressei meu irmão para que trouxesse o tal
companheiro à minha presença o mais breve possível.
No dia seguinte, um domingo à tardinha fui procurado em minha casa por um garoto mirrado,
franzino, quase sem queixo, com fardamento do Colégio São Bento, conduzindo, embrulhado num jornal,
um pequeno projetor de cinema. Era Noel Rosa.
Não se fechou o negócio. Por vinte mil réis Noel Rosa venderia o projetor; no entanto, nem rachado
poderia pagar essa fortuna. Basta se avaliar a situação da casa: o aluguel era de oitenta mil réis por mês e,
nessa altura, eu já trabalhava na Casa Cruz, na Travessa de São Francisco de Paula, defronte do Parque
Royal, recebendo por mês noventa mil réis. A firma constituía-se de duas lojas, uma de vidros e imagens de
santos, e a outra, uma papelaria. Aos domingos de manhã, comparecia para a limpeza dos espelhos, vitrines
e arrumações. Daí em diante, em Vila Isabel, de noite, encontrava Noel Rosa, mas pouco nos ligávamos."
Almirante
Braguinha, ou melhor, Carlos Alberto Ferreira Braga, é filho de Jerônimo
José Ferreira Braga Netto, aquele mesmo diretor da Fábrica Confiança que cedeu
o açude e um motor de barco para que Neca e Aníbal realizassem suas
experiências aquáticas. Braguinha tem 22 anos, é o mais velho dos quatro. Toca
violão sofrivelmente, canta mal, mas compõe mais do que bem. Em sua
residência, dentro das próprias dependências da Fábrica Confiança, o Flor do
Tempo ensaiou muitas vezes (e na certa vai ensaiar o novo conjunto). Como os
outros dois companheiros do quarteto que procura Noel, estudou no Colégio
Batista.
Henrique Britto, dezenove anos, é sem dúvida o melhor violonista de todos.
Por esta época, já gravou discos na Odeon solando composições suas e alheias.
Nasceu em Natal, onde, menino de calças curtas, suas proezas ao violão
impressionaram de tal maneira o governador do Rio Grande do Norte, Antônio
José de Mello e Souza, que este decidiu custear-lhe os estudos no Rio de Janeiro.
(Consta que a admiração do governador por Henrique Britto deveu-se não só ao
fato de o menino, então com doze anos, ter participado de um concerto no Teatro
Carlos Gomes, em Natal, solando peças difíceis numa corda só, mas também ao
de já ser, bem antes disso, um precoce autor de valsas, choros, lundus, obras
especialmente para violão.) Há quem veja nele um gênio. Mas há também quem
o considere meio aluado, desconforme, mais para louco do que para gênio.
Agitado, falando as coisas pela metade, como uma metralhadora que dispara e de
repente enguiça. Intempestivo, estabanado, aéreo. Um bom companheiro,
embora impossível de se conhecer bem. Ora muito calado, ora loquaz além da
conta. Mas de uma loquacidade telegráfica, quase monossilábica. É anterior à
sua adesão ao Flor do Tempo o trágico episódio de que foi protagonista durante
um dos passeios que os alunos do Colégio Batista costumavam fazer aos
domingos pelas matas da Tijuca, partindo da Rua do Trapicheiro. Numa cabana
abandonada, Britto e seu grupo encontraram uma velha pistola. Sempre
afrontado, ele pegou a arma, apontou-a contra a própria cabeça e puxou o
gatilho. Ouviu-se um estalo. Parecia descarregada. Em seguida, o mesmo Britto
voltou a pistola para um dos colegas e puxou novamente o gatilho. Um tiro foi
atingir o peito do outro, matando-o. Os anos se passaram e Britto nunca mais
falou no acidente. Como se não tivesse acontecido. Mas continuou o mesmo,
aluado, intempestivo, entre o gênio e o louco.
O quarto e último dos que vêm procurar Noel é Álvaro de Miranda Ribeiro,
o Alvinho. Carioca como Almirante e Braguinha, dezenove anos, violonista,
compositor bissexto, mas cantor afinadíssimo.
Sabedores das qualidades de Noel e precisados de um quarto violonista para
completar o conjunto com que pretendem gravar na Odeon, os quatro lhe
propõem juntar-se a eles. Há uma razão especial para que seja um quinteto. O
conjunto, em vez de Flor do Tempo, vai se chamar Bando de Tangarás, como os
pássaros fandangueiros que, sempre em grupos de cinco, quatro formando roda e
o quinto saltitando no centro, dançam alegremente.
O conjunto, também já está decidido, é amador. Ninguém receberá um
níquel para se apresentar em festas, reuniões, casas de família. Ou mesmo em
teatros e outros lugares em que se cobram ingressos. Dinheiro para as
passagens? Nem isso. Quando muito terão uma participação nos lucros que as
gravadoras obtiverem com seus discos.
- Não podemos deixar que nos confundam com profissionais - sentencia
Almirante, consciente do quanto é malvisto quem vive de música!
É justamente pensando nisso - em não serem confundidos com profissionais
- que Braguinha sugere que cada um dos tangarás adote um pseudônimo para
usar em suas atividades musicais. Por que não um nome de pássaro? Ele próprio
escolhe o do joão-de-barro, transformando-se assim no compositor, cantor e
violonista João de Barro. Com isso, acredita que ficará perfeitamente camuflado,
ninguém associando seu nome ao do filho do diretor da Fábrica Confiança
Industrial. Mas os outros não lhe seguem o exemplo. Almirante já tem o seu
próprio pseudônimo, ganho há dois anos quando, servindo o tiro de Guerra
Naval, desfilou posudo ao lado do Comandante Mathias da Costa, por ocasião da
chegada ao Rio do hidroavião Jaú. Tão posudo que o povo, de farra, começou a
chamá-lo de "almirante". Desse modo, quem antes era o Henrique, ou o Foreis,
ficou sendo para sempre o Almirante. Henrique Britto, o Britto como o chamam
todos, já teve um apelido: Violão. Foi na época do Colégio Batista, quando era
quase impossível vê-lo longe do instrumento.
A lenda dos tangarás

"Uma lenda do Norte do Brasil nos conta que o canto dos tangarás é tão mavioso, tão bonito, que os
índios embrenham-se pelas matas atrás desse gorjeio encantado e por lá ficam semanas inteiras distraídos
pelos verdadeiros concertos que esses pássaros dão no seio da natureza virgem. Os tangarás se reúnem em
bandos de cinco e enquanto um deles canta e marca, por assim dizer, o compasso, os demais respondem em
coro e saltitam como se dançassem no ritmo da música. E a lenda nos diz ainda que enquanto os tangarás
cantam os outros pássaros calam, fazendo-se o mais respeitoso silêncio na mata.
Daí veio a idéia de um amador que, sob o pseudônimo de Almirante, vem obtendo através dos discos
um sucesso cada vez mais acentuado com o conjunto típico que tem o nome dos pássaros lendários. Trata-
se de Almirante e seu Bando de Tangarás: quem não os conhece?
O intuito do bando, composto exclusivamente de amadores, todos empregados em várias profissões,
estudantes ou doutorandos, é levar aos discos as músicas interessantes do folclore brasileiro."
Phono-Arte
30 de setembro de 1930
Também não quer ter nome de pássaro. Álvaro de Miranda Ribeiro já é
Alvinho há muito tempo. Para que mudar? Quanto a Noel, aceita fazer parte do
conjunto, mas rejeita a idéia de chamar-se de outro modo senão de Noel Rosa
mesmo. A vida inteira não vai querer ser mais do que isso: Noel Rosa. Ainda
que venha a tornar-se famoso - e os locutores de rádio passem a apresentá-lo
com os mais escandecidos cognomes, o Poeta da Vila, o Sócrates, o Bernard
Shaw, o Filósofo do Samba - fará sempre questão de deixar bem claro que é
apenas o Noel Rosa(6).
6. Em entrevista publicada por Voz do Rádio de 15 de novembro de 1936, o repórter perguntava:
"- O samba é sempre o mesmo, não é filósofo?
- Qual filósofo, qual nada. Sou o Noel Rosa."
Era mesmo assim que gostava que o tratassem, pelo nome. Apelido, nem os mais elogiosos.

Portanto, só Braguinha, ou melhor, João de Barro, será duas vezes pássaro,


pelo bando que ajuda a fundar e pelo apelido que escolhe.
O Noel Rosa que os outros tangarás conhecem neste 1929 é mesmo um tipo
esquisito. Ao menos aos olhos deles e de alguns outros rapazes que circulam por
Vila Isabel. Não se parece com ninguém. Nem mesmo com o extrovertido e
picaresco adolescente que, não faz muito, divertia os colegas nas salas e
corredores do São Bento. Ainda comete as suas graças, mas costuma alterná-las
com outros humores. Se é possível encontrá-lo à mesa de um dos cafés do
Boulevard, desfilando piadas e trocadilhos, inventando histórias, expondo
pensamentos de sentido filosófico não muito ortodoxo ("Mais vale ir almoçar em
casa de um parente do que trabalhar para ganhar o insuficiente") ou não muito
otimista ("A mulher que mais amou neste mundo morreu antes de saber o que
era amor"), é possível também vê-lo imergir em indecifráveis silêncios, desligar-
se, ficar distante. Essas saídas de órbita, dando impressão de que não vê nem
ouve nada à sua volta, em geral ocorrem durante animados papos de esquina ou
botequim, os outros conversando, ele longe.
- Noel! Noel! - alguém tenta trazê-lo de volta.
- Estou ouvindo... estou ouvindo... - mente.
São ausências que se fazem de repente, como um apagar de luzes. E que se
repetirão, com maior ou menor freqüência, por toda a vida.
Pouco andará com os tangarás. A não ser que os compromissos do conjunto
o levem a isso, preferirá companhias menos bem-comportadas. Raramente irá a
uma dessas festas de que Almirante e os outros gostam tanto, em casas de
famílias abastadas da Tijuca. Seus programas são diferentes. Nada de pessoal
contra qualquer dos quatro companheiros. Só não lhe agradam os ambientes grã-
finos, as reuniões repletas de poses e cerimônias. Sente-se mais à vontade nos
botequins baratos, nas tendinhas de pé de morro, nas salas de espera de um
viveiro de mulheres. Os tangarás jamais se acostumarão com o insólito dessas
preferências.
Também não gosta de andar em bando. Se é o pessoal das serenatas ou das
mesas do Carvalho, ainda vai. Mas nada de aglomerações maiores. E se acontece
de sair com um grupo menos afim, costuma desgarrar-se. Isto é, vai-se afastando
aos poucos, ficando mais para trás, sozinho, andando meio de viés, o ombro
esquerdo bem mais alto que o direito, a atenção não sintonizada com o que o
grupo conversa lá na frente.
Os amigos observam, comentam, tentam compreender o que chamam de
"esquisitices de Noel". Pequenas, como aparecer de vez em quando trajado
segundo o figurino da mais autêntica malandragem carioca: terno branco, camisa
preta, gravata clara, sapatos de duas cores. Ou esquisitices maiores, como
algumas de suas idiossincrasias. As pessoas de que gosta, as pessoas que detesta.
Muitas vezes sem motivo aparente. Almirante e os outros atribuem mesmo a um
temperamento esquisito ele preferir os malandros, os jogadores, os motoristas de
táxi, os operários de fábrica, a gente do morro, os boêmios, os bêbados, os
vadios aos filhos das mais distintas famílias tijucanas. Não o compreendem.
E o que dizer de algumas de suas avessias, inexplicáveis birras, quase
fobias, que guarda em relação a certos tipos de pessoas? Que odeie o
prestamista, muito bem. Decerto não está sozinho neste ódio. Mas por que será
que lhe dá tanto prazer hostilizar garis e mendigos, leiteiros e meganhas,
vizinhos e sujeitos chatos? Aos chatos, pelo menos, não trata de todo mal,
sabendo livrar-se deles com polidez. No meio da conversa, o chato falando,
falando, ele acena para um passante imaginário e grita: - Espera um momento
que eu já vou! Virando-se para o chato:
- Você me desculpe, mas tenho um assunto importantíssimo para tratar com
aquele amigo...
O chato se vira e não vê ninguém, mas essa simples volta de cabeça é o
bastante para permitir a Noel uma escapulida rápida.
Já com os outros não será tão sutil. Chamando os garis de "burro-sem-rabo"
e outras provocações, perturbando o sossego dos mendigos com fustigos e
molecagens, assustando leiteiros ou dando sumiço em suas garrafas, pregando
audaciosas peças em gente da polícia, Noel fará desses habitantes da cidade,
como veremos ao longo de sua história, as vítimas de estocadas que vão da
simples brincadeira de mau gosto às fronteiras da crueldade.
Mas as "esquisitices", ainda segundo a avaliação dos tangarás, não param
por aí. Entre tantas outras, há a paixão pelos burros. Especialmente os que
puxam carroça ("Qual o crime que o burro cometeu para ser condenado a
trabalhos forçados?"). Vê neles uma certa dignidade ("Com que superioridade
um burro pisaria em uma nota de cem mil réis!") e um destino em muita coisa
melhor que o seu ("O burro só tem uma satisfação: não segue a profissão forçado
pela sua família"). Gosta tanto do animal que há quem jure tê-lo surpreendido
muitas vezes a conversar com os que costumam passar, cansados e preguiçosos,
pela Rua Theodoro da Silva.
O Bando de Tangarás se forma, cercado de projetos, em maio de 1929-Noel
é o mais jovem dos cinco, dezoito anos e praticamente nenhum passado como
compositor. Até aqui só brincou, paródias, arranjos, valsas para fazer rir, piruetas
com o Hino Nacional. Este convite que lhe trazem Almirante, João de Barro,
Henrique Britto e Alvinho abre novo capítulo na sua história. Nele vai nascer,
enfim, o compositor popular Noel Rosa.
Bando de Tangarás (Almirante, Noel Rosa, João de Barro, Alvinho e Henrique Brito). imagem extraída de vídeo descoberto em 1994, único registro cinematográfico de Noel tocando. O
cantor, primeiro à esquerda é Almirante.
Capítulo 11

NASCE O COMPOSITOR

Fiz uma toada, Festa no Céu, que dediquei ao bairro onde nasci, ou seja,
Vila Isabel. Concluída a composição, cantei-a para mim somente. Depois para
os parentes e amigos. Todos gostaram. Havia emoção - disseram. Havia
originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz alvoroço dentro de mim.
entrevista ao Jornal de Rádio

Que tipo de música pretendem se dedicar os tangaràs? Qual a matéria prima


do seu repertório? Que canto compositores planejam levar ao disco? Desde logo
o líder Almirante decide que o grupo só cantará e gravará músicas originais, de
sua própria autoria ou de um ou outro compositor que, como eles, esteja se
lançando. Quanto ao gênero, está mais que claro que o Bando de Tangarás, como
o Flor do Tempo que lhe deu origem, nasce ao impulso da moda do momento: a
música nordestina.
Muito responsáveis por essa moda são alguns grupos de violonistas,
ritmistas e cantadores que há quase vinte anos atuam no Rio, a maioria como
amadores. O primeiro deles, Grupo de Caxangá, organizado pelo notável
violonista João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco, e contando com a
adesão de músicos não só nordestinos, mas cariocas como Pixinguinha, Caninha
e Donga, ou paulistas como Bonfiglio de Oliveira, ou de qualquer outra parte do
Brasil, desde que bom folião, começou a sair no carnaval em 1914. Todos de
roupas típicas do Nordeste, chapéus de vaqueiro, lenços no pescoço, sandálias, o
grupo tocava um pouco de tudo, cocos, emboladas, modinhas sertanejas,
cateretês, mas também o maxixe e o choro carioca. Anos depois, muitos outros
grupos surgiram. Os famosos Oito Batutas, por exemplo, embora cariocas,
nasceram sob a inspiração do Grupo de Caxangá e até com elementos a este
pertencentes, como Pixinguinha. E quando se apresentaram pela primeira vez em
público, a 7 de abril de 1919, na sala de espera do Cinema Palais, ainda que
executando muito maxixe e muito choro, seu repertório não deixava de incluir
coisas do Nordeste, maracatus, toadas, canções sertanejas. Os Oito Batutas
visitaram Recife em 1922 e lá fizeram tanto sucesso que logo apareceu novo
grupo, os Turunas de Pernambuco, seguindo suas pegadas. Em 1927, surgia
outro conjunto, os Turunas da Mauriccia, que naquele mesmo ano veio se
apresentar no Rio.
A música popular que mais se ouvia no Rio de Janeiro dos anos 20, como
vimos, eram as valsas e peças para piano, as modinhas, o maxixe, os fox-trots e
outros gêneros importados dos Estados Unidos, executados quase sempre por
orquestras de formação jazzística, as jazzbands. Os ritmos e cantigas que os
grupos trouxeram para o Rio, sobretudo a partir do grande sucesso dos Turunas
da Mauricéia, conquistaram a cidade. Ganharam o disco, os palcos de teatro,
viraram moda. E passaram a animar as festinhas familiares de bairro, na voz e
nos instrumentos de muitos conjuntos criados por gente carioca, um dos quais o
Flor do Tempo. Essa adesão à música nordestina parece dever-se,
fundamentalmente, a dois fatores. O primeiro deles, o caráter nacionalista,
regionalista, do repertório. O segundo, o fato de não serem necessários muitos
músicos e grandes vozes para formar um grupo desses. Dois ou três violonistas,
um pandeiro, um reco-reco, um ganzá. O resto são vozes em coro e
improvizadores de versos. Portanto, é muito mais fácil formar um "regional
nordestino" do que uma jazz band, geralmente composta de piano, pistom,
trombone, sax, clarinete, bateria, banjo. Daí o Flor do Tempo. Daí os tangarâs.
Assim, Almirante, líder e fundador do quinteto do qual faz parte Noel Rosa,
estabelece que seu repertório será basicamente nordestino(1).
1. O espaço que Almirante dedica a estes grupos nordestinos em No Tempo de Noel Rosa diz bem de seu entusiasmo por eles. Sendo o líder dos tangarás, era natural que tal entusiasmo
contagiasse os companheiros e acabasse ditando a própria linha do bando.

Ou melhor, constituído de qualquer tipo de boa música popular brasileira,


mas de preferência nos moldes dos turunas lá de cima:
Quando nós saímos do Norte
Foi pra no mundo mostrá
Como canta aqui nesta terra
Um bando de tangará.

Esta e outras cantigas "nordestinas" criadas por Almirante e seus


companheiros de bando-a que ele próprio chama, impropriamente, de "canções
sertanejas de cunho folclórico" - serão levadas pelos tangarâs ao disco e
constituirão a base inicial de seu repertório. Composições intituladas Vamo Fala
do Norte, Bole-Bole, Vaca Matada, Mulata Mal Inducada, Coisas da Roça, Pra
Vancê, que eles cantam com tal inflexão pra pensar, mesmo, que o novo grupo é
mais uma novidade que acaba de chegar de Pernambuco. Mesmo quando, em
vez de cocos, emboladas e cateretês, o que eles gravam é um samba. Eis o
comentário da revista Phono-Arte: "Almirante trai o seu sentimentalismo de
nortista através de dois melancólicos e agradabilíssimos sambas de sua autoria
Tamburete (letra de Erasmo Vollmer) e Confessa!, gravados no disco) 13.0-1 í
(Odeon). Como se sabe, o samba é um privilégio do carioca. Os dois sambas de
Almirante são, no entanto, à moda do Norte, isto é, neles encontramos mais
'alma' do que mesmo 'requebros' tão característicos dos sambas daqui."(2) 2. Phono-Arte,
15 de novembro de 1929.

Mesmo depois de os tangarâs adquirirem certa reputação, ainda se pensará


por algum tempo tratar-se de um conjunto nordestino. Eis o que dirá a mesma
revista, quase oito meses após a estréia do bando: "É do Norte do Brasil que nos
têm vindo os famosos e inigualáveis grupos dos Turunas da Mauricéia, do
Bando de Tangarás, do Grupo de Calazans e ainda esse conjunto dos
Desariadores do Norte."(3) 3. Ibidem, 15 de janeiro de 1930 (página 21). O Grupo de Calazans era liderado por José Luiz Rodrigues Calazans, o Jararaca, o
mesmo que já havia formado com o saxofonista Severino Rangel, o Ratinho, e outros instrumentistas e cantores os Turunas de Pernambuco. Anos mais tarde, Jararaca e Ratinho fariam famosa dupla
caipira atuando por longo tempo em circo, rádio, teatro, disco, cinema e televisão.

Acento nordestino presente nos próprios sambas, como acontece no


primeiro sucesso do Bando de Tangarás. Gravado em junho de 1929 para o selo
Parlophon, Mulher Exigente, de Almirante, pouco se parece com um samba
carioca:
Tem carinho que eu faço
Tem dinheiro, meu bem
Tem minh'alma e meu braço
E, querendo amor, também tem.

Serão suas primeiras experiências como integrante do Bando de Tangarás.


A toada Festa no Céu - que a partir de agora ele apresentará como sua obra de
estréia, embora não o seja realmente - tem melodia e ritmo "nordestinos". A
idéia é inspirada em história infantil muito conhecida, mas a letra em si, com
todo o acento pseudomatuto, é de grande originalidade.
O leão ia casá
Com sua noiva leoa
E são Pedro, pra agradá,
Preparou uma festa boa.

Mandou logo um telegrama


Convidando os bicho macho
Que levasse todas dama
Que existisse cá por baixo.

Pois tinha uma bela mesa


E um piano no salão.
Findo o baile, por surpresa,
No banquete do leão.

Os bicho todo avisado


Tavam esperando o dia,
Tudo tava preparado
Para entrá firme na orgia.
E no tar dia marcado
Os bicho tomaram banho;
Foram pro céu alinhado
Tudo em ordem por tamanho:

O mosquito entrou na sala


Com um charuto na boca,
Percevejo de bengala
E a barata entrou de touca.

Zunindo qual uma seta


Veio o pingüim do Pólo;
E o peixe de bicicleta
Com o tamanduá no colo;

O siri chegou trasado


No bico do passarinho
Pois muito tinha custado
Pra botá seu colarinho.

E o gato foi de luva


para assistir o casório;
Jacaré de guarda-chuva
E a cobra de suspensório;

O porco de terno branco


Com um sapato sem sola
E o tigre de tamanco
De casaca e de cartola.

De lacinho à borboleta
Veio o veado galheiro
E o burro de luneta
Montado num carroceiro;

O macaco com a macaca


Com o rouge pelo focinho
Estava engraçada a vaca
De porta-seio e corpinho.

Vou breviá o discurso


Pra não dizê tantos nome:
Lá foi a muié do urso
De cabeleira à la homme.

Quando o leão foi entrando,


São Pedro muito se riu
E prós bicho foi gritando:
"Caiu, 1o de abril!"

A mesma coisa se pode dizer de Minha Viola. Isto é, sendo uma embolada,
claramente nos moldes dos cantadores nordestinos, tem a forma aparentemente
amarrada a tudo aquilo que é feito no gênero: um estribilho no qual o compositor
coloca toda a sua singularidade melódica e uma sucessão de versos, em geral
improvisados, que cabem perfeitamente em quase todas as emboladas que se
conhecem. Por isso elas se parecem tanto umas com as outras. Mas ainda aqui o
Noel Rosa compositor principiante tem muito de original. Seu humor não é
exatamente caipira. Como provam os versos em que faz referência ao célebre
doutor Voronoff e suas tão comentadas experiências no campo dos enxertos(4).
4. Mais do que comentadas, as experiências de Voronoff foram motivo de muita glosa no Brasil daqueles dias. Antes de Noel, Lamartine Babo e João Rossi já haviam explorado o assunto em
Seu Voronoff, marcha gravada por Francisco Alves em 1928. Serge Voronoff, médico russo, assumiu em 1921 a chefia do laboratório de cirurgia do CoUège de França em Paris. Ali realizou suas
célebres experiências sobre rejuvenescimento, a partir de enxertos de órgãos de animais. Não teve êxito.

Minha viola
Tá chorando com razão
Por causa duma marvada
Que roubou meu coração.

Eu não respeito Cantadô que é respeitado


Que no samba improvisado
Me quisé desafiá.

Inda outro dia


Fui cantá no galinheiro
O galo andou o mês inteiro
Sem vontade de cantá.

Nesta cidade
Todo mundo se acautela
Com a tal de febre amarela
Que não cansa de matá,

E a dona Chica
Que anda atrás de mau conselho
Pinta o corpo de vermelho
Pra o amarelo não pegá.

Eu já jurei
Não jogá com seu Saldanha
Que diz sempre que me ganha
No tal jogo do bilhá,

Sapeca o taco
Nas bola de tal maneira
Que eu espero a noite inteira
Pras bola carambolá.

Conheço um veio
Que tem a grande mania
De fazê economia
Pra modelo de seus filho,

Não usa prato


Nem moringa, nem caneca,
E quando senta é de cueca
Pra não gastá os fundilho.

Eu tive um sogro
Cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff,
Doutô muito creditado

E andam dizendo
Que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro
Miando pelos telhado.

Adonde eu moro
Tem o bloco dos filante
Que quase que a todo instante
Um cigarro vem filá

E os danado
Vem bancando inteligente
Diz que tão com dô de dente
Que o cigarro faz passá.

O próprio Noel gravará as duas composições, cantando com a voz ainda


hesitante, como se o microfone o assustasse, acompanhado por um regional e
não pelos tangarás.
Outro carioca que se anordestinizou, deixando-se contagiar pela febre das
emboladas, é Renato Murce. Neste e no próximo ano estará muitas vezes perto
de Noel Rosa. Participarão juntos de espetáculos que o próprio Renato
organizará, viajarão juntos, até música farão juntos. Uma parceria breve, que
logo será esquecida, mas que nem por isso deixa de contar nestes primeiros
passos de Noel pelo caminho da música popular.
Renato Murce, como tanta gente desse tempo e desse meio, já fez um pouco
de muita coisa na vida antes de se tornar cantor. Jogou futebol, trabalhou no
comércio, foi caixeiro-viajante, vendeu apólices de seguros. Desde 1924 trabalha
em rádio (a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi fundada a 20 de abril
de 1923). Está destinado a ser, no futuro, um importante nome na história do
veículo, como diretor de broadcasting, produtor, rádio-ator, autor, humorista,
apresentador, quase tudo. Como cantor, seu primeiro namoro foi com a ópera,
chegando a estudar canto lírico com a italiana Climene Baroni. Mas os sons que
vieram do Norte também o envolveram. E, incrível que pareça, acabou trocando
as árias de Verdi pelas emboladas, a Urna Fatale Del Mio Destino por coisas
assim:
Se tu fosse um pé de pau
Eu queria ser cipó
Vivia em ti enrascado
Em teu corpo dando nó

A troca deu certo. Como baixo ou barítono Renato Murce jamais chegaria a
ser um Mareei Journet, muito menos um Feodor Chaliapin, mas como "cantador
nordestino" será conhecido em breve como o Príncipe dos Cantores
Regionais(5).
5. Valem algumas palavras sobre o que então se entendia por "regional". Além do tipo de música que os grupos "nordestinos" - o Bando de Tangarás entre eles - interpretavam (cocos, toadas,
emboladas, martelos, jongos, cateretês, sambas de roda, cantigas), regionais também eram os cantores que, como Renato Murce, se dedicavam a tais gêneros. Regionais, ainda, ficaram sendo os grupos
compostos de violão, bandolim ou cavaquinho, pandeiro e outros instrumentos rítmicos, em alguns casos saxofone ou flauta, que os acompanhavam. Daí a denominação de regional para os conjuntos,
muitos deles de choro, liderados por Benedicto Lacerda, Canhoto, Rogério Guimarães, que logo em seguida passariam a acompanhar os cantores em gravações e apresentações ao vivo, já então em
valsas, sambas, música carioca e não apenas nordestina. Essa denominação, de certa forma, veio até nossos dias.

Fundou um grupo, os Gaturamos, confessadamente rival dos Tangarás,


contando com a ajuda de Rogério Guimarães, Lourival Montenegro e Rubem
Bergmann (violões), Pery Cunha (bandolim), Didi do Pandeiro e o irmão,
também cantor, Dario Murce. Na ausência de um violão, principalmente o de
Rogério, é chamado João Baptista Nogueira, a quem tratam com carinho e
respeito por "mestre"(6).
6. João Baptista Nogueira - pai do compositor e cantor João Nogueira - atuou ao lado de Alberto Simões da Silva, o Bororó, Glauco Vianna e Noel Rosa, fazendo acompanhamentos ao
violão em espetáculos musicais.

Interpretam música do repertório de Augusto Calheiros e seus Turunas da


Maurícéia, de Minona Carneiro e seu conjunto A Voz do Sertão, do qual faz
parte o bandolinista Luperce Miranda, recém-chegado do Recife.
Tão identificado está Renato Murce com os gêneros nordestinos que, como
acontece com Almirante, há quem suponha ser ele pernambucano ou algo assim.
E por cantar tanto, em tantos lugares, o célebre Pinião...
Por isso mesmo o sabiá cantou
Bateu asa e voou e foi comer melão .. muita gente pensa ser do seu
repertório e não do de Augusto Calheiros este grande sucesso do carnaval de
1928.
As primeiras apresentações de Noel Rosa em público serão como integrante
do Bando de Tangarás. A 27 de junho de 1929, sábado, num espetáculo
denominado Noite Regional Brasileira, no Tijuca Tênis Clube, ele canta Minha
Viola pela primeira vez diante de uma platéia. Três noites depois, terça-feira 30,
realiza-se antes da sessão de Compra um Bonde, revista estrelada por Aracy
Cortes no Teatro Recreio, um festival em homenagem à atriz, intitulado Noite
Brasileira. Entre números a cargo das bandas de música da Marinha e da Polícia
Militar, peças de violão clássico executadas por Yvonne e José Rebello, piadas
de Mesquitinha e solos dos outros tangarás, Noel - relacionado no programa
como Noel Medeiros Roxo - volta a interpretar sua primeira embolada:
Minha viola
Tá chorando com razão...

Almirante é um líder muito ativo. Encarrega-se de correr atrás não só das


oportunidades de gravar o repertório do grupo (os tangarás farão oito discos só
no segundo semestre de 1929), mas também de uma brecha que os permita
participar de um festival aqui, um espetáculo teatral ali, festas em casas de
família, noites regionais em clubes, tudo que possa torná-los conhecidos. Mas
Noel, desde o começo, será um tangará meio desgarrado. Nem muito preso às
atividades do grupo, nem confinado à sua nordestinidade. Daí aceitar os convites
que lhe são feitos por outros líderes e produtores além de Almirante, como é o
caso de Renato Murce, com quem começará fazendo uma embolada, não das
mais inspiradas, que o próprio Renato denominará de Perna Bamba:
Olha que este samba
Põe as perna bamba
Quem nele entra
Não qué mais para...

Conheço um véio
Todo cheio de besteira
Num gosta de brincadeira
E é ranzinza que é danado

Mas ele um dia


Entrô num samba de arrelia
Que esqueceu-se da famia
Ficô logo avacaiado...

Um cabra torto
Com doença nas espinha
Num havia mais meizinha
Que pudesse indireitá

Ouviu o samba,
Levantô-se de repente
Já num tava mais doente
Já queria inté brigá...
Uma muié
Tinha brigado com o marido
Fez tamanho alarido
Lhe tirô todo o sossego

Mas ele um dia


Foi o samba decorando
Entrô em casa cantando
E vortô logo o chamego...

Outra, Salada Russa, brinca com as vogais criando rimas em assa, essa,
issa, ossa, ussa, mas poucos se lembrarão dela:
É assa, é essa, é issa, é ossa, é ussa,
Este samba parece uma salada russa

Chico Arruaça
Que é amigo da cachaça quando bota a mão na massa
Já se sabe, foi trapaça.

Quando ele passa


Já bebinho lá na praça
Toda gente acha graça
Vai haver uma desgraça

Mas, ora essa


Isso é coisa que se peça?
Vitalina fez promessa
Pra casar com Chico Lessa.

Mais que depressa


Chico disse: não vou nessa...

Seguem mais dois versos com rima em essa que completam a estrofe.
Sempre intercaladas pelo refrão, sucedem-se as partes em issa, ossa e ussa, os
últimos versos esclarecendo que a embolada acabou sendo uma salada russa(7).
7. O próprio Renato Murce ensinou esta embolada aos autores. Já não se lembrava, porém, de toda ela, que jamais chegaria ao disco.

Daí, também, Noel empreender experiências sonoras e literárias fora do


âmbito das emboladas, cocos e desafios. De uma dessas experiências nascerá
Baianinha, choro.
Ele mesmo o sola ao violão num programa que Almirante e o Bando de
Tangarás fazem pelo microfone da PRA 3, Rádio Club do Brasil, na noite de
terça-feira, 6 de agosto de 1929. No meio de vários outros excelentes números
instrumentais apresentados na mesma ocasião (a maioria por Henrique Britto,
que tocará Paisagem Mourisca, Ao Cair das Folhas, Indecisão, Romance, Odette,
Nazareth, peças suas e de autores diversos), o choro de Noel quase não é
notado(8).
8. Este choro não foi gravado nem editado. Mas, cinco anos depois, no intervalo entre dois programas na Rádio Guanabara, o mesmo Noel pôs-se a solar ao acaso um choro seu. Seria
Baianinha? Estando ali presente, Jacob Pick Bittencourt, mais tarde famoso como Jacob do Bandolim, teve o cuidado de passá-lo para pauta, graças ao que o choro sobreviveu. Só seria gravado em 1983,
pelos violonistas Luís Otávio Braga, Henrique Cazes e Caola.

Como não abandonou as serestas do bairro, também será no campo da


música romântica, bem ao gosto de Alegria, que ele fará outras de suas
experiências. Uma delas não passará de uma letra linear, trivial, de valor
evidentemente menor, para Ingênua, valsa que o amigo Glauco Vianna - ainda
cursando o São Bento - fez e gravou recentemente em solo de violão. Música e
letra parecem bem definidas pelo título: Ingênua.
Talvez que eu lhe diga um dia
Toda a melancolia de um coração
Todo este sofrimento
Que agora experimento
Nesse infeliz momento
De tão acerba dor

Que crueldade!
Eu ser um sonhador
Ela não entender meu amor
Qual a razão
Por que minha paixão
Não a pode comover?

Somente o criador
Sabe do amor
Que consagrei
A quem tanto amei
À hora propícia
Em que a malícia
Dela se apoderar
Com meu violão

Direi então
O meu pensar
E se ainda
Essa ingênua linda
Não me compreender
Eu, já descrente,
Direi que ela
É inocente
Até morrer...

E muito especialmente, ainda no terreno das experiências fora da música


nordestina, uma canção que sobreviverá a seus autores, com bela melodia de
Henrique Britto, que lhe dá o título de Queixumes. Os versos de Noel foram
colocados em cima da nostálgica linha melódica. Versos dos quais Britto gosta
muito, mas que nem por isso encobrem o letrista ainda engatinhante, preocupado
em rimar olhos com abrolhos e tão influenciado pelos pernósticos versejadores
do sereno que, talvez sem sentir, acaba repetindo a imagem apaixonada e
masoquista que Catulo da Paixão Cearense usou anos atrás em Talento e
Formosura:
Tu podes bem sorrir das minhas desventuras...
Pertenço à dor e gosto até de assim penar!

A canção só será gravada no ano que vem por Gastão Formenti. Terá novo
título: Meu Sofrer. Mas a mesma letra de Noel:
Sem estes teus tão lindos olhos,
Eu não seria sofredor
Os meus ferinos abrolhos
Nasceram do nosso amor.

Eu hoje sou um trovador


E gosto até de assim penar,
Vou te dizer os meus queixumes:
Ciúmes tenho do seu olhar.

Quero sempre te ver bem junto a mim,


Por que te esquivas, assim, coração
De uma paixão?

O teu olhar traz alegria


Mas também traz o amargor,
Sem ele então não viveria
Vida não há sem dor.

Ainda oscilante - entre um gênero e outro, entre as imagens de Catulo e sua


própria originalidade, entre ficar preso aos tangarás ou caminhar sozinho - é
assim, nos últimos meses de 1929, que nasce o compositor Noel Rosa. Como
será quando crescer?
Capítulo 12
TANGARÁ ABRAÇA O SAMBA
O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito,
sem mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba.
entrevista a O Debate

Toadas, desafios, cocos, emboladas, cateretês. São muito interessantes essas


coisas que os tangarás fazem inspirados nos ritmos e cantigas que vêm de
Pernambuco, Ceará, Paraíba, Sergipe, Bahia. Mas Noel Rosa é do Rio de
Janeiro. Carioca impenitente, acaba concluindo que é mesmo o samba o idioma
em que melhor poderá expressar suas idéias e sentimentos, seu cotidiano, sua
realidade. Há muito de original nas letras de seu primeiro disco como solista.
Musicalmente, porém, tanto Festa no Céu como Minha Viola pouco têm de
carioca.
Também é nitidamente sertanejo o tempero que ressalta no sabor de
canções como Sinhá Ritinha e Mardade de Cabocla, duas outras composições
suas desta mesma época. A primeira é gravada por Paulo Netto de Freitas,
afinado e sensível barítono cuja carreira estará sempre muito ligada aos tangarás.
A canção conta a história do infeliz Zé Sampaio:
No mês de maio,
no tempo das ladainha,
Foi que eu vi sinhá Ritinha
Sobrinha de nhô Vigário

Pra Zé Sampaio
ela olhou desconfiada
Tava tão encabulada
Que caiu o seu rosário

Ele apanhou
o rosário da caboca
Mas a coragem era pouca
Pra falá com a mulhé

Depois pensou
e pra não perder a vaza
Guardou o rosário em casa
Pra dá quando Deus quisé

Já fez dois anos


que ele não vai à capela
Mas leva o rosário dela
Pra todo lugá que fô

Não foi engano


o que disse toda a gente
Que a saudade de repente
Tinha virado em amô

E o Zé Sampaio
foi-se embora lá do Norte
Pois teve a pió das sorte
Que se pode imaginá:

No mês de maio,
quando vortô à capela,
Pra entregá o rosário dela
Ela não quis aceitá

Mardade de Cabocla, feita especialmente para Alegria cantar, não chegará


a ser gravada. Mas é ótimo ponto de partida para que se compreenda a
transformação definitiva do compositor Noel Rosa, ou seja, de sua passagem do
nordestino para o carioca, de sua troca do sertanejo que invadiu o Rio no começo
da década pelo urbano que melhor retrata o seu universo. A letra também fala de
um amor infeliz, mais ainda que o de Zé Sampaio:
No arraiá do Bom Jesus
A gente vê uma cruz
Que chama logo atenção
Quem fincó foi siá Chiquita,

A caboca mais bonita


Que pisou no meu sertão
Essa moça era querida
Que por ela davam a vida

Os cabocos do rincão...
Dois home se apaixonaram
E um dia quando se oiaram
Tiveram a mesma intenção

Tendo duas viola apostada


E também a namorada
Lá na festa do arraiá
Zé Simão indignou-se

Nos repente intrapaiou-se


Perdeu pro Chico Ganzá
Perdendo a viola amada
E também a namorada

Não disse mais nada, não:


Foi manhãzinha encontrado
Com um punhá bem enterrado
Pro riba do coração.

Pois bem. Daqui a alguns anos - mais precisamente em 1932 - Noel partirá
destes versos inéditos para recontar a trágica história de dois homens
apaixonados pela mesma mulher. Mas trocará o tempero sertanejo pelo molho da
cidade, o imaginário arraial do Bom Jesus pelo nada imaginário morro da
Mangueira, os dois caboclos do rincão por dois malandros do Rio, siá Chiquita
por Rosinha, cabrocha de alta linha. E, o mais importante, a canção sertaneja
pelo samba. Disso resultará Quando o Samba Acabou, mais do que uma versão
revista, aumentada e urbanizada de Mardade de Cabocla, o primoroso atestado
da adesão definitiva de Noel Rosa ao gênero que o consagraria:
Lá no morro da Mangueira
Bem em frente à ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu "não sei quê"

Numa linda madrugada,


Ao voltar da batucada,
Pra dois malandros olhou a sorrir.
Ela foi-se embora e os dois ficaram,
Dias depois se encontraram
Pra conversar e discutir.

Lá no morro, uma luz somente havia:


Era a lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba se escondia

Na segunda batucada,
Disputando a namorada,
Foram os dois improvisar.

E como em toda façanha


Sempre um perde e outro ganha,
Um dos dois parou de versejar.

E, perdendo a doce amada,


Foi fumar na encruzilhada,
Ficando horas em meditação.

Quando o sol raiou foi encontrado


Na ribanceira estirado,
Com um punhal no coração.
Lá no morro, uma luz somente havia:
Era o sol quando o samba acabou...
De noite não houve lua,
Ninguém cantou.

Mas a adesão de Noel Rosa ao samba ocorre muito antes de a trágica


história de Rosinha transformar-se num dos clássicos do repertório de Mário
Reis. Um dia, em fins de 1929, tio Eduardo surpreende Noel acompanhando-se
ao violão numa cantiga que lhe soa de forma inteiramente original.
- Que música é esta, Noel?
- Um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga.
Noel explica que seus versos procuram retratar, ainda que metaforicamente,
um país ilhado em pobreza, a fome e a miséria alastrando-se como praga. A vida
já era difícil por aqui. Imagine agora, que o desmoronamento da Bolsa de Nova
Iorque ameaça mergulhar não só o Brasil, mas o mundo inteiro, numa crise dos
diabos(1).
1. Foi em 29 de outubro de 1929 que o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque pôs fim à prosperidade que os Estados Unidos conheceram no pós-guerra, lançando aquele país na maior
depressão de sua história e o mundo inteiro numa grande crise econômica. O Brasil - que desde os primeiros dias daquele mês se via às voltas com problemas cafeeiros (a supersafra levara os produtores
a reter 10 milhões de sacas na esperança de manter os preços) - sofria então um duro golpe. Na verdade, parecia ruir. Já afetado por crises anteriores, deixava a seu povo perspectivas sombrias, mais
pobreza, mais dificuldades. Foi nesse clima que Noel Rosa decidiu caricaturar musicalmente o "Brasil de tanga".

É de um país à beira da indigência, desnudado pela penúria, maltrapilho, de


tanga, que Noel fala em seu samba. A tio Eduardo, contudo, tranqüiliza:
- Mas eu não sou bobo de ficar dizendo essas coisas por aí.
E canta: Com Que Roupa?.
Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta,
Pois eu quero me aprumar.
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar,

Pois esta vida não está sopa


E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Agora eu não ando mais fagueiro,


Pois o dinheiro
Não é fácil de ganhar.
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar,

Eu já corri de vento em popa


Mas agora com que roupa?

Eu hoje estou pulando como sapo


Pra ver se escapo
Desta praga de urubu.
Já estou coberto de farrapo,
Eu vou acabar ficando nu,

Meu terno já virou estopa


E eu nem sei mais com que roupa

De um feliz casamento de música e verso vem a força de Com Que Roupa?.


Mas não é este o seu único trunfo. Há também a originalidade do tema, as rimas
pouco usuais na canção popular, a construtura técnica na qual o sexto verso do
coro é uma espécie de chave. Sempre terminando em palavra que rima com
"roupa", o verso funciona como um breque e "chama" musicalmente o estribilho.
Uma tentação para os improvisadores (mais tarde, nas rodas de samba, a
maestria do versejador será medida por esse sexto verso). E há ainda o humor.
Noel transpõe para a música popular a singularidade tão carioca de tratar com
graça e irreverência os assuntos mais sérios, de escarnecer da própria desgraça.
Neste samba, a crise econômica, o Brasil de tanga, converte-se numa sucessão
de piadas. Enquanto se ri delas, pensa-se na tristeza que ocultam. Um pouco
como na definição de George Bernard Shaw para humor: "É qualquer coisa que
faça a gente rir. Mas o humor mais requintado arrasta uma lágrima com a
risada." Um pouco também como nos filmes de Carlitos. Não será por isso que,
daqui a algum tempo, alguém se atreverá a chamar Noel Rosa de "Bernard Shaw
do samba"? E que outros verão em sua poesia um toque chapliniano?
Uma composição irretocável, de melodia simples e direta, saborosa e exata,
cada estrofe terminando com o mesmo estribilho, no qual, aliás, também repousa
grande parte da comunicabilidade do samba, sobretudo pelo emprego da
expressão popular "com que roupa?", muito usada no sentido de "como?", "de
que modo?", "com que dinheiro?"
Mas o que dizer do ritmo? No momento em que Noel cria Com Que
Roupa?'já existem na cidade pelo menos dois tipos de samba. Um, aquele em
que Sinhô é rei, surgido ao que parece na casa de tia Ciata ou Assiata, negra
baiana que se notabilizou muito menos pelos doces que fazia e vendia do que por
suas qualidades de anfitriã animada e festeira. Naquela casa, freqüentada por
gente que se igualava no prazer da música e da dança-a ponto de participarem
das mesmas festas intelectuais e macumbeiros, funcionários públicos e boêmios,
pequenos comerciantes bem-sucedidos e operários modestos, ex-escravos e
músicos como Sinhô, Hilário Jovino Ferreira e José Luís de Moraes, o Caninha -
, naquela casa, enfim, teria nascido, em meados da década passada, o samba
carioca. Ou melhor, o primeiro dos dois tipos de samba que existem pela cidade.
São exemplos dele não apenas o Pelo Telefone, o primeiro a fazer sucesso,
convencendo os compositores populares de que o gênero era comercialmente
viável(2), mas também Essa Nega Qué Me Dá, Já Te Digo, Dorinha, Meu Amor,
Cristo Nasceu na Bahia, Gavião Calçudo, Me Leva, Seu Rafael e muito
especialmente tudo isso que Sinhô vem produzindo por aí com prodigiosa
qualidade, Amar a Uma Só Mulher, Fala, Meu Louro, Gosto Que Me Enrosco,
Ora Vejam Só, Jura.
2. Parece ser mesmo este - segundo opinião defendida por Jota Efegê em conversa com os autores - o verdadeiro mérito de Pelo Telefone, e não, como tanto se tem repetido, o de ter sido o
primeiro samba gravado. Afinal, alguns outros sambas chegaram ao disco antes dele.

Sempre foi e ainda é grande a admiração de Noel por Sinhô, este mulato
alto, magro, desdentado, que mesmo em processo de visível decadência física, os
pulmões escravizados à tuberculose, não perde o aprumo. Uma admiração tão
grande que, tempos atrás, ainda no São Bento, Noel convenceu Hélio a irem
juntos conhecer de perto o célebre Rei do Samba, então brilhando no carnaval,
no teatro de revistas, nas festas familiares, nos prostíbulos, nas gafieiras ou onde
pudesse fazer ouvir os seus sambas:
Minha cabocla, a Favela vai abaixo
Quanta saudade tu terás deste torrão!

Mas a visita de Noel e o irmão à casa de Sinhô resultou em


constrangimento e desencanto. O Rei do Samba, o grande J.B. Silva, criador de
sucessos, apreciado, amado, imitado, morava com a mulher Nair numa casa
muito pobre, miserável quase, na Rua Pio Dutra, Ilha do Governador (e é lá que
ainda mora, cada vez mais sem dinheiro e sem saúde). Seu único instrumento era
um violão barato, de mau som. Sobre uma comprida tira de cartolina, desenhara
a lápis teclas brancas e pretas cuja finalidade explicou aos dois rapazes: - Isso é
o meu piano. Preciso dele para compor..?(3)
3. Depoimento de Hélio Rosa a Jacy Pacheco, incluído por este em Noel Rosa e Sua Época (páginas_ 36 e 37).

Depois disso Noel voltou a ver Sinhô aqui e ali, em casas editoras de
música, em festas, na Penha, em Vila Isabel. Reencontrou-o sempre mais pálido,
mais gasto. Mas merecedor da mesma admiração. Tanto pelas melodias que
compõe como pelas letras que escreve, cariocas, críticas, irônicas, matreiras. Ao
gosto de Noel em muitos pontos, em especial na malícia, no duplo sentido de
versos que mocinhas ingênuas talvez cantem sem saberem o que significam:
É moda agora quando ferram o namoro
Beberem água na tal caneca de couro

Ou:
Daí, então, dar-te eu irei
O beijo puro da catedral do amor...

Noel realmente admira Sinhô e o estilo de música que ele produz. Acontece
que já existe outro tipo de samba sendo feito e cantado no Rio de Janeiro de
agora. Nos morros, em alguns bairros, nos subúrbios. Menos conhecido, por
enquanto, mas tão inspirado e arrebatador que em breve tomará conta de toda a
cidade. Este outro tipo de samba coexiste com aquele a que se dedicam Sinhô,
Hilário, Caninha. E também José Francisco de Freitas, o Freitinhas. E toda a
turma de Pixinguinha. Aquele samba aparentado com o maxixe, nascido ou não
na casa de Ciata - ou de outras "tias" baianas como Gracinda e Maria Adamastor
- mas muito executado em festas, salas de espera de cinema, coretos, teatros,
picadeiros, gafieiras. O novo tipo de samba, bem menos difundido, se coexiste
com aquele, lhe é muito diferente em forma e conteúdo. E é precisamente esta
diferença que seduz o jovem compositor de Com Que Roupa?
Como, onde e quando terá nascido este samba? Tudo indica que enquanto
aquele outro vem do começo da década passada e é produto da Cidade Nova,
este mais novo surgiu há poucos anos no Estácio de Sá, bairro situado entre o
Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a zona do Mangue. Dali se
espalhou pelas vizinhanças, galgou as encostas da Saúde, Salgueiro, Mangueira,
seguiu as linhas de trem até Ramos, Engenho de Dentro, Penha, Madureira, foi
abrindo seus braços para envolver toda a cidade.
Mas se não há dúvidas quanto ao onde e ao quando, o como já é bem mais
complicado. Nem mesmo aqueles que plantaram as sementes das quais brotou
este samba parecem saber ao certo como tudo começou. Ismael Silva, por
exemplo, vai morrer jurando que o samba do Estácio de Sá nasceu, como tanta
coisa mais, de uma necessidade. Sendo muitas vezes feito para os desfiles dos
vários blocos das redondezas - ao passo que o samba da Cidade Nova destinava-
se mais a animar os bailaricos organizados pelas "tias" baianas -, estaria nesse
detalhe a diferença. Isto é, segundo Ismael, à necessidade que os blocos têm de
cantar sua música marchando e não dançando, deve o samba do Estácio de Sá as
suas características, a estrutura rítmica e os contornos melódicos que o
distinguem. Embora seja uma explicação respeitável - ainda mais por vir de
alguém que caminha para se tornar um dos reis deste tipo de samba -, não
encerra a questão. Afinal, há muito de dançável também no samba do Estácio de
Sá. E muito de amaxixado no que cantam os demais blocos do Rio.
O que conta, porém, é que o samba do Estácio de Sá é rítmica, melódica e
poeticamente distinto do samba da Cidade Nova. As dessemelhanças rítmicas
talvez se devam a ter sido ele criado a partir dos refrões cantados nos improvisos
de partido-alto e rodas de batucada, herdando destes uma pulsação por si só já
diferente da dos sambas de Sinhô, nos quais ainda se encontram vestígios não só
do maxixe, mas também do lundu. Tal pulsação - sua alma - resulta de ser o
acompanhamento feito basicamente por instrumentos de percussão, na maioria
fabricados pelos próprios ritmistas ou por eles inventados. Se na Cidade Nova as
festas são animadas por músicos treinados, bons tocadores de piano, flauta,
clarineta, cordas e metais, no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou
cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro. Ou
acompanhamento ainda mais rudimentar, palmas cadenciadas ou batidas em
mesas, cadeiras, copos, garrafas. Uma seção rítmica barata, bem de acordo com
as magras algibeiras do sambista. O certo é que aos poucos os estribilhos de
partido-alto e batucada foram se transformando, se enriquecendo, trocando os
dois, três versos de antes por maior arrojo formal. As segundas partes deixaram
de ser improvisadas e começaram a ser feitas especificamente para cada samba.
Este detalhe, somado à mudança de pulsação, acaba alterando também a
estrutura melódica, agora recorrendo a desenhos mais extensos e elaborados.
Quanto à parte poética, o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da
maneira mais simples, a vida dos morros e das casas de cômodos, das
populações pobres, dos malandros e de outros indivíduos à margem da
sociedade. Marginalização esta que mantém sua música longe do disco por
tantos anos, sua divulgação fazendo-se naturalmente, de modo espontâneo, de
boca em boca. Mas é mesmo desta vida marginal que fala a maioria dos sambas
de lá. Seus temas são a valentia, a batucada, o jogo, a orgia, o malandro e suas
mulheres, o sambista desocupado e suas promessas jamais cumpridas de
regeneração.
Se Hilário, Freitinhas, Caninha, Sinhô são os bambas da Cidade Nova, o
Estácio de Sá também tem os seus nomes de respeito, Alcebíades e Rubem
Barcellos (este morto há dois anos, prematuramente, de tuberculose), Edgar
Marcelino dos Passos, o Mano Edgar, Francelino Ferreira Godinho, Oswaldo
Caetano Vasques, o Baiaco. E também Tibélio dos Santos, Sylvio Fernandes, tão
preto que o chamam de Brancura. E ainda os dois melhores dentre eles todos:
Nílton Bastos e Ismael Silva. São negros e mulatos que moram ou transitam por
ali. Uns trabalham, outros jamais o farão, mas todos cultuam o samba.
Costumam se reunir de noitinha no Café do Compadre, no número 26 da Rua
Santos Rodrigues, de propriedade do português José Domingues. Ou então no
Apollo, mais para o Largo do Estácio. Ou ainda em qualquer parte onde se
possa, entre duas esquenta-por-dentro, improvisar música e versos. Mas foi
mesmo no terreno de uma das casas de cômodos da rua Estácio de Sá, esquina de
Maia de Lacerda, que estes sambistas se reuniram, há um ano, para organizar o
bloco Deixa Falar. Tão importante que vai reivindicar - não sem bons motivos-a
honra de ter sido a primeira "escola de samba" da história.
A muitos desses sambistas Noel conhecerá de perto. De outros ouvirá
apenas os nomes e os sambas:
Ela era a rainha
Do bloco Deixa Falar
Mas perdi toda a esperança
Porque a vi conversar com Francelino
Que é o bamba do lugar(4)
4. Citado por Sérgio Cabral em As Escolas de Samba - o Quê, Quem, Como, Quando e Por quê? (páginas 22,e 23). O samba teria sido cantado pela Deixa Falar no carnaval de 1929, e o
Francelino em questão seria o Ferreira Godinho.

Ou meros refrãos como este de Rubem Barcellos:


Eu ando sofrendo
Sem saber qual a razão
Vou implorar a Deus
Para conseguir a minha salvação

Até esta segunda metade de 1929, não muitos desses sambas chegaram ao
disco. Mas os que o fizeram, se Noel teve oportunidade de ouvi-los (como
provavelmente teve), serão o bastante para reforçar ainda mais sua convicção de
que este é o melhor samba carioca. Por exemplo:
A malandragem eu vou deixar
Eu não quero saber da orgia
Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia

Ou este:
Sei que tu andas sofrendo
Estás arrependida do que já me fez
É teu destino, mulher,
Eu não te perdôo
Porque tu vais me enganar outra vez

Ou muito especialmente este:


Arranjaste um novo amor, meu bem
Eu sou um infeliz, bem sei
Ou ainda este:
A maré que enche vaza
Deixa a praia descoberta
Vai-se um amor e vem outro
Nunca vi coisa tão certa

São sambas admiráveis, realmente diferentes dos produzidos pela escola de


Sinhô. Sambas melodiosos, de frases musicais mais longas, as notas mais agudas
impregnadas de nostalgia e beleza: "Eu sou um infeliz, bem sei..." São deliciosas
as frases mais curtas do maxixe e do samba que lhe é aparentado, mas isso que
vem assinado por estes desconhecidos compositores do Estácio, Alcebíades,
Nílton, Ismael, e chega ao disco pelas vozes de Francisco Alves e Mário Reis,
tem outra espécie de magia. Noel Rosa percebe que, em matéria de música
popular, há um tesouro escondido em algum lugar. Pedras preciosas, algumas
ainda brutas, luzindo nas mãos destes sambistas que compuseram A
Malandragem, O Destino É Deus Quem Dá, Novo Amor, Me Faz Carinhos.
Quem primeiro descobriu o mapa desse tesouro foi Francisco Alves. Que
sensibilidade musical tem este cantor! Que faro para desencavar boa música
onde ninguém imagina existir coisa alguma! Se os compositores do Estácio de
Sá começam agora a chegar ao disco, aos teatros, aos circos, tornando-se
conhecidos do grande público, devem isso a Francisco Alves que, mapa na mão,
foi atrás deles lá nos desvãos em que se escondem. Noel sempre soube desta
intuição de Francisco Alves, desta sua capacidade para desenterrar tesouros. Por
isso, já nos tempos de São Bento, andava seguindo o cantor até as lojas de disco,
as casas editoras de música, tentando aproximar-se dele. Francisco Alves mal o
notava. Afinal, quem era Noel Rosa?(5)
5. Renato Murce lembra-se de Noel Rosa, em 1927 ou 1928, aparecendo pelas casas de música, com uniforme do São Bento, tentando aproximar-se de Francisco Alves e outros nomes já
famosos da música popular. Em entrevista aos autores, Murce conta como vários outros novatos - entre eles Ary Barroso - eram desdenhados pelo cantor.

Hoje, dando seus primeiros passos como compositor popular, Noel tenta
chegar ao tesouro por conta própria. Seus primeiros contatos com o samba do
Estácio de Sá podem ter acontecido de muitas formas. Talvez ao tempo de
estudante, quando, financiado por colegas como o Ministrinho, freqüentava o
Mangue e seus cafés onde se ouvia música ao vivo. É bom lembrar que bem
perto, colado ao Mangue, está o Estácio. e mais adiante o Catumbi e o Rio
Comprido. E que muitos habitantes do morro de São Carlos e malandros das
imediações já eram praticamente "moradores" daquela zona boêmia. Pode ser,
também, que tais contatos se tenham dado nos carnavais da Praça 11 de Junho. E
se intensificado mais tarde, já em Vila Isabel, através do que para lá têm levado
Canuto, Puruca, Maciste, Osso, gente do morro. Ou quem sabe não terá ocorrido
nas constantes peregrinações do jovem compositor a bairros e morros como
Madureira, Oswaldo Cruz, Mangueira, Ramos, Salgueiro, lugares aonde já
chegou o novo samba, levado ou não pelos sambistas do Estácio de Sá?(6)
6. Diz Ismael Silva a Sérgio Cabral, op cit (página 28): "Nós ajudávamos muito a Portela. Ajudar no sentido de divulgar, promover. A Mangueira também, nós ajudávamos bastante. O
pessoal do Estácio era sempre convidado para ir a todos esses lugares. Nós tínhamos muito prestígio na época..." Marília T. Barbosa da Silva e Lygia Santos, em Paulo da Portela, Traço de União Entre
Duas Culturas (página 70), contam: "Todos os fundadores da Portela por nós inquiridos foram unânimes em afirmar que foi o pessoal do Estácio que levou o samba para Oswaldo Cruz." Os sambistas do
Estácio, na verdade, circulavam muito. Compreende-se que a troca de informações musicais se desse rapidamente. O samba do Estácio e vizinhanças, nascendo ou não ali, espalhou-se. Cedo ou tarde
Noel e os outros rapazes de classe média de Vila Isabel teriam de tomar conhecimento dele. Só que Noel o fez primeiro.

De qualquer modo, Noel deixa-se seduzir por ele muito antes de os outros
tangarás despertarem de seu sono nordestino para a realidade da autêntica
música carioca.
Com Que Roupa? nasce perfeitamente identificado com os arrojos formais
dos sambas do Estácio de Sá. Se não parecerá tanto, será porque os
acompanhamentos instrumentais de suas duas primeiras gravações - uma de
regional, outra de orquestra - ainda estarão muito afinadas pelo diapasão do
maxixe. Mas certo é que, chegado o momento de romper com o modismo das
coisas nordestinas para levantar vôo em forma de samba, é nas asas da turma do
Estácio de Sá que Noel embarca. Não tentando fazer igual a Rubem, Baiaco,
Brancura, Nílton, Ismael, sambistas que no máximo conhece de vista, mas
inspirando-se neles para criar seu próprio estilo. Nesse sentido, Com Que
Roupa? é obra formalmente nova, revolucionária quase. Não que vá fazer escola,
estabelecer modelos, abrir caminho para que outros por ele sigam.
Revolucionária porque representa um começo de rompimento dos jovens
compositores de classe média - Noel e só depois dele o Bando de Tangarás -
primeiro com o pseudo-sertanejo e logo em seguida com o samba amaxixado
que a partir de 4 de agosto de 1930, quando morre Sinhô, vai morrer também.
Mas tio Eduardo, um dos primeiros a ouvir Com Que Roupa?pronto, não
percebe nada disso. Como não percebe que os três compassos iniciais do novo
samba que o sobrinho canta, ou seja, o verso "Agora vou mudar minha
conduta...", têm rigorosamente as mesmas notas que Francisco Manuel da Silva
compôs há quase cem anos para o Hino Nacional Brasileiro. Plágio?
Evidentemente que não. Nenhum compositor, nem mesmo o mais desfaçado,
ousaria tanto. Distração? Pouco provável. Noel, que adora solar o Hino Nacional
ao violão e desde o São Bento vive fazendo paródias sobre sua melodia,
dificilmente não perceberia a semelhança. Coincidência? Quem acreditaria?
Não é curioso que Noel Rosa retrate o "Brasil de tanga" num samba que
começa justamente com as mesmas primeiras notas do Hino Nacional, "Ouviram
do Ipiranga às margens plácidas..."? Ou terá sido intencional? Quem sabe Noel
pretendeu mesmo fazer esta citação quase literal à melodia do Hino Nacional? A
resposta há de morrer com ele. Mas, quando se observa que não apenas o
primeiro verso, mas toda a letra de Com Que Roupa? cabe perfeitamente na
música de Francisco Manuel da Silva, sílaba por sílaba, nota por nota, torna-se
ainda mais provável a hipótese de que as coisas - como o próprio descobrimento
do Brasil - não aconteceram por acaso. E que muito possivelmente o samba
nasceu como mais uma entre tantas paródias do Hino Nacional, em cima da qual
Noel teria retrabalhado, alterando a melodia e mantendo apenas a citação do
primeiro verso.
O Bando de Tangarás tem apenas um disco para gravar na Odeon até o final
de novembro. É preciso andar depressa para que o lançamento se faça ainda em
dezembro, do contrário não poderá ser incluído no último suplemento Parlophon
para o carnaval de 1930, o primeiro do conjunto. Os dois lados do disco são logo
definidos. Um deles é Não Quero Amor Nem Carinho, de João de Barro e
Canuto:
Amor...
Carinho...
Eu não quero
Já jurei:
nunca mais hei de amar,
hei de amar...

O outro lado será Com Que Roupa?, que Noel mostrou a todo o conjunto,
recebendo, mais do que aprovação, palavras de entusiasmo. O samba bem pode
ser o carro-chefe dos tangarás nas batalhas que se aproximam. Mas antes que se
pense na gravação é preciso passar as duas composições para a pauta e levá-las
ao editor. João de Barro, que já cuidou da sua, recorrendo a um amigo maestro,
oferece a Noel: - Se você quiser, este meu amigo escreve o seu samba também.
Oferecimento aceito, no mesmo dia Noel, João de Barro e Almirante vão
juntos à casa de Homero Dornellas, na Rua Torres Homem. Homero é um
músico competente e generoso. Filho de Sophonias Dornellas, compositor e
regente de peças para teatro, principalmente revistas e operetas, o próprio
Homero compõe. E toca, entre outros instrumentos, o violoncelo. Tem ambições
maiores do que as que se confinam no campo da canção popular. Sonha em
escrever poemas sinfônicos, peças de câmera, obras dramáticas. É o inventor de
um curioso instrumento, o arranholino, simples caixa de charutos sobre a qual
adaptou uma única corda de violoncelo que emite bizarro som quando sobre ela
se faz deslizar um arco de violino. Homero chegou a obter sucesso com o
arranholino em festas e recitais em que se apresentou, no Rio, na Bahia, no
Amazonas, não se sabe se pela beleza ou se pelo inusitado do som. Hoje, entre
suas várias atividades musicais, a mais estável e bem remunerada (embora não
muito) é a de pianista da Casa Vieira Machado, onde desde o ano passado
substitui o jovem e talentoso compositor gaúcho Radamés Gnattali na função de
passar para a pauta as canções populares daqueles que não sabem escrever
música. Homero no piano, cuidando da partitura, e Joracy Camargo com lápis e
papel na mão, caprichando na parte literária, são pagos por seu Ernesto para
realizarem muitas vezes o milagre de transformar em algo editável os rascunhos
que compositores incultos lhes trazem.
Mas não é este, evidentemente, o caso de Noel Rosa: Com Que Roupa? não
é um simples rascunho e sim uma obra plenamente acabada. Ou, pelo menos,
parece. Na casa da Rua Torres Homem, onde Homero faz uns trabalhinhos por
fora, cobrando dez, vinte mil réis por um serviço que sairia bem mais caro na
editora (a comissão do Vieira Machado é sempre muito gorda), o maestro é
apresentado aos dois amigos de João de Barro, seu conhecido desde as festas do
Clube Progresso da Fábrica Confiança.
- Este rapaz aqui fez um samba interessantíssimo, Homero. E nós queremos
lançá-lo para o carnaval.
Homero senta-se ao piano e pede que Noel cante o samba. Fica observando
o rapazinho mirrado, oblíquo, cujos dedos compridos escorregam pelo braço do
violão enquanto canta, tímido mas afinado:
Agora vou mudar minha conduta...
De início Homero concentra-se mais no jeito de o rapaz movimentar a boca
- mastigando um palito de fósforo como se a disfarçar o queixo torto - do que
propriamente no samba. Depois, porém, coloca o pentagrama na sua frente e
pede para Noel repetir do começo. Homero faz uns acordes no piano, prepara-se
para escrever as primeiras notas, mas pára:
- Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: "Agora vou
mudar minha conduta..." Repete isso.
Noel obedece.
- Essa música não pode ser publicada - interrompe Homero.
- Por que não?
- Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da
censura não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido
fazer brincadeiras com o Hino Nacional.
Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:
- E agora?
- Ora, a gente dá um jeito - tranqüiliza-o o maestro. - Com sete notas
simples e cinco alternadas, temos doze notas na escala cromática. Com isso a
gente faz o que quer. Vamos inverter algumas notas desta primeira frase, "Agora
vou mudar minha conduta..."
Homero mostra no piano como a linha melódica sofre ligeira alteração,
fugindo à semelhança com o Hino. Muito simples. Noel canta o samba mais uma
vez, agora em sua forma definitiva, as primeiras notas invertidas pelo maestro.
Assim, menos parecido com o Hino Nacional, ao que talvez seu compositor
desejasse, Com Que Roupa? vai para a pauta, a caminho de se transformar num
sucesso do carnaval de 1930. Só que a música popular, como a própria História,
tem seus caprichos. As vezes ocultos pela proposta tímida de um compositor
modesto como Homero Dornellas: - Antes que vocês se fossem, gostaria de lhes
mostrar um samba que comecei a escrever. Querem ouvir?
João de Barro, Almirante e Noel concordam em ficar mais um pouco para
conheceren o refrão que Homero diz ter escrito a partir de um toque de corneta
ouvido pela primeira vez quando ele servia a bordo do navio Poconé, como um
dos soldados das tropas mandadas ao Amazonas por ocasião do movimento
armado de 1924(7).
7. Ainda uma vez a chamada Revolução Paulista de 1924, ligada ao "tenentismo".

O navio tinha excelente corneteiro, o cabo Clodomiro Marins, sujeito muito


brincalhão que costumava levar o instrumento à boca, soprar um sol-sol-dó-dó e,
logo em seguida, gritar para os companheiros: "Na Pavuna, seus filhos da puta!"
Homero nunca entendeu por que o Marins dizia aquilo, mas as notas lhe ficaram
na cabeça desde aquela época, sol-sol-dó-dó, um dos dós na oitava de cima, o
outro na oitava de baixo. Um dia - conta ele aos três tangarás - foi convidado
para um batizado na casa de parentes de sua noiva, justamente no subúrbio
carioca da Pavuna. Ensinaram-lhe o caminho, a ida de bonde até a Leopoldina, a
viagem de maria-fumaça pela linha auxiliar, uma longa jornada até o local da
festa. Lá chegando, constatou que a Pavuna citada por Marins era um bairro
deserto, atrasadíssimo. E, sem saber por que, começou a cantarolar as quatro
notas, sol-sol-dó-dó. Já na casa dos parentes da noiva, numa folha de jornal
improvisou um pentagrama e sobre ele anotou o esboço de melodia. Mudou-o
para si bemol, isto é, si-si-mi-mi, um mi agudo, outro grave, por achar que com
nova cor o resultado seria melhor. Nasceu assim o refrão de Na Pavuna:

Na Pavuna... Na Pavuna...
Tem um samba que só dá gente reiúna.(8)
8. Reiúna - e não "reúna" como tem sido comumente escrito - é um tipo de espingarda curta do Exército, hoje em desuso. O termo também era empregado em relação a tudo que dizia
respeito aos soldados, "farda reiúna", "bota reiúna", no sentido de farda ou bota militar.

Agora quer ouvir a opinião dos três. Principalmente a de Almirante, que


afinal é o líder dos tangarás. Não gostaria ele de fazer a letra da segunda parte?
Almirante hesita. Não lhe agrada essa história de "reiúna", nem a construção do
segundo verso. Mas Homero volta ao piano, repete a melodia e acaba
convencendo Almirante de que o refrão tem força.
- Quanto a reiúna, é gíria de soldado - explica Homero. - Foi idéia do
Joracy Camargo. Minha letra dizia "gente turuna", mas ele me provou que reiúna
ficaria melhor que turuna.
Almirante está convencido. Mais do que isso, subitamente entusiasmado. O
refrão tem mesmo força, é fácil de pegar. Concorda em tornar-se parceiro de
Homero. Este, por suas ambições de chegar às salas de concerto como "músico
sério", explica aos tangarás que, como compositor popular, prefere ocultar-se
atrás de um pseudônimo. Um pseudônimo sonoro e curioso : Candoca da
Anunciação. E é como tal que ele trabalha com Almirante, aqui mesmo, na
presença de João de Barro e Noel, na segunda parte do samba. Em minutos
chegam ao resultado. Simples, mas carnavalesco. Ninguém pode imaginar que o
refrão vai-se transformar numa espécie de marca registrada, não de Homero ou
Candoca, seu autor, mas de Almirante, cuja antevisão das coisas, tratando-se de
música popular, é impressionante. E ele antevê o êxito do novo samba. Por isso,
como líder do grupo, aquele a quem cabem todas as decisões, diz: - Olha, Noel...
Acho que o Com que Roupa? vai ter que esperar até o outro carnaval.
- Por quê?- indaga Noel surpreso.
- Porque este vai ser o carnaval do Na Pavuna.
E ficam todos ouvindo Almirante defender que deve ser seu e de Candoca
da Anunciação o outro lado do Não Quero Amor Nem Carinho. O líder dos
tangarás é persuasivo, sempre consegue o que quer. Noel encerra o assunto com
uma simples frase:
- Mete a vela, Almirante!(9)
9. Segundo Homero Dornellas, em longos depoimentos aos autores, foi exatamente esta a expressão usada por Noel. Lembra o maestro que "mete a vela", na época, tinha pelo menos dois
significados. No Rio, queria dizer "vá em frente", "mete a cara". Mais para o norte do Brasil, por onde Homero viajou muito, era uma forma abreviada de "mete a vela no rabo dele", no sentido de
"pregue-lhe uma peça", "faça-lhe uma ursada".
Capítulo 13
DO FAZ VERGONHA À
MALANDRAGEM
Se o jogo permitir,
Se a polícia consentir
E se Deus quiser...
Malandro Medroso

Já que não tem samba ou marcha de sua autoria para cantar neste carnaval,
só resta a Noel brincar com as melodias dos outros, sambas como Na Pavuna e
Amor de Malandro, marchas como a premiada Dá Nela e a contagiante Pra Você
Gostar de Mim, ou simplesmente Taí, que começa a transformar numa estrela a
novata Carmem Miranda. Se quiser cantar o que é seu, Noel terá de se contentar,
mesmo, com os improvisos do Faz Vergonha.
Além de dividir social e economicamente a comunidade do bairro, o
Boulevard também estabelece a fronteira que separa os dois grandes e sempre
rivais blocos de Vila Isabel. Um deles é o Cara de Vaca, formado pela turma da
Souza Franco mais para o lado da Torres Homem. É um bloco organizado,
mantido em parte pelo dinheiro do Lourenço e de outros cidadãos ligados ao
jogo do bicho. Sai na manhã do domingo de carnaval para um desfile que às
vezes só acaba no meio da tarde. Moças e rapazes na frente, cercados por um
cordão de isolamento, e um caminhão atrás, carregado de comida e bebida. Os
foliões dão início ao desfile, cantam um sucesso do ano, param, comem, bebem,
seguem em frente cantando outro sucesso, param outra vez, novas degustações,
assim por diante. Já o bloco rival, o Faz Vergonha, surgiu na Rua Maxwell, nas
proximidades da Fábrica Confiança. É bem mais democrático, sem cordão de
isolamento, aberto para quem quiser entrar ou sair. Por ele desfilam homens do
povo, como Antenor Grande, Candinho, Piscalhada, Gude e Canuto, e rapazes
que vêm do outro lado do Boulevard, como os irmãos Boamorte. Noel é figura
de destaque no Faz Vergonha, uma vez que cabe a ele - e assim será por mais
alguns anos-a tarefa de improvisar versos, dividida com Lauro Boamorte e Paulo
Anacleto.
O desfile do Faz Vergonha difere do do Cara de Vaca principalmente por
isso: enquanto o outro sai cantando sucessos do ano, o bloco a que Noel pertence
parte de um estribilho original, composto por um de seus integrantes, e em
seguida os improvisadores criam versos para a segunda parte. Um dos estribilhos
mais famosos do bloco é feito por Canuto:
Vou à Penha rasgado
Pra pagar uma promessa
Deixei de ser malandro
Pois eu tenho trabalhado
Vou de chinelo charlotte
E terno de cimento armado,
Pois é o que a fiota tem dado...(1)
1. Com letra ligeiramente modificada e segundas partes definitivas, escritas por João de Barro, Vou à Penha Rasgado seria gravado em 1931 pelo próprio João de Barro com o Bando de
Tangarás. Mas sua origem está mesmo nos desfiles do Faz Vergonha.

O terno em questão, é bom que se explique, é do tipo que os cidadãos mais


pobres usam, de brim barato, endurecidos pelo excesso de goma, geralmente
cinza, cor de cimento.
Na arte de improvisar, Noel Rosa é insuperável. Pena que se venham a
perder, na memória de todos, os versos por ele criados durante os desfiles do Faz
Vergonha. Antes, as opiniões ainda se dividiam, havendo muita gente que
achava Lauro Boamorte tão bom ou melhor que Noel. Moço inteligente, de
muitas leituras, simpático e expansivo, Lauro é um dos que mais pontificam nas
famosas reuniões lítero-musicais que se realizam em sua casa, no Boulevard,
entre Justiniano da Rocha e Hipólito da Costa. O pai, o velho Elpídio, é um dos
mais conhecidos e estimados moradores de Vila Isabel. Homem de valor,
começou do nada, venceu preconceitos contra a cor de sua pele, tornou-se alto
funcionário do Ministério da Fazenda e vai acabar tendo rua com seu nome nas
imediações da Praça da Bandeira(2).
2. Com a construção dos viadutos próximos à Praça da Bandeira, a Rua Elpldio Boamorte está hoje reduzida a um pequeno trecho e a apenas um prédio, onde funciona o Centro Municipal de
Saúde Marcolino Candau. Seu nome é uma homenagem não só ao anfitrião e animador cultural da Vila Isabel dos anos 30, mas também ao Diretor-Geral do Tesouro Nacional, mais tarde Diretor da
Fazenda do Distrito Federal, que o doutor Elpídio foi.

Aos filhos - Lauro, Hélio, Aloysio e mais nove - deu-lhes boa educação,
ensinou-lhes a apreciar música e poesia, encaminhou-os na vida.
Mas, definitivamente, Lauro não é o melhor versejador do Faz Vergonha.
Vai-se descobrir mais tarde que enquanto Noel improvisa suas segundas partes
para os sambas do bloco, criando-as na hora, em pleno curso do desfile, não
importando qual seja o mote, Lauro traz as suas idéias de casa. Em algumas ele
trabalha dias, semanas, antes do carnaval. Em outras será possível detectar
rimas, imagens, quando não versos inteiros, que o "improvisador" Lauro pediu
emprestados à literatura de cordel e outras fontes que nem todos no Faz
Vergonha conhecem.
Paulo Anacleto impressiona mais pela quantidade. Seus improvisos podem
não ter a inventiva dos de Noel (ou o acabamento dos quais o Lauro vai buscar
onde pode), mas jorram em uma fonte realmente inesgotável: ele é capaz de
passar horas versejando sobre um mesmo tema, com um fôlego tão
impressionante que ninguém, nem mesmo Noel, consegue acompanhá-lo. Paulo
e seu irmão Manuel, excelente tamborim, fazem parte da ala mais "familiar" do
Faz Vergonha. Eles, os Boamortes, os Barros Nunes, os Farias Lima, Armando
Reis, Arnaldo Amaral, Antônio Nássara, Sizeno Sarmento, rapazes de classe
média que, chegado o carnaval, vestidos de sujo, saiote, batom, rouge, fita na
cabeça, sapato alto, confundem-se na folia com modestos homens do povo como
Canuto, negro do Salgueiro.
O desfile de blocos é um dos pontos altos das batalhas de confete do
Boulevard. Desfile competitivo como um dia será o das escolas de samba. Um
palanque de madeira é armado no cruzamento do Ponto de 100 Réis. Nele fica a
comissão julgadora integrada por cronistas carnavalescos, autoridades,
intelectuais, artistas, personalidades do bairro. O pessoal costuma chamar o
palanque de "coreto". Diante dele passam o Faz Vergonha, o Cara de Vaca, o
Decididos do Engenho Novo, blocos de outros bairros que ali vão com suas
fantasias de sujo, suas baterias, seus sambas (nem todos passam, como o Faz
Vergonha, improvisando a partir de um refrão original) . Há quem diga que a
expressão "balançar o coreto", tão ao gosto do carioca, nasceu num desses
desfiles, ou melhor, de ter um dos blocos perdedores virado de pernas para o ar o
palanque e a comissão julgadora que cometeu a imprudência de dar o prêmio ao
bloco rival. E há quem diga, também, que o nome Faz Vergonha vem justamente
de ser este grupo de foliões -ao qual pertence Noel - um contumaz fazedor de
vergonha: basta que não obtenha a preferência da sempre suspeita comissão
julgadora para que seus componentes mais exaltados balancem o coreto, seja o
do Boulevard, sejam os que se armam para as batalhas das Ruas Dona Zulmira e
Santa Luzia (estas, hoje e por mais alguns anos ainda, as mais concorridas da
cidade). Mas há pinceladas de exagero nestas questões etimológicas, embora no
Faz Vergonha realmente existam alguns valentes da melhor linhagem.
Como o Martim José Dionísio, também conhecido por Martim Adeus Ó
Colo. Grandalhão, braços volumosos, mãos imensas, forte como um gorila, mas
uma dama. Sempre falando baixo, calmo, incapaz de perder a calma mesmo
quando eventualmente algum desavisado o provoca.
- Que é isso, compadre, não tem amor à vida? - limita-se a dizer.
Martim não provoca ninguém. Em toda a sua vida só uma vez será ele o
desafiante em vez de desafiado. No dia em que o Circo Barthô se instalar no
terreno baldio da esquina de Justiniano da Rocha com o Boulevard, cairá em
suas mãos um folheto de propaganda informando que uma das atrações da
companhia é um urso campeão de luta livre. O gerente da empresa pagará 500
mil réis - um belo dinheiro - a quem resistir a um round de dez minutos com o tal
urso. Martim, vindo de Minas Gerais para servir de guarda-costas de políticos
seus conterrâneos, talvez não ganhe tanto por mês. Quinhentos mil réis! É
pensando nas coisas que faria com o prêmio que ele vai se candidatar a medir
forças, no centro do picadeiro, com o urso campeão. Toda Vila Isabel, Noel
inclusive, irá vê-lo lançar-se à empreitada na matinée de domingo. Martim vai
entrar no picadeiro, tranqüilo como sempre. E assim que se abrir a jaula, o urso
ainda meio distraído com a gritaria do público, avançará para o animal, trocará
murros com ele, lhe aplicará uma gravata, quase mandará a nocaute o peludo e
corpulento adversário. Mais do que resistir a um round, Martim derrotará o
campeão. Sairá todo mordido e arranhado, mas vitorioso. Para exasperação do
gerente da empresa, que chegará a pensar em não pagar o prêmio: "Você pegou
meu urso distraído!", dirá. Sem discutir, Martim vai envolver com seus braços
massudos o mastro que sustenta a lona do circo, balançá-lo de um lado para
outro, fazê-lo estremecer. O gerente de olhos arregalados, o público de
respiração suspensa e Martim, sempre agarrado ao mastro, gritando: "Ou me
paga, ou eu boto esta bosta abaixo!" De noite, calma recuperada, o corpo coberto
de curativos, o vencedor do urso estará pagando, feliz da vida, cerveja para todos
no Martinez. Com os 500 mil réis, é claro. O mais comum, porém, é ser ele o
desafiado. Como se passa no dia em que um jovem aluno da Academia Militar
aparece no Ponto de 100 Réis com ares de valente: - Tem gente boa de briga por
aqui? pergunta a um dos rapazes da esquina.
- Não, amigo. Aqui é tudo de paz.
-Mas ouvi dizer que Vila Isabel é terra de decidido. Vim só pra ver se é
verdade. Gostaria de pôr à prova o melhor de vocês.
O rapaz da esquina logo nota que o jovem cadete é um provocador, desses
que adoram uma confusão. Na certa luta boxe, jiujitsu, capoeira ou algo que
tenha aprendido lá na Academia Militar. Um cadete alto, atlético, bem
apessoado. Bonito, mesmo. Forte, mas não muito. Está confiando em quê? Na
força ou na farda? Mas já que ele quer mesmo arranjar briga, o rapaz da esquina
resolve fazer-lhe a vontade.
- Olha, amigo, gente boa de briga não tem por aqui, não. Mas posso lhe
trazer, agora mesmo, alguém pro senhor pôr à prova.
O cadete se anima. Uns dez, quinze minutos depois o rapaz volta
acompanhado do Martim José Dionísio. Mal são feitas as apresentações, o
cadete, sem se impressionar com o tamanho do outro, põe-se a desafiá-lo,, a
dizer que não acredita muito nos seus músculos, que briga se ganha com
inteligência e não com força, coisas assim. Martim ouve calado. E quando o
cadete finalmente o chama para um ajuste, diz com o tom de voz baixo, brando,
quase sussurrante: - Que vergonha, moço! Um futuro oficial do nosso Exército
amofinando gente pacata, querendo perturbar a ordem. Que vergonha! Tá
pensando que o país é seu?
E se afasta com os passos lentos, pesados, deixando o provocador ainda
mais humilhado que o urso que ele quase mandou a nocaute. O jovem cadete vai
desaparecer do Ponto de 100 Réis, mas continuará pensando que o país é seu.
Um dia, arma em punho, invadirá o Palácio Guanabara disposto a tirar de lá
ninguém menos que o Presidente da República. Seu nome, Severo Fournier, será
lembrado por isso(3).
3. Severo Fournier comandaria o putsch integralista que a 11 de maio de 1938 tentaria assassinar Getúlio Vargas dentro do Palácio Guanabara. Era então tenente e declarava-se "apenas um
descontente", sem vínculos com o partido de Plínio Salgado ou qualquer outro. Fracassada a tentativa, Fournier se exilaria na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro. Depois de prolongadas conversações
diplomáticas, foi entregue âs autoridades brasileiras, julgado e condenado a dez anos de prisão. Ele, Júlio do Nascimento e Belmiro de Lima Valverde, também participantes do atentado. Fournier seria
libertado em 1945 e morreria no ano seguinte de tuberculose adquirida na prisão. O episódio com Martim Adeus Ó Colo foi contado aos autores pelo General Sylvestre Travassos, na época morador do
bairro.

Mas os forasteiros não se iludam. São muitos os valentes de Vila Isabel.


Especialmente os do time de futebol do Sport Club Aldeia, como o Leonardo
Figa de Guiné, baixinho, gordo, sempre de navalha na cintura. Temidíssimo, não
tem medo de nada. Nem de polícia, nem de malandro. Só do Martim. Mas os
dois são amigos e se tratam respeitosamente pelos respectivos apelidos. O
Leonardo deve o seu a andar com uma figa em cada bolso, sempre preocupado
em afugentar os caprichos do azar. O do Martim tem origem menos conhecida.
Num certo sábado de carnaval, desfilando pelo Faz Vergonha, o bloco passando
pela porta de sua casa, ele viu na janela a mulher, Colo, e gritou para ela:
"Adeus, ó Colo!" E só voltou na quarta-feira. O apelido acabou se convertendo
em expressão muito usada pelos cariocas destes e dos próximos tempos(4).
4. A expressão "Adeus ó colo" não foi encontrada em nenhum dos dicionários consultados pelos autores. Mas era muito usada no Rio de Janeiro dos anos 30 - e mesmo depois - como uma
forma algo debochada de se dizer "fim", "acabou", "até nunca mais".

O homem responsável por ela vai morrer esquecido e não propriamente


como um valente: ao dar um mergulho na Praia das Virtudes, baterá com a
cabeça numa pedra e quebrará o pescoço. Uma tarja preta tingirá o estandarte do
bloco no carnaval seguinte.
Adeus Ó Colo, Figa de Guiné e as demais figuras de proa do Faz Vergonha
- Antenor Grande, Jurema Bola Sete, Candinho, João Pelanca, Gude, Piscalhada,
Salvador Cara Larga, Culé, Carrão, Pedro Pé de Banha, Heitor Barrigudinho,
Hugo, Archete, Canuto, os irmãos Walter e Affonsinho, craques de futebol (o
segundo ainda chegará ao scratch nacional) - reúnem-se quase todas as noites, de
dezembro a fevereiro, para traçarem planos com vistas ao carnaval. Discutem
sambas, fantasias, estandartes e estratégias a serem seguidas pelo bloco nas
próximas batalhas e no desfile de domingo. O local dessas conferências que
entram pela madrugada, irrigadas com cerveja ou cachaça, é a faixa de
paralelepípedo que cobre o rio Joana, na Rua Maxwell, em frente à Piza de
Almeida, e que o pessoal do lugar chama de "Ponte". Conferências longas,
animadas, que volta e meia contam com a presença do jovem folião Noel Rosa.
De maio de 1929, quando estrearam na cera com um cateretê e uma
embolada de Almirante, Anedotas e Galo Garnizé(5), até maio de 1933, quando
entrarão no estúdio da Odeon para gravarem, juntos pela última vez, uma cena
junina de João de Barro, os tangarás aparecem em 38 discos, 73 faixas, a maioria
de autoria de Almirante, o cabeça do grupo.
5. Estes foram de fato os dois primeiros registros fonogrãficos do Bando de Tangarás, lançados no suplemento Odeon de agosto de 1929-No entanto, Mulher Exigente, de Almirante, e
Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e Henrique Britto, dois sambas gravados um mês depois, foram lançados primeiro, no suplemento Parlophon de junho.

Os primeiros passos dessa breve mas intensa carreira fonográfica deixam a


impressão de que é apenas o violonista e não o cantor ou o compositor Noel
Rosa o que conta para Almirante. O mesmo se pode dizer em relação ao cantor
Alvinho. Quem tiver oportunidade de acompanhar com atenção os suplementos
Odeon e Parlophon dos próximos dois anos poderá confirmar o quanto serão
menores os papéis representados por Noel Rosa e Alvinho dentro do conjunto.
Por exemplo, só no décimo oitavo disco dos tangaràs Noel terá uma composição
sua gravada por eles: Eu Vou Pra Vila. Isso já em agosto de 1930, um ano e dois
meses depois de Anedotas e Galo Gamizé. E só no vigésimo nono, em agosto de
1931, lhe darão chance de atuar como solista cantando dois de seus sambas:
Cordiais Saudações e Mulata Fuzarqueira. Alvinho, nem isso. Sua carreira como
cantor terá de se fazer fora do conjunto, independente, por iniciativa própria(6).
6. Alvinho gravaria onze discos com seu próprio nome, 21 faces, em 1930 e 1931, o primeiro dos quais como solista da Orquestra Pan-Americana. Nenhum deles, porém, teria qualquer
ligação com o Bando de Tangarás. Entre as músicas de seu repertório incluem-se sambas, marchas, canções, valsas, fox-trots.

Por quê? Não gosta Almirante da voz de Alvinho? Ainda não está
convencido das qualidades do compositor Noel Rosa? Por que vai demorar tanto
a lançá-lo? A primeira oportunidade negada a Noel foi realmente a de gravarem
Com Que Roupa? já para o carnaval de 1930. Agora, a folia fica para trás, os
tangarás retomam suas atividades de meio de ano, continuam gravando
composições de Almirante, João de Barro, Henrique Britto e até de gente de fora
como Erasmo Vollmer, Luciano Meirelles, Jota Menra, Henrique Vogeler,
Lamartine Babo, Homero Dornellas, Canuto, Mário Faccini, Luperce Miranda,
Manuel Lino, Brant Horta. Todos estes terão músicas suas gravadas pelo Bando
de Tangarás antes que chegue a vez de Noel. Não há como explicar tal demora.
E quanto ao cantor Noel Rosa? Até que seu nome apareça no selo de um
disco do conjunto, este já terá gravado nada menos de 54 faces, cabendo a
Almirante solar 33, João de Barro 13 e o violão de Henrique Britto uma. As
restantes serão distribuídas entre solistas ocasionais como Paulo Netto de
Freitas, a dama da alta sociedade Lucilla, a delicada Elisinha Coelho e os
humoristas Pinto Filho e Maria Vidal. O cantor Noel Rosa? A não ser por uma
discreta participação em Lataria, brincadeira sonora em que cada um deles
cantará uma quadrinha, terá mesmo de esperar dois anos e dois meses, desde
Anedotas e Galo Gamizé, até que os tangarás lhe dêem vez como solista.
Já essa outra demora explica-se a partir de três dados indiscutíveis. O
primeiro está em ser mesmo Almirante, longe, o melhor cantor dos cinco. Um
cantor que vai aprimorar cada vez mais sua técnica, tornando-se sempre melhor
com o passar dos anos. A voz estridente mas clara, a agilidade verbal que o
permite pronunciar perfeitamente cada sílaba, mesmo nas músicas mais ligeiras,
sua exata noção de ritmo, a musicalidade, tudo isso fará dele um dos mais
completos intérpretes de música popular brasileira. Bom em quase todos os
gêneros, ótimo numa embolada, imbatível num samba-choro. É natural, portanto,
que seja sua a maioria dos solos.
O segundo dado é o jeito desgarrado de Noel, aquele temperamento de não
pertencer exatamente a nada ou a ninguém, sendo tanto dos tangarás como de
outros conjuntos, inclusive o de Renato Murce. E sendo sempre ele mesmo,
sozinho, livre. Almirante, com toda sua autoridade de líder, compreende isso,
não se zanga quando Noel não aparece para um ensaio, um recital, uma
gravação. Se tal acontece, os tangarás seguem sem ele. Até porque há sempre
quem o substitua, pois de quinteto mesmo o conjunto só tem o ponto de partida,
contando sempre com numerosos "adendos": Luperce Miranda, Daniel Simões,
Sérgio Brito, Lamartine Babo, Formiga, Erasmo Vollmer, Dornellas, Canuto e
tantos outros.
O terceiro dado são ainda as "esquisitices". Isto é, aquela história de a
maioria dos amigos de Noel nada ter a ver com os amigos dos demais tangarás.
Não se parecem, nenhuma afinidade guardam com os bem-comportados moços
de Vila Isabel. Como diz Almirante, Noel tem uma incontrolável tendência às
más companhias(7).
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável tendência ãs más
companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 120).

É como dizem os vizinhos ao vê-lo entrar e sair do chalé com Canuto,


Puruca, o padeiro Cobrinha, o pessoal do Faz Vergonha e até uns tipos que
ninguém conhece, vindos de só Deus sabe onde, negros, pobres, malvestidos, às
vezes até um tanto mal-encarados, como dizem enfim os vizinhos:
- Este filho de dona Martha só vive metido com gentinha.
Almirante já havia ousado algumas inovações na gravação de Na Pavuna,
um samba à antiga que de novo só tem mesmo o acompanhamento: além do
bandolim de Luperce Miranda e do piano da garota Carolina Cardoso de
Menezes(8), Almirante levou para o estúdio - e pela primeira vez - instrumentos
de percussão típicos de blocos e escolas de samba, incumbindo os negros
Canuto, Puruca e Andaraí de executá-los.
8. Carolina Cardoso de Menezes tinha apenas treze anos quando participou da gravação de Na Pavuna em 30 de novembro de 1929.

Na Pavuna foi mesmo uma das músicas mais ouvidas no último carnaval.
Muito pelo refrão (em cuja força Almirante fez bem em apostar), mas muito
também pela originalidade do acompanhamento, o surdo e os tamborins levando
ao disco uma marcação e um repinicado não conhecidos dos estúdios de
gravação.
Mas a vontade de inovar sempre mais vai levar Almirante a outras
experiências, de modo que, infelizmente, a associação dos tangarás com a batida
dos morros será um episódio isolado, não repetido. Assim, após uma breve volta
às emboladas, toadas, valsas e canções, inclusive uma regravação de Anedotas, o
conjunto se lança a outra ousadia.
Almirante e João de Barro vão de bonde, de Vila Isabel à Rua Almirante
Barroso, sem idéia do que gravarão do outro lado de Mulata, samba do próprio
João de Barro, quando lhes passa pela cabeça uma brincadeira sonora. Que tal
usarem no disco, em vez do surdo e dos tamborins, nada menos do que toda
sorte de latas velhas que encontrarem no primeiro monte de lixo do Centro?
Latas do que for, banha, querosene, creolina, manteiga, substituindo os
verdadeiros instrumentos de percussão. Em cima de um estribilho que os dois
compõem durante a viagem...
Já que não temos pandeiro
Para fazer a nossa batucada
Todo mundo vai batendo
Na lata velha e toda enferrujada ..

Cada um dos tangarás terá de cantar uma quadrinha alusiva à lata que lhe
caberá bater na marcação do ritmo. Almirante e João de Barro entusiasmam-se
com a própria idéia e a levam ao maestro Eduardo Souto.
A Odeon e a Parlophon já não são as mesmas desde que assumiu a direção
artística da Casa Edison este estupendo compositor, pianista, orquestrador e
regente. Músico extraordinário, ser humano fascinante. Dizem que descende de
nobres, neto de um certo Visconde do Souto. Nascido em Santos, lá começou a
estudar piano. Clássico, evidentemente. Mas, a exemplo de muitos jovens de
família como a sua - que começam com Chopin e acabam mesmo desaguando
nas valsas brasileiras, nos choros, tanguinhos, polcas, música mais ligeira que se
ouve em festas e saraus - Souto já era, aos vinte e poucos anos, dono de uma
respeitável obra pianístíca nos moldes das de Ernesto Nazareth, Chiquinha
Gonzaga e seu coestaduano Marcello Tupynambá. Só que mais ampla, mais
aberta, voltada para várias frentes. Reflexo de seu próprio temperamento, rico,
múltiplo, ora extrovertido, alegre, ora soturno, nostálgico, sua música é arte de
muitas faces, havendo nela lugar para tudo, tangos de salão, marchas, fox-trots,
choros, fados, valsas, schottisches, maxixes, chulas, charlestons, cateretês,
ragtimes, sambas.
Um paulista surpreendentemente carioca. Pois foi ele o responsável pela
organização do já histórico Tatu Subiu no Pau, bloco carnavalesco que fez furor
em 1923, o próprio maestro compondo a marchinha que toda a cidade cantou nos
três dias:
Tatu subiu no pau
É mentira de vancê
Lagarto ou lagartixa
Isso sim que pode sê

É um choro à moda carioca o seu Parati Dançante, cujo subtítulo está muito
mais para Noel do que para Almirante: "Na Favela e demais zonas congêneres
não se usa o chá como estimulante para as danças." E no entanto, o múltiplo
Eduardo Souto é capaz também de compor melodias apaixonadas, etéreas como
Nuvens, chorosas como a valsa Tristeza. E o que dizer destas obras-primas que
são Do Sorriso da Mulher Nasceram as Flores e Despertar da Montanha, escritas
no mesmo piano em que foi composto o saltitante Viradinho, cateretê que Mário
de Andrade inclui entre suas peças populares prediletas?
Fascinante sob todos os aspectos. Basta dizer que o mesmo folião que saiu
de sujo naquele bloco de 1923 é o homem elegante e bonito que há anos vem
atraindo moças suspirantes à Casa Carlos Gomes, no 153 da Rua do Ouvidor,
para ouvi-lo tocar no piano românticas valsas, líricas canções. Bem vestido, uma
precoce mecha branca a matizar-lhe a cabeleira bem penteada, o maestro Souto
faz bater mais forte muitos corações. Mas, homem transitório, aqui, com os
tangarás, não é nada disso, e sim um músico divertido, alegre, brincalhão, que se
entusiasma com a idéia da batucada de latas que Almirante e João de Barro
trazem para a nova gravação do grupo. Neste 1930, Eduardo Souto já está perto
dos cinqüenta anos(9), mas tem o espírito tão jovem quanto o dos rapazes de
Vila Isabel.
9. Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.

E ele mesmo participa da brincadeira colocando sua voz no disco. Antes de


o conjunto entrar com o estribilho, há um pequeno diálogo iniciado por
Almirante:
- Como é, pessoa, vamo fazê uma batucada?
Ao que João de Barro responde:
- Vambora. Mas que pandeiro? Souto intervém:
- Pandeiro, nada! Lata veia taí à beça! Novamente João de Barro:
- Isso mesmo! Vamo fazê a batucada de lata veia!
Seguem-se o estribilho em coro e depois as quadrinhas cantadas, pela
ordem, por Almirante, Noel, Alvinho e João de Barro, este batucando num
penico. Quadrinhas improvisadas no estúdio, com efetiva participação de
Noel(10):
10. O nome de Noel Rosa não está no selo do disco ou na partitura impressa de Lataria. Mas João de Barro, que assina o samba com Almirante, em mais de uma ocasião admitiu a
participação de Noel na feitura dos versos que iam sendo improvisados dentro do estúdio da Odeon. Numa delas, em entrevista a Sérgio Cabral, publicada no segundo caderno de O Globo em 24 de
janeiro de 1977.

Para poder formar no samba


Para entrar na batucada
Fabriquei o meu pandeiro
De lata de goiabada

Sai do meio do brinquedo


Não se meta, dona Irene,
Porque fiz o meu pandeiro
De lata de querosene
Ando bem desinfetado
Só porque, minha menina,
Fabriquei o meu pandeiro
De lata de creolina

Escuta bem, minha gente,


Escuta bem pelo som
E depois vocês me digam
Se o instrumento é bom

Não se pode dizer que o produto sonoro de Lataria tenha sido dos melhores.
É, no mínimo, bastante inferior ao obtido com Na Pavuna. Instrumentos e
instrumentistas fazem pouco mais do que barulho na cúpula do Teatro Phoenix.
Um barulho que os incipientes recursos técnicos das gravações de agora só vão
acentuar. Instrumentos metálicos, estridentes. Instrumentistas que ainda têm
muito a aprender com Canuto e sua gente.
Importante, contudo, é que esta abertura de Eduardo Souto para novidades
musicais, ainda que em tom de brincadeira como a que Almirante e seus tangarás
acabam de gravar, será valiosíssima para a música popular. Como diretor
artístico-homem sem preconceitos de gêneros ou estilos, atento a tudo, ele
próprio gostando de ousar - franqueará os estúdios a muita gente nova e
talentosa, gravará outras experiências sonoras, apoiará artistas como Almirante
em suas iniciativas de trazerem para o disco a percussão dos morros, os
sambistas instintivos até aqui marginalizados da música como profissão. Vai-se
dever muito a isso a riqueza dos catálogos Odeon e Parlophon nos próximos
anos. Mas é necessário dizer que esta postura de Eduardo Souto - de abrir
sempre mais os horizontes da música popular através do disco, registrando todos
os gêneros, formas e tendências, mesmo as aparentemente mais inviáveis como
Lataria ou as confessadamente mais primitivas como as ouvidas nos terreiros de
macumba - é lúcida, consciente. O maestro acredita nela(11). Para sorte dos
tangarás.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro, substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a revista Phono-Arte dedicava
ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse acontecendo na música brasileira, do samba da moda ao ainda
pouco conhecido canto dos terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de experiências sonoras domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco contendo de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um Conjunto Africano, sairiam
Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na música dos escravos (e até mesmo uma "cena de escravidão" que o próprio Souto comporia com Newton Braga para Francisco Alves cantar),
desafios, cenas humorísticas, rancheiras, pregões, rumbas, danças orientais, uma "reza de malandro" (também de Souto), tudo isso seria gravado nos selos Odeon e Parlophon enquanto o maestro
estivesse à frente da direção artística da Casa Edison.

Em 1930 Noel Rosa é ainda um principiante, um compositor inexperiente.


Seu melhor trabalho até agora, Com Que Roupa?, embora fadado a mexer com
todo o mundo que faz música popular neste país, permanece inédito. E nasceu de
sua velha intimidade com a arte das paródias. Seguirá ele sempre por essa trilha?
Adotará nas próximas composições o mesmo processo? Qual será o seu método
de trabalho, a sua técnica?
Não se deve confiar muito no que ele mesmo dirá, sobretudo aos jornalistas
que cada vez mais o procurarão, à medida que se torne famoso. O Noel Rosa das
entrevistas será quase sempre um artista do despistamento, um gozador a
mascarar suas respostas com grandes e pequenas mentiras, divertindo-se ao ler
no dia seguinte as fantasias que vai criando a seu próprio respeito. Como nesta
entrevista de daqui a alguns anos: "- Como você faz os sambas? Quando faz e
onde?
-- Já ensinei a fazer sambas, num domingo, no Programa Casé. A inspiração
vem inesperadamente. Dentro de um ônibus, ou numa mesa de café. Escrevo
logo a melodia no primeiro papel que encontro, ou no maço de cigarros. Mostro,
em seguida, à minha mãe. Se ela gosta, guardo-o. Se não, rasgo-o.
- Tem rasgado muitos?
- Há uma história muito velha e muito conhecida sobre a coruja e seus
filhos... Mamãe é assim: tudo que faço acha ótimo. Por isso, até hoje não rasguei
nenhum.(12) "
12. Carioca, 14 de dezembro de 1935 (página 42).

Principiante, sem experiência. Mas já é nítida sua preocupação com a


originalidade, não repetir o que os outros já fizeram, não se deixar levar pelos
caminhos fáceis do lugar-comum. A partir dessa preocupação, trata de
desenvolver logo seus próprios esquemas de fazer música e letra. Passando por
cima de suas primeiras produções - as paródias, a valsa, o choro, a toada, as
emboladas, a canção - é possível observar na maioria, quase totalidade das obras
que se seguem a Com Que Roupa?, que pelo menos o letrista descobre muito
cedo que neste ofício de compositor popular existe como que uma chave, um
ponto de partida em todo o processo de criação: a idéia. Noel Rosa começa a ser
agora - e será sempre - um compositor temático, tudo ou quase tudo partindo de
um motivo central, um tema. O que talvez explique o fato de vir a ser, daqui a
uns tempos, um campeão das segundas partes, um inigualável complementador
de obras apenas esboçadas, alguém lhe aparecendo com a primeira parte pronta,
a idéia, e ele completando-a com habilidade, competência ou mesmo brilho, sem
se afastar dela.
Por saber que idéia não sendo tudo é mais do que meio caminho, jamais
deixará que uma lhe escape. Se não florescer hoje, agora, um samba começado
não chegando ao fim, vai retomá-la amanhhã ou depois, como fará ao revestir a
história de Mardade de Cabocla com a roupagem de Quando o Samba Acabou.
Idéias afins serão encontradas em outros pares de composições, editadas ou
inéditas, que produzirá nos próximos seis anos. Editadas como O Pulo da Hora e
Por Causa da Hora, inéditas como Saber Amar e Que Orgulho É Este?(13)
13. O Pulo dá Hora e Por Causa da Hora serão focalizados no Capítulo 17. Saber Amar e Que Orgulho É Este?, no Capítulo 15.

Mas, especificamente neste 1930, o melhor exemplo de seu método de


trabalho - de como não deixa uma boa idéia escapar, a ponto de desenvolvê-la,
de retomá-la mais adiante, podendo mesmo transformar um samba em dois
outros tão bons ou melhores -está num esboço, música e letra, intitulado Vou Te
Ripar:
Toma cuidado que eu te ripo
Porque tu não és meu tipo
E eu contigo não fiz fé
(Podes dar marcha a ré).

O banzé eu sempre evito,


Pois não me fica bonito
Exemplar uma mulher
Quem avisa teu amigo é,

Tudo acaba nesta vida


Até mesmo a paciência.
E quando qualquer mulher
Fica sendo oferecida
É pela conveniência.

Nada tu possuis para me dar,


Tu nasceste muito pobre
Nem podes gastar pintura.

Nada tens para mostrar,


Não herdaste sangue nobre
E abusaste da feiúra

A música é melhor que a letra, mas não chegará ao público. Noel vai
preferir aproveitar a idéia, ou melhor, as idéias contidas no esboço e fazer dois
sambas de um. Num deles mantém o estribilho acima, com ligeiras modificações
na melodia, e acrescenta-lhe novas segundas partes, música totalmente diferente
e letra que nada tem a ver com a original:
Vivo alegre no meu barracão
Não preciso de mobilia
Pois toda a minha família
Consta de um chicote, de um facão,
De uma ripa ainda donzela
Que vai ter sua função

A mulher que mais a gente preza


Por capricho nos despreza
Acontece sempre assim
De contrastes o mundo anda cheio
E a mulher que eu mais odeio
É quem gosta mais de mim

Tanto tu disseste que escutei


Que não achas a lei dura
Mas só acha quem procura
E agora para ter certeza
Vais provar toda a dureza
Desta madeira de lei

A esta segunda versão Noel dará o mesmo título do esboço, Vou Te Ripar,
gravando-a ele mesmo, ano que vem, para o carnaval de 1932(14).
14. Almirante se equivoca, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 178), ao dar a primeira versão de Vou te Ripar como a que foi cantada nas ruas no carnaval de 1932. Deve
ter-se baseado no esboço que Noel deixou em seu caderno de letras ou na partitura manuscrita, hoje parte do acervo do Arquivo Almirante do Museu da Imagem e do Som, Rio. A versão gravada,
popular no carnaval citado, é mesmo a segunda.

Mas, se vai pôr de lado a melodia da segunda parte original, não deixará de
aproveitar a idéia poética em outro samba que também gravará para o carnaval
de 1932, Nunca... Jamais!, de melodia, primeira e segunda partes, inteiramente
nova:
Meu bem, não me faças sofrer,
Tu queres ter liberdade demais.
Os homens tu conquistas um por um,
Sem amar nenhum...
Não, não pode ser, nunca... jamais...
Em tempo algum!

Qualquer dia morro de um acesso


Só por ver o teu processo
De iludir os coronéis.

Qualquer dia eu perco a paciência,


Digo inconveniência
E depois te meto os pés
(E vou pagar vinte mil réis!)

Deste a todo mundo a tua mão


E teu pobre coração
Mais parece uma estalagem

Para salvação o que desejo


É mandar fazer o despejo
Pra poder descer bagagem
( Mas é preciso ter coragem!)

Nada de ti posso aproveitar,


Nada tens para me dar,
Nem tens nota pra pintura.
Todo mundo sabe que és pobre,
Não herdaste sangue nobre
E abusaste da feiúra
( Pra quem é pobre a lei é dura! )

Este filho de Dona Martha só vive metido com gentinha. Noel ainda não
tem vinte anos e já pode considerar-se bastante familiarizado com as coisas da
malandragem, sua gente, suas leis, seu apaixonante ainda que estranho mundo.
Sente-se atraído por ele. Mesmo que não viva exatamente de acordo com suas
regras, aceita-as, faz sua apologia em letra de samba. Os malandros o fascinam,
sempre o fascinarão. A sociedade pode marginalizá-los, persegui-los, amaldiçoar
seu modo de vida. Mas quem mais - mesmo com todas as freqüentes passagens
pela cadeia - conhece tão de perto as cores da liberdade? O malandro é livre a
seu modo.
Mas quem é, afinal, este personagem que tanto fascina Noel? Onde vive, o
que faz, a que se deve sua fama, o que tem de tão fascinante?
O malandro, se for ver bem, sempre existiu. Em todas as épocas e em todos
os lugares. O Brasil mal tinha sido descoberto e já os italianos arregalavam os
olhos diante das façanhas de certo tipo de espertalhão a que chamavam de
malandrino. Vivo, sagaz, cheio de imaginação, ganhava a vida às custas de
golpes, nunca de trabalho. O nosso malandro descende do malandrino no nome e
no modo de vida. Não tem emprego fixo nem profissão definida. E acredita
muito mais na astúcia do que no batente. Costuma fazer aquilo que as pessoas
chamam de "viver de expediente", uma viração aqui, uma esparrela ali, um
grande golpe mais adiante. Suas atividades são tão incertas quanto ilícitas. Sabe,
como ninguém, burlar a vigilância policial. Sente-se orgulhoso e feliz toda vez
que passa a perna num homem da lei, a quem chama, entre outros "mil apelidos,
de samango. Aliás, no seu linguajar muito próprio, raramente dá às coisas os
nomes que elas têm. Trata cerveja de água benta, cachaça vagabunda de infiel,
jornalista de pena, maconha de rafo, roubo de ramoneio, elegância de estifa,
gente do morro de cabrito, revólver de berro ou cospe-fogo, pederasta de
indivídua, dendeca ou brilhante, navalha de aço, espada ou zinco, prostituta de
minestra, mariposa, maquininha ou mina. Definitivamente, detesta o trabalho.
Pelo menos o trabalho institucionalizado. E tem lá os seus motivos: em geral ele
pertence a uma das primeiras gerações descendentes de ex-escravos menos
afortunados - ou menos considerados pelos ex-senhores - que a sociedade
marginalizou, empurrado-os sem emprego, sem ofício, para longe de sua vista,
os morros, os subúrbios, os fins de mundo. Se no início não lhes davam trabalho,
condenando-os a uma sobrevivência difícil, hoje, na figura do malandro, são eles
que viram as costas ao trabalho. Preferem se dedicar a uma destas três
"especialidades" principais: o jogo, a mulher e a estia. Quando não às três ao
mesmo tempo.
O malandro jogador não faz fé em sorte. Confia muito mais nas próprias
artimanhas. Finge-se de pexote na sinuca até que o adversário se anime e suba a
aposta, vicia dados, esconde na unha a bolinha que deveria estar sob a chapinha
(como aquele que surrou Noel à saída do São Bento), carimba
imperceptivelmente as cartas do baralho com a goma preta que escorre de um
charuto marca Palhaço.
O que vive de mulher não gosta que o chamem de "cafifa" ou de qualquer
outro sinônimo. Segundo diz, não explora as minas:
- O que eu faço é dar cobertura a elas.
Cobertura no caso é uma espécie de proteção. Em troca de parte da féria
que ela consegue negociando o corpo, o malandro protege-a de clientes
caloteiros, de degenerados que a maltratam, de bêbados inconvenientes, de
policiais sem escrúpulos ou até de outros malandros. Um "protetor" ativo,
bonitão, de boas falas e atento aos interesses da protegida (inclusive, de vez em
quando, aplicando-lhe apaixonadas cocas), chega a ter sob sua guarda, quatro,
cinco, seis mulheres.
Estia é um tipo de gratificação paga ao malandro por pessoas que moram ou
trabalham em sua área de influência. Por respeito ou medo, os cidadãos pacatos
acham melhor molhar a mão deste malandro - considerado o mais perigoso - do
que ser por ele molestado. O profissional da estia é dos três o mais identificável
à distância. Sentado na sua mesa "particular" junto à porta do botequim (nunca
de costas para a rua), ali recebe a clientela metido num terno branco de linho
120, camisa de seda (dizem que para cegar o fio da navalha que eventualmente
deslizar por ela), gravata, chapéu, sapato de duas cores ou então um confortável
chinelo charlotte, o popular "cara de gato".
Todos esses códigos próprios de vida - somados ao fato de que por trás da
cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos leais, braços fortes
dispostos a ajudar em hora de aperto - é que fascinam Noel. Terá muitos
malandros entre seus amigos mais chegados, fará o que, puder por eles e por eles
será socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de sambas que comporá
sobre malandros e malandragem, mesmo não sendo exatamente este o seu
mundo, conhece-o bem, compreende-o.
Um dos sambas que criou neste 1930 - e que ele gravará sem os tangarás do
outro lado de Com Que Roupa?- inspira-se neste mundo. E fala do papel que o
próprio Noel representa nele, um malandro de fora, frágil, tímido, medroso,
acreditando nas leis da malandragem, mas só as seguindo até onde seu fôlego
permite. Embora seja um excelente samba - e um notável auto-retrato - a crítica
não lhe fará justiça. Eis, por exemplo, o que dirá a revista Phono-Arte: "No
complemento desse mesmo disco, ouve-se outro samba de Noel, Malandro
Medroso, peça que não se mostra companheira digna da que está do outro lado."
(15)
15. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25). Mulher Exigente, de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e Henrique Britto, dois sambas gravados um mês
depois, foram lançados primeiro, no suplemento Parlophon de junho.

Apesar disso, Malandro Medroso ficará mesmo como um dos bons


trabalhos do começo de carreira de Noel Rosa, exemplo de sua preocupação com
a originalidade, ponto de contato com um mundo que o fascina:
Eu devo, não quero negar,
Mas te pagarei quando puder,
Se o jogo permitir,
Se a polícia consentir
E se Deus quiser...

Não pensa que eu fui ingrato,


Nem que fiz triste papel,
Hoje vi que o medo é um fato
E eu não quero um pugilato
Com teu velho coronel.

A consciência agora que me doeu


Eu evito a concorrência
Quem gosta de mim sou eu!

Neste momento, eu saudoso me retiro,


Pois teu velho é ciumento
E pode me dar um tiro.

Se um dia ficares no mundo,


Sem ter nesta vida mais ninguém,
Hei de te dar meu carinho,
Onde um tem seu cantinho
Dois vivem também...

Tu podes guardar o que eu te digo


Contando com a gratidão
E com o braço habilidoso
De um malandro que é medroso,
Mas que tem bom coração.

Se os zelosos irmãos de Clara fizeram gosto um dia, já não o fazem agora.


Uma coisa era o Noel bom menino, aluno do Ginásio de São Bento querendo
estudar medicina. Outra é o Noel de agora, bacharel por decreto, mais
interessado no violão que nos livros, boêmio, volta e meia na companhia de tipos
estranhos(17).
17. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável tendência às más
companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 120).

Clarinha começa a ouvir em casa comentários de desaprovação ao


namorado, que não estuda, não trabalha, não faz outra coisa senão sentar-se num
dos botequins do Ponto de 100 Réis ao lado de outros desocupados. Dizem até
que está pretendendo virar cantor de rádio. Uma coisa era o futuro médico.
Outra, o capadócio.
Além do mais, nem parece se importar com Clara. Falta aos encontros,
desaparece, volta com desculpas disparatadas. Os irmãos gostariam de vê-la
acabar com o namoro. Mas Clara nem liga. Prefere guardar de Noel os bons
momentos, as palavras gentis, os melhores gestos. Como os bilhetes em verso.
Ou como o retrato dela que ele mandou ampliar e recortar em forma de coração.
Para Clara, é só isso que conta.
Uma noite, é surpreendida pela notícia de que vai morar um pouco mais
longe do chalé. Antes que o ano termine, os Corrêas Netto terão se mudado. Da
Theodoro da Silva, em Vila Isabel, para a Barão de Bom Retiro, no Engenho
Novo. Quem sabe Clara não esquece Noel? - pensam os irmãos.
Henrique Foréis Domingues, o Almirante
Capítulo 14
NEM REI, NEM GENERAL
Eu não pensava em ser general, nem Presidente da República. Que valia o
próprio fastígio dos reis, dos soberanos absolutos, diante do encanto
comunicativo dos criadores de ritmo?
entrevista ao Jornal de Rádio

Os irmãos de Clara podem não fazer gosto, mas Martha faz. E muito.
Nenhuma perspectiva a deixa mais feliz do que a de ver o filho casado com a
bonita e meiga Clarinha, filha caçula de dona Clara Souza Netto. Por isso,
enquanto os irmãos dela se alegram com a mudança da família para o Engenho
Novo, para um pouco mais longe dos olhos do seresteiro Noel Rosa, Martha
trata de fazer com que Clarinha permaneça perto: - Gostaria muito que você me
ajudasse na escolinha. Ensinando as primeiras letras às crianças menores. Posso
lhe pagar, digamos...
A Clara pouco importa quanto dona Martha pode ou não lhe pagar como
sua professora auxiliar. O simples fato de, mudando-se para o Engenho Novo,
continuar indo ao chalé todos os dias vale mais do que qualquer dinheiro. Aceita.
A partir de março de 1931, quando as crianças voltarem a sacudir as pequenas
salas de aula do Externato Santa Rita de Cássia, lá estará ela, ajudando dona
Martha. Do ponto de vista prático, uma solução também interessante: vó Rita
morta, Carmem e Arlinda longe, Martha decerto precisa de quem divida com ela
as tarefas da escolinha. Clara, portanto, é o agradável que se vem juntar ao útil.
- Você ainda vai ser minha nora - diz manifestando mais um desejo do que
uma certeza.
Clara ainda não tem dezoito anos, Noel tem apenas dezenove. E nem sequer
entrou para a Faculdade de Medicina, como é vontade de todos. De modo que
dona Martha sabe que muito tempo ainda terá de correr até que os dois possam
se casar. Mas faz gosto assim mesmo. E diz a Clara que ela mesma cuidará do
enxoval. É uma promessa.
Os Corrêas Netto vão morar na casa número 487 da Rua Barão de Bom
Retiro. É maior e mais barata. Quase na esquina da Rua Moju, pode-se dizer que
fica num território meio neutro, um pouco Engenho Novo, um pouco Grajaú, um
pouco Vila Isabel. A Vila Isabel de Noel Rosa.
Não hão de ser os dez minutros que se perdem do Ponto de 100 Réis até a
casa de Clara que irão separá-lo dela. Muito menos a cara feia dos irmãos. É que
os dez minutos costumam ser cinco, já que geralmente o bonde é trocado pelo
automóvel. Para quem tem tantos amigos motoristas de praça, todos dispostos a
dar uma carona, seja para onde for, não há distância que não se reduza à metade.
E Noel tem e terá sempre muitos amigos na praça.
Neste 1930, porém, três merecem especial atenção. São três boêmios, todos
devotos das noites e das serenatas. Mais velhos que Noel, mas também jovens,
solteiros, boêmios. Um deles é o amigo Alegria, que ainda não tem seu próprio
carro, mas costuma conseguir um emprestado para fazer biscates na praça. O
segundo, Valuche. O terceiro, Malhado. Dos três, Francisco Valuche é o mais
aprumado, o que tem melhor situação, funcionário do Ministério da Fazenda
pela manhã, motorista particular de um homem importante o resto do dia. Este
homem importante, o doutor Salles Filho(1), empresta-lhe seu reluzente Dodge
negro na parte da noite, não se interessando em saber com quem sai ou aonde vai
Valuche.
1. Francisco Antônio Rodrigues de Salles Filho, médico, general, conselheiro municipal, deputado federal, redator-chefe do Diário Carioca, diretor da Imprensa Nacional. Mais tarde,
Ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal.

Quanto a Malhado, Serafim Vieira da Cunha, faz ponto na Praça da


Bandeira mas vive em Vila Isabel atrás do pessoal da seresta.
-Ainda hei de cantar no rádio - costuma repetir.
O apelido de Malhado se deve às manchas que tem pelo corpo: vitiligo. É
mesmo um seresteiro. Não na voz, que ao contrário do que pensa não tem a
potência e afinação da de Vicente Celestino. Malhado sequer canta tão bem
quanto Alegria. Mas é um seresteiro na medida em que se delicia em varar
madrugadas cantando acompanhado pelo violão de Noel.
Canto
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta, está dormindo
Canto e por fim
Nem a lua tem pena de mim
Pois ao ver que quem te chama sou eu
Entre a neblina se escondeu.

Vibra com as canções de Eduardo e Cândido das Neves, tem um caderno


onde todas elas estão anotadas. Abre o mais alto possível a voz maldotada. Os
amigos não o levam a sério como cantor. Noel costuma acompanhá-lo de forma
caricata, extraindo do violão efeitos esquisitos, citações grotescas de músicas
muito conhecidas, de La Cumparsita a Meu Boi Morreu, que acabam fazendo
Malhado desafinar ainda mais, confundido por tantos e tão complicados acordes.
Os outros participantes das serenatas riem, Noel ajoelhado na calçada, a perna
esquerda dobrada para apoiar o violão, e Malhado cantando:
Jurei amar-te e só não mais querer-te
Quando morto baixar à sepultura

Às vezes Malhado leva mais longe seu entusiasmo:


- Cantar no rádio? É pouco. Acho que vou tentar a ópera. Vicente Celestino
também não canta ópera?
Os três motoristas acompanham Noel por toda parte. Um ajuda o outro,
tocando violão, compondo, cantando ou guiando o automóvel. Mudam apenas as
canções. E as janelas sob as quais se postam, hoje de uma mulher que Valuche
corteja, amanhã de uma em quem Alegria está de olho. É evidente que muitas
serenatas são feitas para Clarinha. Com ou sem cara feia dos irmãos.
A casa dos Corrêas Netto fica ao lado de uma vila. Como a calçada da rua é
estreita, obrigando os seresteiros a se colocarem muito próximos à janela na hora
de cantarem - e como essa proximidade, segundo Noel, pode ser tomada como
provocação pelos irmãos de Clara - acham que o melhor é entrarem na vila. A
janela do quarto de Clara está justamente na parte lateral da casa, separada da
vila por um muro de dois metros no máximo. Noel, Alegria e Valuche dirigem-
se até aquele ponto e, do lado de cá, podendo ser ouvidos perfeitamente pelo
pessoal do 487, mas protegidos de sua visão pelo muro, cantam. De início a idéia
parece boa. Clara abre sua janela, os irmãos dela também se chegam para ouvir.
Estão todos gostando. Cantam-se duas, três canções, a serenata tem tudo para ser
um sucesso. Acontece que um dos moradores da vila não gosta de música. E
dorme cedo. Por isso, antes que se comece a cantar a quarta canção, sua voz é
ouvida como um trovão: - Vão cantar no inferno, seus vagabundos!
Noel, Alegria e Valuche se assustam. O homem grita de novo:
- Aqui tem gente que trabalha e precisa dormir!
A serenata é um fracasso. Clara conta a Noel, no dia seguinte, que o tal
homem é coronel do Exército, mal-humorado e autoritário. Não gosta de música.
Só a que tocam as bandas militares, ou a que sopra o corneteiro do quartel. As
filhas, moças educadas dentro de rígidos padrões de disciplina e respeito, mal
podem ouvir rádio.
Noel encontra-se com Malhado no Ponto de 100 Réis. Ao se dar conta de
que o amigo não esteve na serenata de véspera, vem-lhe uma idéia. -
Descobrimos ontem, na vila ao lado da casa de Clara, umas garotas lindas,
Malhado. As mais lindas de todo o Engenho Novo. Acho que vale a pena você
fazer uma serenata pra elas. Com a sua voz, o seu sentimento, duvido que pelo
menos uma não fique impressionada. Pense nisso, Malhado.
Malhado pensa. Principalmente quando Noel lhe diz que comporá uma
romântica valsa para que cante em primeiríssima audição sob a janela das
moças. Uma valsa cheia de paixão, Malhado devendo pôr nas palavras todo o
seu sentimento. E não é só: Noel já tem todo o esquema armado para que só ele
brilhe nesta noite de seresta. Enquanto Malhado vai cantar dentro da vila, bem
na porta da casa das moças, Noel ficará do lado de fora, sem ser visto,
acompanhando-o ao violão. Se Malhado tinha alguma dúvida, esta se desfaz no
momento em que, já a caminho da Barão de Bom Retiro, Noel lhe mostra a valsa
que acaba de compor para ele. É bonita, bonita demais. Nenhuma das músicas
que Noel fez até agora parece casar-se tão bem com sua voz. E cheia de palavras
difíceis, daquelas que Catulo gosta de usar em suas canções. Tem razão: não é
possível que as moças não se impressionem.
Chegando à entrada da vila, Noel aponta para Malhado a casa do coronel.
- É ali. Quando estiver pronto, faz sinal pra mim que eu entro com a
introdução.
Malhado obedece, chega à porta da casa do coronel, aproxima-se o mais
que pode, faz sinal para Noel. Este executa ao violão a melodiosa introdução. No
momento exato, bem alto, e dando a cada palavra uma interpretação comovida,
Malhado canta:
Eu saí da tua alcova
Com o prepúcio dolorido
Deixando o teu clitóris gotejante
Com volúpia emurchecido.
Porém, o gonococus da paixão
Aumentou minha tensão...

Malhado não chega ao fim da valsa. Para seu espanto, em vez de aparecer
na janela uma das lindas moças de que Noel falara, surge um alucinado cidadão
de pijama, revólver em punho, aos gritos:
- Canalha! Imoral!
O coronel dispara um primeiro tiro para o alto. Quando aciona o gatilho
pela segunda vez, Malhado já passou correndo por Noel na porta da vila. Se
houve ou não um terceiro tiro, os dois jamais saberão, pois em poucos segundos
já estão quase no Jardim Zoológico, depois de dobrarem em disparada a Curva
da Morte(2).
2. Assim chamada em razão dos repetidos acidentes de automóvel e bonde ali ocorridos. Ainda hoje muito perigosa, a curva fica na Barão de Bom Retiro, entre Moju (atual Sebastião de
Paulo) e uma rua então sem nome (atual Acaú).

- Não posso compreender-repete o inconsolável Malhado, ele e Noel já a


salvo bebendo uma cerveja na Praça 7.
- É mesmo muito estranho - representa Noel.
Malhado diz ter certeza de que cantou bem, no tom, dando o melhor de si
para valorizar a bonita valsa de Noel. Mesmo sem saber exatamente o sentido de
um ou outro verso, interpretou-os com sentimento e dignidade. Por que terá o
homem se enfurecido tanto a ponto de recebê-lo a bala? Noel teria alguma idéia?
- Falta de sensibilidade, Malhado. Há gente que não tem a mínima
sensibilidade para a música.
Nem sempre há um carro à disposição para as freqüentes viagens de Noel à
Rua Barão de Bom Retiro. Pode acontecer de Alegria, Valuche e Malhado terem
outros programas, prazeres ou compromissos que os afastem de Vila Isabel e do
Engenho Novo, deixando Noel a pé. Como acontece certa noite em que é
convidado para uma festinha de aniversário no Engenho Novo. Costuma
aborrecer-se logo nesses bailaricos familiares, casais dançando e conversando à
volta de mesas de doces e salgadinhos, refrescos, ponches e chope em jarra. Em
geral, antes de meia-noite já está ele se despedindo.
- Fica mais um pouco - dizem anfitriões e convidados.
- Por que tão cedo?
Noel explica que tem um compromisso importante, o amigo Cobrinha o
espera na Praça 7. Uma reunião inadiável, algo assim. Infelizmente, tem mesmo
de ir.
- Pra onde você vai?- pergunta alguém.
- Eu vou pra Vila.
Já a caminho de casa, num banco vazio do Vila Isabel-Engenho Novo, suas
próprias palavras ficam a martelar-lhe a mente: "Eu vou pra Vila... eu vou pra
Vila... " Começa a cantarolar uma melodia, música e versos saindo-lhe ao
mesmo tempo, no bonde, tarde da noite. No dia seguinte, com a ajuda do violão,
fará um novo samba: Eu Vou Pra Vila.
Não tenho medo de bamba
Na roda do samba
Eu sou bacharel
(Sou bacharel)

Andando pela batucada


Onde eu vi gente levada
Foi lá em Vila Isabel

Na Pavuna tem turuna


Na Gamboa gente boa
Eu vou pra Vila
Aonde o samba é da coroa.

Já saí de Piedade
Já mudei de Cascadura
Eu vou pra Vila
Pois quem é bom não se mistura.

Quando eu me formei no samba


Recebi uma medalha
Eu vou pra Vila
Pro samba do chapéu de palha.

A polícia em toda a zona


Proibiu a batucada
Eu vou pra Vila
Onde a polícia é camarada.

Com Eu Vou Pra Vila, Noel Rosa não só rende seu primeiro tributo ao
bairro onde nasceu, como também faz um dos primeiros registros de que se tem
notícia de um dos mais marcantes aspectos dessa fase pioneira da história de
nossa música popular: a perseguição policial aos batuqueiros, aos compositores e
cantores de samba.
É bom que se lembre: já existem na cidade pelo menos dois tipos de samba.
Um é aquele que se faz, toca e dança nas casas de Ciata e outras "tias" baianas.
O outro, o do Estácio e cercanias, dos morros e subúrbios distantes. Com o
primeiro, freqüentado por doutores, intelectuais, políticos, gente importante, a
polícia não se mete. Com o segundo, lazer das populações pobres daquelas
localidades um tanto à margem da sociedade, o desemprego e o subemprego
compelindo os homens a atividades malvistas ou mesmo proibidas (o jogo, o
servicinho sujo, a exploração de mulheres, mil e um expedientes, mas nunca o
trabalho fixo), cumpre-se a lei: lugar de malandro é na cadeia.
Os dois tipos de samba-aquele amaxixado da Cidade Nova e o outro da
turma do Estácio - não dividem a cidade apenas musicalmente. Se se for ver
bem, há uma separação social entre eles. Perseguições a ex-escravos, filhos e
netos de escravos que fazem música, dançam, cultuam seus orixás, existem no
Rio desde os últimos anos do século passado. Embora não chegasse a haver uma
lei contra tais manifestações, a polícia sempre deu batidas em terreiros onde se
evocavam os santos e se trocavam umbigadas. A própria Igreja, em certa época
preocupada com a disseminação dos cultos afros, andou abençoando tais batidas.
Hoje, contudo, já se fazem nítidas diferenças: a polícia tolera e até participa dos
fungangás nas casas das "tias" baianas, agora pomposamente rotulados de
"cultura afro-brasileira", mas continua perseguindo o pessoal do morro, cujo
rótulo não muda: são todos malandros.
Os músicos daquele tipo de samba são respeitados como profissionais,
tocam em teatro, cinema, casas de família rica. Como Pixinguinha e seus
amigos, tão respeitados que um homem da posição social de Arnaldo Guinle
financiou-lhes uma viagem a Paris, há oito anos, em 1922.
Nous sommes batutas
Venus du Brésil
Nous faisons tout le monde
Danser le samba!

Os sambistas de morro nem como músicos são vistos. Desordeiros, isso


sim. Muito porque suas festas semiclandestinas não se limitam ao samba
propriamente dito, mas também à batucada, não raro terminando em briga,
conflito, morte(3).
3. Realmente a polícia em todo canto proibia a batucada. Não a batucada como a conhecemos hoje (a percussão com que se acompanha o samba), mas a batucada como jogo da
malandragem: uma roda, no centro da qual dois homens se enfrentavam ao som de batidas de mão e coro de refrãos próprios ("Derruba, é ê/ ô derruba, bota no Chão/ derruba, mano, derruba/ sem dó no
teu coração..."). Um dos homens era escalado para tentar derrubar o outro com um único golpe de perna, a banda. O adversário tinha que permanecer de pé, estático, "plantado". Quem plantava desta vez,
da próxima escolhia um da roda para ser por ele derrubado. Velhos ódios e inimizades eram transferidos para o centro da roda. Os bambas nesse jogo (o termo bamba vindo do quimbundo e querendo
dizer valente, autoridade) eram Waldemar da Babilônia, Pico da Favela, Madureira do Engenho Velho, Artur Mulatinho do Catete, Gargalhada do Salgueiro, Maçu da Mangueira e Brancura do Estácio.
Brigas sangrentas e até mortes eram freqüentes. A roda de batucada, portanto, diferia em muito da roda de samba, inocente arte na qual o único objetivo era cantar e dançar.

Às vezes acontece de a polícia dar uma batida e encontrar o pessoal


entregue aos cerimoniais da macumba. Nesse caso, respeita. Se é cultura afro-
brasileira lá em baixo, por que não seria cá em cima? Mas, tão logo a justiça se
vá, o samba começa.
São heróicos esses sambistas do Estácio. Para fazerem vingar o seu canto, a
sua música, para que sua arte espontânea, intuitiva, pura e inofensiva fosse
aceita, para que eles pudessem dar à sua cidade um outro tipo de samba, tiveram
de sofrer muito. Surras, humilhações, desassossego. Seus terreiros invadidos por
policiais armados, seus blocos desfeitos a golpes de cassetete, eles próprios
presos como vagabundos. É dessa perseguição que fala Noel em dois versos do
Eu Vou Pra Vila, os sambistas do Estácio, freqüentadores da zona (a maioria tem
mulher ali), impedidos de fazer sua batucada.
O samba é gravado por Almirante e o Bando de Tangarás. Uma excelente
gravação, o grupo entoando em coro a duas vozes, preguiçosamente, de maneira
bem carioca, a expressão título: "Eu vou pra Vila..." A terça é feita uma oitava
abaixo por Almirante. A letra original é rigorosamente respeitada no disco, mas
na partitura impressa há uma intervenção moralista dos editores, que acham
melhor substituir "a polícia em toda zona" por "a polícia em todo canto". Mais
distinto, porém menos preciso.
Noel toma cafezinho num dos botequins do Ponto de 100 Réis quando
Alegria chega, olhos brilhando, fala nervosa.
- Você não sabe o que eu descobri na Rua Moju, depois que te deixei ontem
à noite na casa de Clara. Noel ouve:
- Uma mulher lindíssima. Nunca vi uma tão bonita.
Alegria continua inquieto, excitado, diferente do habitual.
- Ficamos conversando. Marcamos um encontro para hoje à noite. Que
mulher bonita, Noel! Não sei o que seria capaz de fazer por uma mulher assim.
Você vai ver a Clara logo mais? Então vamos juntos.
Uma fulminante paixão à primeira vista. Dela Alegria jamais se curará. O
tempo há de mostrar que suas palavras - "Não sei o que seria capaz de fazer por
uma mulher assim..." - podem ser tomadas ao pé da letra. Tão bonita que por ela
largará tudo, a boêmia, as serestas, os planos de tentar carreira no rádio. Uma
mulher de tal beleza que a gente tem de ficar perto dia e noite. De início Noel
talvez ache que o amigo exagera. Mas, ao sair certa noite da casa de Clara,
Alegria está à sua espera na esquina da Rua Moju.
- É ali, Noel. No número 5!
E o sempre excitado Alegria explica que a paixão aumenta a cada instante.
E mais: é correspondido. A mulher chama-se Martha Clara Dieppe Moreau.
Uma deusa! Já estão fazendo projeto de irem morar juntos. Noel vê as coisas
acontecerem muito rapidamente no coração e na cabeça do amigo, mas o que
fazer? Até que Alegria desperta também nele o interesse pelo número 5 da Rua
Moju, transversal à Barão de Bom Retiro, a poucos passos da casa de Clara: -
Moram outras moças lá. Todas bonitas.
Alegria pisca-lhe o olho. São moças diferentes destas meninas cheias de
dedos e não-me-toques de Vila Isabel. Alegres, gostam de cantar, de rir, de
contar anedotas. E de namorar também. Que tal fazerem uma serenata para elas
amanhã? Martha vai adorar. Martha e as outras. Noel se anima.
A serenata é feita. E repetida na noite seguinte, na outra e em outras mais.
Os seresteiros de Vila Isabel cantam para moças de cujos rostos só vêem ligeiros
contornos, as janelas da casa apenas entreabertas, as luzes apagadas. Alegria é
todo paixão:
-Já decidi: se ela quiser, eu me caso amanhã.
Noel vai se aproximando aos poucos, chegando mais perto, até finalmente
conhecer os moradores da casa. São quinze - oito mulheres, dois homens, cinco
meninos - que se acomodam como podem nos dois quartos, sala, saleta e porão
habitavel. Alegria tinha razão quanto à beleza de Martha. Mas ela não é a única.
Não se pode dizer que sejam todas bonitas. Nisso Alegria exagerou. Mas
também moram ali pelo menos duas ou três pequenas que nada devem a Martha.
Noel conclui isso logo no dia em que o amigo, já íntimo da casa, o apresenta a
toda a família. O que vai demorar um pouco a concluir - ou mesmo a
compreender bem - é a relação de parentesco entre as quinze pessoas, certos
detalhes de suas vidas, como e por que vieram viver juntas nesta casa.
O centro de toda a história é o comissário de polícia José Orges Brandão,
que por sinal não mora, nunca morou aqui. Como muitos cidadãos respeitáveis
desse Rio de Janeiro tão romântico quanto maroto, o comissário -Jucá para os
mais chegados - tinha até bem pouco duas famílias, dois pousos. O oficial, que
ainda divide com a mulher legítima, Iolinda, e este da Rua Moju, onde
costumava passar as horas de folga ao lado de Martha Clara. Os meninos
Nelson, Walter e Juquinha, filhos dessa relação, deixam claro que o comissário
não é de brincar. Nem em serviço, nem nas horas de folga.
A vida dupla, contudo, não podia durar para sempre. Um dia Iolinda soube
e não fez por menos: passou uma descompostura no marido, ameaçou fazer tudo
para que não fosse incluído numa futura partilha dos bens de família (o pai é um
homem velho e muito perto de rico). Armou enfim um barulho em grande estilo.
Na base do "ou eu, ou ela", Iolinda exigiu que o marido nunca mais pusesse os
olhos na outra. Uma decisão difícil para o comissário. Não só porque seu
coração ainda batia forte por Martha Clara, mas também pela existência de um
dado que complicou muito a história: Iracema, filha única de seu casamento com
Iolinda, tivera uma briga feia com a mãe, saíra de casa e fora morar justamente
com Martha Clara, a outra mulher do pai. Mais tarde conhecera Reinaldo,
casaram-se, tiveram filhos.
Quando Iolinda descobriu tudo, oito pessoas moravam na casa 5 da Rua
Moju: Martha, os três filhos dela com o comissário, Iracema, Reinaldo e os dois
filhos dos dois, Ary e Haroldo.
Desde aquele dia - da descoberta, da descompostura, das ameaças, do
ultimato na base do "ou eu, ou ela" -José Orges Brandão não teve mais trégua.
Passou a ser mais vigiado do que os ladrões que ele próprio vigiava, do Centro
ao Caxambi. Não dava um só passo sem que a mulher não soubesse, parentes,
amigos, espiões ocasionais indo contar onde esteve e o que andou fazendo.
Chegava em casa e logo vinha a mulher: - O que é que o senhor fazia às três da
tarde na Quinta da Boa Vista?
Ou então:
- O senhor não estava de serviço na cidade? Então por que foi visto na hora
do almoço em São Cristóvão?
Mal podia respirar o comissário. E como não estava em seus planos
desaparecer de vez da Rua Moju, tratou de arranjar um pretexto, um bom motivo
para ir lá sem que a mulher suspeitasse. Assim, quando Iolinda chegasse com
aquele ar fechado e lhe perguntasse: "O que fazia o senhor na Rua Moju?"
Responderia:
- Visitava minha irmã.
Explica-se: Luísa Lima Campos, irmã do comissário, morava até então com
as filhas Teresinha, Rosinha e Esmeralda e o filho Zeca numa paupérrima casa
de madeira, pode-se dizer um barracão na Rua Souza Barros, do outro lado da
estação do Engenho Novo, perto da fábrica de papelão. Há muito tempo José
Orges Brandão vinha prometendo tirá-los dali, a irmã, as três sobrinhas, o
sobrinho, todos vivendo no desconforto de um casebre de terra batida. Mas uma
coisa e outra foram adiando o generoso gesto do comissário, até que, levado
pelas circunstâncias, ele se livrou de um problema resolvendo outro: fez dona
Luísa e os outros moradores do barracão mudarem-se para a casa 5 da Rua
Moju.
O comissário? Bem, nem tudo saiu como ele queria. Pois se a presença da
irmã naquela casa o livraria de possíveis problemas com a mulher, por outro lado
o fazia perder para sempre os carinhos de Martha. Afinal, como manter o
romance sob os olhos conservadores e críticos da irmã mais velha? Como
continuar aparecendo por lá para ver Martha, perdendo assim o respeito da
família? O comissário acabou saindo de cena.
Foi aí que entrou Alegria. E, por intermédio dele, Noel. Martha Clara é de
fato bonita, educada, graciosa. Tem uma bela voz de soprano, que usa nos saraus
de sábado. Filha do engenheiro Arthur Dieppe Moreau - o mesmo que projetou
inúmeras obras públicas importantes, entre elas o prédio do Corpo de Bombeiros
no Meyer - orgulha-se de sua ascendência européia, os antepassados alemães e
belgas sempre mencionados nas conversas. Mas nada disso impressiona muito
Noel, cujos olhos se viram para outro lado.
Dona Luísa, na verdade, tinha quatro filhas. Mas a mais velha, Noêmia,
morreu há dez anos. Era casada com o sírio Theodoro Fêlix, que durante algum
tempo cuidou das duas filhas Josefina(4), a Fina, e Noêmia, a Bazinha.
4. Joseflna Félix, depois Telles, nasceu no Rio de Janeiro a 28 de setembro de 1914.

Theodoro casou-se de novo, a segunda mulher achou melhor ter os próprios


filhos e dona Luísa acabou levando as duas netas para morar com ela. Agora
estão todos na casa da Rua Moju. Ainda pobres, mas com conforto.
É por Fina que Noel se interessa. Tem quinze anos neste 1934 e é realmente
muito bonita. Morena, cabelos castanho-claros, olhos vivos, sorriso de criança.
Dona Luísa e o filho Zeca - a quem as moças chamam de center-half pela severa
marcação que exerce sobre elas - têm de se desdobrar para manter sob sua
guarda e sobretudo ao alcance de seus olhos moças tão ativas, tão cheias de vida.
Principalmente Teresinha. E Fina. São duas jovens que acham, com toda a razão,
que a vida foi feita para ser vivida. Respeitam o conservadorismo de dona Luísa,
mas crêem, convictas, que o maior bem que se pode ter é a liberdade. As outras
talvez tenham a mesma maneira de pensar, só que não são tão ousadas, de modo
que entre o pensamento e a ação sempre se mantém uma distância feita de
prudências. Seja como for, dona Luísa e Zeca vigiam, abrem os olhos, tentam o
mais que podem seguir os passos das garotas. As janelas fechadas e as luzes
apagadas, durante as serenatas de Alegria e Noel, faziam parte deste zelo.
- Não se exponham, não sejam oferecidas - vive recomendando dona Luísa.
Hoje faz-se tudo às claras. Ou quase tudo. Alegria está firme com Martha,
quer mesmo se casar, diz que vai comprar um carro, trabalhar na praça, ganhar
um dinheirinho para manter a família. E Noel namora Fina. Quando esta lhe
pergunta quem é a moça que ele costuma ver na Rua Barão de Bom Retiro, a
resposta é evasiva, apenas meia-verdade:
- É Clara. Trabalha na escola de minha mãe.
Meio da noite. Nem viva alma. Só a emoção das estrelas no alto. De
repente, lá, numa esquina qualquer, desembocava um vulto. Assoviava. Era Eu
Vou Pra Vila. Eu me sentia feliz. Tinha entrado no coração da cidade;
compreendia a sensibilidade carioca; sabia comunicar-me com o povo."(5)
5. Jornal de Rádio, 1.° de janeiro de 1935.

Pura verdade.
A 30 de setembro, uma terça-feira, Noel Rosa entra no estúdio da Odeon
para finalmente gravar Com Que Roupa?, cuja partitura será dedicada ao Diário
da Noite, "o arauto das aspirações cariocas". Do outro lado do disco, Malandro
Medroso. Os outros tangarás não estão com ele. Por quê? Haverá nessa decisão
de se fazer acompanhar por um bando regional (na verdade apenas o bandolim
de Luperce Miranda e dois violões) algum ressentimento de Noel por ter sido
Com Que Roupa preterido por Almirante um ano atrás? Talvez. A gravação é
feita em clima bem-humorado, Eduardo Souto improvisando um conselho ao fim
do último refrão: - Vai de roupa velha e tutu, seu trouxa!(6)
6. Os precários recursos de gravação da época, Eduardo Souto falando longe do microfone, não permitiram que se entendesse bem o que ele dizia. Muitos pensaram ter sido: "Vai de roupa
velha no eu, seu trouxa!" Pouco provável. Por mais brincalhão que fosse, o maestro não se atreveria a tanto. Principalmente, como diretor musical da Casa Edison.

A 24 de outubro instala-se o novo governo. A 14 de novembro é assinado o


decreto 19.404, pelo qual os estudantes de todo o país ficam automaticamente
aprovados em seus respectivos cursos e séries, sem precisarem prestar os exames
de fim de ano (as aulas já estavam suspensas desde outubro, quando começaram
as escaramuças revolucionárias, e as autoridades acharam melhor que os alunos
só voltassem às escolas em março de 1931, quando a situação já estivesse
normalizada). O decreto também atinge Noel. Graças a ele, depois de tantas
tentativas frustradas, livra-se finalmente da História do Brasil. E completa o
ginasial.
Duas namoradas bonitas, caminho livre para tentar o vestibular à Faculdade
de Medicina, Eu Vou Pra Vila chegando às lojas de disco e começando a fazer
sucesso, Com Que Roupa? já na cera, Noel tem tudo para sentir que os ventos
sopram a seu favor. Daqui a alguns anos, numa entrevista, se lembrará com
saudade desses tempos.
Recorte com a foto de Clara feito por Noel

Fina
Capítulo 15
MODÉSTIA À PARTE, MEUS
SENHORES
Meu bem, o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém
Bom Elemento

Nem só de tangarás vive a Vila. Não é demais repetir que, neste 1930, o
bairro onde nasceu Noel Rosa é peculiarmente musical. Multiplicam-se em suas
esquinas, nas mesas de seus botequins, sob a luz de seus lampiões, jovens de
talento que, com maior ou menor intensidade, brilharão na música popular,
ajudando a criar e a sustentar a reputação de Vila Isabel como terra do samba.
Alguns desses jovens nasceram, cresceram e vivem aqui. Outros estão de
passagem, visitantes que ouviram falar da musicalidade do lugar e a partir disso
se transformaram em hóspedes freqüentes da "grande família". Os cinco
tangarás, neste e nos próximos dois anos, já seriam o bastante para confirmar
que Vila Isabel é mesmo um "celeiro". Mas há mais, muito mais. Tantos e tão
expressivos moços interessados em música que, por algum tempo, toda vez que
um novo nome surgir, no disco ou no rádio, haverá quem pergunte: "É de Vila
Isabel?"
Os tangarás e seus principais adendos são apenas parte dessa efervescência
musical. Parte importante, mas apenas parte. Aos poucos irá se saber, hoje, no
ano que vem, no máximo até o carnaval de 1932, que muita gente boa -
moradores ou visitantes, membros da grande família ou filhos adotivos - vive
por aqui: os tangarás, Francisco Alves, Lamartine Babo, Nássara, Christovam de
Alencar, Seringa, Orestes Barbosa e os outros Barbosas de famílias distintas, os
negros e os brancos, Quidinho, Arnaldo Amaral, Kalua, os irmãos Newton e
Valzinho Teixeira, Antônio Almeida e Cyro de Souza, Homero Dornellas,
Henrique Gonçales, J. Cascata, os seresteiros, chorões e sambistas de morro que
poucos conhecem.
O mais famoso é mesmo Francisco Alves, espécie de ídolo de todos os
outros, respeitado, cultuado quase. Alguns de seus admiradores, como Paulo
Netto de Freitas e Castro Barbosa, costumam fazer serenatas sob sua janela, no
185 da Rua Justiniano da Rocha, como se ele fosse a musa de suas canções. É
claro que Zélia, a mulher de Francisco Alves, aparece para agradecer com
sorrisos a homenagem, talvez sem saber que é para o marido que eles cantam.
Por mais inusitadas que pareçam essas serestas, elas têm sua razão de ser.
Todos querem agradar Francisco Alves, querem ser ouvidos por ele, homem
influente que tem força o bastante para dar a um cantor iniciante um contrato de
experiência na Odeon. Vez por outra, a Paulo Netto de Freitas e Castro Barbosa
juntam-se seresteiros ocasionais, Almirante, João Petra de Barros e seu irmão
Mário, Arnaldo Amaral, Alvinho, os rapazes da família Boamorte, Alegria e sua
turma, João de Barro, Leonel Faria. E Noel Rosa também.
Neste 1930, Francisco Alves ainda é um ídolo distante, inatingível aos
olhos desses jovens seresteiros ansiosos por impressioná-lo. O simples fato de
vir o famoso cantor a tomar conhecimento da existência de algum deles já seria
motivo de contentamento e orgulho(1).
1. Conta Christovam de Alencar aos autores: "O homem tinha um cartaz danado. íamos todos cantar para ele, na esperança de que nos notasse. Se isso acontecesse, era a glória." Almirante,
em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (pagina 60), fala da emoção que lhe causou Francisco Alves em 1929, quando o Bando de Tangarás ouvia a prova de gravação de Mulher Exigente. O cantor
aproximou-se do grupo, sorridente, e se pôs a cantar também. Diz Almirante: "Nada no mundo me poderia ser mais grato do que verificar que aquela celebridade conhecia minha melodia, pois sabia de
cor meus modestos versos."

Um personagem que não se esgota aqui, numa breve apresentação. Nem se


confina aos limites de Vila Isabel. É sem dúvida a mais marcante figura da
música popular brasileira. De hoje e dos próximos vinte anos. Pela influência
que exerce, pela onipresença, pelo carisma. Deixará traços profundos de sua
passagem pela vida de quem quer que cruze seu caminho. E quase todo o mundo
há de cruzar o caminho de Francisco Alves. Muito especialmente Noel Rosa.
Dos adendos do Bando de Tangarás - amigos de Almirante, ex-integrantes
do Flor do Tempo, rapazes do bairro que gostam de música, uns com jeito,
outros sem jeito algum, todo tipo de curiosos e interessados, bem dentro do
espírito amadorista do grupo, e mais dois ou três profissionais que ajudam a
arrumar a casa - poucos farão carreira. Ou melhor, apenas dois irão longe, terão
seus nomes na história da música popular: Luperce Miranda e Lamartine Babo.
Luperce é pernambucano do Recife e não chega a ser filho adotivo da
grande família. Raramente aparece por Vila Isabel. E quando o faz é para
discutir detalhes de uma gravação ou de um espetáculo dos tangarás. Ouve e diz
o essencial, dá boa noite, vai embora. Sua participação no grupo liderado por
Almirante deve-se não apenas a ser ele um exímio bandolinista, o conjunto não
podendo se limitar aos violões de Britto, João de Barro e Noel, mas também à
sua nordestinidade, característica tão cara a Almirante. Não nos esqueçamos de
que ele era um dos integrantes do Turunas da Mauricéia. E de que é de sua
autoria a embolada Pinião, sucesso do carnaval carioca de 1928.
Lamartine Babo. Conta o pesssoal do Ponto de 100 Réis que, no primeiro
dia em que apareceu por ali, ninguém o viu: estava escondido atrás de uma linha
de pipa. Ninguém resiste a uma piada sobre sua magreza. Nem ele próprio.
Como no dia em que, convidado a apitar um jogo de futebol, desses de casados
contra solteiros, disse: "Aceito, contanto que não vente." É de fato muito magro,
todos se impressionando com a fragilidade de seu físico. Mesmo que existam por
aí criaturas mais encaniçadas que ele. Os olhos redondos, encovados, as maçãs
do rosto protuberantes, ossudas, as bochechas chupadas, resultado de alguns
dentes perdidos muito cedo, tudo isso ajuda a acentuar o aspecto cadavérico de
Lamartine, fazendo-o parecer ainda mais magro.
Magro como Noel, feio como Noel, predestinado como Noel. Mora na Rua
Conde de Bonfim, na Tijuca, mas é visto mais comumente em Vila Isabel. Ou
onde haja algo de novo em matéria de música. Atraído pelo entusiasmo e pelas
experiências sonoras dos tangarás, transforma-se num de seus adendos. Terá
várias de suas composições gravadas por eles, atuará em recitais ao lado de
Almirante e seus companheiros. Por algum tempo, pertencerá à grande família.
Também estudou no Ginásio de São Bento, só que em época anterior à de
Noel(2), de quem é mais velho cinco anos.
2. Almirante se engana ao afirmar que Noel Rosa e Lamartine Babo foram companheiros no São Bento {No Tempo de Noel Rosa, segunda edição, página 55). Lamartine saiu do colégio em
1920, quando concluiu o ginásio. E Noel só entrou em 1923. Os arquivos do Mosteiro são claros quanto a isso. Da mesma forma, Augusto Frederico Schmidt não foi contemporâneo de Noel no São
Bento. Estudou em vários colégios, o Liceu Francês, o Grambery de Juiz de Fora, o Progresso, o próprio São Bento, pelo qual sua passagem foi tão breve que não chegou a ser registrada nos arquivos do
Mosteiro. De qualquer forma, deu-se bem antes de Noel, pois já em 1922 Schmidt cumpria seus últimos exames de bacharelato no Pedro II. Neste caso, porém, Almirante pode ter sido induzido a erro
pelo próprio poeta que em sua crônica Só no Carnaval Eram Noturnas, incluída no livro O Galo Branco (página 197), diria: "Pelo rádio ouço agora, de mistura com horríveis sambas de hoje, uma
composição de Noel Rosa. Procuro as feições do compositor, que esteve comigo no colégio."

É um apaixonado pela música. De qualquer tipo. Dos hinos litúrgicos


(chegou a compor uma Ave-Maria nos tempos do Mosteiro) ao samba rasgado.
Quando rapazola, era freqüentador das torrinhas do Lyrico e do Municipal, louco
por óperas e operetas. Mas é também um enamorado - e profundo conhecedor -
de todos esses ritmos que andaram virando a América de pernas para o ar na
flamejante década que passou. Adora carnaval. E vive atento a sambas e marchas
que já se fixaram como os gêneros definitivos da maior festa brasileira. Como se
vê, a antena de Lamartine está posta em muitas direções. A obra que construirá -
numerosa, variada, duradoura - será reflexo dessa universalidade. Terá um pouco
de tudo, árias operísticas, valsas, fados, tangos, ritmos americanos, canções,
marchas, sambas.
É um dos seres mais musicais deste planeta (opinião que Pixinguinha
endossará daqui a alguns anos). Para ele, se é música, é bom.
Mais uma vez como Noel, Lamartine Babo é compositor muito preocupado
com a originalidade. Tanto nas músicas como nas letras. Está sempre disposto a
ousar alguns temas até aqui inexplorados. Como acontece com A.B. Surdo. Sob
esse título trocadilhesco (Lamartine sempre dado a brincadeiras verbais, Noel
descendendo do poeta e cronista A.Z. Vedo) está uma curiosa composição dos
dois. Embora a tenham classificado de marcha, eles próprios admitem num dos
versos que "não é marcha nem aqui nem lá na China". Escrita em 1930 -
primeira das cinco parcerias dos dois(3) - o ritmo tem muito da tal música
dançante americana dos anos 20 em que Lamartine é versado.
3. As musicografias até aqui levantadas, a de Noel Rosa por Almirante e a de Lamartine Babo por Suetônio Soares Valença, nos falam de quatro colaborações entre os dois. Mas foram pelo
menos cinco. A quinta será focalizada no Capítulo 27.

Mas não está nisso o seu aspecto mais interessante e sim no detalhe de
formarem os versos, borrifados de non sense, a primeira letra surreal de que se
tem notícia da música popular brasileira. Noel e Lamartine, dois cariocas totais,
donos de um humor e uma ironia típicos da cidade em que nasceram, parecem
não levar nada a sério nesta falsa marcha de pouco sentido e muita graça. O
futurismo a que eles se referem tem muito menos a ver com Felippo Tommaso
Marinetti e seu movimento do que com a mania brasileira de chamar-se de
"futurista" a tudo aquilo que não se entende em arte. Lamartine e Noel não
levam mesmo nada a sério em seus versos. Nem a arte, nem Marinetti, nem a
morte: A.B. Surdo.
Nasci na Praia do Vizinho, 86
Vai fazer um mês
(Vai fazer um mês)

E minha tia me emprestou cinco mil-réis


Pra comprar pastéis
(Pra comprar pastéis)

É futurismo, menina,
É futurismo, menina,
Pois não é marcha
Nem aqui nem lá na China

Depois mudei-me para a Praia do Caju


Para descansar
(Para descansar)

No cemitério toda gente pra viver


Tem que falecer
(Tem que falecer)

Seu Dromedário é um poeta de juízo


É uma coisa louca
(É uma coisa louca)

Pois só faz versos quando a lua vem saindo


Lá do céu da boca
(Lá do céu da boca)

Se A.B. Surdo é uma amostra de como Noel Rosa e Lamartine Babo são
atentos à originalidade, Nega está no caso oposto. Também de 1930, incluído
pelos tangaràs no seu repertório para o carnaval seguinte, é um samba sem muita
inventiva melódica, de versos banais, as formas amatutadas muito presas aos
primeiros dias do grupo (por exemplo, "metá" rimando com "navá"). Apesar dos
esforços dos percussionistas no sentido de fazê-lo ritmicamente interessante
(chegam a retomar a idéia de Na Pavuna, usando batidas de surdo após cada
enunciado do título no refrão, só que seis em vez das três do samba de Almirante
e Homero Dornellas), o melhor mesmo fica por conta das passagens de violão
entre o estribilho e cada quadrinha gravada pela voz miúda de João de Barro.
Noel e Henrique Britto produzem com seus instrumentos, aí sim, interessantes
acordes que acabam dando certa cor a um pálido samba: Nega.
Nega...Nega...
Já te dei de tudo
Agora chega.

Chega pro cordão


Que eu sopro nos metá
Pois eu sou da banda
Do Batalhão Navá.

Tu é nega prosa
Tu é palpiteira
Não vai à macumba
Não dança em gafieira.

Podes vir chegando


Meu bem para o cordão
Mas traz a bandeja
Pra recolher tostão.

Noel e Lamartine seguirão amigos. Mesmo quando o tijucano já não


aparecer tanto pelo Ponto de 100 Réis, continuarão se vendo, compondo juntos.
Têm muito em comum além da música. Em especial o senso de humor.
Contadores de histórias, pregadores de peças, galhofeiros, meninos. Lamartine é
muito mentiroso. E nunca se sabe ao certo quando Noel fala sério ou não. Um e
outro levam a vida na brincadeira. Exatamente como a marcha que comporão
daqui a um ano para o carnaval de 1932, uma das mais deliciosas que o espírito
carioca já criou. Assim como uma volta à infância, aos bancos de escola. Não
aos do São Bento, mas antes, quando ambos aprendiam o A E I O U.
Uma, duas, angolinhas
Finca o pé na pampulinha
Ciranda, cirandinha,
vamos todos cirandar

A.E.I.O.U
Dabliú, dabliú
Na cartilha da Juju,
Juju

A.E.I.O.U
Dabliú, dabliú
Na cartilha da Juju,
Juju
A Juju já sabe ler,
a Juju sabe escrever
Há dez anos na carti...lha
A Juju já sabe ler,
a Juju sabe escrever
Escreve sal com cê-cedilha!

Sabe conta de somar,


sabe até multiplicar
Mas, na divisão se enras...ca
Outro dia fez um feio
Pois partindo um queijo ao meio
Quis me dar somente a casca!

Sabe História Natural,


sabe História Universal
Mas não sabe Geografi...a
Pois com um cabo se atracando...
Na bacia navegando,
foi pra Ásia e teve azia!

Amigos, companheiros. Saem juntos, fazem farra, voltam de manhã. Às


vezes um vai levar o outro em casa, Tijuca ou Vila Isabel. É num desses
regressos matinais que cometem uma pilhéria que entrará para a crônica boêmia
da cidade. Vão pela rua, cada qual com uma garrafa de cerveja na mão, quando
passam por uma casa em cujo portão estão duas garrafas cheias de leite. É muito
cedo, o sol nem saiu. Os dois se entreolham e um deles sugere: - Que tal um café
da manhã?
O outro concorda. Trocam as garrafas que têm nas mãos pelas que estão no
chão, não sem deixar ao dono da casa o seguinte bilhete: "Vá se alimentando
com a nossa cerveja, enquanto nos envenenamos com o seu leite."
Tomar o leite dos vizinhos, derrubar garrafas pelo simples prazer de ver o
líquido branco inundar a calçada, assustar leiteiros que fazem entrega antes do
dia clarear estão entre as artes prediletas de Noel. Djalma Ferreira, compositor e
organista que mora no Grajaú, jamais esquecerá uma passagem que
testemunhou, ao voltar com Noel de uma festa em chuvoso fim de madrugada.
Noel vestia capa e chapéu, os dois caminhando pela Theodoro da Silva, quando
avistaram o leiteiro lá longe. Trazia uma caixa de garrafas em cada mão.
- Espere aqui, Djalma. Vou arrepiar os cabelos dele.
Noel se escondeu num vão de portão, ficou esperando que o leiteiro
passasse. Levantou a gola da capa, baixou a aba do chapéu, pôs as mãos nos
bolsos, esticou os indicadores para simular canos de revólver. Quando o leiteiro
passou rente à parede, Noel deu um salto: - A bolsa ou a vida!
O leiteiro atirou para o alto as duas caixas, as garrafas se espatifaram no
chão, o próprio Noel se assustou, enquanto o homem disparava na direção do
Boulevard sem dar tempo de lhe explicarem que era uma brincadeira. Djalma
morreu de pena do pobre leiteiro.
Brincadeiras que não ficaram na infância ou na adolescência. Elas
acompanharão Noel enquanto ele tiver fôlego para levá-las a cabo. Mas se
Djalma foi testemunha do susto ao leiteiro, Armando Reis talvez seja o primeiro
a perceber que há alguma coisa de muito estranho na persistência com que Noel
atormenta a vida dos homens da limpeza pública. Nos tempos de garoto, até que
era comum a molecada correr atrás dos garis chamando-os de "gafanhoto" ou
"burro-sem-rabo". Era só um deles despontar na esquina, puxando sua
carrocinha, que lá vinha a turma apoquentá-lo. Mas para Noel os tempos de
garoto não passaram. Ele pode estar no meio da conversa mais interessante,
tocando violão ou cantando, olhando as estrelas ou respirando o ar puro da noite.
Mas se surge um gari, pá e vassoura na mão, com ou sem carrocinha, larga tudo,
a conversa, o violão, as canções, o luar, e se põe a gritar-.
- Gafanhoto! Burro-sem-rabo!
Reis põe-lhe a mão sobre o ombro e observa, em tom brando:
- Noel, Noel... Estes garis vão acabar te tirando o juízo.
É sempre brando o Armando Reis. Paulista de nascimento, mas carioca dos
mais legítimos, criado em Vila isabel, formado na escola das conversas de
botequim, das confrarias de esquina, dos desfiles do Faz Vergonha. Filho de
Higino Reis, o velho Reis da revista Dom Quixote, chegou a pensar em seguir
pelas mãos do pai os caminhos do jornalismo. Trabalhou em O Mundo
Esportivo, dos irmãos Rodrigues, e depois andou fazendo bicos em vários outros
órgãos de imprensa. Até que foi, como tantos jovens de agora, atraído pelo rádio.
E também pela música. Será locutor, improvisador de anúncios (enquanto não se
inventem os textos publicitários), animador, produtor. Ainda terá horário
radiofônico só seu, o Nosso Programa, lançado pelos microfones da Rádio
Educadora, no qual se apresentarão alguns dos maiores cartazes da música
popular, entre eles Noel.
Já então só o pessoal do bairro o conhecerá como Reis porque para todos os
outros será sempre o Christovam de Alencar, pseudônimo que tirou nem mesmo
ele sabe de onde.
Sua iniciação como compositor deve-se a uma necessidade do Faz
Vergonha. No primeiro ano que o bloco sai sem Noel, alguém pede ao Reis que
colabore com um refrão para o desfile. Lauro Boamorte e Paulo Anacleto são
bons no improviso. E só. O bloco precisa de refrãos. Reis pensa lá consigo: "E
por que eu?" Em todo caso, apela para um vizinho e amigo, Sylvio Pinto, que o
ajuda a compor este tema:
Se você quiser saber
Eu lhe digo com prazer
Por que é que a Vila
É o melhor lugar desse mundo...

É com ele que o Faz Vergonha sai no domingo. E também na segunda-feira


de carnaval. Para surpresa do Reis, porém, quando o bloco vai chegando à Praça
7, surge em sentido oposto, vindo da Visconde de Santa Isabel, outro bloco que
canta animadamente:
Se você quiser saber
Eu lhe digo com prazer
Por que é que o Meyer
É o melhor lugar deste mundo...

Fica emocionado. Então o estribilho cantado pela primeira vez nas ruas
ontem já está na boca dos foliões do Meyer hoje? É um milagre de comunicação,
a música tendo um poder literalmente "contagiante", de aproximar do povo, em
tão pouco tempo, os seus criadores. Resolve ser compositor. Uma decisão
acertada.
O gaúcho Sylvio Pinto, o Seringa, é mais do que mero parceiro do Reis.
Também de Vila Isabel, presença obrigatória nos papos do Ponto de 100 Réis,
companheiro de Noel, Alegria, Clóvis, Waldemar e os irmãos Anacleto naquelas
inesquecíveis serestas pelo bairro, será como quase todos esquecido em pouco
tempo. Mas é muito bom compositor.
Contam que começou a sumir das rodas boêmias do bairro no dia que lhe
disseram que a polícia andava prendendo seresteiro. Passou a fazer ponto no
Mangue, na Lapa, em lugares onde a noite não é feita para dormir. Pode ser. Mas
Alegria acha que o motivo deve ser outro. A polícia da Vila nunca perseguiu
seresteiro. Pelo contrário, sempre teve pela classe um grande respeito.
- Não vê o Paes da Rosa?
E Alegria lembra mais uma vez a passagem vivida por ele e Noel numa de
suas serenatas. Os dois cantavam sob a janela de uma casa de vila na-Rua
Maxwell quando viram parar, lá na entrada, o carro da polícia. Eram quase duas
da manhã. Alegria engoliu seco, o violão de Noel emudeceu, os dois pensando
tratar-se do delegado Palhares, um apaixonado pelo Fluminense que sai por aí
engaiolando gente toda vez que o seu time perde (e o Fluminense havia perdido
feio o jogo de domingo). Mas não era o Palhares e sim o Paes da Rosa,
comissário do 18° Distrito. Os dois seresteiros continuaram calados, imóveis,
esperando pelo pior.
- Escute aqui - disse o comissário para Alegria.
- Pois não, seu doutor.
- Vocês conhecem Última Lágrima? Noel e Alegria se entreolharam. Não
conheciam, não.
- Aquela valsa do Cândido das Neves.
- Ah! - exclamou Alegria aliviado. - O doutor deve estar falando de Intima
Lágrima.
- Sim, esta mesma.
- Conhecemos, sim, seu comissário. -Então vamos lá. Cantem. Mas
depressa.
Tenho ronda pra fazer.
E Alegria, Noel ao violão, cantou:
Ai, a fonte dos meus olhos
Entre mil escolhos
Desta dor nenhuma lágrima derrama...

Não, a polícia da Vila nunca foi de perseguir seresteiro. De qualquer modo,


Seringa passou a fazer ponto em outras plagas, a cantar em programas de rádio, a
ter composições suas levadas ao disco. Transferiu sua boêmia para bairros mais
notívagos. É justamente no Mangue, depois de uma desilusão amorosa, que ele
entrega a Noel a primeira parte de um samba que o amigo completa de forma
curiosa, mencionando pela primeira e última vez numa letra a sua "fama de
filósofo amador". O samba, Com Mulher Não Quero Mais Nada, esperará
meio século para ser gravado.
Com mulher não quero mais nada
Minha sina está traçada
Neste mundo que me causa horror

O que me faz ficar doente


É mulher na minha frente
A fazer enredos de amor

Eu tenho fama de filósofo amador


Quem diz que ama
nunca sabe o que é o amor

Amar jurando nunca foi jurar amando


E é por isso que eu juro
Que o amor não dá futuro

A outra colaboração dos dois também permanecerá inédita pelo menos até
muito depois de ambos se terem ido para sempre(4).
4. Sylvlo Pinto morreu em Porto Alegre em 1980.

Fala de outra desilusão amorosa, mentira, traição, temas tão usados por
Noel. No título, algo em que eles não acreditam: Amar Com Sinceridade:
Amar com sinceridade
Não há quem consiga uma só vez
Pode haver muita amizade
Mas há sempre falsidade
Como outrora Judas fez!

De ingratidão
Já estou farto e inteirado
E meu pobre coração
Vive sempre amargurado

Não tenho sorte com amor


Vivo sem felicidade
Torturado pela dor de uma saudade
Sinceridade
Toda a gente desconhece

A cruel realidade
É amar por interesse
Mas todo o bem dura pouco
Todo mal tem sempre fim
As mulheres quero bem longe de mim

No começo o pessoal do Ponto de 100 Réis ligava menos para Antônio


Gabriel Nássara do que para as irmãs dele. Moças bonitas, encantadoras,
espalhando classe por onde passassem. Mas sempre olhadas à distância, com
todo respeito, segundo código tácito que a turma obedece quando se trata de
irmã ou mãe de amigo. E Nássara é mais que um amigo. Amável, bem-
humorado, solidário, invariavelmente pronto a ajudar a quem precisa. É outro
dos bons conversadores daqui, sempre animando com seu humor as conferências
noturnas no Martinez ou no Carvalho. Mora numa casa avarandada da Theodoro
da Silva, bem no trecho onde fica o bangalô que Noel habitou no tempo do São
Bento. Vem de longe a amizade entre os dois. Uma amizade que só cessará com
a morte.
Houve quem dissesse que a família de Nássara tinha dinheiro, fortuna
herdada de um riquíssimo parente turco. Não é verdade. Os Nássaras não são
ricos nem turcos.
Descendem de libaneses, estão no Brasil já há duas gerações. O pessoal do
Ponto, quando não sabe, inventa.
Antônio Nássara nasceu em São Cristóvão, precisamente um mês antes de
Noel, mas mora em Vila Isabel desde rapazola. Se no começo foi pela beleza das
irmãs que se fez notado, logo as pessoas, do bairro, de toda a cidade - e por que
não dizer do país inteiro? - haverão de admirá-lo pelo enorme talento que tem. E
para muitas artes, inclusive a música. Gosta de compor e cantar, meio por
diletantismo, custando a descobrir que esse negócio de samba em que Noel está
envolvido pega como doença.
Outra de suas paixões é o desenho, conscientizada desde cedo. Em 1927 já
fazia caricaturas para jornais e revistas. Um ano depois entrava para a Escola
Nacional de Belas-Artes, convencido de que sairia dali com o diploma de
arquiteto. Engano. Abandonará o curso no último ano depois de concluir que ele
só lhe trouxe dois proveitos: maior intimidade com os traços, conseguida em
muitas noites e dias debruçado sobre a prancheta, e a Turma da ENBA, conjunto
musical formado com os colegas de escola Jota Ruy, Barata Ribeiro, Jacy Rosas
e Manuelino Xavier, reforçados por um cantor que nunca pensou em estudar
arquitetura, mas que Nássara ouviu pela primeira vez numa roda de samba e
ficou impressionadíssimo com sua bossa: Luís Barbosa.
Um dia Nássara levará a música popular mais a sério, fará sambas e
marchas memoráveis. Será igualmente apreciado como compositor e
caricaturista. Com Noel fará duas marchas, uma de sucesso. Mas por enquanto,
nesta virada de década, é cedo para se falar do compositor Nássara, o "turco",
que mora na Theodoro da Silva e tem irmãs que espalham classe por onde
passam.
Nássara e Noel são amigos, companheiros de conversa, de cantoria no
botequim do Carvalho, de peregrinação pela noite. Não se pode negar que seus
temperamentos são muito diferentes, Nássara sendo bem mais comportado, Noel
dando-lhe sempre a impressão de que tem um parafuso fora do lugar, agindo de
maneira imprevisível, às vezes falando muito, às vezes mergulhado em longos
silêncios. Sim, um parafuso fora do lugar. Mas que um dia o "turco"
compreenderá como sendo coisa de superdotado, de alguém além e acima, que
não pode ser visto nem julgado pelos padrões comuns. E quem há de abrir os
olhos de Nássara para isso é Orestes Barbosa: - Sabe de uma coisa, Nássara? O
sem-queixo é um gênio.
Orestes Barbosa é o mais velho de todos os poetas que circulam pelos
botequins do Boulevard. Dezoito anos antes de nascer Noel, veio ele ao mundo,
aqui pertinho, na Rua Pereira Nunes, lugar que muitos ainda teimam em chamar
de Aldeia Campista, mas que cedo ou tarde acabará encampado, de direito e de
fato, por Vila Isabel(5).
5. O que um dia foi a Aldeia Campista, já não existe como bairro, sendo hoje parte de Vila Isabel. Seus moradores hâ muito deixaram de se referir a ela pelo nome primitivo, nome este
sequer mencionado no Decreto 3.158, de 23 de julho de 1981, que reconhece e delimita os bairros do Rio. Segundo o mesmo decreto, as ruas da antiga Aldeia Campista, assim como as de toda a Vila
Isabel, todo o Grajaú, todo o Andaraí, parte da Tijuca e parte do Maracanã, pertencem à Região Administrativa de Vila Isabel, a IX do município do Rio de Janeiro.
É Orestes, portanto, quase um quarentão quando os tangarás começam a
fazer sucesso no rádio e no disco. Mas garante ter espírito jovem: - Deixo-me
contagiar pelo fôlego desses meninos.
É o mais velho e de certo modo o mais brilhante. Culto, único aqui que já
cruzou o Atlântico para ver com os próprios olhos as cores da civilização
européia, capaz de falar de todos os assuntos, arte e política, ciências ocultas e
episódios mundanos. Conhece Virgílio, Homero, Ovídio, Plutarco, lê os poetas
franceses no original e arranha o inglês. Mas é brasileiro até a raiz de seus
poucos cabelos. Antilusitanista, não gosta muito do Carvalho. Não adianta
dizerem que o homem é um português diferente, educado, alegre, doido por
samba e até torcedor do Botafogo.
- Sendo português, é sinal de que pode atrasar nossa vida.
Orestes é também o único aqui que já escreveu um livro. Ou melhor, dois:
Penumbra Sagrada e Âgua-Marinba. Com eles chegou mesmo a sonhar em vestir
o imponente fardão verde-amarelo da Academia Brasileira de Letras, ser um
imortal como Machado de Assis, institucionalizar-se como poeta. Hoje, isso
talvez possa ser lembrado sem maiores problemas, Orestes até sorri, não se
importando quando o chamam de "imortal grau zero". Mas, há alguns anos,
ficava furioso. Tudo porque, com a morte de Paulo Barreto, o João do Rio, em
1921, Orestes decidiu candidatar-se à cadeira 26 da Academia. Na primeira
eleição, a 5 de janeiro de 1922, concorrendo com vários outros, houve quatro
escrutínios e em nenhum deles Orestes obteve sequer um voto. Na segunda
eleição, seis meses depois, não se candidatou. Sabia que era inútil. E Constando
Alves acabou ficando com a vaga.
Se a Academia não quis Orestes, quiseram-no o jornalismo, a boêmia e,
agora, a música popular. Dessas áreas, ao tempo em que Noel ensaia seus
primeiros passos pelo caminho da composição, ele já brilha nas duas primeiras.
Não por sua cultura, ou por sua experiência européia, ou por seus conhecimentos
de arte, política, ciências ocultas, episódios mundanos. Nem mesmo pela leitura
dos clássicos gregos e latinos ou dos poetas franceses. Muito menos por seu
exacerbado antilusitanismo. Mas por ser um verdadeiro gênio na arte de
conversar, ágil com a palavra, oportuno com a frase, incisivo, cortante. Um
mestre do sarcasmo, do humor irônico, da maledicência. Nisso, é não apenas
admirado, mas também temido: - Olha lá o Orestes na mesa do Nice. A quem
estará envenenando?
E os amigos - e sobretudo os inimigos camuflados de amigos-se aproximam
para se certificar de que não são eles as vítimas da língua de Orestes. Se
acontecer de chegarem no meio de uma história em que o poeta os pulveriza, ele
nem ficará embaraçado. Não só não mudará de assunto como muito
provavelmente voltará ao começo, para que o envenenado beba, palavra por
palavra, toda a causticidade de suas histórias.
- Sabe que eu estava falando justamente de você?
E repete tudo, saboreando o constrangimento do outro. Porque Orestes é
impiedoso. E corajoso também. Por causa de seu destemor, de sua mania de
dizer o que bem entende, já foi preso duas vezes, suas verdades incomodando os
censores tanto de Arthur Bernardes como de Epitácio Pessoa(6).
6. Orestes Barbosa foi preso pela primeira vez èm 1921, por haver acusado o Grêmio Euclydes da Cunha de usurpar os direitos autorais de seu patrono. A acusação atingia indiretamente
alguns figurões da política. A segunda prisão, por críticas na imprensa ao governo Arthur Bernardes, deu-se em 1924.

Foi também graças à sua coragem que se iniciou no jornalismo, garoto


ainda, abordando o importante Ruy Barbosa dentro de um cinema: - Quem é o
senhor? - indagou Ruy.
- Orestes Barbosa. E preciso de um emprego.
Ruy teria ficado tão impressionado com a ousadia do garoto que, virando-se
para um de seus assessores, à saída do cinema, disse: - A vaga que temos na
revisão, preencha-a com aquele menino de roupa de tussor.
E assim Orestes começou a trabalhar na revisão de O Século, o jornal de
Ruy. São histórias que se contam e recontam nos botequins de Vila Isabel, à
mesa do Nice, nos lugares boêmios por onde o poeta surge. Algumas
verdadeiras, outras não. É fato que Orestes descende de herói da Guerra do
Paraguai. Mas é falso que tenha nascido num barraco lá do morro, lenda que ele,
marotamente, deixa sem desmentido: - Cresci entre moleques de rua e gente do
morro. E o João da Bahiana, o mesmo que toca com o Pixinguinha já me livrou
de muita surra.
O que João da Bahiana não nega nem confirma, simplesmente não lembra.
A música demorou um pouco a fazer parte da vida de Orestes Barbosa. Só
agora, aos 37 anos, contagiado pelo fôlego desses garotos, começa a descobrir a
musicalidade de sua poesia, as coisas que se cantam ao som do violão tendo a
mesma força das que se escrevem e declamam. É assim que se torna parceiro de
Oswaldo Santiago numa canção que Alvinho gravará na Victor ainda neste
1930:
Um bangalô com trepadeira na janela,
Desses que têm janela só pra dois,
Eu construi, apaixonado, para ela
Que era o meu sonho de carmim e pó-de-arroz...

Orestes, como todo poeta de fé, alimenta-se de poesia. Mas, a partir do


contato com esses garotos, os profissionais do rádio que freqüentam os cafés do
Centro e muito especialmente Noel Rosa (que ele próprio admitirá ter sido o seu
"conversor", aquele que o persuadiu de vez), vai aderir à música popular. Noel
sempre disse e continua a dizer que, nesses novos tempos, os poetas da canção
popular ocupam o lugar que antes pertencia aos cultos bardos da literatura
acadêmica (ver boxe O bonde do samba no Capítulo 24). Orestes vai concluir
que Noel está certo. Renunciará ao fardão, convencido mesmo de que "a música
ainda é consolo máximo das almas sem pouso". E que seus versos ficam ainda
melhores num samba ou numa canção!
É outro personagem que não se esgota aqui. Não tem muitos amigos.
Prefere-os raros, mas escolhidos. Como diz Nássara, para Orestes a cidade se
assemelha a um grande edifício de apartamentos onde ele, também morador,
destaca alguns poucos vizinhos que merecerão o seu cumprimento respeitoso ou
o seu sorriso afetivo(7).
7. "A capacidade de admirar de Orestes Barbosa", depoimento de Antônio Nássara incluído no livro Chão de Estrelas (página 174).

O próprio Nássara é um desses vizinhos. Noel Rosa, outro.


Leiteiros, lixeiros, mendigos. Pelo menos numa dessas suas fixações Noel
tem no amigo poeta um aliado. Conta-se que uma noite Orestes encontrou no
Passeio Público uma mulher magra e esfarrapada, a perna direita coberta por
uma atadura suja, ensangüentada. A mulher, que os outros mendigos chamam de
Perua, estendeu-lhe a mão, o olhar súplice, sofrido, de quem já nada mais espera
da vida.
- Uma esmolinha pelo amor de Deus! Orestes ficou tão impressionado que
lhe pôs na mão tudo que tinha no bolso. Não lhe sobrou sequer para o ônibus.
- Pobre mulher... - murmurou.
Um dia alguém lhe disse, entre gargalhadas, que Perua não passava de uma
impostora, uma esmoler profissional que vivia da piedade dos incautos. Morava
numa boa casa de vila, comia do bom e do melhor, não tinha problema algum.
De noitinha, saía de casa, passava por um açougue, comprava algumas gramas
de carne sangrenta e grudava-as na perna com a ajuda de panos velhos. Simulava
assim uma feia e dolorosa ferida que lhe valiam gordas esmolas dos tolos. Tolos
como Orestes Barbosa. O poeta ficou furioso. E jurou vingança.
Daquele dia em diante - e quase sempre com a cumplicidade de Noel -
passou a atormentar a mulher. Esteja onde estiver, conversando com quem seja,
sempre que a Perua passe, arrastando a perna, esmolando, Orestes corre atrás
dela aos gritos: -Perua, filha dos diabos! Some da minha vista!
Uma inusitada cena que se repete nas noites do Passeio Público, a mendiga
correndo desesperada, Orestes e Noel atrás, atirando-lhe coisas, xingando-a,
gritando feito loucos: - Corre, Perua! Some, desgraçada!
Uma implacável perseguição que vai durar tempos. Até que a mulher, com
a mesma perna ensangüentada, resolva mudar para longe o seu rendoso negócio.
Sem parentesco com Orestes, há dois ramos de irmãos Barbosa circulando
por Vila Isabel, os negros e os brancos. Os negros são Ewaldo Ruy e Haroldo.
Moram no Boulevard, numa casa de vila em cujo quintal costumam realizar
complicadas experiências, misturas de produtos químicos, engenhocas estranhas,
invenções que não levam a nada. Muito inteligentes, atilados, bons alunos do
Colégio Pedro II, serão ambos excelentes letristas, sobretudo Haroldo. Ewaldo
Ruy, a quem o pessoal do bairro chama de Espanador da Lua, comprido, magro,
inclui-se entre os improvisadores do Faz Vergonha. O pai, policial, teve fim
trágico. Para vergonha de Haroldo e estranho orgulho de Ewaldo, pois enquanto
um evitará sempre tocar no assunto, como se querendo vê-lo esquecido, o outro
viverá dizendo: -Macho, mesmo, era meu pai: teve coragem de se matar.
Coragem que não faltará ao próprio Ewaldo(8).
8. Ewaldo Ruy envenenou-se na noite de 4 de setembro de 1954, cumprindo ameaça que acabara de fazer por telefone à cantora Elizeth Cardoso.

Os outros Barbosas, os brancos, moram quase todos numa casa da Rua


Visconde de Santa Isabel. E mesmo os que têm outra residência, os já
emancipados, podem ser vistos com freqüência por aqui, no Ponto de 100 Réis,
na Praça 7 de Março, na casa dos Boamortes. São eles Arthur Álvaro, Paulo,
Luís, Henrique e Gustavo. O primeiro ficará famoso como humorista e homem
de rádio, com passagens também pelo teatro e cinema, assinando-se como
Barbosa Júnior. Paulo será autor de melodiosas valsas {Cortina de Veludo,
Madame Pompadour, Perfume de Mulher Bonita). Luís é um cantor único,
destinado a ficar como um dos maiores intérpretes da história do samba carioca.
É o mesmo que Nássara convidou para o seu Grupo da ENBA. Um intuitivo,
dono de invejável senso rítmico, sempre a batucar no seu chapéu de palha. Com
tanto sabor e inventiva que acabará consagrando-o como mais um instrumento
de percussão do samba. Mas não é só no chapéu que ele produz ritmos: em
tampo de mesa, capo de automóvel, copos e garrafas, caixa de violão, tudo serve.
Inclusive os próprios dentes, dos quais extrai efeitos incríveis, tamborilando um
lápis sobre eles. É um criador. Canta como ninguém, brincando com as palavras,
acrescentando notas às frases melódicas, improvisando breques como quem tira
coelho de cartola. É bossa da cabeça aos pés. Um dia dirão, com grande
oportunidade, que Luís Barbosa tem um sorriso na vóz. Um sorriso menino,
malicioso, cheio de picardia, que veio para enriquecer o samba.
A Lalá e a Lelé
São duas garotas que desacatam...

Henrique, mais conhecido por Gaiola, preferirá o rádio à música. Como


Luís, é muito amigo de Noel, seu companheiro de festas e farras. Quanto a
Gustavo, não quer nada com o meio artístico, exceção única entre os Barbosas
brancos de Vila Isabel.
Euclydes Josephino Silva e Silveira, o Quidinho da Aldeia Campista, alto,
magro, gestos e gírias de crioulo do morro, mas tão ou mais branco que Noel.
Seus sambas também têm muito dos negros do Salgueiro ou da Mangueira, uma
flexura toda especial, surpreendente, contagiante. Almirante comete injustiça ao
incluí-lo entre os que andaram fazendo músicas calcadas no Na Pavuna. O Na
Aldeia, de Quidinho, só no título se assemelha ao samba de Almirante e
Candoca da Anunciação. Em tudo mais é melhor, no sabor do ritmo, na
malandrice da letra, na qualidade da melodia:
Na Aldeia, na Aldeia,
Tem gente feia,
Mas decide bem no pé.
O samba da Aldeia
De macumba não receia,
Porque também conhece o candomblé.

Vizinho de Noel, amando tanto o seu bairro quanto Noel a Vila, Quidinho
fará vários sambas louvando a Aldeia Campista. Um desses sambas, Bom
Elemento, é interessante não só porque Noel e Quidinho juntam forças para
enaltecer seus respectivos redutos, mas também por ser uma espécie de atestado
da adesão de ambos à batucada. Como elementos estranhos a ela, é verdade, mas
capazes de não fazerem feio num confronto com batuqueiros autênticos:
Entrei no samba,
Os malandros perguntaram
Se eu era bamba
No bater do tamborim
E o batuque
Eles logo improvisaram,
Eu dei a cadência assim:

Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
(O que é que tem?)
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém

Com violência
Enfrentei a batucada,
A harmonia
Do meu simples instrumento
Fez toda a turma
Ficar muito admirada
Porque sou bom elemento
Lamentavelmente, poucos se lembrarão de Quidinho daqui a algum tempo.
Melhor sorte terá Arnaldo Amaral. Falante, contador de vantagens, cheio de
pose. Levará muito tempo sem saber exatamente o que quer ser, cantor ou ator.
E quando chegar a se decidir já não será uma coisa nem outra, mas locutor de
rádio. É de se deixar influenciar pelo que os outros dizem, desde que isso lhe
alimente a vaidade. Uns garantem que tem bela voz (na verdade, é um dos
muitos pastiches que Francisco Alves vai carregar vida afora). Outros elogiam-
lhe a estampa, comparam-no a um galã de cinema, acham que poderia fazer
carreira no teatro. Arnaldo bem que vai tentar todos esses caminhos, gravará
discos, cantará no rádio, trabalhará como ator em peças e filmes. Mas jamais
passará de promessa não cumprida. É uma das figuras mais animadas do Ponto
de 100 Réis. Bom jogador de sinuca, excelente contador de anedotas. Para quem
não se deixa assustar por sua pose, um bom companheiro de conversa, de
serenatas, de festas onde haja cerveja e mulher. De Noel guardará a alegria de
um longo convívio no bairro e a pena de só ter gravado uma música sua: Vejo
Amanhecer. Assim mesmo, com sua voz empostada sendo quase tragada pelo
coro e seu nome não figurando no selo do disco.
Mas a posteridade de Arnaldo será menos diluída que a de Seringa,
Quidinho e outros de dotes musicais bem maiores que os seus. Como é o caso de
Kalua. Impossível não gostar desse moreno de sorriso branco e cativante que
rivaliza com Homero Dornellas em matéria de generosidade: são os dois que
costumam passar para a pauta, quase sempre em troca de um simples "muito
obrigado", as criações dos compositores orelhudos do bairro, isto é, daqueles que
não sabem ler ou escrever música. Como Noel Rosa, cuja quase totalidade do
que vem fazendo nestes seus primeiros anos de carreira virou partitura por obra
de Kalua (Dornellas limitou-se àquele histórico episódio de Com Que Roupa?).
Pianista com curso de orquestração e regência, Kalua compõe para o teatro.
Canções de amor, duetos, peças humorísticas e pequenos bales ouvidos em
revistas e operetas. Mas nada do que produz ficará por muito tempo na memória
do público. Será mais lembrado por seus solos de piano, ou por sua figura
miúda, ágil, a equilibrar-se no pódio sobre uma perna mais curta que a outra,
enquanto rege com a batuta comprida a pequena orquestra do Recreio ou do
Carlos Gomes.
Chama-se José Antônio Lopes Filho e morou por alguns anos no 103 da
Tneodoro da Silva, não muito longe do chalé. Hoje vive com a mãe e os irmãos,
todos pianistas, numa casa de porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos. As
reuniões musicais que se realizam ali são versões menores e mais modestas dos
saraus que têm lugar nas casas abastadas do bairro, entre elas a dos Boamortes.
Curioso: Kalua é sempre convidado para estes saraus. Assim como para
aniversários, batizados e casamentos grãfinos. Apenas ele e não os irmãos ou a
namorada, mulatos pobres que essas famílias geralmente discriminam. A
exceção que fazem não é a ele, mas a seu piano. Nunca recusa tais convites.
Mesmo que a namorada, com razão, proteste: "Por que não me chamam
também? Não me acham boa o bastante para eles?"(9) 9. Disse aos autores Heloísa Brandão de Marsillac, filha do Dr.
Heleno Brandão: "Nossa casa era das únicas que abriam suas portas não só para o Kalua, mas também para sua namorada, irmãos e amigos, muito discriminados naquela época."

Kalua não se amofina. Veste o melhor terno, gravata, vai aonde o chamam.
Entra pela casa, puxando da perna, guardando o sorriso, mas cheio de si: sabe
que todos aqui adoram ouvi-lo, os dedos ligeiros, elegantes, improvisando em
cima de choros e fox-trots. Nessas reuniões sempre há quem peça: - Toque o Ka-
lu-a!
A esta velha canção americana(10) deve seu apelido. De tanto tocá-la - e
sempre bem - o José Antônio virou Kalua.
10. Ka-lu-a, música de Jerome Kern, letra de Anne Caldwell, sucesso lançado na comédia musical Good Moming, Dearie, encenada na Broadway em 1921.

Outra figura muito querida e musical de um bairro todo ele musical. Amigo
de Noel Rosa. Que sempre vai preferir ouvi-lo na casa de porta e duas janelas da
Rua Gonzaga Bastos do que nestas festas emproadas onde a namorada e os
irmãos de Kalua não entram.
Assim é a Vila Isabel musical destes dias. Um bairro que daqui a algum
tempo seu poeta maior vai imortalizar em versos assim:
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo

Ou assim:
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.

Compositores, poetas, cantores, instrumentistas. Muitos estão aqui. Nem


todos para sempre como Homero Dornellas, que envelhecerá orgulhoso de sua
fidelidade ao bairro. Mas, de uma forma ou de outra, nenhum deles abdicará ao
privilégio de ter pertencido à "grande família". Outros já se foram ou ainda estão
por vir. Como o Álvaro Nunes, nascido na Souza Franco, a poucos passos do
Ponto de 100 Réis, hoje morando na Abolição, onde atende pelo apelido de J.
Cascata, ganho porque costumava molhar seus pés de menino no chafariz da
Praça 7. Ainda vai compor coisas magníficas (Lábios Que Beijei, Meu Romance,
Juramento Falso, Desilusão, História de Amor, Minha Palhoça). Ou como os
irmãos Teixeira, por enquanto morando em São Cristóvão, Valzinho aprendendo
a tocar um violão avançadíssimo, Newton criando canções imortais (Deusa da
Minha Rua, Malmequer, Não, Deusa do Cassino). Ou como Cyro de Souza e
Antônio Almeida, que jamais se perdoarão por não terem tentado uma parceria
com Noel. Ou como Henrique Gonçales e Vicente Sabonete. Ou como os
seresteiros sem fama, os chorões emboscados, os negros sem nome que se
escondem nos morros. Muitos, enfim, a mostrar que nem só de tangarás vive a
Vila, mas de tantos outros pássaros que espalham música pelos céus do Brasil.
Antonio Nássara e autocaricatura

Lamartine Babo e Almirante


Capítulo 16

CONQUISTANDO A CIDADE

Foi um barulho. Todo o mundo cantou. É assim que eu faço as minhas


coisas. Com situações, episódios, emoções, aspectos colhidos na vida real.
entrevista ao Jornal de Rádio

Um sucesso como nunca se viu. Parece até que o Rio despertou agora há
pouco ao som de um só samba, ouvindo a voz de um só cantor, recitando os
versos de um só poema. Música e letra de Com Que Roupa? ressoam por toda
parte, conquistam todos os bairros.
Neste primeiros dias de dezembro de 1930, outros sambas e marchas
prometem se destacar no próximo carnaval. Alguns são de fato muito bons. Ou
mais que isso. Se Você Jurar, Deixa Essa Mulher Chorar, Cor de Prata,
Batucada, Batente, Apanhando Papel, O Barbado Foi-se, Seu Getúlio Vem,
Minha Cabrocha vieram para ficar por longo tempo na memória do povo. Mas
nenhum fará o sucesso de Com Que Roupa?, cujo apelo e originalidade
envolvem as pessoas desde o primeiro instante. Se não for a melhor composição
desta safra, é decerto a que maior impacto causa, a mais cantada, tocada,
comentada, elogiada. Não só por sua melodia contagiante, mas sobretudo pelo
sabor de seus versos, é a que mais intimamente sensibilizará a alma do carioca,
tornando-se parte de sua vida, de suas conversas, de seus hábitos, de sua
linguagem: "Jantar no Assyrius? Com que roupa, meu caro?"
As emissoras de rádio tocam o disco sem parar. Alto-falantes instalados em
alguns pontos da cidade, Rua Dona Zulmira, Praça Saenz Pena, Avenida
Atlântica, projetam a voz de Noel a cantar, queixoso:
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu...

O próprio Noel se incumbe de mobilizar os amigos para fazer o samba mais


conhecido. No carro de Valuche, ele, Alegria, Martha Clara, Fina, Bazinha
levam pacotes e mais pacotes de impressos com a letra de Com Que Roupa?.
Desfilam pelas ruas principais de vários bairros, atirando pelas janelas os
folhetos, ao mesmo tempo em que cantam, particularmente Bazinha, cuja voz
aguda, estridente, vai fácil de uma esquina a outra:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?

Sucesso realmente sem precedentes. Nenhuma canção popular arrebatou


tanto a cidade. E em tão pouco tempo. Cruz Cordeiro, numa de suas resenhas
sobre os últimos lançamentos em disco, diz:
"Noel Rosa, que pertence ao já popular Bando de Tangarás, revelou-se este
ano como autor do samba Com Que Roupa?, cantado por ele com
acompanhamento do Bando Regional na primeira face do disco n P 13.2 45. Este
samba, desde logo, registrou desusado sucesso, apresentando-se como um dos
prováveis êxitos do carnaval que aí vem. Ao nosso ver, a grande aceitação do
samba de Noel, que todo o Rio já sabe de cor, reside na originalidade da letra e
no sabor esquisito do ritmo, dentro do qual a letra está magnificamente
enquadrada. Reparem os amadores como caem bem dentro da música e do ritmo
aquelas rimas acentuadas e nítidas de 'conduta', 'luta' e 'bruta', ou então de 'sopa',
'roupa' e 'estopa'. Existe também na peça a originalidade de seu autor ter
encontrado coisa de pleno agrado popular, a começar pelo próprio título da
composição sem necessidade de recorrer a assuntos já explorados de 'orgia',
'malandro', 'carinho'; 'nota'; etc, etc. Enfim, secundando a opinião pública,
enviamos daqui os nossos parabéns a Noel Rosa pela originalidade e
engenhosidade de seu samba, que ele próprio canta com graça e especial sabor,
acompanhado pelo adestrado Bando Regional."(1)
1. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25).

Uma resenha que fala três vezes em "originalidade". Há pelo menos um


motivo muito especial para, sendo Com 'Que Roupa?' posterior a vários sambas
do Estácio já gravados, parecer-se novo também em relação a eles: o
acompanhamento. As composições de Ismael Silva, Nílton Bastos, Alcebíades
Barcellos, Brancura, Baiaco, que chegaram ao disco, tiveram como intérpretes
Francisco Alves e Mário Reis, sempre acompanhados de orquestra. Os autores
dos arranjos não variam muito. Ou são maestros que tentam adaptar à música
popular brasileira a sonoridade das orquestras de dança americanas, Paul
Whiteman, Isham Jones, Dan Russo & Ted Fiorito, Ben Pollack, Kay Kyser, Leo
Reisman, Fletcher Henderson, Guy Lombardo, ou é Pixinguinha, freqüentador
das casas das "tias" baianas, mais identificado com a instrumentação dos
conjuntos de choro, das bandas que saem com os ranchos ou tocam em circos,
dos grupos que se apresentam nas salas de espera dos cinemas e muito
especialmente nos cabarés e gafieiras onde casais dão voltas ao ritmo de maxixes
e sambas amaxixados. Assim, os sambas do Estácio que se ouvem nos discos
desses primeiros tempos soam como produtos híbridos, a voz de Francisco Alves
ou Mário Reis transmitindo melodias realmente do Estácio, mas o
acompanhamento rítmico afinado mais pelo diapasão da Cidade Nova, enquanto
as passagens de orquestra ora utilizam adornos estrangeiros, ora recorrem às
baixarias do maxixe. Deve-se em grande parte a essa hibridez, típica de um
período de transição, o fato de Com Que Roupa?, a gravação original sustentada
apenas por bandolim e violões, parecer mais novo do que de fato é.
Sucesso sem precedentes, com o qual o próprio Noel deve estar surpreso.
Afinal, se esperasse êxito tão grande, o disco chegando a vender mais de 15 mil
cópias, não teria aceito a proposta do cantor e locutor Ignácio Guimarães: 180
mil réis pelos direitos do samba. Proposta aceita na hora, assim como a da venda
de Malandro Medroso a um amigo de Ignácio, também cantor, Paulo Rodrigues.
Resultado: pelas duas faces de um disco que teve venda formidável, Noel Rosa
não recebeu um tostão além do que lhe foi pago pelos dois cantores.
Tanto Ignácio como Paulo começaram suas carreiras no coro do Teatro
Municipal, um como baixo e outro como barítono. Ignácio, contudo, descobriu
desde logo que ópera não dá camisa a ninguém. E tratou de arranjar um bico
aqui e ali. Tentará, inclusive, carreira como cantor popular, assinando-se nos
discos como I.G. Loyola. Para os amigos, todavia, será sempre o Ximbuca,
companheiro simpático e bonachão.
Ximbuca empolga-se tanto com o fato de ter-se tornado dono de Com Que
Roupa?que decide gravá-lo também, com apenas duas estrofes ao invés de três
como no primeiro registro. Isso já as vésperas do carnaval, quando o samba na
voz de Noel já houver conquistado a cidade. A gravação é bom exemplo do
quanto os acompanhamentos orquestrais podem mudar o espírito de um samba
feito nos moldes do Estácio. I. G. Loyola, tendo por trás a Orquestra Guanabara,
nos dá uma versão muito diferente da de Noel. E pode-se mesmo afirmar que,
tivesse sido a única, talvez Com Que Roupa? não chamasse tanto a atenção
para sua originalidade.
Na gravação de Ximbuca há, porém, novidades. Versos adicionais que Noel
fez para ele, sempre pensando num "Brasil de tanga", explorado pelo
estrangeiro, dando o que tem de melhor e abandonado no fim. Além disso, Noel
faz a segunda voz e o contracanto, este alterando ligeiramente a estrutura do
estribilho. Os versos cantados por Noel no disco seguem-se precedidos de
travessão:
Seu português agora foi-se embora
- Oi, foi-se embora
Já deu o fora
E levou seu capital
- Seu capital
Esqueceu quem tanto amava outrora
- Amava outrora
Foi no Adamastor pra Portugal
- Pra se casar com uma cachopa!
E agora com que roupa?
- Oi, com que roupa?

Com que roupa


- Com que roupa?
Eu vou
- Que eu vou
Pro samba que você me convidou?
- Me convidou(2)
Com que roupa
- Com que roupa?
Eu vou
(com que roupa que eu vou?)
Pro samba que você me convidou?
2. O contracanto "me convidou", que iria se popularizar e se incorporar definitivamente ao samba, está presente apenas nesta segunda gravação. Na primeira, Noel não o canta.

O Adamastor citado é o famoso navio português cujo nome homenageia o


titã cantado por Luís de Camões em Os Lusíadas.
A segunda estrofe já foi gravada:
Agora estou pulando como sapo...
Nela Noel prefere "meu paletó" em lugar de "meu terno já virou estopa".
Outras estrofes, não tão felizes, serão interpretadas por Noel em programas
de rádio e apresentações ao vivo em que o público, entusiasmado, exige-lhe que
bise Com Que Roupa?. Não serão gravadas, porém.
Você não é nenhum artigo raro
Mas eu declaro
Que você é um bom peixão
E hoje que você se vende caro
Creio que você não tem razão
O peixe caro é a garoupa
Com que escama e com que roupa?

Eu nunca sinto falta de trabalho


Desde pirralho
Que eu embrulho o paspalhão
Minha boa sorte é o baralho
Mas minha desgraça é o garrafão
Dinheiro fácil não se poupa
Mas agora com que roupa?
Um sucesso presente em quase tudo, na propaganda de casas comerciais, na
música, no esporte, na moda. Há até uma fantasia feminina Com Que Roupa?,
sugerida pelos jornais: "Calças de linho azul, com vários remendos, terminadas
em boca de sino e que sobem mais na frente, para se terminarem com
suspensórios. Blusa de cambraia em xadrez branco e vermelho e grande chapéu
de palha amarelo."
Sambistas da Mangueira e outros redutos - Cartola, Aloísio e Sílvio Dias,
José da Flauta, Zé Criança, Crispim e Palhaço - organizam um conjunto na base
de flauta, violino, cavaquinho, violão e pandeiro e o batizam de Com Que
Roupa?, homenagem que o pessoal lá de cima não costuma prestar à gente cá de
baixo. Convidados a atuar nas festas do morro, batizados, aniversários,
casamentos, São João, o grupo permanecerá na ativa por oito anos. O Vila Isabel
Foot-ball Club não fica atrás e dá o nome de Com Que Roupa? ao seu
combinado convocado para enfrentar o do Vieira Souto Foot-ball Club.
Paródias do samba se multiplicam, criadas por foliões anônimos ou por
poetas conhecidos como Ary Kerner Veiga de Castro, que não deixa passar em
branco a determinação do novo chefe de polícia do Distrito Federal, João
Baptista Luzardo. de tornar vitoriosa antiga campanha moralizadora para
impedir que "trajes demasiado sumários transformem em prática indecorosa os
nossos banhos de mar a fantasia". Com a música de Noel, canta Ary Kerner:
Não posso mais mostrar o meu umbigo
É o castigo
Que o Luzardo me quis dar...

Eu, que já fazia economia,


Mais esse dinheiro vou gastar!
Pois sem camisa, sem ter touca,
Eu pergunto: com que roupa?

Com que roupa que eu vou


Pro banho que você me convidou?

Os jornais de modinhas destes primeiros meses do ano publicam


constantemente não apenas a letra original do samba, como as paródias enviadas
pelo público. Com tal freqüência que um leitor de Voz da Mocidade, Antônio
Maia, no número de maio de 1931, queixa-se através de carta: "Chega já de Com
Que Roupa?. Cousa nova, sim?"
Sucesso sem precedentes que ultrapassa os limites da música popular. Raul
Pederneiras, J. Carlos, Theo aproveitam a popularidade do samba para publicar
em jornais e revistas charges contendo críticas à política, à administração
pública, aos costumes. A um desses artistas, Álvaro Cotrim, o Alvarus, cabe uma
primazia: é dele a primeira caricatura de Noel publicada na imprensa(3).
3. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931.

De perfil, as mãos nos bolsos, o compositor aparece com a roupa


remendada, não propriamente coberto de farrapo, mas num desenho inspirado na
música e que pelo menos nos próximos cinqüenta anos será freqüentemente
republicado.
Observadores políticos atentos não cairão em nenhuma das armadilhas que
Noel prepara nas muitas entrevistas que dá, em cada uma delas contando uma
história diferente, camuflando sempre a verdadeira gênese de Com Que Roupa?,
confessada a tio Eduardo.
"Um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga."
Ao tio Eduardo Corrêa de Azevedo, 1929

"... quando fiz o Com Que Roupa? não tive em mira fazer alusão ao povo, que, apesar de tudo, sei que
ainda tem roupa e faço votos que continue a tê-la em profusão, e que não lhe falte roupa, e muita, para
brincar no carnaval. Com Que Roupa? é uma pergunta que se aplica a diversos casos. Por exemplo: se um
camarada está sem dinheiro e alguém o convida para um baile ou uma festa qualquer, ele retruca, com um
gesto significativo: 'Com que roupa?' (isto é, com que dinheiro?). Se precisa resolver qualquer assunto
intrincado, sem descobrir os meios para tal, recorre ainda à mesma interrogação: 'Com que roupa?' Al
está."
Ao Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931

"Com Que Roupa? tem uma história interessantíssima que vale a pena contar aqui, a título de curiosidade.
Foi um caso que se passou comigo mesmo. Com sangue de boêmio, eu passei a chegar em casa, em
determinada época, a altas horas da noite. Vinha de festas ou de serenatas, ou de simples conversas. Mas o
fato é que essa vida, passada toda em claro, devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu (...) Mas
quem mais se assustava era mamãe. Pressentiu, antes que ninguém, o meu estado. E, dia-a-dia, renovava
as suas advertências, os seus apelos, para que não me demorasse na rua tanto tempo, para que dormisse
mais, que eu acabava doente. Eu prometia que sim. Mas a minha vontade era nula. E chegava, fatalmente,
às mesmas horas, com as mesmas olheiras e com aquele emagrecimento progressivo, que estava
alarmando todo o mundo. Desesperada de conseguir a minha obediência pelos recursos da persuasão,
minha mãe lembrou-se de um antigo recurso, mas cujo efeito é sempre eficaz. Assim é que escondeu todas
as minhas roupas. Sem exceção. Fiquei desesperado. O pior é que, na véspera, mandara que alguns amigos
me viessem buscar para irmos a uma festa. Os amigos não faltaram. À noite, batiam lá em casa; 'Como é,
Noel, vamos para o baile?' E eu, dentro do meu quarto: 'Mas com que roupa?' Mal eu tinha acabado de
soltar a frase, e ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema. Daí o estribilho:
Com que roupa eu vou

Ao samba que você me convidou?"

Ao Jornal de Rádio, 1 de janeiro de 1935

"Não gosto do Com Que Roupa? Foi feito para o povo, e os sambas de que eu mais gosto são feitos para
mim."
À Carioca, 14 de dezembro de 1935

"Não gosto desta música. Foi feita em 1930, sobre o momento político brasileiro, onde os partidos se
apresentavam e se desfaziam porque não tinham roupa para aparecer. E saiu o estribilho que todo o Rio
cantou:
Com que roupa que vou

Ao samba que você me convidou?"

À Carioca, 18 de julho de 1936

Maurício de Lacerda, por exemplo, é perspicaz o bastante para perceber que os versos de Noel não
devem ser tomados literalmente e escreve longo artigo que, além de ter o mesmo título do samba, aproveita-
lhe a metáfora para falar dos rumos ainda indefinidos da Revolução de 30:
Com que roupa?

"Vamos, povo carioca, a quem e com quem ficará o teu aplauso e vê bem nesta hora com a lente de
tua ironia carnavalesca que não é possível acompanhar ao mesmo tempo as três Histórias de um samba,
tendências tão opostas que serpentinam no espaço e lançam aos teus olhos os confetes multi-cores da sua
convicção.
Tu pensaste no entrudo antigo para afogar com o teu coração esta pantomima tão larga quanto
insossa da regeneração republicana do Brasil pelos políticos que fizeram a sua degeneração oligárquica.
Mas, ergue neste momento, sem o teu verso e sem tua prosa, a tua voz vingadora na estrofe do teu
último carnaval, perguntando a esta democracia de três forças incoerentes como vias no teu samba: de
camisa preta, de camisa vermelha, ou de camisa verde-amarelo, isto é, 'com que roupa', fascista, comunista
ou socialista? Desta tua pergunta, ó carioca, não esperes a resposta, samba à vontade, canta a teu modo a tua
desventura e, seja com que roupa for, põe pela tua ironia, pela tua sátira e pelo teu espírito de fronda, sem
qualquer roupa, nu na praça o rei de uma democracia que procurando ser livre caiu no bico da cegonha da
Revolução de outubro."(4)
4. Diário de Notícias, 19 de fevereiro de 1931.

Múcio Leão já vê as coisas de ângulo mais próximo do de Noel:


"Mas há mais do que isso no carnaval deste ano: há uma canção proletária! A hora atual é de crise
profunda, e o brasileiro sofre todas as amarguras de uma miséria a que não estava habituado. E esse estado
de alma está refletido numa das nossas músicas populares. Eu não conheço nada mais característico da alma
do brasileiro miserável dos dias de hoje do que a canção que por aí corre e na qual vemos um indivíduo
queixar-se de não ter uma roupa com que vá a um samba para que foi convidado. Não ter um terno, ver o
seu paletó transformado em estopa, ter a certeza de que esta mesma estopa vai ser farrapo daí a algum
tempo e, diante dessa extrema calamidade, não ter dinheiro para comprar um fato novo - mesmo que seja
ordinaríssimo -aí estão as dores do brasileiro de agora, do brasileiro humilde, filho da multidão, que cifra
toda a sua ventura em ter três dias no ano em que possa sambar e se divertir à vontade.
Eu creio que nada existe na literatura brasileira culta que, como documento, valha essas pequenas
canções vagabundas que iluminam o nosso carnaval."(5)
5. Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1931.

Também alcança as intenções de Noel, num texto muito rebuscado, Vivaldo Coaracy:
"A cidade inteira é um caos que endoideceu. E servindo de tapete uniforme à apoteose do barulho,
acompanhamento uniforme da sintonia de todos os ruídos, surda, mas sempre presente, a toada uniforme do
samba:
Com que roupa eu vou Ao samba que você me convidou?...
É a resposta instintiva da alma popular ao convite da República Nova. É a consciência latente da
miséria, em meio ao delírio das esperanças. É o sentimento pertinaz da realidade a resistir à vertigem de três
dias de embriaguez.
Já estou coberto de farrapo Eu vou acabar ficando nu... Meu terno já virou estopa... "(6)
6. O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1931.

Este é de fato o carnaval de Com Que Roupa?, o carnaval de Noel Rosa. Repórteres o procuram para
que conte a história do samba, diretores de clubes o convidam para recitais, com ou sem os outros tangarás.
Não há um dia em que não se ouça no rádio ou se leia no jornal um elogio ao jovem compositor ou ao seu
samba. Um musicólogo da estatura de Renato Almeida não esconde seu entusiasmo:
"Mário de Andrade, para o Pinião, descobriu quatro versões rítmicas diferentes, além de variantes
melódicas em geral leves. Este ano, de quantos modos se cantou Com Que Roupa?"
Mais adiante, o alcance idêntico ao dos observadores políticos:
"Música de dança, samba, música enrascada, mole, sensual, nela só o ritmo marca o elemento
masculino e viril, porque tudo mais é languidez. Não raro, há lamúria, a exemplo de Com Que Roupa?, no
qual, excepcionalmente, a letra é deliciosa, desse desgraçado que vai mudar sua conduta e vai pra luta..."(7)
7. Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 1931.
No bairro, todos cumprimentam Noel. Até aqueles vizinhos que lhe
viravam o nariz por vê-lo "sempre metido com gentinha". Os amigos sorriem
para ele, dão-lhe tapinhas nas costas. Um ou outro estranho aproxima-se, finge-
se de íntimo, quer ser visto conversando com o autor de Com Que Roupa? Nos
dias de folia, 15, 16, 17 de fevereiro, é impossível sair às ruas sem ouvir a
composição. Noel tem mais sete gravadas para este carnaval, por ele ou por
outros artistas: Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso, A.B. Surdo, Nega, Por Esta
Vez Passa, Dona Aracy e Dona Emília. Para um estreante em carnaval, um
respeitável lote, mas ofuscado por Com Que Roupa?. Em Por Esta Vez Passa a
cachaça é o tema. I.G. Loyola, o Ximbuca, é seu intérprete.
Por esta vez passa
Por esta vez passa
Mas não volte à minha casa
Assim cheirando à cachaça.

Já é coisa bem sabida


Que a dona Manuela
Ou acaba com a bebida
(como é?)
Ou a bebida com ela.

Acabou-se o parati
Em casa de dona Antônia
Por isso dona Didi
(que foi?)
Só bebe água da Colônia.

Viva o artigo nacional


O Brasil vai ter valor
Por isso seu Amaral
(só...)
Só bebe álcool-motor.

Dona Aracy é muito cantada por blocos de rua, marcha composta de um


refrão muito simples e uma série de quadrinhas que se vão improvisando durante
o desfile. As quadras de Noel, gravadas por Almirante, são também simples e
uma delas contém uma brincadeira com Malhado:
Dona Aracy! Dona Aracy!
Quero saber:
Como anda isso por ai?

Como vai o seu Malhado?


Seu marido em certidão
Inda está desconfiado
(Inda está desconfiado)
Que é lesado pelo irmão.

Como vai a sua filha


Que namora no porão?
Se a senhora não estrilha
(Se a senhora não estrilha)
Quero uma apresentação.

Como vão as suas jóias?


Tão bonitas, eu não nego
Não passavam de pinóias
(Não passavam de pinóias)
Davam dez tostões no prego.

Que foi feito do Renato


Que malvado, que troféu
Que pisava em meu sapato
(Que pisava em meu sapato)
E cuspia em meu chapéu.

Dona Emília é uma das marchas cantadas pelo Faz Vergonha em seu
desfile de domingo de carnaval. Tem música de Glauco Vianna e versos de
Noel, todos eles alusivos aos valentes foliões da Rua Maxwell, capazes, se a
concorrência assim o exigir, de ganhar até um prêmio de violência:
Sai da frente
Dona Emilia!
Que o nosso bloco
Só tem gente de família...

(Sai logo! Sai, sai!)

O nosso bloco vai a todas as batalhas


Só pra ganhar muitas medalhas
E se houver muita concorrência
Eu trago o prêmio da violência.

O nosso bloco tem cordão de isolamento


Só pra barrar mau elemento
E a dona Emília anda despeitada
Porque não entra na batucada.

A dona Emília foi pedir por compaixão


Pra penetrar no meu cordão
Mas eu não quero esta tagarela
Porque ela samba lá na Favela.

Mais do que nunca Noel é uma das atrações do Faz Vergonha. E, embora se
cante sua marcha com Glauco e outras composições do pessoal do bloco, à sua
passagem o comentário não muda: "Ele é que fez o Com Que Roupa?". Mas
Noel nem dá importância, tão envolvido está com a alegria do bloco, a sua
própria alegria. Este ano ele sai entre os improvisadores com uma fantasia
arranjada à última hora: sapatos, bolsa, chapéu e vestido de dona Martha. Um
vestido estampado, colorido, há muito fora de uso, dentro do qual o corpo
mirrado de Noel quase some. Está contente com o sucesso, com a vida, com
tudo. Canta, dança, inventa passos entre uma cerveja e outra. O bloco sai da
Maxwell, toma a Piza de Almeida, Dona Elisa, Souza Franco, cruza a Theodoro
da Silva e deságua, triunfal, no Ponto de 100 Réis. Para mostrar ao Cara de Vaca
que o Faz Vergonha ainda é o melhor, tem batuqueiros, passistas, moças bonitas,
improvisadores, Noel Rosa. Um Noel Rosa que não pára de dançar. O bloco vai
até a Praça 7, faz o contorno e volta ao Boulevard para o percurso na direção do
Largo do Maracanã. Noel segue inventando passos, requebra, faz uma pirueta,
planta uma bananeira. Na altura da Felipe Camarão, um guarda atravessa a
corda, puxa-o pelo braço e lhe diz baixinho, em tom de paternal reprimenda: -
Assim não dá, Noel.
- O que é que houve, seu guarda?
- Esta fantasia. Não dá para dançar com ela.
-Mas é um vestido, seu guarda. Como de todo mundo.
- Sim, seu Noel. Mas me faz um favor: se é para dançar, trate pelo menos
de botar um calção por baixo.
Os anos 30 caminham para se converterem num período bom para o teatro
de revistas carioca. Desde fins da década passada a Praça Tiradentes e arredores
vivem dias de fulgor, comédias musicais estreando a todo momento, revelando
estrelas, humoristas, autores, músicos, novos nomes da música popular.
Ninguém nega que o cinema é moda que ganha corpo a cada dia, principalmente
nos últimos dois anos, em que os atores e atrizes da tela, por uma dessas mágicas
do progresso, começaram a falar. Mas ainda vai demorar para o cinema
substituir o teatro na preferência do carioca. Estão aí, como exemplos
eloqüentes, o Recreio, o República, o Carlos Gomes, o Phoenix, o Trianon, todos
acolhendo público numeroso e empolgado a cada nova revista que encenam.
Noel Rosa deve também a Com Que Roupa? o seu ingresso, mesmo que por
pouco tempo, no mundo do teatro musical. O samba é incluído entre os números
carnavalescos da "super-revista de fantasia e comicidade" que os irmãos
Quintiliano escreveram para Aracy Cortes e Mesquitinha. O espetáculo intitula-
se Deixa Essa Mulher Chorar e tem, além deste samba de Brancura, outros
sucessos do carnaval, Batente, Cavanhaque, Se Você Jurar, Sorris, Maria, Deixa
Disso, Nem É Bom Falar. Um quadro inteiro é dedicado a Com Que Roupa?,
reunindo no palco a malícia de Aracy Cortes, o humor de Mesquitinha, as belas
pernas de um grupo de coristas não muito preocupadas com a roupa ou com a
falta dela. A peça estreou no Teatro Recreio, a 9 de janeiro de 1931, e tem entre
suas novidades mais uma das muitas ousadias de Aracy: em vez da tradicional
orquestra, o acompanhamento é feito por um grupo de sambistas que ela própria
foi buscar no Salgueiro, não se importando com a advertência de alguns amigos
sobre os perigos de subir o morro. Um grupo de salgueirenses de poucos
sorrisos, meio desconfiados por pisarem um palco pela primeira vez, ajuda a
tornar mais irresistíveis as interpretações da grande estrela que é Aracy Cortes.
São apenas sete: surdo, chocalho, pandeiro, cuíca, tamborim, violão e
cavaquinho. Mas que riqueza sonora eles extraem de seus instrumentos!
Deixa Essa Mulher Chorar é um triunfo. Não só por Aracy, mas também
pelo repertório, sambas do Estácio, do Salgueiro, do jovem Noel Rosa,
deliciando uma platéia que constata ser possível produzir uma revista com
ingredientes cem por cento brasileiros, das piadas à música. Sendo este um
gênero importado - com muito da revue parisiense, do music hall londrino, das
extravagâncias dos palcos da Broadway - parece ter nascido e se desenvolvido
aqui, no Brasil de Aracy Cortes, quando as atrações são o nosso samba, os
nossos sambistas, o cenário carioca, o humor de nossas esquinas, uma realidade
nossa. É por isso que, enquanto a revista trilhar por este caminho e o cinema vier
de fora, o teatro continuará insubstituível.
Nas pegadas do sucesso da peça do Recreio - e em particular do quadro
sobre o samba de Noel - Luís Peixoto, outro poeta, grande letrista de música
popular, homem de teatro e revistógrafo (por sinal um dos que se mostram
inclinados a trocar sua formação um tanto Folies Bergère por um estilo brasileiro
de crônica e crítica às nossas coisas), decide escrever uma revista especialmente
para a Companhia Mulata Brasileira levar ao palco do República. Título: Com
Que Roupa? Para estrear ainda antes do carnaval, a 23 de janeiro de 1931.
Pretendendo ser uma "burleta de costumes cariocas", se apoiará num texto leve,
bem-humorado, e nestas canções que o povo canta, uma delas, evidentemente, o
samba que fez o Brasil descobrir Noel Rosa. Se a porta do teatro de revistas
começou a abrir-se para Noel Rosa em Deixa Essa Mulher Chorar, escancara-se
de vez com a proposta de Eratósthenes Frazão logo após o carnaval.
Embora profissional do jornalismo, Frazão faz hoje incursões ao teatro e à
música popular. Nesta, atingirá a notoriedade no carnaval, daqui a oito anos,
com Florisbela, em parceria com Nássara. Filho do maestro da Capela Imperial,
Sebastião Alves Frazão, traz a música no sangue. Nasceu em 1891 e seu nome é
uma homenagem ao astrônomo e matemático grego Eratósthenes(8).
8. Para dar entrada em seu processo de aposentadoria, Frazão obteve uma falsa certidão na qual consta ser carioca de 1901. Na realidade, nasceu em 1891, fora do Rio de Janeiro, apesar de
desconhecer-se o local exato, segundo informação de seu amigo e advogado Bruno Ferreira Gomes. Na ocasião, ao procurar Bruno, Frazão declarou: "Em vida não cheguei nem aos pés do meu xará
grego, mas parece que na morte vou igualá-lo: ele terminou seus dias na miséria. Se você não conseguir me aposentar, vou acabar na maior merda!"

Altura mediana, elegante, bem moreno, cor de índio, solteiro convicto.


Quem o aproxima de Noel é o próprio Nássara que recomenda ao compositor
procurá-lo nos bastidores do Teatro Recreio. Durante a conversa, Frazão
impressiona-se com o número de canções que Noel já possui em seu repertório.
A proposta é de aproveitar várias na revista que ele, Maciel Pereira e Leo Grim
estão escrevendo para ser montada em abril no Recreio. Aracy Cortes e
Mesquitinha mais uma vez encabeçarão o elenco. Mas outros grandes artistas,
como ítala Ferreira, já foram contratados pela empresa A. Neves & Companhia,
que comprou a idéia de Frazão e vai produzir o espetáculo.
- Título? Café Com Música.
Frazão explica tratar-se de uma revista cujos quadros e cortinas girarão em
torno de um mesmo tema: o preço do cafezinho. Lembra ele que o interventor
federal, Adolfo Bergamini, acaba de fixar em 100 réis o preço da xícara
pequena, mas muitas casas não obedecem ao tabelamento. Cobram o dobro,
enquanto os fiscais, imagina-se em troca de que, fecham os olhos. Ainda outro
dia, houve barulho no centro da cidade, uma pequena multidão querendo quebrar
tudo, fechar à força as portas de um botequim cujo dono, português, cobrava
acima da tabela. Parece que as coisas agora estão contornadas. Ao menos por
enquanto. O interventor concordou que as casas do Rio pudessem cobrar dois
preços, 100 réis pelo cafezinho puro e simples, 200 se aos fregueses for
oferecida, além do café, música ao vivo, orquestras e conjuntos animando o
ambiente.
A revista vai focalizar estes e outros episódios ligados ao café, há tanto
tempo centro de intermináveis discussões políticas e econômicas neste país
conturbado e indefinido em que vivemos. Noel aceita a proposta de Frazão, acha
interessante a idéia, promete contribuir. Frazão esclarece que nem todas as
composições precisam ser inéditas ou novas. Até que será bom incluir algumas
já conhecidas.
- Claro, Com Que Roupa? não pode faltar.
Das muitas entrevistas que Noel Rosa dá a respeito do seu samba, uma,
daqui a quase quatro anos, se tornará uma espécie de versão oficial. Fantasiosa,
típica de um Noel que sempre se divertirá inventando histórias para vê-las
impressas em letra de fôrma, esta versão, talvez por seu tom pitoresco, caricato,
será repetida como a verdade das verdades. Sobreviverá ao próprio Noel,
resistirá a todos os desmentidos. Nela, Noel diz que inspirou-se nos excessivos
cuidados de dona Martha com sua saúde, a mãe escondendo-lhe as roupas para
que não saísse de noite, não se consumisse nas madrugadas de boêmia. Não
adiantava os amigos o convidarem para o samba. Com que roupa iria? Uma
história tipicamente Noel, que nada tem a ver com a do "Brasil de tanga".
Um fingidor. Nas entrevistas para que será solicitado pela vida afora-da
primeira que se tem notícia à última que dará já agonizante - Noel Rosa
continuará sendo um fingidor, raramente se revelando, abrindo a guarda,
desnudando-se. Realmente se diverte com isso, aproveitando-se da credulidade
do entrevistador para ajudar a criar lendas em torno de si, não deixando que o
vejam como de fato é. As vezes, em lugar de credulidade, conta com a
cumplicidade do entrevistador. Como nesta matéria que começa assim: "Noel
Rosa sentou-se, ou antes trepou numa cadeira e ficou com as pernas balançando
no ar.
- Noel!
- Quê?
- As mulheres?...
- Ah!"
Uma entrevista sobre a visão do amor segundo Noel Rosa, ele sendo
definido pelo entrevistador como "Clark Gable que foi diminuindo, diminuindo,
e um vento forte trouxe para o Brasil", enquanto Noel se pinta como
conquistador, durão, insensível, mau com as mulheres.
"- Mau?- rodou nas pontas dos dedos a palheta e tornou a sorrir. Vocês
outros têm sobre a maldade um conceito errado, pensam que maldade é o que o
dicionário diz.
- E não é?
- Não. Eu sei de mulheres que gostam de apanhar (e também de homens...).
Isso, no conceito de maldade que vocês têm, seria motivo para uma interrogação.
Então como pode ser? Desde que um homem dando numa mulher não a deixe
triste, a sua violência passará a essa categoria gostosa de carteia. A caricia pode
ser transmitida por intermédio de uma paulada ou de um beijo. Pura questão de
combinação prévia. "(9)
9. Diário de Notícias, 22 de fevereiro de 1931.

Malandro medroso. E fingidor. Não é bem assim Noel Rosa. Não, pelo
menos, com as duas mulheres que repartem seus carinhos neste começo de 1931:
Clara e Fina. Tem sido difícil sair, sem despertar suspeitas, dos braços de uma
para os da outra. Afinal, elas continuam sendo quase vizinhas. Mas ele sabe
dividir seus horários, vendo Clara à saída da escolinha em Vila Isabel, Fina em
noturnos e escondidos passeios de carro e ainda conquistando outras garotas em
suas andanças pela madrugada.
É muito carinhoso com Clara. Especialmente agora que ela chora um duro e
repentino golpe: a morte da mãe. Dona Clara não chegou a ficar um ano na casa
da Barão de Bom Retiro, o coração deixando de bater numa triste manhã de
chuva. Noel é sensível à dor da namorada, trata-a com afeto, cerca-a de atenções.
Martha também. Gosta muito de Clarinha, ainda acredita que ela será a filha que
não teve, a bonita e meiga professorinha com que a vida presenteou Noel.
Com Fina, ficam as saídas noturnas no carro de Valuche ou de Malhado.
Sempre a quatro, pois não é problema para nenhum deles arranjar uma pequena
que queira fazer companhia a Fina numa viagem de prazeres até o Alto da Boa
Vista, Leblon, Jacarepaguá e outros recantos desertos. Tudo escondido de dona
Luísa, evidentemente. E dos outros moradores da casa da Rua Moju. Imagine se
soubessem por onde anda a travessa Fina...
Alegria já não faz parte desses passeios. Nem das serenatas. Como tinha
dito a Noel, seria capaz de qualquer coisa por Martha Clara. Até se casar. E foi
exatamente o que fez, de repente, nos primeiros dias do ano. Comprou um carro
de praça, montou casa no Boulevard e para lá levou, apaixonadíssimo, Martha
Clara, Nelson, Walter, Juquinha, os três filhos do comissário que criará como
seus. Para Alegria, os tempos de boêmia terminaram. Daqui a alguns meses - 22
de outubro de 1931 - nascerá o único filho de seu casamento. Chamará o amigo
Noel Rosa para irem juntos registrar o menino. E lhe fará uma surpresa.
- Sabe que nome vamos dar a ele?
- Não.
- Noel(10)!
10. Noel Souza Pinto seria motorista profissional como o pai. Morreria assassinado a tiros, no bairro carioca do Meyer, a 29 de outubro de 1980, por três homens com os quais tinha velha
rixa.
Capítulo 17
O MIGUEL COUTO DO SAMBA
Ninguém foge ao seu destino. Eu sou um exemplo: quiseram que eu fosse
médico e eu acabei sambista...
entrevista ao Diário Carioca

A poltrona de madeira do Cine Vila Isabel é desconfortável, mas mesmo


assim Noel Rosa dorme profundamente. Nem suspeita que lhe falam ao ouvido,
primeiro baixinho, depois em tom mais alto, por fim aos berros: - Noel! Ô Noel!
Duas mãos o seguram pela gola do paletó. Seu corpo, cinqüenta e poucos
quilos de magreza, é quase que guindado da cadeira. Já na sala de espera,
começa a abrir os olhos, a reconhecer quem o chama.
- Noel! Acorda, Noel!
É Eratósthenes Frazão. Procurou-o por toda parte, perguntou por ele em
todos os esconderijos do Rio. Até que foi bater no chalé, onde dona Martha
disselhe que tinha vindo ao cinema. Quem poderia imaginá-lo aqui, nesta
matinée? E ainda por cima dormindo?
- Você se esqueceu de mim? E os ensaios? - resmunga Frazão.
- Que ensaios? - pergunta ainda sonolento.
Noel Rosa não tem descansado nesses meses de março e abril. Só que a
música pouco tem a ver com isso. Passado o carnaval, são os livros que ocupam
o tempo do compositor que acaba de conquistar a cidade. Livros de química,
física, história natural. Uma retomada de contato com as matérias que tanto
trabalho lhe deram no São Bento e mesmo depois. Em suma, Noel Rosa tenta ser
agora, no vestibular para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tão bem-
sucedido quanto foi no último carnaval. Daí ter-se esquecido de Eratósthenes
Frazão e tudo mais.
Quando ele começa a fazer as provas do vestibular, os ensaios de Café Com
Música já estão em andamento. Frazão divide mesmo com Maciel Pereira e Leo
Grim a autoria dos sketches, quadros e cortinas. A parte musical está a cargo de
Júlio Cristóbal, Sá Pereira, Ary Barroso e, espera-se, Noel Rosa. No elenco,
além de Aracy Cortes, Mesquitinha e ítala Ferreira, os astros principais, estão
Luíza Fonseca, Affonso Stuart, Jota Fegueiredo, Augusto Anníbal, Olga Bastos,
João de Deus, Isabel Ferreira, Edith Falcão, Oscar Cardona, Henriqueta Brieba, a
bailarina Leonor Pinto. A coreografia é do professor Nemannoff. O teatro, como
estava previsto, será mesmo o Recreio, onde já se ultimam os ensaios.
Noel é aprovado no vestibular. Tangenciando a média mínima exigida,
consegue uma parcimoniosa 3,6. Mas que importância tem isso se o resultado
leva alegria aos moradores do chalé? É um acadêmico de medicina, um futuro
doutor, um jovem caminhando para abraçar a profissão do bisavô, do avô, do tio,
uma tradição de família em torno da mais nobre de todas as carreiras. A música,
acredita-se, passa agora a segundo plano. Como uma brincadeira de horas vagas,
domingos e feriados.
Mas Noel pensa diferente, talvez acreditando que possa conciliar as duas
atividades, repartindo-se meio a meio entre elas (ou quem sabe reservando à
música fatia um pouco maior). Vencido o vestibular, trata de cumprir a promessa
a Frazão e vai ao teatro ajudar o maestro Cristóbal a ensaiar os atores que
interpretarão suas músicas.
Coincidência curiosa, como se a confirmar sua intenção de harmonizar o
estetoscópio com o violão: a 24 de abril, exatamente no mesmo dia em que se
matricula sob o número 572 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Café
Com Música, contendo oito composições suas, estréia no Recreio. Nos cartazes
pintados a mão, expostos de um lado e do outro da fachada do teatro, seu nome
encabeça a relação de compositores. Ary Barroso, homem tão talentoso quanto
ciumento, não gosta: - O nome dele na frente do meu, Frazão?
- Sim.
- Mas é apenas um novato.
- Um novato que fez a maioria das músicas da peça.
Se nos anúncios publicados nos jornais haverá uma inversão, o nome de
Noel passando para último, nos cartazes, por ordem de Frazão, ele continuará em
primeiro. Afinal, são oito composições suas, mais do que de qualquer outro,
inclusive Ary. Dessas oito, porém, apenas três são realmente novas, seus
lançamentos se dando em Café Com Música. Porque as outras - Com Que
Roupa?, Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso, Por Esta Vez Passa e Dona Aracy
(que a própria Aracy Cortes vai cantar com novos versos de Frazão) - já foram
gravadas e andaram na boca do povo no último carnaval. Das inéditas, uma logo
cairá no esquecimento: Vaidosa(1) 1. Ver nota sobre Vaidosa na relação das obras de Noel Rosa no final do volume.

Já as outras duas não são menos que obras-primas: Gago Apaixonado e


Quem Dá Mais?. E embora não causem de imediato a impressão que seria justo
esperar, músicas e letras cobertas de encanto, humor e originalidade, o tempo há
de mostrar que os dois sambas nada devem a Com Que Roupa?.
Diz Noel que Gago Apaixonado foi feito na Praça 7, numa noite em que a
cidade era agitada por um daqueles corre-corres que se seguiram à posse de
Getúlio Vargas como chefe do Governo Provisório: tiroteios entre soldados no
Mangue e na Lapa, arruaças provocadas por fuzileiros em Madureira, conflito
entre militares e policiais em Niterói, invasão de botequins, saques de bebidas,
depredações. Indiferente a tudo isso, Noel teria feito o samba para o amigo
Manuel Barreiros, o Barreirinha, cuja tartamudez agravara-se muito em razão de
um amor não-correspondido. Verdade? Ou mais uma de suas histórias? De um
modo ou de outro, é mesmo um samba genial. Caberá a Mesquitinha lançá-lo no
palco do Recreio, mas quem será, para sempre, seu intérprete ideal é o próprio
Noel. E ele parece saber disso. Numa entrevista do ano que vem, lhe
perguntarão: "- De suas criações, qual a que mais lhe agrada? E por quê?"
Resposta:
"-É o samba Gago Apaixonado, porque, além de ser original, os meus
vizinhos e os seus papagaios não conseguem cantá-lo"(2) 2. O Cruzeiro, 27 de agosto de 1932.

Daqui em diante, onde quer que se apresente, o samba será número


obrigatório, como que uma pièce de resistance de suas exibições, o público
sempre contagiado por este seu modo de combinar tudo - melodia, ritmo, letra,
pausas, acordes - num aflitivo gaguejar. Um número irresistível que, para júbilo
de futuros ouvintes, Noel perpetuará em disco, ele na voz e no violão, Napoleão
Tavares no pistom com surdina, Luís Americano na clarineta, Luís Barbosa no
seu insólito "instrumento de percussão", um lápis com o qual tamborila nos
próprios dentes, abrindo e fechando a boca de modo a obter com isso efeitos
rítmicos ora mais graves, ora mais agudos.
Mu. mu. mulher
Em mimi fi. fizeste um estrago
Eu de nervoso estô. tou fi. ficando gago
Não po. posso
Com a cru. crueldade
Da saudade
Que. que mal. maldade
Vi. vivo sem afago

Tem. tem pe. pena


Deste mo. mo. moribundo
Que. que já virou
Va. va. ga. gabundo
Só. só. só. só
Por ter so. so. fri. frido
tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu.
Tu tens um co. coração fingido!

Teu. teu co. coração


Me entregaste
De. de. pois. pois.
De mim tu to. toma. maste
Tu. tua falsi. si. sidade
É profu. funda
Tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu.
Tu vais fi. fi. ficar corcunda!

Quem Dá Mais? será conhecido também pelo título do quadro em que é


lançado na peça: Leilão do Brasil. E é mesmo um leilão, uma notável crônica do
país - mais uma - segundo Noel Rosa. Traçada com graça, ironia, espírito crítico,
sobre ela seria válido escrever-se todo um ensaio. Está dividida em três blocos,
em cada um dos quais é leiloada uma riqueza brasileira: a mulata, o violão e o
samba. A mulata de que fala Noel é o seu tipo preferido de mulher. Na cor da
pele, no amor ao samba, na formosura, na malícia. Quem a compra são os
portugueses do Vasco da Gama. No ano passado eles gastaram uma fortuna para
elegerem seu center forward Russinho, o jogador mais popular do Brasil num
concurso patrocinado pela Companhia de Fumos Veado. Graças aos maços de
cigarro comprados com o dinheiro dos graudões do comércio de secos
emolhados, o primeiro prêmio, uma reluzente baratinha Chrysler, foi parar nas
mãos de Russinho(3).
3. O Grande Concurso Nacional Monroe, patrocinado pela Companhia de Fumos Veado com o apoio do Diário da Noite, mexeu com a cidade em meados de 1930. Diante de multidões de
curiosos, caminhões repletos de sacos contendo votos (maços de cigarros Monroe, Palace, Rio Chie, Royal Club, Icarahy, Yankee e Cascatinha) chegavam todos os dias à sede da fábrica, à redação do
jornal e ao Teatro Lyrico, onde ficavam as urnas. Numa edição extraordinária de 4 de junho daquele ano, o Diário de Notícias divulgava o resultado final: primeiro Russinho, do Vasco da Gama, com 2
milhões 900 mil 649 votos; segundo Fortes, do Fluminense, 2 milhões 481 mil 483; terceiro Filo, do Corinthians Paulista, 722 mil 563; quarto Friedenreich, do São Paulo, 319 mil 563. Russinho, Moacyr
de Siqueira Queiroz, recebeu sua barata Chrysler numa festa no Teatro Lyrico que teve como mestre de cerimônias o ator e cantor Raul Roulien.

A respeito do violão, duas observações não podem deixar de ser feitas: a da


pobreza de um país de cuja independência o patriarca tem bolsos tão vazios que
é forçado a pôr no prego o violão do Imperador; e o fato de o lote ser arrematado
por um judeu. Este verso é um dos dois que valerão a Noel, muitos anos depois
de sua morte, -a acusação de anti-semita. Mas quem se lembrar do que
representou a figura do prestamista em sua infância (e de como judeu era a
denominação genérica, ainda que imprópria, daquele tipo de comerciante) sabe o
que ele está querendo dizer.
O samba em questão é mesmo o do Salgueiro. Ou de todos os morros da
cidade. Noel fixa com exatidão as regras deste samba, sem introdução, sem
segunda parte, como os negros lá de cima fazem, um simples estribilho para que
a partir dele se improvisem infinitamente versos que bem podem exprimir dois
terços do Rio de Janeiro.
Quem dá mais...

Por uma mulata


que é diplomada
Em matéria de samba
e de batucada
Com as qualidades
de moça formosa
Fiteira, vaidosa
e muito mentirosa...?
Cinco mil réis,
200 mil réis,
um conto de réis!
Ninguém dá mais
de um conto de réis?

O Vasco paga
o lote na batata
E em vez de barata
Oferece ao Russinho
uma mulata.
Quem dá mais...
Por um violão
que toca em falsete,
Que só não tem braço,
fundo e cavalete,
Pertenceu a dom Pedro,
morou no palácio,
Foi posto no prego
por José Bonifácio?

Vinte mil réis,

21 e 500,
50 mil réis!
Ninguém dá mais
de 50 mil réis?

Quem arremata
o lote é um judeu,
Quem garante sou eu,
Pra vendê-lo
pelo dobro no museu.
Quem dá mais...
Por um samba feito
nas regras da arte,
Sem introdução
e sem segunda parte,
Só tem estribilho,
nasceu no Salgueiro,
E exprime dois terços
do Rio de Janeiro.
Quem dá mais?
Quem é que dá mais
de um conto de réis?
Quem dá mais?
Quem dá mais?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!

Quanto é que vai


ganhar o leiloeiro,
Que é também brasileiro,
E em três lotes vendeu
o Brasil inteiro?
Quem dá mais...?

A exemplo de Gago Apaixonado, o próprio Noel gravará este samba. Mas


só no ano que vem. E com tal brilho que será impossível imaginá-lo tão bem
cantado por alguém mais.
A revista de Eratósthenes Frazão e seus amigos é bem recebida. A crítica
elogia as atuações de Aracy Cortes, Mesquitinha, Ítala Ferreira, todo o elenco.
Acha engraçados os sketches, adequada a direção de João de Deus, bons os
balés. Mas não vê com muito entusiasmo a contribuição de Noel Rosa. Como
acontece com este crítico anônimo: "A parte musical, se não tem originalidade,
também não é inferior à de outras revistas. Poder-se-á talvez fazer restrições ao
excesso de roupas com que vestiram a revista e à distribuição feita à Sra. Aracy
Cortes, que não lhe dá qualquer oportunidade. Demais, um dos autores, o Sr.
Noel Rosa, sendo, como é, um sambista consagrado, poderia ter encaixado entre
aqueles 28 quadros um samba ao menos que lhe não desmerecesse a nomeada
que obteve com o famoso Com Que Roupa?."(4) 4. De um recorte colado por Noel em seu álbum, sem indicação de data e nome
do jornal, mas certamente de abril de 1931.

Pobre crítico a quem faltou paladar apurado o bastante para apreciar os


saborosos pratos que são Gago Apaixonado e Quem Dá Mais?.
Noel Rosa é mesmo um tangará desgarrado. Ou mais que isso. Desde fins
do ano passado, quando das gravações de Dona Aracy e Dona Emília, não se
apresenta com o conjunto. Chegou até a confessar, nas entrelinhas de uma
entrevista publicada no domingo de carnaval, seu desejo de afastar-se de
Almirante e sua turma, tornando-se parte de um novo grupo musical a ser
formado em Vila Isabel: "Este ano vamos representar o bairro de Vila Isabel
com um 'conjunto junto' (não repare a expressão) que se denominará Bacharéis
da Vila, onde serão cantadas, por deferência de meus amigos, as minhas
composições. Fui indicado para ser o 'diretor de cordas', e o Canuto será o
diretor de tamborins e cuícas. Entre outros companheiros meus que fulguram no
referido grupo, o Manuel Anacleto surge como um dos astros de primeira
grandeza no tamborim. E o Waldemar Corrêa (sic) voltará a cantar, com a voz
trêmula de emoção: 'Eu tenho um sentimento profundo...'"(5) 5. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931.
O jornal erra ao chamar o Waldemar Coroa de Waldemar Corrêa.

Os Bacharéis da Vila ficaram na intenção (aliás, o nome do conjunto tinha


procedência, pois foi o primeiro carnaval de Noel como bacharel em ciências e
letras, enquanto Anacleto já era acadêmico de direito desde 1930). Mas por que
um novo conjunto? E o que significa essa história de "conjunto junto"? Não
estará junto, por acaso, o Bando de Tangarás ? É sempre difícil tirar conclusões
confiáveis das entrevistas de Noel. De qualquer modo, se considerarmos que os
tangarás têm gravado tão pouco dele (Com Que Roupa? talvez ainda lhe esteja
atravessado na goela) e que os Bacharéis da Vila só cantariam músicas suas, é
possível encontrar algum sentido no projeto.
O fato é que Noel Rosa vai demorar algum tempo para reintegrar-se aos
tangarás. Passam-se abril, maio, junho, julho, e o máximo que o une a Almirante
e seus comandados são encontros ocasionais nas esquinas do bairro ou em
emissoras de rádio. Durante esses quatro meses, o conjunto grava doze faixas
para o selo Parlophon. Com dez delas Noel nada tem a ver. E as duas restantes,
embora sejam composições suas, foram soladas por gente de fora: Paulo Netto
de Freitas, que grava Sinhá Ritinha, e a dama da alta sociedade, Lucilla, cujo
disco de estréia tem de um lado Que Mal Eu Fiz a Você, de André Filho, e do
outro Agora, samba de Noel Rosa:
Agora,
quem chora é quem me fez sofrer
Eu bem sabia que tu ias padecer
Hoje te vejo penando e procurando
Quem queira contigo viver
Tenho certeza
De que pensas em voltar
Mas, que tristeza!
Jâ cansei de perdoar.
Tu foste embora,
Amenizaste minha vida,
Só por isso vou agora
Bendizer tua saída
Sempre vivi
Aturando desaforo.
Já decidi:
Não quero saber de choro,
Pois sou bem forte
E não lastimo estar a sós.
Cada qual com sua sorte:
Deus ajuda a todos nós.

A reaproximação só se dá a 1.° de agosto, no Cassino Beira-Mar, onde a


Odeon organiza um festival para promover os artistas do elenco Parlophon, os
tangarás entre eles. Generoso Ponce, da empresa Ponce & Irmão, proprietária de
alguns cineteatros da cidade, está na platéia. Gosta do conjunto, convida-o para
exibir-se num de seus cinemas, o Eldorado. Serão sete espetáculos, de 3 a 9 de
agosto, antecedendo a projeção do filme nacional Iracema(6).
6. Produção de 1931 da Metrópole Films, São Paulo. Baseado no romance de José de Alencar, direção de Jorge Konchin, com Dona Fleury, Irene Rudner, Álvaro Lacerda, Diogo Miranda e
Carmo Nacarato nos papéis principais.

O próprio Generoso Ponce sugere o título da curta temporada: Semana


Brasileira.
Almirante logo se interessa. Mas enfrenta dois problemas: o pouco tempo
para a organização do espetáculo, apenas dois dias para reunir os artistas,
escolher repertório, ensaiar; e a recusa de João de Barro e Alvinho de se
apresentarem em público numa função paga, muito diferente dos amadorísticos
recitais em clubes e mesmo da noitada promocional da Odeon. Afinal, os
tangarás são ou não são amadores? João de Barro e Alvinho não querem causar
dissabores às suas famílias cantando - imaginem! - num cinema. Almirante vai
recompor o conjunto convocando os violões de Jacy Pereira, o Gorgulho,
Helvécio de Barros e Hélio Rosa. Estes, mais Noel, Henrique Britto, Paulo Netto
de Freitas e a cantora Elisinha Coelho, formam o elenco da Semana Brasileira,
no Eldorado, bem ao lado do Café Nice. Nesses espetáculos, em cujos
programas sua caricatura e a de Paulo aparecem em destaque, mais uma vez
Com Que Roupa? e Gago Apaixonado são os trunfos de Noel.
Dois meses depois de ter assistido à sua primeira aula na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Noel já tinha plena consciência de que não ficará ali
por muito tempo. Não confessa isso a muita gente. Apenas a um ou outro amigo,
como Lauro de Abreu Coutinho, já terceiranista do mesmo curso. Os dois se
encontram na esquina da Avenida Passos com General Câmara(7).
7. A Rua General Câmara é uma das que desapareceram para dar lugar à atual Avenida Presidente Vargas.

-Está gostando do curso?- pergunta-lhe o amigo.


Não sei, não, Lauro. Acho que esse negócio de fazer samba e medicina ao
mesmo tempo não vai dar certo.
- Está pensando em escolher entre uma coisa e outra?
- Sim.
- Fica com a medicina?
- Não, com o samba.
Lauro de Abreu Coutinho, o primeiro aluno da turma de Noel no São
Bento, um dos mais compenetrados de todo o colégio, hoje levando ainda mais a
sério a medicina(8), espanta-se com o que lhe diz o amigo.
8. Lauro de Abreu Coutinho realmente se formaria em medicina, tornando-se conceituado radiologista com clínica no Rio. Foi em seu consultório, na Rua Alcindo Guanabara, durante um
dos dois longos depoimentos feitos aos autores, que ele recordou o encontro com Noel na esquina da Avenida Passos com General Câmara.

Como é possível alguém trocar a medicina pelo samba?


- Veja uma coisa, Lauro: como médico eu jamais serei um Miguel Couto.
Mas quem sabe não poderei ser o Miguel Couto do samba?
Sua passagem pela faculdade faz-se - mais do que se pensará um dia -
silenciosa e efêmera. Quase não é notado, limitando sua presença a algumas
aulas de fisiologia e histologia na Praia Vermelha e a outras tantas de anatomia
na Santa Casa da Misericórdia, na Rua Santa Luzia. Sequer comparece às
primeiras provas parciais e não voltará para o segundo semestre, dizendo a todo
o mundo que trancou matrícula para recomeçar o curso "a qualquer hora dessas".
Só no ano que vem, já definitivamente assentado na profissão de compositor e
cantor de rádio, falará claramente de sua decisão de trocar a medicina pelo
samba. Por isso, muitos pensarão que ele só o fará no segundo ou mesmo no
terceiro ano, quando na verdade já o fez antes da metade do primeiro(9).
9. Os arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, são elucidativos. Neles - e em depoimentos vários - os
autores se basearam para desfazerem a equivocada afirmativa de que Noel Rosa parou no segundo ou no terceiro ano, quando na verdade o fez na metade do primeiro.

Efêmera, sem dúvida, mas não de todo silenciosa. Pois a medicina serviu ao
menos para inspirá-lo na criação de um de seus mais apreciados sambas,
composto ainda no primeiro semestre de 1931: Coração. Classificado pelo
próprio Noel como "samba anatômico", é um curioso jogo de imagens, a
anatomia e a fisiologia do coração confrontadas com o seu significado
simbólico. A melodia é muito bonita. Eis a letra original:
Coração,
grande órgão propulsor,
Transformador do sangue
venoso em arterial
Coração,
não és sentimental,
Mas entretanto dizem
que és o cofre da paixão.

Coração,
não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
eis a verdade.
Tu és
pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade.

Coração
de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio,
Mas não ataca o coração.

Conheci
um sujeito convencido
Com mania de grandeza
e instinto de nobreza,
Que por saber
que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
sem pensar no seu futuro.

Não achando
quem lhe arrancasse as veias,
Onde corre o sangue impuro,
Viajou a procurar de norte a sul
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.

Noel não fez muitos amigos na faculdade. Randoval Montenegro é um, a


música mais que a medicina aproximando-os. Randoval é pianista, também
compõe, terá músicas suas gravadas por Carmem Miranda e outros cantores(10).
10. Só Carmem Miranda gravou quatro composições de Randoval Montenegro, a melhor delas Para Um Samba de Cadência.

Carlos Henrique Fernandes é outro. Herculano Mesquita de Siqueira, outro


mais. Nicandro Ildefonso Bittencourt, mais um, a quem Noel confidencia a
propósito de seu "samba anatômico": - É a primeira vantagem que tiro da
desgraça de ser obrigado a estudar medicina!(11) 11. Frase citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição
(página 103), e confirmada aos autores pelo Dr. Nicandro Ildefonso Bittencourt.

Uma vantagem que, segundo consta, nasceu após uma aula na Santa Casa,
Noel e alguns colegas parando para conversar no Café Nice. Ali, partindo de
uma descrição nada poética do "cofre da paixão", feita por um dos assistentes do
catedrático Fróes da Fonseca, escreveu o samba. Uma lição mal-aprendida, diga-
se, pois não cabe ao coração transformar o sangue venoso em arterial. Noel
gravou a letra com essa impropriedade e tentou corrigi-la nas edições impressas,
desta forma:
Coração, grande órgão propulsor,
Distribuidor do sangue venoso em arterial...

Emenda pior que o soneto. Tempos depois, nova correção será feita por
Noel, mas não nestes versos. Num caderno escolar onde começa a guardar suas
letras, faz de próprio punho uma alteração no fecho do samba que jamais será
gravada ou editada:
Alguém capaz de trocar o seu sangue
Por azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.

Cantar o seu bairro, a sua cidade, o seu país. Retratar os personagens que
trafegam por aí, focalizar os episódios que testemunha, captar o espírito de tudo
isso, eis o destino de Noel Rosa, poeta e cronista. Neste 1931, mais cronista que
poeta, pois quase todas as músicas que lança têm sabor de crônica. Do Brasil, de
seus absurdos, sua gente, suas contradições. Como em Quem Dá Mais?. Ou
como neste sugestivo Samba da Boa Vontade, de parceria com João de Barro.
Sua perenidade é de tal ordem que daqui a mais de meio século ainda caberá
como uma luva no país em que Noel nasceu. Um samba que vale como uma aula
de economia, Noel deixando claro o que pensa do capitalismo que acaba de se
confirmar como o sistema escolhido pelos neo-republicanos para administrarem
o Brasil: os ricos podem gastar seu dinheiro à vontade, pois ele sempre acaba
voltando às suas mãos. Um estranho país que espera alcançar o grau de
desenvolvimento dos europeus atirando o seu café ao mar. E que - como pede
Getúlio Vargas, conservando seu sorriso - exige de seu povo não apenas
sacrifícios, mas acima de tudo boa vontade:
- Campanha da boa vontade!

- Viver alegre hoje é preciso,


- Conserva sempre o teu sorriso,
- Mesmo que a vida esteja feia
- E que vivas na pinimba,
- Passando a pirão de areia

- Gastei o teu dinheiro,


Mas não tive compaixão
Porque tenho a certeza
Que ele volta à tua mão.
Se ele acaso não voltar,
Eu te pago com sorriso
E o recibo hás de passar
(Nesta questão solução sei dar)

Neste Brasil tão grande


Não se deve ser mesquinho
Quem ganha na avareza
Sempre perde no carinho
Não admito ninharia
Pois qualquer economia
Sempre acaba em porcaria
(Minha barriga não está vazia)

Comparo o meu Brasil


A uma criança perdulária
Que anda sem vintém
Mas tem a mãe que é milionária
E que jurou, batendo o pé,
Que iremos à Europa
Num aterro de café(12)
(Nisto eu sempre tive fé)
12. Foi em junho de 1931 que, pressionado pelos produtores, Getúlio Vargas determinou que se queimassem ou atirassem ao mar cerca de três milhões de sacas de café estocadas por falta de
comprador. Ir à Europa num aterro de café é imagem que pode ser tomada em pelo menos dois sentidos: o literal, isto é, o de um país perdulário destruindo o seu principal produto; e o figurado, o café
servindo para aterrar o oceano que separa o subdesenvolvido Brasil da adiantada Europa. Sonho antigo, diga-se.

O cronista está presente também em Cordiais Saudações, um delicioso


"samba epistolar" nos falando de dívidas e devedores, cobradores (mais uma vez
representados pelo judeu) e maus pagadores, temas de Noel:
(Cordiais saudações!)
Estimo que este mal traçado samba,
No estilo rude da intimidade,
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
(Junto dos teus, confio em Deus)

Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje sinto saudades
Daqueles 10 mil réis que eu te emprestei.
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho,
Um chute na empregada,
Porque já se acabou o meu carinho.

A vida cá em casa está horrível,


Ando empenhado nas mãos de um judeu.
O meu coração vive amargurado
Pois minha sogra ainda não morreu
(Tomou veneno e quem pagou fui eu)

Sem mais, para acabar,


Um grande abraço queira aceitar
De alguém que está com fome,
Atrás de algum convite pra jantar.
Espero que notes bem
Estou agora sem um vintém.
Podendo, mandame algum...
Rio, 7 de setembro de 31!
(Responde que eu pago o selo...)

A interrupção da linha melódica de um samba para que nele se insira um


comentário poético-musical, recurso popularmente conhecido como breque (do
inglês break, freio, ruptura, pausa), já não é novidade. Cordiais Saudações
contém quatro, os que estão entre parênteses na letra acima. Noel Rosa aprecia
como poucos essa tirada musical tão carioca, sinuosa, cheia de malandrice. E a
utiliza com alguma freqüência. Quem Dá Mais?, Com Que Roupa?e Samba da
Boa Vontade são exemplos. O breque é elemento precioso a que o cronista volta
e meia recorrerá pelo menos nestes primeiros quatro anos de carreira.
Um cronista a zombar como pode da confusão em que se vê metido o Brasil
após uma revolução de causas e efeitos imprecisos, cores vagas, filosofias
hesitantes, ideologias camufladas. O que mudou afinal? Para que se fez a
revolução? Como o novo chefe da repartição que chega para fazer mudanças - e,
não sabendo o que mudar, muda apenas a posição das mesas - o novo presidente
baixa decreto limitando a imigração, institui um imposto de emergência, mexe
na hora brasileira, reforma a ortografia, nada mais profundo. A questão da hora -
adiantamento em 60 minutos de todos os relógios do país - intriga Noel. Para
que a mudança? Para que o dia comece mais cedo ou para que não acabe tão
tarde? Confusão. Alguém pergunta a alguém: - Que horas são, por favor?
- Pela nova ou pela antiga?
Marcam-se encontros por ponteiros diferentes, um chega cedo, o outro se
atrasa. Negócios deixam de ser feitos, namoros são rompidos, o Brasil inteiro
parece perguntar que horas são. Ou que governo é este. Noel fixa a confusão
geral em dois sambas, o primeiro deles intitulado O Pulo da Hora ou, mais
sugestivamente, Que Horas São?
Que horas são?
Eu venho agora
Saber a hora
Que o ponteiro está marcando
No relógio da senhora.

Minha mulher
Sempre quer me dar pancada
Quando eu olho o mostrador
Do relógio da empregada.

E eu já danado
Com intriga e com trancinha
Arranquei hoje o cabelo
Do relógio da vizinha.

Fiquem sabendo
Os senhores e as senhoras
Que o pai da minha pequena
Me manda embora às 10 horas,
Mas a pequena,
Que é sabida e muito sonsa,
Com este pulo da hora
Já deu o pulo da onça.

Há muito tempo
Briguei com o batedor,
Troquei de mal com as horas,
Quebrei o despertador.

O meu relógio
Anda agora viciado
De tanto andar no meu bolso,
Ele anda sempre atrasado.

Noel parece gostar muito deste samba que ele mesmo grava no selo
Parlophon. Tanto que continuará produzindo acréscimos que não chegarão ao
disco, mas que serão registrados no seu caderno de letras. Neles, em O Pulo da
Hora, em vez de duplas leituras como as sugeridas acima ("mostrador",
"cabelo", "atrasado(s)"), Noel prefere falar da paz perdida pelo brasileiro por
causa da hora e voltar a um velho personagem de sua história: o credor.
O meu relógio
É de ouro brasileiro
Trabalha bem sem a corda,
Sem ter vidro nem ponteiro.

Em minha casa
Surgiu hoje uma briga,
Meu credor usa a moderna
E eu adoto a hora antiga.

O carioca
Perdeu a calma e a paz:
A hora pulou pra frente
E a nota pulou pra trás.

Mas eu agora
Já gostei desse brinquedo,
Para me vingar da hora
Janto três horas mais cedo.

O segundo samba sobre o tema, Por Causa da Hora, é ainda melhor. Tanto
na melodia como na letra, Noel traduzindo o caos reinante em dois versos do
mais absoluto non sense, o brasileiro sem saber o que diz e o que faz:
Olho, ninguém me responde,
Chamo, não vejo ninguém...

Mas vale a pena conhecer o samba por inteiro:


Meu bem, veja quanto sou sincero:
No poste sempre eu espero,
Procuro bonde por bonde
E você nunca que vem.
Olho, ninguém me responde,
Chamo, não vejo ninguém...

Talvez seja por causa dos relógios,


Que estão adiantados uma hora,
Que eu triste vou-me embora
Sempre a pensar por que
Não encontro mais você.

Terei que dar um beiço adiantado,


Com o adiantamento de uma hora.
Como vou pagar agora
Tudo o que comprei a prazo,
Se ando com um mês de atraso?

Eu que sempre dormi durante o dia


Ganhei mais uma hora pra descanso
Agradeço ao avanço
De uma hora no ponteiro.
Viva o dia brasileiro!

A reforma ortográfica - na verdade um acordo assinado a 30 de maio deste


1931 entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa
- não partiu do Governo. Mas foi por este convertida em decreto depois que os
nossos imortais, atendendo aos interesses das editoras portuguesas (que
pretendiam uniformizar o idioma de modo a que seus livros vendessem mais por
aqui), firmaram o tal acordo. O cronista vai compor um "samba fonético"
intitulado Picilone(13), em que mistura vários assuntos, a cassação do y, uma
homenagem à pequenina Yypne (irmã de seu amigo Sebastião da Silva Ferreira),
expressões populares como "os olhos fora da caixa", molecagens sonoras
traduzidas nos grunhidos que ele e João de Barro emitirão entre uma estrofe e
outra da gravação.
13. Na gíria da época, picilone, forma popular de ípsilon, queria dizer elogio, lisonja, galanteio.

Yvone! Yvone!
Eu ando roxo pra te dizer um picilone!

Já reparei outro dia


Que o teu nome, ó Yvone,
Na nova ortografia
Já perdeu o picilone.

É pra ganhar simpatia


Que todo mundo se abaixa
Pra te fazer cortesia
Com os olhos fora da caixa.

Tem uma vida folgada,


Não faz mais nada a Yvone,
Até já tem empregada
Para atender telefone.

Cansei de andar só de tanga,


Já perdi a paciência,
Fui te encontrar na Kananga(14)
Mas não me deste audiência.
14. Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Kananga do Japão. Funcionou primeiro na Barão de São Félix e depois na Senador Euzébio. É a mesma do trocadilho "haja... pão" da parte
discursada de Tenentes... do Diabo (ver boxe neste mesmo Capítulo).

Cronista de um país que, pouco mudando, continua passando fome. Drama


que o humor carioca, autocrítico e autodebochado, sempre pronto a gracejar da
própria desdita, pode transformar em tragicomédia. É o que Noel faz com este
Não Me Deixam Comer, gravado pelo humorista de rádio e teatro Pinto Filho,
que, de pois de uma introdução falada em tom que chega a tornar-se
pateticamente lamuriento, canta as tristezas de não poder dormir, gastar e comer
nestes tempos de crise e pobreza:
Todos brincam,
fazem farra,
gastam o Dinheiro.
E eu quero gastar mas não posso.
Ninguém vive sem comer.
Eu, no entanto,
Quero comer mas não posso.

Até os Cachorros têm o direito de dormir.


Eu quero Dormir mas não posso!
Gostar de dança e da orgia,
Ser fuzarqueira é o teu orgulho,
Tocas vitrola noite e dia
E agora durma-se com este barulho!
Quero dormir, não posso...
Quero dormir, não posso...
Eu tenho um troço
Que me aborrece:
Já não janto nem almoço.

Andas atrás da minha nota,


Queres tomar o meu salário,
E mesmo até no agiota
Tu já passaste o conto do vigário!
Quero gastar, não posso...
Quero gastar, não posso...
Eu tenho um troço
Que me aborrece:
Já não janto nem almoço.

A cozinheira já não dorme,


Pois a patroa só mastiga.
A tua fome é tão enorme
Que tens a boca maior do que a barriga!

Quero comer, não posso...


Quero comer, não posso...
Eu tenho um troço
Que me aborrece:
Já não janto nem almoço.

Críticas políticas, frontais, abertas, com todos os pingos nos is, Noel Rosa
não é ousado o bastante para fazê-las. Nem ele, nem nenhum compositor destes
tempos, a maioria por sinal interessada em render homenagens ao novo
presidente. Mas sempre é possível recorrer ao duplo sentido, como faz Noel,
com a cumplicidade do Visconde de Bicohyba e Henrique Vogeler, na marcha a
que dão o nome de Tenentes... do Diabo.
Visconde de Bicohyba - pseudônimo que Horácio Dantas adota desde que
Humberto de Campos o levou para trabalhar com ele na revista semanal A Maçã
- com nossa combinação de jornalista, humorista político, boêmio e compositor
popular de horas vagas. Será parceiro de José Luís de Moraes, o Caninha, na
buliçosa É Batucada:
Samba de morro não é samba,
É batucada! É batucada! É batucada!

Sócio, freqüentador ou mesmo membro de diretoria de várias agremiações


carnavalescas, inclusive a dos Tenentes do Diabo. Um folião desses de sair já na
manhã de sábado fantasiado de mulher ou de um figurão da política, quando não
deitado num caixão, as mãos cruzadas sobre o peito, servindo de defunto num
daqueles enterros simbólicos que os blocos de sujo realizam pela Galeria
Cruzeiro. Como Noel, um gozador. Alegre, engraçado, amante da vida. Por isso
ninguém, nem a família, nem o amigo mais íntimo, compreenderá sua decisão de
deixá-la tão cedo: com pouco mais de quarenta anos, vai se matar com
formicida.
Henrique Vogeler é personagem mais interessante que Bicohyba, embora
não tão trágico. E muito mais importante do ponto de vista musical. Um dos dois
produtos bem-sucedidos que se conhece de casamento de louro alemão com
mulata brasileira (o outro é Arthur Friedenreich, dito El Tigre, até aqui o maior
ídolo a pisar um gramado de futebol do Brasil), Vogeler preza os dois lados de
sua ascendência: nunca se envergonhou de sua mulatice (ao contrário de
Friedenreich).
É um afável e espirituoso carioca do Catumbi, já com 42 anos neste 1931,
mas tão jovem quanto Noel. Como este, estudou no São Bento, só que uns vinte
anos antes. Invejavelmente afortunado com o sexo oposto e incrivelmente
desprendido com o dinheiro. Sobre tais qualidades contam-se muitas histórias.
Das paixões que desperta nas coristas de peças para as quais escreve música. E
de pelo menos um gesto magnânimo: no dia em que ganhou dez contos de réis
num concurso internacional de composição, passou oito graciosamente às mãos
da empresária Maria Amorim, que ameaçava suicidar-se caso não pudesse pagar
as dívidas acumuladas após a produção de meia dúzia de fracassos teatrais. Fala-
se muito, também, de uma gafe que teria cometido quando diretor musical da
Brunswick: mandou embora uma portuguesinha que cantava tangos, uma certa
Carmem Miranda, deixando-a escapar para o cast da Victor. Pecado do qual se
redimiria plenamente ao descobrir para o disco um caboclinho de São Cristóvão
chamado Sílvio Narciso do Figueiredo Caldas.
Henrique Vogeler, por mais que se tenha enganado no caso de Carmem, é
grande músico. Completo, inspiradíssimo. Começou compondo e tocando peças
para piano nos moldes das de Ernesto Nazareth (a quem substituiu muitas vezes
na sala de espera do Cinema Odeon) e vai acabar como uma espécie de braço
direito de Villa-Lobos nos quadros da Superintendência Musical e Artística,
órgão a ser criado sob as bênçãos de Getúlio Vargas. Entre uma coisa e outra,
em razão de longa e apaixonada ligação com o teatro, Vogeler escreve de tudo.
Um ecletismo que o transporta das canções mais simples, despretensiosas, para
quadros humorísticos, a obras mais elaboradas como Linda Flor (também
conhecida como Ai, Ioiô), belíssima, destinada à imortalidade entre outros
motivos porque os estudiosos da música popular verão nela a primeira a merecer
o rótulo de "samba-canção", abertura de caminhos melódicos e harmônicos que
muitos compositores, Noel Rosa inclusive, haverão de percorrer(15).
15. José Ramos Tinhorão, em cuja Música Popular - Teatro & Cinema foi colhida a maioria dos dados aqui expostos sobre Henrique Vogeler, é um dos que defendem tal primazia para o
compositor. Diz ele em sua Pequena História da Música Popular - da Modinha à Canção de Protesto (páginas 151-152): "A paixão de Henrique Vogeler se explicava, naturalmente, pela consciência de ter
criado alguma coisa de novo para a época, em termos de canção. E a prova estaria em que, apesar do Linda Flor ter passado despercebido no teatro, Vogeler ia fazer com que o cantor Vicente Celestino o
gravasse imediatamente em disco Odeon, de selo azul, quando aparece pela primeira vez numa etiqueta a expressão samba-canção brasileiro."

Tem indisfarçável influência teatral a primeira composição que Noel e


Henrique Vogeler fazem juntos. Uma esquisita peça para ser cantada em dueto,
singular tanto na construção rítmica e melódica como nos versos displicentes
mas sonoros. Chama-se Rumba da Meia-Noite e é gravada por Dina Marques e
Leonel das Neves entre arrancos de orquestra e repicar de sinos.

Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
E o que queres tu que eu faça
Se o samba é minha cachaça
E a tristeza passa?
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
No samba vivemos nós dois
E viva Deus e chova arroz!
O resto vem depois
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Ó morena feiticeira,
Coração de tamborim
Quando canta a noite inteira
Sem talvez lembrar de mim
Ela:
Se tu és bom brasileiro
E dançares bem assim
Seja alegre e prazenteiro
Venha pra perto de mim
Ele:
O samba sempre crescendo
Não é coisa que se faça
A lua se escondendo
Mostrando que tudo passa
Ela:
Se a lua se esconder
O sol começa a nascer
Pra não deixar morrer
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Os dois:
Oi, uma, duas, três e quatro,
Cinco, seis, sete, oito, nove,
Dez e onze e meia-noite
Já passou... tudo acabou.

Quanto a Tenentes... do Diabo, também deve muito ao estilo teatral de


Vogeler, somado ao humor crítico de Bicohyba e Noel. Trata-se de uma
brincadeira, meio discursada, meio cantada. Um jogo de palavras, os
significados fazendo-se dúbios em vários instantes (ver boxe). Os Tenentes do
Diabo, a sociedade carnavalesca carioca, confundem-se com os tenentes da
política; os Democratas, sociedade rival daquela, com os democratas que
começam a discordar dos rumos que toma a Revolução de 30; a mudança dos
estatutos da mesma sociedade com a reforma da Constituição, anseio que vai
resultar em nova revolução no ano que vem; botar o carnaval na rua com pôr as
tropas nas ruas outra vez. Também se confundem o preto e o vermelho, fascismo
e comunismo, nas cores dos Tenentes do Diabo e na própria indefinição
ideológica reinante. Num aos trechos da parte discursada da gravação, Ildefonso
Norat baixa sugestivamente o tom de voz para dizer:"... sejam os mesmos
intimados a remeter à nossa secretaria uma estampilha e dois retratinhos, a fim
de ver o que podemos fazer por eles..." É a primeira - e não será a última - alusão
encontrada em música de Noel Rosa a um dos jargões demagógicos mais
comuns do atual governo. Getúlio Vargas, espertamente, determinou que as
repartições públicas jamais dissessem "não" aos que recorressem aos seus
balcões e guichês. O "não", sabe o novo presidente, é o maior inimigo da
popularidade, palavra proibida num governo que prega o sorriso, a esperança, a
boa vontade. Por isso, não podendo dizer "sim" e não devendo dizer "não", o
funcionário da repartição sai-se invariavelmente com esta: - Por gentileza,
cavalheiro, traga-me uma estampilha e um retratinho três por quatro que eu vou
ver o que posso fazer pelo senhor. É claro que nada.
Os tangaràs juntam-se ainda uma vez em 1931, a convite de Carlos Ribeiro
de Mello Leitão, tio de Alvinho e delegado de polícia em São José dos Campos,
São Paulo, concordam em participar no dia 7 de setembro de um espetáculo em
benefício da Santa Casa de Misericórdia daquela cidade.
Tenentes... do Diabo

"- Peço a palavra, senhor presidente!


- Tem a palavra o líder dos Tenentes.
- Senhor presidente: eu que sou Tenente até a raiz dos cabelos, eu que trabalhei para botar o carnaval
na rua...
(Aclamação)
- ... não posso deixar de combater a reforma dos estatutos. Primeiro, por considerá-la inoportuna,
contrária mesma aos reais e superiores interesses de nossa sociedade...
(Aclamação)
- ... e segundo, por partir tal proposta de um grupo de derrotistas que de há muito, senhor presidente,
já devia ter sido eliminado do nosso quadro social...
(Aclamação)
- ... pois o que eles querem, senhor presidente, vossa excelência sabe perfeitamente, é voltar ao
regime da politicagem, é entrar de novo nas "comidas", é transformar isso aqui em Kananga do Japão, onde
nem haja... pão!
(Gargalhadas)
- Ademais, senhor presidente e caros consórcios, esta reforma traz o rótulo Democrático!
(Exclamação)
- Portanto, é o bastante para ela cair, ainda que seja necessário botarmos novamente o carnaval na
rua!
(Aclamação)
- Por isto, senhor presidente, como líder que sou da maioria dos Tenentes, declaro votar contra a
reforma dos nossos estatutos e ainda proponho não só a eliminação dos signatários da proposta em
discussão, como também sejam os mesmos intimados a remeter à nossa secretaria uma estampilha e dois
retratinhos, afim de ver o que podemos fazer por eles... nesta marchinha que não é deste, senhor presidente,
mas sim do outro mundo...
(Aclamação)
- Então enfeza, macacada!

Sou folião,
Não sou sargento, não sou cabo,
Nem tenente de galão,
Sou Tenente do Diabo!
Um coronel muito vermelho
Por uma preta teve amor
Resultou desse dueto
Um guri vermelho e preto
Que é Tenente até na cor..."

Marcha-discurso.
Palavras do Visconde de Bicohyba, música de Henrique Vogeler, letra de Noel Rosa.
Três semanas antes, Noel faz duas gravações do seu Cordiais Saudações,
uma acompanhado pela Orquestra Copacabana, que ele rejeita chegando a
escrever sobre o selo branco do disco de prova: "Não gostei, horrível!". A outra,
com o Bando de Tangarás (na verdade apenas o piano de Eduardo Souto e o
violão de Henrique Britto por sinal num soberbo diálogo instrumental), é a que
vai ser editada. Aproveitando a viagem, Almirante leva na bagagem o disco de
prova dessa segunda versão.
Homem cheio de truques e idéias, sempre engendrando um modo de se
promover e ao grupo que lidera, Almirante imagina um quadro para ser
apresentado durante o espetáculo beneficente. Lembrando-se de que no final da
gravação, para rimar com "podendo, mandame algum...", Noel conclui com a
data "7 de setembro de 31", arma toda uma cena. Consegue uma vitrola
emprestada com o delegado, leva-a para o palco e, lá pelas tantas, anuncia à
platéia que os tangarás vão gravar um disco. Sim, aqui mesmo, no palco. E
agora. Faz uma longa exposição técnica, falando de microfones, válvulas,
agulhas, ceras e outros aparatos, e em seguida pede silêncio. Os tangarás, Noel
solando, interpretam Cordiais Saudações. Terminado o número, Almirante põe o
disco de prova na vitrola, pede novamente silêncio e reproduz "o que se acabou
de gravar". O teatro vem abaixo, impressionado com esta mágica de se fazer um
disco de maneira tão simples. A esperteza de Almirante vale mais um ponto à
reputação do conjunto.
Uma breve estada em São José dos Campos, breve e tranqüila, só agitada
pelos gritos que Almirante e os outros ouvem na hora de dormir. Todos, quase
ao mesmo tempo, correm a abrir as portas de seus quartos. O que será?
Constatam, pasmos, que Noel Rosa simplesmente assusta os outros hóspedes da
pensão, correndo sem roupa pelo corredor. O que terá havido? Estará bêbado?
Terá saído às pressas de alguma alcova proibida? Uma cena inesquecível que
ninguém jamais chegará a entender, os bem-comportados tangarás com os olhos
arregalados de espanto, Noel correndo de um lado para outro. Nu.
Capítulo 18
RISO DE CRIANÇA
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente Que dá ordens a você
Três Apitos

Martha sabe o filho que tem. Inteligente, sensível, carregando sobre os


ombros o peso de grande experiência de vida, desde os tempos em que lhe cabia
empunhar sozinha a bandeira da família, tem consciência de que a medicina não
empolga Noel tanto quanto o samba. O que não a impede de lutar contra isso.
Em casa, esquecendo-se talvez de que o filho já tem vinte anos e idéias próprias,
procura policiá-lo. Exige que se sente diante de livros e apontamentos das
matérias da Faculdade, tenta evitar que se afaste do chalé por muito tempo,
continua a trancar o armário para que não possa vestir o melhor terno, a melhor
camisa, e sair em busca de mais uma noitada. Em vão. Noel, como sempre, tem
uma coleção de esquemas, artimanhas e desculpas para vencer a vigilância da
mãe. Uma delas, a vizinha e amiga Dorica.
Theodorica dos Santos Lima mora duas casas à direita de quem sai do
chalé. Uma construção antiga, em centro de terreno, herdada por ela, as irmãs e a
prima Sílvia da avó Rosa Pinheiro Guimarães. E mesmo amiga de Noel, o seu
salvo-conduto para a madrugada. Ele guarda em sua casa um terno, uma camisa
e uma gravata para essas ocasiões em que Martha tranca o armário. Pula o muro
para a vila ao lado, emerge na Theodoro da Silva, caminha na ponta dos pés até a
casa de Dorica, muda de roupa e sai para uma boêmia bem mais agradável do
que o estudo de ossos, músculos, nervos, órgãos e tecidos.
Dorica é um tipo diferente, os cabelos muito curtos, quase raspados, os
gestos viris contrastando com o corpo miúdo e magro. Veste-se sem vaidade,
fuma muito. É e será uma das moradoras mais conhecidas do bairro. De poucos
sorrisos, participante, com nítida ascendência sobre as pessoas à sua volta,
sobretudo Sílvia. Viverão juntas para sempre. Noel gosta de Dorica. Costuma
aparecer em sua casa para pedir pão dormido.
-Já sei, Noel, é para o burro.
Dar pão dormido ao burro da carrocinha de leite - e até dizer-lhe palavras
amáveis ao ouvido - é uma das manias de Noel: - Burrinho, burrinho... Até hoje
não sei quem é mais burro, você ou eu.
Adora burros e a eles dedicará uma série de pensamentos que reúne desde
1929 num caderno escolar.
Martha sabe o filho que tem. E não se ilude. No íntimo está convencida de
que, cedo ou tarde, ele mandará a medicina às favas.
Os pensamentos. São dez páginas escritas a lápis, contendo máximas,
analogias, jogos de palavras, considerações filosóficas, um auto-retrato do Noel
de 17 de janeiro de 1930, data que anotou na folha de rosto do caderno sob o
título Meus Pensamentos.
São quarenta itens ao todo, os quinze primeiros sobre os burros e os
seguintes sobre uma psicologia das massas, novamente o burro, o ladrão e o
policial, a honestidade e a vocação, o gari e o alfaiate, a mulher e o homem, o
casamento e o divórcio, o empresário e o proxeneta, a fidelidade e a sabedoria, o
serviço militar e a opinião dos vizinhos, a incompatibilidade de gênios e a
felicidade. Simplistas às vezes, ingênuos outras, os pensamentos de Noel têm
muito dele mesmo, ajudam a explicá-lo, mostram que desde os dezenove anos,
pelo menos, gosta de filosofar. E contêm muitas de suas posições diante da vida
e dos homens.
Meus Pensamentos

• Os burros aceitariam, com mais satisfação, o verdadeiro comunismo, do que os homens!


• Dizem que o burro fica admirado diante de um palácio. Será que se admira de ver a desigualdade
que existe entre os homens? Ou a fragilidade das construções?
• Quem sabe se o burro não será quem mais se interessa pela descoberta do modo-contínuo?
• Qual o crime que o burro cometeu para ser condenado a trabalhos forçados?
• Um burro se sentiria melhor entre grades do que entre os varais.
• Os burros nascem para cumprir destinos iguais.
• Nós só esperamos de um burro... um coice. O burro nada espera de nós.
• Se um burro pensasse... oferecia capim ao carroceiro.
• Se alguns carroceiros soubessem a força que têm... despediriam o burro e puxavam de boa vontade
a carroça.
• Se o burro faz força para puxar a carroça para a frente... é porque a carroça faz força para puxar o
burro para trás. Se o burro faz força é porque existe o chicote. O dia que o carroceiro não espancar mais o
burro... as carroças vão andar de marcha a ré.
• Com que superioridade um burro pisaria em uma nota de cem mil réis?
• Ninguém sabe se o burro tem vocação para puxar carroça.
• O burro só tem uma satisfação: não segue a profissão forçado pela sua família.
• Um burro olha para um cavalo de corrida com menos inveja do que um estivador olharia para o
Paavo Nurmi.
• O burro daria de boa vontade o seu nome a um chefe de família.
• Se um burro soubesse dar abraços, não gastava sua energia dando coices nos inimigos.
• O burro goza grande popularidade. Quem não o conhece pessoalmente, conhece de nome. E há
pessoas que têm intimidade com ele.

Psicologia das massas:

•Jack Dempsey - "massa bruta"; Peixe - massa de tomate; índio Aymoré - massa alimentícia; tacape -
massa de briga; Assembléia - massa popular; "3a. Corista" - massa de vidraceiro; Ruy Barbosa - massa
cinzenta; Padeiro - amassador das massas; Rockeíeller - o homem das "massas"; Tapa-alvo - "massa de
mira"; Sogra - massa falida.
• Um gatuno seria um ótimo policial se... fosse bem pago.
• Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para ganhar o insuficiente.
• O lavrador mais honesto é muito menos gentil e agradável do que o maior gatuno.
• A vocação é necessária até para se dar um laço na gravata.
• Qualquer autor pode, sem receio, desafiar um crítico profissional do folclore brasileiro - para fazer
versos estudados ou improvisados.
• Os garis falam mal dos deputados: Nunca vi um deputado falar de um gari!
• A idéia mais original é sempre expressa por gestos e palavras comuns.
• A mulher original é aquela que não procura se diferençar das outras.
• A mulher que mais entendi até hoje foi uma "cocotte" que se queixava da sorte por ser "muito mal
compreendida" pelas outras mulheres!
• O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que este não quer aprender.
• O "savoir par coeur" é, em português, um grande defeito que o papagaio tem. O francês "saberá de
cor" qual é a cor do papagaio?
• Rodolfo Valentino seria mais artista do que seu alfaiate?
• Um literato nunca se exprime bem quando escreve, porque nunca ele escreve como fala.
• Para o bom entendedor meia palavra... não basta, porque ele sempre exige o "porquê" do seu
interlocutor.
• Qualquer poeta aprende a varrer mais depressa as ruas do que um varredor a fazer versos.
• O empresário explora o trabalho dos cantores e das cantoras. O proxeneta explora o trabalho das
mulheres perdidas, com seu prejuízo moral. Qual destes empresários é mais criminoso?

Comparações

1 - A mulher é o aperitivo que ajuda o homem a comer o prato indigesto da vida.


2 - A mulher que mais amou neste mundo morreu antes de saber o que era o amor.
3 - A mulher infiel é semelhante ao menino que fuma escondido do pai. Se este um dia pilha aquele
em flagrante delito, ou castiga e proíbe tal procedimento ou então consente que continue, contanto que não
lhe atire fumaças ao rosto, porque considera isto uma grande falta de respeito e, além disso, os vizinhos
poderão reparar.
4 - Os vizinhos representam a consciência daqueles que procedem desonestamente: quando alguém
pretende praticar qualquer má ação, só pensa numa palavra: Vizinhos.
5 - Mulher rica presa em casa é o mesmo que seresteiro na rua em noite chuvosa.
6 - Reservista voluntário é todo o cidadão que tem medo de ir para o Exército: só pensa em tirar a
caderneta para nunca mais vestir farda e nem sequer pisar no quartel. Com a mulher que requer o seu
divórcio, dá-se o contrário: não é porque ela não queira mais saber de um marido. Ela quando faz isto é
porque pretende ter vários e deseja, por isto, ser independente.
7 - O que nós chamamos incompatibilidade de gênios entre um casal não se assemelha nada com o
que devia ser; os gênios neste caso não são diferentes; são completamente iguais: se ele é teimoso, ela
também o é; ambos são malcriados, ambos são infiéis, etc. O casal não vive bem justamente por causa da
perfeita igualdade de gênios. Para haver felicidade é preciso haver gênios diferentes.
Mas por que lembrar agora pensamentos de quase dois anos atrás? Para que
fique claro o quanto Noel cresceu neste tempo, o filósofo amador e o poeta
claudicante transformados no cronista destes dias. Um cronista capaz de entrar
no Cine Eldorado, assistir a Coisas Nossas, o primeiro filme sonoro nacional(1),
e de lá sair indagando-se o que será realmente nosso, brasileiro, o próprio
cinema falado sendo mais uma novidade importada dos Estados Unidos.
1. Coisas Nossas estreou no Eldorado a 30 de novembro de 1931-Produção do americano Wallace Downey, utilizava o sistema Vitafone, isto é, o som gravado num disco comum de vitrola e
sincronizado ao movimento dos lábios de atores e cantores. No elenco, Procópio Ferreira, Baptista Júnior (pai de Linda e Dircinha Baptista), Jayme Redondo, Jararaca & Ratinho, Paraguaçu, Gaó,
Zezinho, Arnaldo Pescuma, Napoleão Tavares e sua Orquestra, Corita Cunha, Zezé Lara, Helena Pinto de Carvalho, Stefana Macedo.

É pensando nisso que compõe um de seus melhores sambas, gravado por


ele com acompanhamento em que se destacam o piano de Odmar do Amaral
Gurgel, o Gaó, e mais uma vez o pistom de Napoleão Tavares. O samba tem
título quase igual ao do filme: São Coisas Nossas.
Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça,
Coisa nossa, coisa nossa.

O samba, a prontidão e outras bossas,


São nossas coisas, são coisas nossas!
Malandro que não bebe,
Que não come, que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lá da roça,
Coisa-nossa, coisa nossa.

Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa!

Menina que namora


Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça.
Coisa nossa, muito nossa!

O termo "bossa", no sentido de queda, aptidão, jeito para fazer as coisas,


adquire tal força neste samba - e será com tanta freqüência empregado por Noel -
que muitos pensarão ter sido criado por ele mesmo. Mas não. Aprendeu-o numa
aula da Faculdade, o estudo da frenologia (teoria que tenta estabelecer uma
relação entre a inteligência e a conformação do crânio) sugerindo que as bossas
frontais e occipitais é que determinam a vocação e a capacidade de cada um.
A breve trajetória de Noel Rosa pelo mundo do teatro de revistas - limitada
a apenas quatro peças, todas encenadas em 1931 - trouxe-lhe dois grandes
proveitos: tornou-o mais conhecido e aproximou-o de Ary Barroso, outro moço
de extraordinária musicalidade que há de trocar o anel de doutor pelo samba.
Sete anos mais velho que Noel, Ary ao menos chegará a completar o curso de
direito, embora para pendurar o diploma, deixar que se cubra de poeira, usá-lo
apenas para agradar a família, suas velhas tias avós de Ubá. Minas, onde nasceu
há 27 anos.
Quando se diz que Ary tem extraordinária musicalidade não se fala por
falar. Pianista, músico com estudo, uma veia inquestionavelmente criativa, é o
único dos compositores brasileiros desta época destinado a criar um tipo de
samba que, não sendo Cidade Nova nem Estado, tem força o bastante para abrir
novos caminhos à música popular brasileira. São exemplos disso Vou à Penha,
de 1929, e Faceira, deste ano. Pode-se dizer que, se o primeiro grande sucesso de
Ary, Vamos Deixar de Intimidade, também de 1929, pautava-se pela escola de
Sinhô e dos outros sambistas amaxixados, tudo o que tem feito recentemente
ressabe à originalidade, à coisa nova, sua. A obra que criará nos próximos anos -
No Rancho Fundo, Foi Ela, Na Batucada da Vida, Maria, Tu, É Mentira, Oi -
falará de sua singularidade.
O que, certamente, não escapa à acuidade de Noel. Durante Café Com
Música os dois apenas se encontraram nos bastidores do Recreio, cada qual
passando às mãos de Frazão o que era seu, nenhuma colaboração se
concretizando. Já em Mar de Rosas - revista de Gastão Penalva e Velho
Sobrinho, também no Recreio - a aproximação se faz de forma mais efetiva.
Noel havia escrito um samba para um dos quadros, intitulado Mulata
Fuzarqueira, de melodia interessante e versos que tentavam reproduzir o
linguajar dos morros cariocas.
Mulata fuzarqueira,
Artigo raro,
Que samba e dá rasteira,
Que passa as noite inteira em claro
Não quer mais saber
De preparar as gordura
Nem cuidar mais das costura.
O bom exemplo já te dei
Mudei a minha conduta
Mas agora me aprumei.

Mulata fuzarqueira da Gamboa


Só anda com tipo à-toa
Embarca em qualquer canoa!

Mulata fuzarqueira da Gamboa


Embarca em qualquer canoa!
Mulata vou contar
As minhas mágoa
Meu amô não tem erre
Mas é amô debaixo d'água!
Não gosto de te ver
Sempre a fazer certos papel
A se passar prós coronel...
Nasceste com uma boa sina
Se hoje andas bem no luxo
É passando a beiçolina!

Mulata tu tem que te preparar


Pra receber o azar
Que algum dia há de chegar
Aceita o meu braço
E vem entrar nas comida
Pra começar outra vida
Comigo tu podes viver bem,
Pois aonde um passa fome
Dois pode passar também.

Mas o que realmente assinala a presença de Noel Rosa nesta revista,


estreada a 24 de julho de 1931 com Margarida Max no principal papel, é a letra
que escreve para a música composta por Ary com vistas a um quadro dedicado
aos bravos navegadores que levam a vida desafiando as incertezas do mar. É
uma letra claramente otimista, mas com duplos sentidos bem à maneira de Noel,
as expressões "mão no remo" e "mete a vela" empregadas, habilmente, com
significados ambíguos. Sílvio Caldas - que nesta mesma revista canta Cordiais
Saudações, sentado a uma mesa, fingindo escrever uma carta ao amigo devedor -
é quem lança soberbamente o samba de Ary e Noel, Iça Vela, mais tarde
reintitulado Mão no Remo.
Nesta vida, nesta vida,
Cada qual tem um barco em que navega
E o azar é natural
Nem há nada mais fatal
E a justiça é cega

Mas se os ventos sopram contra,


Ou se vem a tempestade
Nunca mais o barco encontra
O porto da felicidade.
Mão no remo! Mão no remo!
Com toda coragem
Pra levar vantagem
No mar desta vida
Pois se queres ser feliz no amor,
Tens que remar com ardor.

Mete a vela! Mete a vela!


Quando for a hora
De ir mar afora
Em busca da sorte
Aproveitando a maré a favor
Terás pra sempre valor.

Este samba - primoroso - não renderá a Noel mais do que 50 mil réis,
importância em troca da qual ele cede seus direitos autorais ao violinista Rogério
Guimarães. Mas não faz mal. Vale pela parceria.
É evidente que a musicalidade de Ary impressiona Noel. Seus sambas,
melódica e ritmicamente originais,- instigam o jovem poeta de Vila Isabel. Do
contrário, ao ouvir num dos quadros de Vai Com Fé, revista estreada no mesmo
Recreio a 12 de agosto de 1932 (portanto, daqui a um ano) um samba com
música e letra de Ary e nada menos de três títulos (Santa Padroeira, Zélia
Fortunata e Não Tem Bandeira), não se sentiria tentado a criar para ele nova
letra.
Manteve o refrão e, com a permissão de Ary, escreveu novas segundas
partes, rebatizando o samba como De Qualquer Maneira:
Quem tudo olha quase nada enxerga
Quem não quebra se enverga
A favor do vento
Eu não sou perfeito
Sei que tenho de pecar
Mas arranjo sempre jeito
De me desculpar

Eu lá na Penha agora vou estifa(2)


Mas não vou como um cafifa
Quem foi lá desacatar
Mas a força falha
Ele teve um triste fim
Agredido a navalha
Na porta de um botequim.

Pra ver a minha santa padroeira


Eu vou à Penha
De qualquer maneira...
Faz hoje um mês que fui naquele morro
E a Juju pediu socorro
Lá da ribanceira
Toda machucada
Saturada de pancada
Que apanhou de seu mulato
Por contar boato !

Meu coração bateu à toda pressa


E eu fiz uma promessa
Pra mulata não morrer...
Pela padroeira
Ela foi bem contemplada
Levantou do chão curada
Saiu sambando fagueira

Eu vou à Penha de qualquer maneira


Pois não é por brincadeira
Que se faz promessa
E o tal mulato
Para não entrar na lenha
Fez comigo um contrato
Pra sumir da Penha

Quem faz acordo não tem inimigo


A mulata vai comigo
Carregando o violão
E com devoção
Junto à santa milagrosa
Vai cantar meu samba prosa
Numa primeira audição.
2. Na gíria da época, estifa, palavra não-dicionarizada, significava elegante, alinhado, bem-vestido. Sua origem está provavelmente no adjetivo inglês stiff, no sentido de duro, rijo, firme,
esticado, ou mesmo de formal, afetado, como os malandros costumavam ser.

Infelizmente Noel e Ary farão apenas três sambas juntos(3).


3. A terceira colaboração Ary Barroso-Noel Rosa, Estrela da Manhã, será estudada no Capítulo 27.

Todos excelentes. É que seus habitats são muito diversos, Ary mais
próximo do pessoal do teatro, de uma classe média mais refinada, jamais se
misturando à gente do morro, pouco freqüentando o Café Nice (prefere fazer
ponto no Rio Branco, ali na Rua São José, onde se reúne a turma de futebol do
Flamengo, uma das suas grandes paixões). Vive enfim em outro sistema
planetário, tocando piano em festas grãfinas, cultivando uma boêmia mais
moderada, em nada parecida com o quase submundo em que anda Noel.

Clarinha e os irmãos estão morando novamente em Vila Isabel. Numa casa


de vila da Rua Gonzaga Bastos, a poucos passos do Boulevard. Não só por ser
mais econômica, mas também por ajudá-los a afugentar a triste lembrança da
morte de dona Clara. Para Clarinha, principalmente, mudança oportuna. Menos
de três quarteirões de caminhada e ela já está no chalé. Trabalhando, ajudando
dona Martha, mais perto de Noel.
Engano. Assim como a ida para o Engenho Novo não os afastou, a volta
para Vila Isabel não os aproxima. Já são quatro anos de namoro, um indefinido
relacionamento em nada parecido com os namoros convencionais. Quatro anos e
ela continua sem saber ao certo o que são, como estão, para onde vão. Às vezes
acha que ele a ama. É delicado, carinhoso, tem uns olhos cheios de ternura. É
capaz de gestos românticos, como aquele retrato em forma de coração, e faz para
ela apaixonadas serestas. Às vezes, porém, convence-se do contrário, Noel
desaparecendo, ficando semanas sem procurá-la, não lhe dando sequer uma
desculpa. Tímida, é incapaz de perguntas diretas, talvez com receio de receber
respostas também diretas. Sabe lá qual é a verdade que Noel guarda sobre este
namoro? É uma moça afogada em dúvidas.
Tem conhecimento da existência de Fina, de que Noel quase sempre a deixa
no portão de casa e toma o rumo da Rua Moju. De início, sofria mais, ia para o
quarto chorar, sentia que o havia perdido. Mas logo aparecia alguém - uma irmã,
uma amiga ou mesmo dona Martha - e a tranqüilizava: - Não liga, não, Clarinha.
Assunto com moça azougada não dura um verão. Homem que vê muita
vantagem acaba enjoando.
Outro engano. Noel jamais enjoará de Fina, o "assunto" entre os dois
durando quantos verões ela queira. Pois enquanto Clarinha vive mergulhada em
incertezas - que cedo ou tarde se transformarão numa única e doída certeza, ou
seja, de que pode ser que ele a ame, mas nunca se casará com ela - Fina nem
pensa nessas questões. Gosta da vida, quer aproveitá-la o quanto saiba, ser livre
o quanto possa. E esta sede de liberdade é o que mais prende Noel.
Um namoro é muito diferente do outro. Com Fina, não há cerimônias, nem
irmãos de cara feia, nem compromissos implícitos do tipo "namorou é pra
casar". Noel é freqüentador da casa da Rua Moju, ele que nunca pôde pôr os pés
além da porta da casa dos Corrêas Netto. Já conquistou a todos com o seu
sorriso, sua conversa, suas histórias, suas canções. Dona Luísa o venera, vive
atrás dele com cafezinhos, broas de milho e outros agrados. Também gosta de
ouvi-lo cantar: - Noel, meu filho, senta aqui. Como é mesmo aquela música?
Dona Iracema é quem guarda, com todo carinho, seu violão. Uma guardiã
valiosa nestes dias em que a mãe vive a trancar-lhe o armário, a esconder-lhe o
caderno de músicas, os esboços, o violão.
-Dona Iracema, cuide bem da minha ferramenta de trabalho.
Noel sente-se bem neste ambiente familiar, a casa sempre cheia, ele
podendo entrar e sair à hora que bem entende. Mas seu namoro com Fina não se
limita a isso. Nem às serenatas, ou às conversas na varanda, ou às festinhas que
de vez em quando os vizinhos dão. Noel e Fina geralmente namoram muito
longe dali, na Barra da Tijuca, em Jacarepaguá, no Leblon. Vão no carro de
Valuche ou Malhado, cada qual com sua pequena. Passeios longe, demorados,
naturalmente às escondidas de dona Luísa, do center-half Zeca, de toda a
família, Fina sempre dizendo que foi à casa de uma amiga, que vai voltar tarde,
ou mesmo não voltar. É dessas vantagens que Clara ouve falar. Imagine uma
moça de dezesseis, dezessete anos dormindo fora de casa! Como pode Clarinha
competir?
- Não liga, não. Isso não dura muito. Fina também gosta de Noel. E muito.
É ciumenta. Se acontece algum daqueles sumiços a que Clara está acostumada,
protesta, zanga-se para valer, promete esconder para sempre ou mesmo fazer em
pedaços o violão que dona Iracema guarda com cuidado. Mas Noel sabe levá-la
no carinho, na fala mole, naquilo que ela costuma chamar de "conversa de teso",
de um sujeito capaz de comprar o mundo sem um níquel no bolso. Brigam
muito, discutem, fazem cenas, mas se gostam. E se parecem em muitos pontos.
Por exemplo: se ele é de sumir, também ela costuma dar suas escapulidas. O
gosto pela liberdade não combina com essa história de dizer ao namorado tudo o
que faz.
- Onde é que você esteve ontem à tarde? - pergunta ele.
- Vai morrer sem saber, Noel.
São muitos pratos à mesa na casa 5 da Rua Moju. Mesmo Martha, Clara e
os filhos tendo se mudado com Alegria, ainda são onze bocas a comer e apenas
Reinaldo, marido de Iracema, a trabalhar. É neste final de 1931 que a própria
dona Luísa decide ter chegado a hora de todos ajudarem. Zeca, as moças mais
crescidas, inclusive Fina e Bazinha, têm de trabalhar.
As duas irmãs empregam-se em fábricas do Andaraí. Fina vai trabalhar na
Hachiya Indústria e Comércio S.A., pequena firma japonesa que produz botões
de osso e madrepérola. Bazinha, na Companhia América Fabril, uma das mais
importantes indústrias de tecido do Rio.
De início, uma recomendação a toda a família.
- Pelo amor de Deus, não digam ao Noel onde trabalho. Não quero que ele
me procure lá.
Fina tem seus motivos. Um pouco o orgulho, ela se sentindo constrangida,
não querendo que o namorado saiba que seu emprego é tão modesto (como se
ele fosse de reparar nisso), mas um pouco também para evitar que o próprio
Noel se converta num center-half, marcando-a em cima, nas horas de entrada,
almoço e saída. Continua prezando sua liberdade. Mas não poderá ocultar-se por
muito tempo. Entre outras coisas porque Noel acaba de comprar um carro. Sim,
um Chandler preto, ano vinte e poucos. A que vai chamar de Viramundo.
Grande, com cadeirinhas ao lado, meio descascado numa das portas, capota de
lona ameaçando esfrangalhar-se. Um carro velho, enfim, mas o que ele pôde
comprar com o dinheiro ainda minguado que tem ganho com a música.
De carro, Noel pode estar mais perto de Fina. Nos passeios noturnos, já não
depende de Valuche e Malhado, e também nas investigações que pretende fazer
para saber onde ela trabalha.
- Deixa de ser curioso, Noel.
Fina também não lhe conta que, por causa dele, tem brigado muito com o
pai, Theodoro Félix. Brigas feias. O homem aparecendo de surpresa, zangado: -
Me disseram que você anda de coisa com um cantor de rádio.
- Não é de sua conta.
- É, sim! Não se esqueça de que sou seu pai.
Fina atira-lhe em cima seus ressentimentos, Theodoro não ligando para ela
e Bazinha, voltado apenas para a nova família, os novos filhos. Com que direito
aparece assim, de repente, querendo dirigir sua vida? O homem se altera: - Pois
ouça uma coisa: se eu souber que você anda metida com este cantor, passo com
meu carro por cima dele!
Apenas uma ameaça. Theodoro Félix não continuará incomodando a filha
por algum tempo. E ela, de tão ressentida, vai até mudar de nome: passará a
assinar-se Josefina Telles.
Alheio a tudo isso - e com um dos cachês da Rádio Mayrink Veiga - Noel
passa por um retratista seu amigo, na Rua da Carioca, e paga lhe adiantado um
serviço para o qual pede o maior capricho: um retrato de sua namorada. Depois
diz a Fina para ir ao retratista, amanhã mesmo, está tudo acertado. Mas o
retratista a colhe num instante que não lhe faz justiça, o rosto bonito porém
triste, os olhos grandes mas nostálgicos. Nem parece uma moça alegre. Até dona
Luísa nota que é uma Fina diferente: - Ora, minha filha... Cadê aquele riso de
criança?
É exatamente este, Riso de Criança, o título do primeiro samba que Noel
dedica a ela. Não se trata de relato literal do romance entre os dois, mesmo com
as referências ao riso, ao retratinho e ao violão empenhado. Mas a quadra final -
que não será gravada - vale por uma autobiografia:
Seu riso de criança
Que me enganou
Está num retratinho
Que eu guardo e não dou

Guardei sua aliança


Pra ter a lembrança
Do meu violão
Que você empenhou.

Em cada morro que passo


Um novo amor eu conheço
Cada paixão que eu esqueço
É mais um samba que eu faço.

Canto agora de passagem


Você ouve mas não vê
É a última homenagem
Que eu vou fazer a você.

Eu nascendo pobre e feio


Ia ser triste o meu fim,
Mas crescendo a bossa veio,
Deus teve pena de mim.

Com a ajuda de Viramundo é fácil para Noel seguir Fina, descobrir onde ela
trabalha. Certo dia, à hora do almoço, passando pela Barão de Mesquita, ele a vê
com uma marmita na mão, à porta da América Fabril. Não sabendo que ela leva
a refeição para Bazinha, supõe que trabalhe ali. E passa a esperá-la, todos os
dias, à saída da fábrica. Claro, pura perda de tempo. Saem homens, saem moças,
sai Bazinha, mas não Fina. Alguns meses terão se passado até que Noel saiba
onde é.
- Um dia te conto - diz ela matreiramente.
Fina faz longa caminhada de sua casa até a Hachiya. Desce a Moju, toma a
Barão de Bom Retiro, atravessa a Visconde de Santa Isabel, passa pelo Largo do
Verdun e entra na Barão de Mesquita. Um estirão. Faz isso de manhã cedinho,
ao lado da irmã, e às cinco da tarde, quando volta sozinha. São moças pobres que
almoçam de marmita (é Fina quem leva todos os dias o almoço para Bazinha) e
jantam em casa, arroz, feijão, macarronada, num prato fundo que dona Luísa
prepara. Usam roupas modestas, sapatos baixos, sem meias. E pouca pintura.
Mas não têm de se envergonhar do que fazem, do trabalho humilde, de serem
operárias de fábrica. É pensando nesta Fina que se esconde - e pensando com
muito enternecimento - que Noel escreve um samba eterno:
Três Apitos.(4)
4. Há muita confusão em torno deste samba, em especial sobre quem seria sua inspiradora. Mas é certo que foi mesmo Fina. Diria Noel em entrevista ao Diário Carioca de 4 de janeiro de
1936: "Três Apitos resume o romance mais sincero de minha vida gloriosamente romântica..." Que outra operária de fábrica se encaixaria nessa declaração? A confusão parece ter crescido quando se
sabe que nem a América Fabril nem a Hachiya tinham apito, enquanto a Confiança, perto da casa de Noel, esta sim emitia nada menos de sete silvos diários. Esses detalhes, porém, não mudam nada. Não
significam que a musa de Noel trabalhasse na Confiança. Apenas, como está claro na letra, ao ouvir o apito da fábrica, ferindo seus ouvidos, ele se lembrava da amada. Quanto aos "três apitos" do título,
eram os primeiros que a Confiança fazia soar de manhã, um às 5 horas e 45 minutos, para despertar os operários que moravam nas redondezas; outro às 7, longo, de uns 20 segundos de duração,
marcando a hora de entrada; e o terceiro às 7 horas e 45 minutos, curto, a que chamavam de "pu". Queria dizer que quem chegasse depois dele perdia o dia.

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você

Mas você anda


Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê.

Você que atende ao apito


De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?

Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê

Mas você é mesmo


Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você.

Sou do sereno,
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê

Mas você não sabe


Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

Tanto Noel insiste que Fina acaba lhe dizendo onde trabalha. Como previa,
para que ele por lá apareça com muita freqüência, roubando-lhe um pouco da
liberdade. Num fim de tarde, à saída da fábrica, o contramestre Jerônimo
Feliciano da Encarnação - que há muito vem cercando Fina de propostas e
galanteios - aponta para Noel e diz: - Olha lá o seu poetinha. Está te esperando,
de novo.
Fina fala a Noel sobre o assédio do contramestre e novos versos são
acrescentados a Três Apitos:
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você.
Não há dúvida, dona Martha sabe o filho que tem. O fim do ano vai
chegando, os estudos abandonados, a matrícula trancada, nenhum indício de que
Noel pretende retomar o curso em 1932. Seu Medeiros, cada vez mais mudado,
pouco diz. Ao contrário de tia Carmem, que vem de Belo Horizonte
inconformada.
- Cantor de rádio? Isso não é profissão. Suas palavras são as mais
veementes, de pura indignação por saber que o sobrinho está propenso a virar as
costas à medicina. E para quê? Para fazer sambas. Não há nada mais fora de
propósito. Ouve-se tio Eduardo. Surpresa: ele não desaprova o sobrinho. Ouve-
se também o Dr. José Graça Mello, padrinho de Noel, o médico que o viu
nascer. Quem sabe ele não o convence a tomar juízo? Outra surpresa-.
- Noel está certo. Antes ser um bom sambista que um mau médico.
A reação familiar não conduz a nada. Noel logo sai para a noite, deixando
atrás de si uma família desapontada. O que fazer? O importante, como padrinho
diz, é seguir seu destino. A noite, as estrelas, a liberdade. E por falar em
liberdade, passa pela casa de Fina. Encontra-a à mesa com a irmã, as tias, a avó.
Comem todos em prato fundo.

- Está servido, Noel? - pergunta dona Luísa.


- Obrigado, já jantei.
Pra quem detesta comer, o prato fundo é um suplício. Diz isso a Fina, que
solta uma gargalhada. Depois, para homenagear toda a família e seu portentoso
apetite, compõe uma marchinha que João de Barro o ajudará a terminar: Prato
Fundo.
Se como tanto
Aprendi com a minha avó
Na minha casa
Só se come em prato fun-de-o-dó

A minha mana
Para inteirar o almoço
Come casca de banana
Depois engole o caroço
E o meu titio
Faz vergonha a todo instante
Foi ao circo com fastio
E engoliu o elefante

A minha tia
Já engoliu uma fruteira
Estou vendo ainda o dia
Que ela almoça a cozinheira
E depois disso
Leva sempre a dar palpite
Toma chumbo derretido
Para abrir o apetite

Meu bisavô
Que era um índio botocudo
Devorou a tribo inteira
Com pajé, cacique e tudo
E a minha avó
Que comia à portuguesa
Reduziu dois bois a pó
E ainda quis a sobremesa

Todos gostam da música de Noel na casa 5 da Rua Moju. Inclusive Fina,


que quando está de bem com ele trata com carinho o violão.
- Quer aprender a tocar?
Assim, enquanto todo o mundo no chalé se amofina só em pensar no
médico que a família perdeu, Noel senta-se no meio-fio com a namorada, passa
o braço por trás dela e ensina-lhe as primeiras posições.
Seu riso de criança
Que me enganou...
Companhia de Fiação e Tecidos Confiança, anos 30
Capítulo 19
O REI DA VOZ E O DOUTOR EM
SAMBA
E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto
É Preciso Discutir

Homem alto, magro, elegante no smoking sob medida, bem penteado, bem
barbeado, simpático, sorridente, Francisco Alves tem a aparência de um
gentleman. Quem o vê no palco, dominando a platéia não só com sua voz e seu
estilo, mas sobretudo com uma personalidade que há de incluí-lo entre os mais
carismáticos ídolos de toda a história da música popular brasileira, quem o vê no
palco, enfim, seja cantando um samba do Estácio: Nem tudo que se diz se faz
Eu digo e serei capaz ..
.. seja uma nostálgica canção sua e de Horácio Campos:
Saudades infinitas me devoram
Lembranças do teu vulto que nem sei...
.. é sempre tomado da mesma emoção. É um artista raro, desses que
estabelecem entre sua arte e o público uma ligação íntima, indesatável. Um dia
seu amigo e companheiro de dupla, Mário Reis, definirá essa ligação como "pura
mágica"(1), à qual nem mesmo os músicos que o acompanham conseguem ficar
indiferentes:
1. Depoimento de Mário Reis aos autores em 10 de abril de 1981

-Às vezes, quando Chico abre aquele vozeirão, me dá vontade de chorar-


confessa Tute, cujo violão tem emoldurado com freqüência a voz de Francisco
Alves.
Grandes cantores surgiram antes dele. Vicente Celestino, para citar apenas
um. E muitos outros surgirão depois. Cantores de voz mais bonita, de técnica
mais apurada. Alguns serão mais reconhecidos como intérpretes, outros terão
repertório mais selecionado. Cantores cujo cartaz subirá a alturas inimagináveis:
terão suas roupas rasgadas pelos fãs, serão carregados por multidões em praça
pública. Mas nenhum conseguirá manter-se por tanto tempo no auge. Francisco
Alves cumprirá, até o final de seus dias, uma carreira longa, sem curvas, sem
oscilações, permanentemente no topo(2).
2. Francisco Alves morreria num acidente de automóvel na Rodovia Presidente Dutra, na altura de Taubaté, a 27 de setembro de 1952. Ainda era um grande cartaz da música popular. Sua
carreira, iniciada em 1918 como cantor de circo, cobriria um período de 34 anos. E, caso raro em tão longa atividade, jamais conheceria o ostracismo, a decadência ou mesmo breves momentos em
segundo plano. Seu enterro, no Rio, seria acompanhado por mais de meio milhão de pessoas. Mais concorrido do que o de Carmem Miranda em 1955 e só comparável ao cortejo que levaria o corpo de
Getúlio Vargas do Catete ao Santos Dumont em 1954.

É, sem dúvida, a grande estrela da música popular destes dias. Há quem lhe
exagere a importância ao afirmar que, Midas a converter em ouro tudo que toca,
ele possui o poder de transformar em sucesso tudo que canta. Não é bem assim.
Mas pode-se dizer que muitas das canções que o povo tem consagrado
ultimamente só se tornaram populares por causa dele, de sua voz e carisma.
Francisco Alves é um cantor que vale por dois. Literalmente. Grava discos com
o próprio nome na Odeon e com o de Chico Viola na Parlophon. Desta vez não
há exagero quando se diz que, em termos de conquista da preferência do público,
Chico Viola é mesmo o único que pode competir com Francisco Alves.
Uma estrela. No palco, um gentleman. E fora dele? Igualmente fascinante,
igualmente carismático, igualmente personagem raro, o Francisco Alves da vida
real é no entanto muito diferente do artista que leva às lágrimas o comovido
Tute. E, como se verá, pouco tem de gentleman.
Noel Rosa conheceu Francisco Alves há três anos. Portanto, em 1928,
quando cursava ainda o último ano do São Bento. Muito tempo depois, num dos
seus livros de memórias(3), o cantor recordará o encontro:
3. Francisco Alves talvez seja caso único de autor de três autobiografias. A primeira, Minha Vida, teria sido ditada por ele ao jornalista Mário Cordeiro. Quando do seu lançamento, A Voz do
Rádio de 15 de setembro de 1936 (página 14) fez o seguinte comentário: "Francisco Alves se converteu em verdadeiro herói de filme em série. Era criança incompreendida e mal julgada. Era o estudante
irrequieto e inimigo dos livros. Era o amante infeliz e não-correspondido. Era o operário brioso e trabalhador, mas sempre mal visto pelos superiores." A segunda autobiografia do cantor foi editada pela
Rádio Nacional, em fins dos anos 40, em forma de folhetim. A terceira, segundo narrativa ao jornalista David Nasser, apareceu inicialmente em O Cruzeiro, publicada em capítulos de 17 de novembro de
1951 a 24 de maio de 1952, sob o título de Minha Vida Verdadeira. Reescrita e reintitulada Chico Viola, sairia em livro em 1966.
"O rapaz aproximou-se de mim, à porta de uma loja de discos da Rua do
Ouvidor. Ficou me olhando demoradamente. Depois, tomou ânimo:
- O senhor é o Francisco Alves?
- Sou. Por quê?
- Queria conhecê-lo. Chamo-me Noel Rosa e sou aluno do São Bento.
Sorri para o adolescente. Fazer sambas, ele mesmo diria depois em versos
memoráveis, não é privilégio de ninguém, no Brasil. Entre dez cariocas, cinco
fazem samba.
- Muito bem - respondi-lhe. - Quando quiser apareça.
Ele se despediu e foi andando. Durante alguns momentos fiquei com aquela
fisionomia na lembrança. Lembrei-me dos olhos inteligentes, do queixo
defeituoso (Noel tinha o maxilar afundado), do corpo magro e daquela fala
mole."
É bem possível que tenha acontecido exatamente assim. Naquela época
Noel e Hélio, na maioria das vezes acompanhados de Glauco Vianna, viviam
percorrendo as lojas de música do Centro, comprando métodos de violão,
ouvindo os útimos lançamentos em disco, tentando fazer contato com gente do
meio.
Depois daquele primeiro encontro, Francisco Alves reviu Noel muitas
vezes, principalmente quando o jovem compositor, já integrando o Bando de
Tangarás, passou a freqüentar o ambiente musical. Em inúmeras ocasiões os dois
se cruzaram na cúpula do Teatro Phoenix, no pequeno estúdio da Odeon. Ou nos
bastidores dos teatros em que Francisco Alves costuma aparecer, mesmo quando
não toma parte do espetáculo (é impressionante a onipresença do cantor, nos
teatros, nas rádios, nos botequins, nos fins de mundo aonde os outros artistas não
se atrevem ir, sempre seguindo a sua intuição, sempre à procura de novidades,
quem sabe um samba inédito que sua voz talvez transforme em sucesso). Mas
esses encontros de Noel com Francisco Alves têm sido sempre breves, um
"como vai" apressado ou pouco mais que isso. Distância que não diminuirá
mesmo depois de Francisco Alves ter gravado Palpite, brincadeira que Eduardo
Souto fez para o próximo carnaval, com letra de Noel:
Palpite! Palpite!
Nasceu no crânio
De quem teve meningite.

Foste linchado lá num samba em Catumbi


Porque tocaste no pandeiro o Guarani.

Num dia destes perguntaste ao condutor


Se os bondes passam pela Rua do Ouvidor.
Ser palpiteiro neste mundo é a tua sina;
Vendeste o carro pra comprar a gasolina.

Bom exemplo de que nem tudo que Midas toca vira ouro. A marchinha - na
verdade meio marcha, meio fox-trot - não será muito cantada no carnaval de
1932 e depois disso cairá no esquecimento. Mas a possibilidade de ter outras
composições suas incluídas no repertório de Francisco Alves não pode deixar de
atrair Noel. Nesse ponto ele não é diferente de ninguém. Pouco importa que
muita gente diga que o cantor é homem para se manter longe, difícil, nada
parecido com o elegante e simpático artista que se vê no palco, grosseiro até a
violência, ambicioso até a avareza, capaz de tudo quando quer alguma coisa (até
de passar para trás o melhor amigo), inescrupuloso, insensível, menos gentleman
que cafajeste, mais demônio que anjo.
- Há muita inveja em tudo isso - diz Almirante, um dos que mais defendem
Francisco Alves dos maledicentes.
- Verdade-garante Gastão Cottini. - Tudo isso e muito mais.
Cottini - barítono que vende partituras musicais nos subúrbios para custear
os estudos que lhe darão um lugar no coro do Teatro Municipal - odeia Francisco
Alves. Inveja? Não neste caso. Jamais esquecerá o episódio acontecido à porta
do Nice. Estava conversando com dois amigos, o contra-regra Fernando Pereira
e o futuro médico homeopata Alberto Ribeiro (que ainda não se sabia destinado
a tornar-se um dos grandes poetas da música popular), quando Francisco Alves
passou distraído. De repente, tropeçou não se sabe em que, saiu catando cavaco,
quase foi ao chão. Ficou irritadíssimo, mas conseguiu se equilibrar. Vendo os
três parados ali perto, emitiu meio sem jeito um vago e frio "boa tarde".
- Boa tarde-respondeu Alberto Ribeiro.
-Boa tarde, Chico-acrescentou Cottini.
Francisco Alves, então, enfureceu-se, como se querendo atirar em cima de
alguém a culpa pelo tropeção:
- Eu cumprimentei o doutor Alberto Ribeiro e não você, seu facão.(4)
4. Na gíria da época, mau cantor.

Cottini, homem forte, de braços curtos mas pesados, deu alguns passos,
chegou a meio metro de Francisco Alves e, com rapidez e firmeza, deu-lhe uma
bofetada. O cantor, desta vez, não pôde evitar a queda.
- Calma, Cottini! - interveio Fernando Pereira.
Francisco Alves levantou-se e ameaçou:
- Vou em casa buscar um revólver para acabar com você!
E entrou no primeiro táxi. Eram quatro e meia da tarde. À uma da manhã, o
Nice já fechando, Cottini ainda estava lá, esperando, firme na esquina da Rio
Branco com Bittencourt da Silva. Tirou o relógio do bolso, conferiu a hora e
chamou o garçom:
- Por favor, diga ao doutor Francisco Alves que esperei até agora. Qualquer
coisa, ele sabe onde eu moro.
Verdade. Como diz o Cottini, tudo isso e muito mais. E não só por causa
dessa briga que o próprio Francisco Alves achou melhor esquecer. O decidido
barítono e outros juram ter muitos motivos para afirmarem que de fato o cantor é
mais demônio que anjo, menos gentleman que cafajeste. Mas que motivos,
exatamente? Não estarão exagerando? Não terá razão Almirante quando diz que
a inveja é a grande semente de toda essa falação?
Francisco Alves é e será sempre um personagem controvertido. Sobre ele,
toda verdade não passa de meia-verdade, toda certeza se cerca de interrogações.
Quem o conhece, de fato? Quem será capaz de dizer onde acaba o anjo e onde
começa o demônio? O que parece certo é que esta estrela maior da música
popular, este gentleman dos palcos cariocas, este cantor que vale por dois, vem
vivendo uma vida que vai fornecer rico material aos seus biógrafos. Nesta vida,
o acontecido se confunde a toda hora com o imaginado, a realidade com a ficção.
E quem será, afinal, este herói (ou vilão)? Na verdade existem no mínimo três
histórias de Francisco Alves: a primeira, a que ele mesmo conta; a segunda, a
que contam os outros, geralmente os que não gostam dele; e a terceira, a que
ninguém conta, o próprio Francisco Alves envolvendo em mistério certos
episódios de seu passado (ou mesmo do presente), os outros tentando desvendar
tais segredos com as armas da imaginação. São três histórias muito diferentes.
A primeira é, por assim dizer, a sua biografia oficial, a que ele passa para os
livros, a que os departamentos de publicidade das gravadoras divulgarão. Neste
final de 1931 está ele com 33 anos (doze mais que Noel) e orgulha-se de ter
vivido uma vida de lutas e sacrifícios. Costuma falar da infância pobre passada
na Rua da Prainha(5), no bairro da Saúde, onde nasceu, e do pai português, dono
de botequim, homem trabalhador e honrado de quem teria herdado estas e outras
virtudes.
5. Atual Rua do Acre.

Conta como não se deixou contagiar pelos maus elementos do lugar, reduto
do temível Camisa Preta: enquanto os outros meninos de sua idade arranjavam
dinheiro pedindo esmola ou furtando, ele cantava. Emociona-se ao fazer a
descrição de seus primeiros passos como cantor, menino de calças curtas
interpretando canções pelas esquinas, as pessoas passando, comovendo-se,
atirando-lhe moedas. Depois, os empregos humildes, engraxate, operário da
Fábrica de Chapéus Mangueira, biscateiro, o dinheirinho contado para assistir às
apresentações em circo de seu grande ídolo, Vicente Celestino. Passou fome,
ficou doente, dormiu ao relento. Até que lhe deram oportunidade para cantar em
público, profissionalmente, primeiro no Pavilhão do Meyer, depois no circo
Spinelli, em teatros, em clubes. Vieram as gravações, a popularidade, o estrelato.
Foram muitos anos de luta, de perseverança. Hoje, Francisco Alves estufa o
peito para afirmar que não deve a ninguém ou a nada, além de sua voz, tudo que
conquistou. E está certo. Por isso, não aceita que lhe venham pedir esmolas,
mendigar: "Que trabalhem como eu trabalhei!" Por isso, também, diz ajudar a
todos os que precisam, desde que tenham talento e vontade, os que se
aproximam dele não com a mão estendida, mas pedindo uma chance de trabalho.
No que talvez não esteja absolutamente certo.
É aqui que entra a segunda história que fala de um Francisco Alves meio
herói, meio vilão, grande alma, pobre espírito. Homem de muitos amigos e não
menos inimigos. íntimo de gente da alta, banqueiros, industriais, grãfinos de toda
espécie, é capaz de sair de um palacete da Glória, onde acabou de cantar de
graça, para se juntar a um bando de pés-rapados num botequim do subúrbio,
onde na certa brigará por vinténs na hora de pagar a conta. A fama de sovina não
é de agora:"... desde a infância" - confessará na mesma autobiografia em que
recordará o primeiro encontro com Noel - "tive a fama que nunca mais me
largou o resto da vida: a fama de avarento. Sinceramente nunca o fui..." Do que
o pessoal do meio artístico discorda: segundo eles, Francisco Alves é mais pão-
duro que o próprio Pão-Duro(6).
6. Pão-Duro, famoso personagem da cidade, ia de padaria em padaria esmolando pão dormido para comer. Descobriu-se um dia que era homem de razoável situação financeira. Vem do seu
apelido o substantivo "pão-duro" como sinônimo de avarento.

Não o acham nada elegante e educado aqueles que têm oportunidade de


com ele sentar-se à mesa. Toma ruidosamente sua sopa, mete a mão no prato do
sujeito ao lado, cospe no chão. Mais por cacoete do que por necessidade, jamais
perderá a mania de pontuar suas frases com duas cusparadas. Às vezes de
verdade, mas quase sempre em seco. "Puxa, até na hora de cuspir ele é
econômico!", dizem no Nice.
É um inimigo da bebida. Acha que essa história de ingerir copos e copos de
cerveja, cálices e cálices de conhaque, para amaciar a voz, como dizem alguns
cantores, ou para puxar a inspiração, como querem certos compositores, é pura
balela. É um procedimento antiprofissional. Detesta bêbados, é impaciente com
eles. Pó? Bem, isso é outra coisa. Se volta e meia navega por essas águas, não é
para amaciar a voz ou puxar a inspiração, mas para estar rigorosamente dentro
do figurino da alta. Não era raro entre os grãfinos, os intelectuais, os boêmios
mais refinados da década de 20 cheirar cocaína, mergulhar a cara no éter, ou até
experimentar as sensações do ópio. Francisco Alves já era boêmio naquela
época, só que lhe faltava dinheiro para diversões tão caras. Se a moda da boêmia
mudou (e o pessoal de agora prefere a cachaça, a cerveja, a embriaguez barata
que se compra em qualquer botequim), ele fica com a de antigamente, mais
refinada. Mas não haverá nisso uma contradição, o migalheiro Francisco Alves
optando justamente pelo mais caro? Os maledicentes dizem que não: todo o pó
que ele consome, sem ser um viciado, lhe é conseguido de graça por um parente
de sua mulher. Não será por isso que ele está tanto tempo casado com ela? Tudo
é motivo para maledicências. Inveja, repete Almirante.
Mas a maior acusação que se faz a Francisco Alves é a de que vive a
explorar sambistas do morro, comprando-lhes parceria. Claro, Francisco Alves
não é o único a fazer isso. Muitos outros merecem o nome que o pessoal do Nice
lhes dá: "comprositores". Quer dizer, compram em vez de compor. Mas
Francisco Alves, neste particular, é o mais ativo, o mais vivo. Ismael Silva,
Nílton Bastos, Alcebíades Barcellos, de quanta gente ele tem comprado parceria,
colocando seu nome nos selos dos discos, nas partituras, em toda parte? E às
vezes só o seu nome, condenando o verdadeiro autor ao anonimato. Faz isso com
tanta freqüência que se pergunta por aí se serão mesmo suas canções tão bonitas
como Lua Nova e A Voz do Violão.
Por último, a terceira história. Francisco Alves, sempre tão falante, é quase
um túmulo quando se trata de sua vida amorosa. Vive com Célia Zenatti há mais
de dez anos, mas antes disso foi casado, de papel passado e tudo, segundo
consta, com uma mulher que ele tirou de uma espelunca da Lapa (e que ainda lhe
dará muita dor de cabeça).
Mas Francisco Alves não gosta de falar disso. E fica furioso quando o
fustigam com outras provocações, a sua atração por menininhos, a história de ter
currado um mendigo que dormia debaixo da ponte, só para ganhar uma aposta
(de que não é capaz o velho Chico para abiscoitar um dinheirinho extra?), e
muito especialmente a sua esterilidade, que ele cometeu o erro de confidenciar a
alguém e hoje é assunto maldosamente sussurrado por seus inimigos, que em
torno dele inventam mil e uma histórias, piadas, lendas(7).
7. Não eram só os inimigos de Francisco Alves que alimentavam lendas sobre sua esterilidade. Em entrevista aos radialistas Luiz Carlos Saroldi e Ney Hamilton, no intervalo de um
programa na Rádio Jornal do Brasil, transcrita por Ciléa Gropillo na página 5 do Caderno B do Jornal do Brasilde 21 de agosto de 1981, o compositor e cantor argentino Atahualpa Yupanqui dá sua
espantosa versão: "Eu costumava passear com Chico pelas ruas. Num desses passeios, ele resolveu subir a uma árvore e colher uma flor para oferecer a uma mocinha. Estávamos esperando que ele
descesse com a flor, quando ocorreu um acidente. Chico caiu e machucou-se num dos galhos que perfurou os seus testículos. Desde aí, tornou-se estéril. Não pôde ter filhos. Uma pena." Francisco Alves,
no entanto, só se referiria abertamente a este problema em 1952, ano de sua morte, quando foi levado aos tribunais por sua primeira mulher, esposa legítima, Perpétua Guerra Tutoya, que reclamava
pensão para dois supostos filhos seus com o cantor. O caso mereceu destaque na imprensa por vários meses. Francisco Alves negava a paternidade, alegando não só ter vivido com Perpétua apenas alguns
meses em 1920 (e os filhos tinham nascido anos depois), como também ser estéril. Sua mulher acabaria ganhando a causa. Parte dos bens de Francisco Alves, incluindo direitos autorais de compositor,
acabaria, após sua morte, passando aos filhos.

Histórias, meias-verdades, certezas imersas em interrogações. Tão contadas


e repetidas que quase fazem esquecer a única coisa que realmente importa, a
única que ninguém discute:
Francisco Alves, o cantor, é um artista raro. Grande voz, bom intérprete. O
primeiro verdadeiro profissional que a música popular brasileira já teve (desde
seu primeiro agudo, sob a lona do Pavilhão do Meyer, acredita convictamente
que cantar é um trabalho como outro qualquer, uma profissão que exige
seriedade e disciplina, uma mercadoria que tem de ter qualidade, ser bem
fabricada, bem embalada, para que o comprador saia sempre satisfeito). É um
artista com tal sensibilidade - faro para descobrir talentos, intuição para antever
as possibilidades de uma canção - que não será exagero afirmar'que, anjo ou
demônio, todo ele é feito de música.
Não foi a música que aproximou Francisco Alves de Noel Rosa, mas a
paixão de ambos pelos automóveis. O cantor já foi motorista de praça, dirigiu
carro de madrugada para complementar seu esquálido orçamento de artista de
circo. Isso, naturalmente, no tempo das vacas magras. Hoje, já não precisa. Dá-
se ao luxo de ter um chauffeur particular, um português serviçal chamado
Germano Augusto Coelho, sobre quem vale a pena dizer algumas palavras, já
que sua história se liga também à de Noel. Ninguém sabe onde ou quando
Francisco Alves foi descobrir este português. Sabe-se, porém, que nenhum de
seus patrícios, daqui ou de além-mar, terá com ele alguma semelhança além do
sotaque. Porque Germano, em tudo e por tudo, é um autêntico malandro carioca.
No jeito de andar, no modo de usar o chapéu de banda, nos gestos, no linguajar.
- Solta um suor de alambique - pede ele ao garçom referindo-se à cachaça.
Aliás, Germano Augusto nunca chama cachaça de cachaça. Conhece uma
infinidade de sinônimos - terebintina, legume, malunga, maria-branca, tiguaciba,
água-de-briga, cambraia, patrícia, girgolina, elixir, piribita, supupara, vocação,
sete-virtudes - e usa-os conforme o momento. Para ele, o sujeito esperto é um
pente-fino. O sujeito à-toa, um vagolino. Para se conversar com Germano
Augusto é preciso quase um dicionário de gírias: conhece todas as que já
existem e se dá ao trabalho de inventar mais algumas.
- Germano é o primeiro malandro português da história - diz-se no Nice.
Na face esquerda, como um troféu de guerra, exibe uma cicatriz de navalha
sofrida há muito tempo, assim que veio de Portugal, sinal de um ajuste de contas
mal-sucedido em alguma esquina do subúrbio. Mas não é só na cicatriz e na gíria
que ele se parece com um malandro carioca. Também na picardia pode se gabar
de não dever rigorosamente nada a qualquer bamba do Estácio, da Lapa, da
Gamboa. Pensando bem, em muita coisa ele chega a ser mais esperto. O
exemplo do patrão convenceu-o de que música popular é bom negócio, de modo
que, quando lhe abrirem uma brecha, também se transformará em "comprositor".
E por que não? É homem de jogadas, de armações.
Mas não em cima de Francisco Alves, é claro. Tem muito respeito pelo
patrão, serve-o com eficiência e lealdade. Dirige-lhe o carro, ajuda-o nos muitos
negócios que o cantor mantém paralelamente à música, um dos quais o comércio
de automóveis usados. Francisco Alves os compra em São Paulo e depois os
vende pelo dobro no Rio. Germano Augusto, Leo Beriquen e outros motoristas
são pagos por ele para realizarem as viagens, ida de trem, volta ao volante de
uma mercadoria que invariavelmente significa bons lucros. Noel Rosa começa a
perder a confiança no Viramundo, seus enguiços cada vez mais freqüentes.
Ainda outra noite, um amigo teve de abrir o guarda-chuva pelo buraco da capota
para evitar que o temporal acabasse com a serenata que faziam dentro dele.
Quem sabe não pode trocar o Viramundo? A vontade de ter novamente carro -
não exatamente novo, mas pelo menos não tão velho quanto o Chandler - faz
com que procure o cantor.
Francisco Alves também mora em Vila Isabel. Vive com Célia Zenatti no
185 da Rua justiniano da Rocha, uma casa de altos e baixos em cuja garagem
muitas vezes Germano pernoita. Mas as primeiras conversas entre ele e Noel
sobre a possibilidade de fecharem negócio em torno de um automóvel não dão
em nada. O mais barato que Francisco Alves tem para vender, um Chevrolet cor
de azeitona, custa cinco ou seis vezes mais do que Noel pode pagar. O que não
os impede de falarem em outros assuntos. Samba, por exemplo. Francisco Alves
sabe do talento de Noel, não é segredo para ninguém que este rapaz magrinho,
de olhos inteligentes e fala mole, que o vem procurar a propósito de automóveis,
anda por aí "consertando" letra de música de muita gente. Na certa poderá
lapidar algumas das pedras brutas que o cantor vive descobrindo nos morros e
bairros distantes.
- Se precisar...
É evidente que Francisco Alves vai precisar.
Gentleman, de verdade, é Mário Reis. Fino, inteligente, culto. Nascido
numa tradicional família tijucana, teve infância muito diferente da de Francisco
Alves: bons colégios, boas roupas, boa mesa. Para satisfazer a vontade do pai,
formou-se em direito. Na mesma turma de Ary Barroso. Mas, como o autor de
Vou à Penha, não exerce a profissão. Nem precisa. Será muito mais "doutor em
samba" - apelido que lhe dará Custódio Mesquita. O dinheiro da família é o
bastante para que viva muito bem, tenha automóvel, roupas caras, carteira
permanentemente bem provida. Em matéria de elegância, é exigentíssimo.
Consigo mesmo e com os outros, a ponto de olhar para Francisco Alves, mesmo
nos dias em que este está orgulhosamente posto dentro de sua roupa a rigor, e
dizer: -Não sei por que você insiste em fazer seus smokings naqueles alfaiates da
Rua Maxwell.
Sim, porque os smokings de Mário Reis são feitos pelo Lacurte. Elegância
em tudo, no vestir, nos gestos, nas palavras. Como terá Mário Reis se metido
nesse negócio de música popular? Talvez nem mesmo ele saiba. Sempre gostou
de cantar, mas achava que não tinha voz (ter voz, na época em que começou, era
poder ser ouvido a duas ou três esquinas de distância, assim como Vicente
Celestino e o próprio Francisco Alves). Quis aprender violão, foi até a Guitarra
de Prata, uma das lojas rivais do Cavaquinho de Ouro, e lá conheceu Sinhô.
Tornou-se seu aluno, o famoso compositor indo duas vezes por semana à sua
casa, na Rua Affonso Penna, para ensinar-lhe o pouco que sabia (estava longe de
ser um virtuose, tanto no violão como no piano). Um dia Mário Reis cantou um
novo samba de Sinhô:
Amor, amor, não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher,
Quando ela quer...?

Sinhô ficou impressionado com aquela maneira nova de cantar, nenhum


agudo, nenhum dó de peito, só as pausas, certas, exatas, dando ao samba um
sabor mais carioca, mais Chão. E dizer que aquela maneira nova vinha da parte
de um grãfino. Francisco Alves já havia gravado muita coisa de Sinhô, Cassino
Maxixe, Ora Vejam Só, A Favela Vai Abaixo, Não Quero Saber Mais Dela, mas
nunca como Mário Reis. Francisco Alves cantava, Mário Reis, "dizia", fazia a
música falar. Bastava ouvi-lo em fura. Ou então na magistral pontuação dos
versos de Cansei:
Cansei, cansei, cansei de te querer,
Mas fui de plaga em plaga,
O além do além...

Ou neste breque:
Que eu não vim ao mundo
Somente com o fito de eterno sofrer

Graças à insistência de Sinhô, a voz e o estilo de Mário Reis foram para o


disco. Não como brincadeira de mais um almofadinha atraído pela novidade de
registrar sua voz na cera, mas como intérprete que viera para mudar a música
popular do Brasil. Terá Sinhô antevisto isso? O fato é que desde 1928 Mário
Reis vem gravando com sucesso. De início hesitante, a família fazendo pressão,
o pai dizendo que um futuro advogado não deveria se misturar com gente do
samba. Mas superará essa resistência. Nunca como um profissional nos moldes
de Francisco Alves. Na verdade, até o fim da sua carreira Mário andará sempre
naquele território mais ou menos neutro entre o amadorismo remunerado e o
profissionalismo não declarado. Mas, de qualquer forma, tornou-se um intérprete
atuante e, sobretudo, influente.
São muitas, de fato, as diferenças entre ele e Francisco Alves. Se se pensar
bem, a não ser pelo fato de gostarem de cantar (e de torcerem pelo América),
nada têm em comum. Diferenças que se tornaram ainda mais evidentes desde o
começo do ano, quando, por sugestão de Mário, gravaram juntos Deixa Esta
Mulher Chorar & Qua-Qua-Quá. A dupla fez tanto sucesso, marcou de tal forma
a sua presença nas rádios, nos teatros, em toda parte, que a Odeon decidiu torná-
la permanente. Naturalmente, os dois cantores resistiram à idéia, cada qual
disposto a manter sua carreira independente. Mas, daqui até 1933, quando Mário
se transferir para a Victor, farão ainda mais onze discos-.
Francisco Alves é, não se discute, o mais popular. Será um dos mais
imitados cantores de toda a história da canção brasileira, fazendo com que no seu
rastro caminhem, para citar apenas alguns contemporâneos de Noel, nomes
como os de Castro Barbosa, João Petra de Barros, Arnaldo Amaral, Carlos
Galhardo. No entanto, a influência exercida por Mário será muito mais
inovadora. O próprio Francisco Alves não ficou imune a ela, bastando que se
ouçam suas gravações anteriores, muitas tão operísticas quanto as de Vicente
Celestino, para depois compará-las com as que se seguiram ao surgimento de
Mário Reis. Depois deste, o jeito de cantar samba mudou. É verdade que Mário
Reis começou a gravar já na fase do sistema elétrico, os microfones mais
sensíveis dando vez a cantores de vozes menos extensas, enquanto Francisco
Alves, vindo dos tempos do sistema mecânico, tivera de se formar mais pela
escola do peito aberto (por isso, quando eles gravam juntos, Mário fica mais
próximo do microfone, Francisco Alves lá atrás, recurso que torna possível as
duas vozes serem registradas num mesmo nível). Mas, potência à parte, a
influência de Mário, que até Francisco Alves assimilou, faz-se sentir no
fraseado, na emissão das palavras, claras e ao mesmo tempo coloquiais como
quem conversa. Uma influência tão significativa que graças a ela o impossível
tornou-se possível, isto é, cantores de voz miúda como o próprio Noel Rosa
conseguirem o seu lugar ao sol.
Atento a tudo isso - ao sucesso da dupla e mais ainda ao fato de suas
interpretações serem simplesmente irresistíveis (quem não se dobra à força de
um Se Você Jurar, êxito maior de Mário Reis e Francisco Alves?) - Noel, como
qualquer outro compositor de agora, não poderia deixar de pensar na
possibilidade de ter uma de suas músicas cantadas por eles. Por isso, caprichou
em novo samba, deu-lhe a forma de diálogo, citou astuciosamente o nome de
Francisco Alves na letra (tornando-o assim uma espécie de propriedade
particular do cantor), intitulou-o É Preciso Discutir e levou-o até a casa da Rua
Justiniano da Rocha.
- É para você gravar com o Mário.
Noel mostrou-o, indicando quem cantaria quais versos:

Chico:
Na introdução deste samba,
Quero avisar por um modo qualquer
Que esta briga é por causa de uma mulher.
Mário:
E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto.
Mário:
É preciso discutir...
Chico:
Mas não quero discussão...
Mário:
Da discussão sai a razão...
Chico:
Mas às vezes sai pancada...
Mário:
A questão é complicada...
Chico:
Quero ver a decisão...
Mário:
A mulher tem que ser minha...
Chico:
A mulher não traz letreiro...
Mário:
Foi comigo que ela vinha...
Chico:
Mas fui eu quem viu primeiro...
Mário:
Ela é minha porque vi...
Chico:
Mas quem segurou fui eu...
Mário:
A conversa já meti...
Chico:
A mulher não escolheu...
(E podes crer que é...)
Mário:
Já perdi a paciência...
Chico:
Eu por ela me arrisco...
Mário:
Sou capaz de violência...
Chico:
Mas não vai quebrar o disco...
Mário:
Quanto tempo foi perdido...
Chico:
Perdi tempo pra ganhar...
Mário:
Ganhar fama de atrevido...
Chico:
Quem se atreve quer brigar...
(E podes crer que é...)

Assim, a partir dos primeiros dias de 1932, Noel Rosa e Francisco Alves
estarão mais próximos. Pela música e pelos carros, uma coisa ligada à outra. Ao
perceber em Noel uma mina de ouro, um possível "compositor exclusivo" como
muitos que já tem, o cantor põe em jogo sua habitual sagacidade:
- Você ainda está interessado naquele Chevrolet?
Interessado Noel está, mas pelo preço é melhor que nem reabram o assunto.
- Vamos fazer uma coisa: você fica com o carro e me paga em samba.
Noel ouve os detalhes da proposta, a cada samba cujos direitos autorais
ceder a Francisco Alves, este vai tirando uma fatia do total. Cinqüenta hoje, 30
amanhã, 100 depois, Noel verá como o Chevrolet se pagará rápido, sairá quase
de graça. Que pelo menos estude a proposta. Francisco Alves diz que está para ir
a Buenos Aires numa excursão com Mário Reis, Carmem Miranda, Luperce
Miranda, Tute, só gente boa. Na volta conversam.
Não resta a menor dúvida: Noel vai aceitar a proposta. O Viramundo lhe dá
dores de cabeça demais. Tantas que um dia, ao bater com ele num poste da Rua
Visconde de Santa Isabel, o deixará lá para sempre. Que alguém trate de rebocar
o velho Chandler. Sim, vai aceitar a proposta. Tem até um nome para o novo
carro: Pavão.
Mário Reis e Francisco Alves
Capítulo 20

SUBINDO O MORRO

O samba, na realidade,
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.
Feitio de Oração

Canuto foi o primeiro. Um negro bem comprido, magro, a fala mansa


enfeitada de gírias. Ninguém podia precisar como ou quando apareceu em Vila
Isabel. No começo pensava-se ter vindo do morro dos Macacos, mas hoje já se
sabe que mora mesmo no Salgueiro, lugar a que nenhum dos tangarás se atreve a
subir para o que quer que seja. Nenhum não é exato. Noel sobe ao Salgueiro. E
também ao morro dos Macacos. E a outros mais, Favela, Saúde, Mangueira.
Sempre movido por bom motivo: samba.
Embora os tangarás tenham descoberto Canuto praticamente ao mesmo
tempo, embora partisse de Almirante a idéia de levá-lo com seu tamborim para
um estúdio de gravação e embora fosse João de Barro o primeiro a tornar-se seu
parceiro, de todos é Noel o mais ligado a ele. E um dos que mais apreciam seu
jeito de bater, não com a baqueta, mas com o dedo indicador, longo, esticado.
Noel acha Canuto ainda melhor que o Manuel Anacleto, camarada que faz do
tamborim o que quer, um dos primeiros que se conhecem no bairro a realizar
malabarismos com o instrumento (Anacleto gosta, por exemplo, de rodopiar o
tamborim na ponta do dedo como fazem alguns pandeiristas). Já Canuto prefere
deixar para lá as figurações, limitando-se a fechar os olhos, enlevado, enquanto
batuca. Quando do sucesso do Na Pavuna, as casas de música tocando o disco a
todo instante, costumava postar-se à porta de uma delas. Aos curiosos que
paravam para ouvir, apontava primeiro para o alto-falante de onde saía o som do
seu tamborim e depois para si mesmo, como se dizendo: "Este aí sou eu!"
Foi mesmo o primeiro. O primeiro a aproximar o morro e sua música de um
Noel desde cedo inquieto na busca daquele samba "diferente" que o encantara. Já
havia intuído ao tempo de Com Que Roupa?. Agora tem certeza: são estes
negros, humildes, incultos, mas musicais até a alma, que criam sob o teto de
zinco de seus barracos o melhor samba carioca. O mais rico harmonicamente, o
de estruturas melódicas mais afinadas com o seu temperamento. Noel não é
negro, não vive no morro, não pode dizer que seja pobre. Mas entende essa gente
como se fizesse parte dela.
Por quê? Como explicar a afinidade que desde logo se fez entre ele e os
compositores do morro ? Nunca é demais lembrar que compositores de morro
não são apenas os que efetivamente moram lá no alto, em casebres remotos, só
atingíveis depois de se percorrerem caminhos angulosos riscados em barranco
íngreme. Também são "compositores de morro" os social e economicamente
identificados com aqueles. E como eles parte de uma população pobre, negra ou
mestiça, que se instalou nos pés de morro, ou margeando as linhas de trem, ou
nos confins de um subúrbio carioca.
Ao longo de dois, três anos-chave em sua carreira, isto é, desde que
conheceu o lustrador de móveis Canuto em meados de 1929, até se firmar como
um cartaz do rádio e do disco já no começo de 1932, Noel vai subir muitas vezes
o morro, beber em sua fonte, experimentar parcerias com seus compositores,
aprender com eles. Sábia e humildemente. Isso enquanto os outros tangarás,
guiados por Almirante, ainda pensam nos cocos e nas emboladas. É uma busca
consciente a de Noel. Nestes dois, três anos, nenhum compositor da cidade,
branco, remediado, instruído, com passagem inclusive pela universidade, será
tão freqüentemente parceiro de "compositores do morro". Ou o fará de mente e
coração tão abertos. Claro, não se pode esquecer Francisco Alves, que muito
antes de Noel - e de forma bem mais pragmática - andou indo aos morros atrás
de samba. Garimpeiro infatigável, rastreador atento, Chico é um cantor a que a
música brasileira vai dever, entre tanto mais, a descoberta e popularização dos
compositores do Estácio e seus seguidores. Mas há uma diferença: o cantor
famoso chega a estes sambistas, colhe a pedra bruta de suas criações, lapida-a
com sua voz, embala-a em forma de disco, converte-a em sucesso. Faz negócio
com eles. Pode ser seu "sócio", mas não parceiro. Sua subida ao morro, sua
busca, tem outro significado. Já a de Noel é sobretudo integradora, mais soma
que troca, comunhão plena no ato de criar. Não fará tanto sucesso, mas será
muito mais enriquecedora.
Esse tipo de parceria - de brancos cá de baixo com negros lá de cima - é por
várias razões raro: classes sociais, filosofias de vida, preconceitos, tudo separa os
dois mundos. É até difícil seus habitantes se cruzarem, vivendo em pontos tão
opostos, freqüentando restaurantes e botequins distintos, jamais indo às mesmas
festas. Tomemos o exemplo de alguns dos melhores compositores brancos de
hoje: Eduardo Souto, Ary Barroso, Joubert de Carvalho, Heckel Tavares,
Augusto Vasseur, Gastão Lamounier, Freyre Júnior e mesmo Lamartine Babo e
os outros tangarás. Como imaginar algum deles numa tendinha de morro a
batucar caixa de fósforos no meio desses negros? Como pensar neles a escalar
encostas enlameadas trajando os seus imaculados ternos de linho branco?
Mesmo a parceria de João de Barro com Canuto, pioneira na união dos dois
mundos, foi um episódio isolado. Depois de Não Quero Amor Nem Carinho e
das segundas partes de João de Barro para Vou à Penha Rasgado, a dupla se
desfez. A de Canuto com Noel Rosa talvez venha a durar muito, se muito eles
viverem.
Canuto, Deocleciano da Silva Paranhos, já tem os pulmões fracos em fins
de 1931. Mas é mesmo de amor que mais padece. Bebe muito, vive pelos
botequins a falar da mulher que o trocou por outro. Uma noite, encorajado pelo
álcool e pelo ciúme, confiando ainda numa força que já não tem (foi lutador de
boxe há alguns anos, mas hoje só lhe sobram, além da respeitável altura,
cinqüenta e poucos quilos de fragilidade), desafia para briga o malandro que lhe
roubou a mulher. É encontrado pela manhã gemendo num canto de calçada, o
corpo coberto de sangue. O rival, mais ágil, esfaqueou-o no peito e na barriga.
Canuto passa dois meses no ospital. Sai de lá mais magro ainda, mas cheio de
inspiração. E disposto a receber de volta o ex-amor, como diz em Esquecer e
Perdoar, samba seu com Noel:
Pelo mal que me fizeste
Sem eu merecer,
Eu te quero perdoar
E te esquecer.
Não deixei de te amar
(Vai por mim)
Nem posso viver assim.

Quero agora o teu carinho,


Quero a tua proteção,
Quero arranjar padrinho,
Não quero morrer pagão.

Vem a forte tempestade,


Mas depois vem a bonança.
Sofri tua crueldade.
Mas minh'alma hoje descansa
(Só me resta a lembrança...)

Se deixei de te amar
Foi só pela ingratidão
Que fizeste sem pensar,
Sem lembrar de uma paixão.
Mas agora estou mudado,
Meu coração não se cansa.
Por saber que sou amado
A minh'alma hoje descansa
(Vivo só de esperança...)

Um belo samba que a voz sentida de Canuto valoriza ainda mais na


gravação. Precioso exemplo de como já em 1931 Noel está perfeitamente
sintonizado com os sons lá de cima, o morro e a cidade - através dele e Canuto -
se dando as mãos, a música e o coração a aproximá-los. Os dois fazem juntos
outro samba, Cadê Trabalho?, no qual a filosofia da malandragem, da aversão
ao batente, é revisitada pelo humor de Noel. O samba, porém, jamais será
gravado.
Você grita que eu não trabalho,
Diz que eu sou um vagabundo.
Não faça assim, meu bem!
Pois eu vivo ativo neste mundo
À espera do trabalho
E o trabalho não vem.

Quando eu me sinto bem forte


Vou procurar um baralho,
Mas fico fraco e sem sorte
Se vejo ao longe o trabalho.

Se conversa adiantasse,
Eu seria conselheiro.
Se fraseado vingasse,
Não andava sem dinheiro.

Acordei com pesadelo,


Quase que o chão escangalho
Com dores no cotovelo
Por sonhar com o trabalho!

Trabalho é meu inimigo,


Já quis me fazer de tolo:
Marcando encontro comigo,
O trabalho deu o bolo.

Num terceiro samba, Já Não Posso Mais, Noel e Canuto terão dois
colaboradores: Puruca, outro negro do Salgueiro que faz ponto nas esquinas de
Vila Isabel, e Almirante, que será seu intérprete em disco:
Adeus, mulher fingida,
Eu já vou-me embora.
Tu estás arrependida,
Já não posso mais!
Deus que me perdoe
Pelo que fiz
Deixando abandonada
Aquela pobre infeliz.

O teu mau procedimento


Fez meu coração sofrer
E teu arrependimento
Não me pôde comover.

Tu encheste meus ouvidos


Com frases de ocasião,
Nem sempre os arrependidos
Nos merecem o perdão. (Agora)

Se tu fosses processada,
Diante de um auditório,
Tu ficavas bem calada,
Pois tens culpa no cartório.

Há bastantes testemunhas
Do que fui e do que sou.
Quando me botaste as unhas,
Meu dinheiro se pirou. (Por quê?)

Canuto não vai viver muito. Morrerá a 27 de novembro de 1932, antes de


chegar aos trinta e com um punhado de sambas por fazer.
- Se tivesse durado um pouco mais - admitirá Noel aos amigos no Ponto de
100 Réis - ia ser o melhor de todos nós.
Talvez. Mas Canuto viveu o bastante para apresentar Noel a gente do
samba como ele, compositores do morro nos quais os outros tangarás não
parecem tão interessados. Sambistas como Antenor Santíssimo de Araújo, o
Gargalhada do Salgueiro. Futuro diretor de harmonia da Escola de Samba Azul e
Branco, Gargalhada é respeitadíssimo não só no seu morro, mas em todo lugar.
Um líder, homem de coragem. Em 1934, quando um italiano sabido compra boa
parte do Salgueiro, mandando lá a polícia com ordem de despejo para dezenas de
famílias, Gargalhada vai se plantar bem no começo da subida. Ficará na história
sua ameaça aos policiais: - Se quiserem subir, subam. Mas pra cada barraco que
vocês botarem abaixo, é um de vocês que a gente derruba também!
Os policiais farão meia-volta, o italiano vai desistir do morro.
Quando Canuto apresenta Noel a Gargalhada, este ainda está meio
queimado com o pessoal de Vila Isabel, especialmente a turma que desfila pelo
Faz Vergonha. Num desses carnavais, o bloco saiu cantando:
Oswaldo Cruz,
Morro da Mangueira,
Favela,
Estácio de Sá,
Vamos acordar o Salgueiro
Que o mundo inteiro
Quer ouvir o seu cantar.

Gargalhada fez um samba em resposta:


Tenho prazer e glória em citar,
Mas o Salgueiro não está adormecido...
Quem é a Vila para nos acordar?

Briguinhas de samba, nada para se levar a sério. E das quais Noel não
participa, ele que respeita tanto o Salgueiro que lhe dedicará, além dos geniais
versos de Quem Dá Mais?, pelo menos mais duas citações em letra de samba. O
que conta é que Gargalhada, até sua morte em 1941, também de tuberculose,
será uma das legendas maiores do seu morro. Praticamente desconhecido dos
rapazes de Vila Isabel desta época. Mas não de Noel, que será parceiro dele em
Eu Agora Fiquei Mal. Canuto, amigo e padrinho da dupla, é quem o gravará.
Tenho vontade de ir à Penha,
Mas me falta o principal:
A mulher que me ajudava tanto.
Ela deu o fora!
Eu agora fiquei mal
(Eu agora fiquei mal)

Esta mulher foi-se embora


Me deixou bem arruinado
Eu que estava tão sadio
Agora estou acabado,

Mas agora eu peço muito


Para não escorregar.
Leve o meu pedido
À santa que está no altar.

Tou vendo as coisas feias,


Talvez nem possa alcançar
O final da escadaria
Que sobe pro seu altar.
Nossa Senhora da Penha
Vai fazer o que puder,
Se ela me livra
De toda mulher...

Ao que parece, as propostas de parceria partem quase sempre de Noel. Pelo


menos no começo de seu relacionamento com os sambistas de morro, aqueles
que ainda não desceram como Canuto. Ou como Puruca, ritmista completo que
toca tamborim, cuíca, reco-reco, ganzá e um surdo que ele mesmo construiu
adaptando couro à boca de uma barrica conseguida num armazém da Praça 7.
Noel vai atrás deles, procura conhecê-los, ouvir o que fazem. Viaja a bordo do
samba, do Boulevard ao Salgueiro, do Salgueiro à Mangueira.
O primeiro contato com Angenor de Oliveira, o Cartola, se dá entre dois
tragos no Café e Bilhares Maracanã, mais conhecido como Café da Uma Hora
(nestes tempos em que a maior parte da cidade dorme cedo não são muitos os
botequins abertos até tão tarde). Situado no 476 da Rua São Francisco Xavier,
em frente ao rio Joana e a um quarteirão do Largo do Maracanã, é local de muito
movimento o dia todo. Quando o português José Martins o inaugurou em 1927,
nem podia imaginar que seria um ponto tão importante na geografia da música
popular carioca. O centro de um território que engloba Vila Isabel, Mangueira e
as Ruas Dona Zulmira e Santa Luíza, aquelas das famosas batalhas de confete.
Pois as mesas deste botequim - doze de café, cinco de sinuca - são freqüentadas
por compositores, cantores, instrumentistas, sambistas de morro, toda uma
freguesia musical. É ali que Francisco Alves fecha muitos de seus negócios (e
guarda nas mãos de seu Zé o velho violão). Um botequim onde se encontram os
irmãos Mário e João Petra de Barros, Paulo e Luís Barbosa, os rapazes do Ponto
de 100 Réis (Noel entre eles), Benedicto Lacerda, os foliões do Faz Vergonha,
Lamartine Babo, um ou outro egresso do Estácio, os salgueirenses Canuto e
Puruca, Kalua, Castro Barbosa e tantos outros. E muito especialmente os bambas
que vêm da Mangueira, o Massu, Carlos Cachaça, Zé Com Fome, Ruço da
Amélia, Cartola. (Arquivo da Funarte.) Mestre Waldemiro, Aloísio Dias,
Maciste, Saturnino Gonçalves, os novos, os mais antigos. E Cartola.
A ligação entre Cartola e Noel não se vai restringir a encontros fortuitos e
papos de vez em quando no café de José Martins(1).
1. O pessoal da velha guarda da Mangueira refere-se hoje ao Café da Uma Hora como o Bar do Alberto. Ao se aposentar em 1942, José Martins passaria a administração da casa ao filho
Alberto Abrantes Martins e ao sobrinho e genro Lourenço de Abrantes. Alberto desde garoto trabalhava ali. Simpático, comunicativo, muito amigo da turma da música, o botequim acabaria entrando para
a história com o seu nome.

Um dia Noel entra na Rua 8 de Dezembro, desce a ladeira, atravessa a linha


do trem e vai procurar Cartola no seu barraco perdido no meio de uma subida
estreita. Mostra seus sambas a ele, ouve o que o compositor da Mangueira tem
guardado. Desde este dia, ficam amigos.
Em 1935, quando o jornal A Nação promover o concurso "Qual será o
maior compositor das nossas escolas de samba?" e Noel for convidado a dar seu
voto, mais que isso ele fará quase um discurso:
"Cartola merece uma campanha em torno de seu nome. Dos compositores
espontâneos, ninguém merece mais do que ele. Tem dado ao público não
pequeno número de verdadeiras obras-primas. Quem não conhece Divina Dama
e Fita Meus Olhos? Não me poderia passar desapercebido (sic) o nome de
Cartola num concurso entre os melhores sambistas. A sua escola de samba, a
quem empresta toda a sua colaboração, esta no dever de ampará-lo. Tantas vezes
tem concorrido para o renome alcançado por sua escola que não se explica esta o
desamparar justamente quando chegou a sua vez de aparecer. Dou por isso a
Cartola o meu voto sincero."(2)
2. A Nação, 21 de abril de 1935.

O amparo que Noel vai reclamar é o que a Mangueira negará a seu


compositor. Afinal, quando já estiverem computados mais de 6 mil votos, dados
através de um cupão que o jornal publicará diariamente, Cartola nem aparecerá
na relação dos 23 mais votados. Enquanto Madureira prestigiará o seu Paulo da
Portela (líder e virtual vencedor do concurso), Ramos o seu Armando Marcai,
Salgueiro os seus Gargalhada, Puruca e Pedro Barcellos, Gamboa o seu Raul
Marques, a própria Mangueira o seu Maciste, Cartola, o melhor dos
"compositores espontâneos", nem será lembrado. Noel, depois do protesto, vai
pôr seu voto na urna de A Nação.
Mas o fato justificará um discurso? Não estará Noel Rosa exagerando? Será
que esse tal de Angenor de Oliveira é tão bom quanto ele diz?
Ou é apenas um bom amigo sambista que Noel vai querer promover?
Os dois se tornam mesmo grandes amigos. Destes cuja estima mútua o
tempo só faz intensificar. São dois moços simples (Cartola dois anos mais velho
que Noel). Sem nove-horas, sem qualquer artifício no jeito de ser. A
simplicidade do sambista da Mangueira chega a ser comovente. Delicado nas
palavras, nos gestos, em tudo que faz, inclusive os sambas. Modesto, incapaz de
altear a voz. Sempre trabalhou - pedreiro, biscateiro, vários ofícios - e no entanto
jamais perdeu a calma para protestar contra os policiais que o chamavam de
vagabundo e o maltratavam pelo crime de fazer samba. É um dos heróicos
pioneiros que resistiram com bravura à intolerância das autoridades para com os
sambistas. Simplicidade e modéstia que jamais perderá, mesmo que venha a ser
alguém, quem sabe um compositor admirado, amado, famoso?
Nasceu no Catete, mas mora desde menino na Mangueira. E de lá não
pretende sair tão cedo. No dia em que sua família mudou-se do morro, bateu pé:
"Vocês vão, eu fico!" E ficou mesmo. Morando neste barraco de sala e cozinha
em que Noel, cada vez mais, vai procurá-lo. Cartola ainda não havia chegado aos
dezoito anos quando caiu de cama muito doente, precisando de repouso, muita
comida e bons tratos. "Doença de rapaz", disseram. Deolinda, vizinha do barraco
ao lado, soube e foi visitá-lo: "Pode deixar, menino, que eu cuido de você." No
princípio, em nome da solidariedade, lei sagrada a que os moradores do morro
obedecem religiosamente. Depois, foi tomando gosto, aquele jeitinho de Cartola
enroscando-se nela, enfeitiçando-a. Até que uma noite o marido de Deolinda
chegou em casa, cansado do trabalho, e a encontrou com a trouxa feita e a filha
Ruth, de dois anos, no colo. Foi franca: - Estou me mudando pro barraco do
lado.
- O quê?
- Vou morar com o Cartola.
O homem trincou os dentes. Pensou primeiro em esganar Deolinda mas os
vizinhos foram chegando, atraídos pelos xingamentos dele, embora sempre
olhando ao longe, como aquele ditado que tambem é lei sagrada: "Briga de
marido e mulher é deles lá..." O homem mudou de idéia e achou melhor resolver
a questão com Cartola. Saiu por uma porta e entrou por outra, encontrando o
vizinho deitado, muito magro, ainda fraco. Mesmo assim, explodiu: -Roubando
minha mulher, seu aprontador. Vim te arrebentar!
- Mas tu não vê que eu tou morrendo? O marido de Deolinda recuou.
Pensou bem, convenceu-se de que não era direito bater num garoto esquelético,
moribundo. Deixou a surra para quando Cartola ficasse bom. Só que, quando
isso aconteceu, a raiva já havia passado. E Deolinda já estava definitivamente
instalada no barraco de quarto e cozinha, com a menina que Cartola criará como
sua, filhos que ela terá um dia chamando-o, orgulhosos, de avô.
Deolinda é mulher como poucas. Noel terá oportunidade de constatar isso
muitas vezes. Pois a partir daquele primeiro encontro com Cartola no café do
Maracanã - e mais ainda do dia em que o procurou lá em cima - o barraco passa
a ser uma espécie de sua segunda casa. Em alguns momentos, primeira. Nos
anos que se seguirão, de agora até as vésperas de sua morte, Noel fará daquele
humilde casebre, perdido entre tantos na Mangueira, o seu refúgio. Quando as
coisas não estiverem bem na cidade, os dissabores, as ingratidões, os cansaços,
os tédios castigando-o por dentro, é para ali que correrá. Um refúgio tranqüilo,
entre samba, cerveja e as bênçãos de Deolinda.
Noel bebe duas vezes mais que Cartola.
Será sempre assim. De vez em quando, já meio alto, esperará o amigo
voltar do trabalho, sentado no corrimão de ferro da ponte sobre a linha do trem.
Cartola chega e os dois se cumprimentam, sobem juntos. O cansaço e a bebida
não raro derrubam Noel.
-Deolinda!- grita Cartola para a mulher.
Nessas horas é ela quem cuida de Noel como se fosse uma criança de colo.
Faz uma fogueira de lenha no quintal, esquenta água numa lata de banha, tira a
roupa dele, ergue-o no colo com seus braços fortes e o coloca dentro de uma
bacia onde vai jogando, pacientemente, cuias e mais cuias de água quente.
Esfrega-o com bucha, enxuga-o, veste-lhe as roupas de Cartola, o pijaminha
velho mas limpo de dar gosto. Depois, prepara-lhe um caldo forte, osso de tutano
fervido com tomate e cebola, às vezes engrossado com talharim. Que ela lhe dá
na boca, devagarinho, enquanto Cartola observa com olhos de aprovação.
- Este caldo levanta até caixa d'água. Deolinda cinco, seis anos mais velha
que os dois, é o anjo da guarda da dupla(3).
3. Deolinda da Conceição deixaria Cartola viúvo em 1946. Foi logo após a sua morte que, inconformado, ele fez o samba Sim, de parceria com üswaldo Martins:
Consegui um grande amor
Mas eu não fui feliz
E com raiva para os céus
Os braços levantei Blasfemei!
Os que conheceram Deolinda a descrevem como "uma santa". Neuma Gonçalves da Silva, por exemplo, conta: "Uma mãe para o Noel. Depois de dar banho nele, num daqueles porres,
punha-lhe polvilho. Pra não assar. Sabe como é, ele bebia de se urinar todo." O marido que ela trocou por Cartola chamava-se Astolpho e, no fim da vida, doente, não tendo para onde ir, foi recolhido
pelo próprio Cartola, já então casado com Euzébia Silva do Nascimento, a Zica, que por sinal tinha sido muito amiga de Deolinda.

Alimenta e cura suas bebedeiras, trata-os como a duas crianças, perdoa-lhes


as traquinagens. Porque Cartola e Noel costumam sair juntos para longas
noitadas. Como no fim de tarde em que o Zé Maria aparece no Café da Uma
Hora e lá encontra os dois conversando com Carlos Cachaça, parceiro e amigo
de fé de Cartola. Zé Maria veio numa baratinha nova, bonita, reluzente, de um de
seus fregueses (é mecânico de gente graúda, inclusive Francisco Alves).
Geralmente é assim: entra no carro que o cliente lhe deixou para reparo e sai por
aí fazendo farol. Começa a anoitecer e ele convida os três para uma farrinha.
Mandam Seu Zé descer dois engradados de cerveja e colocam na mala do carro.
- Agora vamos até o Buraco Quente arranjar umas companhias - propõe o
Maria.
No Buraco Quente, um dos pontos de maior movimento na Mangueira, só
acham duas pequenas interessadas em fazer-lhes companhia: Nena e Genoveva.
Apertam-se os seis na baratinha, tomam o caminho da Vista Chinesa e só voltam
depois das cinco da manhã, as garrafas vazias, as meninas cansadas. Cartola nem
vai trabalhar. Noel dorme no seu barraco.
Eventualmente os passeios se fazem no Pavão, o tal Chevrolet de dois
cilindros, cor de azeitona, que ele comprou de Francisco Alves (o cantor tem um
caderno de capa dura, tipo conta de armazém, onde vai anotar "primeira parte do
samba tal, tantos mil réis", "segunda desta ou daquela música, outros tantos mil
réis", "correção e uma letra de fulano, mais tanto...", até que se complete o total).
No dia em que fecham negócio, Noel vai à Mangueira e convida Cartola e outros
amigos para uma volta pelo Centro. Noel no volante, entram pela Rua Luís de
Camões e chegam ao Largo de São Francisco. Noel tem uma idéia: - A Rua do
Ouvidor! Vou entrar nela.
- Tá maluco? Ali não passa carro.
- O meu passa.
E assim faz, às quatro da tarde, a rua estreita cheia de gente espantada com
a ousadia do Pavão. Na esquina de Uruguaiana, um guarda:
- Pára! Pára! Noel pisa no freio.
- Ficou doido, rapaz?
- Por que, seu guarda?
- Esta rua... É proibido passar carro.
- Mas que rua é esta?
- Ouvidor. Não sabe ler? - pergunta apontando para a placa.
-Puxa, seu guarda, me desculpe! Como é que pude me enganar?
- Está bem, pode ir. Mas não me repita, ouviu?
O Pavão se vai, Noel às gargalhadas, os outros sérios.
É Cartola quem o leva para os ensaios da escola de samba. Apresenta-o ao
pessoal do morro, faz com que se sinta em casa, o Buraco Quente sendo como o
Boulevard. É ali que, transpirando cerveja, uma noite Noel cumpre sua breve e
patética carreira de mestre-sala. Leque na mão, improvisa passos que a bebedeira
transforma em risíveis piruetas. E a elegante Georgina fazendo força para
acompanhá-lo como porta-bandeira. É Cartola, ainda, quem o aproxima de
Heitor Villa-Lobos, o grande compositor que acaba de voltar de Paris. O maestro
- na ânsia de desencavar entre compositores populares os mais espontâneos, ou
mesmo os mais primitivos, uma riqueza musical inexplorada - acabou parando
em Mangueira. Ou melhor, na casa de dona Ephigênia, no mesmo Buraco
Quente. Cabeleira farta, charuto fumegante, foi logo perguntando: - A senhora
sabe onde posso encontrar um moço chamado Cartola?
Desde 1932 à frente da Superintendência da Educação Musical e Artística
(SEMA), Villa-Lobos levará o canto orfeônico às escolas públicas do Rio,
ensinando a meninos e meninas os hinos, canções patrióticas, cantigas de roda
para serem cantados a duas, três vozes. É sua crença que, a médio prazo, a partir
dessas experiências corais, a boa música terá se massificado no Brasil, nosso
povo conhecendo-a e apreciando-a melhor. O maestro é um sonhador.
Quer que o erudito e o popular se entrelacem.
Vem daí sua ligação com Cartola, o próprio Villa-Lobos indo à Mangueira
para reger uma centena de crianças do morro no Canto do Pajé e pedindo sua
ajuda como "diretor de harmonia". Conversam, ficam camaradas. E embora a
cidade vá levar muito tempo até saber exatamente quem é esse tal de Cartola que
Francisco Alves descobriu, Villa-Lobos percebe-o logo. Vai admirar para
sempre esse metodista intuitivo, esse poeta de poucas letras, mas abençoado.
Admiração que o maestro tentará repartir com outros músicos eruditos, nossos
ou do estrangeiro(4).
4. Entre os músicos que Villa-Lobos levaria para conhecer Cartola e os sambistas da Mangueira estariam Leopold Stokowski (1940) e Aaron Copland (1941). Cartola, aliás, se juntaria a
Pixinguinha, João da Bahiana, Donga, Jararaca, Ratinho, Luís Americano e os mangueirenses Zé Com Fome e Zé Espinguela na histórica gravação de música popular brasileira realizada sob a supervisão
de Stokowski a bordo do navio Uruguay. Editados nos Estados Unidos pela Columbia em dois álbuns de quatro discos cada, sob o título Native Brazilian Music (Columbia C-83 e C-84), os fonogramas
só seriam lançados comercialmente no Brasil em 1987.

Cartola ganha de Villa-Lobos um diapasão de boca. Aprende com ele a usá-


lo, convencido mesmo de que pode tornar mais afinado e harmonioso o coro das
pastoras da Mangueira. Noel chega no morro e encontra o amigo compenetrado
à frente das meninas, todas elas arrumadinhas, em fileira, e o sambista soprando
o seu diapasão.
-Foi o maestro Villa-Lobos que me deu-explica orgulhoso.
É mesmo Cartola quem aproxima Noel do compositor. E a pedido deste o
sambista de Vila Isabel passa a ajudar o da Mangueira a ensaiar o coral do
morro. Crianças deste tempo jamais se esquecerão dele, magro, os dois
indicadores levantados, regendo a garotada, ensinando-lhes o Hino Nacionais,
três vozes. Enérgico, exigente, zangando com este ou aquele, mas só de
mentirinha. Nada de gritos ou de nomes feios(5).
5. Depoimento de Neuma Gonçalves da Silva aos autores.

- Traz aquela tua gaitinha, Cartola!


E Noel aproveita para afinar o violão pelo diapasão de Villa-Lobos.
Os moradores do morro da Mangueira que testemunham hoje a amizade
entre Cartola e Noel se lembrarão sempre dos dois sentados à porta do barraco,
cada qual com seu violão, criando refrãos, improvisando versos, fazendo sambas
horas a fio. Por vezes, começam às sete, oito da noite, e vão até quase o sol
despontar. Não é só a amizade, o carinho que recebe aqui, a solidariedade dessa
gente, que atrai Noel à Mangueira. Há também a música. Este é um morro que
amanhece e adormece cantando, a voz morna de um sambista se espraiando
pelos ares, entrando em todos os barracos, contagiando as pessoas, tornando suas
almas mais leves. Geralmente os cá de baixo, contidos pelo medo, não
ultrapassam os limites da Visconde de Niterói. Contam-se tantas histórias -
muitas verdadeiras, outras não - de malandros, valentes, homens fora-da-lei,
assaltos, brigas de sangue, que poucos se atrevem a subir. Mas não é bem assim.
Noel sabe que não. Uma gente banhada em música como esta não pode ser ruim.
E de fato não é.
É de samba e esperança que vive a Mangueira (os da cidade são incapazes
de compreender que o pessoal do morro possa ser feliz com tão pouco). Samba e
esperança o ano todo. Canta-se de tudo por lá, o amor, a saudade, o fingimento, a
pobreza, a ingratidão, a morte. É curioso como, por esta época, os compositores
escolhem temas de tempos em tempos e produzem uma infinidade de sambas em
torno deles. Uma hora é o beijo:
Beijos, ainda peço mais beijos dos lábios teus,
Beijos, para satisfazer os meus,
Beijos, mesmo sendo de falsidade,
Se você me negar, morrerei de saudade.

Outra, a morte:
Eu tive um só amor
Em toda a minha mocidade.
Daqueles tempos felizes
Até hoje eu tenho saudades.

Mas veio a lei imutável


E levou minha querida
É um mistério a menos para quem zomba,
Uma saudade a mais na minha vida.

Belíssimos sambas estes de Cartola. Mas, quando o tema em voga é rir,


pode-se dizer que cada compositor do morro cria pelo menos um apreciável
exemplar. Como este de José Gonçalves, o Zé Com Fome:
Rir, pode rir que chegou o meu fim,
Pode rir de mim, pode rir de mim...

Lauro dos Santos, o Gradim, fértil como sempre, fará um punhado. Tristes,
alegres, cheios de orgulho, inglórios. Um deles:
Ri da desgraça que me abraça agora
Ri, pode sorrir,
Meu coração por você tanto chora.

Outro, obra-prima que Francisco Alves e Mário Reis cantam


magnificamente, embora com pequenas alterações que mudam o sentido da letra:
Rio, quá, quâ, quá!
Deste alguém que tanto chora,
Deste alguém que tanto chora por mim.
Não posso ter amizade,
Pois eu tenho em quem pensar,
Deixa esta mulher chorar,
De saudade...(6)
6. Francisco Alves e Mário Reis cantam:
Ri, quá, quá, quá!
Pois este alguém que tanto chora,
Este alguém que tanto chora por mim...

Cartola não fica atrás. Compõe uma primeira parte, de letra rudimentar mas
melodia pungente, para a qual Noel fará as segundas. O resultado é este Rir(7),
também gravado por Chico e Mário:
7. A autoria de Rir é um desafio aos pesquisadores. No selo do disco e na partitura impressa, editada por Irmãos Vitale, é atribuída a um certo José Oliveira. Mas o único em Mangueira - e
não há dúvidas de que o samba é de lá - que tinha este nome era o Zé Criança, que morreu em 1939 sem jamais ter reivindicado o samba para si. Carlos Cachaça acha que o autor é o Zé Com Fome.
Fernando Pimenta, grande memória do morro, garante que é o Gradim. Mas Harmonia, jornal de modinhas que Noel e Hélio Rosa editaram por curto período em 1932, é claro. Publicou a letra sob os
seguintes créditos: coro de Agenor (sic) de Oliveira, versos de Francisco Alves e Noel Rosa. Para quem acredita em "prova de estilo" - participação de Chico à parte - como é possível duvidar de que Rir
seja mesmo de Cartola e Noel?

Ri, não se ri de quem padece,


Sofre, meu coração sabe dizer
Ri, quando vê alguém chorar
Deus é justo e verdadeiro
Por quem eu tenho chorado
Tenho fé em me vingar.

Às vezes é um sorriso
Que acompanha uma esperança,
Outras vezes é um riso
Que provoca uma vingança.

Meu juízo se revolta


Quando vejo alguém zombar,
O mundo dá muita volta,
Quem zombou pode chorar.

Uma terceira segunda parte, inferior às outras, ficará inédita:


Você ri sem ser preciso,
Diz que é por extravagância,
Mas eu creio que o seu riso
É sinal de ignorância.

Francisco Alves - sempre ele - foi o primeiro a levar Cartola para os meios
musicais da cidade. Familiarizado com a Mangueira, desde que trabalhava na
fábrica de chapéus, bateu no seu barraco, comprou-lhe sambas, gravou o
antológico Divina Dama. E ainda levou Mário Reis para conhecê-lo, sugerindo -
que o "doutor em samba" também investisse no talento de Cartola (dias depois,
tendo como intermediário o Clovis Miguelão, pois ele mesmo não tem coragem
de ir ao morro, Mário compraria o Que Infeliz Sorte!, que no entanto daria para
Francisco Alves gravar). Uma mina. Chico nunca duvidou disso. Via a
Mangueira desfilar com uma beleza de samba, música e letra nada devendo às
melhores produções do Estácio, e podia apostar: ou era de Gradim, ou era de
Cartola. Como o refrão com que a escola de samba desfila em 1932:
Não faz, amor,
deixa-me dormir,
Oh, minha flor,
tenha dó de mim!
Sonhei, acordei assustado,
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)

Francisco Alves fica entusiasmado, pensa em gravá-lo e vai atrás de Cartola


para que ele faça a segunda parte. Neste começo de década a Mangueira costuma
desfilar com três sambas, ou melhor, três refrãos, já que os versos das segundas
partes ficam por conta dos improvisadores: Alfaiate, Balança, Turituré,
Antonico, Zé Criança, Gradim, Cartola. Assim como Noel, Lauro Boamorte e
Paulo Anacleto no Faz Vergonha. O primeiro refrão da Mangueira é para entrar
no desfile. Como este:
Lá no Morro da Mangueira
Tem um poço de água fria,
Quem bebe daquela água
Canta samba noite e dia.

O segundo é para passar em frente ao palanque. O terceiro, para as


despedidas. O Não Faz, Amor é um deles. Mas Francisco Alves encontra
Cartola de cama, febre alta, uma gripe de moer corpo, e quase desiste da
gravação. Até que se lembra de Noel. Pede-lhe que complete o samba:
Não faz, amor,
deixa-me dormir,
Oh, minha flor,
tenha dó de mim!
Sonhei, acordei assustado,
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)

Só tens ambição e vaidade,


Não pensas na felicidade
E eu não descanso um momento
Por pensar que o teu amor é só fingimento.

Mas eu vou entrar com meu jogo


E vou pôr à prova de fogo
A tua sincera amizade
Para ver se tu falaste verdade.
Amor sem jurar é bem raro,
O verbo cumprir custa caro.
Amor é bem fácil de achar
O que eu acho mais difícil é saber amar.

O mundo tem suas surpresas,


Mas nós temos nossas defesas.
Por isso eu estou prevenido
Pra saber se sou ou não traído.

Talvez o melhor exemplo da perfeita comunhão de estilos entre os dois, a


primeira parte de Cartola apoiada na força da melodia, a segunda de Noel na
construção dos versos ("Amor é bem fácil de achar, o que acho mais difícil é
saber amar...") - mas Cartola só se inteira da parceria depois que Não Faz, Amor
já está gravado, tocando no rádio, ganhando popularidade. Fica sem entender.
-Me diz uma coisa, Chico: quem fez as segundas?
- O Noel.
- E por que tu não pôs o nome dele no disco?
- Ele não quis.
Cartola procura Noel no chalé.
- Não gostei do Chico não ter posto teu nome no disco. Sujeira. Afinal,
somos parceiros.
- Não somos parceiros, Cartola. Somos amigos.
- Mas você fez as segundas.
- Deixa pra lá. Hoje eu faço por você, amanhã você faz por mim.
São mesmo amigos. E admiradores um do outro. Para além da vida. Pois
enquanto Noel morrerá amando os sambas de Cartola, este, daqui a muitos anos
- quando o parceiro já tiver partido e à porta do seu barraco não houver mais que
a lembrança daquele tipo miúdo, magro, queixo torto, saltando do violão para o
copo de cerveja e deste para o violão, mas criando com facilidade versos de
profunda sabedoria - há de reverenciá-lo num samba cheio de saudade:
Eu quisera esquecer o passado,
Eu quisera, mas sou obrigado
A lembrar o grande Noel.
Ainda resta a cadeira vazia
Da escola de filosofia
No bairro de Vila Isabel.

Gradim - o tal que se alterna com Cartola na feitura dos melhores refrões da
escola - vive na Mangueira, mas o pessoal do morro diz que ele é muito mais um
cigano do que propriamente de lá. Anda errando por aí, de toca em toca, de
esquina em esquina. Vive de vender samba, como este que passa às mãos de
Amaro Silva por alguns mil réis:
Se está contrariada, esquece,
Eu não quero mais o seu amor...

Ou este que lhe comprou Príncipe Pretinho:


Hoje sou um condenado,
Mas não lamento o meu fado,
Seja o que Deus quiser!

Sambas vendidos por quaisquer trocados a muitos fregueses, o mais


habitual deles o Thi-belo, que por sua vez costuma revendê-los em bases mais
vantajosas. Gradim nem se importa se seu nome sai ou não no disco, na parte de
piano ou nos jornais de modinha. Magro, cerca de um metro e oitenta, trigueiro,
o queixo protuberante, bom de conversa, bom de futebol. Joga na ponta-esquerda
do Ponte dos Marinheiros Futebol Clube, onde já formou ala com Leônidas da
Silva, este mesmo crioulinho endiabrado que com menos de vinte anos já é
craque da Seleção Brasileira. Gradim - cujo verdadeiro nome, como já vimos, é
Lauro dos Santos - inclui-se entre os muitos futebolistas desta terra "rebatizados"
com o nome de um jogador uruguaio que andou exibindo seus dribles por
aqui(8).
8. Isabelino Gradim, grande meia-esquerda negro do Penarol de Montevidéu e da Seleção Uruguaia. Exímio driblador. Fez nome por aqui durante o Campeonato SulAmericano de 1919
disputado no Estádio do Fluminense. Recorda Mário Filho em O Negro no Futebol Brasileiro (segunda edição, página 170): "Foi uma praga de Gradins pelo Brasil afora. Todo preto que jogava um
pouco de futebol virava um Gradim,"

Está longe, porém, de ser um atleta: é mais um que vai morrer moço com os
pulmões estragados. E sem que a cidade reconheça o talento que tem, muitos o
considerando um dos dois ou três maiores compositores que já pisaram em
Mangueira. O outro ou um dos outros sendo, evidentemente, Cartola.
Mas Noel conhece Gradim o bastante para fazerem juntos pelo menos dois
sambas. Um deles está dentro do tema rir, intitula-se Sorrindo Sempre e
também começou como um dos refrãos do desfile de 1932:
Sorrindo, sorrindo sempre,
Porque eternamente

Hei de sorrir pra não chorar


Pra não lembrar quem sofreu
Por mim padeceu pra não me ver penar,
Pra não me ver penar...
Pra não me ver penar,
Chegou a ser humilhada.
Eu não soube aproveitar
Aquela alma abandonada.
E quantas vezes ela sorrindo
Me pedia por favor
Que eu não abandonasse o seu amor!
(Sorrindo...)

É um samba muito bom, ao contrário do que pode sugerir a letra lida sem a
melodia. Outro dos muitos problemas de autoria da música popular desta época:
no disco, apenas o nome de Lauro dos Santos; na partitura impressa, além dos
nomes de Lauro e Noel, entram também os de Francisco Alves e Ismael Silva.
Quem terá feito o quê? Já Quero Falar Com Você é mesmo só de Gradim e
Noel, embora mais uma vez o nome deste não esteja no selo do disco. A letra é
bem estruturada - certamente de Noel - em cima de uma imaginária conversa
telefônica durante a qual o amor e as quatro operações se misturam:
Quero falar com você,
Mas em segredo...
Que ninguém venha a saber
Do nosso amor!
Será que para sempre
Havemos de guardar
Para a felicidade algum dia nos chegar?

O amor se declara em segredo


Quem tem seu amor já aprendeu
Não posso deixar de ter medo
Que alguém subtraia o seu amor do meu.

Amor não tem dia nem tem hora


Pra vir não tem antes nem depois,
Só tem dia para ir-se embora,
Dividindo a tristeza por dois.
("Que número faz favor?")

O amor é castigo e é brinquedo


Depende da hora em que vem
Faz mal se não é em segredo
Quando os outros não sabem
É mal que nos faz bem.

Somando a ilusão com alegria,


Assim é o começo do amor.
Depois pra maior nostalgia,
Multiplica a saudade por dor
("Em comunicação!")
Depois da repetição do coro, a gravação de João Petra de Barros termina
com a telefonista dizendo simplesmente: "Não responde!" Noel e Gradim
poderiam ter feito mais juntos, mas o cigano da Mangueira e o tangará
desgarrado de Vila Isabel não se encontraram tanto quanto deviam.
Sempre querendo conhecer o que produzem estes sambistas de morro,
trocar informações com eles, somar experiências, Noel segue peregrinando.
Salgueiro, Mangueira, outros morros. Faz expedições aos subúrbios, ouvidos
atentos. Conhece Ernani Silva, o Sete, lá pelas bandas de Ramos. Outro cigano,
sempre rodopiando, morando hoje na Senador Eusébio, amanhã para além de
Irajá. Tem dois vícios: samba e baralho. Não recusa um joguinho de ronda e
graças a isso vai perder a vida muito moço, 27, 28 anos, adversários
desconfiados jogando-o lá do alto da Favela no asfalto da Bento Ribeiro. Um
negro simpático, risonho, com muito prestígio no meio do samba (por esta época
é tão considerado quanto alguns dos melhores nomes do Estácio). Também não
chegará a ter na cidade o reconhecimento que merece no morro. Um sambista
capaz de um coro assim:
O meu primeiro amor
Me abandonou sem ter razão
Amar sem ser amado...
Então jurei:
"Jamais eu te darei perdão!"

Para o qual Noel vai escrever duas excelentes segundas partes, a


simplicidade contida na idéia do Sete ganhando, sem que o tema seja
abandonado, um cinzelado acabamento. O samba chama-se Primeiro Amor:
Quanto mais o tempo voa,
Mais a tua culpa cresce.
O perdão é pra pessoa
Que não pede mas merece.

Pela tua ingratidão


É que eu tanto padeço,
Foste embora sem razão
Não perdôo, nem esqueço.

O mundo é bom professor


Que cobra caro a lição
E no meu primeiro amor
Tive a última ilusão.
E até mesmo a saudade
No meu peito dominei,
Embora contra a vontade,
Vou cumprir o que eu jurei.

Noel Rosa será de fato o único compositor da cidade a fazer de sua


associação com esses sambistas uma rotina nos dias de agora. Conhece num café
da Lapa o marceneiro Manuel Ferreira, amigo de Baiaco, Brancura, Zé Pretinho,
malandros que gostam de samba. E com ele consuma vários trabalhos, dos quais
apenas um vai ser gravado: Só Pra Contrariar. Para não fugir à regra, a
proposta de parceria parte de Noel. Depois de ouvir o coro feito por Manuel
Ferreira, perguntou-lhe: - Você me deixa botar uma segunda nisso?
Tão surpreso e contente o sambista ficou que nem quis dizer a Noel que já
tinha feito a segunda parte. O produto final é este:
O prazer que tu sentes é quando
Estás me contrariando
Sem razão.
Enquanto estou a sorrir,
Tu choras sem sentir
Só por contradição.

Não posso mais sofrer assim


Tudo tem que ter seu fim
Não existe eternidade
É melhor viver sozinho
Sem dinheiro, sem carinho,
Com sossego e liberdade.

Andando em tua companhia


Já peguei esta mania
Das vinganças imprudentes
E quando o jejum me come
Pra contrariar a fome
Fico mastigando os dentes.

Mas nem todos são desconhecidos como Manuel Ferreira e Ernani Silva,
Gradim ou mesmo Cartola. A "compositores de morro" já consagrados, sejam de
onde forem, Noel se associará em diferentes épocas. É o caso de Alcebíades
Barcellos, o grande Bidê do Estácio, emérito ritmista e compositor de primeira,
autor de inúmeras obras-primas do samba carioca, em especial as que vem
criando em dupla com Armando Marcai, outro negro de imenso talento. Com
Noel, porém, Bidê fará apenas Fui Louco, em cima do tema da regeneração em
que nenhum dos dois acredita muito.
Fui louco, resolvi tomar juizo,
A idade vem chegando e é preciso.
Se eu choro, meu sentimento é profundo,
Por ter perdido a mocidade na orgia.
Maior desgosto do mundo!
Neste mundo ingrato e cruel,
Eu já desempenhei meu papel
E da orgia então
Vou pedir minha demissão.

Felizmente mudei de pensar


E quero me regenerar.
Já estou ficando maduro
E já penso no meu futuro.

A admiração é recíproca, um enriquecimento bilateral, os "sambistas de


morro" ensinando lições a Noel e este dando em troca o que tem de mais valioso:
sua poesia. Assim como Noel sabe, está absolutamente certo de que estes negros
têm mesmo nas mãos - ou no coração - uma mina de ouro, seu próprio brilho é
reconhecido por eles. Por exemplo, Heitor dos Prazeres o considera "o mago da
originalidade", adora sua bossa e seus breques(9).
9. Diário Carioca, Io de janeiro de 1933.

João da Bahiana, outro gigante, só que mais ligado à Cidade Nova, não
ficou insensível à explosão do garoto em 1931 e jamais deixará de gostar do que
faz:
"Eu gosto muito dos versos de Noel Rosa. O seu Com Que Roupa? e o meu
Cabide de Molambo fizeram-nos os sambistas da miséria..."(10)
10. Ibidem, 7 de janeiro de 1933. Cabide de Molambo, de João da Bahiana, diz:
Meu Deus, eu ando com o sapato furado,
Tenho a mania de andar engravatado
A minha cama é um pedaço de esteira
E é uma lata velha que me serve de cadeira.

Nem todos manterão para o resto da vida suas opiniões entusiasmadas sobre
o poeta de Vila Isabel. Ernesto dos Santos, o Donga, outro da turma da Cidade
Nova, é uma das exceções. Depois de um elogio como este:
"Há aqui na cidade um moço que pode desbancar muita gente: o Noel Rosa.
Todas as suas produções são sempre recebidas com agrado."(11)
11. De um jornal de 1933, guardado por Noel em seu álbum de recortes.

Depois também de fazer com o mesmo Noel o samba Não Há Castigo:


Desta vez não há castigo
Se vais à Penha comigo
Tu tens que me dar vantagem
Vais pagar minha passagem
Carregar minha bagagem...
Só quero ver se tens coragem
De fazer uma bobagem

(Oi... quero ver se tens coragem)


De subir a escadaria
Eu bem sei que tu não gostas,
Mas juro que nesse dia
Vais me carregar nas costas.

(Oi... quero ver se tens coragem)


Pra pagares teus pecados,
Pra ganhares o meu perdão,
Vais subir de olhos vendados...
Não é mais que obrigação!

Depois ainda de serem parceiros em outro samba, Este Meio Não Serve:
É feio! É feio!
Menina de família
Andar metida em certo meio
(É muito feio!)

As sobrinhas do almirante
Já saíram do Sion
Vão tomar vinho chianti
Lá pras bandas do Leblon.

Os filhinhos da Candinha
Que andam sempre de má-fé,
Fazem queixa à mãe da zinha
E ela diz: "Sei lá se é..."

Quando a menina travessa


Dá palpites numa roda
Papai tem dor de cabeça,
Mas mamãe nem se incomoda.

Depois de tudo isso, enfim, Donga mudará. Ainda vai acusar Noel de
plagiar-lhe um samba. E envelhecerá resmungando conceitos nada lisonjeiros
sobre o antigo parceiro:
- Noel não entendia de samba coisa nenhuma. Nada. Nem tocar, nem coisa
nenhuma!(12)
12. Entrevista a Juvenal Portella, Nuno Veloso, Luiz Gleizer e Lygia Santos, esta filha de Donga. Realizada provavelmente em fevereiro de 1973 com vistas a um especial para a Rádio Jornal
do Brasil. O programa não chegou a ir ao ar, mas o depoimento gravado por Donga foi preservado pelo Arquivo Sonoro do Centro de Documentação do JB.

Mas todos sabem que não é assim. Cartola principalmente. Seu coração e o
de Noel batem no mesmo compasso. Como as almas do morro e da cidade para
os que crêem que o samba, a música, pode operar o milagre de unir as pessoas.
Os habitantes da Mangueira jamais se esquecerão da parceria e amizade entre
Cartola e Noel. Para sempre hão de recordar, comovidos, a figura dos dois,
muito magros, sentados à porta do barraco deste negro de fala e gestos delicados,
produzindo horas a fio dezenas e dezenas de sambas. Quase todos se perderão.
Mas a alegria que Noel e Cartola sentem ao criá-los, a emoção que os envolve ao
fazerem da vida fonte de música e poesia, isso ficará. Há coisas que o morro não
esquece.
Cartola nos anos 30
Capítulo 21

UM CERTO ISMAEL

Um dos sublimes e melodiosos sambas do morro.


entrevista a O Cruzeiro

Noel Rosa e Francisco Alves estão sentados à mesa de um daqueles


botequins do Centro que costumam freqüentar. Tomam cafezinho. Talvez falem
de música. Talvez conversem sobre o Pavão, que Noel continua pagando. Um
tanto agitado, chega Ismael Silva.
- Que é que há, Ismael? Ele conta que vinha pela rua, tranqüilamente,
quando lhe baixou sobre a cabeça, como se caído do céu, um estribilho inteiro,
música e letra. Receoso de esquecer o que bem pode ser o começo de um bom
samba, diz: - Vou cantar pra vocês. Sabem como é, três cabeças lembram melhor
que uma.
E canta:(Para Me Livrar do Mal)
Estou vivendo com você
Num martírio sem igual.
Vou largar você de mão,
Com razão,
Para me livrar do mal

Noel não perde tempo:


- Posso fazer a segunda parte?
A proposta não só pega de surpresa como invade o peito de Ismael Silva(1).
1. Muitas vezes, pela vida afora, Ismael Silva recordaria este episódio, repetindo-o em inúmeras entrevistas, uma delas aos autores. Mas a memória já lhe fraquejava nos últimos anos. Em seu
segundo depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, a 16 de junho de 1969, contraria todos os relatos anteriores dizendo que o samba em questão era Quem Não Quer Sou Eu em vez
de Para Me Livrar do Mal.

Ele canta um simples estribilho, sem maior importância, e eis que Noel,
ninguém menos que Noel Rosa, a quem todos vivem implorando parceria, vem
lhe pedir, com toda a humildade, para fazer a segunda parte. Ismael mal pode
acreditar. Sente-se de tal forma tocado que nem sabe o que dizer.
- Repete esse estribilho aí, Ismael-pede Francisco Alves.
Ismael canta de novo. Depois, vira-se para Noel:
- A segunda é sua.
Noel não fará uma, mas duas segundas partes:
Supliquei humildemente
Pra você endireitar
Mas agora, infelizmente,
Nosso amor tem que acabar.

Vou-me embora afinal


Você vai saber por quê
É pra me livrar do mal
Que eu fujo de você.

Você teve a minha ajuda


Sem pensar em trabalhar
Quem se zanga é que se muda
E eu já tenho onde morar.

Nunca mais você encontra


Quem lhe faça o bem que eu fiz
Levei muito golpe contra
Passe bem, seja feliz.

Dias depois, mostra-as a Ismael Silva e Francisco Alves. E este também não
perde tempo : decide gravar o novo samba, Para Me Livrar do Mal, do qual,
desde logo, intitula-se "co-autor". Trato é trato, lembra ele a Ismael. O que Noel
ouve sem a menor surpresa.
Tem sido assim há muito tempo. Todo o mundo sabe que nesse acordo de
boca entre Ismael e Francisco Alves um entra com o samba e o outro com a voz.
Nenhum dos dois faz segredo disso. E não adianta dizerem que Ismael está
sendo explorado: no fundo, ele se sente até grato.
Recorda-se da época ruim que viveu em 1927, seus exames de sangue
acusando uma penca de cruzes, a sífilis obrigando-o a se recolher a um leito do
Hospital da Gamboa. Estava lá, triste da vida, com medo mesmo de morrer, de
nunca mais voltar ao Estácio e aos seus sambas, quando Alcebíades Barcellos, o
Bidê, veio lhe fazer uma visita.
- Te trago uma proposta, Ismael.
- Que proposta?
- Sabe o Francisco Alves?
- Claro, o cantor.
- Pois é. Ele andou ouvindo uns sambas teus por aí. Gostou. Mandou que eu
viesse aqui com estes 100 mil réis.
- Pra que tanto dinheiro?
- O Francisco Alves quer te comprar o Me Faz Carinhos.
Há cinco anos, 100 mil réis era muito mais do que Ismael Silva poderia
ganhar em quase um mês de biscates e empregos fixos. a vida era bem mais dura
que a de hoje, obrigando-o a pegar o que lhe aparecesse, a ser de menino de
recados num escritório de advocacia a servente da Central do Brasil e vendedor
de remédios. Samba não passava de coisa de hora vaga, prazer cultivado nas
mesas de botequim, nas tendinhas, nos terreiros. Cem mil réis! Então o Bidê lhe
aparecia com aquele dinheirão todo, no hospital, para comprar-lhe um simples
samba?
Desde rapazinho, no Catumbi, quando participava de uma roda onde
brilhavam o Nonô, o Avelino, os irmãos Armando e Norberto Marcai, este mais
conhecido por Manga, fazer samba para Ismael é quase um brinquedo. Mais
tarde, ao mudar-se para o Estácio, passou a freqüentar o Apollo, o Café do
Compadre, os lugares onde se reuniam os bambas do bairro. E não demorou
muito a tornar-se tão ou mais respeitado que qualquer um deles. Bidê, Mano
Edgar, Baiaco, Brancura, todos podiam ser muito bons, mas era quase sempre
com sambas de Mano Rubem e Ismael Silva que saíam os blocos da redondeza,
um dos quais o famoso Deixa Falar. Uma tuberculose galopante matou Rubem
aos 23 anos em 1927, o mesmo ano da compra do Me Faz Carinhos. De modo
que desde então, Ismael reinou mais ou menos absoluto. Nestes blocos desfilava,
só para aprender o que se cantava, o mesmo e sempre atento Francisco Alves.
No hospital, Bidê explicou a Ismael que o cantor ficava cada vez mais
admirado quando, ao perguntar de quem era determinado samba, lhe
respondiam, quase que invariavelmente: "E do Ismael..." Pelos cem mil réis o
negócio foi fechado ali, Francisco Alves tornando-se dono do Me Faz Carinhos,
como logo depois, novamente por cem mil réis, compraria outro samba de
Ismael, o Não é Isso Que Eu Procuro, e já em 1929 o Amor de Malandro,
destinado a ser um dos sucessos do carnaval de 1930(2): 2. Nos selos dos discos originais, Ismael Silva divide com
Francisco Alves a autoria tanto de Me Faz Carinhos como de Não E Isso Que Eu Procuro. Já em Amor de Malandro o nome de Ismael simplesmente desaparece. O próprio Francisco Alves gravou os
dois primeiros. Amor de Malandro é caso raro de samba daquela época a merecer mais de uma gravação: a de Chico, uma de solo de assovio por João Gabriel de Faria e a terceira de Nicola Pasceli.

Vem, vem, que eu dou tudo a você


Menos vaidade, tenho vontade
Mas é que não pode ser.

O tempo passou. Francisco Alves continuou fazendo sucesso em disco e


Ismael não parou de compor seus sambas. Até que, em fins de 1930, Francisco
Alves procurou-o de novo. Desta vez, sem intermediários. Estacionou o carro em
frente ao Café do Compadre, chegou à porta e dali gritou, bem alto, o nome de
Ismael, que tomava cerveja numa das mesas do fundo. Ismael levantou-se, foi ao
encontro do cantor e este, já sob a luz do poste da esquina, pediu-lhe: - Me canta
aí uns sambas teus.
- Pra quê?
- Pode ser que algum me interesse. Ismael Silva, acompanhado pelo violão
do próprio Francisco Alves, começou a cantar. Um, dois, vários sambas. Um
desfile de coisas novas, todas boas, que Francisco Alves ia captando:
Nem tudo que se diz se faz
Eu digo e serei capaz...

- Entre ali no meu carro. Vamos dar umas voltas pela cidade.
Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro.
Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas,
das vantagens de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom
que Ismael fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos
discos. Em troca, Ismael entregaria a Francisco Alves tudo que fosse compondo.
Os sambas gravados e editados, naturalmente, levariam a assinatura dos dois.
Ismael pensou um pouco, o carro dando voltas. E disse.- - Acontece que já tenho
trato com um amigo.
Explicou, então, que o amigo era Nílton Bastos, excelente compositor dali
mesmo, do Estácio. Muitos dos sambas que Francisco Alves acabara de ouvir
tinham sido feitos pelos dois, Ismael e Nílton. Eram tão amigos, tão afinados,
que acabaram fazendo um acordo: - Faça ele, faça eu, o que for feito é dos dois.
Para Francisco Alves não havia o menor problema:
- Então a gente inclui ele na parceria.
O resto é parte da história, o trio Ismael Silva-Nílton Bastos-Francisco
Alves assinando uma sucessão de jóias do samba carioca. Sambas que, nos dois
anos seguintes, conquistariam não só a cidade, mas todo o país: Nem É Bom
Falar, Não Há, Olê-Lê-Ô, Arrependido, O Que Será De Mim?, Ironia, Eu Bem
Sei. Quem não se lembra da ovação que os dois sambistas do Estácio receberam
quando Francisco Alves chamou-os ao palco do Teatro Lyrico, depois de cantar,
no concurso de sambas e marchas para o carnaval de 1931, o irresistível Se Você
jurar?
Se você jurar que me tem amor,
Eu posso me regenerar...

Mesmo após a morte de Nílton, o sucesso prossegue(3), Francisco Alves


levando Ismael para toda parte, fazendo dele o seu secretário particular ("É o
meu braço direito...").
3. Francisco Alves, sozinho ou em dupla com Mário Reis, gravou em 1931 e 1932 um total de quinze sambas como parceiro de Nílton Bastos e Ismael Silva.

Tudo dentro do esquema, Ismael compondo, Francisco Alves gravando.


Nos teatros, nos circos, onde quer que vá, o cantor faz questão de chamar o
parceiro à cena para apresentá-lo ao público.
- Este é o Ismael Silva, um preto de alma branca.
Noel Rosa não se surpreende nem um pouco ao ver Francisco Alves
conseguir um lugarzinho entre ele e Ismael Silva como autor de Para Me Livrar
Do Mal. O que talvez o surpreenda é o convite que o cantor lhe faz: - Que tal
você se juntar a nós? No lugar do Nílton.
Ismael Silva lembra, cheio de saudade, o parceiro e amigo Nílton Bastos,
que a morte levou há poucos meses, na noite de 8 de setembro de 1931.
Justamente quando começava a melhorar de vida, o dinheiro do samba
reforçando bastante seu parco salário de mecânico do Arsenal de Guerra, dois
pulmões frágeis o levaram de vez. E de repente: dois ou três meses antes de
morrer, Nílton, tão bom de bola quanto de samba, chegou a jogar uma partida de
futebol num dos campos da Cidade Nova. Parecia em forma, correndo,
chutando, driblando. E no entanto, não duraria muito.
Era um mulato claro, de traços finos, muito delicado, destoando quase
naquela turma do Estácio em que pontificava a valentia de um Brancura, de um
Baiaco, sujeitos que nunca se afastavam de suas navalhas. O próprio Ismael era
de uma turma um tanto pesada, sempre metido naquele jogo de chapinhas no
Largo do Estácio, em frente à Escola Normal. Ele, o Osvaldo Papoula, o
Bernardo Mãozinha, de novo o Brancura. Nílton Bastos, não. Educado, incapaz
de dizer nome feio, de gritar com alguém, de se meter em valentias, diferente de
todos.
- O Nílton era um amor de gente-costuma repetir Ismael.
Quando tiveram início as transações de Francisco Alves com os dois
grandes sambistas do Estácio, Mário Reis aproveitou para se aproximar. Sempre
foi assim, a admiração de Mário feita de receios que o deixam um tanto à
distância.
- Chico, estes caras não são perigosos?
Se Francisco Alves ia ao morro da Mangueira procurar Cartola, ou se
circulava pelo Estácio atrás de Nílton e Ismael, Mário se punha na retaguarda.
Deixava Francisco Alves ir na frente e, se tudo estivesse bem, se chegava,
desconfiado. Deus o livrasse de subir a Mangueira! Salgueiro, Saúde, Gamboa,
Favela? Não era com ele.
Mas, no dia em que conheceu Nílton Bastos, começou a mudar de opinião
sobre os sambistas. Duas coisas o aproximaram muito de Nílton: a paixão de
ambos pelo futebol e, é claro, a música. Não tinha limites a admiração do cantor
pelo compositor. De início pensou até que o forte da dupla era Nílton e não
Ismael (em grande parte por estar convencido de que, naquela história de "faça
ele, faça eu, o que for feito é dos dois", Ismael Silva nada fizera em Se Você
jurar, primeira, segunda, música, letra, tudo de Nílton) . Mas um dia ouviu do
próprio Nílton Bastos: - Quer saber quem é o melhor de nós todos? O Ismael.
Francisco Alves, Mário Reis, Ismael Silva, o pessoal do Café do Compadre,
todo o mundo foi visitar Nílton na casa em que ele agonizava, na Rua Dona
Zulmira, no Maracanã. E todos sabiam o que sua perda representava para o
samba carioca. Francisco Alves, numa daquelas sombrias visitas, quando se
sentia cheiro de morte por toda parte, tentou desanuviar o ambiente. Para
reanimar o moribundo, cantou altissonante:
Quando eu morrer
Não quero choro nem nada
Eu quero ouvir um samba
Ao romper da madrugada(4)
4. Mário Reis relata essa passagem em entrevista incluída no ABC de Sérgio Cabral (página 112) como se Francisco Alves tivesse cantado:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela...
Deve ter se enganado. Estes versos, de Noel Rosa, são posteriores à morte de Nilton Bastos. Os citados no texto são os prováveis, já muito conhecidos na época. De um autor anônimo do
Estácio de Sá, havendo quem os atribua a Rubem Barcellos, o Mano Rubem.

Agora, Chico quer que Noel ocupe o lugar de Nílton. E por que não? O
acordo em torno do Chevrolet cor de azeitona obriga o comprador a desembolsar
sambas para o vendedor. Quanto mais Noel trabalhar para Chico, mais rápido
pagará o Pavão. Concorda. Mas há um detalhe: os sambas que Noel fizer serão
só seus, sem intromissões indevidas. Como este Tudo Que Você Diz, feito tão
rigorosamente dentro do figurino do Estácio que Ismael Silva bem poderia
assiná-lo:
Tudo que você diz
Com a maior lealdade
É mentira
É usar de falsidade
(Fale a verdade)

Toda gente fingida


Paga o mal que fez nesta vida
Por encher de ilusão
Um pobre coração.

Quando alguém não esquece


A pessoa por quem padece
É porque tem saudade
Da própria falsidade.

Pode crer que a mentira


O sossego sempre nos tira
Fale sempre a verdade
Mesmo sem ter vontade.

Tenho jeito pra tudo


Pra mentir, porém, fico mudo
Pois fugir da verdade
Nem por necessidade.

Justo ou não o acordo - exagerando ou não, Ismael ao dizer que só a voz de


Francisco Alves pode levar seus sambas ao sucesso - é a partir de Para Me
Livrar Do Mal, e sob as bênçãos do cantor, que vão se aproximar dois grandes
talentos da música popular brasileira. Talentos? É pouco para definir Ismael
Silva e Noel Rosa, o Ismael do Estácio e o Noel da Vila. Da mesma forma, é
limitador ver essa aproximação sob um prisma estritamente geográfico, como se
cada um pertencesse ao seu respectivo bairro e não a todo o Rio que há muito
lhes canta as músicas. O namoro de Noel com o Estácio (ou com o tipo de samba
que deve ter nascido com Mano Rubem e sua gente), já se viu, é antigo. Também
é antiga a admiração, quase adoração de Ismael por Noel. Na verdade, Para Me
Livrar do Mal não é a primeira de suas parcerias. No ano passado, pouco depois
da morte de Nílton Bastos, Francisco Alves entregou a Noel o estribilho de uma
marcha que Ismael havia feito: (Gosto, Mas Não É Muito)
Olha, escuta, meu bem
É com você que eu estou falando, neném:
Esse negócio de amor não convém,
Gosto de você, mas não é muito...
Muito!

Atendendo ao pedido do cantor, que pretendia gravá-lo já para o carnaval


de 1932, Noel cuidou das segundas partes, na primeira delas fazendo a mesma
brincadeira com a demagogia burocrática de nossas repartições públicas, aquela
história de "traz o retrato e a estampilha que eu vou ver o que posso fazer por
você".
Fica firme, não estrilha
Traz o retrato e a estampilha
Que eu vou ver
O que posso fazer por você.

Seu amor é insensato


Me amotinou, mesmo, de fato
Não leve a mal
Eu prefiro a Lei Marcial.

Como já sabemos, não é a primeira composição de Noel a registrar a


determinação do chefe do Governo Provisório. Nem a segunda. Depois da
referência a ela feita em Tenentes do Diabo, Noel a utilizou com muita ironia e
malandragem no samba Espera Mais Um Ano, que ele vai deixar inédito em
disco(5).
5. Ver nota referente a este samba no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no final do volume.

Espera mais um ano que eu vou ver


Vou ver o que posso fazer
Não posso resolver neste momento
Pois não achei o teu requerimento.
(Espera, espera, espera...)

No samba tu quiseste me perder


Tentaste na orgia me arrastar
Mas hoje que eu não quero me prender
Procura um coronel pro meu lugar.

Tu foste sempre a minha diferença


Chegaste a me obrigar a te bater
Já chega de pancada e desavença
Espera mais um ano que eu vou ver.

Sapatos e vestidos eu te dei


E tu não me pagaste o que eu te fiz
De tanto te aturar eu já cansei
Agora vou voltar a ser feliz.

A tua pretensão vai acabar


Meu câmbio vai subir, tu vais descer
As coisas para mim vão melhorar
Espera mais um ano que eu vou ver.

Produzido sem que Ismael e Noel se conhecessem além dos encontros


rápidos em corredores das emissoras de rádio, nas mesas de café, nas esquinas
do Centro, Gosto, Mas Não É Muito terá importância menor na obra que, a partir
de Para Me Livrar do Mal, eles vão construir juntos. Caso diferente, por
exemplo, é o de Adeus. Há quem diga que o estribilho de Ismael é uma
homenagem ao amigo morto Nílton Bastos.
Adeus, adeus, adeus...
Palavra que faz chorar
Adeus, adeus, adeus...
Não há quem possa suportar.

Os versos tanto servem para falar de um amigo que se foi como de um amor
que se perdeu. Noel, contudo, é explícito. Prefere a segunda vertente ao criar as
segundas partes, embora o breque dado pelos cantores ao final das mesmas,
antes de retornar ao refrão, "Foi o último adeus...", traga de volta a morte como
tema.
Adeus é bem triste
Que não se resiste
Ninguém, jamais,
Com adeus pode viver em paz
(Foi o último adeus...)

Pra que foste embora?


Por ti tudo chora!
Sem teu amor
Esta vida não tem mais valor
(Foi o último adeus...)

Ismael e Noel criarão muito juntos. Nenhum outro comporá tanto com o
poeta de Vila Isabel quanto o sambista do Estácio(6).
6. As musicografias até aqui levantadas, inclusive a partir de informações do próprio Ismael Silva, fornecidas em entrevistas diversas de 1954 até sua morte em 1978, nos dão conta de apenas
nove composições suas de parceria com Noel: Para Me Livrar do Mal, Adeus, Gosto, Mas Não É Muito, Uma Jura Que Fiz, Assim, Sim, Quem Não Quer Sou Eu, Ando Cismado, A Razão Dá-se a Quem
Tem e Boa Viagem. Baseados em dados que poderão ser encontrados no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no final do volume, os autores relacionam mais nove: Escola de Malandro, Já Sei Que Tens
Um Novo Amor, Nunca Dei a Perceber, Não Digas, Deus Sabe o Que Faz, Dona do Lugar, Isso Não se Faz, É Peso e Sorrindo Sempre, esta em parceria também com Gradim e Francisco Alves, já
estudada no capítulo anterior.

Atraídos pela admiração recíproca, integrados pelos respectivos talentos e,


curioso, tendo a aproximá-los o Pavão, farão sambas bonitos como este Quem
Não Quer Sou Eu.
Quando eu queria o teu amor
Não davas atenção ao meu
Pra mim tu não tens mais valor
Agora quem não quer sou eu.

Observo que hoje em dia


Quem não quis diz que me quer
Cabe muita hipocrisia
Num capricho de mulher

Vou viver desiludido


Sem amor, sem ideal
Pra não ser submetido
A desejo tão banal.

Ao ouvir tua proposta


Com tão falsas frases juntas
Achei uma só resposta
Que responde mil perguntas

Hás de ter em tua vida


Um destino igual ao meu
Podes ir desiludida
Hoje quem não quer sou eu.

E outros tão ou mais inspirados. O Já Sei Que Tens Um Novo Amor:


Já sei que tens um novo amor
Não vá depois se arrepender
Não voltes, mulher, nunca mais
Sofre calada, não dá a perceber.

Sem dar a perceber também sofri


Desde o infeliz momento em que te vi
E hoje o que me fere o coração
É saber
Que foste embora sem razão.

Por causa de outro amor tu vais sair


Eu não quero que tu venhas me pedir
Desculpas pelo teu procedimento
Nem que chores
Aumentando o meu tormento.

O mesmo caso de Nunca Dei A Perceber:


Não é só quem vive em pranto
Que sabe o que é sofrer
Eu sofro e no entanto
Nunca dei a perceber
E são tristes os meus ais
Pois quando a gente sente
E não chora
Sofre muito mais.
Pra fingir que vivo bem
Não conto a ninguém
Este meu mal sem fim
Mas a calma não me vem
E eu mesmo não sei
O que será de mim.

Eu faço por não chorar


Para não demonstrar
Minha grande aflição
Só pra me desabafar
Não quero enganar
Meu pobre coração.

Ou de Não Digas:
Oh! Não digas
Que ainda eu não te esqueci
Quem não sabe há de pensar
Que eu ando atrás de ti.

E a nossa amizade teve fim


Tu bem sabes que fui eu
Mesmo quem quis
Eu não sei por que é que mentes tanto assim
Pois mentira não se diz.

Eu ainda fico triste a lembrar


Apesar de ter deixado já de ti
Lamentando aquele dia de azar
Em que eu te conheci.

Ou ainda de Deus Sabe o Que Faz, todos sambas que aparecerão em disco
assinados por Ismael Silva e Francisco Alves. O nome de Noel, só na partitura.
Tu sendo infeliz como se vê
Bancas tanto chiquê
Que a mim até já faz horror
Quanto mais se tivesses valor
Não tens e nem terás.
Deus sabe o que faz.

O chiquê é feio pra quem pode ter


Quanto mais pra quem não tem nada de seu
Ai de quem não sabe se reconhecer
Nunca vi um gênio igual ao teu.

Mas o mundo nos ensina a viver


Tudo isso com o tempo há de ter fim
Porque mesmo tu tens de reconhecer
Que nunca se deve ser assim.

Parceiros. Graças ao Pavão e a Francisco Alves. Não tivesse a voz do


cantor outros méritos, bastaria este, de ter proposto, ainda que em nome da
esperteza, a Noel Rosa: - Que tal se juntar a nós?
Ismael Silva
Capítulo 22

RUMO AO SUL

Quero a minha independência


E com jeito e paciência
Me preparo pro futuro
Vitória

Os tangarás já não formam um bando. A música ainda faz parte de suas


vidas, mas raramente são vistos ou ouvidos cantando em conjunto formado em
meados de 1929 começa a desintegrar-se nos primeiros meses de 1932. Há mais
de um ano que os cinco não se apresentam juntos em teatros, cinemas,
programas de rádio. Festas familiares? Faz tempo. As gravações tornam-se mais
espaçadas. Cada um deles parece ter agora um destino próprio. Almirante,
consciente de suas excepcionais qualidades de intérprete, intensifica as
atividades neste campo, numa carreira individual que será por tudo vitoriosa.
Além disso, tem paixão pelo rádio. E uma vocação tão ampla - para cantar, fazer
locução, redigir anúncios, produzir sketches, atuar como contra-regra, dominar
todos os campos do veículo - que um dia ainda ganhará, com justiça, o epíteto de
"a maior patente do rádio". João de Barro, sempre hesitando em entregar-se por
inteiro à vida artística, divide-se entre a música e profissões "mais respeitáveis".
A família passa por maus momentos. Problemas na contabilidade da Fábrica
Confiança Industrial culminaram com o afastamento de Jerônimo José Ferreira
Braga Netto. Tão arrasado Jerônimo ficou que sofreu um derrame cerebral.
Trocam todos a confortável vivenda que ocupavam no próprio terreno da fábrica
por uma modesta casa no distante Jacarepaguá. Braguinha se emprega como
corretor de imóveis e logo depois na seção de discos de Mestre & Blatgé. Pouco
tempo lhe sobrará para a música. Quanto a Alvinho, decide estudar odontologia,
embora não pare de cantar. Restam portanto o irrequieto Henrique Britto e o
imprevisível Noel Rosa.
Britto, neste março de 1932, começa a fazer as malas para viver nos
Estados Unidos uma nova aventura. Aceitou o convite de Romeu Silva para
integrar a Brazilian Olympic Band, orquestra organizada para se apresentar em
Los Angeles durante os Jogos Olímpicos que lá se cumprirão de 30 de julho a 14
de agosto. De fato uma aventura. O Governo Brasileiro não poderá ajudar nossa
delegação. Não há dinheiro para nada, nem para as passagens, nem para
hospedagem e alimentação em Los Angeles. Fica resolvido que irão todos no
Itaquicê, navio da Companhia Nacional de Navegação Costeira, desde que se
comprometam, atletas e dirigentes, a vender 50 mil sacas de café nos vários
portos em que ancorarem. Serão 27 dias de viagem e muito pouco se venderá.
Resultado: a maior parte da delegação, triste e humilhada, vai voltar no mesmo
Itaquicê. A orquestra de Romeu Silva inclusive. Mas não Britto. Minutos antes
do navio zarpar de regresso ao Rio, ele procurará Romeu, aflito como sempre: -
Esqueci. Esqueci o violão. Ali. No cais!
Descerá do navio e sumirá por um ano. Ninguém jamais saberá ao certo
como e de que viverá nos Estados Unidos durante esse tempo. Sem licença de
trabalho, papéis de imigração ou ao menos alguma noção do idioma. Mas em
momento algum abandonará o violão. A partir do projeto de um amigo brasileiro
que encontrou por lá, um certo F. Dutra, vai adaptar amplificadores ao
instrumento e levar o invento à Dobro Corporation de San Francisco, Califórnia.
A firma passará a fabricá-lo, ponto de partida do que um dia será conhecido
como violão elétrico ou guitarra amplificada. Quando voltar ao Brasil, já em
1933, trará consigo, orgulhoso, um desses instrumentos, depois de ter dado
recitais no Belmont Theater, em Los Angeles, e em casas noturnas de Chicago.
Dinheiro, porém nenhum(1).
1. Ao contrário do que se chegou a afirmar, Henrique Britto não inventou o violão elétrico. No máximo, foi quem o introduziu no Brasil. Ele próprio, em entrevista a O Globo de 14 de junho
de 1933, contaria ter sido o amigo F. Dutra o idealizador do sistema que a Dobro Corporation acabaria patenteando. Depois de fazer uma demonstração da novidade, na redação do jornal, informaria que
ele e Dutra seriam os representantes da Dobro na América Latina.

Já Noel Rosa recebe de Francisco Alves o convite para fazerem uma


excursão ao Sul. Eles, Mário Reis e outros nomes da música popular que o
cantor ainda está sondando. A temporada, com espetáculos em Porto Alegre e
outras cidades gaúchas, Florianópolis e talvez Curitiba, pode render bons cobres
a Noel. E ajudá-lo a abater algumas parcelas do que deve a Chico desde que este
lhe deu as chaves do Pavão.
Assim, parece mais do que evidente que o Bando de Tangarás está com
seus dias contados, cada pássaro voando por uma paragem, um no rádio, outro
repartindo-se entre dois ou três empregos, o terceiro às voltas com os boticões, o
quarto de viagem marcada para Los Angeles e o quinto migrando literalmente
para o sentido oposto, o Sul do Brasil. No dia 12 de abril, contudo, eles se
reúnem uma vez mais, no estúdio da Victor, para gravar novo disco(2).
2. Este disco - Não Brinca Não de um lado, Cabelo Branco, embolada de Almirante e Waldo de Abreu, do outro - será o penúltimo gravado pelos tangaràs, o último com participação de Noel
Rosa. No dia 20 de maio de 1933 o grupo encerrará sua carreira registrando, na Odeon, Festas de São João, cena regional gravada nas duas faces do disco. O próprio autor, João de Barro, será o solista.

Numa das faces, uma embolada de Noel, que assim retorna, ainda que por
pouco, aos primeiros tempos do conjunto. Chama-se Não Brinca Não, que
Almirante canta com muita graça.
Pega na saca,
Tira a jaca,
Leva a faca,
Que a macaca
Sai da estaca
E te ataca
À traição.

E não brinca não...


Que ela hoje tá com o cão!

Seu Fortunato,
Olha o rato
No sapato.
E o seu gato,
Que é de fato,
Foi pro mato
Com meu cão.

E não brinca não...


Que vais ficar de pé no Chão!

Com sua farda,


Toda parda,
Bem galharda,
Na vanguarda,
De espingarda,
Vem um guarda
No pifão.

E não brinca não...


Que ele tá cheio da razão!

Dona Adalgisa
Só me avisa,
Só me frisa
Que a camisa
Não é lisa
Nem precisa
De botão.

E não brinca não...


Que não tá paga a prestação!

Eu bem dizia
Que eu sabia
Que a Maria
Fazia
Na sacristia
Cortesia
Ao sacristão.

E não brinca não...


Que até o padre é gavião!

Dois dias depois, sem João de Barro e enxertado de Paulo Netto, Gorgulho
e Helvécio de Barros, um bando que dos tangarás originais só tem o nome segue
de automóvel para um ou dois espetáculos em Nova Friburgo. Uma viagem tão
cansativa quanto financeiramente desastrosa. Será a última participação de Noel
na história do conjunto.
De início Francisco Alves pretendia que a estréia se desse a 8 de abril em
Porto Alegre. Mas a escolha dos cantores e músicos que o acompanharão foi
menos simples do que esperava. Mário Reis está confirmado desde o começo. Já
Noel Rosa só passou a fazer parte do grupo depois que Lamartine Babo, doente,
recomendado pelo médico a fazer uma estação de águas em São Lourenço, não
pôde viajar. É sempre difícil precisar o que Francisco Alves tem na cabeça,
homem de muitas e variadas idéias. Mas é bem possível que Lamartine Babo
tenha sido o primeiro nome em que pensou para substituir Nílton Bastos. Quem
sabe? Afinal, logo após a morte do grande sambista do Estácio, o cantor tratou
logo de aproximar Lamartine de Ismael Silva, os três assinando um samba que
Mário Reis gravou no fim do ano:
A aurora vem raiando
Anunciando o nosso amor
Ô...

Foi ainda de Francisco Alves a idéia de formarem, ele, Mário Reis e


Lamartine Babo, um trio que se exibiu meses atrás com o nome de Ases do
Samba. Chico e Mário cantando, Lamartine contando piadas e inventando
paródias e canções humorísticas, o trio foi muito aplaudido no Teatro Lyrico, no
Clube Ginástico Português, nos cinemas Eldorado e Mascote, tudo isso antes do
último carnaval. Mês passado, com o mesmo êxito, os três atuaram no Teatro
Santana, em São Paulo. Natural, portanto, que na excursão ao Sul a formação do
trio fosse mantida. Mas, saindo Lamartine, entrou Noel Rosa.
A questão dos músicos foi mais ou menos a mesma. Francisco Alves
geralmente canta acompanhado pelo Tute, o do violão. Ou então pelo Luperce
Miranda, o do bandolim. Mas também estes não podem se ausentar do Rio, de
modo que Francisco Alves acaba limitando os acompanhamentos de violão ao de
Noel e ao seu próprio, convida para o bandolim Pery Cunha e para o piano
Romualdo Peixoto, o Nonô, este uma indicação de Mário Reis: -Para tocar
samba, Chico, está para nascer outro igual.
Tal afirmativa - partindo de um amigo, discípulo e intérprete de Sinhô, de
um cantor que já foi acompanhado tantas vezes por um Eduardo Souto, um
Mário Travassos de Araújo - vale por um atestado(3).
3. Já estudado no Capítulo 12.

Para Francisco Alves, é definitiva. Não gosta muito de ser acompanhado


por piano, preferindo orquestras ou regionais. Mas vá lá. A excursão ao Sul
acabará mostrando-lhe, pelos dedos de Nonô, que há pianos que valem uma
orquestra.
Francisco Alves adverte os companheiros: - Somos profissionais. Temos
que respeitar o público para que o público nos respeite. Música, para mim, é
coisa séria. Tão séria que exige traje a rigor. Definido o grupo que vai viajar, por
sinal com o mesmo rótulo de Ases do Samba, logo na primeira reunião dos cinco
Francisco Alves dita algumas regras. Para começar, o uso do smoking é
obrigatório. No máximo um summer, mas de forma alguma um terno comum.
Os horários terão de ser rigorosamente cumpridos. Chico detesta retardatários, a
pontualidade sendo parte daquele respeito que o público merece. E há a questão
dos hotéis. Segundo ficou acertado com o gerente do CineTeatro Imperial, em
Porto Alegre, a hospedagem naquela cidade correrá por conta dos artistas.
Estejam todos avisados de que há hotéis caros e baratos, cada qual responsável
pelo seu, pagando-o com o dinheiro que o próprio Francisco Alves dividirá com
o grupo, assim que receber o que lhes couber da bilheteria. Tudo acertado, tudo
claro.
Com o atraso provocado pela escolha dos cantores e músicos, só a 21 de
abril os novos Ases do Samba seguem viagem para o Sul. Vão a bordo do
Itaquera, outro dos muitos navios que a Companhia Nacional de Navegação
Costeira mantém ao longo do nosso litoral, parando quase que de porto em porto
do Orange ao Chuí. E por pouco Noel não perde a hora do embarque. Vencido
por um daqueles seus sonos profundos, foi um custo acordá-lo em tempo de se
vestir, entrar num táxi, ir para a Praça Mauá.
Francisco Alves é mais uma vez a grande estrela da companhia. O que fica
evidente já no embarque, uma pequena multidão de amigos e admiradores
comparecendo para as despedidas. Qualquer cantor ou cantora do Brasil pode ir
aonde quiser, norte ou sul, interior do país ou mesmo o exterior, e no máximo
parentes e amigos mais chegados vão ao bota-fora. Além disso, tais viagens
começam a fazer parte da rotina profissional de todo artista. Mas, no caso de
Francisco Alves, é diferente. Um simples embarque assume proporções de
grande acontecimento. Noel Rosa, o último a aparecer, chega apressado para as
fotografias que se fazem no convés do Itaquera.
A viagem até Porto Alegre dura mais de uma semana. O navio vai parando
onde quer que possa subir ou descer passageiro, Ubatuba, São Sebastião, Santos,
Pedro de Toledo, Cananéia. Entra na baía de Paranaguá, pernoita em Antonina,
volta, segue até Guaratuba, Itajaí, Florianópolis, Porto Alegre. Uma viagem feita
principalmente de tédios. Não há diversões a bordo, nem bares, nem mulheres,
apenas a monotonia das máquinas a empurrar ritmadamente o navio. Aos
passageiros só resta cantar. Improvisam-se no convés saraus que acabam
servindo de ensaios para a estréia.
É durante esta viagem de mais de uma semana que Noel faz ou pelo menos
conclui dois de seu melhores trabalhos. Um deles é Quando o Samba Acabou,
aquela versão revista, aumentada e urbanizada de Mardade de Cabocla. O outro
é Mulato Bamba:
Este mulato forte
É do Salgueiro.
Passear no tintureiro
Era o seu esporte.
Já nasceu com sorte
E desde pirralho
Vive à custa do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira samba
É novidade,
Quer no morro ou na cidade
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar
Vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher.

O mulato
É de fato
E sabe fazer frente
A qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.
Sei que ele anda agora
Aborrecido
Porque vive perseguido
Sempre e a toda hora.
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá.

Eu sei que o morro inteiro


Vai sentir
Quando o mulato partir
Dando adeus para o Salgueiro.
As morenas vão chorar
E pedir pra ele voltar.
Ele então diz com desdém:
"Quem tudo quer... nada tem."

Mário Reis apaixona-se por este samba. Apossa-se dele, diz que vai lançá-
lo em Porto Alegre antes que Francisco Alves o ouça e o pegue para si. Mário
acha, com razão, que música e letra de Mulato Bamba são feitas sob medida para
a sua voz suave, seu estilo pausado e meduloso, tão de acordo com a gente e as
coisas deste Rio malandro de que falam os versos. Mas em quem terá se
inspirado Noel para criar personagem tão singular como este mulato forte do
Salgueiro? Todos os bons malandros, do morro ou não, parecem nele contidos, a
intimidade com o tintureiro(4), a habilidade inata com o baralho, a astúcia que o
permite viver sem trabalhar, a facilidade com que faz um novo samba.
4. Carro de polícia para transporte de presos. O camburão da época.

Mas a singularidade desse malandro é outra. De tal feitio que as morenas do


lugar se queixam: o mulato em questão simplesmente não quer se apaixonar...
por mulher. O bamba. Forte, corajoso, disposto a enfrentar qualquer valente, mas
não querendo saber de fita. Isto é, de amor. Nem com mulher bonita.
Estranho mulato este que em muitas coisas lembra o Satã, um dos mais
afamados valentes da noite carioca, capaz de virar do avesso um botequim da
Lapa, de encarar um, dois tintureiros de uma só vez, sem medo de nada, nem
mesmo da morte, quanto mais desses policiais que vivem dando batidas pela
Mem de Sá atrás de pederastas que um impiedoso moralismo recomenda sejam
varridos das ruas como lixo. É muito comum o silêncio da noite ser quebrado
pelo alvoroço dessas criaturas correndo em bando, aos gritos, numa desesperada
fuga a policiais violentos. Os perseguidores atrás, brandindo cassetetes, os
perseguidos na frente, entrando como ratazanas assustadas na primeira porta que
encontrem aberta na Mem de Sá, na Riachuelo, na Gomes Freyre ou na
Lavradio. Satã, porém, não foge.
Terá sido ele o inspirador de Mulato Bamba? Grande, forte, um touro de
homem, temido, a própria polícia torcendo para não encontrá-lo pela frente
numa dessas batidas, e no entanto acariciando o sonho de se tornar um dia uma
esvoaçante estrela dos nossos palcos. Pode ser visto, vestido de baiana, odalisca
ou rainha de Sabá, a rebolar freneticamente num desses espetáculos que os
cabarés da Lapa de vez em quando apresentam, homens travestidos de mulher.
Quem vê Satã assim, batom, brincos, pulseiras, mexendo com as cadeiras,
cantando com voz de contralto, nem imagina do que é capaz. Ele e Noel são
amigos(5).
5. Satã, que só anos mais tarde passaria a usar o Madame antes do nome, já famoso como travesti e desfilante de concursos de fantasias, refere-se à amizade com Noel em seu livro Memórias
de Madame Satã (página 17).

Noel, na verdade, tem muitos camaradas entre esses homossexuais que a


polícia persegue. Conhece alguns deles. Confessos como Satã e Jota Piedade,
bom compositor que em troca de companhia passa adiante os sambas que faz.
Ou velados como Assis Valente e Ismael Silva, que não abrem a guarda com
medo de perder o respeito do pessoal do meio. Mas Noel não liga, aceita-os
como são. Seu samba - a primeira obra da música popular brasileira a focalizar
de modo mais ou menos claro esse tipo de personagem - não deixa de ser um
gesto de simpatia. Para com Satã ou outro mulato bamba qualquer. Nele não
falta o duplo sentido de que Noel tanto gosta: por quem vive perseguido o
valente do Salgueiro, pela polícia ou pelas mulheres? Satã não quer saber de fita
nem com uma, nem com outras. E há o fecho, dois versos sutis sugerindo certo
trejeito que Mário Reis, habilmente, para não ser tão óbvio, evita ao cantá-los:
Ele então diz com desdém:
"Quem tudo quer... nada tem."

Há mais de duas semanas a imprensa de Porto Alegre vem anunciando a


chegada dos Ases do Samba. O CineTeatro Imperial faz publicar nos jornais
anúncios onde se lê: "Eles custam... mas vêm." Cria-se uma expectativa. A
estréia, segundo o mesmo anúncio (que aliás chama Mário Reis de "doutor",
promete a presença de Lamartine Babo e refere-se a Noel como "Noél Rosas",
com acento agudo no primeiro nome e um esse a mais no segundo), está
marcada para sexta-feira, 29 de abril. Será o começo de uma temporada
inesquecível, plena de música, emoção e sobressalto .
Chegam a Porto Alegre poucas horas antes do espetáculo. E já que cada
qual tem de pagar hospedagem do próprio bolso, separam-se assim que pisam
em terra(6).
6. Todas as informações contidas neste capítulo sobre a excursão ao Sul baseiam se em depoimentos de Mário Reis aos autores, em entrevistas realizadas a 1 e 17 de abril de 1981, e de
Demósthenes Gonzalez, presidente do Clube dos Compositores de Porto Alegre, em carta de 14 de maio de 1983.

Mário Reis e Francisco Alves, de carteiras mais providas, vão para o


conforto do Grande Hotel. Pery Cunha, Nonô e Noel, para quartinhos apertados
de uma pensão barata da Rua Clara(7), perto da Riachuelo.
7. Atual João Manuel.

Pode não ser o Grande Hotel, mas tem lá os seus a favores. De pontos em
pontos, numa e noutra calçada, venezianas entreabertas apenas insinuam vultos
de mulher que lá de dentro chamam os transeuntes para um "instante". Ou seja,
um amor ligeiro e econômico. São as chamadas casas alegres de uma rua onde se
encontram também dois ou três botequins vagabundos, freqüentados por uma
população pobre, noturna e meio vadia.
É nesta viagem, certamente, que Noel descobre Nonô. Ou melhor, um
descobre o outro. Já se conheciam, mas foi a bordo do Itaquera que ensaiaram a
amizade que se vai fortalecer agora. Constatam afinidades, fazem planos para as
madrugadas, depois dos espetáculos. Já em Porto Alegre, viram companheiros
inseparáveis. O que desde o primeiro minuto deixa visivelmente apreensivo o
zeloso Francisco Alves.
Nonô é um mulato bonito, olhos claros, sorriso sestroso. Nasceu em Niterói
há 31 anos, toca piano de ouvido desde os nove, é profissional há quase dez e
pertence a uma família toda ela muito musical(8).
8. Romualdo Peixoto, o Nonô, que morreria em sua Niterói natal a 13 de novembro de 1954, era tio do cantor Cyro Monteiro. E também do pianista Moacyr Peixoto, do pistonista Arakem
Peixoto e dos cantores Andiara e Cauby Peixoto.

Conheceu de perto o grande Sinhô e está atento a todos os estilos


pianísticos em voga, do mais virtuoso Eduardo Souto ao mais limitado Ary
Barroso. Mas não toca como nenhum deles. Nem como Mário Travassos de
Araújo, Jerônimo Cabral, Aldo Taranto ou Gaó.
Admira o Kalua, o Cebola, a jovem Carolina Cardoso de Menezes. São
todos muito bons, mas a maneira de Nonô tocar, tão intuitiva e pessoal, é única.
No apoio rítmico, nos breques, nos acordes arrancados das teclas como quem
está prestes a tropeçar, mas sempre "pegando" o cantor mais adiante,
improvisando, criando. Como acompanhante Nonô é insuperável. Mas o
compositor não fica atrás. Pelo menos duas das mais belas construções
melódicas da música popular brasileira desta década serão suas: Cigana e O
Jardim de Flores Raras. Coisas lindas de mulato romântico.
Francisco Alves tem razão para estar preocupado. Já desconfiava, agora não
tem mais dúvida: esta excursão vai lhe dar dores de cabeça. E Noel Rosa será o
responsável por quase todas. São nove horas da noite, daqui a pouco os Ases do
Samba vão estrear em Porto Alegre. Sendo um espetáculo de palco e tela, como
quase todos da excursão, o Imperial projeta as últimas cenas do filme. Chico
olha de trás da cortina para a platéia. Lotada. Está quase na hora e só agora Noel
chega. Ele e Nonô.
- Que negócio é este que você está vestindo - espanta-se Francisco Alves ao
vê-lo num amarrotado e encardido terno branco.
- É o meu summer.
- Mas isso não é summer. É um terno. E ainda por cima imundo!
- É summer, sim, Chico. Eu o aluguei.
- Onde? - intervém Mário Reis.
- De um garçom meu amigo.
Francisco Alves solta um palavrão. Ele, Mário, Pery e Nonô de smoking,
conforme o combinado, e Noel com roupa de garçom! Mário procura aplacar-lhe
a zanga. Pensando bem, diz ele, até que o grupo ficará interessante, quatro de
preto e um de branco. A platéia pode até pensar que é bossa. Chico que trate de
se tranqüilizar.
A estréia é um triunfo. O público vibra com os duetos de Francisco Alves e
Mário Reis, os solos de Pery Cunha e Nonô, as interpretações de Noel para
números antigos como Gago Apaixonado ou novos como Quando o Samba
Acabou. Um triunfo. Mas poucos, nesta multidão que lota o Imperial, terão
gostado tanto da noitada quanto os dois recrutas do 7o Batalhão de Caçadores
sentados na primeira fila. Um gaúcho moreno e um catarinense claro cujos
uniformes de soldado raso se destacam ao lado das roupas elegantes que
predominam na platéia. Mas nem ligam. Vieram cedinho, desde a Praça do
Portão, onde fica o quartel. Só para ver, da primeira fila, os artistas do Rio.
Felizes da vida, talvez lhes passe pela cabeça esperar os Ases do Samba à saída
do cinema. O mais claro se apresentaria.- - Meu nome é Reinol Corrêa de
Oliveira. No quartel, o 415.
E o moreno:
- Sou o 417. Mas cá fora me chamam de Lúpi.
Diriam que também gostam de música, pensam em se profissionalizar, o
claro como cantor, o moreno como compositor. Mas não dizem nada, ficam só
na intenção. Afinal, quem são eles para puxar assunto com os Ases do Samba?
Sendo a noite de estréia, os cinco saem juntos do teatro para um programa
em grupo que não mais se repetirá enquanto estiverem no Sul. Andam pela
cidade, vão conhecer o Beco do Oitavo (o comércio do amor não muito longe do
Palácio do Governo), passam pelo Jacques, dão uma espiada no Chez Nous, no
Império. Chegam à Praça Garibaldi. Na esquina de João Alfredo - onde de dia
funcionam uma frutaria e a engraxateria do Sotero Rodrigues(9) -param.
9. Sotero seria, anos depois, o primeiro zelador do estádio do Sport Clube Internacional de Porto Alegre.

São atraídos pela música que vem do interior de um botequim. Entram. Lá


dentro, boêmios porto-alegrenses se embriagam de vinho e música. Sady
Nolasco, Heitor de Barros, Nelson de Lucena, Piranema, Johnson, Caco Velho e
os dois recrutas do 7.° Batalhão de Caçadores saboreiam a noite. Os Ases do
Samba surpreendem-se com a qualidade do que ouvem, a afinada voz do 415, as
composições do 417. Aplaudem. Para os boêmios da terra, a glória.
- Quando forem ao Rio, me procurem - diz Francisco Alves usando um
velho chavão.
Noel presta atenção nos sambas do moreno. Vira-se para os companheiros e
vaticina:
- Esse garoto é bom... Esse garoto vai longe!
Os dois recrutas vão guardar os detalhes desta noite até o último de seus
dias. Tomarão um pifão tão colossal que, perdendo a instrução na manhã
seguinte, vão passar no xadrez do quartel a noite de sábado para domingo. Saem
todos do botequim, o 415 e o 417 ciceroneando os cariocas até os cabarés da
Voluntários, o Oriente, o Royal, onde as atrações são o cabaré-tier Palácios e o
transformista Haimond. Depois, se despedem.
Já sozinhos, meio de pernas trocadas, o moreno diz para o claro:
- Acho que o Chico ainda vai cantar minhas músicas...
E vai mesmo. O claro ficará conhecido um dia por um pseudônimo
artístico: Nuno Roland. O moreno, pelo próprio nome: Lupicínio Rodrigues.
Os Ases do Samba ficam uma semana no Imperial. Nos dias 6, 7 e 8 de
maio atuam no Carlos Gomes e em seguida estendem a excursão a outras
cidades do Estado, Caxias do Sul, São Leopoldo, Cachoeira do Sul, Rio Grande,
Pelotas. Em cada um desses lugares Noel e Nonô inventam novas maneiras de
exasperar Francisco Alves. Em Caxias do Sul, somem invariavelmente durante o
dia, nunca vão aos ensaios combinados. Em São Leopoldo, uma hora antes de
seguirem para o local do espetáculo, onde se meteram os dois? Francisco Alves,
Mário Reis e Pery Cunha se dividem na busca. As chances de encontrá-los,
dessa maneira, aumentam. Mas onde terão se escondido? Chico percorre as
pensões de mulheres, Pery os botequins, mas é Mário que vai descobri-los num
miserável cabaré. Nonô está sentado a um velho piano, arrancando de teclas
carcomidas as notas de uma valsa difícil de identificar. Noel, ao lado, brinca com
o violão. E entre os dois, já vazia, uma garrafa de anisete. Mário chama os
outros, pede-lhes que o ajudem a levá-los daqui.
- Que aconteceu? - chega Francisco Alves já apavorado, pois falta menos de
meia hora para entrarem em cena.
- Acho que beberam demais, Chico.
-Agora é que vamos ter um desastre. Como é que eles vão entrar no palco
depois de terem tomado uma garrafa desta droga?
Mário Reis sente engulhos só de olhar para a garrafa vazia de anisete. Não
há coisa que ele mais deteste do que essa adocicada bebida de laboratório.
Vomitaria se tomasse meio cálice, mas Noel e Nonô consumiram um litro e
estão aí, fortes, tocando piano e violão.
- Não se preocupe, Chico - diz Nonô com a voz suave de malandro cheio de
fraseados. - Estamos firmes.
O teatro fica perto do cabaré, pode-se ir a pé até lá. Ainda bem. Trôpegos,
Noel e Nonô seguem Mário Reis e Francisco Alves pelas ruas de São Leopoldo.
O líder do grupo sente vontade de gritar.
- Esses dois ainda acabam comigo, seu Mário!
Mas Nonô está certo, ele e Noel continuam firmes. Não há anisete que os
tire do compasso. O espetáculo começa. E assim que Noel canta o eterno Gago
Apaixonado, tendo ao fundo o piano de Nonô, o público os ovaciona. Mário
comenta com Chico: - Para falar a verdade, o Noel está cada vez melhor.
Em Pelotas, Francisco Alves já conformado com o tal terno branco e se
preocupando menos com seus atrasos, surgem novas surpresas. Desta feita, o
filme termina, as luzes se acendem, a platéia põe-se a assobiar. E o palco
continua vazio. Passam-se quase vinte minutos da hora marcada para o início da
apresentação dos Ases do Samba e Noel não chega. Até Nonô está a postos,
sóbrio e bem vestido, ao lado de Pery e Mário. Noel Rosa? Nada. Francisco
Alves não sabe o que fazer. Entram só os quatro ou cancela o espetáculo? Mário
mais uma vez pede-lhe calma, diz que a situação não é tão séria assim, pode-se
pedir desculpas ao público: "Senhoras e senhores, lamentamos informar que por
motivo de força..." É então que Noel chega. Os olhos do líder do grupo se
escancaram. O Noel que lhe aparece por trás da cortina do teatro, o pessoal lá
fora assobiando, não está de smoking nem de roupa de garçom, mas vestido com
um extravagante terno de flanela cinza, listrado, as listras mais finas quase
pretas, as mais grossas com jeito de desbotadas. Nos pés, sapatos brancos. Na
cabeça, uma boina marrom, ao que parece emprestada por Pery Cunha, que só a
usa para abrigar-se do frio.
-Boina, seu Mário, é demais!- esbraveja Francisco Alves. - O melhor é a
gente cancelar a função.
Mário tranqüiliza o parceiro de dupla. Não se pode deixar o público
frustrado, tanta gente ansiosa para ver os Ases do Samba. Quem sabe uma nova
disposição de cadeiras no palco não resolve o problema? Noel pode ficar meio
escondido atrás do piano de Nonô, os outros três bem na frente, escondendo-o e
ao seu terno listrado. Chico concorda. Que Deus os ajude! O espetáculo começa
como Mário sugeriu, Noel lá atrás. Mas quando lhe cabe a vez de solar e ele vem
até a frente do palco, o teatro é sacudido por palmas e gargalhadas, todo o
mundo pensando que o terno, os sapatos, a boina fazem parte do número, um
toque diferente para dar mais colorido e alegria ao show. Acompanhando-se ao
violão, ele se põe a cantar uma paródia sua para Suçuarana(10).
10. Toada sertaneja de Heckel Tavares e Luís Peixoto.

Faz três semana


Que eu tô comendo banana
Só porque não tenho a grana
Nem ao menos pra almoçar

O que eu estou vendo


É que se não me defendo
Vou acabar me comendo
Pra poder me alimentar...

As palmas e as gargalhadas se repetem a cada quadrinha em que Noel,


cariocamente, faz troça da própria desgraça, escarnece à sua maneira da fome,
outro de seus temas mais usuais:
Isso é despacho,
Nunca estive tão por baixo
E se eu não me agacho
Vou morrer de inanição.

Eu me escangalho
De pular de galho em galho
Seu Ministro do Trabalho
Não me dá colocação...

Meu esqueleto
Está pior que um graveto
Eu já estou virando espeto
Meus olhos já estão no fundo.

Num bruto treino


Pra tomar café pequeno
Quero ver se me enveneno
Pra comer lá no outro mundo...

O teatro explode numa ovação quando ele, boina quase tapando os olhos,
conclui com estas quadras:
Inda outro dia
Fui até a Galeria
Só para ver se mordia
O primeiro a aparecer...

Chegou a hora,
Eu quis dizer:
"É agora!"
Mas, Virgem Nossa Senhora!
Cadê dente pra morder?

Os Ases do Samba deixam Pelotas contentes com seu êxito. Mas Francisco
Alves não esquece a boina. Lamuriento, confessa: - Sabe, seu Mário.. .Já estou
começando a achar que ele faz essas coisas de propósito. Só para esbandalhar
com os meus nervos.
Em Rio Grande não é diferente, Mário e Chico no melhor hotel, os outros
três na Pensão Mangache. Noel e Nonô continuam se evaporando horas antes do
espetáculo. O desespero do líder do grupo se repete: - Santo Deus! Desta vez
eles não vêm mesmo!
Mas sempre acabam vindo.
Voltam a Porto Alegre para uma nova série de apresentações nos últimos
dias de maio. A essa altura já é quase impossível encontrar Noel fora do palco.
Ele e Nonô continuam entregues às suas expedições boêmias à Rua da Praia, aos
cabarés mais ordinários, aos botequins mais escondidos. Isso enquanto Mário e
Chico vão engravatados ao Clube Jocotó divertir-se com a alta classe média
porto-alegrense, ou ao Caçadores, na Rua Nova, em velhos tempos o preferido
de Getúlio Vargas e ainda hoje recebendo figurões em suas mesas de jogo. Mas
os desaparecimentos de Noel são ainda mais demorados que os de Nonô. Na
verdade, ele é o mais "ocupado" de todo o grupo. Bem em frente à pensão da
Rua Clara - na qual volta a hospedar-se - mora uma bonita morena que ele
conheceu uma noite dessas, talvez de janela, talvez de prosa de esquina. Noel,
como de hábito, se apaixona. Uma paixão breve, mas intensa, que o agasalha
nestes frios dias de outono. Já não adianta Francisco Alves correr atrás dele,
reunir os outros Ases do Samba para uma busca pela cidade. Não vai encontrá-
lo. Nonô e Pery sabem, mas não dizem, que em vez dos ensaios à tarde o amigo
prefere os carinhos do novo amor. Como se chama?
Em toda a excursão, Francisco Alves nunca esteve tão enfezado:
-Já sei o que vou fazer.
- O que foi, Chico? - pergunta Mário. -Já descobri um modo de botar o
Noel na linha. E o Nonô também.
Francisco Alves, na primeira oportunidade, lembra aos dois irrequietos
Ases do Samba que a viagem vai prosseguir em Florianópolis e só acabar em
Curitiba. Quer dizer que ainda há muito pela frente. E como eles insistem em
chegar atrasados, em faltar aos ensaios, em não agir como verdadeiros
profissionais, Chico sente-se obrigado a tomar uma atitude extrema: segurar-lhes
o dinheiro. É isso mesmo! Depois de cada espetáculo, Noel e Nonô só receberão
o bastante para pagarem a hospedagem e as refeições. O restante que lhes couber
Francisco Alves guardará.
O cantor não fica nisso. Passa por todos os lugares em que
presumivelmente os dois costumam beber e pede aos gerentes, garçons e
freqüentadores assíduos que não lhes fiem ou paguem bebida. Noel e Nonô,
como era inevitável, ficam mordidos. Chico não tem esse direito, o dinheiro é
deles, ganho com o seu trabalho. A vida também é deles, podem beber onde
quiserem e com quem quiserem. Onde já se viu? Mas, bons malandros que às
vezes são, agüentam firmes, engolem a indignação, dizem aceitar as imposições
do chefe. Para que existe o dia de amanhã? Hoje é Francisco Alves quem dá as
cartas. Não é demais lembrar que quem voa em grande altura leva sempre grande
queda. Mesmo que seja um Francisco Alves.
Uma paixão breve, mas intensa. O suficiente, pelo menos, para encher de
tristeza o coração de Noel Rosa no dia do embarque para Florianópolis. Como o
próprio Noel contará daqui a alguns anos numa entrevista(11), na véspera de
tomar o navio conversa com a morena, ele da sua pensão, ela na janela da casa
em frente.
11. Carioca, 18 de julho de 1936 (página 41).

Chove muito. Noel gostaria que estivessem juntos em vez de separados pelo
aguaceiro que desaba sobre a rua estreita. Alguém a chama lá dentro. A morena
entra apressada, com tempo apenas para dizer: - Até amanhã...
Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de
Porto Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu
quarto de pensão: (Até Amanhã)
Até amanhã, se Deus quiser,
Se não chover eu volto pra te ver,
Oh, mulher!
De ti gosto mais que outra qualquer,
Não vou por gosto,
O destino é quem quer.

Adeus é pra quem deixa a vida


É sempre na certa em que eu jogo
Três palavras vou gritar por despedida:
"Até amanhã! Até já! Até logo!"

O mundo é um samba em que eu danço,


Sem nunca sair do meu trilho,
Vou cantando o teu nome sem descanso,
Pois do meu samba tu és o estribilho.

E mais uma quadrinha que esperará seis décadas para ser conhecida pelo
público(12): 12. Gravada em 1983 como uma das vinhetas do disco Noel Rosa Inédito e Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).

Eu sei me livrar do perigo,


No golpe de azar eu não jogo.
É por isso que risonho eu te digo:
"Até amanhã! Até já! Até logo!"

Os Ases do Samba não fazem nas próximas escalas o mesmo sucesso de


Porto Alegre e outras cidades gaúchas. Vão alegar que as platéias de Santa
Catarina e Paraná não são sensíveis ao espírito excessivamente carioca de seu
repertório. Talvez. Há apenas uma exibição no Cine Glória de Florianópolis, a 5
de junho, e outra no Palácio Teatro de Curitiba, na noite de segunda-feira, 13.
Uma semana depois, o Rio.
Romualdo Peixoto (Nonô)
Capítulo 23
ONDE ESTÃO OS MADRIGAIS?

Dois meses é uma longa ausência, uma considerável pausa nas atividades
de qualquer profissional do rádio e da música popular. Por isso, como se tendo
pressa de recuperar o tempo em que estiveram fora, os cinco Ases do Samba,
juntos ou separados, tratam de se mobilizar. Nonô e Pery Cunha voltam às
gravações. Mário Reis - cada vez mais apaixonado por Mulato Bamba - registra-
o na Odeon, destinando o outro lado do disco a um novo samba de Noel e Ismael
Silva: Uma Jura Que Fiz.
Não tenho amor, nem posso amar
Pra não quebrar uma jura que fiz
E pra não ter em quem pensar
Eu vivo só e sou muito feliz.

Aquela que eu mais amava


Só pensava em me trair
Quando eu menos esperava
Partiu sem se despedir.
Essa mesma criatura
Quis voltar mas eu não quis
E hoje cumprindo a jura
Vivo só e sou feliz.

Um amor pra ser traído


Só depende da vontade
Mas existe amor fingido
Que nos traz felicidade.
A mulher vive mudando
De idéia e de ação
E o homem vai penando
Sem mudar de opinião.

Este samba, Uma Jura Que Fiz, retoma sob as bênçãos de Francisco Alves a
sociedade que a viagem obrigou-os a interromper. É um samba perfeito, primeira
e segunda partes impecavelmente encaixadas. É um dos mais representativos da
parceria Ismael Noel. Na música e na letra. É importante notar como se
completam, sem qualquer conflito, as diferentes visões que Ismael e Noel têm do
amor. O que para um é recusa, não querer amar, não gostar ("Esse negócio de
amor não convém", dizia Ismael na primeira composição que Noel lhe
completou), no outro é desilusão, sofrimento, traição. Ambos - Ismael na
primeira, Noel na segunda - acreditam em viver só e ser feliz, mas chegam a tal
conclusão por caminhos diversos, Ismael por não querer problemas, Noel por já
ter superado os seus. Essas distintas visões do amor, um se recusando a amar, o
outro sofrendo por não se ter recusado, vai se repetir em outros sambas dos dois.
Mas com tal habilidade de Noel na condução da segunda parte (a fórmula
praticamente não varia, primeira de Ismael, segunda de Noel), que só com algum
esforço se percebe que os poetas são dois e não um.
Mais três sambas Noel e Ismael fazem pela mesma época, isto é, logo
depois da viagem ao Sul. Um deles é Ando Cismado.
Mulher, eu ando cismado
Que me enganei com você
Se algum dia não ficar mais a seu lado
Não precisa perguntar por quê.

A mentira é fatal
Creio que não é por mal
Que a mulher nos faz descrer
Mas se é realidade
Sua grande falsidade
Eu hei de ver você sofrer.

Eu cismado espero agora


Ver você a qualquer hora
Dando a outro o coração
Quando chegar esse dia
Deixo sua companhia
Sem explicar por que razão.

Outro é A Razão Dá-se A Quem Tem, deliciosa composição em forma de


diálogo, na qual Noel glosa o estribilho de Ismael entremeando as segundas
partes de versos usados na primeira. Obra de mestre, o sentido sempre
inalterado. Mário Reis e Francisco Alves são mais uma vez os intérpretes:
Se meu amor me deixar
Eu não posso me queixar
Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém
A razão dá-se a quem tem.

Sei que não posso suportar


(Se meu amor me deixar)
Se de saudade eu chorar
(Eu não posso me queixar)
Abandonado sem vintém
(Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém)
Quem muito riu chora também
(A razão dá-se a quem tem).

Eu vou chorar só em lembrar


(Se meu amor me deixar)
Dei sempre golpe de azar
(Eu não posso me queixar)
Pra parecer que vivo bem
(Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém)
A esconder que amo alguém
(A razão dá-se a quem tem).

O terceiro, É Peso, não sairá em seus nomes, mas no de Antônio dos


Santos, jornaleiro do Estácio que os acoberta talvez para evitar a participação de
Chico(1).
1. É ainda em Harmonia, número de dezembro de 1932, que a autoria do samba está atribuída a Ismael e "Noel. Mas o próprio compositor do Estácio, muitos anos depois, contaria ao
jornalista José Lino Grünewald - segundo depoimento deste aos autores - que ele e Noel usaram o nome do jornaleiro Antônio dos Santos.

A letra da primeira parte, lida simplesmente, pouco vale. Mas, vestida com
melodia de Ismael, se transforma. A segunda é legítimo Noel. Na estrofe final,
são primorosos os duplos sentidos, os jogos de palavras, "peso" podendo ser azar
ou carga, e "pena", castigo ou coisa leve.
É peso, estou pesado
O meu viver é uma sentença
Que eu fui condenado a cumprir
Esta pena o remorso condena
Eu serei sentenciado.

Se eu soubesse que a saudade


Não se esquece nem querendo
Não deixava essa amizade
Para não ficar sofrendo.
Hoje eu quero e não me queres
E o remorso que me invade
É saber que tu preferes
Morrer longe de saudade.

E quando a lua descamba


Com o pandeiro a batucar
Saio da roda do samba
Pra ninguém me ver chorar.
Ao azar hoje me entrego
Quem tem peso tem azar
Mas o peso que eu carrego
É a pena de te amar.

Ismael e Noel produzindo muito, o primeiro para não deixar sem material
novo o sócio Francisco Alves, o segundo para amortizar a dívida do Pavão. Tudo
como antes. Especialmente para Francisco Alves. Profissional é profissional, de
modo que já esqueceu os problemas que Noel lhe causou durante a viagem.
Acertadas as contas, pago o que era devido a Noel e a Nonô, o cantor acha que o
que passou, passou. É hora de seguir em frente. Por isso, procura o parceiro e diz
que quer gravar Até Amanhã. A reação de Noel é quase infantil, birrenta como a
de um garoto zangado.
- Desculpe, mas eu prefiro dar pro João Petra.
Francisco Alves não se queima. Deixa o garoto Noel se zangar. Como não
se queima, tampouco, ao saber que Nonô e Noel fizeram um samba mexendo
com ele, desforrando-se do que aconteceu em Porto Alegre, provocando-o
musicalmente. Tanto assim que, informado de que Sílvio Caldas vai gravar o tal
samba, Vitória, na tarde de 13 de julho, aparece no estúdio da Victor e se
oferece para participar da gravação. E de graça! Sílvio fica honrado e surpreso.
O que terá dado no Chico? Contratado da Odeon e não cobrando nada para
reforçar um disco da Victor? O samba é gravado, Francisco Alves fazendo uma
nítida, afinada e harmoniosa segunda voz para Sílvio:
Antes da vitória
Não se deve cantar glória
Você criou fama
Deitou-se na cama
E eu que não estou dormindo
Vou subindo, vou subindo...
Enquanto você vai decaindo.

Quero a minha independência


E com jeito e paciência
Me preparo pro futuro
A tudo estou resolvido
E você tome sentido
Que entre nós o páreo é duro.
Agüentei muita indireta
Mas andei na linha reta
Não maldigo a minha sorte
Vou agindo com cadência
Sei que a minha independência
Há de ser a sua morte.
(Vitória!)

Sua voz se alguém percebe


Bem humilde lhe recebe
Sua entrada ninguém veda
Você goza de ventura
Mas quem voa em grande altura
Leva sempre grande queda.
Sempre fiz papel bonito
Não tenho medo de grito
O que falo é bem pensado
Não receio escaramuça
Que aceite a carapuça
Quem se sente melindrado.
(Vitória!)

Noel Rosa não é, nunca será um romântico. Nem na poesia, nem na vida.
Não será jamais um poeta transbordante de sentimentos, lírico até a raiz dos
cabelos, derramado como os que ele mesmo gostava de cantar com o amigo
Alegria à época de Queixumes ("Por que te esquivas assim, coração...?"), nem
será um amante dado a enlevos de um Romeu ("Ah! Querida Julieta! Por que
ainda és tão bela?"). Uma coisa está refletida na outra. Não há lugar nos
relacionamentos amorosos de Noel para flores e bombons, bilhetinhos
apaixonados e gestos galantes, carinhos e nobrezas. Da mesma forma, sua
poesia, suas letras de música raramente terão o acento lírico dos menestréis das
noites de Vila Isabel.
Das 250 para 300 músicas que comporá, não chegarão a meia dúzia as que
falam do amor de maneira direta, a mulher como objeto de seus sentimentos, de
suas juras, de suas promessas, da alegria de gostar dela. Quantas vezes o "eu te
amo" fará parte de suas letras? Nenhuma. Quando muito dirá como em Até
Amanhã:
De ti gosto mais que outra qualquer

Menos de meia dúzia. Poderá fazer-se eventualmente gentil e generoso ao


cantar sua cidade, seu bairro, as pastorinhas que desfilam pelas ruas nas
proximidades do Natal. À mulher amada, porém, destinará apenas as queixas.
Suas canções de amor são anti-românticas, principalmente, porque a visão de
vida de Noel, em relação ao amor, nada tem de romântica. Não acredita que
possa ser amado. Talvez nem acredite que alguém possa amar alguém, o amor
sendo sustentado pela mentira, a artimanha, a falsidade, a simulação. É neste
1932 que ele compõe este hino à mentira, música lindíssima para versos tão
sofridos: Mentir.
Mentir, mentir, somente pra esconder
A mágoa que ninguém deve saber
Mentir, mentir, em vez de demonstrar
A nossa dor num gesto ou num olhar

Saber mentir é prova de nobreza


Pra não ferir alguém com a franqueza
Mentira não é crime
É bem sublime o que se diz
Mentindo pra fazer alguém feliz.

É com mentira que a gente


Se sente mais contente
Por não pensar na verdade
O próprio mundo nos mente
E ensina a mentir
Chorando ou rindo sem ter vontade.

E se não fosse a mentira


Ninguém mais viveria
Por não poder ser feliz
E os homens contra as mulheres
Na terra, então, viveriam em guerra
Pois no campo do amor
A mulher que não mente não tem valor.

Um remate definidor: no campo do amor, a mulher que não mente não tem
valor. Para ele, contudo, todas as mulheres mentem. E é quase sempre a partir da
mentira, da arte de enganar, do dom de saber iludir, que ele vai criar o universo
de suas canções de amor. Tudo, evidentemente, intercalado de humor, ironia,
astúcia.
Noel Rosa não é nem será um romântico. Mas nunca isso ficou tão
manifesto, tão claramente explícito, tão confessado por ele mesmo, como neste
segundo semestre de 1932. Quem será sua musa então?
Clara e Fina. Não são apenas as duas que dividem os carinhos de Noel
nestes dias. Entre uma e outra caberá lugar para uma terceira, nova musa:
Julinha. Clara continua sendo a namoradinha dos tempos de colégio, a única com
quem talvez se casasse. Isto é, se acreditasse em casamento, em ser feliz preso a
uma mulher, uma família, uma vida rotineira e sossegada. Fina foi, sem dúvida,
a primeira paixão. De certo modo, Noel jamais deixará de gostar dela, de seu
jeito de criança alegre, atirada, travessa, parecida com ele em sua sede de vida,
mas uma vida sem freios nem grades, de coração e braços abertos para o mundo.
Julinha é diferente de Clara e de Fina, pode-se dizer, em quase tudo.
Chama-se Júlia Bernardes, diz pertencer a importante família mineira, a
mesma que deu ao Brasil um Presidente da República, e exige ser tratada à altura
de seu nome. Mas Noel a conheceu num dos muitos cabarés da Lapa onde tem
trabalhado, o Roxy, o Flórida, o Rex, o Tabu. Tem entre 30 e 35 anos, a
maquiagem carregada tornando mais difícil precisar-lhe a idade. É alta, vistosa.
Muda de cabarés e namorados com a mesma freqüência com que muda de
cabelo, loura hoje, ruiva amanhã, cor indefinida depois. Quando sóbria, ostenta
maneiras que não chegariam a envergonhar os Bernardes de Viçosa. Mas
raramente está sóbria. E quando bebe, tudo é possível. Julinha é muito diferente
de Clara e Fina.
Sempre propenso a grandes paixões, Noel se vê empurrado para os braços
de Julinha desde o primeiro momento. Testemunha deste começo de romance é
Ignácio Jorge, o Pará, motorista de táxi que costumava levar Noel para todo
canto antes da compra do Pavão. Como Noel quase não fala de Julinha (procura
vê-la longe dos olhos dos amigos, sempre temendo suas cenas, algumas delas
violentas), às informações de Pará se deverá o pouco que se vai saber deste
agitado caso de amor. Mais velha e experiente que Noel, levando uma vida a que
Clara e Fina jamais se atreveriam, Julinha não será propriamente a inspiradora
do anti-romantismo de Noel neste 1932. Mas, para quem vivia fazendo versos
sobre a mentira, a falsidade das mulheres, o amor como um jogo de regras
baixas, desprovido de qualquer lirismo, ela parece a musa ideal. Prática que
confirma a teoria, modelo perfeito para os sambas que Noel vai fazer por agora.
Julinha mora na Penha, numa modesta casa de morro pouca coisa melhor
do que um daqueles barracões da Mangueira que Noel conhece tão bem. É esta
casa que abriga o amor dos dois nos primeiros tempos. Um amor complicado,
entremeado de brigas e bebedeiras, ciúmes e escândalos. É impossível saber ao
certo quantas e quais músicas Noel comporá inspirado em Julinha(2).
2. De acordo com Almirante, teriam sido cinco os sambas de Noel Rosa inspirados em Julinha: Feitio de Oração, Vai Para Casa Depressa, Cor de Cinza, Pra Esquecer e Meu Barracão.
Nenhum deles, porém, parece conter elementos autobiográficos que permitam concluir que a musa era de fato ela. O primeiro é muito mais um hino de louvor ao samba e à Penha do que à mulher amada.
O segundo, como se verá no capítulo seguinte, é uma digressão filosófica, do ponto de vista do malandro, em torno de uma disputa amorosa. Em entrevista à revista Carioca - da qual se transcreve trecho,
logo adiante, neste mesmo capítulo - Noel esclarece a origem de Pra Esquecer, em nada ligada a Julinha. Meu Barracão, que também será estudado mais à frente, é menos um canto de amor do que uma
referência saudosa à Penha e ao barraco, embora este bem possa ser a modesta casa onde Noel viveu com Julinha. Quanto a Cor de Cinza, assunto bem mais complexo, será focalizado no Capítulo 41.

Pelo menos neste caso, se é autobiográfico, se transforma em samba


episódios reais, nunca o faz de forma clara, direta, com todas as letras. Mas
decerto nao é para Julinha -ao contrário do que se dirá - esta beleza de queixa de
amor que é Pra Esquecer:
Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecendo a solidão
E a miséria daquele barracão.

Tudo passou tão depressa


Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu
Com o primeiro que apareceu
Não querendo ser pobre como eu.
E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachaça
Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça
Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que eu filei
De um ex-amigo que outrora sustentei.

É verdade que a Penha, muito longe do trabalho de Julinha e também dos


lugares por onde Noel mais anda, logo será trocada pela Lapa, o humilde
barracão dando lugar a um quarto na Rua do Riachuelo que o próprio Noel ajuda
Julinha a alugar. Mas a letra do samba não reflete exatamente a história do
romance entre os dois. Além do mais, dirá Noel numa entrevista a propósito da
origem de Pra Esquecer: "A vítima não era eu. Era um amigo que gostava muito
de uma mulher e que por ela abandonou tudo. Uma noite eu o vi dançando num
cabaré, com ela. Talvez fosse a última noite. Ele havia reunido o que lhe restava
da fortuna e tinha ido vê-la. A cena me impressionou fortemente e dias depois o
samba nasceu. E nasceu triste como a história que eu via desenrolar-se perante
meus olhos."(3) 3. Carioca, 18 de julho de 1936.

O que importa é ser este samba um doloroso e impressionante retrato da


vida boêmia -o amor acabando com o último tostão. Cruel, autoflagelador, mas
lindo.
Julinha também é interesseira. Gosta de dinheiro, faz parte da sua filosofia.
E exigência do métier esta ambição de querer mais, sempre mais. Em razão
disso, multiplicam-se os namorados. Noel não pode sustentá-la com o que ganha.
Provavelmente, nem pensa nisso. Mas experimenta - com alguma amargura e
muita ironia - a ganância, a cobiça com que Julinha anima sua convivência com
ele. Ela talvez não seja, mas bem poderia ser a musa de um fox-trot que'Noel
compõe precisamente por esta época, contendo uma de suas mais perfeitas letras,
versos em que deixa resumido todo o seu anti-romantismo, toda a sua certeza de
que os tempos das paixões como a de Romeu e Julieta ficaram para trás, que
toda a poesia do amor, hoje, é outra, coronéis em lugar de romeus, brilhantes em
vez de canções, o canto dos menestréis da noite mal alcançando os ouvidos
distantes de uma amada gananciosa e infiel. O fox-trot chama-se Julieta.
Uma Julieta como Julinha.
Julieta
Não és mais um anjo de bondade
Como outrora sonhava O teu Romeu.
Julieta
Tens a volúpia da infidelidade
E quem te paga as dívidas sou eu...

Julieta
Tu não ouves meu grito de esperança
Que afinal de tão fraco não alcança
As alturas do teu arranha-céu.
Tu decretaste a morte aos madrigais
E constróis um castelo de ideais
No formato elegante de um chapéu.

Julieta
Nem falar em Romeu tu hoje queres
Borboleta sem asas, tu preferes
Que te façam carícias de papel.
Nos teus anseios loucos, delirantes
Em lugar de canções queres brilhantes
Em lugar de Romeu, um coronel.

Noel Rosa e Ismael Silva estreitam sua colaboração, produzem cada vez
mais juntos, formam dupla para gravar. Gente Boa e Batutas do Estácio são
algumas designações com que os dois, quase sempre reforçados por Francisco
Alves, atuam em discos e em recitais. Gravam coisas menores do próprio Noel,
como Quem Não Dança, samba em forma de partido-alto cujos improvisos não
vão além de dois versos, o segundo tendo de rimar com "criança".
Quem não dança, quem não dança
Pega na criança
Quem não dança, quem não dança
Pega na criança.

Você é um contrapeso
Que não entra na balança.

Veja se carrega pedras


Enquanto você descansa.

Quando peço mais amor


Quero menos confiança.

Não pretendo andar no luxo


Toilette é lá na França.

Eu sou muito liberal


Mas não uso aliança.

Por qualquer mil e quinhentos


Você faz uma lambança.

O juiz apita sempre


Mas nem sempre a linha avança.

Ou brincadeiras como Seu Jacinto, marcha para o carnaval de 1933:


O que eu sinto e não consinto
É seu cinto se afrouxar
Seu Jacinto aperta o cinto
Bota as calças no lugar.

O seu Jacinto tinha que comprar feijão


Mas não tinha um só tostão
E o caixeiro estava duro
Ele não gosta de pagar feijão à vista
Porque sendo futurista
Paga sempre pro futuro.

O seu Jacinto que é cheio de chiquê


Eu não sei dizer por que
Dorme de cartola e fraque
Anda dizendo que o seu sonho dourado
É morrer esmigalhado
Por um carro Cadillac.

O seu Jacinto já arranca a sobrancelha


E só bebe mel de abelha
Para ser um doce amor
A tia dele que até hoje é melindrosa
Pra ser leve e vaporosa
Toma banho de vapor.

Quando tem baile lá na casa da Thereza


Ela faz pano de mesa
Com o lençol que cobre a cama
Bota nos copos água usada na banheira
Depois diz à turma inteira
Que é cerveja lá da Brahma.

Seu Jacinto, no caso, é o brasileiro destes tempos, que deve manter a pose
apesar da fome ("O que eu sinto e não consinto é seu cinto se afrouxar"). Apertar
o cinto é a palavra de ordem, economizar, não se gastar o pouco que se tem.
Uma marcha que - por outros motivos que não o retrato que traça do Brasil de
agora - vai provocar um protesto pela imprensa assinado por Jota Tojeiro,
pianista e compositor que em carta aberta refere-se à campanha liderada por
Renato Murce pela moralização e restauração do bom-gosto nas letras da música
popular brasileira. Tojeiro diz: "... lamento ter Renato Murce apresentado em
público o nome do Sr. Noel Rosa e outros como poetas-moralistas nas músicas
de sabor popular; talvez o senhor Renato Murce não conheça a marcha Seu
Jacinto de autoria do poeta-moralista, cuja letra é bem... interessante. O final da
letra desta marcha é bem desagradável para quem tem família e tem a
infelicidade de ter um rádio em casa ligado para qualquer das nossas estações."
(4)4. Diário Carioca, 5 de janeiro de 1933.

Quem não vive de aparências é a baiana a quem Noel e Ismael chamam de


Dona do Lugar, uma crônica da roda de samba e a primeira homenagem de
Noel à Bahia.
Chegou a dona do lugar
Chegou...
Pelo modo de pisar
Se vê que é iaia de loiô.

Lá vem ela, lá vem ela


Com o loiô do seu lado
Arrastando a chinela
Dizendo samba raiado.

Quando ela pega a sambar


Com o seu sapateado
Todos ficam a gritar
Dando viva ao Cais Dourado.

E essa bela Iaia


Não acredita em muamba
Ela tem um patuá
Que é todo o nosso samba.

Vou pedir, vou implorar


Ao meu Senhor do Bonfim
Pra fazer essa iaíá
Se apaixonar por mim.

De linha melódica impecável, em ambas as partes, Isso Não Se Faz é um


dos belos sambas da dupla Ismael-Noel:
Assim, poderei te perdoar
Se é que mudaste de pensar
Se tens prazer em me ver chorar
Por favor me deixa em paz
Isso não se faz.

Devias pagar
Por fazer chorar
A quem te tratava tão bem
Mas eu aprendi
O que fiz por ti
Não hei de fazer por mais ninguém.

Eu só quero ver
O teu proceder
Se a tua promessa é fatal
Eu tenho razão
Não digas que não
Porque tu já me fizeste mal.

Os dois sambas serão gravados por Castro Barbosa & Jonioca, o primeiro, e
João Petra de Barros, o segundo, mas em nenhum deles o nome de Noel constará
do selo do disco. Ao contrário de Assim, Sim!, marcha, uma das poucas de toda
obra de Ismael Silva. Gravada por Carmem Miranda enquanto Noel e os Ases do
Samba estavam no Sul, possui refrão suave e elegante, como quase tudo que
Ismael faz, e aquela imprecisão de que ele tanto gosta. Interessante, também, a
estrutura dos versos de Noel: um alexandrino e duas redondilhas maiores.
Assim, sim
Mas assim também não
Já não gostas mais de mim
Mas eu não te dei razão.

Infelizmente este mundo é sempre assim


Quem ri muito no começo
Chora quando chega o fim.

Em mar de rosas começou nossa amizade


E depois tu me entregaste
A tristeza e a saudade.

E muita gente que a tristeza desconhece


Chora às vezes de alegria
Quando ri de quem padece.

Nas tuas juras eu sorrindo acreditei


Hoje eu choro já descrente
Vendo quanto me enganei.

Carmem Miranda já é um cartaz da música popular. Não tem grande voz,


sustenta com dificuldades as notas mais longas, por vezes peca na afinação. Mas
é uma estrela. Seus discos vendem muito, mas é nas apresentações em palco que
ela realmente brilha. Ali conquista seu público, arrebata corações, embriaga fãs,
domina platéias. A vendagem dos discos torna-se conseqüência do que exibe em
carne e osso. Carne e osso é bem o caso. Porque a graça de Carmem Miranda - a
imprensa não se cansa de se referir a esta graça, evitando termos "mais ousados",
ainda que menos precisos -faz-se de uma irresistível sensualidade. Aracy Cortes
pode mostrar pernas e metade do busto no palco, os homens da platéia também
chegarão ao delírio. Outras grandes mulheres do teatro de revistas, pelo sumário
da roupa ou pelas anedotas picantes, produzirão efeito idêntico. Há sensualidade
igualmente nessas estrelas. Mas o que acontece com Carmem Miranda é
diferente: ela consegue tudo isso e muito mais coberta da cabeça aos pés, apenas
com a tal "graça", os requebros, os gestos de mão, o olhar malicioso. O público
enxerga por trás de suas roupas, vê-se tocado pelo seu magnetismo. Quem disse
que não se trata de uma grande cantora? Para os homens que estão no teatro é a
maior cantora do mundo. Para os músicos que a acompanham, talvez mais.-
conta-se que os componentes da orquestra de Pixinguinha costumam desafinar
toda vez que Carmem, gravando na Victor, requebra diante do microfone.
Mas há quem não goste muito de Carmem Miranda. Não a mulher, mas a
intérprete. Orestes Barbosa é um. Noel Rosa, outro. As restrições que Orestes faz
ao modo de Carmem cantar não deixam de se prender àquele fundo
antilusitanista que o poeta coloca em tudo. Porque ele nunca perde oportunidade
de lembrar às pessoas que Carmem nasceu em Portugal, sendo apenas "mais um
exemplo da força trituradora do Rio que refina, como numa usina, os elementos
aportados ao nosso torrão"(5).
5. Samba, segunda edição (página 59).

Em Noel, não há indícios de nacionalismo em sua falta de entusiasmo por


Carmem Miranda, a intérprete. Não é segredo para ninguém sua má vontade para
com brasileiros que cantem numa língua que não a sua - e quem pode esquecer
que Carmem começou sua carreira interpretando tangos, sendo até hoje acusada
de "argentinite"?(6) 6. Carmem Miranda de fato gostava de cantar tangos no começo de sua vida profissional. Já no histórico recital no Instituto Nacional de Música, seu
primeiro contato com Josué de Barros, o violonista que praticamente a descobriu, ela cantava Garufa e Mama, Yo Quiero Un Novio (depoimento de Josué de Barros incluído por Queirós Júnior em seu
livro Carmem Miranda - Vida, Glória, Amor e Morte, páginas 20 e 21). Em entrevista a O Paiz, de 22 de junho de 1930 (página 8), diz ela: "Amo o tango. Ele me faz vibrar todas as cordas..." A
"argentinite" não se deveria apenas a isso, mas principalmente às suas constantes viagens artísticas a Buenos Aires, a primeira com Francisco Alves e Mário Reis em outubro de 1931. De 1933 a 1938,
não haveria um só ano em que ela não se apresentasse em teatros ou emissoras de rádio da Argentina. Na página 19 de O Cruzeiro de 4 de abril de 1936, lê-se: "Os artistas do broadcasting carioca estão
atacados de 'argentinite'. Esta nova moléstia foi inoculada por Carmem Miranda, assim uma espécie de coqueluche." Se Noel Rosa realmente dava importância a essa vocação internacionalista de
Carmem, é possível imaginar como teria reagido se vivesse o bastante para testemunhar a carreira da cantora nos Estados Unidos.

Mas realmente não é este o motivo. A propósito, ainda outro dia,


encontrando-se no corredor de uma emissora de rádio com o cantor de música
americana Hamilton Burns, Noel perguntou: - Teu inglês é mesmo bom?
- É perfeito.
- Então não deixa o diretor da estação descobrir.
- Ora essa! Por quê?
- No dia em que um desses diretores de broadcasting perceber que tem um
cantor de fox que entende o que canta em inglês, joga ele na rua.
As restrições de Noel à criadora de Taí-e que vão ficar sintetizadas num
comentário tão ou mais irônico do que o feito a Hamilton Burns: "Isto é samba
ou aquela outra coisa que Carmem Miranda canta?"(7) - também têm pouco a
ver com o fato de os dois freqüentarem mundos diferentes, Noel os morros, os
botequins baratos, as rodas de malandro, ao passo que Carmem corteja a
sociedade e é por ela cortejada, tem amigos entre gente da alta, recebe convites
para festinhas grã-finas, os Guinles a admiram, canta nos perfumados salões do
Fluminense.
7. Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua Época (página 95), já nos falava desse comentário feito por Noel a Aracy de Almeida. Em depoimento aos autores, Aracy o confirma.

Mundos, sem dúvida, muito diferentes. Mas se fosse este o motivo das
reservas de Noel, na certa o refinado Mário Reis não seria um de seus intérpretes
preferidos e mais constantes.
A questão envolve apenas aspectos musicais. E só. Sabemos que, ao
escolher o caminho da música popular, Noel entregou se de corpo e alma ao
samba. Não o velho samba, qualquer samba, ou o samba que eventualmente
Carmem Miranda também canta, mas aquele que se traja rigorosamente dentro
do figurino do Estácio. Assim como o que faz Ismael Silva, ou Cartola. Carmem
Miranda jamais se sentirá inteiramente à vontade nesse campo. Tem clara
predileção pelas marchas(8).
8. Segundo levantamento de Abel Cardoso Júnior em Carmem Miranda, a Cantora do Brasil (páginas 235 e 236), das 281 músicas gravadas pela cantora antes de ir para os Estados Unidos,
107 eram marchas, 36 menos que o total de sambas.

E aos sambas que canta imprime sempre a sua marca, brejeira, interessante,
pessoal, notável principalmente pelo fraseado, pela habilidade com que
pronuncia nítida e rapidamente versos longos nos quais uma cantora menos ágil
tropeçaria. Mas uma marca que nem de longe se afina com a alma dos sambas do
Estado. Carmem será melhor intérprete de sambas ligeiros, quase choros
cantados, à maneira de Gadé, Vicente Paiva, Heitor Catumby, do que de
composições de Alcebíades Barcellos. Cantará melhor Ary Barroso e Joubert de
Carvalho do que Armando Marcai. Ismael Silva? Tirando Assim, Sim, por sinal
uma marcha, nada mais gravará dele. Cartola? Noel Rosa estava no Sul com os
Ases do Samba quando Carmem gravou Tenho Um Novo Amor, dele com Noel
Torna-se impossível reconhecer por trás da interpretação da cantora, sem calor,
aos arranques, vestígios do mesmo compositor que há dois anos, pela voz de
Francisco Alves, começou a sair do anonimato:
Que infeliz sorte!
Que infeliz sorte!
Que vale que o meu coração
Pra resistir esta paixão é forte.

Tão pouco identificada está Carmem com o universo de Cartola e Noel que
(talvez por estar este ausente do Rio) decidiu fazer modificações na letra de
Tenho Um Novo Amor para torná-lo mais digno de uma amiga dos Guinles, de
uma freqüentadora do Fluminense. Assim era o coro original, possivelmente só
de Cartola:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver sujo nem rasgado
Gosta que eu ande assim bem trajado.

Eis como ficou o coro após a alteração, seguindo-se as duas segundas partes
de Noel:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver triste nem zangada
Gosta que eu ande assim engraçada.

Eu não quero dar a perceber


Que gosto demais do meu amor
Se ele compreender
Vai se convencer
De que tem para mim um enorme valor.

Se acaso algum dia se apagar


Do seu pensamento o meu amor
Para não chorar
E não mais penar
Mando embora a saudade pra livrar-me da dor.

As relações profissionais mais estreitas e duradouras que Noel Rosa e


Carmem Miranda manterão vão se limitar a duas semanas, apenas duas semanas,
no palco do CineTeatro Broadway, na Cinelândia, de 8 a 21 de agosto de 1932.
Com o objetivo de atrair mais público para os filmes que exibe, a empresa Ponce
& Irmão vem realizando desde o ano passado espetáculos variados em seus
palcos. Pelo preço de um ingresso, mais um pouquinho, assiste-se a um desfile
de artistas da música popular, do rádio e do teatro, e logo em seguida ao filme. A
idéia dessas funções de palco-e-tela é de um dos donos da empresa, Generoso
Ponce. Recordemos que o próprio Noel participou de um desses programas, em
agosto de 1931, no Cine Eldorado, com o Bando de Tangarás e seus adendos.
Agora, recebe convite para outro.
O novo espetáculo denomina-se Broadway Cocktail, na verdade o segundo
de uma série que se manterá até o ano que vem. O primeiro dos Broadway
Cocktail realizou-se na semana de 25 a 31 de julho com a apresentação de Sílvio
Caldas, Lamartine Babo, Laura Suarez, Elisinha Coelho e Carolina Cardoso de
Menezes. Foi um êxito. Mas este segundo vai muito mais além. Também,
pudera: juntos, no mesmo palco, durante quase duas horas de música popular,
ninguém menos do que Francisco Alves, Carmem Miranda, Almirante e Noel
Rosa, acompanhados pelos violões e bandolins de Josué de Barros, Jacy Pereira,
o Gorgulho, Carlos Lentine e João Martins. Com um elenco destes, quem se
importa com o filme que vem depois, Raul Roulien e Lia Tora em Eram Treze?
São dois espetáculos diários, um às 5 da tarde e outro às 9 da noite. As
sessões de cinema começam às 7 e 11 horas. Pelos programas que o cinema
distribui (e pelos anúncios e notas que os jornais publicam), é possível concluir
alguns pontos a respeito da participação de Noel Rosa neste segundo Broadway
Cocktail. Em primeiro lugar, é ele apresentado como o clown do elenco, "Noel
Rosa e seus sambas humorísticos", enquanto Francisco Alves é o Rei do Samba,
Carmem Miranda, a cantora que tem it na voz e no gesto, e Almirante, o Príncipe
da Embolada. A publicidade, portanto, parece fazer-se muito mais em cima do
humor de Noel, dos sorrisos que será capaz de arrancar da platéia com sambas
não exatamente humorísticos, mas originais e intrigantes como Quem Dá Mais?,
Coração e São Coisas Nossas, os três que ele próprio interpreta, do que pelo fato
de ser autor ou co-autor de nada menos do que oito das treze músicas do
programa. Uma delas - espécie de ilha neste mar de ironias e anti-romantismo
que são suas obras de agora - é um dos sambas mais bonitos que jamais fará.
Pela linha melódica inspiradíssima e também pela letra, onde estão presentes
jogos de palavras e contraposições tipicamente suas: "A mulher mente brincando
e às vezes brinca mentindo..." ou "o amor é um pecado, mas quem não ama é
pecador..." Trata-se, provavelmente, do primeiro samba-canção de Noel, gênero
que soma o lirismo das canções cultivadas em serenatas à cadência brejeira dos
sambas, no qual seu parceiro Henrique Vogeler fez-se pioneiro há quatro anos.
Nuvem Que Passou, composto antes de Mentir e Pra Esquecer, também
sambas-canções, é lançado por Francisco Alves neste segundo Broadway
Cocktail:
A nossa imensa felicidade
Foi uma nuvem que já passou
O teu amor que traz saudade
Foi estrela que brilhou
E pra sempre se apagou.

A mulher mente brincando


E às vezes brinca mentindo
Quando ri está chorando
E quando chora está sorrindo.

Quero lembrar o passado


Por um prazer, uma dor
O amor é um pecado
Mas quem não ama é pecador.

Meu ideal foi desfeito


Não quero mais amizade
Para não trazer no peito
O atroz veneno da saudade.

No céu do amor a saudade


Brilhando sempre ficou
E a nossa felicidade
Foi uma nuvem que passou.

Cabe também a Francisco Alves lançar aqui Julieta, embora não seja ele,
mas Castro Barbosa, quem o levará ao disco. Enfim, sem que muitos se dêem
conta, não é pelo humor, mas por sua efetiva presença como compositor que
Noel Rosa se destaca no segundo Broadway Cocktail. Alguns jornais, como A
Noite, verão nele não mais que um humorista, ainda que o batizando de "Bernard
Shaw do Samba": "O Almirante conquistou numerosas palmas com as suas
emboladas tão do agrado do público nosso. Por último, Noel Rosa disse muita
coisa de espírito, fazendo rir durante quase todo o tempo em que esteve em
cena."(9)9. A Noite, 9 de agosto de 1932 (página 5).

Outros, como o Diário Carioca, serão mais efusivos: "A Almirante e Noel
Rosa cabem, sem dúvida alguma, as honras do cocktail. O primeiro, com suas
emboladas características, entusiasma o público, que custa a deixá-lo sair de
cena. Quanto a Noel Rosa, nós já prevíamos o sucesso que obteria. Canta três
sambas de sua autoria, cada qual melhor."(10) 10. Diário Carioca, 10 de agosto de 19.32.

Portanto, as estrelas são Francisco Alves e Carmem Miranda, mas o brilho


maior fica mesmo com Noel Rosa. Sucesso tão grande que o segundo Broadway
Cocktail, organizado para ficar em cartaz apenas uma semana, estende-se por
mais uma, servindo agora de aperitivo para novo filme, Barbara Stanwick e
Ricardo Cortez em A Vida É Uma Dança (Ten Cents A Dance).
Será sempre assim, nunca vendo as coisas por um prisma colorido. Lirismo
não é com ele. Daqui a três anos, A Voz do Rádio vai empreender uma de suas
enquetes em torno de trivialidades do tipo "o amor é eterno?" Partindo de um
poema de Adelmar Tavares, que diz:
Uma barquinha branca...
Uma cabana...
E em volta da cabana - coqueirais...
O mar em frente...
A vida soberana
De ser pobre e pescador
Viver feliz com o teu amor
E nada mais...
Ou no cimo de um monte uma choupana,
- E em volta da choupana laranjais...
- Soprar a flauta quérula, de cana,
Ter um rebanho e ser pastor...
Viver feliz com teu amor
E - nada mais...(11)
11. Poema sem título que abre o livro Myriam - Luz dos Meus Olhos, de Adelmar Tavares, 1912.

O semanário vai perguntar à gente do meio artístico se um amor e uma


choupana são o bastante(12).
12. A Voz do Rádio, 11 de setembro de 1935.

Diz Carmem Miranda:


"Meu nego, amor com cabana é do século das saias rodadas."
Aurora Miranda:
"Você tem cada uma! Onde já viu você que nesse tempo dos arranha-céus
possa a gente pensar em cabanas."
Antônio Nássara:
"Tem os seus conformes e os seus breques. Quem é que vai para a cabana?"
Noel prefere responder com Alô Beleza, música e letra de sua autoria, que
jamais serão gravadas:
Alô beleza
Andas por aqui?
Cada vez mais cada vez...
Cada vez com mais feitiço
Por falar nisso...

Tens alguns dinheiro aí?


Hoje é moda, meu benzinho
(Eu te digo com franqueza)
Dar amor, fazer carinho
E pagar sempre a despesa.

"Teu amor e uma choupana


São palavras sem valor
Teu amor e muita grana
Isto sim que é amor.

Entre nós, minha querida,


Já existe intimidade
Dê algum por despedida
Pra matar minha saudade.

Puro anti-romantismo.
Está mesmo dividido por três. Com Clara ele é um namorado mais ou
menos esporádico, conversando com ela no portão do chalé numa tardinha de
segunda-feira para desaparecer na terça. Inventa desculpas, diz andar ocupado,
some por semanas, meses, mas volta sempre, com novas desculpas. Que ela
aceita. Dona Martha não a desanima.- - É assim mesmo. Um dia ele toma jeito.
Não desiste do sonho de ver o filho casado com Clara, ainda dando aulas
aos alunos de alfabetização no Externato Santa Rita de Cássia. É tão acalentado
o sonho de Martha que ela chega mesmo a aproveitar as horinhas de folga para
preparar o enxoval de Clarinha. Uma fronha hoje, um pano de mesa amanhã,
peças simples, baratas, mas sempre úteis. Para que deixar tudo para a última
hora?
Às vezes, Clara pensa em desistir, em tratar da própria vida. Enquanto isso,
Noel continua sumindo. E fugindo de Fina também. Esta não é tão calma, tão
aceitativa. Noel pode fazer-lhe das suas, mas jamais ficará sem resposta. Um
domingo, combinam ir a uma festa na casa de uma família amiga. Noel tem um
violão guardado na Rua Moju. Fina sabe disso e está certa de que o namorado,
na hora de seguirem para a festa, levará o violão. Imaginem o que as pessoas
irão dizer ao vê-la chegar.- - Olhem, é a namorada do Noel. E ele trouxe o
violão!
Mas, neste domingo, o atraso de Noel é maior do que das outras vezes. Fina
espera, vai ao portão, impacienta-se, volta, queixa-se com a avó, roga pragas,
xinga. O atraso é tanto que jura por todos os santos que nunca mais olhará para
ele. Como ousa deixá-la esperando, numa noite de domingo, todo o mundo lá na
festa querendo saber onde estão ela, Noel Rosa e o violão? Fina começa a trocar
de roupa, abandona a idéia de sair. Sente vontade de chorar. Ouve então o portão
da rua se abrir e por ele entrar, trocando pernas, o namorado.
- Boa noite, dona Luísa.
Pelo andar, pela voz, por tudo, deve ter bebido um barril de chope. Está
pálido, passando mal. Vomita na varandinha, apóia-se na grade. Fina está cada
vez mais furiosa.
- Você não presta, Noel!
- Não fale assim com ele, Fina intervém dona Luísa.
Noel começa a dar uma desculpa, mas a voz de Fina, estridente, abafa-lhe
as palavras.
- Nunca mais fale comigo!Nunca mais!
Fina vai lá dentro apanhar o violão. Enquanto isso, sempre se apoiando na
grade da varanda, fazendo força para não cair, Noel fala.- -Sabe de uma coisa,
dona Luísa?Eu amo sua neta! Eu amo...
Fina volta com o violão. Coloca-o no chão da sala, arrebenta-lhe-as cordas,
salta com os dois pés sobre ele, rachando-o.
- Fina! - protesta a avó.
- Deixa ela, dona Luísa. Deixa ela. Dona Luísa está sempre do lado de
Noel.
Não só pelo cafezinho, as broas de milho, as delicadezas várias, mas pela
compreensão que tenta passar à neta. No dia seguinte, chama-a para pedir-lhe
que tenha paciência com o namorado. Se bebeu demais, deve ter seus motivos.
Quem sabe algum desgosto?
- Porque Noel, minha filha, no fundo é um moço triste. Trate-o bem. As
pessoas tristes precisam de mais atenção.
Fina vai continuar tratando Noel bem.
Com Julinha tudo é diferente. Nem bons tratos, nem atenções. Muito menos
uma aliada como dona Luísa para tornar menos azedas as brigas de amor. Um
amor que se revela mais complicado e penoso cada vez que ela abusa de bebida.
Os dois, Julinha e Noel, gostam de beber. Também ele, quando ultrapassa
determinado limite, pode fazer-se difícil, inconveniente, provocador e até
agressivo. As bebedeiras nos cabarés em nada se parecem com aquela, dada a
arroubos, que dona Luísa testemunhou.- "Eu amo sua neta!" São bebedeiras que
às vezes incomodam os outros. E quando os incomodados reagem, o magrícemo
Noel se pondo a postos para uma briga que na certa perderá, é sempre bom estar
por perto um dos muitos valentes da Lapa que se incluem entre os seus amigos.
Não havendo por perto este defensor oportuno Noel invariavelmente apanha. E
feio. Mas, ainda assim, sua embriaguez é menos tumultuosa que a de Julinha.
- Vou me matar!- costuma ameaçar no auge dos seus pileques.
Tudo que faz - desde as ameaças de suicídio às desagradáveis cenas em que
tanto pode xingar gratuitamente um dos fregueses como quebrar copos e garrafas
- é para chamar a atenção. Um dia tenta afogar-se mergulhando nos dois palmos
de profundidade do riacho do Passeio Publico. No outro, tenta atirar-se do carro
de Pará em movimento. Sempre motivada pela bebida. Nas discussões com
Noel, enquanto ele procura falar baixo, para que ninguém mais o ouça, ela grita,
desgrenha-se, faz tudo para envergonhá-lo. Também Julinha, numa das
incontáveis brigas entre eles, quebrou-lhe o violão. Por que será que as mulheres
vivem se vingando no violão de Noel? Bem pode ter sido para Júlia Bernardes
que ele compôs este É Difícil Saber Fingir, que não chegará a ser gravado.
É difícil
Saber fingir, meu bem
Mas você tirou patente
Privilégio que ninguém tem.

É capaz
De beber um litro de perfume
Só pra fingir
Que está louca de ciúme.
Não hei de me admirar
Se algum dia
Você se atirar no meio da baía
Pondo a família
Em grande agitação
Só por fingimento,
Pura tapeação!

Dividido por três, a Clara dos olhos meigos, a Fina do riso de criança, a
Julinha das brigas de amor, o anti-romântico Noel vai vivendo intensamente.
Francisco Alves, Noel Rosa, Carlos Lentini, Carmen Miranda, Josué de Barros, Almirante, Betinho e João Martins no 2o Broadway Cocktail em 1932. No destaque, Francisco Alves.
Capítulo 24
DO CHÁ DAS QUINTAS AO CAFÉ NO
NICE
Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular com verdadeira
paixão. E apresentou sambas e canções do outro mundo.
entrevista ao Diário Carioca

Como ser romântico num mundo desses, de amores nada parecidos com o
de Romeu e Julieta, de relacionamentos complicados que se constróem sobre
mentiras e hipocrisias? Noel tem alguns motivos para encarar com os olhos da
incredulidade o mundo à sua volta. Um deles, sua própria casa. Quando se tinha
a impressão de que as coisas voltavam a correr bem por lá, Hélio já se
preparando para ingressar na Escola de Veterinária, Martha cuidando do
externato com a ajuda de Clara, Neca finalmente sossegado, eis que o chalé mais
uma vez estremece.
O próprio Noel guardará numa pasta de papelão os documentos que
ajudarão a contar a história desses novos tempos desinsofridos que o pai vai
enfrentar(1).
1. Estes documentos pertencem hoje aos arquivos dos autores.

São ofícios, portarias, memorandos, relativos às suas atividades como


funcionário da Inspetoria de Abastecimento da Prefeitura do Distrito Federal,
aquele mesmo emprego que o compadre Graça Mello lhe conseguiu depois que
os planos da bicicleta aquática foram a pique.
Durante dois anos - de 1930 a 1932 - estes documentos só tratam de
promoções e elogios ao servidor público Medeiros. Por exemplo, no dia 8 de
outubro de 1932, o diretor interino Annibal Martins Ferreira agradece-lhe "pela
colaboração que lhe prestou durante sua interinidade como diretor-geral, no
desempenho das funções de ajudante, cargo que ocupou com manifesta
competência". Pois bem. Dois dias depois, 10 de outubro, o capitão Luiz Celso
Uchôa Cavalcanti, recém-nomeado diretor-geral titular da mesma Inspetoria,
dispensa Medeiros como ajudante. O que se segue é uma clara divergência entre
os dois. Sobre várias questões administrativas, principalmente a que trata do
reajuste dos preços de produtos alimentícios. O capitão é a favor dos aumentos.
Medeiros, contra. Relatórios de um não deixam nada satisfeito o outro. O ex-
ajudante demonstra não haver necessidade de se onerar ainda mais a população,
já sendo tão altos os lucros de produtores e comerciantes. Uchôa, por algum
motivo, pensa diferente. E resolve afastar Medeiros, colocá-lo longe de tudo que
diga respeito ao tabelamento de preços, deixá-lo na geladeira. Feito isso,
caminho livre, os preços são aumentados. Por mais de um ano o funcionário
antes merecedor de elogios e promoções fica fora de cena. Até que a 12 de
janeiro de 1934, convencido de que a razão estava com ele, o Interventor no
Distrito Federal, Pedro Ernesto Baptista, o reabilita. Medeiros volta às suas
antigas funções. Está tudo documentado na pasta de papelão, a nomeação para a
Inspetoria a 17 de outubro de 1930, os elogios, as promoções, a destituição, as
repreensões, o afastamento e, por fim, o ato de justiça.
Para Neca e todo o mundo no chalé, foram meses de angústia aqueles
passados em oposição ao diretor-geral. Angústia e revolta. Um funcionário
exemplar sendo perseguido por agir certo, por não querer que o bolso do povo se
fizesse mais vazio. Noel guardará mais do que cuidadosamente os documentos.
Como se para lembrar, sempre que preciso, o quanto o pai sofreu sem merecer.
Sim, porque os meses de afastamento do trabalho o aniquilaram mais uma vez.
Ou para lembrar o quão pouco parece valer a honestidade neste mundo de
espertezas, interesses escusos, logros, golpes, mentiras. É pensando nisso que
compõe Onde Está a Honestidade?, crítica social e anti-romantismo em tempo
de samba:
Você tem palacete reluzente,
Tem jóias e criados à vontade.
Sem ter nenhuma herança nem parente,
Só anda de automóvel na cidade...

E o povo jâ pergunta com maldade:


"Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?"

O seu dinheiro nasce de repente,


E embora não se saiba se é verdade,
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade...

Vassoura dos salões da sociedade


Que varre o que encontrar em sua frente,
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...

Manuel Garcia de Medeiros Rosa jamais se reerguerá. Sua obsessiva


honestidade - que o fez lutar tanto, quebrar pedras, afastar-se de casa, sacrificar-
se, quase morrer para pagar uma dívida imaginária - não terá sido, afinal, inútil?
Noel acha que sim. O pai continua sendo castigado pela vida. Perde a força, o
entusiasmo, os sonhos. Abate-se, cai. Desta feita para sempre. Torna-se cada vez
mais apático, vazio, voltado para si mesmo. Se isso, nos últimos dois anos,
abrandou-o, melhorando seu convívio com a mulher e os filhos, por outro lado
fez dele uma ruína. Um homem entregue, deprimido, silencioso e triste.
Noel não é um xenófobo, não chega a ser um nacionalista intransigente,
mas cultiva certa avessia a estrangeiros e estrangeirismos. Aos primeiros já
vimos por quê: são os vilões de sua infância. Já os estrangeirismos simplesmente
não combinam com seu jeito de ser. São chiques de grã-finos e intelectuais
enfatuados, pura moda, mania de exibição. O homem do povo não os conhece.
Ou, se os conhece, não os absorve. Não inteiramente. O Brasil para Noel Rosa -
como para a maioria dos chamados "cariocas da gema" desta época - não está tão
distante, para lá do Atlântico ou entre nós e o Pólo Norte, mas aqui perto, na
cidade do interior, no morro, no bairro, na esquina. Ou mesmo no botequim, na
gafieira, na pensão de mulheres, no carnaval, na roda de jogo, nos lugares enfim
onde todos os brasileiros se igualam. Seu nacionalismo tem esse sentido. De
gostar das "coisas nossas". De preferir o samba ao fox-trot.
Nisso não está só. Ainda outro dia Assis Valente foi a uma festa em Vila
Isabel. Uma reunião literomusical como as que os Boamortes costumam
organizar, compositores, escritores, homens da política, artistas. Assis notou que
alguns convidados, os mais posudos, enxertavam seus diálogos de palavras,
frases inteiras, em inglês ou francês. Em plena Vila Isabel, a Vila verde e
amarela de Orestes Barbosa e Noel Rosa, Almirante e seus tangarás. Assis ficou
impressionado com aquilo: - Good evening... Bon soir...
E criticou o palavreado numa marcha carnavalesca:
Não se fala mais boa-noite, nem bom-dia,
Só se fala "good morning", "good night"...

Embora bem-feita - e ganhando popularidade na voz de Carmem Miranda -


esta marcha, intitulada Good-bye, não terá a força crítica e o apelo do samba que
Noel vai escrever inspirado na mesma mania de exibição(2).
2. Difícil precisar qual dos dois, Good-bye ou Não Tem Tradução, foi feito primeiro, mas é quase certo que tenha sido a marcha de Assis Valente. Em entrevista a Ary Vasconcelos (O
Cruzeiro, 3 de setembro de 1955), Assis recorda que Carmem Miranda cantou Good-bye no segundo Broadway Cocktail, entre 8 e 21 de agosto de 1932. A própria Carmem a gravaria a 29 de novembro,
na Victor, sendo o disco lançado em janeiro de 1933. Não se tem registro de que antes disso já existisse Não Tem Tradução, que só seria gravado a 23 de agosto de 1933 por Francisco Alves, na Odeon.

O cinema falado chegou ao Rio de Janeiro em 1929-Como toda novidade


importada de país mais adiantado, contou com imediata adesão brasileira. Em
1931, já tínhamos o nosso primeiro talkingfilm. Como se recorda, motivador de
Noel na criação de um samba brasileiríssimo, não por acaso intitulado São
Coisas Nossas. Nesses quase três anos, porém, a influência do cinema saiu dos
limites da novidade e da arte para se instalar em praticamente todos os setores da
vida brasileira. Principalmente na moda. As mulheres passam a se vestir, pentear
e pintar conforme gostem de se parecer com Janet Gaynor ou Jean Harlow, Kay
Francis ou Ruth Chatterton, Irene Dunne ou Greta Garbo. Os homens afinam
seus bigodes até ficarem como o de Ronald Colman, treinam o sorriso cínico de
Douglas Fairbanks, espicham as costeletas à maneira de Fredric March.
Simultaneamente aos filmes, uma boa parte deles musicais, a Odeon e a Victor
lançam em seus suplementos discos originais ou com letras em português das
canções de Cavadoras de Ouro, Rua 42 e Belezas em Desfile. Todos se
apaixonam pelas extravagâncias de Busby Berkeley.
Claro, o cinema falado não foi o culpado de toda transformação. Por
exemplo, se agora já se dança mais o fox-trot que o samba, pelo menos em
certos bailes, na década passada muitos ritmos estrangeiros também estiveram
em voga. E o cinema ainda era silencioso. Mas o que realmente a novidade veio
mudar foi o linguajar do brasileiro. Antes, tudo que de inglês o povo falava eram
os termos do futebol (foul, penalty, free kick, team, corner, off-side), resquícios
das origens algo britânicas e muito elitistas do esporte entre nós. Agora, o inglês
está-em todas as falas. Dos jovens e dos velhos, dos jornalistas e dos homens de
teatro, dos escritores e dos sambistas. Até o malandro aderiu aos "hellos" e "bye-
byes" que se incorporaram aos cumprimentos do carioca. Noel é atento a isso. E
o registra num de seus sambas mais perfeitos e duradouros. O espanto pela
influência do cinema falado passará, mas a beleza do samba não: Não Tem
Tradução.
O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação
Dessa gente que sente
Que um barracão
Prende mais que um xadrez.
Lá no morro, se eu fizer uma falseta,
A Risoleta Desiste logo
do francês e do inglês.

A giria que o nosso morro criou


Bem cedo a cidade aceitou e usou.
Mais tarde o malandro deixou de sambar
Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot!

Essa gente hoje em dia


Que tem a mania
Da exibição
Não se lembra que o samba
Não tem tradução
No idioma francês.
Tudo aquilo que o malandro pronuncia,
Com voz macia,
É brasileiro, já passou de português.

Amor, lá no morro, é amor pra chuchu,


As rimas do samba não são "I love you".
E esse negócio de "alô", "alô, boy",
"Alô, Johnny"
Só pode ser conversa de telefone.

Como quase tudo de novo que Noel lança por esta época, Sem Tradução,
depois editado e gravado como Não Tem Tradução, é muito comentado.
Jurandyr Santos, autor das marchas Alô, John e Bon Soir, enfia a carapuça. Acha
que foi pensando nele, apenas nele, que Noel fez seu samba. Publica na imprensa
uma polida carta aberta em que diz: "O seu carinho, Noel, pelas coisas corretas,
dessa vez falhou." E defende o emprego por ele mesmo, Jurandyr, de palavras
estrangeiras: "Eu coligi, apenas, um punhado de expressões usuais, deturpadas,
que todos nós compreendemos o que vêm a ser..." Mais adiante, em tom
lamentoso: "Você, porém, foi impiedoso. Não pôde, sequer, sopitar a revolta do
seu espírito erudito, amigo das expressões castiças puras... E compôs o Sem
Tradução para esmagar o seu pobre amigo..." Jurandyr arremata com votos de
prosperidade e confessada admiração. Mas perde tempo. O samba não foi feito
para ele.
Xenófobo mesmo é Orestes Barbosa, que odeia tudo que vem de fora. À
distância ainda lhe é possível deglutir ou mesmo apreciar coisas estrangeiras, os
poetas franceses, o nacionalismo mexicano, a forma com que os Estados Unidos
"se recusaram a ficar de cócoras diante do túmulo de Byron". Aqui no Brasil,
porém, estrangeiro é estrangeiro, seja francês, mexicano ou americano. Não se
conforma com o desamor brasileiro às suas tradições, com o pouco carinho que
temos por nossa cultura e nossa memória: - O brasileiro pensa que este país
nasceu na última segunda-feira e vai acabar na próxima sexta - esbraveja numa
das mesas do Nice.(3)
3. Samba, segunda edição (páginas 69 e 70). Também foram colhidos neste livro outros pensamentos ligados à xenofobia de Orestes Barbosa.

Todos o ouvem com atenção neste café que lhe serve de tribuna. Um café
que na verdade se chama Casa Nice e que vai entrar para a história como dos
mais importantes pontos de reunião do pessoal do rádio e da música popular.
Mais que o Carlos Gomes, o Belas-Artes, o Papagaio e o Chave de Ouro juntos.
O Nice ocupa, desde sua inauguração a 18 de junho de 1926, o número 174 da
Avenida Rio Branco, bem na esquina de Bittencourt da Silva. Portanto, no
mesmo prédio do Cinema Eldorado. E no mesmo quarteirão do Liceu de Artes e
Ofícios, da Leiteria Nevada, do Cordão do Bola Preta e da redação de O Globo.
Do lado de fora do café, dispõem-se mesas e cadeiras de vime entre as quais
pode-se tropeçar em cocos verdes espalhados pela calçada. No lado de dentro,
dois ambientes. Um deles, o mais elegante, separa-se do outro por divisória de
madeira treliçada. Cadeiras forradas, mesas com toalhas muito limpas, onde são
servidos almoços e jantar es, lanches, queijos importados, bebidas finas. No
segundo ambiente, de mesas de mármore e cadeiras austríacas, fica a turma do
rádio e da música popular. E também uma multiforme comunidade de boêmios,
contraventores, jogadores.
- Você tem certeza de que sabe mesmo o que é um poeta? Se pensa que
somos nós, versejadores pretensamente cultos, se engana. Os verdadeiros poetas
são os homens do povo cujas rimas todos sabem de cor.
O outro não se atreve a contestar.
- Ouça isto... E canta:
A maçã melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde o tal fruto saboroso
E oferece ao homem que o aceita pressuroso.

- O que me diz?
E antes que o outro responda, Orestes dispara:
- Uma porcaria! E é de Bastos Tigre, homem culto. Agora veja o que fez
para a mesma melodia o homem do povo Sinhô...
E torna a cantar:
Dizem que a mulher é parte fraca
Nisto é que eu não posso acreditar
Entre beijos e abraços e carinhos
O homem não tendo é bem capaz de roubar.

Já Noel não se preocupa muito com isso. No máximo, vale-se de suas letras
para descarregar possíveis desagrados.
Quando não gosta de alguém - e de fato não gosta de muita gente - Orestes
Barbosa sequer lhe aceita os elogios:
- Como vai o grande poeta?
- Poeta? Quem disse?
O outro se desarma, já sabendo que vem por aí um terremoto.
- Não sou poeta. Nem eu, nem o Bastos Tigre. Poeta é Sinhô. E também
Ismael Silva, Cartola, Noel Rosa.
A história das letras diferentes que Bastos Tigre e Sinhô escreveram para a
mesma melodia do último, a de Bastos Tigre não fazendo o menor sucesso, a de
Sinhô transformando Gosto Que Me Enrosco num clássico, é uma das favoritas
de Orestes. Para afugentar chatos que o bajulam chamando-o de "grande poeta" e
para deixar bem clara a sua atual - e definitiva - posição diante da poesia. Em
lugar dos versos declamados, ou postos no papel, ou reunidos em livros que
poucos lêem, estão agora as letras para a canção popular. Em vez da glória
literária, dos formais chás das quintas-feiras na casa dos imortais, do sonho
acadêmico que alimentou um dia, ficaram a boêmia, os papos sem fim à mesa do
Nice, a música. Confessadamente, foi muito por influência de Noel Rosa que o
poeta Orestes Barbosa converteu-se, para sempre, no letrista Orestes Barbosa.
Coube ao autor de Não Tem Tradução convencê-lo de que a melhor maneira de
tornar seus versos conhecidos, de levá-los mais fundo à alma das pessoas, é
mesmo enfeitá-los com música.
Orestes será um grande letrista. Dos maiores que o Brasil vai conhecer.
Muito diferente, em estilo, de Noel Rosa. Diferente até dele mesmo, isto é, do
impiedoso e maledicente conversador do Nice. O Orestes das canções é antes de
tudo um romântico. Como ele próprio ainda vai se definir, um "eterno
sentimental", o coração sempre aberto a grandes paixões. Será o cantor dos
amores frustrados, impossíveis, secretos, mas também das flores e dos
passarinhos, das luas e das estrelas, dos perfumes e das pedras da rua. Jamais
resistirá a uma imagem, o palco iluminado, o olhar entardecente, a flora do
coração, o pássaro roxo, a vespa da intriga, o chão de estrelas. Letras de rara
força visual escritas por um poeta maior da canção popular(4).
4. Sobre a força visual das letras de Orestes, Paulo Mendes Campos nos dá em Manchete de 12 de novembro de 1974 (página 50) esta apreciação definitiva: "Visualizar a emoção é marca
certa do poeta forte. As melhores canções de Orestes parecem roteiros cinematográficos, e o conjunto de todas elas é o scriptde uma época do Rio." Para Paulo Mendes Campos, "... sem dúvida nenhuma,
Orestes Barbosa e Noel Rosa são os mais altos poetas da nossa música popular." Manuel Bandeira é outro que fala de Orestes com admiração. Diz ele em Chão de Estrelas (página 144): "Grande poeta da
canção, esse Orestes! Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na França, para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes que diz: 'Tu pisavas os astros
distraída...' Só mesmo num Chão de estrelas era possível achar este verso. De certo Orestes rojava no sublime, e a mulher que o inspirou pisou lhe, acinte ou inadvertidamente, o coração, que se abriu na
queixa imortal. Sei de muito poeta (Onestaldo de Pennafort é um e eu sou outro) que se rala de inveja porque não é o autor daquele verso. E com razão: nunca se endeusou tanto uma mulher como
naquelas cinco palavras."

A admiração que Orestes e Noel têm um pelo outro é tanta que era
inevitável tornarem-se parceiros. A primeira das quatro composições que criam
juntos mal será notada. É um samba, Araruta, que só daqui a sessenta anos vai
virar disco(5).
5. O que terá levado pesquisadores da estatura de Lúcio Rangel e Almirante a concluir que Araruta e Positivismo são o mesmo samba ou, pelo menos, duas letras diferentes para a mesma
música? Em Samba, segunda edição (página 50), Orestes Barbosa já citava os dois como obras distintas. O jornal de modinhas Harmonia, de dezembro de 1932, publicava a letra de Araruta, ficando
claro não só que ela não cabe na música de Positivismo mas também que se trata da primeira criação da dupla Noel-Orestes, já que as outras são de 1933 e 1934. A partir dessas pistas, os autores partiram
no encalço da melodia da Araruta, que acabou lhes sendo ensinada por Armênio Mesquita Veiga, amigo e aluno de violão de Noel, ele próprio compositor (Molambo, Aperto de Mão, Amar Foi Minha
Ruína).

Tu pedes
Mandando
"Faça o favor" a tua boca nunca diz.

Tu cedes
Negando
Com esses olhos que pra mim são dois fuzis.
Sou mole,
Manhoso,
Teus impropérios retribuo com brandura,
Pois água mole
Na pedra dura tanto bate até que fura!

Tu beijas
Mentindo
A tua boca beija e mente sem sentir.

Desejas
Sorrindo
Que o teu perdão humildemente eu vá pedir.

Não peço,
Espero
Ainda ver-te entre lágrimas bem mal.
Meu bem, escuta:
A araruta tem seu dia de mingau!

Também passará em branco outro samba dos dois, Habeas-Corpus, de


letra muito curiosa, as queixas de amor entremeadas de termos jurídicos, Orestes
e Noel convertidos em sambistas togados.
No tribunal da minha consciência,
O teu crime não tem apelação.
Debalde tu alegas inocência,
E não terás minha absolvição.

Os autos do processo da agonia,


Que me causaste em troca ao bem que eu fiz,
Chegaram lá daquela pretoria
Na qual o coração foi o juiz.

Tu tens as agravantes da surpresa


E também as da premeditação
Mas na minh'alma tu não ficas presa
Porque o teu caso é caso de expulsão.

Tu vais ser deportada do meu peito


Porque teu crime encheu-me de pavor.
Talvez o habeas-corpus da saudade
Consinta o teu regresso ao meu amor.
O bonde do samba

"O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa autêntica expressão
artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A poesia espontânea do nosso povo levou a melhor na
luta contra o feitiço do academismo a que os intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos
ingloriamente escravizados. Poetas autênticos, anquilosados no manejo do soneto, depauperados pela
torturante lapidação de decassílabos e alexandrinos sonoros, sentiram em tempo a verdade. E o samba
tomou conta de alguns deles. Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular com verdadeira paixão. E
apresentou sambas e canções do outro mundo. O gosto do público foi se aprimorando. Outros poetas vieram
dizer, em linguagem limpa e bonita, coisas maravilhosas. Mais recentemente, Jorge Faraj, outro que
abandonou os alexandrinos, tirou a prova dos nove com Telefone do Amor. Esse bonito samba-canção,
comovente romance de amor musicado por Benedicto Lacerda, acabou com as últimas dúvidas. É preciso,
porém, acentuar que esses poetas tiveram, também, que se modificar, abandonando uma porção de
preconceitos literários. Influíram sobre o público, mas foram, também, por ele influenciados. Da ação
recíproca dessas duas tendências, resultou a elevação do samba, como expressão de arte, e resultou na
humanização de poetas condenados a estacionar pelo sortilégio do academismo. Não duvido que Bilac, se
fosse vivo, tomasse o bonde do samba..."
Entrevista ao Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.
Noel e Orestes anotarão em seus papéis letras não exatamente iguais para
este mesmo samba. Diferenças pequenas, de uma ou outra palavra, ou
significativas, como acontece nos dois primeiros versos da última quadra. Os de
Noel são mesmo estes:
Tu vais ser deportada do meu peito
Porque teu crime encheu-me de pavor.

Os de Orestes, estes:
No exílio vais pagar a crueldade
Com que desabafaste o teu furor.

Um dia os dois amigos e parceiros se encontram no Nice, Orestes sentado,


contando seus casos, Noel chegando à porta como se a procurar alguém, sem
saber se entra ou se segue em frente. Orestes o chama, puxa uma cadeira, manda
que se sente.
- Noel, tenho aqui uma idéia que me parece muito boa para um samba.
Andei misturando mulher com Augusto Comte: "O amor por princípio, a ordem
por base, o progresso por fim." Positivismo e amor. Não gostaria de musicar? - e
estica para Noel a folha com os versos escritos.
São quatro quadrinhas. Metrificadas como tudo que Orestes faz para ser
musicado (só se afasta da métrica quando se trata de pôr letra em música já
pronta): Positivismo.
A verdade, meu amor, mora num poço.
É Pilatos, lá na Bíblia, quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço
O autor da guilhotina de Paris.

Vai, orgulhosa, querida


Mas aceita esta lição
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração.

O amor vem por princípio, a ordem por base,


O progresso é que deve vir por fim.
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim.

Vai, coração que não vibra,


Com teu juro exorbitante,
Transformar mais outra libra
Em dívida flutuante.
Noel lê, diz que gosta, promete trabalhar em cima. Mas, por algum motivo,
vai esquecer a folha de papel entre seus guardados. Para ele, este é um período
de intensa produção, um samba atrás do outro para poder pagar mais depressa a
dívida pelo Pavão (Francisco Alves é cobrador implacável). Sem falar nos
programas de rádio, nos discos, em diversas atividades ligadas à música. De
janeiro a dezembro de 1933, não descansará quase. O total de sua obra neste
período ficará bem perto da casa dos 40. Uma produtividade que todos admiram:
- Você já reparou como o Noel está compondo? É um atrás do outro, tudo com
qualidade - comenta-se no Nice.
É no mesmo café que Orestes se queixa a Nássara. Noel escreve um samba
atrás do outro, é parceiro de todo o mundo, faz uma segunda parte para este,
modifica uns versos para aquele, compõe toda a letra e toda a música para um
punhado de gente. Mas... e o seu Positivismo? O que terá Noel feito com seus
versos? Perdeu-os? Jogou-os fora? Apossou-se deles?
- Nada disso, Orestes. Apenas falta de tempo - Nássara tenta diminuir a
zanga do amigo.
Mas Orestes vai repetir suas desconfianças em outras ocasiões e para outros
amigos comuns. Noel, inevitavelmente, acaba sabendo. Como de costume, nada
diz, não vai tirar satisfações, não reclama de Orestes a injustiça de achá-lo capaz
de apossar-se de versos alheios. Trata então de colocar música nas quatro
quadrinhas. Ele mesmo a leva para Pixinguinha orquestrar. Decide gravar o
samba na Columbia, do outro lado de Devo Esquecer. Mas prepara para o
parceiro um recado musical. Pede a Pixinguinha que escreva uma longa
passagem de orquestra para depois das quatro quadrinhas, como se fosse para
concluir. Mas, no final do disco, sua voz reaparece de surpresa cantando uma
quinta quadrinha, escrita por ele mesmo e dirigida a Orestes:
A intriga nasce num café pequeno
Que se toma para ver quem vai pagar.
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar!

O que poderá dizer Orestes senão que o sem-queixo é mesmo um gênio e


que ele, Orestes, é que acabou se envenenando no próprio veneno?
Enquanto existir o chalé, Orestes Barbosa será um de seus visitantes mais
assíduos. Desde o episódio de Positivismo - que afinal nem ele nem Noel
levaram muito a sério - estreitará sempre mais sua amizade com o parceiro. E
não medirá palavras para dizer-lhe e aos outros de sua admiração. Fará isso em
suas colunas de jornal, em livro que escreve sobre o samba carioca, nos versos
que entregará a dona Martha e que ela, comovida, guardará num pequenino
caderno de capa marrom:
Felicidade...

É o céu na terra amena,


É o sorriso da pequena,
Muito mais lindo que o céu.

É a poesia nos arpejos de lamento


Que se sente no talento
Das canções que faz Noel.

Felicidade...

É sonhar de olhos abertos


É o oásis dos desertos
Das almas que o sol queimou.

É uma garota elegante e vaporosa


Para quem o Noel Rosa
Quer fazer um bangalô.
Orestes Barbosa
Capítulo 25
PRAZER EM CONHECÊ-LO

Diante de dois copos de cerveja, Arnaldo e Antônio Araújo antevêem uma


noite de bocejos. Não há nada de bom programado, nem namoro, nem serenata,
nem papo de esquina. Uma semana inteira de trabalho na alfaiataria, das oito às
oito cortando e costurando pano, e chega sexta-feira aqui estão os dois, um
olhando para a cara do outro. Ou para os copos de cerveja. O Café Ponto Chie,
nos começos de noite, é sempre desanimado. Dois ou três condutores, um ou
outro motorneiro, fiscais, gente da Light que entre dois cafés pequenos conversa
até a hora de embarcar num dos bondes que partem da estação ao lado.
Boêmios? Amigos da noite e do samba? Os irmãos Araújo sabem que não
podem encontrá-los a esta hora no Ponto Chie.
Mas Noel Rosa chega. Vê-se logo que acaba de acordar, de sair do banho,
de tomar seu "café da manhã". E já são quase nove horas da noite. Noel se
aproxima. Tira do bolso um punhado de papéis. São cartões, impressos, recortes,
folhas soltas que ele vai lendo e saparando.
- Sabem o que tenho aqui? Uma porção de convites para festas. No Centro,
no Grajaú, na Tijuca.
Noel diz que uma das vantagens de se trabalhar no rádio, de se gravar
discos, de se ter o nome conhecido, são justamente estes convites que chegam
não sabe de onde. Gente que nunca o viu, que nem ao menos é amiga de um
amigo, chama-o para um baile familiar, uma festinha de aniversário, um
casamento. Na certa esperando que ele leve o violão.
Arnaldo e Antônio se animam. Ajudam Noel a escolher um dos convites.
Acabam optando por uma festa na Rua Conde de Bonfim, na Tijuca. Um bonde
até a Praça Saenz Pena, outro na direção da Muda, em menos de meia hora
estarão lá.
A casa é grande, dois pavimentos, jardim na frente, varanda do lado, um
salão no qual os convidados são recebidos pela anfitriã, senhora gorda,
simpática, que Noel e os Araújos vêem pela primeira vez. Mas isso não quer
dizer nada. Mal os três chegam, a mulher exclama:
- Noel! Olhem o Noel Rosa! Que bom que você veio, Noel!
A anfitriã tenta assegurar o sucesso da festa mostrando-se íntima do
convidado famoso. Noel pra cá, Noel pra lá, vai apresentando a todo o mundo o
autor de Até Amanhã. Arnaldo e Antônio vão atrás. Há muita gente na festa,
Noel cercado por todos os lados. A mulher puxa-o pela mão. Súbito - mundo
pequeno - está diante de Clara, ninguém menos que Clara. Há quanto tempo não
se viam? Semanas, meses? Talvez só agora Noel se dê conta do quanto foi longa
sua ausência. E Clara continua tão bonita, os mesmos olhos castanhos, redondos,
cheios de meiguice. A dona da casa a chama: - Clara, Clarinha, deixa eu te
apresentar o Noel Rosa.
Antes mesmo que a mulher termine a frase, Noel e os Araújos percebem
que Clara não está só. Um rapaz alto, magro, olhos azuis, cabelos castanho-
claros, até instantes ao lado dela, recuou. É o novo namorado. Na certa, sabendo
o que Noel representa para Clara, prefere ficar de longe, observando
estrategicamente a reação dos dois:
- Noel,. esta é Clarinha...
E sem esperar que Noel diga alguma coisa, Clara estende-lhe a mão:
- Prazer em conhecê-lo.
Noel empalidece. Estranhamente, a inesperada formalidade de Clara o
perturba. Depois de tantos anos, de tanto amor, de tantos projetos, um simples
"prazer em conhecê-lo..." Ele procura manter-se frio. Limita-se a responder:
- O prazer é todo meu.
As apresentações finalmente terminam. A anfitriã provavelmente espera
que Noel brinde os outros convidados com alguns de seus sambas. Mas Arnaldo
e Antônio notam que o amigo já não é o mesmo. Encolhido no canto do salão,
murcho, calado, guardou o sorriso que parecia ter trazido para esta festa de
sexta-feira. Arnaldo pergunta:
- Que que há, Noel?
- Nada. Vamos embora.
Noel sai, os Araújos novamente o seguem. Os três nada falam durante a
viagem de volta até Vila Isabel. Nada é preciso dizer para que fique entendido o
quanto a indiferença de Clarinha magoou Noel. Os três estão agora outra vez
sentados a uma das mesas do Ponto Chie. Noel pede uma cerveja, lápis e papel
ao garçom. Minutos depois, está escrevendo.
- O que é isso? - indaga Antônio.
- Um samba.
Noel cantarola em cima dos versos que acabou de escrever:
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade
Com o ódio a transbordar no coração...

Arnaldo e Antônio Araújo acompanham atentos o gesto quase instintivo de


Noel transformar em música e poesia o que lhe vai por dentro. E o samba, aqui
mesmo, à mesa de um botequim de Vila Isabel, vai nascendo(1): Prazer em
Conhecê-lo.
1. Em entrevista a O Globo, 31 de dezembro de 1932, conta Noel: "Quando saí da festa, fui para um bar do Leblon. Pedi uísque porque não havia bebida nacional desse gênero. Acendi um
cigarro e botei o chapéu de palha na mesa. Bebi uns tragos e comecei a cantar baixinho. Sem dúvida, foi fácil fazer esse samba..." Mas Arnaldo Araújo, em entrevista aos autores, assegura que tudo se
passou mesmo no Café Ponto Chie, entre copos de cerveja e não de uísque.

Quantas vezes nós sorrimos sem vontade


Com o ódio a transbordar no coração
Por um simples dever da sociedade
No momento de uma apresentação
Se eu soubesse que em tal festa te encontrava
Não iria desmanchar o teu prazer
Porque, se lá não fosse, eu não lembrava
Um passado que tanto nos fez sofrer

Lá no canto vi o meu rival antigo,


Ex-amigo, Que aguardava
o escândalo fatal
Fiquei branco, amarelo, furta-cor,
De terror,
Sem achar uma idéia genial.
Ainda lembro que ficamos de repente
Frente a frente,
Naquele instante, mais frios do que gelo
Mas, sorrindo, apertaste minha mão
Dizendo então:
"Tenho muito prazer em conhecê-lo"

Mas eu notei que alguém impaciente,


Descontente,
Ia mais tarde te repreender
Tão ciumento que até nem quis saber
Que mais prazer
Eu teria em não te conhecer.

Noel encontra-se com Custódio Mesquita, a quem conhece de bares e


microfones. Custódio é um jovem e talentoso pianista. Já andou por várias
emissoras de rádio, a Club do Brasil, a Philips, a Mayrink Veiga, acompanhando
cantores, solando e até fazendo arranjos para orquestra. Por enquanto, ainda é
um compositor desconhecido, à espera de um empurrão. Também ele é um
boêmio vocacional, amante das noites e das estrelas. Noel canta-lhe os primeiros
versos do novo samba:
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade...

E pede-lhe que harmonize a segunda parte, dê-lhe alguns retoques, passe a


música para o papel. Em pouco tempo fica pronto Prazer em Conhecê-lo.
Infelizmente, será a única coisa que produzirão juntos, pois Noel e Custódio, se
têm a boêmia e o samba por afinidade, seguirão caminhos muito diferentes. Nos
encontros mais ou menos bissextos que terão no futuro, haverá entre eles,
sempre, um traço amigo, fraterno, carinhoso mesmo. Por exemplo: será Custódio
um dos primeiros a assinalar nas letras de Noel um certo cunho filosófico que
nada tem a ver com tudo o mais. Um dia o pianista vê Noel parado numa esquina
da Rio Branco: - Como vai o Sócrates? Ainda não morreu?
Noel convalesce de uma forte gripe, andou de molho por alguns dias. Sem
se mexer, cigarro no canto da boca, responde:
- Não. Ainda não bebi a cicuta que você me deu.
César Ladeira vai se inspirar nessa história de Sócrates para dar, como faz
com todos os artistas que lhe caberá apresentar em programas de rádio, um
cognome que acabará pegando: o Filósofo do Samba(2).
2. Esta versão sobre a origem do cognome é do próprio Noel em A Voz do Rádio, 15 de novembro de 1936 (página 16).

Noel e Custódio amam compulsivamente os habitantes da madrugada, os


malandros, os mendigos, as vendedoras ambulantes, as mulheres, toda a sorte de
personagens que, aos olhos de jovens de classe média como eles, constituem a
marginália da cidade. Ambos têm para com esses irmãos do sereno gestos de
comovente solidariedade. Assim como Noel é capaz de dar seu último tostão a
um sujeito que jamais viu (e que talvez jamais volte a ver), Custódio não faz por
menos. Certa noite tira do bolso o relógio de ouro, com corrente e tudo, e
entrega-o ao retirante nordestino que o aborda na porta do Assyrius, pedindo-lhe
ajuda para a mulher e os três filhos pequenos. Mário Lago, ao seu lado, adverte-
o: - Custódio, você já pensou se a polícia pega esse pobre-diabo com o relógio?
É cana na certa. Quem vai acreditar que foi um presente?
- É mesmo!
Custódio corre até o telefone mais próximo e liga para todas as delegacias
do Centro:
- Seu comissário, se aparecer por aí um nordestino maltrapilho com mulher
e três filhos do lado, preso por tentar vender um relógio de ouro, saiba que não é
ladrão, não. Fui eu, Custódio Mesquita, quem lhe deu. Qualquer dúvida podem
me procurar.
No mais, são muitas diferenças entre os dois autores de Prazer em Conhecê-
lo. Custódio é extrovertido, alegre, loquaz; Noel vive mais para si mesmo.
Custódio tem a estampa de um galã hollywoodiano, chegará mesmo a trabalhar
no cinema e no teatro, será chamado de "o Tyrone Power brasileiro"; Noel é
feio. Custódio, se gosta dos habitantes da madrugada, também convive muito à
vontade com gente importante, das artes, da política, da alta sociedade; Noel
prefere as almas anônimas. Custódio sabe ser, quando preciso, áspero e até
arrogante. Como no dia em que o porteiro do Teatro Recreio o barra à entrada de
uma revista para a qual escreveu a música: - Mas eu sou o Custódio Mesquita.
- Desculpe-me, senhor, mas tenho que ver seus documentos.
-Documentos? - brada Custódio irritado - Malandros precisam de
documentos. Os cavalheiros usam cartão de visita.
E entra, passos firmes, depois de depositar o cartão na mão do porteiro. Já
Noel não ousaria tanto-, se o porteiro não o reconhecesse, faria meia-volta até a
bilheteria para comprar o ingresso.
Ao se entregarem ambos à vida de dissipação que o Rio parece inspirar a
temperamentos boêmios como os seus, raramente o farão de cara limpa. E
também nisso serão diferentes, Custódio tornando cada vez mais refinada e
dispendiosa a busca das essências que vão embriagar suas noites (do vinho
francês ao uísque e deste, mais para o fim da vida, à cocaína), Noel
permanentemente fiel à cerveja Cascatinha que quaisquer nove tostões compram
no botequim da esquina.
Também em suas aventuras amorosas as diferenças serão marcantes. Pois
se Noel vive se apaixonando por todas as mulheres, louras ou morenas, gordas
ou magras, a impressão que se tem é de que todas as mulheres vivem se
apaixonando por Custódio. Diz Lourdes Câmara em sua coluna semanal de
Syntonia.
"Custódio Mesquita, o pianista mais bonito da praça . O homem de olhar
inocente e dos cabelos ondulados... ladrãozinho! Arsène Lupin com alma de
Schubert, ou vice-versa..."
Um ladrão a roubar corações:
"... perto dele - prossegue Lourdes - não é conveniente deixar nenhuma
noiva esquecida. Pode ser que não se encontre mais na volta."(3)
3. Syntonia, 22 de novembro de 1934.

Corre no Nice a história de dois outros compositores que um dia, sabendo


que Custódio ia excursionar com duas irmãs cantoras, apostaram:
- Cinqüenta mil réis como ele fica com a mais velha.
- Cem como vai preferir a mais nova.
Na volta da excursão, os dois compositores constataram, pasmos, que
haviam ambos perdido a aposta; Custódio conquistara as duas.
Mas, ao tempo de Prazer em Conhecê-lo, ele ainda não é o Tyrone Power
brasileiro, nem pode se dar ao luxo de distribuir relógios de ouro, de impor-se
com um simples cartão de visita, de entregar-se à embriaguez dispendiosa, de
conquistar duas irmãs cantoras ao mesmo tempo. É um compositor
desconhecido. Famoso, por enquanto, é Noel Rosa.
Famoso mas pobre. E é justamente sobre pobreza que ele e Cartola
conversam em noite de muita lua e pouco dinheiro. Bolsos vazios, os dois se
encontram no Largo do Maracanã depois de uma batalha na Dona Zulmira.
Sentam-se num banco perto do chafariz e se põem a falar da penúria comum.
Nem um níquel para tomar uma cervejinha no Café da Uma Hora. E a sede, para
falar a verdade, é muita. Cartola vê Francisco Alves apontar na esquina. Logo o
Francisco Alves, o homem do dinheiro, freguês de samba dos dois.
- Vai lá e mete um vale nele, Cartola.
- Vai você, Noel.
O jogo de empurra se explica: tanto um como outro sabem que tirar
dinheiro de Francisco Alves não é fácil. Há noventa e nove por cento de chance
de terem um malcriado "não" como resposta. Mas, pensando no um por cento
que sobra, Noel sugere:
- Então vamos os dois.
Cartola topa, os dois acenam para Francisco Alves, o cantor se aproxima.
Noel vai direto ao assunto:
- Vê se arranja algum pra gente, Chico. De adiantamento.
- Quem pensam que eu sou? O pai de vocês?
Francisco Alves cospe duas vezes para o lado, solta meia dúzia de
palavrões, faz um breve discurso sobre como o dinheiro anda escasso nestes
tempos difíceis. Não, não pode fazer nada por eles. Mesmo assim, convida-os a
irem até o seu Zé. Só para conversarem. Os três atravessam a rua, entram no
botequim, sentam-se à mesma mesa.
- Cerveja?- pergunta o Martins.
Não, respondem Noel e Cartola com desolado abano de cabeça. Os dois
resolveram cantar alguns velhos sambas de um e de outro, coisas que Francisco
Alves está cansado de conhecer. O cantor fica ouvindo o desfile de belas
composições, Divina Dama, Nuvem Que Passou, Não Faz, Amor, Perdão, Meu
Bem, Mulato Bamba. São bons demais estes dois, parece lembrar-se de repente.
Tão moços e já fizeram tudo isso.
- Vocês me falaram de adiantamento?- pergunta Francisco Alves.
- Sim - diz Noel. - Por conta de samba que a gente vai fazer.
- Muito bem, eu dou 50 mil réis para cada um. Agora mesmo. E vocês
podem matar sua sede. Mas os sambas têm que ser feitos já.
- Agora? Neste momento? - pergunta Cartola meio espantado.
- Agora. E um samba cada um.
Com essa os dois não contavam. De qualquer maneira, a sede, a vontade de
forrar os bolsos vazios, tudo isso faz com que Noel e Cartola concordem em
compor aqui mesmo os dois sambas. Cartola logo completa a primeira parte do
seu, construindo em seguida a melodia da segunda para a qual pede que Noel
escreva, de um fôlego, duas estrofes de oito versos. A primeira parte de Cartola é
assim: (Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?)
Diz qual foi o mal que eu te fiz?
Eu não te farei essa ingratidão
Foi um falso contra a nossa amizade
Não creias, não pode ser verdade

As duas segundas com letra de Noel:


Não creias nestas mentiras
Que roubam nossa alegria
Os invejosos se vingam
Armados de hipocrisia

A mentira, infelizmente,
O mais forte amor destrói
Mas, se eu não tenho remorso,
O meu coração não dói.

Disseste que te enganei


Não sou tão fingido assim
Talvez queiras um pretexto
Pra viver longe de mim

Disseram que eu traía


A nossa grande amizade
É tão criminosa a culpa
Que não pode ser verdade.

O samba ganha o título de Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?. Francisco Alves
gosta e promete gravá-lo. Paga os 50 mil réis a Cartola e avisa que amanhã ou
depois terão de assinar o contrato de cessão de direitos na Odeon. Noel, porém,
abre mão de sua parte. O combinado era cada um fazer um samba, de modo que
este vale como sendo o de Cartola.
- Isso é lá com vocês - diz Francisco Alves.
Com cada compositor o cantor mantém um tipo de relação comercial. Suas
transações com Cartola são diferentes dás que faz, por exemplo, com Ismael
Silva. O compositor da Mangueira cede-lhe os direitos de execução, mas não lhe
dá parceria. Um detalhe muito importante que ficou acertado logo no primeiro
negócio que fecharam, há dois, quase três anos. Já Noel pouco se importa em dar
ou não parceria. Nem faz questão de ver seu nome no selo do disco.
- Muito bem, Noel. Vamos agora ao seu samba.
Em quem ou em que se inspirará ele para criar, em troca de um modesto
adiantamento de 50 mil réis, um novo samba? Nas dores de amor? Em Clara?
Em Julinha? Aparentemente é para a mulher amada que Noel canta os versos de
Estamos Esperando, o samba que vai compondo, música e letra, à mesa do
botequim:
Estamos esperando,
Vem logo escutar,
O samba que fizemos pra te dar.
A rua adormeceu
E nós vamos cantar
Aquilo que é só teu
E que nos faz penar

Da tua voz tirei a melodia


E a harmonia eu fiz com teu olhar.
Já estava perdendo a paciência
Quando roubei a cadência
Do teu modo de guiar
(Chega à janela...)

E este samba que fiz de parceria,


Depois de feito não é dele nem é meu.
Escuta o violão que está gemendo,
Suas cordas vão dizendo
Que este samba é só teu
(Até amanhã...)

Para a mulher amada? Aparentemente, apenas. Na verdade, obra-prima de


sutileza e duplo sentido, o samba é dirigido ao próprio Francisco Alves. E relata,
com melodia simples, mas bonita (e em versos feitos às pressas, mas exatos), o
episódio que os três, Noel, Cartola e Francisco Alves, acabam de viver aqui. Por
trás de palavras fingidamente inocentes ("O samba que fizemos pra te dar..." ou
"aquilo que é só teu e que nos faz penar..."), logo na primeira parte Noel camufla
suas queixas. A primeira das duas segundas partes não é tão evidente, mas ainda
assim tem Francisco Alves como alvo: a melodia tirada da voz que Noel tanto
admira, a harmonia feita do olhar sagaz do cantor e até a cadência roubada do
seu modo de guiar(4).
4. Na gravação original de Francisco Alves e Mário Reis, este canta "do seu modo de pisar..." em vez de "guiar". Mas na partitura original lá está a clara alusão ao bom motorista que Chico
gabava-se de ser.

Já a outra segunda parte é direta e cortante como Noel sabe ser quando
quer: o samba feito de parceria que acaba não sendo seu nem de Cartola, o
violão a gemer a mágoa de saber que Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz? será,
mesmo, todo de Francisco Alves(5).
5. O samba será assinado apenas por Cartola, mas os direitos autorais pertencerão integralmente a Francisco Alves.
Pelo presente declaro que cedo todos os meus direitos sobre a letra de minha autoria denominada "UMA COISA FICOU",( letra esta musicada por Hervé Cordovil,) ao Sr. Enéas Martins
Barros, que poderá fazer com a mesma o uso que mais lhe convier,
Em tempo:- o titulo foi alterado para "Uma COISA DEIXEI"
Cessão de direitos de Uma Coisa Deixei.

Por último, os dois breques. Um deles, "Chega à janela...", é citação um


tanto velada ao seresteiro que Francisco Alves jamais deixou de ser desde os
tempos de Malandrinha ("A lira do cantor em serenata reclama na janela a sua
amante..."), e o outro, "Até amanhã...", remissão clara ao samba que Noel não
deixou Francisco Alves gravar, à tumultuada viagem ao Sul, àquelas horas
esquecidas nos braços da moça em frente, um samba afinal que lembra um
episódio que quase leva à loucura o velho Chico.
Mas Francisco Alves não é astuto o bastante para perceber nada disso. Nem
para atinar com outra diabrura que Noel lhe prepara em forma de música e letra,
já nos últimos dias de dezembro de 1932. Tanto Francisco Alves como Mário
Reis acreditam que de todas as composições que Noel lhes entregou para o
próximo carnaval, entre elas algumas que não assinou (Fui Louco, Primeiro
Amor, É Peso, Rir), nenhuma tem mais possibilidade de sucesso do que Fita
Amarela. Um samba feito nos moldes de muitos outros "testamentos"
comumente encontráveis na música popular, de autores conhecidos, menos
conhecidos, anônimos. A originalidade de Noel repousa, praticamente, nas
quadrinhas da segunda parte:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.

Se existe alma,
Se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão

Não quero flores,


Nem coroa de espinho,
Só quero choro de flauta,
Violão e cavaquinho

Além destas, da gravação original, mais três:


Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer
Não tenho herdeiros,
Não possuo um só vintém.
Eu vivi devendo a todos,
Mas não paguei nada a ninguém

Meus inimigos,
Que hoje falam mal de mim,
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim

Quadrinhas muitas vezes improvisadas em bares e programas de rádio, uma


ou outra fadada a permanecer esquecida.
Quero que o sol
Não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma
Não morrer de insolação

A outra diabrura que Noel prepara para Francisco Alves em forma de


música e letra está justamente no outro lado de Fita Amarela, isto é, na marcha
que Chico e Mário Reis encomendam a ele para completarem o disco na Odeon.
Noel continua pendurado. Quanto mais dinheiro dá a Francisco Alves, mais
pesadas lhe parecem as prestações do Pavão. Noites como aquela no botequim
do Maracanã são raras. Chico não é de dar adiantamentos. Nem mesmo de 50
mil réis. Pois se nem cafezinho ele paga! O pessoal do Nice está cada vez mais
escaldado em matéria de Francisco Alves. Ainda outro dia, no meio de uma roda
em que todos tomavam café, o cantor, lá pelas tantas, explodiu: - Como é,
ninguém vai se levantar? Alguém perguntou por quê.
- Está na hora do meu programa na Rádio Club.
- E o que que tem isso?
- Se ninguém se levanta antes de mim, vou ter de pagar o café.
Noel mesmo tem testemunhado inúmeros desses gestos de sovinice de
Francisco Alves. Mais do que testemunha, pode ser a própria vítima. Como
aconteceu durante a série de espetáculos que ele, Chico e Vicente Celestino
realizaram, de 12 a 18 de setembro, no CineTeatro Modelo, no Riachuelo. Numa
das noites, Noel encontrou-se no caminho com os Araújos e convidou-os para
irem juntos. Poderiam assistir ao show e logo em seguida ao filme, a comédia A
Guarda Secreta (SecretSix), com Wallace Beery. Arnaldo e Antônio gostaram da
idéia. Os três tomaram um bonde até o Maracanã e outro pela 24 de Maio. Na
entrada do cinema, Noel informou ao porteiro que aqueles eram dois amigos,
seus convidados.
- Pois não, podem entrar.
Naquele exato instante passava por ali Francisco Alves.
- Nada disso! - protestou. - Onde eu canto ninguém entra de graça.
Noel, diante do espanto dos Araújos, insistiu :
- Mas eles são meus convidados.
- Não importa!
Ele e Chico já estavam no meio de uma discussão incendida quando
Vicente Celestino resolveu intervir. Polidamente, mas com firmeza, virou-se
para Francisco Alves e ponderou:
- Ora, Chico, o que são duas entradas de cinema?-e voltando-se para o outro
lado; - Teremos muito prazer em cantar para os seus amigos, Noel.
Só assim Antônio e Arnaldo entraram sem pagar.
Tão apegado ao dinheiro e ao mesmo tempo tão exigente com os que
trabalham para ele. Como se diz no Nice, em matéria de pão-durismo o Chico é
caso de polícia. Noel taz a marcha Mas Como... Outra Vez? pensando na
avareza do cantor. Leva sua estrepolia às últimas conseqüências. A música do
estribilho é nitidamente calcada no Liberstraum n? 3, de Franz Liszt. Chico não
se diz cultor dos clássicos? Então. Só que desta vez, em lugar dos "clássicos da
opereta" como Victor Herbert, Franz Lehár, Jerome Kern, Rudolf Friml, cantará
um clássico de verdade: Liszt. O complemento da melodia, ao contrário da frase
inicial, tem bastante originalidade. E a letra fala por si mesma, Francisco Alves
de novo se castigando sem saber:
Mas como...?
Outra vez?
Toma cuidado...
Se a moda pega,
Estou bem certo:
Acabas como Judas no deserto.

Quando tu compras jornal é fiado,


Dando a desculpa que não tens trocado.
Os pobres ficam com dor de cabeça
Por ouvir: "Deus te favoreça!"

Lembrei agora em hora propícia


Que o teu caso pertence à polícia.
Cabe esta espécie de caso anormal
À Polícia Especial!

Não satisfeito, Noel produz duas outras quadras que no entanto não serão
gravadas. Terá Chico percebido o seu sentido?
O meu dinheiro é macho e não cresce
Só o teu cresce, mas não aparece
Teu grande medo lá no botequim
É pagar um café pra mim!

Sempre a fazer teus castelos de areia


Sujas teus pés no sapato sem meia
Não tens chapéu nem gravata hoje em dia
Por medida de economia!

Se Fita Amarela será um grande sucesso, não deixará também de causar


contratempos a Noel. Pequenos, é verdade, mas ainda assim o bastante para
incomodá-lo. Desejos para serem cumpridos depois da morte, testamentos
poéticos, coisas na base de "quando eu morrer" sempre foram muito comuns no
Brasil. Já dizia no século passado o poeta Laurindo Rabelo:
Quando eu morrer, não chorem minha morte
Entreguem meu corpo à sepultura
Pobre, sem pompa, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

E depois dele José de Alencar:


Quando eu morrer, não chorem minha morte
Esqueçam meu cadáver sobre o leito,
Mas levem-na, bem triste, as tranças soltas,
E deixem-na chorar sobre o meu peito.

Os sambistas, principalmente os dos morros, sempre foram muito ligados


ao tema, simulando diante da morte mais coragem do que realmente têm,
fingindo-se superiores a ela, salpicando-a de humor como se isso, afinal, pudesse
mantê-la longe. São inúmeros os exemplos de estribilhos criados a partir destes
testamentos poéticos, em torno dos quais os sambistas improvisam interminável
versalhada. Estribilhos assim:
Quando eu morrer
Me enterrem lá no terreiro
Deixando o braço de fora
Pra tocar o meu pandeiro

Ou assim:
Quando eu morrer
Não digam nada
Basta muito beber
Por minha vida danada

Tema muito explorado, seja por poetas conhecidos, seja por sambistas
anônimos, é um mote, pode-se dizer, de domínio público. No entanto vale a Noel
uma incômoda acusação de plágio. O acusador, Donga, lançou recentemente um
samba seu e do maestro Aldo Taranto que diz:
Quando você morrer
Não pense que eu vou chorar
Vou procurar quem me dê
O que você não me dá

Desde que Fita Amarela começou a ser ouvido nas emissoras de rádio, na
gravação de Francisco Alves e Mário Reis, Donga faz campanha contra Noel.
Onde quer que chegue, nos bares, nas esquinas, nas rodas de música, nunca
deixa de tocar no assunto:
- Vocês conhecem o samba que o Noel Rosa copiou do meu?
E canta Fita Amarela. A campanha só vai acabar no dia em que Almirante,
tomando as dores de seu companheiro de Bando de Tangarás, contar que ele
mesmo ensinou a Noel a quadrinha que lhe deu a idéia para seu samba. Os dois
se encontraram no Boulevard e Almirante cantou:
Quando eu morrer
Não quero choro nem nada
Eu quero ouvir um samba
Ao romper da madrugada

- De quem é? - perguntou Noel.


-Não sei. Aprendi com dois improvisadores, numa tendinha de São João de
Meriti.
Noel aproveitou o tema, não só poético, mas também melódico, para fazer
seu estribilho. Para complicar a história, enquanto Donga garante que tudo
começou com o seu samba e de Aldo Taranto - e Almirante insiste na história
dos improvisadores - a turma do Estácio, quando sabe dos tais versos aprendidos
pelo líder dos tangarás, protesta:
- Improvisadores de São João do Meriti? Qual o quê?! O Mano Rubem,
daqui do Estácio, já cantava eles em 1920...

Está bem, vou acabar tudo com ele. Diante de novas promessas de Noel, de
que desta vez não desaparecerá mais, Clara diz que vai romper com o novo
namorado. Noel sabe que realmente será assim. Basta reaparecer, sempre com o
jeito de quem está arrependido e disposto a "entrar no sério", para que Clara
troque tudo pela esperança que ele traz entre sorrisos. O namorado com quem foi
à festa na Tijuca chama-se Mário, boa família, direito, bem-intencionado,
concluindo já seu curso de veterinária e quase em condições de pedi-la em
casamento. Aliás, é mesmo o que planeja. Os zelosos irmãos dela fazem gosto.
Muito mais do que vê-la perdendo tempo com um cantor de rádio, boêmio
incurável. A festa na Tijuca, reacendendo em Noel a vontade de voltar para
Clara, vai frustrar para sempre os planos do bom moço Mário.
- ... Vou acabar tudo com ele.
Clara cumprirá a promessa. Noel logo esquecerá a sua.
Custódio Mesquita
Capítulo 26

EM BOA COMPANHIA

E começou a nossa parceria,


Eu fui por ele e ele foi por mim
Amor de Parceria

Cigarro no canto da boca, Noel Rosa conversa com Ismael Silva numa das
esquinas da Galeria Cruzeiro, acompanhando à distância o que se passa em
frente, no interior do Nice. Nenhum dos dois se inclui entre os freqüentadores
assíduos do café. Raramente se sentam a uma das mesas, nunca participam
dessas intermináveis conversações que se arrastam pela tarde inteira e entram
noite adentro. Mesmo que quem esteja com a palavra seja Orestes Barbosa. Noel
e Ismael só vão ao Nice a trabalho, para arrancar um vale de Francisco Alves,
marcar com este ou outro cantor o horário de uma gravação, combinar com um
diretor de broadcast um ou dois programas em sua estação de rádio.
Noel, principalmente, é meio oblíquo em relação ao Nice. Passa por ali de
raspão, rápido, diz e ouve o essencial e se vai. Isso quando não fica mesmo de
longe, do outro lado da Avenida Rio Branco, balançando a cabeça de um lado
para o outro como se a procurar alguém. Esta esquina da Galeria Cruzeiro é o
mais próximo que Noel e Ismael constumam ficar do Nice. Conversando sobre
samba, jogo, boêmia e malandragem. Alguém chega por trás e bate no ombro de
Noel.
- Noel, Noel Rosa! Que bom você estar aqui! Andava mesmo à sua procura.
O sujeito tira do bolso algumas folhas amassadas de papel. Diz que acabou
de fazer um samba, coisa muito boa, música e letra caprichadas, de uma
qualidade que nenhum Francisco Alves, nenhuma Carmem Miranda terá
coragem de recusar. Um samba quase pronto, precisando apenas de alguns
retoques, uma vírgula aqui, um acentozinho ali, no máximo a correção de um ou
dois versos.
- Será que você me dava uma ajuda, Noel?
Noel pede-lhe que cante o samba. Ele e Ismael ficam ouvindo, calados,
atentos. Noel puxa o cotoco de lápis e nas mesmas folhas amarrotadas vai
fazendo emendas. Sugere, também, modificações na linha melódica, a primeira
parte ficando assim, a segunda assim, a letra mudando aqui, ganhando mais dois
versos ali, cortando-se três mais adiante. Pronto, Noel canta para o "autor" do
samba o que resultou de seus retoques. O homem e Ismael Silva ficam
assombrados. É um novo samba, infinitamente superior à pedra bruta original.
Uma beleza.
- Obrigado, Noel. Era isso mesmo que estava faltando.
E o sujeito se vai, folhas amarrotadas no bolso, melodia na cabeça. Ismael,
ainda impressionado, diz a Noel que o samba realmente ficou muito bom, a letra
é inspiradíssima, o Chico haveria de gostar.
- Você nem tirou cópia.
- Deixa pra lá.
- E o camarada, quem é?
- Não sei. Nunca o vi antes.
Noel Rosa tem sido, nestes três, quatro primeiros anos de carreira, um
constante experimentador de parceiros. Jamais recusará proposta para um
trabalho a dois, seja de um grande amigo, seja de um desconhecido que o aborde
na Galeria Cruzeiro ou num botequim qualquer. Muitas vezes - e por razões
várias - a proposta parte dele mesmo. Como acontece com os chamados
"compositores de morro", dos quais sempre se aproxima com a humildade de um
consciente e aplicado discípulo (e a lição desses mestres tem enriquecido,
melódica e harmonicamente, a sua obra). Ou como acontece quando ele se
entusiasma muito por uma melodia e pede ao seu autor permissão para fazer a
letra. Do que De Qualquer Maneira, de Ary Barroso, ainda é o melhor exemplo.
Mas, na maioria das vezes, são os outros que o procuram. Nomes consagrados
ou meros principiantes.
O número de seus parceiros em vida alcançará o total de 56(1).
1. Número baseado em levantamento feito pelos autores e publicado em detalhes no final do volume. Embora seja o mais completo realizado até aqui, nada impede que outras composições,
outros parceiros, venham a ser redescobertos após a publicação deste livro. O fato de Noel não assinar grande parte do que fazia torna quase impossível um inventário completo de sua obra. A essas 56
citadas no texto, contudo, devem se somar desde já pelo menos três parcerias póstumas, perfazendo o total de 59.

Nenhum outro compositor popular terá tantos colaboradores em tão pouco


tempo. E de estilos, talentos, personalidades e importâncias tão diversas. Esse
constante emparceiramento - um pouco por desprendimento, ele muitas vezes
não se importando em assinar ou não o que faz, mas um pouco também pela
vontade de abrir caminhos, de trocar informações e experiências com outros
compositores, outros letristas - acabará criando, daqui a vinte, trinta anos,
algumas discussões em torno dos méritos da obra de Noel Rosa: a razão de seu
sucesso estará na qualidade dos parceiros ou estes, pelo contrário, é que devem a
Noel o melhor do que fazem? Discussões que, ocupando o tempo precioso dos
estudiosos da música popular, chegarão a pôr em dúvida sua competência como
criador de melodias, tentando defini-lo como um excepcional letrista a vestir
com seus versos as melodias de outros. E que irão mais além, cometendo a
injustiça de acusá-lo de "escondedor de parceiros", quando na verdade é ele que
freqüentemente se oculta. Mas essas são discussões que daqui a vinte, trinta
anos, quando Noel já não estará aqui para se inteirar delas(2).
2. Essas discussões serão estudadas mais aprofundadamente no Capítulo 46.

Por ora ele se limita a multiplicar parceiros, não se negando a somar


talentos com nenhum deles. Muitos já são consagrados, estão destinados à
imortalidade. Como Ary Barroso, Lamartine Babo, Eduardo Souto. Outros
começarão a se projetar a partir de sua parceria com Noel (não necessariamente
por causa dela, mas a partir dela). Como Custódio Mesquita, um quase
desconhecido até aquele empurrãozinho de Prazer em Conhecê-lo. Outros mais
estão condenados a maior ou menor esquecimento, só fazendo parte da história
na medida em que tiveram a oportunidade de fazer música com Noel Rosa.
René Bittencourt, por exemplo, morrerá jurando nunca ter feito música com
Noel. Jura, aliás, que outros parceiros ingratos também cometerão, mesmo
quando todo o mundo souber que não é verdade. Carioca de Paquetá, doze dias
mais novo que Noel, inteligente, vivo, cavador, René já animou espetáculos em
circo, empresariou artista de teatro, foi redator de jornal. Até encontrar-se com
Noel - com quem, aliás, tem entrado em muita farra, entre elas as alegres
peregrinações à Rua Moju - nada fez em matéria de música popular. Isto é,
compôs duas ou três coisinhas das quais ninguém tomou conhecimento. Uma
delas é apenas um coro de seis versos curtos: (Felicidade)
Felicidade! Felicidade!
Minha amizade
Foi-se embora com você.
Se ela vier
E te trouxer,
Que bom, felicidade, que vai ser!

Para o qual Noel faz três segundas partes. Duas ele próprio gravará na
Columbia, a voz não nos seus melhores dias (chega a engolir uma palavra), mas
com interpretação triste como o samba pede:
Trago no peito
O sinal duma saudade
Cicatriz de uma amizade
Que tão cedo vi morrer

Eu fico triste
Quando vejo alguém contente
Tenho inveja desta gente
Que não sabe o que é sofrer

O meu destino
Foi traçado no baralho
Não fui feito pra trabalho
Eu nasci pra batucar

Eis o motivo
Que do meu viver agora
A alegria foi-se embora
Pra tristeza vir morar

A terceira segunda parte - talvez melhor que as gravadas - só chegará ao


disco daqui a vinte anos, Noel já morto, Francisco Alves tornando-se amigo de
René e decidindo reviver Felicidade(3): 3. Francisco Alves gravaria o samba em 1952, meses antes de morrer. O nome de Noel não sairia no
selo do disco. Por essa época, o cantor estava muito ligado a René Bittencourt, com quem faria Canção da Criança e Brasil de Amanhã, gravadas por ele próprio com o coro das meninas da Casa de
Lázaro (esse mesmo coro interpretaria Canção da Criança à beira do túmulo do cantor durante seu sepultamento). Três anos depois, René ameaçaria processar a gravadora Continental por omitir seu
nome no selo do disco em que relançava Felicidade na versão original de Noel. Graças a essa ameaça, ele conseguiria com que a Continental gravasse muitas de suas composições então encalhadas.

Felicidade
Não está sempre ao nosso alcance
É o tema de um romance
Onde os corações são dois

Quando começa
A alegria nos domina
Com a tristeza ela termina
E a saudade vem depois

Uma tarde Mário Reis aparece de surpresa no chalé e encontra Noel


vencido por um daqueles sonos dos quais é quase impossível despertá-lo. Mas o
cantor tem bons motivos para querê-lo de pé.
- Acorda, Noel! Precisamos conversar.
Depois de muitas sacudidelas e gritos ao ouvido, Noel, meio entorpecido, se
senta na beira da cama. Mário conta que Walfrido Silva lhe deu para gravar um
refrão fortíssimo, música, letra, ritmo, tudo de primeira. Canta: (Vai Haver
Barulho No Chateau)
Vai haver barulho no château
Porque minha morena falsa me enganou
Se eu ficar detido,
Por favor, vá me soltar,
Tenho o coração ferido,
Quero me desabafar.

Agora precisa da segunda parte. E rápido, pois pretende gravar o samba no


outro lado do disco em que Francisco Alves lançará Divina Dama, de Cartola.
Noel boceja, espreguiça, depois pega o lápis na mesinha de cabeceira. Mário
estende-lhe uma folha de papel.
Walfrido Silva. Será que exageram aqueles que dizem que este sambista
simpático e sorridente já nasceu batucando? Seis anos mais velho que Noel,
quando este entrou para o São Bento ele já tinha três ou quatro anos de estudos
com Carlos Eckard. De quê? De bateria, evidentemente. É hoje um dos maiores -
se não o maior - bateristas brasileiros. Com aquelas duas baquetas na mão,
Walfrido é capaz de tudo. Pixinguinha não dispensa seu concurso nas gravações
dos Diabos do Céu. Também compõe. E bem. Com seu amigo Gadé há de
produzir uma série de sambas e sambas-choros extraordinários. No entanto, até o
refrão de Vai Haver Barulho no Chato, pode-se dizer que ainda não aconteceu.
Noel rabisca alguma coisa na folha de papel, resmunga quase a melodia
para que Mário a guarde. Completa assim, sonolento, o novo samba:
Quase sempre eu evito
Bate-boca em nosso lar
Pois não quero ir pro distrito
Por questão particular...

Desta vez é impossível


Tenho que desacatar,
Parece uma coisa incrível
Não ter quem queira me soltar.

Depois disso, Noel vira-se para o lado e volta a dormir.


Em outra ocasião acontece o contrário, Mário sendo acordado tarde da noite
por um Noel entusiasmado com novo samba. Dele e de André Filho. O cantor
recebe-o com a elegância costumeira.
- Problemas, Noel?
-Não, não há problema algum. Apenas o samba.
- Eu gostaria que você o gravasse. Quer ouvir?
- Nem preciso ouvir, Noel. Se é seu, eu gravo.
Antônio André de Sá Filho chegou a estudar música erudita com o maestro
Pascoale Gambardella. Toca piano, violino, violão, bandolim, banjo, percussão,
e desde 1929 se dedica à canção popular. Ainda fará muita música boa,
enriquecendo com ela os repertórios de Mário Reis, Carmem Miranda e vários
outros. Mas será na voz de Aurora Miranda que alcançará a celebridade, sua
Cidade Maravilhosa elevando-se às alturas de verdadeiro hino do Rio de Janeiro.
Mas é anterior a esta marcha imperecível o samba que Noel leva para Mário
Reis nesta noite. Um samba intitulado Filosofia, repleto de pensamentos tão
seus. Observe-se que Noel começa queixoso, infeliz, autopiedoso quase, para
logo mudar, adquirir força, passar da defesa ao ataque, aprumar-se. A simulação,
o desprezo pela sociedade que é sua inimiga, o orgulho de ser pobre mas livre, a
indiferença ao dinheiro são a sua "filosofia". Na letra e na vida. O samba não
fará sucesso, mas será para sempre um dos favoritos de Mário Reis:
O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome.
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.

Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim,
Vou fingindo que sou rico,
Pra ninguém zombar de mim.

Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga.
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
Muito embora vagabundo.

Quanto a você
Da aristocracia,
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria,
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hiprocrisia.

Francisco de Queiroz Mattoso. Três anos mais novo que Noel, poeta,
pianista. Mais pianista que poeta, virtuoso executante que é de valsas de
Nazareth, Souto e Tupynambá. No entanto - fato curioso - suas atuações na
música popular se concentrarão sempre mais nas letras do que nas melodias. Um
dia será o autor, com Lamartine Babo, de um dos clássicos da música romântica
brasileira: Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda. Por enquanto, isto é, na época
em que Noel o conhece, é apenas um dos muitos anônimos que rondam os
corredores das emissoras de rádio.
Noel e Mattoso - apresentados um ao outro pelo Dr. Cid Prado, de Vila
Isabel - farão juntos dois sambas. Num deles, Esquina Da Vida, partirão de
versos de Noel para criarem algo muito bonito que Mário Reis - mais uma vez
Mário - gravará acompanhado pelo piano de Nonô:
É na esquina da vida
Que assisto à descida
De quem subiu

Faço o confronto
Entre o malandro pronto
E o otário
Que nasceu pra milionário

E na esquina da vida
Observo o valor
Que o homem dá à mulher e ao amor
E é por isso que ela
Em qualquer situação
Zomba da gente, sempre cheia de razão

É na esquina da vida
Que espero ver você
Estendendo a mão
E implorando
Já desiludida
O meu perdão
Para eu dizer que não

O outro samba, que permanecerá inédito por muito tempo, teria sido
inspirado em Julinha. Será conhecido indistintamente por dois títulos, Vai Para
Casa Depressa e Cara ou Coroa.
Vai para casa depressa
Vai prevenir teu senhor
Que eu vou cumprir a promessa
Que fiz de possuir teu amor.

Não sou malandro covarde


Volta depressa pro teu barracão
Antes que seja bem tarde
Para salvar a tua reputação.

Quando a mulher desequilibra,


Para dois malandros de fibra
Só há uma solução:
Para que brigar à toa?
Basta tirar cara ou coroa,
Com um níquel de tostão.

Se não bastar tirar a sorte,


Se o amor falar mais forte
Sou o dono da questão
E ao teu antigo dono
Tens que dar o abandono
Dando a mim o coração.

Francisco de Queiroz Mattoso. Como Noel, morrerá muito jovem, aos 28


anos, sem realizar tudo que seu talento promete, sem deixar mais do que
algumas poucas canções de amor nascidas de seu temperamento romântico, uma
das quais Francisco Alves transformará em seu prefixo:
Na carícia de um beijo
Que ficou no desejo,
Boa-noite, meu grande amor

Tão anônimos hoje quanto Francisco Mattoso, mas talhados para


continuarem assim, pelo menos no que toca à música, são Gilberto Martins,
Alfredo Lopes Quintas e Adalto Costa, todos parceiros de Noel em peças de
maior ou menor qualidade.
Gilberto Martins Amado descende dos Amados, de Pernambuco, família
ilustre com a qual ele brigou tão seriamente que foi ao registro civil fazer com
que lhe tirassem o último nome. Como Gilberto Martins torna-se conhecido no
rádio. Indivíduo nervoso, dado a cacoetes. Um deles, desagradabilíssimo,
consiste em tirar uma secreção do quisto que carrega no lóbulo da orelha e levar
a mão ao nariz para cheirá-la. Mas é muito inteligente. De vez em quando
compõe. Contudo, nada do que faz será lembrado daqui a alguns anos. Tirando,
é claro, Devo Esquecer, comovido samba que escreve com Noel e que este
gravará em dupla com Leo Villar, tendo ao fundo inspirada orquestração de
Pixinguinha.
Sim, devo esquecer
Este amor que me faz reviver
Se é maldade, perdoa, mulher
Mas o destino assim quer
Vou procurar na orgia
Toda a minha alegria
Que me foste roubar

Eu vou para longe de ti


Para nunca mais ver
Teu olhar, teu sorrir
Em liberdade hoje vivo a pensar
Não posso mais te amar

Porém, se um dia sentir


Que nem longe de ti
Poderei esquecer
Eu voltarei, eu te juro, podes crer
Para contigo viver

Alfredinho também pertence a família tradicional, os Lopes Quintas (um


deles, Domingos, rico proprietário de terras do século passado, é nome de rua no
Jardim Botânico). Mas seu negócio mesmo é samba. Já morou na Theodoro da
Silva, mas por tão pouco que nem se pode considerar membro, ainda que
longínquo, da "grande família" que é Vila Isabel. Primo, de verdade, é de
Rubens Soares, um campeão de boxe que ainda vai se tornar bom compositor,
parceiro certo por linhas tortas e um quase desafeto de Noel. Mas isso daqui a
algum tempo.
Alfredinho aproxima-se musicalmente de Noel Rosa aí por 1932, 1933. A
primeira tentativa de se fazerem parceiros é praticamente um esboço, Que
Orgulho é este, e não será gravada.
Que orgulho é este?
Você já nem se lembra mais
Já esqueceu o meu nome
Eu sou aquele que matou a sua fome

Nunca vi coisa tão certa


O orgulho também tem seu fim
Quando a sua fome aperta
Você vem procurar por mim

A idéia vai ser retrabalhada, inclusive com o aproveitamento de alguns


versos. O resultado também ficará inédito em disco, mas pelo menos será obra
acabada, transferida para a pauta sob o título de Saber Amar. Noel é fiel a
alguns de seus temas, persistentes motes que jamais o abandonarão. Não só as
mentiras de mulher, mas também aqueles que falam de dinheiro com sotaque.
Como os seus prestamistas.
Amar
Saber amar sem enganar
Quem quero amar não me quer
Para que tanta amizade
Se o amor de falsidade
Vem da parte da mulher

A mulher tem a mania


De lesar a humanidade
Tem o dom da hipocrisia
E ama sem ter vontade
Demonstrei com brevidade
Que duvide quem quiser

O amor de falsidade
Vem da parte da mulher
Nunca vi coisa tão certa
O orgulho tem seu fim
Quando a tua fome aperta
Tu vens procurar por mim

Mesmo em posição de ataque


Eu te ouço prazenteiro
Mas tens muito mau sotaque
Quando falas em dinheiro

Mas o que de melhor Alfredinho e Noel criam juntos tem a colaboração de


Romualdo Peixoto, o Nonô, aquele mesmo bom companheiro de viagem nas
andanças pelo Sul. Trata-se do melódico samba Sei Que Vou Perder, que sairá
em disco sem o nome de Noel e aparecerá na partitura com o de Francisco
Alves. Qual terá sido a participação de Chico? Talvez apenas a da estupenda
interpretação que ficará gravada na Odeon, o piano de Nonô sendo toda a
"orquestra" que o acompanha.
Sei que vou perder
Um bem que era só meu,
Que não soube sofrer
Porque se arrependeu.

Depois que me viu


Perdido de amor
Sem pena me traiu
Eu que fiquei com a dor

O capricho da mulher
Faz o homem padecer
É veneno quando quer
Que maltrata e faz morrer

O amor mais verdadeiro


A mulher despreza à toa...
Só não despreza o primeiro,
Mas quando pode magoa

Como aquele desconhecido que deu um tapinha nas costas de Noel na


esquina da Galeria Cruzeiro, desaparecendo em seguida por entre a multidão
ante os olhos de assombro de Ismael Silva, Adalto Costa é outro que não deixará
vestígios de sua passagem pela música popular. Ou melhor, vestígios tão
deléveis que seu nome - assim mesmo, escrito com l em vez de u e perderá
timidamente entre tantos mais. Quem é Adalto Costa?, se perguntará daqui a
alguns anos. No entanto, com Noel ele assina uma marcha, Fiquei Sozinha, cuja
melodia dolente, de notas mais longas do que as das marchinhas carnavalescas,
parece descender daquelas que os ranchos cantam com tanto sentimento em seus
desfiles. Gravada pela bonita morena Ruth Franklyn, será tão pouco lembrada
quanto o obscuro parceiro de Noel.
Fiquei sozinha,
Abandonada, implorando o teu perdão.
Fiquei sozinha,
Desesperada com a tua ingratidão.

Sem teu perdão, amor,


Eu vivo a padecer
Sem ter o que comer
Sem um vintém para beber

Oh, vem depressa, vem!


Isso não é papel,
Se não voltares,
Eu arranjo um coronel.

Sem a tua companhia


Eu não posso resistir,
Vendo o prazer fugir
Sem um lugar para dormir.

Pra me vingar de ti
Farei o que puder,
Não é assim
Que se despreza uma mulher.

Jerônimo Cabral e Noel têm pelo menos dois gostos em comum: a música e
a bebida. Só que, enquanto Noel pende bem mais para a primeira, Jerônimo tem
indisfarçável preferência pela última. Não se pode dizer que viva bêbado, mas
quase. É raro vê-lo longe de um copo. Vez por outra surge numa esquina do
Centro, em plena luz do dia, trôpego, o corpo alto e robusto dançando, a fala
enrolada de quem mais uma vez passou da conta. É pianista e compositor de
talento, escreve música para o teatro, rege a orquestra em revistas e operetas
montadas na Praça Tiradentes. Isto é, quando pode. Porque a única hora em que
está em condições de render tudo que sabe é na parte da manhã, quando se senta
ao piano, compõe e toca suas canções. Depois do meio-dia, tudo depende do
quanto saciar sua sede.
Simpático, grande coração, amigo dos amigos. Boêmio impenitente, é
capaz de trocar tudo por uma noitada embebida em música e vermute. No dia em
que se casou, saiu da festa com alguns amigos para uma comemoraçãozinha
adicional no botequim da esquina. E só voltou no dia seguinte. Um trago aqui,
outro ali, Jerônimo esquecendo-se de que acabara de se transformar num homem
casado, a noiva em casa esperando, buquê na mão, aflita.
Uma das noitadas inesquecíveis de Jerônimo Cabral é vivida na companhia
de Noel, Custódio Mesquita, Milton Amaral, Jurandyr Santos e Alfredo Motta da
Silva. Voltam todos meio altos de uma festa em Cascadura e esperam cada qual
o seu bonde no Largo de São Francisco. Noel, desta vez, consegue estar mais
chumbado do que o Cabral. Mal se mantendo em pé, deixa os amigos no ponto
do bonde, vai até a igreja, encosta o violão, tira o chapéu e deita-se no degrau da
escadaria. Quando o Vila Isabel-Engenho Novo aponta na Avenida Passos,
Milton e Cabral vão chamá-lo. São quase seis da manhã, a igreja já está aberta,
os fiéis começam a chegar para a primeira missa. Os dois sacodem Noel, agora
imerso em mais um sono profundo. Uma vez acordado, Noel pega o violão e
logo em seguida o chapéu, dentro do qual, para surpresa dos três, há um punhado
de notas e moedas. Os fiéis, supondo tratar-se de um mendigo, foram ali
depositando seus caridosos óbulos. Um bom dinheiro. Tão bom que Noel
convida Milton e Cabral para darem um pulo até a Lapa, onde vão acabar a noite
- ou melhor, começar o dia - comendo carne-seca com farinha num botequim dos
Arcos, em parte financiados pelos piedosos devotos de São Francisco de Paula.
Cabral e Noel, companheiros de copo, serão também parceiros na música.
Farão juntos um fox-trot sobre o qual se contarão algumas histórias. Cabral, de
tanta encomenda que recebe para escrever música para números de dança e
sapateado nos moldes das ZiegfekTs "Follies" tornou-se muito familiarizado
com os ritmos norte-americanos. Gosta muito de compor fox-trots, de modo que
é com um deles que vai vestir os versos de Noel para a única obra que criarão
juntos: Estátua da Paciência.
Das histórias que correm sobre as origens de tais versos, a mais plausível
está ligada ao pessoal da Rua Moju. Terezinha, uma das filhas de dona Luísa,
fugiu de casa para viver com um polonês que bancava jogo de roleta em Ramos.
(4) 4. Era mesmo um polonês, banqueiro de roleta em Ramos, e não um bicheiro como conta Almirante. Alegria e Fina, em depoimentos aos autores, narram sobre a fuga de Terezinha a mesma
história, um pouco diferente da que Almirante nos dá em No Tempo de Noél Rosa, segunda edição (página 195), na qual Noel entra apenas como mero ajudante da família na busca da moça. Ele era de
fato o único que sabia onde Terezinha estava.

A família inteira se pôs atrás da moça. Havia informações vagas de que o


tal polonês morava neste ou naquele subúrbio. Dona Luísa, desesperada, apelou
para todos e para tudo, os amigos, as orações, o irmão policial. Que lhe
trouxessem a filha de volta pelo amor de Deus. Foi Alegria quem, penalizado
com tanta aflição, achou não haver outro jeito senão trair a confiança de Noel e
dizer a dona Luísa que o amigo sabia do paradeiro de Terezinha. Dona Luísa
suplicou-lhe: - Por caridade, Noel, me diz onde ela está!
Numa de suas muitas andanças pela cidade, ele descobrira o paradeiro da
tia de Fina, a casa do polonês cercada de muros altos como os de uma fortaleza.
Mas, como não tinha nada com isso, ficou quieto. Com as súplicas de dona
Luísa, viu-se forçado a ir ele mesmo buscar a moça. Da interminável espera a
que foi obrigado, na estação de Ramos, para abordar Terezinha quando ela por
ali passasse, teriam nascido os versos de Estátua da Paciência:
Seu telegrama diz:
"Regressarei brevemente"
Mas o seu trem fatalmente
Chegar não quis

Não entendi por que


O trem não traz pra cidade
A minha felicidade
Que é você

A quem acabar com a raça dos trens


Além dos meus parabéns
Eu darei como prêmio de consolação
O relógio e o prédio da estação.

Eu sou na estação
A estátua da paciência
E acabei sendo agência
De informação

Sei os itinerários
Já decorei os horários
O nome dos maquinistas
E dos foguistas!

Seu telegrama diz:


"Regressarei brevemente"
Mas o seu trem fatalmente
Chegar não quis

Não entendi, querida,


Por que seu trem não regressa
Amenizando depressa
A minha vida.

Mas é apenas uma história, que não parece casar bem com o apaixonado
cantor dos versos que espera, não tão paciente, a sua amada.

Jota Machado é outro homem de teatro. Mais um daqueles que o público


não vê no palco. Compõe para revistas, faz música de fundo para peças
dramáticas desde que Leonardo Fróes o descobriu há alguns anos. É um dos que
Almirante acusa de ter copiado despudoradamente o seu Na Pavuna. O Na
Gamboa, de Jota Machado, tem mesmo muita coisa de papel-carbono:
Na Gamboa, na Gamboa
Tem macumba que só entra gente boa(5)
5. Sem citar o nome de Jota Machado, Almirante registra, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 72) que "... o mais lamentável papel-carbono foi o ridículo Na Gamboa, cópia
da melodia, do ritmo e do estribilho de Na Pavuna e que utiliza na sua gravação os mesmos recursos lançados por nós, inclusive o característico 'bum-bum-bum'." Almirante cita ainda um comentário de
Tom Rio, em O Malfyo de 15 de fevereiro de 1930: "... até o efeito de um batuque de tamborim que se encontra no disco de Na Pavuna foi transportado, também, para o disco de Na Gamboa. Não.
Decididamente a polícia precisa intervir nesse negócio de música e letra."

Mas, bom compositor, ótimo pianista, Jota Machado não merece entrar para
a história apenas por esta crise de falta de imaginação. Tem boas músicas de
criação própria, as valsas Páginas do Coração e Fonte da Saudade, o fox-trot
Annita, a canção Saudade Que Mata.
Certa tarde, Noel entra na Casa Viúva Guerreiro, editora de música que
funciona na Rua 7 de Setembro, e lá encontra Jota Machado. Vai direto ao
assunto: - Tenho aqui um samba pra te vender. Cinco mil réis.
- Que samba é este, Noel?
-Por enquanto só fiz os versos. Chama-se Que se Dane!
E ali mesmo - como se os inventando na hora - Noel escreve-os para Jota
Machado, que vai musicá-los.
Vivo contente embora esteja na miséria
Que se dane! Que se dane!
Com esta crise levo a vida na pilhéria
Que se dane! Que se dane!
Não amola! Não amola!
Não deixo o samba
Porque o samba me consola

Fui despejado em minha casa no Caju


Que se dane! Que se dane!
O prestamista levou tudo e fiquei nu
Que se dane! Que se dane!

Fui processado por andar na vadiagem


Que se dane! Que se dane!
Mas me soltaram pelo meio da viagem
Que se dane! Que se dane!

Ainda de teatro é Arthur Costa, carioca cheio de aptidão para muitas coisas.
Foi torneiro mecânico, tocador de bandolim, motorista de táxi. Embora morando
na Tijuca, fazia ponto na Praça da Bandeira onde, entre uma corrida e outra,
cantava sambas no estilo de Luís Barbosa. De tanto agradar, acabou no rádio e
no disco. Claro, antes de descobrir o teatro.
Conheceu Noel Rosa no Café Nice. Começaram a fazer juntos um samba
esquisito, Estricnina, do qual só restarão os tragicômicos versos iniciais:
Estricnina não é ruim de se tomar
Eu vou me envenenar!
Eu vou me envenenar!

Arthur Costa, com malabarismos vocais que lembram mesmo Luís Barbosa,
o jeito de embaralhar as sílabas fazendo a voz soar como um instrumento de
percussão ("teu-teu-balaco-baco-chico-pã..."), grava em dupla com Noel Bom
Elemento. E também Espera Mais Um Ano, que acabará não saindo, talvez por
causa de um mau agudo de Noel(6).
6. Ver Capítulo 21 e nota sobre Espera Mais Um Ano no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no final do volume.

E ainda Você Foi o Meu Azar, os dois alternando-se, com muita bossa, de
verso para verso. É outra gravação que ficará arquivada, mas Arthur, parceiro de
Noel na autoria, vai refazê-la com Neneo das Neves, usando o mesmo arranjo:
Você foi o meu azar
(Você foi o meu azar)
Estragou a minha vida
(Por ser falsa e convencida)
Para me fazer chorar
(Quis me deixar)
Hoje volta arrependida
(Por ser mal-sucedida)

Depois da sua saída


(Fiquei logo bem de vida)
Foi-se embora o meu azar
(Se eu quiser posso provar)
E até mesmo o bicheiro
(Paga sempre o meu dinheiro)
Quando acerto no milhar

Com você passava fome


(E sofri coisas sem nome)
Andei teso, sem tostão
(Vou explicar a razão)
Eu vivia tão pesado
(Que até fui atropelado)
Por um carrinho de mão.

Se você quiser voltar


(Para a vida melhorar)
Temos que fazer assim:
(Para o nosso azar ter fim)
Para ver se você me ama
(Fico a descansar na cama)
E vais trabalhar por mim.

O mesmo Arthur Costa é quem grava outro samba seu com Noel Rosa, sem
dúvida melhor que os outros. Senão pela música, de molejo carioca como seus
autores, ao menos pela letra, o tema da fome, da penúria, dos bolsos vazios, mais
uma vez focalizado pelo acridoce humor de Noel. O título já antecipa o que se
vai ouvir: Sem Tostão.
De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje sai do plantão
Sem tostão! Sem tostão!

Já perguntei na Prefeitura
Quanto tenho que pagar:
Quero ter uma licença
Pra viver sem almoçar.
Veio um funcionário
E gritou bem indisposto
Que pra ser assim tão magro
Tenho que pagar imposto!
(Mas vejam só!)

E quando eu passo pela praça


Quase como o chafariz.
Quando a minha fome aperta,
Dou dentadas no nariz.
Ensinei meu cachorrinho
A passar sem ver comida:
Quando estava acostumado,
Ele disse adeus à vida!

Mas a maior de todas as aptidões de Arthur Costa é realmente o teatro de


revistas, que cedo ou tarde ocupará em sua vida o lugar que por enquanto
pertence ao samba.
Parceiros que começam a se projetar a partir da simbiose com Noel,
parceiros que logo serão esquecidos, amigos, desconhecidos, há de tudo no meio
dos 56. Até um irmão. Sim, porque Hélio, apesar dos ciúmes dos tempos de
garoto (ciúmes dos quais sempre restará um pouco), tornou-se ao crescer um dos
maiores admiradores de Noel, um dos primeiros a admitir que, afinal, o irmão é
mesmo um privilegiado.
Hélio também adora música. Sempre adorou. Difícil ser diferente tendo
nascido e crescido entre os saraus do chalé. Mas seu interesse, a certa altura,
passou a ter algo de obsessivo, agarrando-se ao violão horas a fio, aprendendo
posições novas, criando suas próprias, exercitando-se aflitivamente até ferir os
dedos, tudo para se fazer melhor que o irmão. Isso, naturalmente, nos tempos
enciumados de garoto. Hoje, Hélio tem outros interesses, estuda veterinária.
Continua com os olhos nos livros, não só da especialidade, mas de assuntos que
vão da mitologia clássica à literatura francesa, da matemática à filosofia, da
cosmologia ao ocultismo. Fala correntemente o inglês, defende-se no francês e
no espanhol, já pensa em tentar o alemão. Continua despertando nas pessoas a
mesma exclamação : - Puxa, o Hélio sabe de tudo... Mas como é esquisito!
É mesmo diferente de Noel. Bem-apessoado, um tanto arrogante, exigente
com tudo e com todos. Não é de boêmia, não gosta de boêmios. Prefere a
companhia dos rapazes bem-comportados do bairro, universitários como ele,
futuros médicos, advogados, militares. Nesta roda, brilha tanto quanto Orestes
Barbosa no Nice. É muito inteligente - e nisso não difere de Noel. Algumas
pessoas nem sempre compreendem seus rompantes. Outras assustam-se com
suas convulsões, a epilepsia não de todo controlada. Hélio não se envergonha
dela, como tantos portadores da doença. Talvez se lembre que Machado de Assis
e Dostoievski também foram epiléticos.
Esquisito. Muito da fama que os moradores do chalé gozam - Bella, Rita,
Martha, Neca, o próprio Noel - se deve às estapafurdices de Hélio. Não foi de
graça que Orestes Barbosa confidenciou a Manuel Jansen Muller: -Na casa de
Noel todos sempre estiveram a um passo da loucura. Mas quem deu este passo,
mesmo, foi o Hélio.
Diferente do irmão. Como nos tempos de garoto, raramente andam juntos.
Mas há entre eles uma admiração mútua, nem sempre declarada. Uma amizade
fraterna embora não muito íntima. Em vários campos Hélio gosta de competir
com Noel, no amor, na música, no brilho pessoal. Persegue-lhe as namoradas,
talvez chegue mesmo a conquistar algumas delas, ganhos sem importância.
Realmente se tornou melhor violonista que o irmão, fazendo hoje no instrumento
tudo que Noel faz e muito mais. Até o fim da vida terá impulsos infantis de
mostrar isso às pessoas. Também compõe, mas, talvez no desejo de até nisso ser
melhor, vai trilhar caminhos, segundo supõe, mais ambiciosos: o da música
americana. Não irá longe. Seus fox-trots sabem a coisa já ouvida. E Noel é
bastante franco em relação a isso: - Não gosto, Hélio. É muito americanizado.
O que não impede de se tornarem parceiros. E justamente num fox-trot, a
única composição dos dois que sobrevierá(7).
7. Uma segunda parceria dos dois, Qual a Razão?, se perderá.

A melodia é de Hélio. Quem conhecer a gravação original da orquestra


americana de Paul Whiteman para Nobody's Sweetheart logo ficará sabendo em
que Hélio se inspirou. Mas a letra de Noel, como se fosse uma saudação
familiar, é repleta de trocadilhos e aliterações que os moradores do chalé sempre
cultivaram, desde a época de vovô Eduardo. A composição intitula-se Você Só...
Mente(8) e será gravada por Francisco Alves e Aurora Miranda: 8. Escrito por Ernie Erdman, Elmer
Schoebel, Billy Mayers e Gus Kahn, este fox-trot se tornaria muito popular através da clássica gravação de Paul Whiteman e sua Orquestra, realizada em Nova Iorque a 9 de outubro de 1929 (Columbia
americana 2089 D). Pode-se notar pelo arranjo de Tom Satterfield como são semelhantes as primeiras partes de Nobody 's Sweetheart e Você Só... Mente. Em 1935, quando de sua estada em Belo
Horizonte para tratamento dos pulmões, Noel revelaria ao amigo Roberto Ceschiatti sua admiração pela orquestra de Whiteman. Sua e do irmão. E lamentaria não ter ainda a música popular brasileira
uma "orquestra típica" como a americana e a argentina. Não entendia como tal, portanto, a de Pixinguinha. Muito menos outras, as de Bountmann, Kosarin, Napoleão Tavares, Romeu Silva, cujos
arranjos eram criados sob forte influência de maestros americanos como Whiteman.

Não espero mais você,


Pois você não aparece
Creio que você se esquece
Das promessas que me faz...
E depois vem dar desculpas
Inocentes e banais.
É porque você bem sabe
Que em você desculpo
Muita coisa mais...

O que sei somente


É que você é um ente
Que mente inconscientemente,
Mas finalmente, não sei por quê
Eu gosto imensamente de você.

E invariavelmente,
Sem ter o menor motivo,
Em um tom de voz altivo,
Você quando fala, mente
Mesmo involuntariamente.
Faço cara de contente,
Pois sua maior mentira
É dizer à gente
Que você não mente.

Noel e Hélio Rosa, irmãos tão diferentes, separados na vida em quase tudo,
dificilmente chegariam a manter um casamento musical harmonioso, uma
parceria longa e perfeita.
Parcerias longas e perfeitas são raras. Nesses muitos encontros que Noel
tem vivido por aí, marcados ou ocasionais, com compositores de talento ou
estranhos que lhe batem no ombro, quantas durarão? Poucas. E quantas atingirão
a perfeição? Pouquíssimas. A rigor, em termos de durabilidade e afinação,
Ismael Silva ocupa lugar único na obra de Noel Rosa. E vice-versa. Os dois
formaram desde o começo uma parceria perfeita. E destinada a durar. Mas será
mesmo um caso único?
Em fins de 1932, no estúdio da Odeon, Eduardo Souto passa pelo pianista
que dentro de poucos instantes vai acompanhar Francisco Alves numa gravação.
É um sujeito magro, de bigodinho fino, cabelo ondulado dividido ao meio,
óculos de aro de metal. Os dedos ágeis deslizam pelo teclado na execução de
uma melodia que chama a atenção do maestro. Uma melodia de incomum
beleza.
- De quem é?
- Minha.
- Tem nome?
- Não.
- Tem letra?
- Também não.
O maestro pára para pensar. Uma composição que desde a primeira frase
musical deixa claro que quem a fez não é um melodista de soluções fáceis. A
passagem da primeira para a segunda parte confirma essa constatação. Ao
contrário da maioria, quase totalidade dos compositores populares, que fazem da
segunda parte um mero complemento da primeira, na qual colocam todos os seus
trunfos melódicos e harmônicos, este aqui desdobra um fragmento em outro, cria
um coro que toca Eduardo Souto e um verso tão ou mais apreciável.
- Espere um instante - diz o maestro. Em pouco ele está de volta trazendo
pelo braço Noel Rosa, que cuidava na sala ao lado de suas próprias gravações. O
maestro apresenta-o ao pianista, sem formalidades nem rodeios.
- Este é o Vadico, Noel. Pianista de São Paulo. Acho que vocês deviam
pensar em trabalhar juntos. Ouça esta música que ele fez.
A pedido do maestro, o pianista executa mais uma vez sua composição.
Noel ouve em silêncio, atento, a cabeça meio de lado, o queixo defeituoso
apoiado nas costas da mão direita. E quando o pianista volta mais uma vez à
primeira parte, Noel pega papel e lápis e começa a trabalhar num monstro, isto é,
uma letra provisória destinada apenas a assinalar o número de sílabas de cada
frase musical, a pontuação e a acentuação que deve ter cada uma. Ao fim, diz: -
Vou tentar a letra.
O maestro Eduardo Souto vê Noel se afastar com o monstro no bolso.
Sensível como sempre, talvez saiba, lá no íntimo, que acaba de dar à música
popular brasileira, nesta simples apresentação, um presente tão valioso quanto
suas próprias composições.
Não se engana o maestro. Vadico, Oswaldo Gogliano, tem 22 anos e a
música no sangue. Tanto a mãe mineira como o pai paulista, descendente de
italianos, fizeram questão de dar aos filhos uma educação musical. A todos eles.
De modo que Vadico estudou piano, harmonia, composição. Corajoso, para não
dizer ousado, decidiu muito cedo ganhar a vida tocando e compondo música. De
preferência, popular. Largou o emprego de datilógrafo numa firma de São Paulo
e tratou de seguir sua vocação. Nos últimos quatro anos, não tem descansado.
Empregos de pianista em cafés e hotéis, músico de orquestras e pequenos
conjuntos, tentativas de ter seus sambas e marchas gravados por algum cartaz do
rádio. Tornou-se um ganhador de concursos, na esperança de que isso lhe abrisse
portas. Engano. A marcha Isso Mesmo É Que Eu Quero, por exemplo, valeu-lhe
uma medalha de ouro em São Paulo, mas não o tornou conhecido. Achou melhor
mudar-se para o Rio, onde afinal estão as gravadoras, os músicos mais
importantes, os cantores que vendem discos. Embora lentamente, sua sorte
começou a mudar. Tinha apenas vinte anos quando chegou por aqui.
Foi Eduardo Souto quem lhe deu emprego de pianista e orquestrador na
Odeon. Menos por serem conterrâneos do que por ter o diretor musical da
gravadora, perspicaz como sempre, percebido logo que a Odeon é que tinha a
ganhar: Vadico era talentoso e custava pouco. Não mais do que alguns mil réis à
pouco generosa folha de Fred Figner.
No Rio, o jovem pianista foi avançando devagar. Teve seu samba Arranjei
Outra, letra de Dan Malio Carneiro, gravado por Francisco Alves. Mal foi
notado. Outro samba, Silêncio, música e letra suas, chegou ao disco nas vozes de
Luís Barbosa e Vitorio Lattari, ganhou um concurso do Correio da Manhã
(competindo com Mulher de Malandro, de Heitor dos Prazeres, e Na Piedade, de
Ary Barroso, entre outros) e foi incluído na revista musical Bibelot, de De
Chocolat. Veio avançando devagar.
Agora, o encontro com Noel. Que dois dias depois procura-o na Odeon para
dizer-lhe que o samba já tem título e letra. Vadico, ansioso para ver o resultado,
vai para o piano. Gosta do título: Feitio de Oração. E mais ainda da letra: Feitio
de Oração. (Samba de Vadico e Noel Rosa.)
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade

Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia

Por isso agora


Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração.
O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.

Uma outra estrofe não será aproveitada na gravação original de Francisco


Alves e Castro Barbosa. Na verdade, será arquivada por muitos anos(9).
9. A estrofe só seria gravada em 1983, como uma das vinhetas do LP Noel Rosa Inédito e Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).

Mas o samba fica mesmo melhor sem ela.


Chorando não é que se sente
Pois mesmo até um triste olhar nos mente
E o meu silêncio então suplanta
Um gemido na garganta
Quando contemplo a santa!

O tempo dirá que Eduardo Souto está certo, Vadico e Noel começam com
uma obra-prima e vão criar outras obras-primas pela vida afora. Nada do que
farão juntos - onze composições daqui até 1936 - é menos do que bom. E quase
tudo é mais do que excelente.
Um encontro abençoado aquele, no estúdio da Odeon. Ismael Silva não é
caso único de durabilidade e afinação na obra de Noel Rosa. Vadico, dono de
outro estilo (e Noel parece adaptar-se a todos os estilos), entra nela como se para
provar que parcerias longas e perfeitas são raras, mas existem.
Vadico
Capítulo 27

NOTURNAS E VESPERTINAS

.. uma lua diferente


Que é do sol independente,
Com luz própria e com calor
O Sol Nasceu Pra Todos

Mário Reis assiste ao ensaio dos Diabos do Céu no estúdio da Victor e fica
maravilhado com a orquestração de Pixinguinha para Ride, palhaço, marcha que
Lamartine Babo acaba de compor para ele gravar, com nítida inspiração em
Leoncavallo. Pixinguinha é um gênio, conclui Mário pela milésima vez. Mas é
preciso pensar no outro lado do disco. Se conseguir algo tão bom, terá mais dois
valiosos trunfos para o carnaval de 1934. Ainda está com os sons da orquestra de
Pixinguinha na cabeça quando estaciona seu carro em frente ao Nice. Numa
mesa de canto, falando e gesticulando muito, está Lamartine Babo. Fora do café,
encostado num poste, alheio à multidão que passa pela esquina, Noel Rosa.
Mário tem uma idéia. Faz sinal para Lamartine e outro para Noel. Os dois
se aproximam.
- Tenho um assunto para falar com vocês. Vamos jantar lá em casa.
Pede que os dois esperem e procura o telefone mais próximo. Liga para
casa e recomenda que se ponha champanhe no gelo. Champanhe? Pensa melhor:
- Cascatinha, cerveja Cascatinha. Uma dúzia.
No automóvel, a caminho da Rua Affonso Penna, Mário vai explicando
tudo. Lamartine e Noel ouvem calados.
- Quero que vocês façam um samba para o outro lado de Ride, Palhaço.
Hoje mesmo. Senão, Pixinguinha não terá tempo de escrever a orquestração.
Temos de gravá-lo nos primeiros dias de novembro.
Lamartine e Noel concordam. Na casa da Rua Affonso Penna, onde Mário
criou e cultiva a fama de impecável anfitrião, tomam-se aperitivos, janta-se,
sorvem-se goles e mais goles de Cascatinha bem gelada e só no cafezinho
começa-se a falar do samba.
- Como é que você quer, Mário? Em tom maior ou menor?
- Menor, Lamartine. É mais nostálgico. Quero um samba no mesmo clima
de Ride, Palhaço.
- Muito bem, tom menor. Lamartine batuca com os dedos na mesa de vidro
e começa a cantarolar. As notas vão saindo em sua voz fanhosa. Aqui e ali,
tirando acordes do violão de Mário, Noel interfere. Nenhum dos dois conhece
música, fusas e colcheias sendo elementos cujos sentidos jamais compreenderão
bem. Para quê? Mário, de início, também dá seus palpites na construção da
melodia, mas logo fica imóvel, em silêncio, bebendo deliciado os sons que
Lamartine vai criando com a ajuda de Noel. Música e letra da primeira parte
ficam prontas em minutos: (O Sol Nasceu Pra Todos)
O dia vem chegando,
Vou rezar minha oração,
A igreja é a floresta
E o sino é o violão.
Por que você me nega
A esmola de um olhar?
O Sol nasceu pra todos,
Também quero aproveitar.

Lamartine cantarola mais uma vez a bonita primeira parte. Antes que
chegue ao fim, Mário propõe: -Muito bem. Agora, cada um de vocês faz uma
segunda parte. Vamos ver qual dos dois é o melhor.
Lamartine e Noel se entreolham. Mário percebe que a proposta, em tom de
desafio, surte efeito. Uma competição entre aqueles que são, provavelmente, os
dois maiores poetas do carnaval brasileiro terá de resultar, no mínimo, em duas
excelentes segundas partes. Mário é inteligente, conhece os brios de Lamartine e
as astúcias de Noel. Brios e astúcias que, postas em confronto, em forma de
disputa, podem ser as sementes de um grande samba. Por isso insiste: - Vamos
lá, quero ver quem é o melhor.
- Você primeiro, Lamartine - diz Noel. Mário sai da sala. Quinze, vinte
minutos depois, com outra garrafa de cerveja na mão, volta. Lamartine acabou
de fazer a sua segunda:
Deus, quando inventou o mundo,
Fez o Sol e fez a Lua,
Fez o homem e a mulher,
Fez o amor em um segundo,
Sou o Sol, você é a Lua,
Seja lá o que Deus quiser!

- Você é um craque, Lamartine!- exulta Mário.


Noel desta vez se deu mal, pensa. Os versos de Lamartine Babo são ótimos.
Essa história de homem, sol, mulher, lua, é um achado de que só ele, em seus
melhores momentos, é capaz. Mário sabe que Noel não se deve afastar do tema,
a idéia original de Lamartine tendo de ser seguida até o fim. Noel tira do bolso o
cotoco de lápis e pede que o parceiro repita sua segunda parte.
- Como é, Noel? Agora é que eu vou ver se você é bom mesmo.
Minutos depois, ele canta:
E você é a triste Lua
Que ilumina a minha rua,
Onde mora a minha dor.
Mas uma lua diferente,
Que é do Sol independente
Com luz própria e com calor.

Mário Reis quer dizer alguma coisa, mas não pode. Enleva-se pelos versos
de Noel, a mesma idéia de Lamartine aprofundada, um sentimento semi-oculto
em cada frase. Numa sextilha ainda mais perfeita que a do parceiro, o primeiro
verso rimando com o segundo, o quarto com o quinto, o terceiro com o sexto.
Para não confessar aqui que gostou mais da segunda parte de Noel que da de
Lamartine, resume todo o entusiasmo no mesmo elogio: - Você é um craque,
Noel!
Mas lá no fundo, consigo mesmo, dirá que nem toda a admiração que tem
por Lamartine o impedirá de admitir que Noel Rosa é imbatível: "Quem mais
seria capaz de misturar amor e cosmografia em letra de música?" Mário brinda
com goles de Cascatinha o novo samba, aqui mesmo intitulado O Sol Nasceu Pra
Todos. O nome de Noel jamais aparecerá no selo do disco ou nas partituras
impressas. Mas não faz mal. Madrugada já, caminha sozinho até o ponto do
bonde que o levará de volta a Vila Isabel, talvez cantando, baixinho e triunfante:
.. uma Lua diferente,
Que é do Sol independente,
Com luz própria e com calor...

Mário Reis e Lamartine Babo, juntos ou não, terão mais do que dois
valiosos trunfos para o carnaval de 1934. Noel, nem tanto. Mário arrebatará os
foliões com um samba de Alcebíades Barcellos e Armando Marcai destinado a
transformar-se num dos clássicos da música popular brasileira: Agora É Cinza.
Em dupla com Carmem Miranda, levará ao sucesso um samba de André Filho:
Alô, Alô. De quebra, fará o povo cantar, nos bailes e nas ruas, Uma Andorinha
Não Faz Verão, de João de Barro e Lamartine. Este, entre outras, brilhará
também com História do Brasil, irreverente e bem-humorada releitura do
descobrimento: Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril, Dois meses depois do carnaval...
Já Noel, desde sua vitoriosa estréia em 1931, quando Com Que Roupa? o
fez famoso quase da noite para o dia, nunca produziu tão pouco para o carnaval
como agora: não mais do que uma marcha e dois sambas. Tão pouco que a
Odeon e a Victor tentarão prolongar a atualidade de algumas de suas
composições, sucessos de meio de ano, mantendo-as em suplemento até
fevereiro. São os casos de Feitio de Oração e Quem Não Quer Sou Eu. É o caso
também de Eu Queria Um Retratinho de Você, outra vez dele e Lamartine. Há
originalidade na letra, uma declaração de amor feita com imagens e expressões
pedidas emprestadas ao jornalismo, mas usadas com bastante graça,
especialmente na interpretação de Mário Reis. A melodia, porém, lembra muito
Wonder Who 's Kissing Her Now, canção americana de 25 anos atrás(1).
1. Escrita em 1909 por Joe Howard, Will Hough e Frank R. Adams.

Eu quero um retratinho de você,


Pois vou mandar fazer o seu clichê
E publicá-lo no meu jornal...
Você é uma figura original!

Retrato em um tamanho especial


Que vai deixar o mundo inteiro mal.
Vai ser um sucesso porque
Figura só vê quem não lê...
Eu quero um retratinho de você.

Sou o principal redator


Do "Correio do Amor",
Escrevo artigos de sensação,
Só recebemos visita
De moça bonita
No meu coração é a redação.

O seu olhar tão profundo


É artigo de fundo
É grande furo em qualquer diário,
Seu nome é cabeçalho
Extraordinário
São de dez milhões as edições.

Novembro é mesmo o mês em que os artistas ocupam os estúdios das


fábricas de disco para se lançarem à animada e freqüentemente renhida
competição carnavalesca. O maior prêmio dessa emulação feita de ritmos e
melodias, marchas e sambas, sátiras e cantos de amor, é o reconhecimento
popular, o prazer de ver e ouvir todo o mundo, seja nos blocos de sujo, seja nos
bailes grã-finos, cantando o que compositores, letristas e intérpretes trabalham
desde as festas da Penha nos domingos de outubro.
Na Odeon, Francisco Alves e Madelou Assis gravam juntos um samba de
Ary Barroso e Noel Rosa. Chico é o cartaz de sempre. Madelou, uma das muitas
moças de sociedade que, seguindo os passos de Mário Reis, começam a conviver
com a música popular. Não é uma grande cantora. Chama mais a atenção pelo
charme do que pela voz. Está muito longe de ser bonita, mas mesmo assim
arranca suspiros e faz bater mais ligeiro o coração de muita gente, em especial
Orestes Barbosa, que a define com sua costumeira e arrebatada verve: "... uma
primavera de carne nos estúdios, fazendo os pianistas errarem com a sua
presença, deixando o microfone intoxicado pelo perfume de sua boca de
morango orlada de tinta e pérolas, como um reclame odontológico de Simões de
Oliveira..."(2)
2. Samba, segunda edição (página 57).

Mas não são os microfones intoxicados ou os tropeços dos pianistas que


assinalam a história desta gravação realizada no dia 9 de novembro de 1933-Há
nela, sem que se saiba agora, um quê de última vez. Nunca mais Ary e Noel
comporão juntos. E a partir deste momento, Chico e Noel - paga a dívida pelo
Pavão, o relacionamento entre os dois desgastado e até mesmo estremecido - vão
desfazer a sociedade. Mas o samba, Estrela da Manhã, é um cintilante fim de
parcerias.
A estrela da manhã,
Quando brilha na amplidão,
Faz lembrar uma saudade
Que guardei no coração.

Quando à noite olho as estrelas


A brilhar no firmamento,
Fico distraído ao vê-las,
Esquecendo o meu tormento.

E dos amores que tive,


A gozar a mocidade,
Só um no meu peito vive
Sob a forma de saudade.

As duas outras composições de Noel Rosa especialmente para o próximo


carnaval são entregues a Almirante, que as grava no mesmo dia, 3 de novembro,
na Victor. Uma é a marcha Você, Por Exemplo, a presença de Noel muito nítida
no espírito dos versos e nas rimas pouco usuais, pincenez com vê, Gandhi com
grande, templo com exemplo.
Há muita gente
que, apesar do pincenez,
Passa por nós,
dá esbarrão e não nos vê,
Anda depressa,
mas vai sempre com atraso.
Você, por exemplo...
Você, por exemplo,
Está neste caso!

Há muitas santas no mundo


Que vivem fora do templo,
Santas de olhar bem profundo...
Você, por exemplo!
Você, por exemplo!

Quanto barbado que não paga engraxate,


Muda de casa e deixa mudo o alfaiate,
Quanto barbado que jejua mais que o Gandhi.
Você, por exemplo...
Você, por exemplo,
Não tem barba grande!

Quanta menina por ouvir no telefone


Uma voz grossa feito solo de trombone,
Pega automóvel, vai parar não sei aonde.
Você, por exemplo...
Você, por exemplo...
Não anda de bonde!

Há muita gente que só sabe dar palpite,


Pois tem cabeça, mas já teve meningite,
E muita gente vive bem sem um pulmão.
Você, por exemplo...
Você, por exemplo,
Não tem coração!

A segunda é um dos sambas mais perfeitos e perenes de toda a obra de Noel


Rosa. Um samba que, entre outras coisas, abre importante e tumultuado capítulo
em sua vida de compositor popular: O Orvalho Vem Caindo. Daqui a dois
meses, ou seja, lá por janeiro, toda a cidade terá se rendido aos encantos da
melodia simples e contagiante desse samba. E saberá de cor os versos escritos
com fino humor. Um humor tão claramente seu que todos, no meio musical,
estranharão o fato de ter o samba a assinatura de Kid Pepe ao lado da de Noel
Rosa.
Há razões de sobra para tal estranheza. Kid Pepe é um boxeur aposentado.
Decidiu trocar as luvas pelo samba, mesmo que mal saiba assinar o nome, que
tenha uma voz incapaz de entoar três notas sem desafinar, que possua ouvidos
péssimos. Chama-se, na verdade, José ou Giuseppe Gelsomino, nasceu na Itália
e é amigo de Germano Augusto, o motorista de Francisco Alves. Para quem vive
a dizer que português e italiano são trouxas, os dois valem como irrefutável
prova em contrário. Astutos, vivos, cheios de manha, nada devem aos mais
espertos malandros cariocas. Somadas as espertezas de um e de outro, tudo é
possível.
Mas serão eles realmente capazes de fazer sambas, marchas ou qualquer
coisa que se pareça com música? Poucos acreditam. Germano é,
confessadamente, comprador de samba. Aprendeu com Francisco Alves, na
época em que morava com ele na casa da Rua Justiniano da Rocha. Kid Pepe
não fica atrás. Há quem diga que, quando não consegue comprar o que lhe
interessa, arranca a parceria à força. Foi um lutador medíocre, mas fora do ring,
se a sobrevivência está em jogo, sabe usar os punhos com a habilidade de um
nocauteador profissional. Mesmo assim, até este final de 1933 os socos não o
ajudaram muito na luta para obter sucesso na música popular. Não fez nada que
preste, nada que fosse notado, até se tornar parceiro de Noel Rosa em O
Orvalho Vem Caindo:
O orvalho vem caindo,
Vai molhar o meu chapéu
E também vão sumindo
As estrelas lá no céu...
Tenho passado tão mal:
A minha cama é uma folha de jornal!

Meu cortinado
é o vasto céu de anil
E o meu despertador
é o guarda-civil
(Que o salário ainda não viu!)

A minha terra
dá banana e aipim,
Meu trabalho é achar
quem descasque por mim
(Vivo triste mesmo assim!)

A minha sopa
não tem osso nem tem sal,
Se um dia passo bem,
dois e três passo mal
(Isto é muito natural!)

Além desses versos gravados por Almirante, Noel escreveu pelo menos
mais uma estrofe:
O meu chapéu
vai de mal para pior
E o meu terno pertenceu
a um defunto maior
(Dez tostões no belchior!)

De certo modo, o samba é uma retomada de Com Que Roupa? sem o


caráter formalmente revolucionário daquele, mas outra vez falando de um Brasil
de tanga, de brasileiros cuja sopa não tem osso nem tem sal, de um solo fértil
onde nascem banana, aipim, tudo, e mesmo assim do homem do povo passando
bem um dia, mal dois e três. Há até referência aos servidores públicos que
ganham pouco e não recebem pontualmente, representados pelo guarda-civil
transformado em despertador de pobre.
Sim, há razões de sobra para que muitos estranhem o fato de Kid Pepe ter
alguma coisa a ver com este samba. E se não tem, o que levaria Noel a conceder-
lhe parceria? Pergunta que muito provavelmente intriga o repórter de O Globo
que passa pela Rua Gonçalves Dias e ouve, saídos de uma vitrola de casa de
música, a melodia e os versos de O Orvalho Vem Caindo. A cidade toda canta o
samba, pensa ao se aproximar da Casa Henrique Tavares & Companhia, onde
um dos empregados, seu conhecido, conversa com um homem forte, tipo
atlético, cigarro e palito no canto da boca. O empregado apresenta o homem ao
repórter.
- É o autor de O Orvalho Vem Caindo.
A feliz coincidência permite ao jornalista entrevistar Kid Pepe aqui mesmo.
Ouve dele a confissão de que nada entende de música, fica sabendo de detalhes
de sua vida difícil, a pobreza da infância, o trabalho como vendedor de jornais e
bilhetes de loteria, a surra que levou numa luta que lhe custou duas costelas, a
decisão de tornar-se compositor. Naturalmente, O Orvalho Vem Caindo é o seu
maior sucesso até agora.
- Tenho grande prazer em dizer que o fiz de parceria com Noel Rosa, a
quem muito admiro. Se quiser sair um pouquinho, garanto que o encontramos.
- Aonde? - pergunta o repórter.
- Por aí em qualquer bar.
O repórter e Kid Pepe saem juntos. No Café Trianon, do outro lado da Rio
Branco, em frente ao Nice, de fato encontram Noel. Kid Pepe pede uma cerveja
enquanto o repórter fica observando Noel ("... um verdadeiro gênio da música
popular", escreverá em sua reportagem). Já sentado à mesa, arrisca a pergunta
que o intriga: - Como foi que vocês compuseram O Orvalho Vem Caindo?
Os dois compositores se entreolham.
- Sentindo a vida carioca - responde Kid Pepe em seguida.
Noel é ainda mais vago:
- Talvez chorando, debaixo das estrelas que se apagavam. É tão triste a
despedida da noite...
Noel põe-se a elogiar o novo parceiro, diz que suas músicas são todas boas,
que Kid Pepe compõe com alma.
- Mais uma cerveja! - grita para o garçom.
Continua derivando. Lembra que o samba não vem apenas dos morros.
- Mas também das ruas planas e largas da cidade, por onde passam de
madrugada os carrospipas de vassouras cilíndricas.
O repórter, contudo, insiste:
- Mas como foi que vocês criaram este samba?
O entrevistador nota "novo entreolhar misterioso e sorrisos ainda mais
enigmáticos" nos dois entrevistados. Kid Pepe fala: - É melhor silenciar sobre
isso. E Noel:
- Sim. Não devemos dizer. É segredo nosso.
Kid novamente:
- Se faz questão desse pormenor, diga que foi em qualquer lugar.
Noel arremata:
- No Café Belas-Artes, por exemplo...
O repórter desiste. A matéria que escreverá contando em detalhes seu
encontro com Kid Pepe e Noel Rosa(3), o diálogo em torno de O Orvalho Vem
Caindo, a história de um sucesso cuja origem parece envolta em mistério, tudo
isso só servirá para aumentar as suspeitas de que, na criação deste esplêndido
samba, Noel entrou com música e letra. Kid Pepe, com os músculos.
3. "Melodias do coração no tumulto de Momo - Conversando com três homens que cantam o que sentem na alma", reportagem não assinada, in O Globo de 2 de fevereiro de 1934 (páginas 1
e 3). Trata-se de matéria realmente repleta de pistas e insinuações, como atestam os diálogos transcritos. O terceiro homem com quem o repórter conversou era Antônio Nássara, a propósito de Tipo Sete,
marcha que ele e Alberto Ribeiro fizeram para o mesmo carnaval de 1934.

Volta e meia Noel desaparece das conversas de esquina do Ponto de 100


Réis. Fica difícil encontrá-lo neste Rio de Janeiro que, ao contrário do que
podem pensar alguns de seus amigos de Vila isabel, não se limita aos quarteirões
entre o Largo do Maracanã e a Praça 7. Seus horizontes estão muito mais além.
Gosta de bandarrear por aí, mudando de ponto e destino a cada noite. Por isso,
tanto pode estar num festival em Bangu como numa roda de choro na Cancela,
pernoitando no barraco de Cartola como confabulando com Ismael Silva no
Estácio. Pode ter arranjado nova namorada no mais longínquo dos subúrbios. Ou
quem sabe, depois de vaguear pelas esquinas do Centro, ou de tomar dois ou três
tragos num escondidinho da Lapa, não estará comprando amor barato numa
pensão da Joaquim Silva ou da Conde de Lajes? O subúrbio e a Lapa. Eis aí
territórios muito especiais nas incansáveis peregrinações de Noel Rosa por sua
cidade. Num, sente-se à vontade, em casa. Noutra, deixa que se solte seu espírito
boêmio. Ama o subúrbio, a vida simples e a gente humilde que o habita. No
fundo, é tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. Nestes dias em que se fazem
cada vez mais freqüentes as migrações dos moradores lá de longe para o Centro
(ou deste para os bairros litorâneos), movidos quase sempre pela necessidade de
mostrarem o quanto melhoraram de vida, ou quanto ascenderam socialmente,
Noel prefere a direção oposta. São sedutoras mas enganosas as luzes da cidade.
já o subúrbio é ambiente de completa liberdade. Como o próprio Noel nos
garante no lindo samba intitulado Voltaste, crônica carioca da melhor feitura, o
malandro de volta ao subúrbio depois de constatar que não há nada de novo lá no
centro da cidade. E nessa volta, esbarra no orgulho da mulher suburbana, aqui
enaltecida por um poeta que não é muito de enaltecer mulheres. Um samba
antológico:
Voltaste novamente pro subúrbio,
Vai haver muito distúrbio,
Vai fechar o botequim.

Voltaste e o despeito te acompanha


E te guia na campanha
Que tu fazes contra mim.

O guarda, que apitava ressonando,


Anda alerta envergando
O seu capote de lã.

Voltaste para fabricar defunto,


Para fornecer assunto
Aos diários da manhã.

Voltaste novamente sem dinheiro,


Tapeando o açougueiro
Que não tem golpe de vista.

Voltaste com um cão muito valente


Que só tiras da corrente
Quando chega o prestamista.

Voltaste pra mostrar ao nosso povo


Que não há nada de novo
Lá no centro da cidade.

Voltaste demonstrando claramente


Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade.

Voltaste, mas falhou o teu projeto,


Não te dou o meu afeto,
Quando eu quero eu sou ruim.
Voltaste confessando sem vaidade
Que a tua liberdade
É viver bem preso a mim.

Tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. É sempre de modo edificante -


quando não emocionado - que canta o subúrbio. Como nesta preciosidade que é
Meu Barracão, um simples casebre da Penha adquirindo vida nos versos que lhe
dedica Noel ("... eu desconfio que ele foi me procurar..."). Penha, por sinal, que
será o bairro mais cantado por Noel em toda a sua obra, desde os tempos de São
Bento(4).
4. Noel Rosa compôs, sozinho ou com parceiros, quatro sambas falando em Vila Isabel: Eu Vou Pra Vila, Bom Elemento, Feitiço da Vila e Palpite Infeliz. E oito em que menciona a Penha:
Cumprindo a Promessa, Feitio de Oração, Fiquei Rachando Lenha, Meu Barracão, Não há Castigo, De Qualquer Maneira, Eu Agora Fiquei Mal e Chuva de Vento.

Mas Meu Barracão, tanto quanto uma homenagem à Penha, é uma


nostálgica canção suburbana:
Faz hoje quase um ano
Que eu não vou visitar
Meu barracão lá da Penha
Que me faz sofrer
E até mesmo chorar
Por lembrar a alegria
Com que eu sentia
O forte laço
De amor que nos unia.

Não há quem tenha


Mais saudades lá da Penha
Do que eu - juro que não!
- Não há quem possa
- Me fazer perder a bossa,
- Só a saudade do barracão.

Mas veio lá da Penha


Hoje uma pessoa
Que me trouxe uma notícia
Do meu barracão
Que não foi nada boa:
Já cansado de esperar,
Saiu do lugar.
Eu desconfio
Que ele foi me procurar...

A Lapa. Não há boêmio que resista aos apelos deste bairro carioca que
alguns intelectuais gostam de chamar de Montmartre brasileira(5) .
5. Não era raro entre os intelectuais que freqüentavam a noite a associação da Lapa com Montmartre. Como se de fato considerassem o bairro carioca uma réplica da Paris boêmia que tinham
conhecido ou sonhavam conhecer. Estudantes das muitas repúblicas ali existentes intitulavam se "montmartroises". Henrique Pongetti, em sua crônica Lapa 1930, publicada em 1962 em O Globo, fala de
"atmosfera montmartroise" ao se referir especificamente ao cabaré Royal Pigalle. Diz Gastão Cruls em Aparência do Rio de Janeiro (volume II, página 727): "A zona da Lapa prepara-se para ser o nosso
Montmartre, um Montmartre rasteiro, na verdade, mas que nas perspectivas abertas pelo álcool talvez fizesse do Convento de Santa Teresa o Sacrê-Coeur sobre a butte." E Brito Broca, na crônica A
Lapa: Ontem e Hoje, publicada postumamente em 1965 na Antologia da Lapa organizada por Gasparino Damata, observa "um certo ar montmartroise" no quarteirão do Grande Hotel da Lapa, depois
Cine Colonial, hoje Sala Cecília Meireles.
Noel Rosa não é exceção. Adora suas ruas estreitas, os sobrados suspeitos,
os cabarés mal-iluminados, os botequins sujos, locais onde bebem, cantam,
amam, sofrem, mas acima de tudo vivem - tirando da noite o que de melhor a
noite tem para dar - turbulentas populações de mulheres, rufiões, artistas,
malandros, poetas, pederastas, mendigos, jogadores, policiais, viciados, grã-
finos, políticos e o que mais se possa imaginar. Só a Lapa daria todo um livro.
Na verdade, muito ainda se escreverá sobre ela. Romances, contos, poemas,
músicas, memórias. A Lapa é um grande cenário, uma grande história. E Noel,
um de seus personagens.
Ainda é um freqüentador de bordéis. Sente-se bem mais à vontade numa
dessas pensões da Lapa do que em certas festinhas familiares onde só consegue
se desinibir a custo de muitos goles de Cascatinha, sorvidos após uma saudação
peculiar, copo erguido sobre a cabeça: - Loura como as louras espigas de milho,
falsa como as mulheres... Eu bato com ela no bucho, ela bate comigo no Chão!
Não é muito exigente com as mulheres que fazem amor por profissão.
Pouco importa que sejam feias, já passadas, gordas ou esquálidas. Não esconde a
preferência pelas morenas, mas isso não quer dizer que rejeite as ruivas ou as
louras alquimiadas como Julinha. Não é propriamente um malandro, desses que
exploram mulheres e acreditam que só pancada as amacia. Seus sambas
pregando esse tipo de malandragem não devem ser tomados ao pé da letra. São
mais pose do que convicção, menos vontade de agir do que de cantar como
malandro. Sempre foi assim. Já em 1930, quando tinha apenas dezenove anos,
compunha sambas como este Vingança de Malandro, falando de uma esperteza
que na verdade nunca teve:
É vivendo que se aprende
O malandro tudo entende
Eu espero a minha vez
Já faz hoje mais de um mês
Que ela me abandonou
Pra morar com um português.

Iludindo com carinho


Explorou aquele anjinho
Pôs a casa no leilão
E depois meteu o braço
Bem na cara do palhaço
Veio me pedir perdão

Ela hoje tem a nota


Pra comprar minha derrota
Seu amor vou aceitar
Pois assim eu vou tomar
Pouco a pouco o seu dinheiro
E depois vou me pirar!

Os anos passaram e a pose não mudou: de vez em quando Noel ainda se


traja de malandro em seus sambas. Como neste que ele e Ismael Silva vão
completar a partir de um estribilho de Orlando Luís Machado, um branco do
Catumby cuja passagem pela história da música popular vai se dever
praticamente a esta parceria com os poetas da Vila e do Estácio(6).
6. Orlando Luís Machado aparece sozinho como autor no selo do disco em que Noel e Ismael gravaram Escola de Malandro. O samba foi seu único sucesso, assim mesmo de dimensões
modestas. E por muito tempo funcionou como seu cartão de visitas: "Sou o autor de Escola de Malandro..." Como tal - e acompanhado do parceiro Jorge Dutra, amigo dos tempos de infância na Rua
Itapiru - visitou redações de jornal às vésperas do carnaval de 1933, numa infrutífera tentativa de divulgar suas composições Estou Sem Batente e Veneno Contra Veneno, que sequer seriam gravadas. O
Diário Carioca de 20 de janeiro de 1933 registra, com detalhes, uma dessas visitas.

O samba, que estes dois gravam em dupla na Odeon, intitula-se Escola de


Malandro e fala de uma doutrina que Noel Rosa jamais porá em prática:
A escola do malandro
É fingir que sabe amar
Sem elas perceberem
Para não estrilar...
Fingindo é que se leva vantagem
Isso, sim, é que é malandragem
(Quá, quá, quá, quá...)

Oi, enquanto existir o samba


Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu,
Jesus Cristo manda dar!

Tomo vinho, tomo leite,


Tomo a grana da mulher,
Tomo bonde, automóvel,
Só não tomo Itararé(7)

Oi, a nega me deu dinheiro


Pra comprar sapato branco,
A venda estava mais perto,
Comprei um par de tamanco.

Pois aconteceu comigo


Perfeitamente o contrário:
Ganhei foi muita pancada
E um diploma de otário.
7. Itararé, a batalha que não houve. Noel refere-se ao episódio da Revolução de 30 em que as tropas governistas (6 mil e 200 homens comandados pelo coronel Paes de Andrade) ficaram
quase três semanas em Itararé, sul de São Paulo, defendendo-a de forças revolucionárias (7 mil e 800 homens chefiados por Miguel Costa). Depois de algumas trocas de tiros e escaramuças menores,
anunciou-se para o meio-dia de 25 de outubro uma segunda batalha - "a maior do século", segundo previsão dos jornais que apoiavam os revoltosos, certos de que eles massacrariam os adversários.
Expectativa em todo o país, combatentes entrincheirados, canhões Krupp a postos, nada acontece. Antes que soe o primeiro tiro o deputado Glicério Alves atravessa as linhas empunhando uma bandeira
branca e vai parlamentar com Paes de Andrade, pedindo-lhe que se renda: Washington Luís foi deposto ontem. Os governistas se rendem, não há batalha. Como diz Noel, "... só não tomo Itararé."

A maioria dos rapazes de classe média de Vila Isabel tem pouca intimidade
com este mundo de desocupados que vivem à custa de mulher. Almirante, João
de Barro, Alvinho, é impensável vê-los consumindo noites em bares e bordéis
baratos. Ou pregando, ainda que só em teoria, o tipo de malandragem que Noel e
Ismael cantam. Mesmo os outros, Nássara, Christovam de Alencar, mais
boêmios que os ex-integrantes do Bando de Tangarás (e certamente mais
identificados com o espírito vagabundo do Ponto de 100 Réis), raramente andam
por onde Noel anda. E nunca tão à vontade.
À vontade, mesmo, eles se sentem com as moças do bairro. As noturnas e
as vespertinas. Distinção que aprendem a fazer muito cedo, a partir dos padrões
conservadores e indisfarçadamente elitistas da comunidade pequeno-burguesa a
que pertencem. Vespertinas são as moças de famílias iguais às suas, Caseiras e
bem-comportadas, vivendo numa espécie de redoma enquanto o casamento não
chega. Nas raras vezes em que saem, o fazem em grupo, de braços dados com as
amigas, de tardinha, para breves e vigiados passeios pelo Boulevard. Namoram
às escondidas. No portão, por bilhetes, recados ou olhares. Misteriosas,
indecifráveis, desejadas, mas respeitadas (para não dizer intocáveis) , são as
irmãs ou futuras esposas dos rapazes de classe média de Vila Isabel.
Já as noturnas não se podem dar ao luxo de passear pelo Boulevard à luz do
sol. Trabalham o dia todo. Como operárias de fábrica, domésticas, balconistas,
lavadeiras. Largaram cedo os bancos de escola. Pobres, vestem-se
modestamente. Não são misteriosas nem indecifráveis, muito menos respeitadas
como as outras. Pelo contrário, sua humildade - refletida não só nas roupas
baratas, mas também nos gestos, no modo de falar - é tomada como sinal verde.
De fato, raramente dizem "não". Ou por medo (alguns de seu conquistadores são
filhos de gente importante, quando não de seus próprios patrões). Ou porque,
ingenuamente, acreditam que eles possam gostar delas. Não gostam. Gostam das
vespertinas. As noturnas não passam de quebra-galhos, raparigas tratadas
pejorativamente como "empregadinhas" e que eles só assediam nas ruas escuras,
nos terrenos baldios, nos lugares ermos, longe dos olhos de suas famílias.
Aqui, Noel é exceção. Não só prefere as noturnas como não se importa em
tornar ostensiva essa preferência. A rigor, Clara tem sido a única vespertina de
sua vida, um namoro cujas constantes fugas dele expressam nítida resistência a
um tipo de relacionamento que sempre acaba diante do altar (e o casamento é
algo que jamais fará parte de seus planos). Com as noturnas não corre esse risco,
além de gostar, sinceramente, delas. São moças simples, boas, amigas, pouco
importa se pobres.
O fato de desfilar pelas ruas, a pé ou de carro, ao lado das namoradas
humildes que seus companheiros preferem esconder - as "empregadinhas" da
noite - e de fazer isso feliz da vida, escandaliza as pessoas. E mantém sempre
atual o velho comentário dos vizinhos: - Este filho de dona Martha só vive
metido com gentinha.
Lapa, na região central do Rio de Janeiro, anos 1900. Em segundo plano, os Arcos da Carioca e o Morro de Santo Antônio, seguidos das fachadas da rua Evaristo da Veiga. No fundo, o
Mosteiro de São Bento, as torres e a cúpula da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, a Ilha das Cobras e as torres da Igreja de Nossa Senhora do Carmo

Largo da Lapa, 1908


Capítulo 28
CASA, NÃO CASA
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa,
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa.
Capricho de Rapaz Solteiro

Desde que comprou o Pavão, pago a peso de samba, Noel Rosa tem podido
levar suas namoradas a passeios bem mais distantes e prolongados. Capota
arriada, morena de fábrica sentada ao seu lado no banco da frente (nenhuma
vespertina lhe aceitaria carona), ele passa pelo Ponto de 100 Réis fazendo soar a
bizarra buzina do seu carro e acenando para os amigos que conversam na
esquina. Pé no acelerador, toma o caminho de Jacarepaguá, Leblon, Campinho,
Deus sabe onde.
- Não é justo!- protesta um dos amigos. - De carro, não é justo.
Uma reunião é feita no Martinez para que os rapazes do bairro estudem
uma forma de enfrentar a "concorrência desleal" de Noel, que agora, com o
Pavão, leva nítida vantagem sobre todos eles na caça às "empregadinhas" das
redondezas. Qual delas vai querer sair a pé, passar pelo desconforto dos muros e
dos capinzais, quando Noel tem a lhes oferecer a maciez dos bancos do
Chevrolet? É evidente que, nessa corrida, os motorizados sempre chegam na
frente. Por isso a turma se reúne. O que fazer? De quem é a sugestão não se sabe
ao certo, mas é Christovam de Alencar, o Armando Reis, quem fica incumbido
de transmiti-la a Nássara.
- O Noel ouve muito o Nássara - justifica alguém.
Nássara é convocado às pressas a uma das mesas do Martinez. E
Christovam vai dizendo o que a turma quer: que ele convença Noel de que a
concorrência é mesmo desleal, de que o carro é trunfo forte demais.
-Eo que querem vocês que ele faça? Venda o carro?
- Não - intervém Christovam. -Que pelo menos, cada vez que saia com uma
pequena, chame um de nós. Quer dizer, seremos sempre dois casais. É mais
justo.
Nássara concorda em servir de intermediário:
- Que diabo, Noel! Não custa nada. Você sai com a sua menina no banco da
frente e deixa o de trás para que um de nós leve alguém. É justo. A gente faz um
revezamento, hoje eu, amanhã o Reis, depois o Seringa, o Arnaldo Amaral, até
que todos tenham sua vez.
Noel não se opõe. Pensando bem, até que a reivindicação de Nássara traz
vantagens. É verdade: onde cabem dois cabem quatro. E além disso... Bem, Noel
aceita dividir o conforto do Pavão com qualquer dos amigos e sua respectiva
pequena. Depois do protesto da turma - condignamente representada por
Nássara-ele continua passando pelo Ponto de 100 Réis, fazendo soar a buzina do
carro, acenando para os amigos que conversam na esquina, morena de fábrica
sentada ao seu lado no banco da frente. Só que agora, no de trás, vai sempre
outro casal.
Lindaura é morena, mas não de fábrica. Trabalha na Lavanderia
Cooperativa, na Rua Maxwell, e já foi aluna da escolinha de dona Martha. Ali,
ele tocando violão à sombra da goiabeira, ela brincando de roda no quintal
transformado em recreio, os dois se conheceram faz algum tempo. Lindaura era
então uma menina recém-saída do bê-a-bá da Escola Rio Grande do Sul, na
Praça 7. Hoje, dezessete anos, crescida, corpo de mulher feita, nada tem a ver
com a garotinha daqueles tempos. É, sim, uma das muitas moças que Noel
assedia ao volante do Pavão neste outubro de 1933. Ou uma das tantas garotas
humildes que os rapazes do bairro perseguem pelas ruas escuras, segundo as
regras do seu jogo.
Lindaura, naturalmente, sabe que Noel é cantor de rádio, grava discos, faz
música para o carnaval. Mas impressiona-se menos com isso do que com o velho
Chevrolet cuja buzina Noel aciona, repetidas vezes, sempre que a vê. Ela não
tarda a aceitar o convite para umas voltas.
Os dois passam a sair juntos quase todas as noites. De início, sozinhos.
Depois, diante do protesto da comitiva chefiada por Nássara, sempre outro casal
lhes faz companhia, ocupando o banco de trás. Os passeios são a princípio curtos
e inocentes, até a Praça Saenz Pena, o Grajaú, no máximo até o Rio Comprido
ou Boca do Mato. Mais tarde Noel envereda por lugares mais distantes e
desertos, Leblon, Joá, Alto da Boa Vista. Nem sempre os amigos se divertem.
Quando os passeios se alongam, por exemplo, até onde haja ladeiras puxadas
demais para o fôlego do Pavão, surgem problemas. Se o carro enguiça - e já que
dentro dele quem dá as ordens é Noel - cabe ao outro descer e empurrar. O que
acontece muitas vezes, pois o Pavão não é mesmo de subir ladeira. Christovam
de Alencar, Sylvio Pinto, um dos irmãos Anacleto, Waldemar, Henrique
Gonçales, nenhum deles escapa.
Gonçales - cujo nome se escreve mesmo com cedilha e não com zê como o
dos antepassados espanhóis - também é sambista. Com ele Noel compôs Faz de
Conta Que Eu Morri, samba que os dois jamais ouvirão gravado e que
Gonçales, sobrevivendo a Noel em alguns anos, terá sempre dificuldade de
provar que também é seu:
Faz de conta que eu não vivo,
Faz de conta que eu morri,
Que eu me encarrego de sumir.
Faz de conta que a saudade,
Essa dor que nos invade,
Já deixou de existir.

Amar deve ser para nós


Um divertimento
E não o eterno ciúme que traz sofrimento.
Desiste de me procurar,
Não quero escutar
Declarações de amor,
Pois de tanto chorar
Minha fisionomia já mudou de cor.

Não quero lembrar esse mal que nos perseguiu,


Nem quero lembrar uma jura que não se cumpriu.
Não deves mais telefonar
Mandando me chamar
Porque não dou consulta
A quem escreve carta
Sem botar o selo pra eu pagar a multa.

Um dia Gonçales ainda será conhecido no meio, terá um samba seu gravado
com sucesso por Antônio Moreira da Silva, apesar do erro de português logo na
primeira rima ("Amigo urso, saudações polares... Ao leres esta hás de te
lembrares...")- Mas, por hora, é apenas o Laranja, figura conhecida no Ponto de
100 Réis, aprendiz de compositor e companheiro de Noel nas aventuras
amorosas a bordo do Pavão.
Uma dessas aventuras os leva certa noite ao Alto da Boa Vista. Cansado
como sempre, o Pavão enguiça. O local está deserto, a escuridão é assustadora.
Nem um lampião, nem uma mísera lâmpada acesa numa janela qualquer. Na
verdade, nem parece haver janela. Este é um lugar ermo, desolado, um
cemitério. Noel tenta fazer o carro pegar.
- Pelo jeito, Laranja, vamos ter de passar a noite aqui.
- Que história é essa?- reage Lindaura.
- O Pavão morreu.
As moças se apavoram. A namorada de Gonçales começa a chorar,
Lindaura prende a respiração. Se houvesse luz o bastante para se saber como
estão os rostos das duas, só se veria palidez, suor, medo. A namorada de
Gonçales continua chorando, cada vez mais alto. Lindaura, aparentemente mais
corajosa, nada diz. Noel insiste, Gonçales torce e - alívio geral - o carro pega.
Na descida, a namorada do amigo, mais calma, choro já superado, talvez
ocorra a Noel elogiar a bravura de Lindaura. Se isso lhe passa pela cabeça, é por
pouco tempo. Só até ele ver o banco molhado do carro, as pernas de Lindaura
escorrendo. Não é tão corajosa como parecia.
- Desculpe-me... - diz embaraçada. - Mas quase morri de medo.
Esse susto, mais o fato de o Pavão não ser mesmo um local confortável e
romântico o bastante para se namorar, leva Noel a só usar o automóvel como
transporte. Ele e Lindaura passam a se encontrar em outros lugares. Como as
cabines (na verdade, barracões de madeira) que dona Chiquinha aluga na Ponta
do Caju, de dia para banhistas trocarem de roupa, de noite para casais. Ou como
um dos muitos hotéis baratos que há no centro da cidade. E já agora,
evidentemente, os dois e mais ninguém.
QQ-r -r-ma voz do Rio para todo o Brasil." É com esta divisa que
Christovam de Alencar abre e fecha o seu programa semanal pela PRB-7, Rádio
Sociedade Educadora do Brasil. Um programa cada vez mais ouvido, não só por
suas próprias qualidades mas também por haver, em relação ao espetáculo
radiofônico rival o de Ademar Casé produz, já agora na Transmissora, uma certa
má vontade que ainda vai se transformar em campanha. O Casé paga mal,
queixam-se alguns artistas. É muito exigente, dizem outros. Não faz nada senão
reclamar, garantem outros mais. Noel é um que vive ameaçando deixar o Casé.
Diz isso a Orestes Barbosa e este passa a ser uma espécie de mentor da
campanha, escrevendo um artigo em que acusa Casé de nunca ter sabido
preservar seus artistas, ao contrário de Christovam de Alencar(1).
1. Avante!, 2 de dezembro de 1933 (página 5).

Mas essas briguinhas são muito comuns, hoje fustigam o Casé, amanhã o
cobrem de elogios. Christovam pode ser o rei agora e daqui a alguns meses a
coroa estar na cabeça de Waldo de Abreu, Luís Vassalo ou Gastão Lamounier.
Nos últimos meses de 1933, contudo, grande número de artistas tenta amotinar o
Casé dando apoio aos programas concorrentes. O sabor do rádio está muito no
molho dessas contendas.
Sexta-feira, 10 de novembro. O Teatro João Caetano está lotado. Há gente
até dos lados, sentada entre as cadeiras e a parede. Ou mesmo de pé, lá atrás,
onde haja espaço. O festival de samba que Christovam de Alencar organizou
congrega alguns dos grandes astros do momento. Todos apoiando o Amigo
Velho (ou fustigando o Casé?). Um festival de alto nível, Sílvio Caldas, seu
irmão Murilo, João Petra de Barros, Custódio Mesquita, Nonô, Luís Americano,
Russo do Pandeiro. Embora sendo de samba, há nele lugar para as emboladas de
Manezinho Araújo e para as anedotas de Jorge Murad. Num dos melhores
momentos da noite, Noel Rosa canta um de seus recentes lançamentos: Arranjei
um Fraseado.
Arranjei um fraseado
Que já trago decorado
Para quando lhe encontrar:
"Como é que você se chama?
Quando é que você me ama?
Onde é que vamos morar?"

Como eu vou indagar


Quando é que eu posso lhe encontrar
Para conseguir combinar
Onde é o lugar
Em que você quer morar?

Como vou saber ao certo


Quando é que você vem ficar perto
E quem já designou
Onde é o lugar
Do nosso lindo château?

Como é que você se chama?


Quando é que você me ama?
Onde é que vou lhe falar?
Como é que você não diz
Quando é que me faz feliz,
Onde é que vamos morar?

No domingo, 12 de novembro, Lindaura sai de casa por volta das seis da


tarde. A mãe, Olindina Pereira da Motta, é realmente operária da Fábrica
Confiança. Sergipana, veio com o marido, José Martins Neves, e os filhos,
Lindaura e Zeca, tentar a sorte no Rio, que diziam ser cidade de grandes
oportunidades. Em 1925, ficou viúva. Mesmo casando-se de novo, teve de
empregar-se, pôr os filhos para trabalhar, todos ajudando a prover o sustento da
casa de vila número 2 da Rua Maxwell,. 74, onde moram. A vida transformou
Olindina numa mulher dura, enérgica, desconfiada. Tem rígidos princípios
morais e tenta passá-los aos filhos. Nem de longe suspeita das saídas de
Lindaura com Noel.
Neste domingo, novo passeio programado, Lindaura chama a amiga Maria
da Glória Avelina, empregada doméstica de uma casa em frente, e pede-lhe
cobertura. Pretende voltar tarde, depois da meia-noite.
- Vou sair de carro com Noel. Mas não diga nada à mamãe.
À dona Olindina, Lindaura explica que vai a uma festa com Maria da Glória
Avelina. Tudo acertado, as duas moças se dirigem até a esquina de Maxwell com
Pereira Nunes. Ali, ao volante do Pavão, Noel já está à espera. Lindaura diz
"boa-noite" à amiga e entra no carro. Maria da Glória Avelina volta, procura
entrar em casa sem ser vista por dona Olindina. Para todos os efeitos, ela e
Lindaura divertem-se numa festinha domingueira em casa de família.
A segunda-feira parece ser um dia como outro qualquer. Noel talvez tenha
de ir até a cidade, fazer um vale no Casé. Ou acertar detalhes para o próximo
domingo, agora que ele, Castro Barbosa, Jorge Fernandes, Nonô, Sílvio Caldas,
Zaíra de Oliveira e Cláudio Bueno Rocha acabam de renovar seus contratos com
o programa. Uma segunda-feira como outra qualquer, mas só na aparência.
No fim da tarde, Noel dorme profundamente no quarto dos fundos, quando
é despertado pelos safanões de Hélio.
- Noel! Noel! A polícia está aí te procurando.
Pouco depois, Noel ainda atordoado, a família se reúne na sala ao lado da
cozinha. Dois policiais, investigadores da 16a Delegacia, medem as palavras
para dizerem, na frente de dona Martha, que há uma queixa contra o filho sobre
a mesa do comissário. Coisa séria, já anotada no livro de partes. Martha e Hélio
estão perplexos.
- Mas de que se trata?
Os policiais explicam que uma certa dona Olindina, residente aqui perto,
procurou o comissário para acusar formalmente Noel.
- De quê?- indaga o próprio Noel finalmente despertando.
- De rapto.
"Rapto" é palavra que por esta época costuma sobressaltar as pessoas, o
caso Lindbergh há mais de um ano ocupando com destaque as páginas dos
jornais de todo o mundo, o Brasil inclusive. Passado o susto inicial de Martha, os
policiais explicam que Noel é acusado de ter raptado não um bebê, mas uma
moça de dezessete anos. Tem de ir à delegacia, o comissário quer interrogá-lo.
Martha está aflita: - Mas o que você andou fazendo?
-Nada, absolutamente nada - responde com firmeza.
Forma-se uma pequena confusão na sala ao lado da cozinha. Os policiais
até que se mostram pacientes, dirigindo-se a Noel em tom brando. Mas os
protestos do acusado, as perguntas da mãe, o espanto do irmão, tudo isso
converte a cena num bate-boca nervoso que acaba atraindo a atenção de Clara na
sala da frente. Ela interrompe a aula do jardim da infância, levanta-se, toma a
direção da cozinha. Não chega muito perto, apenas o bastante para ouvir o que
dizem. Apavora-se ao saber que Noel está sendo levado para a Delegacia.
Segundo os policiais, por ter raptado uma menor. Será verdade? Noel sai entre
os dois homens da lei. Clara finge que não o vê. Lá dentro, Martha e Hélio nem
sabem o que dizer.
Na 16a Delegacia Policial - no Boulevard, quase esquina de Silva Pinto -
todos conhecem Noel Rosa. De conversa de esquina, de vista ou de nome. E
gostam dele. Por isso não o tratam como um criminoso, um preso comum, mas
como um menino surpreendido em mais uma travessura.
- Ora, ora, seu Noel...
O próprio comissário explica-lhe que uma senhora, Olindina Pereira da
Motta, esteve de manhã na delegacia para acusá-lo formalmente de haver
raptado a filha, Lindaura. A moça não dormiu em casa de ontem para hoje. Dona
Olindina, muito preocupada, apelou para os vizinhos, até que uma moça, Maria
da Glória Avelina, contou tudo, a festa que não havia, Lindaura entrando no
carro dele, o passeio. Enfim, a consumação do crime.
- Mas que crime? reage Noel.
De rapto, repete o comissário. Noel jura que não houve nada disso. De fato
saiu com Lindaura, os dois passaram a noite num hotel da Rua Senador Euzébio,
ele abusando um pouco da bebida, pegando no sono, esquecendo-se da hora.
Quando acordou, já era de manhã. Mas não houve rapto. Lindaura saiu com ele
porque quis, ninguém a forçou.
-Mas a moça é menor de idade, seu Noel.
Verdade. Lindaura tem dezessete anos. Crime de sedução de menor? Noel
jura que não. Que história é essa de rapto e sedução de menor, crime? Não é o
primeiro homem na vida dela. Pode até provar. Mas o comissário diz que a mãe
da moça não quer conversa: ou Noel repara o erro, ou vai para a cadeia.
- Reparar o erro?
- Sim, casando.
- Pois eu vou para a cadeia.
O comissário quer resolver tudo da melhor maneira. Já pediu à dona
Olindina para trazer a filha à delegacia, é indispensável ouvir seu depoimento.
Noel que se tranqüilize, ninguém vai prejudicá-lo. Se não fez nada, nada tem a
temer. Mas deve voltar à delegacia amanhã.
Em casa, Marta e Hélio querem saber o que aconteceu. Nada, reafirma
Noel. Absolutamente nada. Pede que a mãe e o irmão não acreditem nessa
absurda história de rapto. Mais um ou dois dias resolverá tudo. Com o
comissário, com Lindaura, com a mãe dela. Deve ter havido um mal-entendido,
um nó fácil de desatar.
Mas não será tão simples assim. Lindaura realmente vai à delegacia e, no
seu depoimento, tenta inocentar Noel. De fato passaram a noite num hotel, mas
não houve rapto. Envergonhada, confirma não ter sido ele o primeiro homem em
sua vida. É um depoimento nervoso, titubeante, contraditório. Começa dizendo
ter passado a noite na casa de tia Filó, na Ponta do Caju, para acabar contando
história igual à de Noel. Quando o comissário, instado por dona Olindina,
pergunta-lhe quem a desonrou (por mais humilhante e cruel que seja, a pergunta
é considerada fundamental na abertura de processos de sedução, rapto e
similares), ela responde: - Foi o José... José Martins Neves.
Está tão nervosa que nem se dá conta de que este era o nome do pai, morto
há tanto tempo. De qualquer modo, o comissário acha que as evidências bastam
para incriminar Noel: ele próprio não admitiu ter levado uma menor para passar
a noite em sua companhia num hotel da Cidade Nova? Então, o processo será
instaurado. Mas, como a Senador Euzébio, local em que se teria consumado a
sedução, pertence à jurisdição da 14a Delegacia Policial, é para lá que o caso vai
ser enviado. O comissário ainda quer contemporizar, tentando fazer dona
Olindina crer que são muitas as possibilidades de arquivamento da queixa. Por
que não esquece tudo isso? Seria melhor para todos, principalmente para a filha.
- Não, senhor! Exijo reparação.
O caso não será enviado para outra jurisdição, como pretendia o comissário.
Irascível e determinada, Olindina vai ao chalé para uma conversa franca com os
Medeiros Rosa. Quer que Noel se case com a filha.
- Se for mesmo o responsável - diz Martha - eu lhe prometo que o fará. A
senhora pode deixar que eu vou ter uma conversa com ele.
De uma hora para outra - e por bastante tempo - o chalé é transformado em
palco de constantes discussões, Martha e Noel, Martha e Olindina. No início,
fala-se à meia-voz, na cozinha ou nos fundos da casa. Mas pouco a pouco a mãe
de Lindaura se convence de que Noel não quer mesmo saber de casamento, de
que Martha não consegue dobrar o filho. É a partir daí que Olindina muda o tom
de voz, fazendo cenas no chalé, xingando, esbravejando, acusando os Medeiros
Rosa de "desencaminhadores de menores", gente sem palavra. Martha teme que
tais cenas prejudiquem a escolinha, crianças inocentes ouvindo o que não
devem. Por isso, quando Olindina chega, vai tratando de dizer: - A senhora se
incomodaria de conversarmos aqui ao lado?
E vão para a casa de Dorica. Ali a mãe de Lindaura pode dizer o que bem
entender, na altura de voz que quiser, pois os alunos não a ouvirão. Mas as cenas
tornam-se insuportáveis. Até que numa delas, ao ver a mãe.tão angustiada,
premida pelos impropérios de dona Olindina, Hélio intervém:
- Mas o que a senhora quer, afinal?
- Que seu irmão se case com a minha filha.
- Muito bem. Se é para a senhora deixar minha mãe em paz, eu me caso no
lugar dele! Hélio, dezoito para dezenove anos, um menino, se oferecendo para
casar-se no lugar do irmão. Que coisa mais absurda! Dorica pede que ele fique
calmo, Martha bebe água com açúcar, Olindina insiste. Onde estará Noel? Desde
que essas discussões começaram a quebrar a paz do chalé, ele simplesmente
desapareceu. Entra e sai na ponta dos pés, evita falar com a mãe, nem quer ver
dona Olindina. Mas Martha está apreensiva, temendo que o processo se instaure,
que tudo se complique. Daí achar que o casamento seria mesmo o melhor
caminho. É com todas essas coisas na cabeça que ela própria vai um dia
conversar com o comissário.
Jornal de oito páginas, fundado há poucos meses, o Avante! intitula-se um
"diário nacional socialista". Diz-se inteira mente voltado para os interesses do
operariado, grande parte de suas matérias está dentro dessa linha e até um ou
outro anúncio reza de fato por tal cartilha. Como o do Dr. Lacerda Filho,
especialista em "ginecologia proletária". Mas de proletário, mesmo, o jornal tem
pouco. Fundado e dirigido por Augusto Pamplona e Moura Carneiro, não é por
acaso que seu nascimento se deu logo que Adolf Hitler subiu ao poder na
Alemanha, no último 30 de janeiro. O Avante .'simpatiza com as idéias do
Führer, combate os comunistas, defende o anti-semitismo, reproduz discursos de
líderes e pensadores nazistas.
As duas seções mais lidas do jornal não tratam, contudo, de política. Uma
delas, assinada por Orestes Barbosa, noticia o que se passa nos bastidores do
rádio e da música popular, repleta de intrigas e insinuações bem no estilo do
autor: "Por que será que o holandês da Philips proíbe sambas e emboladas nos
programas de sua rádio?" A outra seção, ocupando toda a página oito, destina-se
a reportagens sensacionalistas levantadas pela "caravana do Avanter, uma equipe
formada por apenas dois repórteres, Carlos Leite e Nacim Adese, este também
desenhista. Para que se tenha idéia do espírito desta página oito, basta que se
citem algumas de suas manchetes nos dois últimos meses de 1933: "Obrigada a
casar com um morfético para se salvar da mancha da desonra", "Embriagou a
infeliz doméstica para subjugá-la mais facilmente", "Teria o pintor morrido de
peritonite ou gangrena?", "Um conhecido professor do Instituto Nacional de
Música envolvido no caso de sedução de uma aluna", "O velho alfaiate,
abusando da confiança do amigo, infelicitou uma menor de doze anos", assim
por diante.
O quiproquó romântico envolvendo Noel Rosa num caso de rapto talvez
ficasse confinado ao conhecimento de meia dúzia de pessoas, não fosse a ativa e
indiscreta caravana do Avante!. Assim é que, fazendo sua habitual ronda pelas
delegacias da cidade, um dos repórteres folheou ao acaso o livro de partes da
16?. E nele, na página 95, deparou com o nome de Noel Rosa.
- O compositor?
- Ele mesmo - informou o escrivão. Um prato feito para a oitava página do
jornal que, na edição de quinta-feira, 29 de novembro - sob a manchete "A
indiscrição da página 95 - é pelo livro de partes da delegacia que se conhece uma
diabrura amorosa do sambista Noel Rosa" - conta toda a história. É verdade que
fazendo algumas confusões, uma delas a de supor que Lindaura é a inspiradora
de Três Apitos. Outra, a de atribuir a Almirante a autoria de Com Que Roupa?.
Mas, no restante, está tudo lá. Em detalhes. Uma história ilustrada por caricatura
de Adese: Noel ao volante do Pavão, com o violão na mão esquerda e sua musa
lá no alto, pairando como uma lua a iluminar a fábrica de tecidos e sua chaminé
de barro.
O assunto torna-se público. Passa a ser comentado em toda parte, no Nice,
na Lapa, nas esquinas de Vila Isabel, nos estúdios das rádios. Orestes Barbosa
vai se ocupar dele em sua coluna do dia 30. Não para defender Noel ou algo
parecido, mas para defender-se a si mesmo da "acusação" que a bombástica
reportagem sobre o amigo e parceiro lhe faz de ser muito mais velho do que
Noel e outros jovens da Vila: "Os confrades da caravana do Avante!, tratando de
um caso em que aparece envolvido Noel Rosa, diz que o autor dos Três Apitos é
meu patrício, porque nasceu, como eu, na Aldeia Campista.
De fato.
E aludindo ao fulgurante Nássara e a Almirante, diz a oitava página que eu
tenho mais vinte anos que os três...
Não é bem isso. Mas, que delícia é o Outono! Imaginem se eu fosse a
Primavera, como aqueles colegas... Estaria, como os autores de Formosa e Na
Pavuna, metido em cumplicidade daquelas noites da Vila, de que fala a
caravana, e onde se lê que Nássara e Almirante têm um retrato histórico em um
botequim.
Onde é?
Desta eu escapei."(2)
2. Ibidem, 30 de novembro de 1933 (página 5). O retrato a que se refere Orestes Barbosa é mencionado pela caravana do Avante! na mesma reportagem em que está contada a "diabrura" de
Noel Rosa: "Daquele modesto auditorium (o botequim do Carvalho), saíram os três (Nássara, Almirante e Noel) para os melhores estúdios desta capital e quem disso mais se orgulha é o botequineiro que
tem em sua casa, em lugar de honra, o retrato dos três mosqueteiros."

Dias depois, Noel sobe ao primeiro andar do prédio número 144 da Rua
Uruguaiana, onde funciona a redação do Avante!.
- Eu queria falar com o Nacim Adese.
Quem o atende não pode deixar de reconhecê-lo. E de tirar suas conclusões:
indignado com a reportagem da página oito, Noel Rosa na certa veio pedir
satisfações ao Adese. Talvez queira briga, talvez lhe diga alguns desaforos.
Outros, na redação, pensam o mesmo. Até que o próprio Adese, meio sem jeito,
já pensando numa desculpa, aparece:
- Você é o Adese?
- Sim.
-Eu sou o Noel Rosa. Será que se incomodaria de me emprestar o original
daquela caricatura para a capa da partitura do Três Apitos?

Com o sol de janeiro chegam os primeiros ares do carnaval que se


aproxima. É apenas nisso que Noel Rosa e todos os outros compositores
populares se concentram. Não que pretenda finalmente editar Três Apitos, idéia
que, se lhe passou pela cabeça, foi logo posta de lado(3).
3. Noel manteria até o fim da vida a determinação de deixar Três Apitos inédito. O samba só seria gravado em 1951 e editado dois anos depois.

Mas a ida ao Avante!deixou mais que evidente que a preocupação de Noel


com a música é maior do que com as complicações amorosas. Continua meio
sumido de casa, pousando aqui e ali, evitando as conversas com a mãe, fugindo
da cólera de dona Olindina, malandro medroso que é.
No dia 20, comparece à grande homenagem que as escolas de samba
prestam ao prefeito Pedro Ernesto, no Campo de Santana. Assiste ao desfile, vê a
Mangueira conquistar o primeiro lugar com um samba de seu amigo Carlos
Cachaça(4), está contente.
4. Jota Efegê era um dos membros do júri que deu à Mangueira o primeiro lugar naquele desfile. Lembra-se de ter visto Noel no palanque ao lado do seu. O samba de Carlos Cachaça
intitulava-se Homenagem.

Contente e tranqüilo. Tem motivos para isso. A vida lhe parece boa, nada
de trabalho pesado, só samba, boêmia, liberdade para fazer o que mais lhe
agrada. Casamento? Prefere ser preso. Pelo menos seria uma prisão temporária.
Contente e tranqüilo. Mais do que nunca acredita nos versos que fez para
Capricho de Rapaz Solteiro, samba do ano passado em que fala de sua filosofia
de vida:
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!
Quem vive sambando
Leva a vida para o lado que quer.
De fome não se morre
Neste Rio de Janeiro.
Ser malandro é um capricho
De rapaz solteiro.

A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa.
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa

Com a bossa que eu tiver,


Orgulhoso eu vou gritando:
"Nunca mais esta mulher,
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!"

Antes de descer ao fundo


Perguntei ao escafandro
Se o mar é mais profundo
Que as idéias do malandro.

Vou, enquanto eu puder,


Meu capricho sustentando.
Nunca mais esta mulher,
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!

A vida é de quem sabe se esquivar, dos espertos, dos peixes que não caem
em rede. Casamento? Só se estiver louco. Tudo que pensa da necessidade de
permanecer livre, do não cair em armadilhas (o casamento parecendo-lhe a mais
aprisionante de todas as armadilhas), ele resumiu nestes versos escritos para o
mesmo samba, mas não aproveitados:
Muito mais que a canoa,
O malandro em terra joga.
A canoa afunda à toa,
Ele vira e não se afoga.

Mas esse estado de espírito - assim como seus caprichos de rapaz solteiro -
só dura até ele saber da ida da mãe à delegacia. Pois foi graças a ela que o caso
não viajou para outra jurisdição, o comissário concordando em deixar que tudo
se resolva sem os transtornos de um processo judicial. Como terá Martha
conseguido isso? Muito simples: prometendo ao comissário que fará o filho se
casar com Lindaura. Noel não a perdoa. Com que direito promete coisas que
implicam mudar sua vida, seu destino? Muitas discussões se travam no chalé em
torno da questão, o casamento, a "reparação do erro". Pela primeira vez se faz
entre Martha e Noel um abismo de desentendimento, ela insistindo, ele
resistindo. Discussões, brigas. Como nunca houve antes, como nunca haverá
depois. E que se exacerbam a cada nova visita de dona Olindina ao chalé, a cada
nova cena na casa de Dorica. O contentamento e a tranqüilidade começam a
desvanecer-se. Janeiro se vai, fevereiro também. Está cada vez mais difícil para
o rapaz solteiro Noel Rosa enfrentar as pressões que ameaçam seus caprichos.
Fala disso com alguns amigos. Às vezes, em tom grave quando não patético: -
Prefiro morrer a engolir este casamento.
Enquanto ele reluta, dona Olindina resolve tentar o outro lado. Já que o
comissário confiou em dona Martha e esta nada consegue com o filho, Noel
quase não parando em casa, fugindo, evitando encará-la, a solução parece-lhe ser
coagir a filha. E o faz em forma de ultimato: ou convence Noel Rosa a se casar
com ela, ou rua. Lindaura o põe a par da ameaça, a mãe querendo expulsá-la de
casa. Sente medo.
Certa noite, Olindina Pereira da Motta prova que não é só de ameaças. Abre
a porta da rua, manda que a filha saia e jura que só a receberá de volta, no
honrado lar da Rua Maxwell, 74, casa 2, quando estiver casada. De papel
passado e tudo.
E é com os olhos esgazeados de espanto, mas sempre em silêncio, que
Clara acompanha toda essa terrível história. Ainda bem que a escolinha está
fechada, as férias de verão transformando numa sala vazia e quieta o local onde
até bem pouco as crianças faziam algazarra. As aulas suspensas, só de vez em
quando Clara aparece no chalé. Mora tão perto que não teria como se desculpar
com dona Martha, caso sumisse de vez como é seu desejo. Senão de vez, ao
menos até que a tempestade passe.
O sempre imprevisível Noel. Tão irresponsável, tão insensível, tão
desprovido de nobreza nestes sete anos em que povoou de incertezas os sonhos
de Clara, eis que agora ele decide dedicar-lhe um gesto, último gesto, de
grandeza. Desde aquela tarde em que os dois policiais o foram buscar em casa,
ele a tem evitado. Não mais se falaram. Sequer seus olhos se cruzaram ao acaso
num dos muitos e apressados entra e sai dele. Não haveria de ser ela que iria
abordá-lo. Pedir explicações? Nunca. Não se acha com esse direito. Noel é que a
procura.
- Preciso falar com você. Às sete da noite. Na esquina de Visconde de
Abaeté.
A mesma esquina do primeiro encontro há sete anos. Na hora marcada, lá
estará Clara. Noel também. É bem possível que tenha sido pensando nela, em
momentos como este, que ele um dia escreveu um samba fadado a permanecer,
como uma relíquia, entre seus guardados : Não Morre Tão Cedo. Com uma
terna primeira parte e uma segunda em forma de soneto:
Você não morre tão cedo,
Você não morre tão cedo...
Juro que, neste momento,
Pensava nesta sua pessoa,
Tão. boa, tão boa,
Que até dormindo perdoa.

Você sentiu agora com certeza


A dor que sinto no meu coração
E veio pra matar minha tristeza
E veio pra me dar o seu perdão.

Chegando exatamente no momento


Em que a gente pensa o que não diz,
Você adivinhou meu pensamento
Você já perdoou tudo o que fiz.

Você mostrou que tem bom coração


Sabe que eu estou sem a razão,
Mas vem me dar o seu perdão...

Você não trata a gente com desdém


Não guarda ódio de ninguém
E paga sempre o mal com o bem.

É com uma Clara assim, adivinhando pensamentos e sempre pronta a


perdoar, que Noel se encontra na esquina de Visconde de Abaeté com Theodoro
da Silva. Se havia preparado um discurso, uma longa e minuciosa defesa, uma
história com princípio, meio e fim que inteirasse Clara de tudo (ou quase tudo),
as palavras ficarão guardadas com ele para sempre. O diálogo não dura mais que
breves instantes em que o essencial é dito por olhares.
- Clarinha, o que eu queria te dizer é que... Nunca mais poderemos nos ver.
Bem... não como namorados.
- Eu sei - diz ela baixando os olhos. -Éque aconteceu um problema
comigo... Noel não chega a completar a frase. Os olhos falam por ele, pelos dois.
Clara limita-se a murmurar mais uma vez:
- Eu sei.
Os dois se separam sem mais palavras.
Clara sofre. Trancada no quarto, faz tudo para que os irmãos não a vejam
assim, chorando, machucada, os seis, sete anos de sonhos reduzidos a coisa
alguma. Repassa esse tempo, desde os primeiros fins de tarde em que esperava
no portão o jovem ginasiano chegar do São Bento no uniforme caqui. Foi um
longo tempo de idas e vindas, sumiços e reaparições súbitas, promessas e
esquecimentos. Sempre ele, o querido mas imponderável Noel. Enfeitou de
perdões o romance repleto de hiatos que eles viveram. Perdoou-lhe as mentiras,
os repetidos e inexplicados desaparecimentos. Perdoou-lhe até o fato de haver
entre eles uma Fina (ou quantas Finas?). "Vai ver é coisa passageira", tentava
iludir-se. Agora, depois de tantos perdões, o fim. Clara chora a certeza de já não
poder encarar Noel, olhá-lo nos olhos, falar-lhe como antigamente. Mas a pior
de todas as certezas não é esta e sim a de saber lá no íntimo que até o último de
seus dias, sejam quais forem os caminhos que tomarem, jamais amará alguém
como o amou nesses anos todos(5).
5. Clara se casaria em 1938 com Príncipe Cinelli, a quem já namorava à época da morte de Noel. Em depoimento aos autores, a 6 de novembro de 1981, não esconderia ter sido Noel o amor
de sua vida. Na mesma ocasião, uma de suas filhas, Lucy, acrescentaria: "Sempre soubemos disso. Eu e Dilma, minha irmã. Mamãe gostou muito de papai, mas sua grande paixão foi mesmo Noel Rosa."
Adhemar Casé
Capítulo 29
VALENTES E AMIGOS (MAS NEM
SEMPRE)
No século do progresso
O revólver teve ingresso
Pra acabar com a valentia.
Século do Progresso

A intolerância de dona Olindina, firmemente decidida a nunca mais ver a


filha enquanto ela não se casar, deixa Noel com um problema inesperado e
difícil. O pessoal da delegacia parece ter-se dado por satisfeito, não o incomoda
mais. Martha, diminuído o assédio de dona Olindina, o pressiona menos. Quem
sabe daqui a algum tempo todo o mundo não esqueceu tudo isso? A questão é
para onde levar Lindaura, repentinamente sem teto. Será justo deixá-la ao
relento, expulsa de casa pela mãe intransigente? De forma alguma. Mas para
onde levá-la? Um hotel? Muito caro. A residência de um amigo? Quem?
Enquanto a solução não é encontrada, Noel resolve esperar Lindaura todos os
dias à saída da lavanderia. Passa a conduzi-la em sua companhia para toda parte,
programas de rádio, festas, botequins. Em qualquer desses lugares Lindaura se
apresenta como "a noiva do Noel". Já ele não é tão efusivo. Pelo contrário, quase
sempre esquece que ela está perto, presente, par constante. Às vezes os dois vão
juntos tomar uma sopa no Café Carlos Gomes, na Praça Tiradentes. Ou então
uma média com pão e manteiga no Magalhães, onde também se reúne o pessoal
do teatro. É ali que uma noite Noel abandona Lindaura sentada diante de uma
xícara vazia, depois de dizer com o ar preocupado: - Lindinha, me lembrei de
uma coisa importante. Meu Deus! Como é que fui esquecer? Espere um
pouquinho que vou até ali, no Recreio. Resolvo tudo em um minuto e volto logo.
Uma, duas, três horas se passam e Noel não retorna. Meia-noite, o
Magalhães se foi, os garçons começam a virar as mesas, Lindaura ainda sentada
diante da xícara vazia.
- Está na hora de fechar, moça - diz um dos garçons.
- Mas eu estou esperando o meu noivo...
- Seu noivo?
- É, o Noel Rosa.
- O Noel? - pergunta o garçom com ar desalentado. - A essa altura, moça,
ele deve estar lá pela Lapa. Não volta mais, não.
Esses esquecimentos são freqüentes, Lindaura tendo de procurar Noel pelos
recantos da madrugada, ou então de recorrer a uma amiga que a abrigue ao
menos por uma noite. No dia seguinte, tudo recomeça. Sem lugar fixo, um
quarto de pensão hoje, um canto de favor amanhã, Noel faz o que pode para que
Lindaura tenha onde dormir. Ou então a leva com ele em suas andanças
noturnas, o botequim, o banco de praça, a roda de amigos, a esquina. Para ele,
habituado a trocar o dia pela noite, não há problema. Mas para ela, que tem de
chegar cedo ao trabalho, uma noite em claro é um suplício. Lindaura se queixa: -
Assim não agüento, Noel. Fico morta de sono.
Ele muda de tática. Pede que ponha o seu melhor vestido, o chapéu, meias
novas, prometendo-lhe que vão passear no Serrador(1), comer um bom bife,
quem sabe ir ao teatro e, por fim, dormir num agradável hotel.
1. Costumava-se chamar de Serrador ao "bairro" que hoje conhecemos como Cinelândia.

Só que a promessa não se cumpre. Lindaura veste a melhor roupa, mas


Noel no meio do caminho altera os planos: - Vamos tomar um trem.
- Mas para onde?
- Pro subúrbio. Isso, vamos passear de trem pelo subúrbio.
Onze da noite, os dois entram num trem da Leopoldina para viagens de ida
e volta que só terminarão no outro dia, sol a pino. Lindaura dormindo sentada, o
chapéu, as meias novas, o melhor vestido amarrotados, enquanto Noel puxa do
bolso papel e lápis. Alheio aos balanços do trem, escreve.
Acha esta idéia tão boa que passa a repeti-la todas as noites.
- Vamos lá, Linda, para o nosso passeio de trem.
Lindaura resmunga, ensaia uma reclamação, mas logo desiste. Os dois se
dirigem à Leopoldina para as mesmas viagens de ida e volta, Lindaura
dormindo, Noel escrevendo.
João de Barro encontra-se com ela perto da Fábrica Confiança. Fica
impressionado com seu abatimento, as olheiras, o ar de quem anda passando por
maus momentos. Lindaura conta-lhe o que está acontecendo, as viagens de trem
consumindo-a pouco a pouco.
- Não posso acreditar nisso, Linda. Uma noite inteira no trem, das onze às
seis da manhã? Que coisa esquisita!
- Se você duvida, Braguinha, porque não vem conosco logo mais?
João de Barro concorda. Não é possível que alguém suporte passar horas
sentado no banco duro de um trem da Leopoldina, escrevendo à luz fraca, sem
pegar no sono, enquanto a namorada dorme ao seu lado. João de Barro espera
Noel e Linda em hora e lugar marcados por ela. Cumprimenta o amigo, indaga
aonde vai: - Vou dar um passeio pelo subúrbio.
- De carro? - pergunta como se nada soubesse.
- Não, de trem. Quer vir conosco? João de Barro diz que sim. Quer ver com
os próprios olhos se Lindaura falou a verdade. Às onze os três entram no trem,
sentam no banco duro, a primeira viagem de ida e volta começa. Às seis da
manhã, o sol já alto, os três continuam no trem. Lindaura pegou no sono
primeiro.
João de Barro ainda agüentou um pouco mais, o bastante para ver Noel
puxar lápis, papel e escrever.
- É aqui que você passa as suas noites, Noel?
De volta para casa, os três vêm pela Theodoro da Silva. Noel entra no chalé
para entregar-se a seu sono vespertino. Braguinha, cansado, vira-se para a
exausta Lindaura e não sabe o que dizer.
- Você tinha razão. Que coisa esquisita! Tantos são os protestos da
namorada que Noel concorda em trocar de expediente. Mais trabalhoso, é
verdade, porém mais confortável, que passa a adotar regularmente. De
madrugada, na ponta dos pés, os dois penetram no chalé e tomam a direção do
quarto dos fundos. De manhã, bem cedinho, Lindaura levanta-se, muda de roupa,
vai trabalhar. Tudo na ponta dos pés, para que ninguém no chalé saiba da
existência de nova moradora. Mas isso não dura muito. Certa ocasião, Martha
acorda mais cedo que de costume, vai ao quintal e encontra Lindaura lavando o
rosto no tanque.
- Mas que negócio é esse? Lindaura, embaraçada, desperta Noel.
Ele que explique tudo. Martha, mais irritada do que surpresa, não faz por
menos: - Que falta de respeito!
Noel, sonolento, rumina algumas palavras:
- A mãe de Linda não a quer mais em casa.
Para Martha isso não explica nada. Vá lá que Noel se desvencilhe de dona
Olindina, que se livre habilmente da polícia, que consiga embrulhar a própria
mãe. Mas trazer Lindaura para morar no chalé, dormir com ele no quartinho dos
fundos, nunca!
- Aqui em casa, Noel, só casando! Filho e mãe discutem. Noel nem quer
pensar na condição imposta. Por que ela insiste nessa história de casamento?
- Não adianta, Noel. Esta moça, aqui, só casando!
Lindaura sai para o trabalho, deixando Noel no meio da discussão e com
um problema para resolver.
Quando mais tarde ele esbarra com Germano Augusto e Kid Pepe na
cidade, fala de suas aperturas, Linda sem ter para onde ir. Acha que deve ajudar
a namorada. Mas como?
-Acho que posso te tirar dessa, Noel-diz Germano.
O português revela ter uma amiga que mora na Rua Laura Araújo, no
Mangue. Boa alma, mulher prestativa, sempre disposta a socorrer quem precisa.
Uma amiga muito especial que não por acaso está doida por ele, Germano, e
portanto incapaz de lhe negar um favor. Em sua casa trabalham umas sete ou
oito moças. Pegam às seis da tarde, largam pouco antes das duas da manhã, de
modo que os quartos ficam vazios todo o dia e a maior parte da madrugada. Por
que não pedir à amiga que abrigue Noel e Lindaura até que consigam coisa
melhor?
Noel aceita o oferecimento da casa em que o português diz dar as cartas.
Vai esperar Lindaura no trabalho, conta-lhe que já tem lugar para ficarem, um
quarto de pensão que só podem ocupar depois de duas da manhã. Não é o ideal.
Uma solução apenas provisória, mas que a ela parece muito melhor do que uma
briga com dona Martha. Ou do que uma noite maldormida sobre um banco de
maria-fumaça. E é desse modo que os dois vão habitar por algum tempo um
quarto da Rua Laura Araújo, em pleno Mangue. O profano mundo em que Noel
viveu suas alegres aventuras de menino, agora convertido num prosaico ninho de
amor.
Outro que vai ajudar muito Noel nessas peripécias em busca de lugar para
Lindaura é Zé Pretinho. Duas vezes mais valente do que Germano Augusto e
Kid Pepe juntos, com coragem para encarar um Brancura ou alguém do mesmo
tope, é do tipo de malandro que fascina Noel. Não só pelo destemor, mas
especialmente por certos códigos de ética muito próprios, de uma nobreza que é
preciso conhecer de perto para compreender. Kid e Germano, por exemplo, são
capazes de tudo, grandes e pequenas torpezas. Malandros menores,
barganhadores de tostão, trapaceiros baratos que tiram dinheiro de quem não tem
e gostam de se impor pela força, pela ameaça. Principalmente Kid Pepe, que não
faz segredo disso. Zé Pretinho, não. Orgulha-se de ser um malandro maior. No
jogo ou lá em que seja, só esvazia bolsos de quem os tem cheios, respeita
mulheres, velhos, crianças, gente de família, não compra briga com os fracos.
Prefere enfrentar policiais armados, malandros temidos como ele, valentes de
verdade, a cometer uma covardia. Pelo menos é o que diz. E do que Zé Pretinho
diz ninguém duvida(2).
2. Todas as passagens deste capítulo relacionadas a Zé Pretinho foram por ele mesmo contadas aos autores em dois longos depoimentos em sua casa nos dias 29 de janeiro e 3 de fevereiro de
1981.

Chama-se Manuel do Espírito Santo e nasceu em Capela, pequena cidade


do interior sergipano. O apelido vem de um cantador que ele admira muito, um
cego da Paraíba cujos versos correm mundo em livrinhos de cordel. Zé Pretinho
andou por mares de todo o Brasil, quando estava na Escola de Aprendizes de
Marinheiro. Um dia, uma hérnia estrangulada obrigou-o a baixar ao hospital no
Rio. Operado, passou algum tempo internado, convalescendo. Descobriu então
que gostava mais da terra do que do mar. E desertou. Atravessou quase dois anos
se escondendo, até que uma briga de botequim, em 1929, acabou com a
clandestinidade: veio a polícia, prendeu-o, constatou que era desertor e mandou-
o de volta à Marinha, desta vez para cumprir pena. Um ano depois, com a anistia
dada por Getúlio Vargas aos militares presos, desertores inclusive, ganhou
liberdade. E passou a viver de samba e carteado.
Em 1934, Zé Pretinho pode ser um exímio manuseador de baralhos, mas
como sambista ainda é principiante. Fez uma ou outra coisa que andou
mostrando sem sucesso para gente do meio musical. Sua amizade com Noel
começou de encontros casuais em botequins da Praça Tiradentes. E não por
causa de samba. Noel ouviu falar das façanhas de Zé Pretinho, de sua amizade
com o temível Porela, do Salgueiro, ou com gente ainda mais assustadora, como
o desassombrado Saturnino que tantos juram de morte (é cheio de ironias o
mundo dos valentes, pois Saturnino, a quem as pessoas temem só de olhar,
acabará morrendo pelas mãos de um pacato que por causa de mulher lhe dará
dois tiros pelas costas num botequim da Rua Comandante Maurity). Noel gosta
de ouvir essas histórias, mesmo as mais sangrentas. Como o susto que Zé
Pretinho passou com Brancura, este pedindo emprestada a chave do quarto em
que ele morava, numa casa de cômodos da Rua Moncorvo Filho. Zé Pretinho
avisou: - Vê lá quem tu vai levar pro meu quarto, ô Sylvio.
- Fica sossegado, Zé. É moça distinta.
Tarde da noite, ao voltar pra casa, Zé Pretinho viu uma multidão à porta do
prédio. Alguém foi logo avisando: - Foi no teu quarto, Pretinho.
A moça distinta que Brancura levara para lá estava enrolada no lençol de Zé
Pretinho, ensangüentada, navalhadas pelo corpo. Brancura é mau, doido, sempre
sentindo prazer em fazer sangrar mulheres. Zé Pretinho cortou um dobrado para
esclarecer ao chefe de polícia, Martim Vidal, que não acontecera nada de mal: -
A moça fez um aborto, seu Martim. É amiga minha.
Zé Pretinho e Noel ficam amigos, vêem-se com freqüência. Quando Noel
lhe diz que está com vontade de tirar Lindaura da casa do Mangue, é Zé Pretinho
quem lhe consegue um quarto barato num velho sobrado da Rua do Acre. Chega
a ajudá-los na mudança, levando para lá o pouco que o casal tem.
Brancura não é o único que vive usando a navalha pelo prazer sádico de ver
o sangue jorrar. Na galeria dos homens maus da malandragem carioca, Osvaldo
Vasquez, o Baiaco, também ocupa lugar destacado. Não é um valente. Não é
respeitado como verdadeiro malandro, assim como Saturnino. Sua fama deve-se
não à coragem, mas à covardia. Não a grandes façanhas, mas a grandes
maldades. Se Brancura gosta de cortar gente, Baiaco vai mais além: faz sofrer
pessoas e animais. Muitos já o viram segurar cães e gatos pelo rabo e abrir-lhes o
ventre, de uma ponta a outra, a golpes de navalha. Ou então cobrir de jornais
encharcados de álcool mendigos que dormem na calçada para em seguida atirar
em cima um fósforo aceso. Diverte-se vendo os pobres coitados correndo com o
corpo em chamas.
Durante algum tempo, por uma estranha atração ou por necessidade de
proteção (ou talvez por ambas), Noel torna-se companheiro de andanças de
Baiaco. Sabe que é ladrão de samba, que arranca parcerias à custa de ameaças,
que se junta a Benedicto Lacerda e a outros para transformar a inspiração alheia
em composição "sua". Baiaco costuma ir com Benedicto aos botequins do
Mangue. Entra, Benedicto fica do lado de fora. Baiaco vai puxando conversa,
começa a falar de samba, vai sabendo se o eventual interlocutor também
compõe. Caso afirmativo, pede que lhe cante o que tem de melhor. O outro
canta. Baiaco, então, faz sinal para Benedicto, que entra no botequim e se senta
na mesa ao lado.
- Repete este samba mais uma vez - diz Baiaco.
E enquanto o samba é repetido, Benedicto o vai passando para a pauta.
Finda a operação, Baiaco finge-se encolerizado.
- Quer dizer, seu sem-vergonha, que este samba é seu? Pois fique sabendo
que eu e o Benedicto Lacerda fizemos ele há muito tempo.
Benedicto, que saíra novamente, simula estar passando ali por acaso.
Baiaco o chama.
- Benedicto, canta pra este salafrário o samba que a gente fez outro dia.
Benedicto tira a pauta do bolso e, para surpresa dos presentes, vai cantar
exatamente o samba que acabaram de ouvir em primeira audição.
- Primeira audição coisa nenhuma, seu ladrão de música!
E quem é que vai desmentir Baiaco? Não Noel. Que sequer se atreve a
insinuar o que todo o mundo sabe: Arrasta a Sandália, sucesso no carnaval de
1933 na voz de Antônio Moreira da Silva, não é de Baiaco nem de seu parceiro
Aurélio Gomes, mas de um terceiro - como se chama? - a quem os dois passaram
para trás.
A amizade com Baiaco, ainda que curta, vai custar a Noel muitas
reprimendas de amigos e até mesmo antipatias que jamais serão superadas.
Conta-se que algumas vezes Noel presenciou as crueldades de Baiaco, a
retalhação de cães, os maltrates aos mendigos. E nada fez para impedi-lo. Pelo
contrário, achou graça. Riu. Ou por vontade, ou para agradar o malandro que o
protegia.
Não é mesmo muito fácil compreender Noel, o que pensa, o que faz, o que
diz, o que silencia. O contraditório de certos gestos e o imprevisível de certas
reações. Como a que, neste começo de 1934, vai aparentemente transformá-lo
num inimigo feroz da malandragem. Quem pode compreendê-lo? Alguns de seus
melhores amigos são malandros, jogadores, valentes, contraventores,
desocupados, homens maus, gente que a polícia caça pela cidade. Indivíduos
armados de navalha ou de cuja cintura costuma emergir, desafiadora, a coronha
de um revólver. É amigo de Saturnino, aceita favores de Germano Augusto e
Kid Pepe, faz camaradagem com Zé Pretinho, ri das malvadezas de Baiaco.
Gosta de ouvir histórias trespassadas de valentias, brigas, desforras, tiros,
navalhadas, mortes. O próprio Noel fez e ainda fará sambas falando de
malandragem e malandro. E no entanto - quem pode compreendê-lo? - vai
implicar com a filosofia contida em Lenço no Pescoço, samba lançado
magistralmente por Sílvio Caldas em fins do ano passado.
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso

Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.

Sei que eles falam


Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserè

Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção.

Um excelente samba de autoria algo complicada, o selo do disco


creditando-o a um tal de Mário Santoro, enquanto o pessoal da Favela diz que
um malandreco, ruço, cheio de tatuagens, comprou-o não se sabe de quem. Mas
parece que o autor, mesmo, é outro malandreco: Wilson Baptista. Como Zé
Pretinho gosta de dizer, é como do Sol para a Lua a diferença entre o malandro e
o malandreco. Este não tem a dimensão e a importância daquele, é aprendiz,
treina mas não joga.
- O mais que consegue é bater palma pra malandro.
Wilson Baptista é um malandreco. Mas só por enquanto. De todos esses que
estão por aí - para citar apenas os que fazem da malandragem profissão de fé - é
o mais talentoso em matéria de samba. Nem Zé Pretinho, nem Baiaco ou
Brancura, nem Germano ou Kid Pepe, nenhum desses, enfim, tem o seu dom de
brincar com o ritmo e a melodia como fez com Lenço no Pescoço. Todos
aqueles, de uma forma ou de outra, comerciam samba. E geralmente compram.
Wilson os vende. E às dezenas. Tem apenas vinte anos, veio de Campos aos
dezesseis e desde então arrasta seus tamancos pelo submundo carioca. Mas
costuma dizer, peito estufado: "Ainda vou ser algum troço na vida." Teve muitas
ocupações, de acendedor de lampião a ajudante de contra-regra no Teatro
Recreio, função que pelo menos o aproximou do meio artístico. Porque Wilson
quer ser é artista, fazer e cantar samba, trabalhar no rádio e no teatro. Enquanto
batalha por isso, é um pouco de tudo, jogador, esparro, descuidista, atravessador,
garoto de recado em rendevous. Sua instabilidade profissional, somada a uma
indissimulável vocação para a marginalidade, levou-o a ser, entre outras coisas,
uma espécie de office boy dos afamados irmãos Meira, expulsos de São Paulo
depois de repetidas trapalhadas, hoje radicados no Rio, onde seus negócios se
ampliam da exploração do lenocínio ao tráfico de drogas. Importantes nomes da
música popular serão seus clientes, entre eles o próprio Wilson, sempre com uma
soruma no bolso.
Ter orgulho de ser vadio, no seu caso, não é apenas maneira de dizer
transformada em letra de samba: é orgulho mesmo. Várias entradas na polícia -
das quais fala como um piloto das suas horas de vôo - é evitado pelo pessoal do
Nice. Nem todos o tratam de igual para igual, há até os que temem se
comprometer em sua companhia. Mas ele não se importa. Pisando macio, cheio
de gingas e gestos, o cigarro no canto da boca, o olhar de esguelha, e gíria
sussurrada em forma de música: - Tem um forra-tripa aí, amizade?
Vive pedindo, não só um forra-tripa, isto é, que alguém lhe pague uma
refeição, mas também dinheiro para isso ou aquilo, sempre pouco, dez, vinte mil
réis. Depois, diz baixinho: - Te juro que um dia Deus ajusta conta por mim,
amizade.
Se o outro é de samba, Wilson não pede, oferece:
- Quer me comprar um samba, ilustríssimo? Pode escolher: primeira ou
segunda parte. Se precisar, as duas.
Até Lenço no Pescoço ser gravado por Sílvio Caldas, Wilson Baptista não
fez muito sucesso. Mas teve seus sambas incluídos nos repertórios de Patrício
Teixeira, Almirante, João Petra de Barros, Murilo Caldas e Francisco Alves.
Noel Rosa conhece-o dessas noites vagabundas da Lapa, passadas entre copos de
cerveja e mulheres cansadas. E é para ele , Wilson, ou melhor, para rebater verso
por verso o que está dito em Lenço no Pescoço, que Noel escreve Rapaz
Folgado.
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.

Com chapéu do lado deste rata


Da policia quero que escapes
Fazendo samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.

Malandro é palavra derrotista


Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

Quem pode compreendê-lo? Como explicar que o moço permanentemente


seduzido pelos encantos da malandragem tenha se tornado, de uma hora para a
outra, um antimalandro, um crítico do tipo de vida que levam seus amigos
Saturnino, Baiaco, Zé Pretinho, Germano? Interpretações futuras - e simplistas -
nos darão conta de um Noel Rosa repentinamente preocupado em mudar a
imagem do sambista, tornar bem-comportados os temas da música popular,
desempenhar papel moralizador. Nada mais apressado. Uma leitura atenta da
letra de Rapaz Folgado deixa claro que a estocada de Noel tem um alvo pessoal
e não geral, é de um malandro específico que ele fala e não da malandragem.
Isto é, do malandro Wilson Baptista, que os verdadeiros bambas preferem
chamar de malandreco. Mas um malandreco que tempos atrás levou a melhor
sobre Noel na disputa por uma morena da Lapa. Noel com todos os seus sambas
e sua fama perdendo uma batalha amorosa para o mulato cheio de manha que é
Wilson. Não se esqueceu disso. E agora, na primeira oportunidade, no primeiro
sucesso do outro, tenta ir à forra(3).
3. A interpretação simplista é a mais difundida, tendo como defensores, entre outros, Jacy Pacheco e Almirante. Diz este em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 146), que Noel
teria sido "movido por louvável interesse pela regeneração dos temas poéticos da música popular". Algo que não combina muito com o boêmio que vivia intensamente, naquele 1934, o seu lado
"marginal" entre malandros e outros tipos de personagens que, antes de regenerar, preferia freqüentar. Rapaz Folgado é único na obra de Noel. Nunca havia estocado alguém antes e nunca o faria depois.
Não era de provocar. A versão da batalha amorosa - que o próprio Wilson contou a alguns amigos (entre eles Bruno Ferreira Gomes, que a incluiu em seu livro Wilson Baptista e Sua Época, página 54) -
faz mais sentido. E, como veremos, é apenas a primeira das disputas que os dois travarão por uma mesma mulher.

Uma forra que Wilson Baptista não poderá deixar sem resposta. Porque os
versos foram muito claramente dirigidos ao seu samba, à sua pessoa. E porque
uma briguinha musical com Noel Rosa é uma forma de ganhar evidência:
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão
Barracão e outras coisas mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone
E deixe quem é malandro em paz.

Injusto é seu comentário


Fala de malandro quem é otário
Mas falando não se faz
Eu de lenço no pescoço
Desacato e também tenho o meu cartaz.

Mas ninguém toma conhecimento desse samba, Mocinho da Vila(4).


4. O samba sequer seria lançado no rádio, Wilson Baptista limitando-se a cantá-lo aqui e ali, apenas para o pessoal do meio artístico. Só em 1956, interpretado por Roberto Paiva, teria sua
primeira gravação, na Odeon.

Em matéria de malandro, não é Wilson Baptista, com seus sambas cheios


de bossa, quem perturba Noel neste início de 1934, mas Kid Pepe. Depois do
espetacular sucesso de O Orvalho Vem Caindo, o ex-pugilista pôs-se a pensar
em como seria vantajoso ter Noel Rosa como parceiro exclusivo. Em pouco
tempo os sambas dos dois estariam correndo o país na voz dos melhores
intérpretes, Kid lançado como compositor, respeitado, admirado. Seu nome nos
selos dos discos, nas partituras impressas, nos jornais de modinha, sempre na
melhor das companhias. César Ladeira, com aquela classe, aquela dicção
perfeita, anunciaria pelo rádio "o novo sucesso de Noel Rosa e... Kid Pepe!"
-Desculpe, Kid. Mas não sou parceiro exclusivo de ninguém.
Talvez Noel não devesse ser tão categórico. Podia ter contemporizado,
inventado uma saída mais hábil, dizer ao outro que ia pensar no assunto, quem
sabe amanhã ou depois, algo assim. Terá se esquecido de como Kid Pepe é
quando quer alguma coisa? Vive ameaçando de morte os contra-regras de rádio
que não tocam suas músicas, exigindo à força que compositores lhe dêem
parceria, que cantores gravem o que assina. Uma das vítimas será Almirante, que
de tanto se negar a gravar músicas suas acabará sendo esfaqueado por ele na
Galeria Cruzeiro(5).
5. Almirante conta este episódio na primeira edição de No Tempo de Noel Rosa (página 118), mas omite-o na segunda: Kid Pepe, bêbado, golpeou o no estômago com um canivete, cuja
ponta, por sorte, foi obstada por um grande botão de osso de seu paletó.

Mas antes de ser Almirante a vítima, as ameaças mais constantes e


assustadoras de Kid Pepe são mesmo a Noel Rosa, cuja negativa de tornar-se
parceiro exclusivo ele simplesmente não aceita. Passa a perseguir Noel, a
procurá-lo em toda a parte. Encontrando-o, volta sempre ao assunto. E em tom
invariavelmente aterrador: - Você não vive dando parceria a todo o mundo? Por
que não a mim?
Noel foge, esconde-se de Kid Pepe. Se chega ao estúdio de uma emissora
de rádio, antes olha para se certificar de que o outro não está. Permanentemente
assustado, fala de seus temores a Zé Pretinho.
- O Kid ameaça muito e não faz nada, Noel.
Estão os dois e Roberto Martins nas proximidades da Central do Brasil.
Roberto também é compositor. E dos bons. Conhece bem este meio de
malandragem, só que do outro lado: é policial. Ele e Zé Pretinho prometem falar
com Kid Pepe, mandar que deixe Noel em paz(6).
6. Roberto Martins, em depoimento aos autores, recorda-se perfeitamente deste fato, contado também por Zé Pretinho: "Kid Pepe tinha respeito a gente, só ameaçava os mais fracos..."

No dia seguinte, Kid diz a Roberto e Pretinho:


- Sosseguem, só estou dando uns sustos nele.
Uma noite, Noel está com Lindaura no estúdio da Rádio Club do Brasil. Zé
Pretinho chega e o vê apavorado, indo a todo momento até a janela, olhando para
baixo como se a procurar alguém.
- Qual o problema, Noel?
- Me disseram que o Kid esta lá embaixo esperando por mim.
- E o que é que ele quer?
- O mesmo de sempre, me arrancar parceria à força.
- Deixa essa questão comigo.
Zé Pretinho desce e de fato encontra Kid Pepe conversando com amigos à
porta da emissora. Chama-o de lado, abre o paletó para que veja a coronha do
revólver.
- Outra vez, Kid? Eu não te disse pra deixar o Noel em paz?
Kid mastiga duas ou três palavras.
- Essa história já esta me aborrecendo, Kid.
- Tu não tá entendendo, Pretinho.
- Olha, vamos fazer um negócio: se tu quer bater no Noel, bate. Mas vai ser
uma vez só. Depois disso tu nunca mais vai bater em ninguém.
Kid Pepe promete - dessa vez para cumprir - que Noel ficará em paz. Zé
Pretinho sobe, chama Noel e Lindaura.
- Noel, comadre! Vocês podem ir embora tranqüilos.
Noel quer saber como ele conseguiu demover Kid Pepe. E o amigo abre o
paletó de novo, mostrando-lhe a coronha do revólver.
- Vira isso pra lá, Pretinho - diz Noel.
- Por que que tu não compra um cospe-fogo desses, Noel?Enquanto agente
não tem um, não é respeitado.
Noel pergunta-lhe se já usou o revólver, se já matou alguém.
- Andei dando meus tirinhos por aí... - responde sorrindo.
Noel sabe ser grato aos amigos, a quem o ajuda nos instantes de aperto,
Germano Augusto, Zé Pretinho. Habituado a saldar suas dívidas com samba,
concorda em dar forma definitiva a um esboço que Germano lhe trouxe, talvez
conseguido através de uma das artimanhas que aprendeu com Baiaco. Germano
costuma dividir com quem sabe escrever música os fragmentos, por vezes
sambas inteiros, ouvidos nos botequins do Mangue de anônimos compositores
que anônimos continuarão. Bem pode ser este o caso de Se a Sorte Me Ajudar,
que Noel praticamente refaz para ele.
Se a sorte me ajudar
Eu vou te abandonar
Vou mudar de profissão
Porque a palavra malandragem
Só nos trouxe desvantagem
E você não vai dizer que não.

Quem faz seus versos


E no morro faz visagem
Leva sempre desvantagem
Dorme sempre no distrito
Entretanto quem é rico
E faz samba na Avenida
Quando abusa da bebida
Todo mundo acha bonito.

Antigamente, o folgado era cotado


E era bem considerado ia ao baile de casaca
Hoje em dia por despeito
Ele é sempre perseguido
E é mal compreendido
Pela própria parte fraca.

Aqui, em vez de combater a malandragem (e por que o faria ?), Noel


registra uma nova realidade. A decadência do mito do malandro, injustiçado,
incompreendido, malvisto pela própria "parte fraca", isto é, a população pobre
que tantas vezes ele protegeu e que agora o rejeita.
A Zé Pretinho Noel é ainda mais grato. Um amigo que o defendeu em
muitas oportunidades, não só de Kid Pepe, mas de muito malandro forte que ele,
atiçado pelo álcool, andou provocando. Além do mais, foi quem conseguiu um
quarto barato para Lindaura ficar. Noel na certa se lembra disso quando o amigo
lhe aparece com um pedaço de samba que diz chamar-se Tenho Raiva de Quem
Sabe:
Não sei nem quero saber
Tenho raiva de quem sabe
O seu modo de viver
Eu pago pra ninguém me incomodar
E não me perguntar por você.

Noel completa-o sem esmerar-se muito:


Depois de tanta briga
Hoje em dia eu suspeito
Que talvez você me diga
Que lhe odeio por despeito

Tanto me sacrificava
Sem ter o menor direito
Juro que não esperava
Levar fama sem proveito.

Rasguei o seu retrato


Suas cartas eu queimei
Desta vez briguei de fato
De você já enjoei

Para evitar perigo


Eu imploro a você
Quando encontrar comigo
Simular que não me vê.

De quebra - e para ser grato a dois de uma só vez - Noel vai presentear
Germano Augusto e Zé Pretinho com um terceiro samba, Não Foi Por Amor.
Um primor. Sem repetições melódicas, a primeira e a segunda quase que
fundidas como se fossem uma só. Uma espécie de cavatina em forma de samba.
Não foi por amor, meu bem,
Que por mim você chorou
Você foi interesseira
Quis amar de brincadeira
Só enquanto me explorou...

Só enquanto me explorou!
Pra depois ficar dizendo
Que a sorte não lhe ajudou,
Pra depois ficar dizendo,
Soluçando e gemendo,
Que a sorte não lhe ajudou.

Eu me sinto bem feliz


Relembrando o que passou
Eu fui bobo porque quis
Hoje a canja se acabou

Quero só que você prove


Se você me ajudou
O seu choro não comove
Quem você prejudicou.

Em nenhuma das três composições Noel aparecerá como autor. Diz a Zé


Pretinho e Germano que é presente, nada mais. Por isso, não quer participação
alguma, nem pagamento de direitos autorais, nem crédito em disco ou partitura.
E ainda fará mais: sempre que puder, cantará os sambas no rádio para divulgá-
los.
É pela voz de Noel, num programa de rádio em princípios de março, que
Kid Pepe toma conhecimento de Tenho Raiva de Quem Sabe. Ao ouvir o locutor
anunciá-lo como de Zé Pretinho, Kid o procura. Diz que Mário Reis está atrás de
alguma coisa para gravar no outro lado de Não Sei Que Mal Eu Fiz, de Heitor
dos Prazeres, e que o encarregou de procurar por ele. Será que Pretinho deixa
mostrar o samba ao Mário? E se o Mário gostar, poderia gravar no mesmo disco
do samba do Heitor?
- É claro - responde Zé Pretinho todo animado.
Kid Pepe apresenta a música a Mário Reis, este gosta e grava-a na Victor a
25 de abril. Noel não está no Rio por esta época, mas viajando com Benedicto
Lacerda e sua turma numa série de espetáculos em cinemas e teatros do norte
fluminense e Espírito Santo (ver capítulo 30). Vai demorar mais do que se
esperava, quase dois meses. De volta, quando o disco lhe cai nas mãos, constata
perplexo que a autoria do samba é atribuída a Zé Pretinho e Kid Pepe. Fica sem
entender. Como terá o Kid entrado nessa história? Logo o Kid Pepe! Não sabe
que este, sem pedir permissão a Zé Pretinho, mas cobrando em termos de autoria
o favor de ter servido de intermediário junto a Mário Reis, colocou por conta
própria seu nome no disco e na partitura. Noel fica indignado. Não com Kid
Pepe, mas com Zé Pretinho. Pela suposta traição.
O próximo encontro dos dois vai acontecer na Rádio Cruzeiro do Sul, na
Rua Mariz de Barros. Zé Pretinho já está lá. Ele e Manuel Ferreira no meio de
outros compositores, cantores, locutores, pessoal técnico. Sem saber da zanga de
Noel, Zé Pretinho o cumprimenta: - Que bom que você esta aqui, Noel! Queria
que conhecesse um samba que o Jayme Vogeler vai cantar daqui a pouco, Amar
é Muito Bom. Meu e do compadre Manuel Ferreira.
- Não vou corrigir mais nada pra você, Pretinho.
Noel segue em frente e Zé Pretinho fica sem entender coisa alguma.
Corrigir o quê? O samba está pronto, entregue a Jayme Vogeler para cantar no
programa desta noite. Que história é essa de corrigir?
- Poxa, Pretinho, o Noel não foi nada delicado com a gente - comenta
Manuel Ferreira.
Zé Pretinho sai de onde está e vai ao encontro de Noel.
- Olha, Noel...
- Não quero conversa contigo, Pretinho! - diz virando-lhe as costas mais
uma vez, agora entrando no estúdio para cantar o seu número.
Zé Pretinho está espantado. Espera que Noel cante, põe-se de pé à porta do
estúdio. Estranho, Noel nao é de falar assim com ninguém, muito menos com
ele. E logo na frente dos outros, todo o mundo testemunhando. Zé Pretinho
interpela Noel assim que o número acaba.
- Eu já te disse que não quero conversa! Zé Pretinho fica furioso, levanta o
braço, desfere um tapa que vai atirar Noel longe, quase no colo de Odette
Amaral. Uns vão segurar Zé Pretinho, temendo que ele não pare por aqui. Outros
acodem Noel. Só depois o agressor saberá o motivo da zanga do agredido, a
intromissão indevida de Kid Pepe num samba que ele lhe dera de presente. Logo
Kid Pepe! Mas será tarde. Noel nunca mais vai querer falar com ele. A não ser
através de um samba, soberba crônica da vida carioca, do mundo dos malandros,
do sinal dos tempos, o conselho de Zé Pretinho lembrado ao próprio Zé Pretinho,
o revólver como forma de impor respeito. O velho malandro - o da rasteira, o da
habilidade com o aço, o da ginga de corpo e da camisa de seda - começa a sair
de cena. Um revólver pode muito mais. A morte do imortal Saturnino, pelas
mãos de um fraco, será prova disso. É do que fala Século do Progresso, o
recado de Noel a Zé Pretinho(7): 7. Almirante nos dá três diferentes versões do episódio que teria levado Noel a fazer Século do Progresso. Na primeira,
na Revista da Semana de 20 de dezembro de 1952 (página 72), não cita o nome do compositor que agrediu Noel na Rádio Cruzeiro do Sul e que "dele se afastara, covardemente, daí em diante, ao sabê-lo
munido de uma arma, na justa precaução contra possíveis traições do desafeto que nem no próprio físico avantajado confiava". Almirante supunha então tratar-se de Kid Pepe, Na segunda, na primeira
edição de No Tempo de Noel Rosa (páginas 116-118), atribui a indignação de Noel ao fato de ter o nome de Zé Pretinho surgido como parceiro do samba cuja letra Kid Pepe lhe arrancara "praticamente
à força". Ao interpelar Zé Pretinho, este o agredira. Para se defender, Noel teria recorrido não a uma arma, mas à presença no estúdio da Rádio Cruzeiro do Sul de um investigador "amigo dos diretores
da emissora". Na terceira versão, na segunda edição do mesmo livro (página 142), desaparecem a arma e o investigador. E Noel teria se zangado porque, depois de ter feito o samba com Kid Pepe e Zé
Pretinho, estes o lançaram sem lhe citar o nome. Três histórias diferentes, nenhuma delas correta. Por que iria Noel Rosa se irritar tanto com a omissão de seu nome num samba menor como Tenho Raiva
de Quem Sabe, ele que nunca se importou em ser escondido por parceiros bem mais importantes e em obras bem melhores e de maior sucesso? Os autores ficam com esta quarta versão, que lhes foi
contada por Manuel Ferreira e o próprio Zé Pretinho. A mesma, por sinal, que o último relatou a Almirante, mas só depois que este já havia divulgado as outras três.

A noite estava estrelada


Quando a roda se formou
A lua veio atrasada
E o samba começou

Um tiro a pouca distância


No espaço, forte, ecoou
Mas ninguém deu importância
E o samba continuou.

Entretanto, ali bem perto


Morria de um tiro certo
Um valente muito sério
Professor dos desacatos
Que ensinava aos pacatos
O rumo do cemitério

Chegou alguém apressado


Naquele samba animado
Que cantando assim dizia:
"No século do progresso
O revólver teve ingresso
Pra acabar com a valentia."
Capítulo 30

RUMO AO NORTE

Eu bem sei que tu condenas


O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar
Mais Um Samba Popular

Se pensasse melhor, Benedicto Lacerda teria mudado há muito tempo o


nome com que o falecido Sinhô batizou o seu conjunto: Gente do Morro. Neste
1934 ainda são muitos os preconceitos contra as populações lá de cima, o
pessoal pobre que se empilha em centenas, milhares de barracos de paredes de
caixote. Não é por acaso que os preconceituosos membros das famílias de classe
média ou alta, quando querem ressaltar a má educação de alguém, costumam
dizer com desprezo: "Parece gente do morro."
Mas Benedicto Lacerda não pensou nisso. Seu conjunto, embora com a
formação de grupo de choro - ele na flauta, Canhoto no cavaquinho, Carlos
Lentine e Gorgulho nos violões, Russo no pandeiro - vem se dedicando cada vez
mais ao samba, influência que Benedicto traz dos seus tempos de Estácio, onde
foi criado entre os meninos de morro que mais tarde mudariam os rumos da
música popular carioca. A inclusão de Russo - por sinal, também criado no
Estácio - e outros ritmistas em seu grupo de choro atende a essa caminhada em
direção ao samba. O nome Gente do Morro tem a ver com ela.
Nos primeiros dias de março de 1934, surge a possibilidade de uma
excursão de artistas cariocas a algumas cidades do norte fluminense e Espírito
Santo. João Cantuária, bom camarada, simpático, que sonha em tornar-se grande
empresário (sonho que jamais realizará), procura Benedicto para propor a
organização de pequena companhia de músicos, humoristas, cantores, para
apresentações em várias cidades. A começar por Campos, na medida em que as
coisas forem correndo bem, a companhia irá se dirigindo para o norte, Espírito
Santo, Minas, talvez Bahia, Pernambuco, Ceará, um roteiro bastante ambicioso.
O flautista se anima. E se incumbe da parte musical, enquanto Cantuária se
encarrega da administrativa.
Benedicto encontra, porém, dificuldades. Por motivos diversos, Lentine e
Gorgulho não querem sair do Rio por tanto tempo (afinal, não há data prevista
para o término da excursão, tudo dependendo das bilheterias que conseguirem).
Assim, seu regional começa desfalcado. Se estava em seus planos levar algum
cantor de sucesso, um Francisco Alves, um Mário Reis, um Sílvio Caldas, uma
Carmem Miranda, a idéia não passa disso. A viagem tem muito de aventura e
nenhum cartaz do rádio há de trocar o certo pelo duvidoso, o emprego fixo por
uma atividade itinerante e temporária. Esses problemas obrigam Benedicto e
Cantuária a algumas improvisações. Privado de seus dois excelentes violonistas,
o flautista contrata o amigo Macrino Medeiros e pede que o cômico Coringa,
além das piadas e emboladas, ajude com seu violão no acompanhamento. Na
parte humorística, aproveitando que Coringa e seu companheiro de dupla, Grijó
Sobrinho, vão levar as mulheres, as duas serão utilizadas em sketches. Por fim,
os cantores. Foi de Cantuária a sugestão de convidarem Itamar de Souza, morena
bonita, voz afinada, mas quase desconhecida, que por estar atrás de uma chance
não fará exigências maiores. A indicação do cantor é de Benedicto: - Que tal o
Noel Rosa?
Noel e Benedicto Lacerda conhecem-se há tempos. Antes de tornarem-se
profissionais, fizeram serenatas juntos em Vila Isabel. A amizade cresceu
quando Noel começou a freqüentar o Estácio e mais ainda quando, ambos
decididos a viver de música, passaram a se encontrar em programas de rádio,
gravações, espetáculos em cinema e teatro. No dia 17 de janeiro, os dois
participaram de um recital beneficente do Sindicato Brasileiro de Artistas de
Rádio, no mesmo programa da revista Eva Querida, no Recreio. Eles, Almirante,
Sílvio Caldas, Manezinho Araújo, Ary Barroso, Custódio Mesquita, Jorge
Murad, Nonô, Renato Murce, João Petra de Barros, Sylvio Vieira, Sylvia de
Toledo e o conjunto do Sindicato dirigido por Pereira Filho. Nestas ocasiões,
Noel canta não só sucessos como trabalhos que pretende tornar conhecidos. É o
caso de Para Atender a Pedido:
Para atender a pedido
Tudo o que eu tenho sofrido
Eu preciso esquecer
Pois é preciso esquecer
Pra poder te perdoar
Antes de te visitar.

Deves te acostumar
A fazer o que eu mandar
E a me respeitar
Fica estabelecido
Que não mentes nunca mais
Para atender a pedido.

Antes de esquecer
O teu triste proceder
Que me fez padecer
Eu já tinha me convencido
Que havia de voltar
Para atender a pedido.

E também Por Você Sou Capaz, onde se encontra - além do prazer da


vadiagem, da aversão ao trabalho e até da rendição do malandro capaz de
apanhar por amor - uma referência a vovô Eduardo, tão avesso aos jogos de azar
desde a época do mexicano Zevada.
Por você fico cego, surdo e mudo
Por você eu passo fome até morrer
Por você sou capaz de tudo
Até o trabalho sou capaz de experimentar
Pra conhecer

Eu não sou mau rapaz


Não procuro brigar
Por você sou capaz
De gostar de apanhar!

Eu padeço demais
Sem me desabafar
Por você sou capaz
De aprender a chorar!

Meu avô que odiava


Esses jogos de azar
Por você arriscava
Um tostão no milhar!

Neste espetáculo, Benedicto Lacerda e seus companheiros (Lentine,


Gorgulho, Canhoto e Russo) apresentaram-se como Conjunto Guanabara. Agora,
como o grupo é efetivamente outro (saíram Gorgulho e Lentine, entraram
Macrino, Coringa e os cantores, além de Doidinho para reforçar o ritmo com seu
ganzá) e como Benedicto pretende que o samba, o samba tipicamente do Estácio,
São Carlos, Favela, Saúde, Gamboa, seja o forte do repertório, troca o
Guanabara pelo antigo Gente do Morro. Já se verá, um erro estratégico.
Benedicto Lacerda é um músico formidável. Como flautista, um virtuose
diplomado na escola dos chorões, mas que aprendeu muito também como
músico de banda e mais ainda em seu convívio com o pessoal do samba. Esta
será sua grande marca. Enquanto Pixinguinha, por exemplo, segue a tradição de
um Patápio Silva, soprando sua flauta em choros, valsas, polcas e maxixes,
Benedicto criará sua própria tradição, a de primeiro (e talvez único) flautista do
samba, descobridor de introduções e contrapontos que vão enriquecer o gênero,
sobretudo através das muitas gravações que fará acompanhando os maiores
cantores desta e de futuras épocas. Como líder, é homem de personalidade,
inteligente, atento, de muita perspicácia e poucos escrúpulos. Como Francisco
Alves, também é de percorrer a cidade atrás de sambistas anônimos, disposto a
comprar ou a apropriar-se sem cerimônia de suas composições inéditas. É
absolutamente verídico aquele seu golpe com Baiaco nas mesas de café do
Mangue.
Noel Rosa também é grande cartaz e normalmente teria os motivos de
Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, Carmem Miranda, para não querer
sair do Rio em troca do certo pelo duvidoso. No entanto, aceita o convite de
Benedicto.
Por quê? Não há a menor garantia de que ganhará dinheiro lá fora. Nem de
que a jornada o fará mais conhecido em outros pontos do país. Na verdade,
sequer sabe ao certo aonde vão, Cantuária seguindo na frente para fazer contatos
na próxima cidade incluída no roteiro. E mesmo este roteiro é uma abstração.
Está decidido que principiarão por Campos, mas por onde acabarão? E por quais
lugares passarão? Noel, contudo, não parece dar importância a essas questões.
Quem sabe não vê na viagem boa oportunidade para afastar-se do Rio por longo
tempo, de estar tanto quanto possível livre dos problemas com Lindaura? A
ausência do Rio poderá trazer-lhe apoquentações, pois é justamente durante a
viagem que se dará aquela transação entre Zé Pretinho, Kid Pepe e Mário Reis
em torno de Tenho Raiva de Quem Sabe. Mas como adivinharia?
No dia 15 de março, quinta-feira, embarcam todos no trem noturno para
Campos. Pouco antes Noel limitou-se a dizer para Lindaura: - Vou ali na esquina
comprar cigarro. E partiu rumo ao norte. Ele e uma troupe de dez que se vão
juntar ao empresário Cantuária (por enquanto ele prefere ser chamado de
"secretário", pois suas tarefas são arranjar hotel, acertar detalhes com os cinemas
e teatros locais, cuidar da bilheteria, proceder à partilha dos eventuais ganhos,
coisas mais burocráticas do que empresariais). Os dez são aqueles que Cantuária
e Benedicto haviam combinado: os quatro do Gente do Morro (Benedicto,
Canhoto, Russo e Macrino), mais Coringa e senhora, Grijó Sobrinho e senhora,
Itamar de Souza e Noel.
Em Campos, Cantuária informa-lhes de saída que não foi possível
programar espetáculos nas principais casas da cidade: estavam todas sem data. O
remédio foi procurar o Antônio de Mattos, gerente do Coliseu dos Recreios, e
acertar com ele uma série de funções de sábado, 17, a sexta-feira, 24, incluindo
três ou quatro matinês.
O Coliseu dos Recreios é um cineteatro popular, quase um poeira, não
exatamente o que merecem grandes cartazes do rádio carioca. Em todo caso...
A estada em Campos permite a Noel rever e conhecer parentes que se
orgulham de pertencerem a família do compositor de O Orvalho Vem Caindo.
São os Pachecos, todos morando no 157 da Rua 13 de Maio. Gastão Meirelles de
Freitas Pacheco, agente ferroviário, é o dono da casa. Ele, a mulher, Julieta, e os
sete filhos - Haydée, Célia, Jacy, Lygia, Nelie, Lourdes e Luís Carlos - recebem
o primo do Rio com agrados. Principalmente Célia e Jacy, ela pianista, ele poeta,
e portanto mais identificados com o compositor popular Noel Rosa.
A estréia no Coliseu dos Recreios está longe de ser o que se costuma
chamar de começo com o pé direito: pouca gente para uma noite de sábado,
justamente quando se esperava que o velho teatro ficasse lotado. E o interesse
parece estar muito mais na exibição do filme Abraça-me Bem (Hold Me Tight),
com James Dunn e Sally Eilers, do que no Gente do Morro. Só nos dias que se
seguem os campistas ficam sabendo que os artistas cariocas que os visitam não
são um grupo folclórico formado nos morros do Rio, ritmistas de escola de
samba e suas cabrochas, batuqueiros e negras velhas cultores de pontos e outros
sons de terreiro. Escolas de samba e macumba são coisas que o campista de
classe média ainda não gosta de ouvir falar. Por não as conhecer, fica longe
delas. Quem há de querer pagar três ou quatro mil réis para ver gente de morro
batendo atabaques, tocando primitivamente suas violas e cavacos?
O equívoco não tardará a ser desfeito. Em parte pela propaganda que farão
do espetáculo os poucos que lá estiveram, uma propaganda de boca, do tipo:
"São ótimos estes artistas do Rio!" E em parte também porque a imprensa vai
falar não só com mais entusiasmo mas com mais clareza sobre a espécie de
espetáculo em cartaz no Coliseu. Por exemplo, no dia da estréia, o único jornal
da cidade a noticiá-la, A Folha do Comercio, o fez nestes termos: "Compositor
laureado e intérprete inigualável do que é seu, do que é nosso, está Noel Rosa
em nossa cidade, animando, ao lado do consagrado flautista, também
compositor, Benedicto Lacerda, a troupe de variedades que se encontra no
Coliseu dos Recreios.
Criador de uma escola, conseguiu aliar à poesia dolente de sua idade (sic) a
marcação crioula do batuque.
O samba de Noel Rosa é nascido de um consórcio feliz do Morro com a
Avenida.
Tem a sutilidade (sic) maviosa da menina elegante e a cadência malandra
da catita bacaria."
Mais adiante:
"O autor de Três Apitos compõe um samba para cada mulher que conhece.
Acontece, porém, que mais de dez mulheres se dão a conhecer ao saberem
do samba.
Noel Rosa é um paradoxo.
Tem 23 anos de idade e mais de 300 (sic) composições o contemplam.
Chegou a cursar medicina.
Parou no meio porque o Salgueiro fica distante da Praia Vermelha."(1)
1. Folha do Comércio, Campos, 17 de março de 1934.

Um registro elogioso, sem dúvida, mas falando demais em morro, em


marcação crioula do batuque, em catita bacana, num jovem de 23 anos sem juízo
o bastante para trocar o anel de doutor pela música do Salgueiro. Para o leitor
campista, não ficou muito claro o que estava em cartaz no Coliseu dos Recreios.
Três dias depois, O Monitor Campista esclarece:
"De fato, Gente do Morro merece um destaque especial no seu gênero. É
um verdadeiro conjunto regional, interpretando com fidelidade toda a série de
músicas nacionais, desde o samba cadenciado e maneiroso que nasce nos morros
até a valsa sentimental e querida dos pierrôs e colombinas. E tudo isso eles
fazem com arte, ritmo e uma naturalidade espantosa, que arrancam palmas
estrepitosas, bis seguidos.
Noel Rosas [sic] é o homem que, parece, nasceu para o gênero. Canta, com
muita alma, todas as canções que o conjunto executa com mestria."(2) 2. Monitor Campista, 20
de março de 1934.

Essa história de valsas sentimentais, pierrôs e colombinas agrada bem mais


às famílias campistas. E o Coliseu dos Recreios, a partir de terça-feira, passa a
receber um público digno dos artistas cariocas. Daí para o sucesso é um pulo.
Sucesso de todo o grupo, mas especialmente de Noel Rosa. O excelente centrista
de cavaquinho, Canhoto, jamais esquecerá como Noel domina a platéia com sua
arte. Uma platéia que, invariavelmente, faz pouca fé nele, ao ver e ouvir Grijó
Sobrinho apresentar, um a um, os integrantes do grupo. São muitas as palmas
para Benedicto Lacerda. Deliram as pessoas quando Russo, em vez de uma
mesura, responde aos aplausos fazendo rodar seu pandeiro na ponta do
indicador. Gargalhadas e mais palmas para Coringa. Palmas também para
Macrino, Doidinho e os humoristas. Até o próprio Canhoto - menos conhecido
que outros canhotos como Américo Jacomino e Rogério Guimarães, e não
sabendo ainda se se entrega exclusivamente à música ou se mantém o emprego
de mata-mosquitos que o sustenta - pois até este modesto Canhoto é saudado
entusiasticamente. Mas, chegada a hora de Noel, Grijó anunciando: "E aqui Noel
Rosa, o Bernard Shaw do Samba", a reação é outra. Uns riem, outros esboçam
tímidas palmas, outros mais murmuram comentários que traduzem
desapontamento: "Puxa, não sabia que era tão feio!" Tudo isso até que caiba ao
desajeitado Noel, o corpo franzino, o ombro meio de lado, debruçar-se ao violão
para, no segundo ou terceiro número da noite, cantar um de seus sambas: (Mais
Um Samba Popular)
Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar,
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular.

Eu bem sei que tu condenas


O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar.

Se acaso não gostares


Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação.

Por motivos bem diversos


Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim.

E o Coliseu dos Recreios estremece com tantas palmas e assovios.


Mais Um Samba Popular foi feito pouco antes da viagem, mas só será
lançado oficialmente no ano que vem por um crioulinho que virá de Minas para
o Rio convencido de que pode fazer carreira no teatro. Um artista de circo
chamado Sebastião Bernardes de Souza Prata, de 19 anos, mais conhecido pelos
colegas pelo pseudônimo de Grande Othelo. O samba de Noel será cantado por
ele em sua segunda experiência nos palcos cariocas, a revista de Jardel Jércolis e
Geysa Boscoli, Estupenda!, encenada no Teatro João Caetano. Uma peça que
por sinal marcará muito a vida do mineiro Sebastião, pelo samba de Noel e por
ter ele sofrido ali o primeiro pito profissional de sua vida. Tendo de aparecer
num dos sketches ao lado de um comediante já bastante popular, o espanhol
Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza y Díaz - ou
simplesmente Oscarito - vai se esquecer de que este é o "cabeça-de-quadro" e
tentar roubar o show. Como poderá se atrever a dividir uma cena com Oscarito
este tal de Grande Othelo? Jardel o repreenderá.
Mas isso só vai acontecer no ano que vem. Por ora, Mais Um Samba
Popular é pouco conhecido, quase inédito. Tem melodia de Vadico, que um dia
mostrou-a a Noel, a primeira parte toda pronta, letra do próprio pianista:
Eu fiz um samba pra te dar
Feio ou bonito, faça força pra gostar
Se não gostares
Eu só posso te dizer:
"Meu benzinho, me perdoe,
Que melhor não sei fazer."

Noel, com aquele jeito todo seu de não dizer claramente quando não gosta
de alguma coisa (nem precisava), perguntou a Vadico se podia fazer uma letra
inteiramente nova. O parceiro concordou, nascendo assim o novo samba que só
terá sua primeira gravação daqui a muito tempo(3).
3. O samba, escrito em fins de 1933, começo de 1934, só seria gravado em 1954 por Ana Cristina com o conjunto de Luís Bittencourt, no antigo selo Sinter. De volta de uma longa
permanência nos Estados Unidos, só então Vadico o desarquivou.

Gastão Meirelles de Freitas Pacheco trabalha muito e ganha pouco. Mal tem
tempo para sorrir. Noel esbarra com seu ar fechado e o desmorona numa frase: -
Primo, enquanto a gente estiver aqui você vai ter que deixar sua caturrice de
lado. Nós vamos invadir sua casa. Por nossa conta.
E Gente do Morro de fato invade o lar dos Pachecos. Com música e alegria,
no tempo em que estiverem em Campos, promovendo ali alguns saraus.
Todas as madrugadas são madrugadas para Noel. No Rio de Janeiro ou em
Campos. Aqui, de noite, pouco importa a que horas tenha começado o
espetáculo, quanto tenha durado, se está ou não cansado, seu rumo nunca é o do
Hotel Gaspar, na Praça São Salvador, onde estão hospedados. Não antes das
cinco, seis da manhã. Até Russo, boêmio incorrigível, desses que vivem batendo
recordes de noites em claro na Lapa e outras plagas, tem dificuldades em
acompanhar o ritmo do amigo.
Sarau campista

"Nossa casa se enche de moças e rapazes, de intelectuais, músicos, boêmios, gente do povo. Caras
conhecidas. Caras estranhas. Os penetras. Eram todos de casa, naquela noite. lá para as 20 horas chegam
dois barris de chope. Na sala de visitas Célia toca piano e a dança tem início. Noel chega com Benedicto
Lacerda e os demais elementos do Gente do Morro. Entra em ação a flauta mágica, o pandeiro do Russo. O
baile se anima. Pouco depois, a sala vai se esvaziando, enquanto a copa está intransitável. Por que motivo o
pessoal se desloca da sala para o interior da casa? Ah! O Noel está junto ao barril de chope, pegado num
tremendo desafio com o poeta Claudinier Martins. Então podemos apreciar versos saborosíssimos, que são
improvisados pelos dois artistas. Forma-se a roda. Em seguida, as moças puxam Noel para a sala de visitas
e Obrigam-no a empunhar o violão. Pedem que ele faça uma quadrinha para cada uma delas. Noel forma
um perfumado círculo feminino. Entra na roda. Canta. Aponta para os brincos de uma e improvisa versos de
bela feitura. Sobre os cabelos louros de outra, os olhos negros daquela outra, faz uma segura demonstração
de seu talento poético, monopolizando atenções e aplausos. Sua agilidade mental é espantosa. As moças
pedem bis, querem copiar os versos que ele improvisa, guardar de lembrança os galanteios.
De madrugada, quando a festa terminou, a rapaziada acompanhou Noel na serenata que se seguiu, até
o sol iluminar a planície..."
Jacy Pacheco - Noel Rosa e Sua Época
Russo - na verdade Antônio Cardoso Martins - é alegre, cheio de espírito.
Virou pandeirista por acaso. Vendia medalhinhas milagrosas nos domingos de
festa da Penha, uma forma de complementar seu esquálido salário como
mecânico e depois como vendedor de inseticida Flit, quando teve a atenção
atraída por um grupo de choro que se apresentava numa das barraquinhas. Viu
um pandeiro largado sobre a cadeira, pegou-o, brincou com ele. Um dos músicos
do grupo gostou, achou que Russo tinha bossa e convidou-o a entrar para a
turma. Desde então, não largou mais o instrumento. Tão ligado está a ele que,
daqui a algum tempo (e para sempre), ficará conhecido não como Antônio, ou
mesmo Russo, mas como Russo do Pandeiro. Russo passa a recusar os convites
de Noel para as madrugadas campistas. Não tem fôlego para tanto. Conforme
ficara acertado por Cantuária com Antônio Mattos, o Gente do Morro deveria
fazer várias matinês no Coliseu. Noel, sempre dormindo, recuperando-se da
noite em claro, jamais participou de uma matinê. Grijó Sobrinho dirigia-se ao
público para explicar tal ausência, uma vez que o nome de Noel estava no
programa.
- Senhoras e senhores, lamento informar-lhes que, por motivos de saúde,
nossa principal atração, o grande Noel Rosa, o Bernard Shaw do samba, não
estará conosco esta tarde. À noite, porém, nós o teremos aqui cantando como
ninguém os seus sambas.
Toda matinê a mesma coisa. Muitos dos que vão ao Coliseu à tarde o fazem
porque trabalham a noite. E acabam saindo frustrados com a repetida ausência
de Noel Rosa. Um desses trabalhadores noturnos, na terceira ou quarta vez em
que Grijó recomeça suas explicações, "Senhoras e senhores, lamento informar-
lhes...", interrompe lá das torrinhas:
-Já sei, não precisa dizer. O homem esta doente!
A estada de Noel Rosa e o Gente do Morro em Campos é, por muitos
motivos, agradável. Os boêmios da terra tentam acompanhar Noel, ouvem-no
cantar na zona boêmia, ficam impressionados com seu jeito de levar na conversa,
entre um samba e outro, mulheres escoladas, aparentemente imunes a qualquer
tipo de lábia. Os amigos de Jacy se aproximam dele. Como o Claudinier Martins,
poeta também. Meio doente, sifilítico, estranho.
- Vou me matar!- costuma exclamar durante uma conversa.
Jamais cumprirá a ameaça. Mas uma noite, Noel e todos os outros
acompanhando-o num passeio à margem do Paraíba, Claudinier levará um susto.
Primeiro, repete:
- Hoje eu vou mesmo me matar!
Os companheiros todos o agarram, gritando:
- Ou você se joga no rio, ou o jogamos nós!
Claudinier, apavorado, consegue desvencilhar-se. E sumir em disparada na
noite campista.
Jacy Pacheco escreve um artigo sobre os artistas cariocas. Tem conhecidos
na imprensa, os jornais abrem-lhe espaço:
"Ninguém contesta. Noel Rosa e Benedicto Lacerda não precisam mais de
reclame. Estão imortalizados em inúmeros discos com suas belas composições.
No último carnaval, tivemos, de Noel, O Orvalho Vem Caindo, Você por
Exemplo e outras cousas boas que iriam encher muitas linhas se fosse mencioná-
las aqui."(4)
4. Folha do Comércio, 25 de março de 1934.

Arêas Júnior, sob o pseudônimo de Aristarco II, publica em sua seção


Picolé Singelo uma quadrinha que revela estar superado o insucesso dos
primeiros dias, o Coliseu dos Recreios, propriedade de Antônio Mattos, lotado a
cada apresentação:
Sobre o fato não discorro
Digo sem espalhafatos:
- A turma do Gente do Morro
Foi trazida pelo Mattos(5).
5. Ibidem.

Na quinta-feira, dia 22 de março, o espetáculo dos artistas do Rio é


enriquecido com a participação do pessoal da terra. Jacy Pacheco sobe ao palco
para recitar um soneto caipira de sua autoria. "Ele não é caipira", esclarecerá
uma vez mais a Folha do Comércio, "mas a Gente do Morro também não é do
morro"(6).
6. Ibidem.

Outros músicos e poetas campistas aproveitam a oportunidade para mostrar


o que sabem: Cássio Chaves, José Honório de Almeida, Oswaldo Aguiar,
Claudinier.
Com pessoal da terra ou não, o líder da tournée é mesmo Benedicto
Lacerda. Que sabe manter a disciplina a qualquer preço. Na fala mansa ou no
braço, como fez com o Russo no dia em que este andou saindo da linha.
Benedicto aplicando-lhe tabefes em frente ao hotel e o pobre do Russo chorando
como menino.
Sábado, dia 24, o espetáculo tem lugar no Clube Tenentes de Plutão. Para
uma platéia seleta, porém menor. De domingo a terça-feira, 27, mais três
funções, desta feita no CineTeatro Trianon. No dia seguinte, seguem viagem
para Muqui. Deixam Campos e os campistas com saudades. Noel
principalmente. Jacy Pacheco dirá seu adeus numa quadra publicada exatamente
no dia em que o primo se vai:
Este sambista tem fama
Na capital gloriosa
Cada mulher que ele ama
Um samba faz...
- Noel Rosa!(7)
7. Ibidem.

Muqui, já no Espírito Santo, é uma pequena cidade da Zona Serrana do Sul,


a pouco mais de 200 metros de altitude, com população de mil e poucas pessoas,
hospitaleiras e muito religiosas. No roteiro traçado por Cantuária e Benedicto
Lacerda, outro equívoco. Como dirá Noel Rosa, daqui a alguns meses, em carta
à prima Célia, "um lugar horrível". Não tanto pelo lugar em si ou por seus
habitantes, mas pelo que o Gente do Morro vai passar aqui.
Chegam a Muqui na quarta-feira. Na noite seguinte, 29 de março, Quinta-
feira Santa, dá-se a estréia no único cinema da cidade. Durante todo o dia,
porém, o padre local percorreu as ruas, bateu de porta em porta, advertindo as
ovelhas de seu rebanho sobre os pecados de se ir ver e ouvir sambistas de morro,
boêmios da cidade grande, cultores de uma música profana, justamente nos dias
sagrados da Semana Santa. Resultado: o cinema fica vazio. Até no sábado de
Aleluia - quando todos os moradores do município de São João de Muqui
costumam vir à cidade para uma prosa, um passeio na praça, um cinema -
ninguém quis saber do Gente do Morro. Pecado é pecado, inclusive sob as
bênçãos da Aleluia.
Será ainda na carta a Célia que Noel vai contar a mania que Russo pegou,
ao passar por esta cidade tão insensível à arte do Gente do Morro: "O Russo
pandeirista, quando quer xingar alguém, chama de 'tipo muquiense'. O Russo
está com a razão."
Vitória. Bonita cidade, crescendo muito, estação de rádio, cinemas, bondes,
lugares bonitos, praças, praias. O Palácio Anchieta, onde está o túmulo do
célebre jesuíta. A chácara do Barão Monjardim e tudo mais. Uma população de
quase 30 mil habitantes. Gente próspera, classe média em ascensão, atenta à
moda e à cultura que vêm do Rio. Para adotá-las, é claro.
A história se repete na capital capixaba, o nome Gente do Morro
afugentando o público, muitos supondo tratar-se de um grupo improvisado e
malvestido de sambistas da Favela(8).
8. Diz Canhoto em depoimento aos autores, a 13 de março de 1981: "As pessoas nos perguntavam nas ruas se a gente tocava tamanco, como os sambistas de morro."

O gerente do melhor cineteatro da cidade, o Glória, nem quis receber João


Cantuária. Imagine se sua casa de espetáculos, tão respeitável, ia descer ao nível
da gente do morro! A solução é recorrer ao Politeama, outro poeira, tão ou mais
velho e arruinado que o Coliseu dos Recreios. Só que desta vez Benedicto
Lacerda e sua turma não contarão com propagandas de boca, muito menos com o
apoio da imprensa. E as coisas se complicarão.
A estréia em Vitória é na noite de 4 de abril, quarta-feira. Será o bastante
para Benedicto concluir que toda essa excursão é um erro. Se perto do Rio, em
Campos, Muqui, Vitória, tudo é difícil', o público abandonando-os, o que dizer
do norte do país, Bahia, Pernambuco, Ceará, onde talvez ninguém jamais ouviu
falar dele e de Noel Rosa?
Todos os membros da caravana se preocupam com esse fracasso.
Benedicto, o pessoal do Gente do Morro, Grijó Sobrinho, Coringa, Itamar, as
outras mulheres. Todos, menos Noel. Para ele, estar em Vitória é antes de tudo
uma oportunidade de descobrir novos ambientes, novas pessoas. Ainda que os
ambientes e as pessoas sejam muito parecidos com os que ele conhece no Rio.
Continua no seu ritmo de vida, desaparecendo nas madrugadas depois do
espetáculo, passando as noites em cabarés e prostíbulos, só chegando à Pensão
São Luís, onde estão hospedados, pelas cinco, seis da manhã. Nos primeiros
dias, Russo e Canhoto tentam acompanhá-lo. Como de hábito, perdem o fôlego e
acabam desistindo.
Noel gosta de Vitória. Curiosamente, sente-se bem aqui. Como se a
distância do Rio o deixasse livre de Lindaura e de todos os problemas. Faz
amizades, especialmente no Félix, cabaré de quinta categoria freqüentado por
boêmios, marinheiros e malandros. Costuma sair diretamente do Politeama para
o tal cabaré, onde muitas vezes sobe ao palco - não mais que um estrado de
madeira para os músicos de uma orquestrinha da categoria do lugar - e ali canta.
Ou se acompanhando ao violão ou empunhando um megafone que, à falta de um
microfone de verdade, leva sua voz fraca a todos os cantos da sala. Depois da
quinta ou sexta cerveja, improvisa versos a pedido dos presentes. Como esta
quadrinha dedicada a uma das mulheres, de nome Yolanda, o mesmo da popular
marca de cigarros.
É você a que comanda
E o meu coração conduz
Salve a dona Yolanda
Rainha da Souza Cruz(9).
9. Cantada pelo saxofonista José Miranda Pinto, o Coruja, a Jacy Pacheco, e transcrita por este em seu livro O Cantor da Vila (página 113).

Quando não está no Félix, pode ser encontrado na Pensão do Badu, lugar
que não deve sequer ser mencionado por gente de família, quanto mais
freqüentado. É ali que conhece Alagoano. É ali também que vai conhecer Isaura,
uma das melhores coisas que lhe acontecem nesta viagem. Alagoano é um
moreno alto, magro, cara de mau, amigo de gente influente do lugar. Mais que
isso, é um desses muitos capangas que os coronéis do interior têm a seu serviço.
Só anda armado e um de seus prazeres é provocar gente da polícia, espécie de
prova de fogo em que ele, costas largas, acaba sempre levando a melhor.
Alagoano fica amigo de Noel. E vai esperá-lo todas as noites à saída do
Politeama. Benedicto, Russo, Canhoto, ninguém mais do grupo participa desses
programas que se prolongam até de manhã. Russo só vai uma vez, dança na
Pensão do Badu, canta, bebe e com o sol surgindo acompanha Noel em seu
passeio diário até o Mercado Municipal, onde ostras frescas com limão são o
café da manhã do amigo.
- Tomo isso todos os dias. É o que me dá forças - explica Noel.
Canhoto também só vai uma vez. Para nunca mais. Passam pelo cabaré,
bebem, saem para tomar ar na Praça Independência, a principal da cidade(10).
10. Atual Praça Costa Pereira.

Estão os três sentados no banco de pedra quando Noel diz:


- Alagoano, onde é o banheiro mais perto?
- Pra quê?
- Dor de barriga.
Alagoano vê se aproximar o guarda que faz a ronda por ali, todas as noites.
Há muito tempo vinha aguardando oportunidade para provocá-lo, medir forças
com ele, ver qual dos dois tem mais vocação para dono da cidade. O guarda se
aproxima, passa pelo banco onde estão os três, cumprimenta-os. Alagoano não
perde a oportunidade:
- Noel, tu não tava com vontade de ir ao banheiro?
- Estou.
- Pois então faz aqui mesmo no meio da praça.
- Aqui?
- Isto, no meio da praça.
O guarda olha, um pouco assustado. Noel fica sem saber o que fazer.
- Anda, Noel. Eu tou mandando. Faz aqui mesmo.
Noel obedece. Começa a soltar o cinto. O guarda olhando, imóvel, sem
dizer nada, e ele desabotando a calça.
- Anda logo, Noel. Não faz cerimônia. A praça é sua. Quem manda nesta
cidade sou eu, o Alagoano.
E assim, sorriso amarelo, diante de um Alagoano mal-encarado e de um
Canhoto perplexo, o guarda vê Noel desapertar-se em plena Praça
Independência.

Ao fim da primeira semana em Vitória, ainda há esperanças de que a


excursão tome pé. Mais que isso, os planos de seguir em frente, rumo ao norte,
são mantidos. O que está bastante claro no programa que o Clube dos
Democráticos faz distribuir pelas ruas de Vila Velha anunciando a única
apresentação do Gente do Morro naquela cidade:"... antes de partir para a Bahia,
onde deverá estrear no Teatro Jandaia."
Vila Velha, ex-Espírito Santo, é outra pequena cidade. Ao sul de Vitória,
pouco mais de cinco mil habitantes, uma vida pacata em frente à praia mansa,
um dia será tragada pelo crescimento da capital. Por enquanto, porém, tem vida
própria, cinema, clube, a praça, o belo outeiro onde está o Convento de Nossa
Senhora da Penha. Mas o Gente do Morro não tem tempo para ver nada disso.
Vem, toca nos Democráticos, volta para Vitória. Nos dias que se seguem,
Benedicto, antes de todos os outros, chega à conclusão de que quanto mais cedo
voltarem ao Rio, melhor. O Politeama vive vazio, ninguém parece interessado
em samba, a idéia de aumentar o preço dos ingressos na esperança de arrecadar
mais também não surtiu efeito. Pelo contrário, afastou mais o público. Noel
mantém-se mais ou menos alheio a essas questões empresariais. Dorme de dia,
sai de noite. Bebe muito, come pouco,' as ostras com limão pela manhã, dois
ovos fritos à tarde. Só quer saber de noitadas, Alagoano a tiracolo. Félix, a
Pensão do Badu, violão, samba, cerveja, mulheres, Isaura.
Diversamente de Benedicto, está gostando da viagem. Não concorda em
voltar. Ele e Doidinho - que também arranjou mulher na Pensão do Badu - têm
planos para ir até Colatina, ou tentar a sorte em outras cidades. Cachoeira do
Itapemirim, por exemplo. Não, eles não vão voltar ao Rio tão cedo.
- Pois nós viajamos amanhã - diz Benedicto para os demais.
Gente do Morro e seus adendos estão sem dinheiro. Não têm sequer para
pagar a Pensão São Luís. Cantuária descobre que a Leopoldina dispõe de sistema
muito interessante de venda de passagens: um desconto de cinqüenta por cento
para quem comprar dez. Ele, Benedicto, Russo e Canhoto levantam algum
emprestado com o gerente do Politeama, compram as dez passagens e vão para a
porta da estação vender seis. Desse jeito, pagarão o que devem, viajarão de graça
e ainda ficam com o dinheiro de uma passagem.
- E a pensão? Como é que vamos pagar? - pergunta Canhoto.
- Não vamos - diz Benedicto, categórico.
Decidem dar um "cano de ferro" no proprietário. De madrugada, quando
todos estiverem dormindo, pegarão as malas e sairão de fino. Farão hora em
algum lugar até embarcarem. Só que, na confusão, além de suas malas, pegam
por engano a de Doidinho que dormia com sua mulher na Pensão do Badu. De
manhã cedo, o tocador de ganzá fica uma fera. Nem Gente do Morro, nem sua
mala. Vai à polícia e faz queixa. O delegado se mobiliza. Que seus colegas em
todo o estado interceptem quatro passageiros assim, assim, um deles com uma
flauta, outro com um pandeiro, o terceiro com um cavaquinho, o quarto com
uma mala preta. Além de deixarem Vitória sem pagar o dono da pensão, levam
uma valise roubada. O trem, que deve fazer uma viagem de 22 horas até o Rio,
vai parando em Argolas, Vianna, Marechal Floriano, Araguaia, Sagrada Família.
Quando chega a Matilde, uma estação antes de Cachoeira, os quatro são presos.
Na delegacia de Vitória, tudo é esclarecido. Doidinho pede desculpas aos
amigos, o delegado passa-lhes um brando carão e diz que está tudo bem, desde
que paguem o que devem à Pensão São Luís. Mas cadê dinheiro? A notícia
espalha-se pela cidade: os simpáticos músicos do Gente do Morro precisam de
ajuda. Onde está a tão decantada hospitalidade capixaba? Um grupo de pessoas
interessadas em música popular inicia um movimento destinado a reabilitar
Benedicto Lacerda e seus companheiros. À frente deste movimento, descendente
do barão, de família ilustre, está Alcebíades Monjardim(11), que se dispõe a
organizar uma festa no Hotel Imperial, a preços salgados, naturalmente mais
voltados para a sociedade local. Todo o dinheiro arrecadado será para os
músicos.
11. Pai de Maysa Figueira Monjardim, mais tarde a cantora e compositora Maysa Matarazzo.

A imprensa também ajuda. E na noite de 18 de abril, apesar do temporal,


faz-se o espetáculo, Benedicto executando suas valsas e choros, Noel cantando
seus sambas, Coringa mostrando suas emboladas, Grijó as suas anedotas.
Sucesso.
No dia seguinte, a caravana se divide em duas. Benedicto Lacerda (que
esquecerá o nome Gente do Morro para sempre, passando a dar o seu próprio ao
regional que lidera), Canhoto, João Cantuária, Macrino e Itamar voltam para o
Rio. Noel, Russo, Grijó, Coringa e respectivas mulheres tentam ganhar mais
algum trocado em cidades próximas. Fazem um espetáculo em Cachoeiro de
Itapemirim, outro em Colatina. Ganham apenas para as despesas e voltam a
Vitória. Em pouco tempo, o único vestígio que restará da passagem por aqui de
um certo conjunto Gente do Morro serão Noel Rosa e Doidinho, cada qual com
sua mulher na Pensão do Badu. Casa, comida e amor de graça.
Tudo como no seu samba Eu Não Preciso Mais do Seu Amor:
Eu não preciso mais do seu amor,
Mas posso precisar do seu favor
A minha fuga tem o seu porquê:
Disseram que eu dependo de você.

Em troca do amor que eu jurei


Ganhei quatro paredes pra morar
O que você me deu eu aceitei
Mas não pedi nem fiz você me dar.

Não nego que você me dava almoço


Jantar e mata-bicho como quê
Agora estou com a corda no pescoço
Disseram que eu dependo de você.

Eu sei que você tem dinheiro à beça


Mas isso quase nada me interessa
Desejo que seu dinheiro cresça
Cresça e no meu bolso apareça.

Eu vou deixar sua companhia


Sem cerimônia e sem fazer chiquê
Talvez na minha nova moradia
Não digam que eu dependo de você.

Noel e Doidinho acham melhor continuar por aqui, cada qual com seu par.
Isaura. Pouco se saberá dela daqui a alguns anos. De Alagoano ainda se
falará muito, sobretudo quando, poucos meses depois daquela prosaica cena na
Praça Independência, ele morrer anavalhado numa feia briga de botequim. Mas
de Isaura, nada. Paixão que Noel alimentou por pouco tempo, pois Martha, ao
saber no Rio que o filho não quer mais voltar - e que deixou desamparada a
pobre Lindaura - não pensa duas vezes: toma um trem para Vitória, entra
decidida na Pensão do Badu, fecha os olhos para o que não quer ver e manda
Noel fazer as malas.
A falta de juízo, deve ter pensado, tem limites. E por mais liberdade que
arranque da vida, Noel sabe que a mãe está certa.
Benedicto Lacerda e Pixinguinha
Benedicto Lacerda e grupo Gente do Morro: Russo no pandeiro, Gorgulho, violão; Benedicto, flauta; Canhoto no cavaquinho e Carlos Lentine, violão
Capítulo 31
NUMA FESTA DE SÃO JOÃO
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro, entornando champanhe
No seu soirée...
Dama do Cabaré

Lanternas coloridas suspensas por fios quase invisíveis: azuis, vermelhas,


amarelas, verdes, dispostas alternadamente sobre as mesas e a pista de dança do
Cabaré Apollo, constelam a noite de festa de Noel Rosa. São também coloridas
as bandeirolas recortadas em papel de seda e coladas em barbantes que se
cruzam em todas as direções. Não foi propriamente a imaginação que guiou o
gosto dos decoradores, mas o importante é que se conseguiu o indispensável
toque junino exigido pela ocasião: uma festa de São João em homenagem a Noel
Rosa.
É sábado, 23 de junho. São muito vivos os gerentes desses cabarés da Lapa,
sempre homenageando um cartaz da música popular, Ary Barroso, Aracy Cortes,
Sílvio Caldas, Benedicto Lacerda, Vicente Celestino, Luís Barbosa, João Petra
de Barros. Tão honrado fica o artista que nem lhe passa pela cabeça cobrar cachê
(a não ser, é claro, que o invite d'honneeur seja um Francisco Alves). E não é só:
além de cantar ou tocar de graça, o homenageado nunca deixa de levar consigo
alguns convidados, outros cantores e músicos que acabam se apresentando, no
máximo, em troca de algumas doses de uísque ou de uma garrafa de vinho
importado. Sim, são muito vivos os gerentes desses cabarés da Lapa que por
bem pouco, ou mesmo nada, conseguem organizar grandes noites de música em
suas casas. Como esta em homenagem a Noel Rosa.
É natural o contentamento do Cunha, um dos gerentes do Apollo. O cabaré
está lotado, gente por todos os cantos, mesas abarrotadas, pista de dança
intransitável. Tudo para ver e ouvir Noel. Lá em baixo, obstruindo com seu
corpo rotundo a estreita porta pela qual se sobe ao primeiro andar em que está
instalado o Apollo, Boi tem mais trabalho do que de costume. Não é fácil conter
o pessoal que chega. Delicado mas firme, diz: - Não cabe mais ninguém.
É um dos mais conhecidos leões-de-chácara da Lapa. Sobretudo por sua
incrível capacidade de, sendo alto, forte, mais parecendo um campeão de catch,
jamais usar outros métodos além dos bons modos para manter a ordem à entrada
do cabaré. Bêbados, menores de idade, malandros eventualmente indesejados,
ninguém passa pelo Boi se não houver aprovação lá de cima.
- Não insista. Que tal tentar o Roxy ou o Royal Pigalle? Ouvi dizer que as
meninas de lá deixam as nossas no chinelo.
Sempre delicado o Boi. Esta noite às voltas com uma multidão que o
Apollo, superlotado, não pode mais abrigar.
- Desculpe, mas por aqui, agora, só entram os artistas.
Tem de estar satisfeito o Cunha, casa cheia, festa de Noel Rosa. Por isso
passeia feliz por entre as mesas, cumprimentando os fregueses conhecidos,
tentando ser simpático aos que aqui vêm pela primeira vez. Repara nos dois
jovens casais que ocupam uma das mesas do canto. E muito especialmente numa
das moças, bonita, tipo mignon, toda sorrisos. Nota-lhe a alegria, quase
encantamento. Terá no máximo dezessete, dezoito anos. Como é possível
alguém tão jovem se encantar com um ambiente desses? O que terá visto no
Apollo? Cunha se aproxima, cumprimenta os quatro ocupantes da mesa.
- Como é o seu nome?- pergunta à moça tipo mignon.
-Juracy... Mas todos me chamam de Ceci.
- Está gostando da festa?
- Estou maravilhada.
- Com o quê?
- Tudo, a música, as moças tão bem-vestidas...
- Gostaria de trabalhar aqui?
- Trabalhar como? Nem sei dançar tango.
- Nós te ensinamos.
Cunha explica-lhe que o Apollo paga quinze mil réis por noite a cada uma
de suas dançarinas, mais as comissões. Um bom salário, e o trabalho não é
muito.
Entra-se às onze da noite, faz-se companhia aos clientes, dança-se com eles,
conversa-se. Sabe o que os homens vêm comprar aqui? Atenções. Apenas isso.
Há muita gente sozinha neste mundo, explica o Cunha. Gente triste, sem
companhia, que não tem por consolo ao menos um instante de compreensão e
simpatia, uma palavra amiga, um sorriso. É para isso que essas moças estão aqui,
para cercarem de atenções os que precisam, os solitários. No fundo, um trabalho
de alto sentido humano.
- De onze da noite até que horas?
- Até três, quatro. Depende do movimento.
Cunha ressalta que é uma ocupação honesta que nem de longe pode ser
confundida com a daquelas pensões da Conde de Lajes, da Taylor, da Joaquim
Silva. Naturalmente, a administração do Apollo nada tem a ver com o que as
moças fazem depois do expediente. Se quiserem sair com um cliente, prolongar
a noite em algum lugar, isso é lá com elas. Aqui - repete o Cunha - só se vendem
atenções, simpatia, sorrisos.
- Que idade tem você?
- Dezesseis anos - responde a moça.
- Problema... - resmunga o Cunha.
- Menor de idade.
Mas todos os problemas se resolvem nestes cabarés da Lapa. Se a moça
aceitar a proposta para trabalhar aqui, além de roupa (todas as dançarinas
trabalham de soirée, como verdadeiras damas, pois a classe, lembra o Cunha, é
tudo), a casa lhe dará garantia de que, se houver batida policial, ninguém a
molestará.
- Basta você se esconder no banheiro. Muitas das nossas moças vivem se
escondendo no banheiro. São menores de idade também.
Ceci diz que até o final da festa dará uma resposta. Quinze mil réis por
noite, mais as comissões sobre o que os fregueses consumirem em sua
companhia... Além do mais, deve ser maravilhoso trabalhar aqui, conhecer
gente, conversar, dançar. Nunca teve um soirée em toda a sua vida. Para falar a
verdade, sequer pode dizer que teve algo de realmente seu desde que veio ao
mundo há dezesseis anos.
É quase meia-noite. O cabaré fervilha. Só falta chegar Noel Rosa para que
tenha início a festa de São João do Apollo.
Ceci sabe desde o primeiro instante qual a única resposta que pode dar ao
Cunha. Por inexplicável razão, deixou-se enfeitiçar pelo cabaré. O lugar parece-
lhe tão cheio de vida, tão feito de promessas. Mesmo sabendo que nem toda
noite é noite de festa, realmente fica encantada pelo que vê aqui, moças
vendendo atenções e no entanto cercadas de atenções. Os homens as convidam
para dançar, lhes oferecem champanhe, lhes dizem palavras gentis. Moças
bonitas, bem-vestidas. Como frisa o Cunha, selecionadíssimas. Ceci vai admitir
um dia que é quase embriagante a atmosfera de ilusão que se respira nesta sala.
E ilusão talvez seja do que mais precisa. Ilusão e um emprego de quinze mil réis
por noite.
Quem sabe esta festa de São João não mudará sua vida? Há menos de um
ano saiu da casa do pai em Friburgo, carregando na bagagem não mais que
algumas roupas e as lembranças de uma penosa crise familiar. Chama-se Juracy
Corrêa de Moraes e nasceu em Campos a 16 de maio de 1918. Tinha treze anos
quando a mãe, Isabel Morales de Moraes, morreu de repente. O pai, Antônio
Corrêa de Moraes, inspetor da Leopoldina Railway, foi transferido logo em
seguida para Friburgo. Instalaram-se os três - o pai, Ceci e o irmão Antônio, o
Didito, um ano mais novo que ela - numa pequena casa da Rua General Osório.
Não muito tempo depois, seu Antônio casou-se de novo.
Ceci sente arrepios só em pensar na madrasta, mulher amarga, repressiva,
grosseira, que invadiu suas vidas para transformar numa casa sem paz o que
antes, a mãe ainda viva, era um lar feliz. Uma madrasta como as dos contos de
fada, má, tirânica, que os tratava duramente, sobretudo a Didito. Ceci jamais
compreendeu por que aquela mulher era tão impaciente com o irmão.
Fustigava-o a todo instante. E sempre que o pai voltava de viagem, lá ia ela
queixar-se de Didito, exagerando-lhe o mau comportamento, inventando-lhe
coisas que não fizera. O pai acreditava, zangava-se, espancava o menino. Mas
Ceci reagia:
- A senhora é ruim, muito ruim!
Seu Antônio sempre se pondo do lado da mulher, repreendendo Ceci,
mandando-a para o quarto. Como tudo era diferente nos tempos da mãe! A
madrasta sequer a deixava sair de casa para um passeio na Praça 15, uma retreta
da Campesina ou da Euterpe em frente à Matriz. Festas? Namorados? Ela que se
atrevesse. Acabou cansando daquela vida, da madrasta, dos maus tratos a Didito,
da incompreensão do pai. Um dia, animada por uma amiga que sonhava com a
cidade grande, comprou passagem para o Rio, fez as malas, embarcou no rápido
que saía cedinho de Friburgo. Ela e a amiga. Tudo isso sem dizer nada a
ninguém, sem ao menos deixar uma carta, um bilhete, um recado.
O Rio de Janeiro que conheceu nem de longe lhe parecia a maravilhosa
cidade de que a amiga e outras pessoas tanto falavam. De início pensou em ficar
com as tias ricas que moram em Botafogo, parentes da mãe. Mas lembrou-se de
que os Morales são espanhóis conservadores, muito religiosos, abaixo de Deus a
família em primeiro lugar. Na certa a mandariam de volta a Friburgo no primeiro
trem. Por isso preferiu procurar tia Jacinta, irmã do pai, pobre mas
compreensiva. Viúva, mãe de dois filhos pequenos, mora numa casa de cômodos
da Rua Barão de São Félix, perto da Estação de Dom Pedro II. É ali que Ceci
está desde que chegou ao Rio há menos de um ano.
Continua achando que esta não é mesmo a maravilhosa cidade de que tanto
lhe falavam. Hostil, agitada, difícil. São poucas as oportunidades para uma moça
de menor idade, sem carteira de trabalho. Neste tempo em que está aqui, tem
feito o que pode, pequenos serviços em casas de família, empregos regulares, um
pouco disso ou daquilo. De nada lhe tem valido o diploma de ginásio
orgulhosamente obtido no Liceu de Campos ou os seis anos de piano estudados
com sacrifício, por gosto da mãe.
Seus empregos na cidade grande não exigem diplomas ou estudos. Já
trabalhou na Drogaria V. Silva, hoje é caixa de um restaurante da Rua do
Rosário. Vida dura, horas e horas de trabalhos diários por um salário que mal
chega a 50 mil réis por mês. Para que diploma? O dinheiro que ganha no
restaurante é pouco, nem sobra para um teatro, um cinema. Noites como a de
hoje não fazem parte de sua rotina de vida.
Na verdade, é a primeira vez que entra num cabaré. Sua amiga Alzira vinha
com o namorado e o irmão, lembrou-se dela, passou pela casa da Barão de São
Félix e convidou-a. É claro que aceitou. Meteu-se na melhor roupa, um costume
verde-claro de saia justa e colete, chapeuzinho preto ajustado na cabeça, as
mechas de cabelo castanho-claro cuidadosamente ajeitadas em torno do rosto
bonito. E aqui está ela, pensando seriamente (ou mais que isso) em trabalhar
neste lugar. Quinze mil réis por noite... mais as comissões! Sim, esta festa de
São João bem pode mudar a sua vida. Neste momento chega, finalmente, Noel
Rosa.
O cabaré se agita, um burburinho já esperado, todos ansiosos para ver e
ouvir o homenageado. Jararaca e Ratinho, Augusto Calheiros, o regional de
Pereira Filho, outros artistas vão tomar parte no espetáculo, mas a atração
principal é mesmo Noel. Ele explica a Albert e José, o polonês e o português
proprietários do Apollo (que coisa estranha esta sociedade luso-polonesa!) a
razão de ter chegado tão tarde. Estava em outra festa junina, na ilha do
Governador, tocando e cantando. O pessoal foi pedindo para ficar mais um
pouco, "Cante mais uma, Noel...", os apelos se repetindo, acabou se esquecendo
da hora. Quando se deu conta, era quase meia-noite. Teve de sair às pressas. E às
escondidas. De outra forma, não o deixariam vir. Noel talvez não conte que não
foi só do pessoal da ilha do Governador que teve de fugir. Lindaura estava com
ele na festa. E como não pretendia trazê-la ao Apollo, na primeira oportunidade,
vendo-a distraída, saiu pelos fundos, tomou a barca, depois um táxi e veio para a
Lapa. A essa hora ela deve estar desesperada, procurando-o por toda parte.
Seja numa festinha meio improvisada na ilha do Governador, seja numa
grande ocasião como esta no Apollo, o repertório de Noel Rosa sempre alterna
velhos sucessos com números menos conhecidos ou mesmo inéditos. Isto é, um
Gago Apaixonado, um Até Amanhã, um Quando o Samba Acabou, com
produções mais modestas como Vejo Amanhecer:
Vejo amanhecer,
Vejo anoitecer
E não me sais do pensamento, ó mulher!
Vou para o trabalho,
Passo em tua porta,
Me metes o malho
Mas que bem me importa!

De esperar a minha amada


A minh'alma não se cansa
Pois até quem não tem nada
Tem ainda a esperança.
Esperança nos ilude,
Ajudando a suportar
Do destino o golpe rude
Que eu não canso de esperar.

Amanhece e anoitece,
Sem parar o meu tormento
Por saber que quem me esquece
Não me sai do pensamento
Já não durmo, já não sonho,
De pensar fugiu-me a paz
Num passado tão risonho
Que não volta nunca mais.

Ou não tão modestas como Contraste, de melodia ágil e letra carregada de


jogos de palavras e contraposições típicos de Noel:
É cruel, é cruel este contraste
Que me faz ficar tão triste:
Vais sair por onde entraste,
Descendo por onde subiste!

Foi com muito sacrifício


Que eu te dei um barracão:
O dia do benefício
É véspera da ingratidão.

Tu tens tanta falsidade,


Já vendeste tanta gente,
Que eu creio ser verdade
Que Judas foi teu parente!

Abusaste do meu nome,


Deste sempre cola errada,
Mas tu vais morrer de fome
Com tua conversa fiada.

Vou fazer tua desgraça,


Hei de ser teu ininigo:
Acabando com a cachaça,
Também eu acabo contigo!
Quando eu mandar no jogo,
Hás de ter entrada franca,
Jogo fora o pau-de-fogo
E tu não abafas a banca.

Começaste me humilhando,
Me fizeste de capacho,
Mas agora estou mandando
E tu já ficaste por baixo!

Ceci sabe quem é Noel, de sua fama, do quanto essas pessoas que lotam o
Apollo o admiram. Mas nunca ouvira outro samba dele que não fosse Com Que
Roupa? e O Orvalho Vem Caindo. A mãe queria que se tornasse pianista
clássica; de modo que entre ela e a música popular sempre houve certa distância.
Noel termina seus números e começa a circular por entre as mesas. Ceci não o
conhece. Muito menos ele a ela. Até que seus olhares se encontram.
Ele não pode deixar de notar que a moça de verde-claro sentada mais
adiante é muito diferente das outras mulheres daqui. Não só pela idade. Ou pelo
fato de trajar um costume em vez de soirée. São suas maneiras - a delicadeza, o
recato, a curiosa mistura de timidez e embevecimento impossível de encontrar
em qualquer outra das meninas do Cunha - que parecem atraí-lo. Há muito
tempo freqüenta cabarés. São todos iguais. Como pouca diferença existe entre
uma mulher e outra, a mesma aparência, os mesmos gestos, o mesmo modo de
falar, os mesmos truques. O cabaré é um teatro em permanente função. Dramas e
comédias são encenados aqui todas as noites. É como se estivessem num palco,
representando, que homens e mulheres se relacionam neste lugar. Mas a moça de
verde-claro não parece fazer parte do cenário.
- Trabalha aqui?
- Posso dizer que sim.
Os dois conversam, falam sobre trivialidades, comentam a decoração do
Apollo, a animação da festa, a qualidade da bebida. Ao contrário do que irão
sugerir os versos que daqui a algum tempo Noel escreverá inspirado neste
primeiro encontro, Ceci não fuma. Não ainda. Nem entorna champanhe no seu
soirée (na verdade, sequer veste um). Mas realmente os dois dançam um samba e
trocam um tango por uma palestra. Samba que Noel explica gostar de fazer e
cantar, mas não de dançar. Este nunca foi o seu forte, preferindo os passos
óbvios à ousadia de improvisar uma volta, um enfeite, uma queda de corpo.
Como ele mesmo diz, dança samba à moda paulista, na base do "vai no liso".
Quanto ao tango, Ceci já havia avisado ao Cunha que não sabia dançar. Se ela
não sabe, o que dirá ele?
Dançam, palestram, fazem-se perguntas. Noel está deslumbrado com Ceci,
ela está deslumbrada com o cabaré. Já passa das quatro da manhã de domingo
quando a festa termina. Ele se oferece para levá-la em casa.
- Obrigada, mas estou com amigos.
- Quer dizer que você trabalha no Apollo?
- Sim.
- Então eu te vejo por aqui amanhã ou depois.
A vida de Ceci vai mesmo mudar - e muito - a partir desta noite de 23 de
junho de 1934. Para começar, a tímida caixa de um restaurante da Rua do
Rosário dará lugar a uma fulgurante danseuse do Cabaré Apollo. O costume
verde-claro será guardado para sempre, o chapeuzinho preto também. As roupas
baratas que trouxe de Frigurgo e as poucas que comprou no Rio com suas
minguadas economias serão substituídas por elegantes soirées que em pouco
tempo ocuparão duas divisões inteiras de seu guarda-roupa. O Cunha é muito
exigente com a aparência das garotas: - Nada de me repetirem vestido na mesma
semana.
Tudo ou quase tudo vai mudar em sua vida. As roupas, as amizades, os
hábitos, as maneiras. Em breve a casa da Barão de São Félix será trocada por um
apartamento que dividirá com uma colega de trabalho num primeiro andar da
Avenida Gomes Freyre.
- É mais perto do emprego - explica à tia Jacinta sem maiores detalhes
sobre o que faz, onde e a que horas.
Também terão fim seus dias e noites de solidão, a saudade que começa a
sentir de casa sendo amenizada pela pequena multidão que faz do Apollo um dos
lugares mais freqüentados da Lapa. Como é possível sentir-se só no meio de
tanta gente, especialmente dos fregueses que desde o primeiro dia a cercam de
amabilidades? Gosta de ouvir esses fregueses dizerem que é a mulher mais
bonita do Apollo, mesmo sabendo que tais elogios não passam de confete barato.
Mas um ou outro manifesta sua admiração por ela de forma mais sincera e
objetiva, sugerindo-lhe usar a beleza e a juventude o mais que possa.
- Por que não trabalha em teatro? Tenho amigos que lhe podem conseguir
um lugar de corista numa dessas revistas da Praça Tiradentes.
Ou então:
- Não gostaria de posar profissionalmente?
Sugestões que mais cedo ou mais tarde acabará aceitando. Vai servir por
algum tempo de modelo dos alunos da Escola Nacional de Belas-Artes,
ganhando entre 100 e 200 mil réis por mês para deixar que seu corpo miúdo e
bem-feito seja transformado em esboços, quadros, esculturas. Quanto à carreira
teatral, ainda custará um pouco a tentar. Por ora nem lhe passa pela cabeça que
um dia será mesmo uma corista, trabalhando inclusive na Companhia de Alda
Garrido(1).
1. Durante o tempo de vida de Noel, as atividades profissionais de Ceci se limitarão ao cabaré, a um breve período como modelo dos alunos da Escola Nacional de Belas-Artes e a trabalhos
esporádicos como girl em espetáculos de circo e companhias itinerantes. O teatro, mesmo, virá mais tarde, sua estréia se dando dois meses depois da morte de Noel, como uma das dançarinas de Rumo ao
Catete, revista estrelada no Recreio por Aracy Cortes.

Sua vida realmente muda. Nas roupas, nas amizades, nos hábitos, nas
maneiras. Para Noel Rosa, porém, Ceci continua a mesma daquela primeira noite
do Apollo. É com sintomática freqüência que ele aparece no cabaré para vê-la.
Puxa conversa, tira-a para dançar, convida-a para saírem juntos depois do
expediente. Ceci gosta de Noel, acha-o simpático, divertido, muito inteligente,
mas não pretende envolver-se. É muito moça, está encantada com a vida
noturna, não quer abrir mão de ser cortejada por todos os fregueses, não quer
prender-se a um só. Mesmo que este seja um Noel Rosa, em cima de quem as
colegas de trabalho vivem a pôr os olhos, sabendo-o famoso, importante,
festejado.
- Vamos continuar assim, amigos-a resposta se repete a cada novo convite
de Noel.
As colegas de trabalho vivem mesmo a pôr os olhos nele. Sobretudo
Julinha, a mesma 'Julinha que Noel conheceu na Penha, amou, deixou de amar e
por fim esqueceu, depois de longo e tumultuado relacionamento. Julinha já
percorreu praticamente todos os recantos da Lapa, é hoje uma mulher castigada
pelas noites e pela bebida, a caminho dos quarenta anos. Engordou, pouco tem
da antiga beleza. Pinta-se com exagero, na ilusão de que os homens não lhe
notem as olheiras e as prematuras rugas. Julinha é a mesma mulher briguenta de
sempre.
- O que é que você tanto conversa com o Noel?
- Somos amigos.
- Isso já passou de amizade - Não, não passou. E se passou não é da sua
conta!
-É sim. Você não sabia que eu fui mulher dele?
- Foi, não é mais.
Julinha ameaça Ceci, diz que não quer vê-la conversando com Noel, toma-
se de ciúmes, muitas vezes instigada pela bebida. Ceci não tem medo de nada, é
altiva e teimosa. Coragem e teimosia que um dia atribuirá à juventude e ao
signo. Quanto mais a outra ameaça ("Se você continuar dando atenção ao Noel,
vai ver"...), mais se mostra sensível à idéia de deixar que as coisas realmente
passem do plano da amizade. Pura teimosia. Só para mostrar a Julinha que não
há nada ou ninguém que lhe diga o que deve ou não fazer.
- Se você quiser, Noel, pode me esperar logo mais.
Vai sair? - Não demoro. Vou até a Rádio Guanabara e volto em meia hora.
- Não posso ir com você?
- Melhor me esperar aqui. Mais tarde a gente sai junto.
Por mais que a cena se repita, Noel não cumprindo a promessa de voltar
logo, Lindaura não aprende, condenada a esperas intermináveis. Enquanto Noel
sai para não voltar, passando toda a noite fora, às vezes sumindo por dois ou três
dias, ela fica trancada com seus pensamentos no pequeno e sombrio quarto
alugado num primeiro andar da Rua do Acre. De dia ainda tem com quem
conversar, as colegas de trabalho na lavanderia, uma ou outra pessoa conhecida
que encontra em Vila Isabel. De noite, porém, só lhe resta rezar para que Noel
volte o mais depressa possível.
Desde que estão morando juntos, os dois aninharam-se em muitos lugares,
hotéis, casas de conhecidos, a pensão de mulheres da amiga do Germano, um
quarto de aluguel aqui e ali. Mas as lembranças que guardará mais fortemente
pela vida afora serão mesmo a deste quarto de sobrado na Rua do Acre, o melhor
que Zé Pretinho pôde conseguir pelo pouco que Noel se dispõe a pagar. Um
quarto realmente pequeno e sombrio. Os proprietários do prédio, não satisfeitos
em locar todos os cômodos que se alinham de um lado e do outro de um corredor
comprido e escuro, dividiram com tênues paredes de papelão os cômodos
maiores, transformando cada um deles em dois. O dinheiro que entra é sempre
mais importante do que o conforto do inquilino. É numa dessas metades de
quarto que Noel e Lindaura se instalaram.
Depois daquela festa de São João - e mais ainda depois que Ceci parou de
resistir-lhe ao assédio - Noel está cada vez menos no sobrado da Rua do Acre. É
um tempo de solidão e angústias para Lindaura, que costuma passar a maior
parte das noites em claro, sem saber se quem vai entrar pela porta é Noel ou um
dos muitos estranhos que passam ruidosamente pelo corredor. Todo e qualquer
ruído a assusta, sejam os passos dos outros inquilinos, sejam gritos que ouve (ou
supõe ouvir), vindos da rua deserta. Numa dessas noites de insônia, salta da
cama assustada. Um dos marinheiros que moram na metade de quarto ao lado
espichou o pescoço para olhá-la por cima da parede de papelão. Ela ali deitada e
o marinheiro simplesmente olhando, olhos bem abertos, a fisionomia estranha,
indefinível. Lindaura corre até a porta que dá para a sacada, abre-a, sai. Não
fosse tão alto, talvez saltasse, e saísse correndo, de camisola mesmo, até o
primeiro táxi que a levasse de volta a Vila Isabel. Mas não tem coragem. Limita-
se a sentar-se no Chão da sacada. Encosta o rosto nas grades de ferro e abre bem
os olhos para a rua. Quem sabe Noel já não está vindo? Para dentro do quarto é
que não volta. A parede de papelão é tão frágil que o marinheiro a derrubaria
com um sopro. Mas por onde andará Noel? Uma, duas, talvez três horas se
passam, Lindaura sentada cheia de pavor no Chão da sacada, os olhos sempre
postos na rua. É então que vê, como se vindo da direção da Rádio Mayrink
Veiga, elegante, os passos lentos, firmes, um amigo de Noel que ela só conhece
de vista, mas que já lhe é muito familiar: Mário Reis. Deve estar indo encontrar-
se com alguém lá pelos lados da Rua da Carioca. Ou talvez tenha estacionado o
carro a algumas quadras da Rua Mayrink Veiga. Seja lá o que for, é muita sorte
que passe por aqui agora. Lindaura grita cá de cima: - Mário! Mário Reis!
Mário pára. Olha para o alto procurando descobrir de onde vem a voz.
- Aqui, Mário! Sou eu, Lindaura, a noiva do Noel Rosa!
Mário afasta-se um pouco, de modo a ver, da outra calçada, a moça sentada
no Chão da sacada.
- Aqui, Mário!
Ele finalmente a vê:
- Pois não.
- Por favor, Mário. Sou a noiva do Noel Rosa. Ele me deixou aqui sozinha e
estou morrendo de medo. Será que você podia ir à casa da minha sogra pedir a
ela para vir me buscar?
-Pois não, pois não... - diz Mário sem entender nada.
A noiva do Noel sozinha numa sacada da Rua do Acre, gritando para ele,
pedindo-lhe socorro, e Noel perdido em algum lugar da noite carioca. Homem
estranho este Noel Rosa. No dia seguinte, atendendo ao pedido de Lindaura, vai
falar com dona Martha. Esta, por sua vez, na primeira oportunidade chama a
atenção do filho, está tudo errado, não é direito o que ele está fazendo. O pessoal
da delegacia cobrando-lhe a promessa de que o convenceria a casar-se. Por que
não toma juízo?
Noel raramente vai ao chalé. É tão difícil encontrá-lo lá quanto no sobrado
da Rua do Acre. A casa dos pais é uma espécie de ponto de referência, o local
onde recebe e deixa recados, endereço para correspondência. Trabalha muito
nesse terceiro semestre de 1934. Canta em programas de rádio, apresenta-se em
cinemas e teatros, compõe. Por exemplo, Pra Lá da Cidade, mais uma letra
com muito jeito de Julinha.
Lá, bem pra lá da cidade
Onde não cabe a vaidade
Foi que matei minha ilusão
E enterrei meu coração,
Que ficou muito pra lá
Bem pra lá da cidade

Só cabe aquela saudade


Que eu guardei com devoção
Longe daquela saudade
Me sinto feliz então.
Lá, bem pra lá da cidade,
Contrariando a vontade,
Eu te entreguei meu violão
E te deixei num barracão.

Bem pra lá da cidade,


Onde só há liberdade
Para quem não sente paixão,
Livre daquela amizade
Me sinto feliz então.

Além do trabalho, o amor. Está apaixonado por Ceci, vive atrás dela, vai
esperá-la todas as noites à saída do Apollo. Se uma gripe ou indisposição
passageira impede-a de ir trabalhar, preocupa-se. É assim que um dia vai
procurá-la na casa da tia na Barão de São Félix.
- Ouvi dizer que ela está doente. - Quem disse?
- O pessoal lá do Apollo.
- Do Apollo?
- Sim, o cabaré.
A inabilidade de Noel acaba fazendo com que tia Jacinta fique sabendo o
que Ceci com tanto cuidado vinha tentando esconder. Então a sobrinha trabalha
num cabaré? E onde ou com quem estará morando?
É o que Noel também gostaria de saber. Só depois desse pequeno incidente
- dessa involuntária indiscrição junto à tia Jacinta - vai ele descobrir que Ceci
mora com uma colega no apartamento da Avenida Gomes Freyre. Teve ela suas
razões para não lhe dizer a verdade. Ainda é o desejo de liberdade que guia seus
passos. Para que ficar presa aos carinhos - e também aos ciúmes - de um só
homem, se bem melhor e menos limitador é dividir-se entre muitos? Não se
conforma em ver algumas de suas amigas padecerem nas mãos de homens
insofridos e possessivos que começam prometendo-lhes tudo, inclusive
compreensão para com a vida que levam, e no entanto mudam assim que se
apaixonam. Ceci é pouco mais do que uma adolescente, mais jovem do que
qualquer outra aqui, mas viva, inteligente, aprende depressa. É impossível viver
na Lapa sem aceitar-lhe as leis. Leis que ela não só aceita como aprova,
principalmente em sua profissão, as dançarinas de cabaré obrigadas a vender
sorrisos a todos os fregueses, sem se prenderem a nenhum. Batem asas de mesa
em mesa, realizando muitas e sempre breves escalas. Ora aqui, ora ali, não é por
acaso que muitos as chamam, ainda que pejorativamente, de mariposas. São as
leis daqui.
Noel sempre conheceu e respeitou essas leis. Mas quando o coração se
envolve, de que adiantam? Passa-se a achar absurdos todos os códigos que
regem os amores nascidos e vividos à luz desses cabarés? No começo de seu
relacionamento com Ceci parece aceitar tacitamente que ela seja como é, livre,
não só sua, mas da noite. E a noite sempre teve muitos habitantes. Depois
mudará. Mas a aceitação dos primeiros tempos - uma aceitação de quem
compreende perfeitamente como vivem as mulheres da Lapa - ele chega a
registrar num samba que só daqui a dois anos lançará, um samba ironicamente
intitulado Dama do Cabaré, no qual fala não apenas do seu primeiro encontro
com Ceci, mas do quanto sabe serem sagradas para ela as leis da boêmia..
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée.

Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra.

Em frente à porta um bom carro nos esperava,


Mas você se despediu e foi pra casa a pé.
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré.

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia


A carta que eu recebi
(não me lembro de quem)
Você nela me dizia que quem é da boêmia
Usa e abusa da diplomacia
Mas não gosta de ninguém.

Uma madrugada, passando de carro pela esquina de Boulevard com Jorge


Rudge, Paulo Netto de Freitas e seu amigo Renato de Freitas divisam Noel ali
parado, sozinho, indiferente à chuva e ao frio. O que estará fazendo nesta
esquina, imóvel, distante dos pontos de bonde e ônibus? Paulo pede que Renato
freie o carro e dê uma ré até a esquina.
- Que é que você está fazendo, Noel? - - pergunta intrigado.
- Esperando que passe por aqui um botequim.
É assim, meio diferente e sempre imprevisível, o Noel Rosa que Ceci
conhece e começa a amar neste 1934. Dado a tiradas engraçadas, mas volta e
meia mergulhando naquelas fugas a que os amigos de Vila Isabel estão
acostumados. Continua tendo pavor de pessoas desagradáveis, de gente que fala
muito e o aborda quando não está disposto a conversar. Numa tarde, caminhando
com Ceci pela Praça Tiradentes, ouve gritarem seu nome-.
- Noel! Ô Noel!
Com o canto do olho, identifica do outro lado da rua o Tatuzinho,
multifalante artista de circo e teatro de revistas(2).
2. Tatuzinho, Ary Valdez, se casaria anos depois com a cantora Elizeth Cardoso.

Finge que não o vê.


- Noel! Noel! - os gritos se fazem ainda mais altos.
Noel olha de um lado para o outro como se a tentar descobrir de onde vem a
voz. Ceci faz menção de mostrar-lhe, mas ele a segura pelo braço.
- Pelo amor de Deus, Ceci. Tatuzinho é boa alma, mas muito chato.
E segue em frente, sempre virando a cabeça para onde o dono da voz não
está.
Mas, das muitas coisas que vai aprendendo dele, nesses primeiros tempos,
uma das que mais chamam a atenção de Ceci é a sua paixão pelas madrugadas.
Às vezes ficam acordados até de manhã, caminhando em silêncio pela calçada
da Avenida Beira-Mar. Um dia ele desperta como num susto de uma de suas
impenetráveis divagações.
- Ali! Olha ali!
- O quê?-pergunta ela realmente assustada.
- O Sol!
De fato, os primeiros clarões da manhã começam a iluminar a baía, os dois
lado a lado junto à amurada.
- E o que é que tem, Noel?
- Não gosto. Detesto o Sol. Só deveria existir a noite.
Ceci aos 16 anos
Capítulo 32
UM PARCEIRO E DUAS INTÉRPRETES
É com devoção (...)
Vai cantar meu samba prosa
Numa primeira audição.
De Qualquer Maneira

Há muito tempo Nássara não aparecia no Ponto de 100 Réis. Anda ocupado
demais, produzindo caricaturas para jornal, redigindo anúncios para programas
de rádio, fazendo cursos de desenho na Escola Nacional de Belas-Artes. Neste
fim de tarde, indo pelo Boulevard na direção da casa do amigo Luís de Moura,
ouve gritarem seu nome de uma das mesas do Café Ponto Chie. Sentado sozinho
diante de uma garrafa de cerveja, cotoco de lápis quase sumindo por entre os
dedos, Noel Rosa rabiscava alguma coisa quando o viu passar (Nássara não pode
deixar de pensar que este cotoco é no mínimo uma superstiçãozinha, Noel não o
trocando por nada, nem mesmo um lápis novinho, de desenho, importado, como
os que ele usa).
- Está sumido, Nássara - diz Noel apontando-lhe a cadeira.
Nássara se senta. Conta como anda ocupado, o tempo não dando para tudo
que tem de fazer, ele quase não parando em Vila Isabel. Noel mostra-lhe o
estribilho de uma música em que está trabalhando:
Quando por amor suspiro
A saudade vem então
Encontrar o seu retiro
(encontrar o seu retiro)
Dentro do meu coração

Nássara gosta. Acha interessante o jogo de palavras, retiro com saudade,


referência poética a Retiro da Saudade, nome de um dos novos loteamentos
traçados à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em permanente contato com
estudantes de arquitetura na Escola de Belas-Artes(1), interessa-se pelo assunto.
1. Na época e até 1951, o curso de arquitetura do Rio de Janeiro era feito na Escola Nacional de Belas-Artes, no prédio que ainda existe na Avenida Rio Branco, esquina de Rua Araújo Porto
Alegre. A partir de 1952, mudou-se para o antigo hospício da Praia Vermelha.

Por que Noel terá feito um samba a respeito? O amigo explica-lhe que não é
samba, mas marcha. E que ainda não fez, está fazendo. Será que Nássara não
gostaria de ajudá-lo nos versos?
Antônio Gabriel Nássara ainda não é exatamente um compositor.
Influenciado pelos amigos do bairro, já produziu alguma coisa, uma letra aqui,
um pedaço de melodia ali, meia dúzia de sambas e marchas escritos entre uma
caricatura e outra. É verdade que uma dessas composições ocasionais fez
sucesso no último carnaval: Formosa, de parceria com Jota Ruy, gravada pela
dupla Francisco Alves e Mário Reis. Mas nem isso o animou muito a dedicar-se
à música tanto quanto aos desenhos. Sente que a proposta que Noel lhe faz para
se tornarem parceiros nada mais é do que um generoso oferecimento de amigo,
um gesto simpático no sentido de que ele aproveite sua criatividade também para
compor.
A marcha é construída a quatro mãos, trechos de melodia de um e de outro.
A mesma coisa em relação à letra. Nássara, homem de muito humor, vê na idéia
grandes possibilidades carnavalescas. Não resiste a fazer, num de seus versos,
um "trocadilho urbanístico".
Arranjei um trocadilho
Pra cantar como estribilho:
"Teu retiro dá... saudade"(2)
2. "Noel não precisava de parceiros", disse Nássara aos autores ao contar esta história de Retiro da saudade. Segundo ele, o amigo só lhe teria proposto parceria para ajudá-lo a firmar-se no
meio musical. Uma ajuda de fato valiosa, Nássara tornando-se logo em seguida o autor ou co-autor de excelentes sambas e marchas como Florisbela, História Antiga, Maria Rosa, Me Queimei, Na Casa
do Seu Tomás, Periquitinho Verde, Tipo Sete, ou bem depois, Balzaqueana, Mundo de Zinco, Chico Viola.

Uma marcha feita sob medida para ser cantada por uma dupla mista. Pelo
menos é o que sugere o caminho que Noel e Nássara tomam juntos ao fazerem a
letra em forma de diálogo.
Uma dupla mista. Quanto ao cantor, nenhum problema. Mas e a cantora? É
curioso como neste 1934, já com cinco anos de atividades profisionais como
compositor, Noel Rosa ainda não possa falar de uma intérprete feminina de sua
predileção. Quando se trata de vozes de homem, as preferências são muitas,
Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, Luís Barbosa, João Petra, Almirante
e alguns mais. Todos bons, todos capazes de criar para suas composições o clima
perfeito. Mas o que dizer das mulheres?
Continua fazendo restrições a Carmem Miranda. E também a Aurora, que
jamais conseguirá libertar-se da influência da irmã, a ponto de ser confundida
com ela por ouvidos menos atentos. Elisinha Coelho? Uma artista de indiscutível
talento, delicada, sensível, mas que nunca chegará a gravar nada de Noel Rosa.
Aracy Cortes, Otília Amorim, Gesy Barbosa? Se andaram cantando músicas suas
no teatro ou no rádio, não se deram ao cuidado de levá-las ao disco. Madelou
Assis, Ruth Franklin, Lucilla, Helena Barreto? Se o fizeram, foi de forma
passageira, um disco apenas, para depois seguirem outros caminhos. Não, Noel
Rosa ainda não tem uma cantora de sua predileção.
É justamente neste 1934, em lugares e circunstâncias diversas, que entram
em sua vida aquelas que disputarão para sempre a honra de ser a melhor
intérprete de sua obra: Marília Baptista e Aracy de Almeida. Diferentes em tudo,
no temperamento, nos hábitos, na formação musical, no timbre de voz, no modo
de cantar, no tipo físico, nos mundos em que nasceram e vivem. Continuarão
assim pelo tempo afora. Jamais convergirão, mas cumprirão carreiras, pode-se
dizer, paralelas, a música e a poesia de Noel Rosa não deixando que se afastem
de todo.
Marília Baptista tem um Monteiro de Barros entre o primeiro e o último
nome, herança materna que manterá de lado na vida artística, mas da qual se
orgulhará sempre: o Barão Luís Monteiro de Barros, seu avô, era poeta. Como a
própria Marília, que gosta de escrever versos e musicá-los.
Cantora, compositora, violonista. Desde pequena vive agarrada ao
instrumento, para o qual chegará a escrever um canto de amor:
Fala tudo que meu peito sente
Pois, meu amigo verdadeiro,
Nem brincando você mente.

Tinha apenas seis anos de idade quando o barbeiro que ia à sua casa cortar
os cabelos dos irmãos e do pai - o médico do Exército Renato Hutto Baptista -
esqueceu por lá o violão. Não o largou mais, a mãe pianista, Edith, ensinando-
lhe as primeiras posições. Ela e os irmãos Renatinho e Henrique, muito unidos,
gostavam de inventar músicas e fazer versos. Com oito anos, Marília já
compunha. Impressionado com essa precocidade, um amigo do pai, Pascoal
Américo, apresentou-a ao jornalista que se assinava Terra de Sena(3) e este
decidiu levá-la a um festival de música no Cassino Beira-Mar em 1930.
3. Pseudônimo de Lauro Sarno Nunes, pai do humorista Max Nunes.

Ali conheceu o violonista Josué de Barros, o descobridor de Carmem


Miranda, que empolgado passou a dar-lhe aulas particulares de graça. Aplicada e
ambiciosa, seu primeiro pensamento foi para a música clássica. Queria ser
concertista, chegou a tomar aulas com o virtuose José Rabello. Mais tarde,
ingressaria no Instituto Nacional de Música para tirar diploma de teoria,
harmonia e solfejo. Mas nunca será uma artista erudita. Não resistirá aos apelos
da música popular, especialmente do samba, rendição que atribuirá a algo que
traz no sangue: sua ama-de-leite era a negra Filomena, neta de escravos, e é bem
possível que lhe tenha passado o ritmo, a melodia, a música enfim de sua gente.
Também a ela Marília dedicou uma de suas primeiras composições:
No dia em que eu nasci
Preta velha me pegou
No seu colo com carinho
Nunca mais me deixou

Foi há dois anos, em 1932, que Marília e Noel se conheceram. Desde então,
não mais se viram. Jamais esquecerá a primeira impressão que ele lhe causou,
acompanhando-se ao violão num de seus sucessos de então: Gago Apaixonado.
Em São José dos Campos, no Sul, em Campos, Muqui, Vitória ou qualquer outro
lugar em que se apresente Noel Rosa, este samba é e será por muito tempo ainda
um número obrigatório.
Não só por ser uma de suas melhores produções, das mais identificadas
com seu estilo, mas também porque ninguém a interpreta com tanto sabor, sua
figura magra entrando no palco, apoiando o pé na cadeira, começando a emitir
com a boca defeituosa os sons prolongados e aflitos do pobre gago:
Mu... mu... mulher Tu me... me... fi.fi.zeste um estrago Os apresentadores
sempre procuram tirar partido do encanto que Gago Apaixonado, na
interpretação de Noel, desperta nas mais diversas platéias. Entre outras coisas,
costumam criar um clima de expectativa que tem muito dos velhos truques do
vaudeville. Foi justamente assim no dia em que Noel e Marília Baptista se
conheceram. Lamartine Babo era o apresentador de uma hora de arte no Grêmio
Esportivo 11 de Junho, no Riachuelo. Coube a ele anunciar as atrações, Gastão
Formenti, Pereira Filho, Noel Rosa. Na vez deste, apelou para o velho truque: -
Senhoras e senhores! Tenho agora a honra de vos apresentar um excelente
cantor, jovem de muita bossa...
Fez uma pausa, olhou para os lados e baixou o tom de voz:
- ... mas eu pediria a simpatia e a compreensão da seleta platéia para um
detalhe: nosso cantor... nosso cantor cheio de bossa... é um pouco gago. Estou
certo de que todos saberão relevar qualquer dificuldade.
E aumentando novamente o tom de voz:
- E agora, com os senhores, Noel Rosa!
É evidente que nem todos da platéia engoliram a história de Lamartine. A
maioria conhecia Noel, já tinha ouvido inúmeras vezes Gago Apaixonado.
Mesmo assim, criou-se o clima dentro do qual Noel brilhou mais uma vez, entre
aplausos, gritos, assobios, gargalhadas, pedidos de bis.
Terminado o número, Noel saiu para uma cerveja. O Grêmio Esportivo 11
de Junho jactava-se de sua condição de "entidade cultural e recreativa".
Costumava organizar espetáculos de música e poesia, receber artistas e escritores
que se exibiam num amplo salão ao fundo do qual improvisava-se, sobre um
estrado de madeira, o palco. Mas nem todos os artistas que se apresentavam ali
eram famosos como Lamartine, Formenti e Noel. Havia, também, cantores e
músicos amadores sonhando ainda em serem descobertos. Alguns já adultos,
outros pouco mais do que crianças, como Marília Baptista, com apenas quatorze
anos naquele 1932.
Era uma mocinha miúda, magra, de cabelos castanhos muito claros, os
olhos ligeiramente rasgados, gestos discretos. Aguardava sua vez de subir ao
palco quando notou que seu violão - justamente o violão de estimação, de um
modelo premiado em Sevilha, presente do pai - estava nas mãos de Noel, que
acabara de tomar sua cerveja e agora parecia experimentar o instrumento.
Marília lembrou-se de ter deixado o violão sobre uma mesa perto do palco.
Distraíra-se. Chegou apressada e apreensiva perto do moço magro que ela não
conhecia e que agora, sem gagueira, cantava um samba desconhecido: (Verdade
Duvidosa)
Deus vê tudo e tudo sabe,
Mas não sabe calcular
A hipocrisia que cabe
Dentro deste teu olhar.

Nem com meu ciúme nego,


Tens razão, estou convencida,
Pois tu também vives cego
Às mentiras desta vida.

Sofreste por mim cantando,


Zombaste de mim chorando,
Apenas pra me enganar.
Mas vou perguntar aos sábios
Se a mentira nos teus lábios
É verdade em teu olhar.

Eu te fito humildemente,
Mas meus lábios te censuram,
Porque teu olhar desmente
O que os teus lábios juram.

Eu por ti sou enganada


Por gostar de me enganar,
Por querer ser contemplada
Pelo teu fingido olhar.

Se pretendia zangar-se, a beleza do samba, o sentimento que o moço magro


parecia imprimir a cada verso, a cada palavra, a fez mudar de idéia. Permaneceu
ali, ao lado de Noel, ouvindo-o cantar acompanhando-se no violão que o pai lhe
dera. Perguntou-lhe o nome do samba.-Verdade Duvidosa. Ficou maravilhada.
Mas isso se passou há dois anos, no Grêmio Esportivo 11 de Junho. Depois,
Marília foi descoberta. Estudou música, conheceu gente do meio. Almirante,
lembrando-se de tê-la ouvido no Cassino Beira-Mar e numa reunião na casa de
Elisinha Coelho, convidou-a a participar com ele, Sílvio Caldas, Jorge
Fernandes, Olindina Leite Castro e os violonistas Rogério Guimarães e Rubens,
do oitavo Broadway Cocktail. Andou fazendo suas musíquinhas, conseguiu vez
para gravar duas delas - Me Larga!'e Pedi, Implorei-na Victor. Hoje, tem
dezesseis anos e já é uma profissional experiente. Foi por isso que Ademar Casé
convidou-a, a ela e ao irmão Henrique, também para se apresentarem em seu
programa de rádio. Este 1934 será o ano de sorte para ela. Especialmente porque
nele, no Programa Casé, vai se aproximar de Noel Rosa.
Aracy de Almeida, quatro anos mais velha que Marília Baptista, nasceu,
cresceu e para o resto da vida permanecerá ligada ao Encantado, subúrbio
carioca em nada parecido com os bairros progressistas, de classe média, em que
têm vivido os filhos do Dr. Renato Baptista. A linha do trem divide o Encantado
em dois, um lado melhorzinho, e assim mesmo de ruas sem calçamento, casas
muito pobres, vidas modestas, e outro ainda pior, no qual, pés no Chão, foi
criada Aracy, mulata miúda, cabelo encarapinhado, jeito de molequinho de
esquina, mas muito autêntica, de uma autenticidade que nada, nem o tempo, nem
a fama, lhe vai roubar.
É filha de um chefe de trens na Central do Brasil. Pobre, muito pobre. Não
freqüentou bons colégios, não teve oportunidade de estudar música, não pode
orgulhar-se de descender de um barão poeta como Luís Monteiro de Barros.
Enquanto Marília exercitou o seu canto orientada por professores de
conservatório, Aracy fez seu aprendizado no coro da igreja Batista da qual seu
irmão Alcides é pastor. Aos domingos, seis da tarde, toda a família se reunia ali
para buscar nos sermões e nos hinos religiosos um pouco de conforto para sua
pobreza. Mas Aracy nunca ligou muito para a igreja e a falta de dinheiro. O que
queria mesmo era ser cantora de rádio. Sempre soube que tinha jeito.
E como tem! São mesmo muitas as diferenças entre ela e Marília. Esta tem
voz de timbre suave, pouco extensa, mas que aprenderá a usar com adequação. A
voz de Aracy é anasalada, mas consistente, com certo acento triste que lhe dá cor
muito própria. Não aprenderá nada: nasceu sabendo. Marília tem ouvido
privilegiado (e graças a ele ainda será melhor compositora do que cantora). O
ouvido de Aracy é duro. Sua memória musical, fraca. Tem dificuldade para
aprender músicas de harmonizações complicadas. Marília domina a técnica,
Aracy é artista intuitiva. Mas grande. Qual das duas será a melhor intérprete de
Noel? Na voz de qual suas composições soarão mais ao gosto dele?

Numa entrevista a Orestes Barbosa, ano passado(4), antes portanto de


conhecer Aracy mais de perto, Noel não hesitou em apontá-la como a melhor
cantora de "samba de batida".
4. A Hora, 19 de julho de 1933.

O que ele quis dizer exatamente com samba de batida não fica esclarecido,
mas é possível que se referisse ao samba de ritmo bem marcado, ligeiro, com
bossa, em contraposição ao samba-canção, mais lento, ou aos outros, mais duros,
no estilo de Carmem Miranda (que por sinal, na mesma entrevista, é citada por
Noel como "a rainha da marcha", com um reforço exclamativo não desprovido
de ironia: "longe!"). Em outra entrevista, será mais claro: "- Que tal essa Aracy?
- Um valor. É nova, mas das melhores"(5)
5. Folha de Minas, 16 de fevereiro de 1935.

Em outra, mais claro ainda:


- Qual a melhor intérprete de sua música?
- Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que intepreta com
exatidão o que produza."(6)
6. A Pátria, 4 de janeiro de 1936.

Seja como for, serão estas as únicas referências que fará abertamente a uma
das duas cantoras. Na intimidade, nem isso. Marília ou Aracy?
Uma coisa é certa: do ponto de vista pessoal, como companhia para o que
der e vier, suas afinidades serão sempre maiores com Aracy. Poderá perder a
paciência quando chegar a hora de ensinar-lhe suas músicas, ela custando a
familiarizar-se com a melodia, claudicando em certas passagens, tropeçando na
letra. Mas tão logo aprenda a lição e o trabalho dê lugar ao lazer, Noel se
transforma, a impaciência cede vez a um sorriso, os dois saem para uma boêmia
que a bem-comportada Marília - o pai vigilante acompanhando-a a toda parte,
festas, programas de rádio, recitais - nem imagina existir.
Noel e Aracy conhecem-se no estúdio da PRB-7, Sociedade Rádio
Educadora do Brasil, na Rua Senador Dantas, 82. A moça pobre, artista intuitiva,
teve de esperar muito até lhe darem a chance de cantar naquele microfone.
Passara a adolescência entre o coro da igreja e os blocos de rua do Encantado ao
Engenho de Dentro. Queria mesmo cantar no rádio, tentou várias vezes - sem
sucesso - um teste na Rádio Suburbana. Dizia para si mesma, com aquele seu
jeito crítico que nunca perderá: - Se a Carmem Barbosa pode, por que não eu?
Manuel, um violonista do bairro, gostava da voz dela. Era amigo de
Custódio Mesquita, na época pianista de orquestra, já com conhecimento em
várias estações de rádio. Foi graças a ele que ganhou um contrato na Educadora.
A família, naturalmente, resistiu. A irmã do pastor Alcides cantando no rádio?
Mas Renato Murce, sempre querendo dar oportunidade aos novos, foi até o
Encantado e convenceu os Almeidas: - Eu me responsabilizo por ela.
Na primeira vez que Noel a vê, ela canta um dos últimos sucessos de
Carmem Miranda. Não espera para serem apresentados.
- Você tem jeito. Canta bem. Mas que tal aprender uns sambas novos e
deixar pra lá o repertório de Carmem Miranda?
Na mesma noite, vão à Taberna da Glória, cantam e bebem juntos. Noel
apresenta-a aos malandros seus amigos, ensina-lhe sambas seus, entre os quais
Riso de Criança, o primeiro que gravará dele. Depois leva-a até a Central para
que tome o trem de volta ao Encantado.
Ficam amigos. Muitas vezes voltarão a beber juntos, na Lapa, no Estácio,
nos botequins da Barão de São Félix. A pedido dele, Aracy vai cantar para suas
meninas no Mangue ou nas casas ainda mais baratas das imediações da Central.
Ela não se importa. Conhece a vida, não tem os chiquês de Marília, faz o que
quer, desde beber e fumar até jogar sinuca e cantar para as mulheres do Noel
num prostíbulo de terceira categoria. Ficam realmente amigos, para todas as
horas. Inclusive para que ela freqüente o chalé, tome com ele uma sopa
requentada de feijão no quartinho dos fundos, aprenda novos sambas. Dona
Martha, de início, estranha a espontaneidade, o jeito de ser de Aracy.
- Nunca vi uma mulher dizer tanto nome feio.
Muito diferente de Marília.
A sirene soa longa e estridente como se para despertar algum ouvinte
eventualmente sonolento. Em seguida, os acordes vibrantes de Gallito,
pasodoble de Santiago Lope, completam o sinal de alerta: está no ar o Programa
Casé. Todos os domingos, de meio-dia às seis da tarde, os radiomaníacos do Rio
de Janeiro se grudam aos seus receptores para acompanharem uma a uma as
atrações desse longo e variado caleidoscópio radiofônico. Um líder absoluto de
audiência, desde o primeiro domingo em que foi ao ar, a 14 de fevereiro de
1932, até sua última transmissão, dezoito anos depois, passando por este 1934
em que Noel e Marília se reencontram.
Ademar Casé é um pernambucano empreendedor. É cheio de idéias. De
vendedor de aparelhos de rádio a prazo (um pioneiro neste tipo de negócio),
transformou-se no dono de um programa que será sempre muito imitado (nas sua
pegadas seguirão Renato Murce, Christovam de Alencar, Eratósthenes Frazão,
Waldo Abreu, Paulo Netto de Freitas, Gastão Lamounier e tantos outros). Casé
teve a coragem - e também nisso é pioneiro - de comprar um horário da Rádio
Philips, cujos estúdios funcionam na Rua Sacadura Cabral, 43, perto do Cais do
Porto. No começo, um horário de oito à meia-noite cabendo ao próprio Casé
acumular as funções de produtor, agenciador, selecionador de artistas, corretor
de anúncios e tudo mais que não o obrigasse a ir ao microfone (sempre teve
medo deste milagroso engenho que leva a voz das pessoas a distâncias
incalculáveis). Mas o programa, depois de dificuldades iniciais superadas pela
ajuda de patrocinadores importantes (entre eles F.M. Moreira, o Laboratório
Queirós e, mais tarde, o Dragão), cresceu. Casé contratou Sílvio Salema para
contactar os artistas, chamou Noel Rosa para ser, ao mesmo tempo, cantor e
contra-regra, mudou o horário para toda a tarde de domingo.
Não há grande cartaz da música popular que não tenha passado ou ainda
não vá passar pelo Programa Casé. Atraído por algo que é praticamente outra
invenção do pernambucano empreendedor: o cachê. Antes dele, os artista se
apresentavam em emissoras de rádio quase de favor. Casé, porém, achou melhor
profissionalizar seu espetáculo, pagando a todos - na hora - cachês que variam de
acordo com o cartaz de cada um. Francisco Alves, por exemplo, é o mais bem
pago: 35 mil réis. Carmem Miranda vem em seguida: 30. Os outros variam de 10
a 20.
Um programa em grande estilo, que nos primeiros tempos tentou ser até
ambicioso demais, dividindo-se em duas partes, a primeira dedicada à música
popular, a segunda à erudita, os pianistas Mário de Azevedo, Arnaldo Estrella, a
cantora lírica Violeta Coelho Netto de Freitas, o violinista Romeu Ghipsmann
vestindo a rigor as tardes cariocas de domingo. Mas Casé logo constatou que,
finda a primeira parte, nenhum ouvinte telefonava mais para a emissora,
ninguém mais parecia interessar-se pelo programa. E tratou de diminuir o tempo
dos eruditos para um ou no máximo dois quartos de hora.
Um programa em grande estilo através do qual se pode ouvir a orquestra de
Pixinguinha, o regional de Benedicto Lacerda, o piano de Nonô, os melhores
cantores, os melhores locutores. E humoristas como Jorge Murad, Pinto Filho,
Napoleão Aguiar, Quintanilha, Manuel Durães. A função de contra-regra é
justamente dosar os vários ingredientes do programa (Casé faz questão de que se
obtenha a mesma dinâmica dos shows radiofônicos americanos que ele ouve
pelas ondas curtas). E a Noel cabe, nos primeiros tempos, essa difícil dosagem,
intercalando canções ligeiras com lentas, sambas com valsas, músicas com
anedotas. Como se tem saído? Eis o que diz do seu desempenho o crítico de
rádio que se assina R.S.: "Noel Rosa acumula as funções de cantor e contra-regra
no Programa Casé. Ouvimos domingo a irradiação desse popular programa e
notamos que na divisão das apresentações dos números Noel tem atuação
bastante feliz.
Os números se sucedem sem repetição: um samba, uma canção, um número
com orquestra, uma anedota, tudo a seu tempo."(7)
7. A Hora, 19 de outubro de 1933.

Para o público, porém, não é o contra-regra Noel Rosa que mais conta, mas
o cantor, o compositor e ainda mais o improvisador que se destaca num quarto
de hora que Casé criou para emboladas e desafios à moda do Norte. Muita gente
fará bonito nesses improvisos, Manezinho Araújo, Patrício Teixeira, Almirante,
a própria Marília Baptista que acaba de ser contratada. Mas Noel é imbatível -
pela rapidez e originalidade - nessas disputas em forma de música e verso.
Um dia ele chega com um estribilho que lhe parece excelente para o quarto
de hora dos improvisos:
De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado, não

A segunda parte, justamente sobre a qual se vai improvisar, tem quatro


versos, o segundo rimando com o quarto, e termina com um breque no qual deve
ser posta toda a graça, todo o elemento surpresa. Noel conta ter ouvido o
estribilho não se lembra onde. Outro dia, perguntando ao João da Bahiana se
sabia de quem era, obteve pronta resposta:
- É do João Mina.
O da Bahiana explicou a Noel que o Mina era um tirador de samba(8) do
morro de São Carlos.
8. Nome pelo qual eram conhecidos os "partideiros" da época.

Costumava fazer ponto no boteco do Valente, na Frei Caneca. Prometeu


procurá-lo lá e trazê-lo para Noel conhecê-lo. Dito e feito. João da Bahiana
apresentou-os, Noel pediu a João Mina permissão para mexer um pouco no
estribilho e depois acrescentar-lhe as segundas partes. O outro concordou,
inclusive em deixar Noel gravá-lo(9).
9. Conta Jota Efegê em "O parceiro esquecido de Noel", Jornal do Brasil, 22 de maio de 1970: "... pois João Mina, desinteressando-se de formalidades contratuais, queria tão somente 'alguma
grana' que a música rendesse. Isso, confirma João da Bahiana, foi cumprido, já que, várias vezes, viu Noel dar dinheiro a João Mina. Informe verídico, como atesta a ficha da gravadora Odeon, onde
apenas está registrado Noel Rosa como recebendo direitos autorais do disco..."

Mina, como tantos outros parceiros de Noel, logo será esquecido. E até
contestado. Embora goze de algum prestígio no meio do samba, a ponto de haver
quem o considere o introdutor da cuíca na percussão das escolas (João da
Bahiana e Donga, por exemplo, acreditam nisso), haverá também quem diga que
esse estribilho não é dele, mas de um tal de Papai da Cancela. Talvez. Mas Noel
não se envolve com essas querelas de sambistas. Do Mina ou do Cancela, o
estribilho vai ganhar através de sua voz, de suas segundas partes, de seus
improvisos, enorme popularidade.
Quando Marília o reencontra nos estúdios da Philips, o estribilho, com o
nome de De Babado, já é número obrigatório de seu repertório. E há muito.
Desde aqueles tempos difíceis da Revolução Constitucionalista de São Paulo,
quando as rádios de todo o país viviam sob atenta e implacável censura. O
censor da Philips, um certo Brandão, podia ser homem atento e implacável, mas
não primava muito pela inteligência. Ficava observando os cantores do Casé
para ver se eles faziam, durante seus números, gestos que pudessem ser captados
pelos revoltosos em São Paulo. Um dos improvisos de Noel é dedicado a esse
portentoso censor:
Eu não falo pra São Paulo
Sem tomar o meu xerez,
O censor ai do lado
Me levando pro xadrez
(E eu não quero ir pro xadrez)
Nos próximos dois anos, um número obrigatório nas apresentações de Noel.
Em pouco tempo, dele e de Marília, os dois se incumbindo dos improvisos que
às vezes durarão dez, quinze minutos sem repetição de versos. É no Programa
Casé que os dois se aproximam. E que Marília começa a se tornar conhecida. Ao
lado de Noel ou no seu próprio quarto de hora, para o qual haverá em breve um
prefixo que ela mesma comporá:
Fala o Programa Casé!
Veja se adivinha quem é...
Faço a pergunta por troça
Pois todo mundo já conhece
A garota da voz grossa.

Nássara ouve Noel cantar, programa após programa, Retiro da Saudade, a


marcha que parecia sob medida para uma dupla mista. Ouve com atenção. lá está
o coro que o amigo lhe mostrou no Ponto Chie:
Quando por amor suspiro
A saudade vem então...

E lá estão, também, duas ou três segundas partes que o próprio Noel


escreveu, música e letra. Mas aonde foram parar os versos que ele mesmo,
Nássara, fez a pedido de Noel? Cadê aquele "trocadilho urbanístico" que era,
afinal, a sua melhor participação na parceria? Noel simplesmente se esqueceu
dele e completou a marcha sozinho. No primeiro encontro dos dois, Nássara,
mais na brincadeira, para provocá-lo, diz-.
- Então, Noel, me passando pra trás, não é?
- Passando pra trás?
- Sim, no Retiro da Saudade? O que fez você dos meus versos?
Noel fica sem jeito. Só então se lembra de que ele mesmo propôs parceria
ao amigo para depois - por um escorregão de memória - esquecê-lo. Tão sem
jeito que nem sequer encontra meio de se desculpar.
Uma semana depois, Nássara é procurado por Noel.
- É para você ir assinar contrato na Victor.
- Que contrato?
- Da gravação de Retiro da Saudade. A nossa marcha.
Nássara é apanhado de surpresa. Já se esquecera do assunto. E mais
surpreso ainda fica ao saber que a dupla mista que vai gravar a marcha é nada
menos do que Carmem Miranda e Francisco Alves. E que seus versos, com o tal
"trocadilho urbanístico", estarão no disco. Noel, para redimir-se do
esquecimento, passou por cima de seu rompimento com Francisco Alves e do
seu distanciamento em relação a Carmem Miranda para dar a Nássara a mais
cara - e difícil de unir - dupla da música popular brasileira. Mista ou não. Como
terá conseguido isso, de que argumentos se valeu para convencer Chico e
Carmem (não propriamente inimigos, mas de forma alguma amigos do peito),
Nássara nunca descobrirá(10).
10. Realmente uma façanha de Noel, pois este será o único disco que Francisco Alves e Carmem Miranda gravarão juntos.

Mas Retiro da Saudade é gravada pelos dois, faz sucesso e sai no disco
assim:
Quando li o teu recado,
por ti assinado
Encontrei no teu cartão
minha desilusão
"Retirei" saudosamente,
pra mostrar a essa gente
Que não tenho coração

Quando por amor suspiro


A saudade vem então
Encontrar o seu retiro
Dentro do meu coração

E dentro do teu coração


(não me diga que não)
Só existe falsidade
(é a pura verdade)
Eu já fiz um trocadilho,
pra cantar como estribilho
Teu retiro dá... saudade.
Aracy de Almeida
Marília Baptista
Noel Rosa (o último à direita) observa Marília Baptista numa apresentação da Mayrink Veiga
Capítulo 33

HUMOR DE PRIMAVERA

É aparentemente feliz que Noel chega à primavera de 1934. Uma primavera


especialmente animada para a cidade que tenta este ano incluir o mês de
setembro em seu calendário de festas. Já era tempo. O Rio de agora é terra
festeira e musical. O carnaval de fevereiro, os santos de junho, os domingos da
Penha em outubro, por que não juntar a estes eventos tradicionais - celebrados
pelos compositores populares com suas canções - a florida primavera? João de
Barro dá sua contribuição:
O Rio amanheceu cantando
Toda a cidade amanheceu em flor
E os namorados vêm pra rua em bando
Porque a primavera é a estação do amor.

Sol, pelo amor de Deus,


Não venha agora
Que as morenas vão logo embora
Feitiço da Vila

Leia Casatle, uma pequena de Vila Isabel, é eleita Rainha da Primavera e passa a ser cortejada por
toda a cidade. Fotografias suas são publicadas nas primeiras páginas de jornais e revistas, clubes a
convidam para enfeitar suas reuniões, compositores inspiram-se nela. A Vila tem motivos para estar
orgulhosa.
Mas se todos rendem homenagens a Leia - e até "forasteiros" como Benedicto Lacerda e Jayme
Florence lhe dedicam músicas(1) -por que não haveria Noel de reverenciar a primaveril rainha de seu bairro
com um samba caprichado?
1. Do ponto de vista de Vila Isabel, Benedicto Lacerda, na época morando no Estácio, e Jayme Florence, o Meira, em São Francisco Xavier, eram mesmo "forasteiros". Os dois fizeram
música para Leia Casatle, Benedicto a valsa Leia, Meira o choro Primavera, gravados em solo de flauta pelo primeiro em disco Odeon (11.167). Meses depois, Leia ganharia letra de Jorge Faraj, sendo
regravada por Jayme Vogeler também na Odeon (11.223).

Só que o samba será mais que caprichado. Com melodia de Vadico, uma das mais belas que seus
dedos já arrancaram do piano, Noel criará, na verdade, uma obra-prima que, além de dedicada a Leia, será
um hino de amor à sua terra: Feitiço da Vila.

Quem nasce lá na Vila


Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo.

Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.

A Vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem.
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente.

O sol na Vila é triste


Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora.

Eu sei tudo que faço,


Sei por onde passo,
Paixão não me aniquila.
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte,
Meus senhores,
eu sou da Vila!
Da mesma forma que tem mais de um modo de cantar o amor, a
malandragem, a cidade e seus tipos, Noel também tem mais de um modo de
festejar esta tão festejada primavera. Lírico, orgulhoso de seu bairro em Feitiço
da Vila, ele pode tornar-se ferinamente bem-humorado em Marcha da Prima...
Vera, em que verseja e trocadilha muito à vontade para fustigar uma antipática e
imaginária Vera. O trocadilho, como se recorda, já foi usado por vovô Eduardo,
mas o restante da letra é muito original. Caberá a Almirante lançar a nova
composição numa das seqüências do Programa Casé.
Chama-se Vera
A minha prima.
Não é Severa,
Pois é Vera só.
Não é a prima do violão,
É a sobrinha da minha avó!

E receando que a Vera vire fera


Fiz esta marcha para a prima Vera.
A Vera prima,
Por ser primeira,
Achando rima
Para o verbo amar,
Não vai ao rádio, mas irradia
Antipatia por seu olhar!

A prima Vera,
Dizendo a idade
Não é sincera:
Diminui demais.
Se nos contasse as primaveras,
Era mais velha do que seus pais!

Carnaval, São João, primavera. Em breve chegará o Natal e logo depois as


Folias de Reis. Canta-se muito no Rio de Janeiro de agora. É sempre neste clima
de ir transformando em música e poesia tudo que a cidade lhes oferece que Noel
e João de Barro vão fazer juntos uma marcha a que darão o nome de Linda
Pequena. Tanto no andamento como nos versos, na melodia como no espírito, a
marcha inspira-se nas pastoras que nas vésperas do Natal começam a desfilar
pelas ruas de alguns bairros - Vila Isabel entre eles - revivendo antiga tradição
cristã(2).
2. A tradição das pastorinhas - cultivada em Vila Isabel e outros bairros do Rio daqueles tempos - praticamente desapareceu. Moças e rapazes formavam um cortejo que procurava reproduzir
a jornada dos pastores a Belém, quando do nascimento de Jesus. Dias antes do Natal, o grupo saía às ruas entoando música cadenciada e quase sempre dolente:
Caminhemos, caminhemos,
À lapinha de Belém,
Visitar o Deus-menino
Que salvar o mundo vem.
Os integrantes do cortejo, cada qual representando uma figura (os Reis Magos, a Estrela, a Borboleta, o Caçador, a Samaritana, o anjo Gabriel) iam às casas onde se armavam presépio e ali
"tiravam a lapinha", cerimônia de canto, dança e representação com que se adorava o menino Jesus. Jota Efegê, em Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira (volume I, página 16), nos dá detalhada
descrição dessa cerimônia que se repetia das vésperas do Natal até Dia de Reis. Os raros grupos de pastorinhas ainda existentes estão hoje em cidades do interior e em alguns poucos subúrbios do Rio.

É curioso o destino de Linda Pequena. Feita por João de Barro e Noel


Rosa à mesa do Papagaio, será gravada no próximo dia 8 de dezembro por João
Petra de Barros, ficará guardada por quase um ano nas prateleiras da Odeon, só
será lançada em novembro de 1935, por sinal praticamente sem ser notada, e só
muito depois, regravada por Sílvio Caldas, chegará ao grande público para então
se converter num dos clássicos da música popular brasileira. Um destino curioso
que Noel não chegará a acompanhar de todo.
A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as moreninhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.

Linda pequena
Pequena que tens a cor morena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar

Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.

Seja como for, carnaval, São João, primavera, Penha, Reis, neste Rio de
Janeiro festeiro e musical de 1934, é aparentemente feliz seu cantor Noel Rosa.
Manuel Garcia de Medeiros Rosa já não dorme direito. Acorda com
freqüência, anda pela casa, vai até o portão, volta, deita-se outra vez,
desassossegado. A insônia mina-lhe a saúde, mas ele finge resistir. Chega a dizer
que essas horas em claro no meio da madrugada trazem-lhe grandes idéias,
inspiração para novos inventos. O primeiro, uma pílula para uniformizar o canto
dos galos. Está convencido de que uma das coisas que o fazem acordar muito
antes de o sol nascer são justamente as diferenças de timbres e tons que seus
ouvidos captam no coro dos galos da vizinhança. Daí a necessidade de
uniformizá-los, de criar uma espécie de diapasão pelo qual os galos de Vila
Isabel devem entoar sua cantoria. E enquanto não chega à fórmula da pílula
milagrosa, trata do outro invento, uma idéia já antiga que ele desarquiva
precisamente para as noites em claro: os tamancos luminosos. Não acha justo
acender a luz quando se levanta de noite. Se fizer isso, acaba acordando os
outros.
De Linda Pequena a Pastorinhas

"Num certo dia de 1934 eu ia passando pela Rua Gonçalves Dias quando resolvi entrar no Café
Papagaio. Lá encontrei, de terno branco, sentado a uma das mesas, Noel Rosa. Costumávamos nos ver ali
de vez em quando, pois o nosso editor ficava bem ao lado. Sentei-me com Noel e, no meio da conversa,
perguntei-lhe:
- Noel, você já prestou atenção no ritmo das músicas daquele rancho que sai em Vila Isabel no Dia
de Reis?
-Já. É interessante. - Que tal se a gente fizesse para o carnaval uma música naquele ritmo?
- Boa idéia.
Ali mesmo, papel e lápis na mão, fizemos entre um cafezinho e outro a música e a letra de uma
marcha que chamamos de Linda Pequena. Gravada pelo João Petra de Barros, não fez sucesso.
Em 1937, Noel morreu. No início do ano seguinte, houve um concurso de músicas de carnaval
patrocinado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, na Feira de Amostras. Eu e o Alberto
Ribeiro inscrevemos uma marcha nossa, Touradas em Madrid, que acabou ficando com o primeiro lugar.
Mas muita gente protestou, alegando que nossa música era, na verdade, um pasodoble. Como se marcha e
pasodoble não fossem a mesma coisa. De qualquer modo, o DIP acolheu os protestos e anulou o resultado,
marcando para duas semanas depois um novo concurso. Foi então que pensei em Linda Pequena, tão
pouco lembrada que era praticamente inédita. Mudei um pouco a letra, que ficou assim:

A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.

Linda pastora
Morena da cor de Madalena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar

Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.

Mudei também o título, que passou a ser Pastorinhas. Inscrevi-a no novo concurso e tirei outra vez o
primeiro lugar. Gravada pelo Sílvio Caldas, foi um sucesso. Pena que Noel já não estivesse aqui para ver."
(3)
3. João de Barro já dera este depoimento aos autores - e o repetido em várias oportunidades, inclusive gravando-o para Noel Rosa, álbum de dois discos lançado em 1982 pela Federação
Nacional das Associações Atléticas Banco do Brasil - quando chegou às livrarias, já em 1987, Yes, Nós Temos Braguinha, biografia do mesmo João de Barro escrita pelo pesquisador Jairo Severiano.
Nela, nas páginas 49-52, o autor nos dá, fartamente documentada, outra versão. Pastorinhas já estava inscrita no concurso antes da eliminação de Touradas em Madrid. Na verdade, obteve o segundo
lugar entre as marchas. Anulado o resultado - porque realmente se considerou a vencedora um pasodoble - fez-se novo julgamento, desta feita cabendo a Pastorinhas o primeiro lugar. Jairo Severiano
conta ainda a briga que houve durante o concurso entre João de Barro e Nássara. Inconformado com a não classificação da marcha Periquitinho Verde, sua e de Sá Roris, Nássara esbravejou para João de
Barro: "Foi a alma de Noel que ganhou o concurso!"
Os tamancos - que anos atrás seu Medeiros e o português Aníbal andaram
estudando com o pensamento voltado para os maridos que chegavam em casa de
madrugada - têm agora função bem mais nobre. Servem não só para os insones
como ele andarem dentro de casa a horas tardias, mas também para as pessoas
que, tendo banheiro fora, no quintal, como é comum nestas casas de centro de
terreno, são obrigadas a caminhar bom pedaço no escuro ao se levantarem de
noite movidas por uma necessidade qualquer. A idéia é adaptar ao bico de cada
tamanco uma pequena lanterna cujo facho de luz vai iluminando o trajeto dos
noctâmbulos.
Tanto os tamancos luminosos como a pílula para uniformizar o canto dos
galos roubam muito do tempo do inventor Manuel Garcia de Medeiros Rosa.
São projetos que jamais se consumarão, mas que constituem hoje a sua única
motivação de vida. A família se preocupa. Neca é cada vez menos o homem de
antigamente. As mudanças não são notadas apenas por Martha. Hélio, os outros
parentes, os amigos que freqüentam o chalé, todos já perceberam que ele não
está bem. Tirando os instantes em que fala de pílulas e tamancos imaginários,
quase não se ouve sua voz. Passa horas e horas perdido num silêncio
indevassável, os olhos distantes. Sequer responde às perguntas com que Martha
tenta trazê-lo de volta ao mundo nesses momentos de alheamento. Quando sai de
casa - o que faz cada vez menos - é com destino incerto. Anda de bonde em
viagens que incluem complicadas baldeações. Tanto pode puxar conversa com o
desconhecido passageiro ao lado, como encontrar um velho amigo e nem ao
menos o cumprimentar. Numa dessas viagens, acontece de sentar-se no mesmo
banco Almirante, que o saúda tirando o chapéu.
- Como vai, seu Medeiros?
Desta vez reconhece o amigo do filho, cumprimenta-o, pergunta-lhe pelo
rádio, a música, as novidades. A conversa vai indo muito bem até que a voz de
seu Medeiros começa a diminuir, a tornar-se pouco a pouco mais fraca,
imperceptível quase, obrigando Almirante a chegar mais perto num esforço para
ouvi-lo. Os lábios de seu Medeiros se movem mas já não emitem nenhum som.
Almirante não sabe o que fazer, limita-se a mover a cabeça num sinal de que está
compreendendo, mas com a leve desconfiança de que o pai de Noel na verdade
fala apenas para si mesmo(4).
4. Depoimento de Almirante aos autores.

Nas raras visitas que faz ao chalé, Noel vai sendo informado do estado de
saúde do pai e das preocupações da mãe. As coisas estão cada vez piores, até
mesmo pelos inventos começa a perder o interesse. Agora, já nem finge resistir,
abatido, entregue, a maior parte do tempo naquele silêncio, os mesmos olhos
distantes.
Certa manhã, a escolinha em pleno funcionamento, ouvem-se gritos no
fundo do chalé. Corre Clara, correm as crianças. Na cozinha, dona Martha
agarra-se desesperadamente ao marido, procurando conter-lhe as mãos grandes
com que ele tenta levar ao pescoço o fio de luz que pende do teto. Dona Martha
grita por socorro. Logo chegam os vizinhos e dominam um seu Medeiros
irreconhecível, desvairado, teimando em enforcar-se com o fio que quase lhe
corta as palmas das mãos.
- Eu o encontrei trepado na cadeira - conta dona Martha, entre lágrimas, à
apavorada Clarinha. - E já estava com o fio em volta do pescoço.
Psicose maníaco-depressiva. Os médicos que vão ao chalé a pedido de
Martha, entre eles os Graças Mello, não empregam exatamente tais palavras para
explicar o que seu Medeiros tem, mas recomendam tratamento sério, assistência
psiquiátrica permanente, internamente A Casa de Saúde da Gávea é bom lugar,
limpo, tranqüilo e não muito caro: 800 mil réis por mês. E os médicos são
competentes e atenciosos. Aqui, no chalé, Neca com idéia fixa de suicídio, quem
poderá vigiá-lo as 24 horas do dia? Sim, a solução é o internamento.
Oitocentos mil-réis por mês é mais do que dona Martha talvez possa pagar.
Mas, se todos fizerem um sacrifício, se Eduardinho ajudar um pouco, Noel outro
tanto, pode-se dar um jeito. A família se reúne no chalé para discutir o assunto,
Noel inclusive. O que tiver de ser feito será. Dias depois, contra a vontade,
repetindo que já não quer continuar vivendo, Neca é internado na Casa de Saúde
da Gávea. Logo quando se sentia tão perto de realizar seus inventos, o tomam
por louco. Se se lembrasse agora do seu herói - não o Napoleão das grandes
vitórias, mas o derrotado pelo inverno russo -, haveria de concluir como o
general que a distância que separa o sublime do ridículo muitas vezes é a de um
simples passo.
Novas mudanças na vida de todos. Martha volta a carregar sobre os ombros
pesada carga, o marido ausente, a casa para manter, um filho estudando, outro
vagando. Por que paragens andará Noel? Pesada carga que esta mulher carrega
com estranha força e coragem. Queixas? É coisa que ninguém ouvirá de seus
lábios, mesmo que sofra e sofra muito.
Também muda a vida de Noel. Trabalha mais, aumenta o número de
apresentações em cinemas e programas de rádio. Pela primeira vez contém-se
um pouco nos gastos. Entre outras coisas, desiste para sempre do Pavão. Ainda
outro dia saiu na seção Cama de Gato, de Syntonia(5), esta brincadeira inspirada
no automóvel de Noel: 5. Syntonia, 27 de setembro de 1934.

"Eu tive uma radiola nacionalista que só pegava estações do Brasil. Noel
tem, além de um rádio espírita (válvulas na sala de jantar e corneta na cozinha),
um automóvel cruz-vermelha.
É um chevrolet.
Para que Noel não faça desastres, ele desde que o comprou não sai da
garagem.
Tomara que o carro que Ary Barroso adquirir tenha o mesmo modo de
pensar..."
Verdade. Desde o começo do ano que o Pavão não faz outra coisa senão
sofrer reparos. Uma saidinha até ali e logo volta para o conserto. Tanto trabalho,
tanta letra de música dada a Francisco Alves, para que o Pavão não passe agora
de um imprestável monte de lata e ferro. Noel não pode perder mais dinheiro
com ele. Assim, em troca de alguns mil réis, deixa-o de vez na garagem.
Muda também a vida de Hélio, que passa a fazer verdadeiras acrobacias
para prosseguir sem muitos gastos no curso de Veterinária: copia à mão os livros
que os colegas lhe emprestam, descobre no fim do mundo animais mortos que
leva para casa, descarna, ferve os ossos em latas de banha, para depois estudar
neles anatomia de cães, gatos, aves, pássaros.
E muda, mais que a de todos, a vida de seu Medeiros, cujo mundo agora se
restringe a alguns poucos metros entre as quatro paredes brancas de um quarto
de hospício.
O importante é não perder o humor. E Noel de fato o conserva o mais que
pode. Tem Ceci a alegrar-lhe as noites e já não tem Francisco Alves a
apoquentar-lhe os dias. Acabaram-se as cobranças: o Pavão, além de morto e
enterrado, está pago. Lindaura ainda é uma pedra no sapato, mas o que fazer? O
tempo, remédio para tantas coisas, talvez resolva também esse problema.
Com o humor que lhe resta nestes tempos difíceis - duas mulheres, o pai
internado, dinheiro curto, o carro perdido - suas músicas contêm mais graças do
que queixas. Carregada de gírias, A Melhor do Planeta reativa a parceria com
Almirante:
Tu pensas que tu é que és
A melhor mulher do planeta
Mas eu é que não vou fazer
Tudo o que te der na veneta.

Tu foste marcar dois por quatro


Batendo teus pés lá no Chão do teatro
Não entendendo a opereta
Fizeste a careta
Pior do planeta.

Tu foste dançar par constante


Num baile de um clube da liga barbante(6)
Tu abafaste a orquestra
Dizendo: "Sou mestra...
Pior pro Palestra!"

Que tu é que és a melhor


Até o papagaio já sabe de cor
Com este teu gênio intragável
És menos amável
Do que formidável.
6. Chamava-se "clube de liga barbante" a toda agremiação, em geral de futebol, que sobrevivia modestamente nos subúrbios ou em cidades do interior, não pertencendo portanto à liga oficial
que congregava os grandes clubes cariocas. O barbante é usado no sentido de pobre, vagabundo. A origem do termo está nas cervejas de fabricação Caseira, vendidas em certa época no Rio, que em vez
de chapinha tinham como tampa uma rolha amarrada com barbante. O Palestra citado logo em seguida é o Palestra. Itália, de São Paulo, que a guerra transformaria no atual Palmeiras.

Crônica de um arrasta-pé na gafieira, No Baile da Flor-de-Lis possui


saborosa letra:
No baile da Flor-de-Lis
Quem dançou pediu bis
Mas acabou-se o que era doce
Quem comeu, regalou-se
Quem não comeu, suicidou-se.

Quando a música parou


O mestre-sala gritou:
"Cavalheiros ao buffet!"
E o tal doce de coco
Que era bom mas era pouco
Não chegou para você.

Acabando o que era doce


Uma voz manisfestou-se
E a sala fez tremer:
"Esperamos por dinheiro
E que cada brasileiro
Cumpra com seu dever!"

Encontrei muito funil


A chorar junto ao barril
Quando o chope se esgotou
Houve a tal pancadaria
Com a qual se anuncia
Que o baile terminou.

É ainda a bordo do humor que Noel viaja por um samba em que protesta
contra alguém abusado o bastante para filar-lhe o almoço, fumar-lhe o cigarro,
usar-lhe as roupas, falar mal do samba. Um samba com dois títulos: Você é um
Colosso e Pisou no Meu Calo:
Você é um colosso,
Andou no meu carro,
Filou meu almoço,
Fumou meu cigarro,
Vestiu meu pijama,
Senti um abalo,
Usou minha cama,
Pisou no meu calo!

E não adianta
Você me pedir perdão
Depois de você pisar
Meu calo de estimação.

Você é um colosso
E não faz chiquê.
Enrolou no pescoço
O meu cachenez,

Foi no galinheiro,
Matou o meu galo,
Falou em dinheiro,
Pisou no meu calo!

Você é um colosso,
Comeu sandwich
Falando bem grosso
Que samba é maxixe.

Eu disse! "Caramba!
Não sou seu vassalo"
Falou mal do samba,
Pisou no meu calo

Em parceria com Hervê Cordovil, mais uma vez o tema é a Festa da Penha.
Tendo trabalhado todos os domingos de outubro, infelizmente não pôde
comparecer aos folguedos, a morena reclama a ausência e ele se explica: Fiquei
Rachando Lenha.
O meu amor chorou
Porque não fui à Penha
Fiquei rachando lenha
No ano que passou.

O meu amor chorou


Mas não lhe dei razão
Vem primeiro a obrigação
E depois a devoção.

Não há obrigação
Que faça te esquecer
Ela só me faz perder
Os momentos de prazer.

Eu trabalhei demais
Por ter necessidade
De ter ouro em quantidade
Pra comprar comodidade.

No ano que passou


Não pude ir à Penha
Meu amor se me desdenha
Quer comprar a minha lenha..

Noel diz a Ismael Silva que há alguma coisa errada na sua parceria com o
Chico. Ismael ouve com atenção. Tem mais ou menos idéia do que o parceiro e
amigo vai ponderar, mas prefere certificar-se.
- Você continua dando parceria a ele em todas as músicas?
- Sim, todas.
Talvez Ismael conte mentalmente quantas foram ao todo desde aquele
encontro com Francisco Alves sob o lampião defronte ao Café do Compadre. De
1930 até agora, quatro anos de muito samba bom de parceria com Nilton Bastos,
Noel Rosa e outros, quando não sozinho. E em quase todos eles, mais de trinta, o
nome de Francisco Alves ao lado do seu. Ou no selo do disco ou na partitura
impressa. E o próprio Chico se encarregando de dizer quem vai ou não gravar, se
ele mesmo, Mário Reis, João Petra, Castro Barbosa, Jonjoca ou quem seja.
Como se a obra de Ismael, toda ela, fosse propriedade sua. A pergunta de Noel,
irônica, maldosa, vai dar o que pensar ao bom Ismael: -Me diz uma coisa: e o
Chico, só grava o que você faz?
Por muito tempo Ismael Silva se lembrará da conversa em que Noel começa
a convencê-lo de que já é hora de também ele desalgemar-se de Francisco
Alves(7).
7. A influência de Noel Rosa no seu rompimento com Francisco Alves foi contada por Ismael Silva a um dos autores, à mesa de um bar da Rua Riachuelo com Lavradio, em 1962, na
presença dos jornalistas Mauro Affonso e Ito Coelho.

Não apenas por essa conversa - mas principalmente por ela - o grande
sambista do Estácio passa a pensar com seriedade em ir em frente sozinho,
seguindo o exemplo de Noel, que afinal continua por aí, fazendo sucesso,
gravando, sendo solicitado pelos cantores, sem precisar de Chico para nada. Se
Noel pode, por que não ele?
De fato foram reduzidos praticamente a zero os vínculos de Noel Rosa com
Francisco Alves. Ainda restam pequenos acertos de dinheiro entre eles, o cantor
sempre relutando em meter a mão no bolso. Ismael mesmo lembra de umas
contas que ele e Chico andaram fazendo outro dia na mesa de um botequim. O
cantor ia dividindo, mil réis por mil réis, o que lhes cabia de direito autoral de
determinada gravação. Dez mil réis para Ismael, dez para Chico; cinco mil para
um, cinco para outro. Até que chegaram à casa dos tostões. Sobrou uma moeda
de duzentos réis e era a vez de Ismael. Chico, no lugar de deixá-la para o
parceiro, não abriu mão do seu direito.- pediu que o português do botequim
trocasse por duas pratinhas de cem réis, uma para cada um.
Noel também continua não deixando passar nenhuma oportunidade de bulir
com Chico em suas letras. Por exemplo, aproveitando o sucesso no Rio do filme
alemão A Voz do Meu Coração(8), Francisco Alves gravou uma versão de
Orestes Barbosa para o fox-trotde Mischa Spoliansky, Tell Me Tonight.
8. A Voz do Meu Coração, filme alemão de 1932, chegou ao Brasil via Estados Unidos, dai ter sido exibido aqui com seu título americano, Be Mine Tonight, e não com o original, Das Lied
Einer Nacht. Dirigido por Anatole Litvak, tinha no elenco Jan Kiepura, Magda Schneider, Edmund Gwen, Fritz Schudz, Sonnie Hale e Ida Wuest. A canção que Orestes Barbosa converteu em Diga-me
Esta Noite - e Noel em Paga-me Esta Noite - também veio da versão americana, pois em alemão intitula-se Heute Nacht Oder Nie (Esta noite ou nunca).

Partindo dos primeiros versos ("Nesta noite tão linda venho cantando..."),
Noel transforma Diga-me Esta Noite em Paga-me Esta Noite para falar de um
ouvinte risonho, irmão do tal Pão-Duro, que é o próprio Francisco Alves:
Neste tempo medonho
Canto, tristonho
Ao microfone este prelúdio

O ouvinte risonho
Nem por um sonho
Sabe o que me traz ao estúdio.

A ti que és o irmão
Do tal Pão-Duro
Meu recibo vai assombrar
De revólver na mão
Eu vim aqui... cobrar.

Ainda há muito de humor em Noel neste mês de outubro. O que talvez não
haja é saúde. Esperando Ceci todas as madrugadas no Apollo, ficando com ela
até de manhã, trocando mais do que nunca a noite pelo dia, alimentando-se
pouco, não tendo ao lado de Lindaura os mesmos cuidados que recebia em casa
nos bons tempos em que Martha lhe servia refeições que não exigiam esforço na
mastigação, Noel emagrece. Aparecem-lhe olheiras que se acentuam e que só
dona Martha, quando ele vai ao chalé, parece notar.
Além disso, bebe muito. Não é um alcoólatra, não se inclui entre aqueles
freqüentadores da Lapa que mal sabem como é o bairro, porque só vão lá
bêbados de cair. Mas gosta de uma cerveja além da conta. E chega a tomar uma
ou outra bebida quente quando o tempo pede. Ismael Silva acompanha-o. Diz ter
tomado coragem para informar ao Chico que, daqui por diante, é cada qual por
si. Será que o homem vai achar ruim? Pouco importa. Sente-se mais seguro ao
lado de Noel. E é uma vez mais de parceria com Noel que compõe novo samba,
por muitos motivos, especial. Primeiro porque, depois de cinco anos, Francisco
Alves não entrará como co-autor. Segundo, porque a própria letra contém sutis
alfinetadas, Chico servindo mais uma vez de alvo. Terceiro, porque, sem que
eles saibam, será este samba, sugestivamente intitulado Boa Viagem, a última
obra que farão juntos.
O amor é como a chama:
Tem princípio, meio e fim.
Se você já não me ama,
Para que fingir assim...?
Não mandei você embora
Porque sou benevolente
Para que você agora
Quer sair ocultamente?

Seu desejo não me assombra


Ofereço o meu auxílio.
Passe bem, vá pela sombra
Acabou-se o nosso idílio.
Seu amor e o seu nome
Eu também vou esquecer:
Desta vez juntou-se a fome
Com a vontade de comer!

Se não mandei você embora


Enfim foi porque
Me faltou a coragem.
Mas se você vai dar o fora
Então, passe bem:
Boa viagem!
João Petra de Barros
Capítulo 34
PERTURBAÇÃO DOS SENTIDOS
Comecei a emagrecer. E a emagrecer assustadoramente. "Que é isso, Noel,
paixão incubada?", perguntavam-me. Eu sorria.
entrevista ao Jornal de Rádio

Não só em relação a Francisco Alves, mas a tudo, liberdade é algo que Noel
- o pai enclausurado num quarto de hospício - parece prezar mais do que nunca.
Deixa isso claro em todas as palavras e atitudes. E não é por outro motivo senão
a vontade de ficar livre que ele resiste às pressões de Martha para que ponha a
direito sua situação com Lindaura. A mãe que continue tenteando o pessoal da
delegacia.
Surpreende-se ao saber que Jacy Pacheco, o primo de Campos, pensa
diferente: tem a sua idade, 23 anos, e acaba de se casar. Por isso Noel lhe
escreve uma carta, datada de 24 de outubro, em que fala de seu espanto: "Meu
querido primo Jacy. Um abraço! Quero com ele dar os meus pêsames pelo seu
casamento. O que foi isso, Jacy? Alucinação?
- Perturbação dos sentidos - é o que você poderia responder."
À prima Célia, irmã de Jacy, escreve no mesmo dia outra carta cujo post-
scriptum reforça seu amor à liberdade: "Já dei os pêsames ao Jacy: Coitado! Ele
é mesmo um poeta: acha poesia até no casamento!"
Volta a escrever aos primos campistas uma semana depois, quando passa no
chalé a noite de 31 de outubro para 1.° de novembro. Na manhã deste último,
quinta-feira, dia de Todos os Santos, vai até a Casa de Saúde da Gávea visitar o
pai. Volta arrasado, sem a mínima esperança de que em breve - ao contrário do
que a mãe quer crer - Neca retorne, forte e alegre como antes. É o que conta a
Célia: "Ele continua com as mesmas idéias: não quer comer e prefere morrer a
continuar vivendo longe de nós. O médico, porém, garante que ele precisa ficar
três meses em tratamento, para se curar completamente. Eu não acredito (para
que mentir?) que ele fique bom. Além disso, a Casa de Saúde precisa dos 800
mil réis mensais que o cliente paga, não interessando portanto ao médico que o
doente saia de lá. Isto é a realidade. Entretanto não posso falar assim com minha
mãe. A única alegria que ela tem está na inteligência e na aplicação do nosso
Hélio."
Tem consciência, portanto, de que não há esperanças para o pai. E de que
ele, Noel, não é exatamente um filho do qual a mãe se orgulhe. Elogia o irmão,
fala com humor de sua vocação para veterinário: "Desde pequeno já matava
galinhas com cabo de vassoura e, depois de abri-las com o facão, separava os
diferentes órgãos e etc..." Menciona ainda o fato de Hélio estar "completamente
americanizado" e quase noivo.
Com Ceci, nunca fala do pai. Prefere perguntar sobre a vida dela do que
expor a sua própria. Como explicar-lhe a existência de Lindaura? Ou dizer que o
pai não pensa em outra coisa senão na morte?
O grande sucesso musical deste mês de novembro é mesmo Feitiço da Vila.
Noel vê-se constantemente solicitado a cantar o samba em todo espetáculo em
que se apresente. Continua trabalhando muito. Pensando bem, nunca teve vida
tão intensa, cada minuto do dia tomado, a música, os programas de rádio, o
disco, Ceci, Lindaura, o chalé. Compõe menos, sua produção musical caindo à
metade em relação ao ano passado. A correria em que se transformou sua vida,
somada ao fato de não mais necessitar compor para quitar o Pavão, pode explicar
a queda de produtividade.
Uma noite, canta no Cine Grajaú, na Rua José Vicente, que liga a Barão de
Mesquita à Theodoro da Silva. Excepcionalmente, Lindaura veio com ele, está
na platéia, sentada, orgulhosa do "noivo" que é uma das atrações da noite. Com
que música abrirá o espetáculo? Talvez Feitiço da Vila, talvez Suspiro, samba-
canção seu e de Orestes Barbosa:
Suspiro,
anseio secreto
Revelação de um afeto
Gemer que ninguém traduz.

Suspiro,
triste recado
De um coração ansiado
Na desventura da cruz.

Suspiro,
voz da desgraça
Voz da alegria que passa
Dando lugar ao sofrer.

Suspiro,
o peito se cala
Na dor que tanto apunhala
E não se pode dizer.

Suspiro,
que crueldade!
Tem que nascer da saudade
Enquanto o amor quiser.

Eu já dei mais de mil giros


E a fonte dos meus suspiros
É sempre a mesma mulher.

Noel canta um número, dois, acompanha ao violão outros cantores, entre os


quais Herivelto Martins(1), autor de um samba que aprecia: 1. Herivelto Martins, em entrevista aos autores, 29
de março de 1982, já não se lembrava de ter participado daquele espetáculo no Cine Grajaú. Lindaura, porém, garante que ele estava lá.

No morro do Castelo onde nasci


Tive o meu amor primeiro
Um mulato forte, bem falado, considerado
Era a minha salvação.

Samba que Herivelto entregou para Aracy de Almeida gravar e que no


entanto, um domingo desses, ao ouvir o Programa Casé, teve a agradável
surpresa de ouvi-lo interpretado pelo próprio Noel. Este lhe explicaria depois
que tudo não passou de remendo de última hora, Aracy não aparecendo, o
locutor da Rádio Philips anunciando: "E agora, Aracy de Almeida no samba
Morro do Castelo, de Herivelto Martins..." Cadê Aracy? Um corre-corre pelo
estúdio sanado pela providencial intervenção de Noel: - Deixa que eu canto.
O espetáculo vai chegando ao fim no palco do Cine Grajaú. Em que estará
pensando Noel? Nas músicas que interpreta ou na parte que lhe caberá da
bilheteria desta noite? Talvez pense em Ceci, num modo de deixar Lindaura em
casa e de arranjar uma desculpa que lhe permita alongar a madrugada no Apollo.
Pensará no pai? Ou na mãe que continua conduzindo o barco da família? O
espetáculo vai chegando ao fim. Súbito, sente o mundo rodar à sua volta. O
corpo mirrado flutua como se levado pelo vento, a vista se turva, os sentidos lhe
fogem. E cai.
Como terá vindo parar no chalé? O Cine Grajaú fica perto daqui, é só sair
pela direita, chegar até a esquina de José Vicente com Theodoro da Silva, dobrar
novamente à direita, seguir em frente até o oitavo quarteirão, limitado por Souza
Franco e Visconde de Abaeté. Um percurso de poucos minutos que Noel talvez
nem se lembre de como foi feito. Tudo aconteceu muito depressa, o desmaio no
palco, as pessoas correndo para acudi-lo, o alvoroço, a apreensão, alguém
sugerindo que o melhor seria trazê-lo para os cuidados da família.
- Você não deve estar se alimentando direito - acredita Martha.
É impressionante a magreza de Noel. Toda a família finalmente se dá conta
do que Martha vinha notando há tempos: o filho não se cuidava, perde peso,
depaupera-se. Não há quem resista a vida tão desregrada.
- Chamem o Edgar.
Edgar Graça Mello, filho do padrinho de Noel, é médico como o pai.
Tisiologista, não precisa fazer exame meticuloso para constatar que Noel está
mesmo debilitado. Edgar cola o ouvido nas costas magras onde costelas salientes
traçam mórbido contorno.
- Melhor tirarmos uma radiografia.
O Hospital São Francisco Xavier fica, ironicamente, bem na zona boêmia
que Noel freqüenta desde menino e onde muito de sua saúde deve ter sido
desperdiçada nos últimos dois, três anos. O pessoal do Mangue costuma brincar,
apontando para o prédio do hospital: "É ali que a gente se cura das mazelas que
arranja aqui." Doenças venéreas, problemas de pele, fígados danificados,
pulmões pedindo socorro. São geralmente pobres, indigentes mesmo, os homens
e mulheres que se sentam nos compridos bancos de madeira que ocupam um
lado e outro do corredor de espera. As enfermarias vivem abarrotadas. Uma
delas, dizem, funciona exclusivamente para aplicar injeções de bismuto ou o que
mais se conheça para combater a sífilis que se pega não só no Mangue, mas em
toda a parte. Outra, para atendimento das afecções pulmonares, da gripe
malcurada à temível galopante. É nesta enfermaria que Noel aguarda o resultado
dos exames radiológicos.
Amores de boêmio têm o seu preço. Se brotam numa destas casas do
Mangue, da Central ou mesmo da Lapa, não é raro que floresçam em pencas de
microorganismos que costumam deixar marcas terríveis, o cancro, o mal-de-
coito, o herpes, a gonorréia, a peste branca.
A tuberculose ainda é uma doença assustadoramente difícil nestes últimos
meses de 1934. E continuará sendo por muito tempo mais. Difícil, quase sempre
indomável. Como na época em que Mário Brown foi para Belo Horizonte em
busca de salvação, as pessoas ainda lhe evitam o nome. Chamam-na de
"doença", "queixa do peito", "fininha", "seca", "tísica", "magrinha", "delicada",
toda sorte de eufemismos para não lhe mencionarem o nome certo. Como se nele
houvesse mesmo perigo de contágio. Contagiosa é, mas nem tanto. Contagiosa e
no mais das vezes fatal. Morre-se dela todos os dias, todas as horas. Agora
mesmo Cândido das Neves, o índio, cujas canções Noel, Alegria e os demais
seresteiros daqueles tempos tanto apreciavam, agoniza, pulmões e laringe
arruinados(2).
2. Cândido das Neves, o índio, morreria a 14 de novembro de 1934. Portanto.poucos dias depois de constatada a doença de Noel.

Uma doença difícil. Cura-se com muita luta um pulmão afetado, mas tem-
se que apelar para os céus quando se trata dos dois. De que outros remédios,
além do milagre, dispõe hoje a medicina para guerrear contra milhões de vorazes
bacilos que se multiplicam aniquilando tecidos, arruinando vidas? Por enquanto,
nenhum medicamento específico, a cura sendo procurada através de repouso,
higiene, dieta. Tenta-se o clima das montanhas, frio e seco. Em alguns casos, o
pneumotórax. Em outros, a cirurgia. Mas sempre é preciso contar com a sorte,
muita sorte. E jamais desacreditar em milagres.
Edgar Graça Mello é franco:
- Uma lesão no pulmão direito. E já há qualquer coisa também no esquerdo.
Mas tenta tranqüilizar Noel. Não há razão para pânico, desespero ou algo
assim. A doença está no começo, pode ser contida. Noel é jovem, a idade sempre
ajuda. O problema maior é o seu estado geral, a magreza. Quantos quilos?
Quarenta e cinco? Definitivamente isso não é peso que se possa levar a sério. Ou
melhor, é peso para se levar a sério até demais, especialmente em alguém que
tem os dois pulmões afetados.
- Vamos tratar disso, Noel.
Edgar visita o chalé. O desmaio, o susto daquela primeira noite já passou.
Uns dias em casa devolveram a Noel algumas forças. Ele já está saindo, vai até a
esquina, conversa com amigos. Mas Edgar alerta dona Martha para as mudanças
que se impõem à rotina de Noel. Além dos remédios que receitou, dos exames
periódicos, da superalimentação e da supressão de gelados, é necessário que as
madrugadas sejam abandonadas. A tuberculose é difícil de curar com todos esses
cuidados. Sem eles, o difícil se torna impossível. Recomendável seria outro
clima, outra cidade. Assim como Teresópolis ou Friburgo. Ou Belo Horizonte.
Martha lembra-se da irmã. Carmem está morando em Belo Horizonte, tem
uma boa casa no bairro da Floresta. Ela e Mário Brown hão de receber de braços
abertos o sobrinho Noel. Lá não há boêmia, nem botequins, nem estações de
rádio. Nada dessa agitação em que o filho vive metido no Rio. Fala com ele. De
início Noel reluta. Não consegue se imaginar em Belo Horizonte. Vá lá que a
cidade, com suas montanhas e seu verde, tenha fama de curar milagrosamente
pulmões como os seus. Mas é quieta demais. Um carioca habituado ao
burburinho da Lapa, onde a vida só começa depois de meia-noite, na certa
morreria de tédio na acolhedora mas inerte capital mineira. A relutância,
contudo, acabará sendo vencida no dia em que Noel se convence de que a
melhora foi apenas passageira. Edgar encontra-o em casa ardendo de febre.
- Dona Martha está certa, Noel. Belo Horizonte te fará bem.
Concorda. Ficará lá alguns meses, seguirá as regras que tia Carmem
estabelecer, nada de madrugadas, de bebidas, de mulheres. E há de se alimentar
bem, legumes, verduras, leite, frutas. Ficará até que a primeira etapa da doença
seja vencida. Ganhará alguns quilos, fará a vontade da mãe e de Edgar. Cinco,
seis meses no máximo.
Mas... e Lindaura? No meio dessa confusão toda, desmaio, correria, idas ao
hospital, chapas de raio-x, conselhos de Edgar, ninguém se lembrou de Lindaura.
Noel sente-se na obrigação de levá-la com ele. O que seria dela sozinha?
- Só vou se ela for, mãe.
Martha, mulher corajosa e firme, mas acima de tudo ferrenhamente apegada
a seus princípios, mais uma vez deixa claro ao filho que, sem certidão de
casamento, ele não trará a moça para o chalé. Muito menos a levará para a casa
dos tios em Belo Horizonte. Nesse ponto, não é diferente da irmã: há códigos de
moral que precisam ser respeitados. Noel está febril, de cama. É muito mais
difícil resistir agora. A mãe volta ao assunto que há um ano vem sendo o ponto
de discórdia entre eles. Não passa muito tempo sem que o pessoal da delegacia
apareça para perguntar-lhe: "Como vai o Noel?" Uma forma polida e sutil de
lembrar-lhe que as promessas feitas por ela sobre o casamento do filho ainda não
foram cumpridas. Quarenta e cinco quilos! Noel está fraco, vulnerável. O que
será da Linda sem ele?
- Só vou se ela for, mãe.
- Então vamos resolver logo tudo isso.
- Como?
- Só há um jeito: o casamento.
Fraco, vulnerável. Como dizer não? Os proclamas correm mais rápido do
que de hábito, as autoridades policiais colaborando para que não se perca mais
tempo, cuidando para que se passe por cima de alguns trâmites burocráticos.
Dona Martha está satisfeita, até que enfim o problema se resolve. Está satisfeita
Lindaura, o casamento vai devolver-lhe a respeitabilidade, tornar possível a
reconciliação com dona Olindina, quem sabe até fazer com que Noel sossegue.
Estão satisfeitos todos, a ida para Belo Horizonte sendo mais do que uma
esperança de que ele se cure logo.
Mas o que pensa de tudo isso o próprio Noel?
Sábado, 1.° de dezembro de 1934. É acanhada, escura e fria a sala do
escrivão Santiago, a 2ª Pretória Cível em que acabam de se casar Noel de
Medeiros Rosa, carioca, 23 anos, e Lindaura Martins, sergipana, dezoito
completados no último 9 de junho. Os dois assinam o documento que os une até
que a morte os separe, o livro 104, folhas 177. Como testemunhas, Oswaldo
Gouveia do Carmo e Sylvio Cioclaro. O primeiro é chofer de praça, casado com
uma sobrinha de Clara, amigo de Noel que por esta época aluga
temporariamente um dos quartos do chalé. Tudo, portanto, como manda a lei e
recomendam os princípios das duas famílias. Dona Olindina, ainda magoada,
não veio desejar sorte à filha que passa a assinar-se Lindaura de Medeiros Rosa.
Terminada a cerimônia, os dois posam para a única fotografia em que
aparecerão juntos. Ela num vestido azul-marinho, meias de seda, buquê de rosas
na mão direita, aliança de ouro na esquerda e um ligeiro sorriso nos lábios. Ele
de terno de algodão cinza riscado, gravata borboleta, nenhum sorriso. O terno de
algodão se explica: ainda tinha um pouco de febre quando saiu de casa para vir
ao cartório. Puseram-no no carro como se não tivesse forças para chegar sozinho
até aqui. Ou como se relutasse, pela última vez. Não haverá festas. Nem doces,
nem convidados, nada.
Noel e Lindaura passam a ocupar o quarto dos fundos. Ali, diz dona
Martha, ficarão mais à vontade, terão mais liberdade. O casamento aconteceu
sem que ninguém esperasse ou fosse avisado. Não se mandaram convites. Por
enquanto, nenhuma notícia nos jornais. Mas a novidade vai se espalhar de boca
em boca no meio artístico. Muitos se surpreenderão: - Vejam só, pensei que ele
já estava livre desse problema!
Outros serão proféticos: - Noel e o casamento jamais se darão bem.
Jacy Pacheco, também recém-casado,vem ao Rio a trabalho. É bancário em
Campos, ganha pouco, não se pode dar ao luxo de trazer a mulher, Judith, tendo
de pagar do próprio bolso passagem, hospedagem, refeições. Vai até o chalé,
onde encontra o primo melhor de saúde. Na verdade, nem desconfiava de que
estivesse doente. Jacy talvez pense que Noel, casado de pouco, está
compenetrado de sua nova vida, Caseiro, fazendo companhia à mulher. Mas se
engana.
- Vamos dar uma volta.
- Onde?
- Pelo Centro.
- E Lindaura?
- Ela fica.
E fica mesmo. Noel e Jacy vão jantar juntos na Taberna da Glória. Nada
mudou na vida do primo, pensa Jacy. Noel conta-lhe as circunstâncias em que
ocorreu seu casamento, mas não lhe fala da doença. Fora a magreza, parece bem.
Nada mudou realmente.
Mais rápida do que a notícia do casamento, corre pela cidade a informação
de que Noel não anda bem, desmaiou durante um espetáculo, está sob severa
vigilância médica. Amigos o visitam no chalé. Sabem dos planos de viagem, da
recomendação de Edgar para que passe algum tempo em Belo Horizonte. Dona
Martha fala com os mais chegados das dificuldades cada vez maiores que
enfrenta. O marido internado, 800 mil réis por mês arrancados da pedra com as
próprias unhas. E agora Noel, casado, sem poder trabalhar, tendo de passar
tempos fora do Rio. Os amigos compreendem. Recorrem ao Casé. Afinal, Noel é
uma das estrelas de seu programa. Casé promete ajudar. Além disso, há a
simpática turma de Syntonia, o semanário especializado em rádio e música
popular. Na redação do jornal decide-se fazer um apelo ao meio artístico: que
todos ajudem como puderem o amigo Noel Rosa. O apelo será atendido. Em
poucos dias, dona Martha recebe no chalé o dinheiro arrecadado por Syntonia.
Noel é tratado como grande nome da música popular que de repente
necessita do amparo e da atenção de todos. Suas músicas são tocadas no rádio,
jornais publicam matérias a seu respeito. Uma dessas matérias será a principal
do primeiro número de um novo jornal e uma espécie de balanço de sua
carreira(3).
3. Jornal de Rádio, Rio de janeiro de 1935.
Apelo pelo poeta.
(Reprodução de Syntonia.)

SYNTONIA
Atenção, amigos de Noel Rosa!
Noel, o sambista philosopho, o queridíssimo autor popular cujas composições falam à alma pela sua
expressão de sinceridade e belleza, vae ser homenageado pelos seus innumeros amigos e admiradores. Esta
prova de carinho que será prestada a Noel Rosa, terá um cunho altamente significativo e prático.
A lista de adhesões está à disposição dos interessados no escriptorio do Programma Casé, á rua
Uruguayana, 39, 2* andar, tel. 2-7038, onde serão phornecidos esclarecimentos mais amplos.
Neste momento em que Noel Rosa atravessa, uma phase delicada de convalescença, esta prova
collectiva de admiração e sympathía será certamente para eile um conforto moral opportuno e bem
merecido.
O ano chega ao fim. Noel e Lindaura têm viagem marcada para os
primeiros dias de janeiro. O Natal é passado em casa, em torno da árvore e do
presépio que todos os anos dona Martha arma segundo tradição que vem de
longe, dos Corrêas de Azevedo. Noel - que ironia com seu próprio nome! -
jamais gostou do Natal:
- Para que esperar um ano para se dar presente a quem se gosta?
Não dá presentes a ninguém. Este é um Natal triste, especialmente porque o
pai está longe, sozinho. De Ceci despede-se laconicamente. Diz que a polícia
obrigou-o a casar-se. Anda adoentado. Vai sair do Rio por algum tempo, atrás de
bom clima. Ou de um milagre.
PARTE IV JANEIRO - ABRIL DE 1935
Capítulo 35

ENTREATO MINEIRO

Nessas balanças mineiras


De variados estilos
Trepei de várias maneiras
E... pesei cinqüenta quilos!
carta ao amigo Edgar

São dezesseis horas do Rio a Belo Horizonte com paradas em várias


cidades, Barra do Piraí, Juiz de Fora, Barbacena, Palmira(1).
1. Atual Santos Dumont.

A viagem mais barata é pelo rápido, trem que sai da Central do Brasil às
cinco da manhã e só chega ao destino pouco depois das nove da noite. Mais
barata porque, ao contrário do noturno, que oferece aos passageiros leitos
relativamente confortáveis, tudo que estes vagões de madeira e bitola larga têm
são bancos duros e apertados e um carro-restaurante onde as pessoas brigam por
uma mesa e pela vez de comerem pratos nada apetitosos: arroz empaçocado,
feijão ralo, bife raquítico. Mas é o que Noel e Lindaura puderam comprar com o
dinheiro levantado por Syntonia. Tia Carmem, o marido Mário Brown e os filhos
aguardam o casal. Carmem não mudou nem um pouco, ainda é a mesma mulher
austera, autoritária, muito diferente da irmã. Bondosa também, mas firmemente
decidida a impor ao sobrinho uma severa disciplina de tratamento: - Boa comida,
sempre em horas certas. E nada de noitadas!
A tia não pode evitar uma ou outra reprimenda:
- Eu sempre soube que essa história de rádio não ia acabar bem.
Noel nem tenta explicar que o rádio nada tem a ver com a doença. Fizesse
ele as vontades de tia Carmem, ficando com a medicina em vez do samba, ainda
assim teria se entregado à vida boêmia.
-Aqui você não terá muita coisa para fazer de noite - diz Mário Brown
tentando deixar claro que, querendo ou não, Noel será forçado a dormir cedo
numa cidade tão pouco boêmia como Belo Horizonte.
Ingênuo Mário Brown. Nem Belo Horizonte é uma cidade pouco boêmia,
nem é intenção de Noel renunciar às madrugadas. Na verdade, para um notívago
incurável como ele, não existe cidade pouco boêmia.
- Vou dar uma volta - diz depois do primeiro jantar, saindo com destino
ignorado.
Carmem e Mário Brown moram com Dulce, Sylvia e Mariozinho numa
casa de sala e três quartos da Rua São Manuel, 124. O local é um dos mais
tranqüilos e agradáveis do bairro da Floresta. A casa, um andar só, tem quintal,
varanda do lado, as janelas dos quartos dando para um terreno baldio. Lugar
acolhedor, mas quieto demais.
- Você precisa de repouso, Noel-lembra a tia.
É ela quem cuida pessoalmente da alimentação do sobrinho, leite fresco,
verduras, legumes, tudo à hora certa. Nos primeiros dias, os passeios noturnos de
Noel duram pouco, uma caminhada depois do jantar, um giro pelo Centro, saídas
rápidas que o trazem de volta sempre antes das dez. Às vezes Lindaura o
acompanha, mas em geral ele prefere ir só. A mulher pouco interfere em sua
vida, deixa que tia Carmem cuide da alimentação e Mário Brown se incumba de
controlar os horários.
-De nada adianta voltar para casa cedo, Noel. Já notei que você fica até
tarde com a luz do quarto acesa. Por quê?
Lindaura explica que o marido, sempre que volta da rua, nove, dez da noite,
põe-se a escrever. Num caderno de capa dura, com seu inseparável cotoco de
lápis, deixa esboçados pensamentos, versos, letras de música, coisas que nunca
chegará a mostrar a ninguém. Mário Brown sugere que passe a escrever de dia.
Por que não na parte da manhã, quando um sol gostoso cobre de luz e calor
toda a varanda? Mas Noel prefere a noite, o começo da madrugada. Já que não
pode sair, escreve.
Tia Carmem recorre a alguns artifícios para evitar que o sobrinho doente
perca horas de sono debruçado sobre seus versos. Um deles, o de tirar a lâmpada
do quarto.
Mas Noel também tem seus truques: surripia a lâmpada do quarto de um
dos primos e a coloca no seu. Carmem insiste. Com a cumplicidade de Lindaura,
faz sumir a outra lâmpada. Noel vai ao armazém da esquina e compra uma caixa
de velas. E continua acordado, madrugada adentro, agora movendo seu cotoco
de lápis à luz de uma chama trepidante.
Ao contrário do que Mário Brown pensa, há muito o que fazer nas ruas de
Belo Horizonte, mesmo altas horas da noite. É só procurar. O boêmio daqui,
Noel constata, é antes de tudo um tipo solitário. Vaga pelas madrugadas de ruas
vazias, perdido no imenso e silencioso deserto que é a cidade depois das onze.
Raramente encontra quem o acompanhe em suas caminhadas, mas quando isso
acontece sempre descobre um programa.
Belo Horizonte é mesmo um lugar deserto nessas horas tardias. A última
sessão de cinema acaba às dez, nas esquinas resta apenas um ou outro cidadão
comum à espera da condução que o levará para casa. Mas o boêmio não é um
cidadão comum. Sua casa é a rua, o botequim, os poucos cantos que nunca
dormem. Solitário, vive permanentemente à procura de uma alma gêmea, um
parceiro de noitada, como Noel Rosa.
Noel de fato será parceiro de muitos boêmios da terra, descobrindo com
eles o que fazer depois das onze. Vai peregrinar ao seu lado, beber em sua
companhia, cantar-lhes novidades como Amor de Parceria, composição que
revela seu interesse, nestes dias, por um gênero relativamente novo: o samba-
choro Isto é, um samba que utiliza certo fraseado do choro. Ou um choro que,
cantado, pede emprestado ao samba a sua pulsação rítmica. Sem que deixe de
estar presente o humor de Noel:
Saiba primeiro
Que fulano é meu amigo
E com ele eu não brigo
Com ciúmes de você.

Você provoca briga entre rivais


Para depois ver nos jornais
Seu nome, seu clichê.

Há muito tempo
Meu amigo já sabia
Que você me oferecia
Chocolate no jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ele e ele foi por mim.

Você pensou que fomos enganados,


Marcando encontro em dias alternados
E nós fizemos a sua vontade.
Dentro daquele enredo
Eu e ele não tivemos prejuízo na sociedade.

Quando meu sócio


Namorava em seu portão
Eu ficava na esquina
Distraindo seu irmão
E quantas vezes eu perdi a fala
Quando estava sem tostão

E ele pedia bala!


Nós aturamos
Sua tia implicante
Mas filamos seu jantar,
Não pagamos restaurante.
Você não sai do nosso pensamento.
Você foi negócio, foi divertimento.

A versão feminina da letra tem várias modificações. E é a que será gravada


por Aracy de Almeida:
Saiba primeiro
Que fulana é minha amiga
E comigo ela não briga
Com ciúme de você.

Você provoca briga entre rivais


Para depois ver nos jornais
Seu nome e seu clichê.

Há muito tempo
Minha amiga me avisava
Que ela sempre conversava
Com você no seu jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ela e ela foi por mim.

Você pensou que fomos enganadas


Marcando encontro em horas alternadas
E nós fizemos a sua vontade
Dentro daquela escrita
Eu e ela não tivemos prejuízo na sociedade.

Quando você
Se atrasava uma hora
Eu fingia não saber
A razão dessa demora.
E muita vez você perdeu a fala
Quando estava sem tostão

E eu pedia bala!
Nós aturamos
Os seus modos irritantes
Mas filamos bons jantares
Nos melhores restaurantes.
Você não sai do nosso pensamento,
Você foi negócio e foi divertimento.

Outra composição desta mesma época, Disse-Me-Disse, também é um


samba-choro. Os boêmios mineiros serão os primeiros a ouvi-lo:
Você me disse que a vizinha disse
Que eu sempre disse
Que você é louca.
Essa vizinha
Que só faz trancinha
De falar sozinha
Vive sempre rouca

Eu tenho pena dessa infeliz


Que sem motivo diz
Que eu serei capaz
De sustentar aquilo que você não disse
Deixa de tolice
Não sou leva-e-traz.

Encontrei até quem garantisse


Que a vizinha disse
Que eu falei demais
E esse alguém que fala mal de todo mundo
Creio que no fundo
Não é mau rapaz

Que bom seria se eu, face a face,


Hoje declarasse
À vizinha rouca
Que ela deve se chamar
Língua-de-Trapo
Quanto bate-papo!
Quanto bate-boca!

São várias as rodas boêmias da Belo Horizonte destes tempos. A dos jovens
estudantes e a dos velhos paus-d'água, a dos intelectuais que se reúnem no Café
Estrela, como Elpídio Canabrava, Pedro Nava, Affonso Dutra, Stênio Caldeira,
Carlos Drummond de Andrade, e a do pessoal da música com o qual Noel vai
travando contato. Um dia ele descobre a existência de uma PRC-7, Rádio
Mineira, em pleno coração da cidade. Fica sabendo que a emissora funciona
precariamente, quase em caráter experimental, no porão do edifício do Conselho
Deliberativo, esquina das Ruas da Bahia e Augusto de Lima, com um modesto
transmissor no bairro de Carlos Prates. Noel toma um ônibus na Floresta e vai
conhecer a Rádio Mineira.
O jeito tímido, a fala mansa, entra, se apresenta aos locutores, operadores e
poucos artistas do cast. Fará novos amigos de alguns deles, Lourival Serra, os
irmãos Paulo e Chico Lessa, José Vaz, Milton Dias, Zetio Santa Rosa, Nelson
Orsini, jovens de vinte, vinte e poucos anos, loucos por rádio.
- Estou aqui de férias - explica. - Andava meio cansado, precisando de um
pouco de sossego.
Vê que seu nome é conhecido, todos sabendo cantar suas músicas, Nelson
Orsini tirando do violão exatamente os mesmos acordes que Noel utiliza, por
exemplo, ao se acompanhar em Até Amanhã. Os novos amigos o convidam para
comer, por apenas dois mil réis, o famoso prato feito do Colosso, restaurante que
fica a uns cinqüenta metros da Rádio Mineira. Lá, todos juntos, improvisam em
plena tarde uma roda de samba.
Noel se integra. Entusiasma-se com os novos amigos. Entre eles há até uma
réplica da dupla Francisco Alves e Mário Reis, Zeno tentando imitar Chico, José
Vaz nas águas de Mário. Fica conhecendo também Roberto Ceschiatti, muito
jovem e já sabendo tudo de eletrônica. É ele quem cuida da parte técnica da
emissora. Embora goste de samba - e vá acompanhar Noel e os outros nas
cantorias pelos botequins da cidade - seu negócio, mesmo, são válvulas e
antenas, chaves e botões, toda aquela complicada maquinaria que põe e mantém
no ar a Rádio Mineira.
O primeiro encontro dos dois ocorre em circunstâncias curiosas. Noel entra
no porão onde funciona a emissora e vê Ceschiatti não mexendo nos botões da
mesa de controle, mas com o telefone no ouvido.
-Alô, - diz engrossando a voz para que não o identifiquem do outro lado. -
Aqui fala o embaixador Bill!
E desliga, deixando Noel intrigado. Passam-se alguns segundos e Roberto
Ceschiatti disca de novo, repetindo, com a mesma voz grave: - Aqui fala o
embaixador Bill!
Noel, curioso, pergunta-lhe que diabo está fazendo com essa história de
embaixador Bill. Ceschiatti reconhece Noel. Meio sem jeito, conta que está
apaixonado pela secretária de um homem importante em Minas, um
desembargador.
- Quem é o homem?
-Antônio Ribeiro Júnior-responde Ceschiatti depois de olhar para os lados
para se certificar de que ninguém o ouve.
- E a moça?
Ceschiatti explica que já se dá por satisfeito ao ouvir apenas a voz dela.
Quanto ao embaixador Bill, é personagem de um filme que acaba de passar em
Belo Horizonte. O problema maior é quando o próprio Antônio Ribeiro Araújo
atende ao telefone, pois fica simplesmente furioso quando o ouve dizer: - Aqui é
o embaixador Bill!
Essa informação é o bastante para aguçar o lado moleque e menino de Noel.
Pensa no quanto seria divertido enfurecer um homem importante, um
desembargador, e pede o número do telefone a Ceschiatti.
- Pode deixar que eu não incomodo a moça.
Procura saber, também, de todos os outros números de Antônio Ribeiro de
Araújo, o do escritório, o de casa, o do tribunal, onde quer que possa ser
encontrado. Desse dia em diante, sempre que lhe sobra tempo - e não há nada
melhor para fazer - disca para o homem e diz, engrossando a voz como
Ceschiatti: - Alô, desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Dezenas de vezes repetirá a brincadeira, mesmo depois de Ceschiatti perder
o interesse pela secretária. Enfurecer um desembargador é mesmo divertido, mas
Antônio Ribeiro Araújo não pensa assim. Certa tarde, no tribunal, após ouvir
mais uma vez a voz cavernosa do embaixador Bill a perturbar-lhe o trabalho,
dirá a um de seus colegas: - No dia em que descobrir quem é este canalha, juro
que o mato!
Paulo, Chico, Lourival, Zeno, Ceschiatti são companheiros de Noel em sua
temporada mineira. Mas nenhum está tão próximo dele - ou tem tantas
afinidades com ele - como Nelson Orsini. Juntos cantam pelo microfone da
Rádio Mineira, freqüentam as biroscas dos bairros mais afastados, vão à zona
boêmia animar com seus violões as tristes noites das mulheres da vida. Nelson é
bom violonista. Dedica-se tanto aos fox-trots como a Albéniz, Granados,
Tãrrega. Noel ouve-o com atenção, o jeito de quem não quer perder uma nota,
mas é franco em suas opiniões: - Não sei o que é mais chato, Nelson, se estes
teus fox-trots ou se os clássicos espanhóis.
Em outras ocasiões, elogia:
- Este teu violão tem uma bela sonoridade. É muito melhor que o meu.
Nelson, com humildade, replica:
- Em compensação, você toca melhor do que eu.
- Não, não é verdade.
A zona boêmia se estende ao longo de três ruas paralelas, a Avenida do
Comércio, a Oiapoque e a Guaicurus. A turma de rádio percebe que Noel é
bandeira valiosa, sujeito cujo violão e cujas músicas encantam de tal maneira as
mulheres que eles, como amigos de tão talentoso e ilustre visitante, acabam
tirando suas vantagens.
- Sou amigo de Noel - diz Paulo Lessa. E a mulher, no mínimo, se mostra
mais acessível.
Nelson Orsini leva Noel para toda parte. Por exemplo, uma festa familiar na
casa de Manuel Maurício da Rocha, professor da Faculdade de Engenharia.
Doces, salgados, ponche, cerveja. Os amigos mineiros já sabem da predileção de
Noel pela Cascatinha e se lembrarão disso para sempre. Zeno adverte Manuel
Maurício da Rocha que, para animar o sambista Noel, a Cascatinha é
fundamental. O dono da casa providencia a cerveja para que a garganta do cantor
não fique seca. Em retribuição, Noel canta para os convidados, com
acompanhamento seu e de Nelson Orsini. Seu grande sucesso atual continua
sendo Feitiço da Vila, que todo o mundo conhece. Mas também está na boca do
povo mineiro Seja Breve, criação magistral de Luís Barbosa e João Petra, que a
gravaram acompanhados pelo piano de Custódio Mesquita.
Seja breve...
(Seja breve!)
Não percebi por que você se atreve
A prolongar sua conversa mole
(Que não adianta!)
Seja breve...
(Conversa de teso!)
Não amole!
Senão acabo perdendo o controle
E vou cobrar o tempo que você me deve.

Eu me ajoelho e fico de mãos postas


Só para ver você virar as costas
E quando vejo que você vai longe
Eu comemoro a sua ausência com champanhe
( Deus lhe acompanhe!)

A sua vida nem você escreve


E além disso você tem mão leve.
Eu só desejo é ver você nas grades
Para dizer baixinho sem fazer alarde:
"Que Deus lhe guarde!"

Vou conservar a porta bem fechada,


Com o cartaz:
"É proibida a entrada."
É você passa a ser pessoa estranha.
Meu bolso fica livre dos ataques seus:
(Graças a Deus!)

A festa está em plena animação quando Miguel Maurício da Rocha, já mais


íntimo de Noel, arrisca: - Você já fez alguma música para Belo Horizonte?
- Não.
- Por quê?
- Ainda vou fazer.
- Por que não improvisa alguma coisa agora?
Noel pega o violão, ensaia alguns acordes e, para delícia dos presentes,
improvisando aqui mesmo sobre a música de I'm Looking Over A Four Leaf
Clover(2), canta: (Belo Horizonte) 2. Canção americana escrita em 1927 por Mort Dixon e Harry Woods. Na versão brasileira de Nilo Sérgio, Trevo
de Quatro Folhas.
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
O que há de melhor pra mim

Não é o bordão deste meu violão


Nem é a prima que eu firo assim
Não é a cachaça
Nem a fumaça
Que no meu cigarro vi

Belo Horizonte
Deixa que eu conte
Bom mesmo é estar aqui...

Uma homenagem à terra, em tom bem-comportado, apesar da menção à


cachaça e ao cigarro. Mais tarde, na zona boêmia, acompanhado de Nelson
Orsini, Noel aproveitará a mesma melodia para criar uma letra que decerto não
ousaria cantar na festinha de Miguel Maurício da Rocha:
Belo Horizonte
Atrás do monte
Rosinha deu pro Leitão

Arrependida, se pôs a chorar


Jurando que nunca mais ia dar
Porém, no outro dia,
Leitão comia
Na cama outro jantar

E a Rosinha,
Tão pobrezinha,
De inveja quis se matar...

Naturalmente, são muitas as reprimendas que Noel sofre em casa, tia


Carmem inconformada por vê-lo abandonar a vida mais regrada dos primeiros
dias. Mário Brown procura falar-lhe como amigo: - Você tem de se cuidar, Noel.
O tio ouve, impressionado, sua resposta:
- Quem muito se cuida, pouco vive. Refere-se, é claro, à qualidade e não à
quantidade de vida. Mário Brown não o compreende, chama sua atenção para o
clima, a boa comida, o ritmo tranqüilo de Belo Horizonte. Esta cidade tem
operado verdadeiros milagres em pessoas doentes do pulmão. Não gosta de Belo
Horizonte?
- Sim, mas prefiro viver um ano no Rio do que dez aqui.
No começo Lindaura não participa desta justificada vigilância ao doente.
Como se seu papel de esposa fosse o de compreender e aprovar todos os gestos
do marido.
Mas um dia atende o telefone. É voz feminina procurando por Noel.
- Não está - informa.
- Quem está falando? É a irmãzinha dele?
O episódio é o bastante para despertá-la. Quantas mentiras não pregará ele
pelas ruas? Lindaura, transformada em irmã por força de uma arte de Noel, passa
a vigiá-lo.
Telefona para a Rádio Mineira, vai aos botequins onde supõe que ele esteja,
tenta abrir os olhos. Mas raramente o vê.
Seu paradeiro não é mesmo fácil de saber. Tanto pode estar na leiteria do
João da Abissínia, um amigo negro que vende a melhor coalhada e a mais fresca
broa de milho da cidade, como em botequins tão escondidos que o pessoal da
terra os chama de tocas.
Às vezes, surpreende os de casa com noites de comportamento exemplar.
Deixa crescer a barba, aprende a fazer crochê e tenta tirar músicas no piano da
tia.
O carnaval está próximo. Belo Horizonte, 950 metros acima do mar, 250
mil habitantes, é toda animação. Mas nem as noites de sábado e domingo,
dedicadas às batalhas de confete que o pessoal da terra prefere chamar de
"cariocadas", fazem Noel sentir menos falta do Rio. Em praticamente todos os
bairros os blocos se preparam para sair com suas fantasias de sujo, seus
estandartes de papelão, seus ritmistas improvisando instrumentos, batucando em
latas de banha, em caixas de sapato ou, quando muito, em tamborins baratos.
Não muito longe de onde Noel está hospedado, um desses blocos, os Foliões da
Floresta, promete sair este ano mais animado do que nunca.
É organizado pelo "turco" Nagib e congrega, na maioria, moradores da Rua
Itajubá. Noel é convidado para tomar parte do bloco, mas atende aos apelos de
tia Carmem: - Não, este ano vou só espiar.
No dia 27 de janeiro, visita a tia no Conservatório de Música, onde ela
leciona violino, e lá mesmo, em papel timbrado, escreve aquela que será a sua
carta mais original e conhecida. O destinatário é Edgar Graça Mello. O assunto,
a doença e o tratamento. A forma, poesia. Mas, a exemplo de muito do que Noel
disse em seus sambas, uma poesia feita de ironias e simulações, o paciente
chamando o médico de paciente e dizendo-lhe que está seguindo à risca as
instruções, que se deita às nove horas, que abandonou o cigarro, que já apresenta
melhoras. E não faltam os duplos sentidos, como no verso "trepei de várias
maneiras..."
"Meu dedicado médico e paciente amigo Edgar.
Um abraço.
Se tomo a liberdade de roubar mais uma vez seu precioso tempo, é porque tenho certeza de que você
se interessa por mim muito mais do que eu mereço.
Assim sendo, vou passar a resumir as notícias que se referem à marcha do meu tratamento.
E, para amenizar as agruras que tal leitura oferece, resolvi fazer uso das quadras que se seguem: (Ao
Meu Amigo Edgar)

Já apresento melhoras,
Pois levanto muito cedo
E... deitar às nove horas
Para mim, é um brinquedo!

A injeção me tortura
E muito medo me mete;
Mas... minha temperatura
Não passa de trinta e sete!

Nessas balanças mineiras


De variados estilos
Trepei de várias maneiras
E... pesei cinqüenta quilos!

Deu resultado comum


O meu exame de urina.
Meu sangue: - noventa e um
Por cento de hemoglobina.

Creio que fiz muito mal


Em desprezar o cigarro:
Pois não há material
Pra meu exame de escarro!

Até agora, só isto.


Para o bem dos meus pulmões,
Eu nem brincando desisto
De seguir as instruções.

Que meu amigo Edgar


Arranque deste papel
O abraço que vai mandar
O seu amigo Noel."
João Nogueira, quarenta e três anos depois (maio,1978 - João Nogueira - discos Odeon), ao colocar uma melodia nesta carta metrificada acrescentou ao final a seguinte quadra:
P.S.:
Muito obrigado ao Noel
É grande satisfação
Ter um parceiro no céu
Quem fala aqui é o João!
A não ser pelo círculo reduzido de amigos da Rádio Mineira e por um ou
outro boêmio como Rômulo Paes, jovem da terra que ousa seus sambinhas e
sonha em vê-los um dia gravados por Francisco Alves ou Carmem Miranda,
pouca gente em Belo Horizonte sabe que Noel está aqui. Neste fim de janeiro,
em que os jornais da cidade começam a dar destaque ao carnaval que se
aproxima, não é o compositor de Com Que Roupa? quem merece as atenções
dos foliões, mas outro visitante, o cronista carnavalesco Fra Diavolo, que os
Diários Associados, atendendo aos apelos da Prefeitura, mandaram buscar no
Rio para animar, com seus artigos e idéias, a grande festa de Momo.
Fra Diavolo chega a Belo Horizonte a 12 de janeiro. Ao contrário de Noel,
que desembarcou despercebido, aguardado apenas pelos tios, o cronista tem uma
apoteótica recepção na gare da Central. O pessoal da Folha de Minas, jornal que
já no outro dia estará publicando suas crônicas, cuidou para que uma pequena
multidão fosse esperá-lo na estação, saudando-o com vivas e faixas como se ele
fosse o próprio Rei Momo desembarcando, com todas as pompas, em Belo
Horizonte.
As crônicas de Fra Diavolo podem ser frívolas e um pouco elitistas,
destinadas a falar de bailes da alta classe média, de "cariocadas", às quais o povo
não tem acesso, de músicas que jamais serão cantadas nas ruas, escritas por
compositores diletantes, entre os quais gente da sociedade. Podem ser realmente
frívolas, como toda crônica mundana que se preza. Mas não resta dúvida quanto
ao fato de ser ele homem de idéias. O que os redatores da Folha de Minas logo
verão.
O jornal, dirigido por Affonso Arinos de Mello Franco, é muito bem-feito
para a época. Segue uma linha liberal, tenta ser tão popular quanto possível,
promovendo concursos do tipo "Quais os melhores jogadores de futebol do
Brasil, os brancos ou os pretos ?" Uns votam em Dominguos da Guia, Leônidas
da Silva, Fausto dos Santos, este o craque favorito de Noel(3).
3. Diz uma nota de Carioca de 11 de abril de 1936: "Noel Rosa gosta de passear na chuva, sem qualquer agasalho e chapéu. É torcedor de futebol, assistindo aos jogos noturnos e preferindo,
como jogador, Fausto." O comentário é clara brincadeira sobre o temperamento boêmio de Noel, sempre "na chuva", homem da noite, admirador do rebelde e também boêmio Fausto dos Santos, "a
maravilha negra", na epoca as voltas com uma complicada questão de transferência que o levaria do Vasco da Gama ao Flamengo, via Nacional de Montevidéu. Fausto morreria tuberculoso em 1939.

Outros em Romeu Pelliciari, Tim e o conterrâneo Nariz.


É Fra Diavolo quem sugere um concurso mais ou menos nos mesmos
moldes, só que voltado para o carnaval: "Loura ou morena?" Ele recorda que
Lamartine Babo fez da morena rainha do carnaval de 1933:
Linda morena, morena,
Morena que me faz penar
E a lua cheia que tanto brilha
não brilha tanto quanto o teu olhar
E que João de Barro coroou a lourinha em 1934:
Lourinha, lourinha,
Dos olhos claros de cristal,
Desta vez em vez da moreninha
Serás a rainha do meu carnaval

Logo, por que não promover um concurso entre todos aqueles que direta ou
indiretamente se ligam ao carnaval - foliões organizadores de bailes e batalhas,
integrantes de blocos, gente de rádio, cantores, compositores - destinado a saber
quem vai imperar em 1935, a loura ou a morena? O concurso é lançado a 15 de
janeiro, três dias depois da chegada de Fra Diavolo. Noel toma conhecimento
dele através do jornal, acompanha com interesse a enquete que Folha de Minas
faz, ouvindo jogadores de futebol, nomes da política, joalheiros, donas de lojas
de artigos para o carnaval, modistas, fotógrafos, maquiadores, poetas.
"O grande problema" - diz o jornal ao lançar o concurso - "está posto nos
seus termos: loura ou morena, qual a campeã do nosso carnaval ? Os poetas e
musicistas carnavalescos procuram resolver o caso, mas ainda não foi possível o
reajustamento..."
Propõe o concurso que não só cada clube e sociedade carnavalesca eleja,
entre suas sócias, uma loura ou morena para concorrer com as outras ao título de
Rainha do Carnaval Mineiro de 1935, segundo votação popular, mas também
que os compositores da terra mandem seus sambas ou marchas que sirvam de
réplica a Linda Lourinha, do ano passado.
Noel se interessa por essa parte do concurso e, na tarde de sexta-feira, 15 de
fevereiro, levado por Chico Lessa e Lourival Serra, entra na redação da Folha de
Minas para dizer a Fra Diavolo que também participará da disputa musical em
torno de louras e morenas. Aproveita para dar uma entrevista que o jornal
publica em alto de página no dia seguinte sob o título "Seja Breve". Entrevista?
Não exatamente.
- Você acha que é preciso? - pergunta Noel ao repórter. - Para mim esse
negócio de entrevista é muito solene. Vamos conversar.
Uma breve conversa, como sugere o título da matéria. A uma pergunta
sobre o que veio fazer em Belo Horizonte, é laconicamente sincero:
- Engordar.
Faz comentários vários, elogia Aracy de Almeida ("É nova, mas das
melhores"), fala de samba. Quando lhe indagam há quanto tempo está na cidade,
diz:
- Um mês. A já um mês?
- É como se não estivesse. Não saio, não ando, nem nada. Como e durmo.
Barba, assim... Como Deus dá, olha só...
- Papai Noel...
- Pra você ver.
Refere-se duas vezes, durante a conversa da qual participam Francisco
Lessa, Lourival Serra, Gennaro Maltez, Miranda e Castro e Fra Diavolo, a um
samba ainda inédito, Pela Décima Vez, que no momento ele considera o seu
melhor(4).
4. Pouco antes, ao Jornal de Rádio de 1o de janeiro de 1935, Noel tinha sido claro ao apontar Pela Décima Vez como seu samba favorito: "É a melodia que fala mais à minha alma, que me
sugestiona mais poderosamente a imaginação, que acorda em mim o desejo do sonho. Fiz Pela Décima Vez com verdadeiro carinho artístico, procurando fixar, malgrado a aparente leveza do tema, um
verdadeiro drama do coração."

A melodia é de fato bonita e a letra fala de um de seus traços mais


característicos: a contradição.
Jurei não mais amar
Pela décima vez.
Jurei não perdoar
O que ela me fez.
O costume é a força
Que fala mais forte
Do que a natureza,
E nos faz dar prova de fraqueza.

Joguei meu cigarro no chão e pisei.


Sem mais nenhum
Aquele mesmo apanhei e fumei.
Através da fumaça
Neguei minha raça,
Chorando, a repetir
Ela é o veneno
Que eu escolhi
Para morrer sem sentir.

Senti que o meu coração quis parar.


Quando voltei
E escutei a vizinhança falar
Que ela só de pirraça
Seguiu com um praça,
Ficando lá no xadrez.
Pela décima vez
Ela está inocente,
Nem sabe o que fez.

E por falar em contradição, Noel começa dizendo ao pessoal da Folha de


Minas que não gosta de competições musicais:
- Conheço esses concursos. Os júris são formados por cronistas esportivos
e, daí, aquilo acabar sempre em boxe... Demais, eu não sou o tipo carnavalesco.
(5)
5. Uma piada que Noel Rosa repetirá pelo menos mais uma vez. Em entrevista a A Pátria de 4 de janeiro de 1935, a uma pergunta do repórter sobre o que pensa dos concursos de música de
carnaval, responderá: "Até hoje as músicas não foram julgadas por técnicos e sim por cronistas esportivos, que comparecem ao júri por esporte, razão pela qual o concurso termina em lutas de boxe e
capoeiragem." E quando o repórter lhe indagar se seria este o motivo de não participar de tais concursos, dirá:
"Sim, eu sou muito franzino e me admiro como é que meu amigo Lamartine Babo tem saído ileso."

Mais adiante, faz um pequeno discurso para antecipar que concorrerá com
um samba:
- Para mim, prefiro o samba, que é malandragem. Marcha, não. Isso é mais
sério. Impõe respeito.
Pois bem, o Noel que não gosta de concursos e prefere o samba, no dia
seguinte se inscreverá neste, da Folha de Minas, e com uma marcha.
Embora em todos os embates - enquetes entre os leitores, eleição da Rainha
do Carnaval pelo voto popular, escolha da musica por um júri onde houve de
tudo, até músicos - a morena tenha sido vencedora do concurso da Folha de
Minas, a marcha de Noel -onomatopaicamente intitulada Uatch! - não consegue
mais do que um quinto lugar.
Essa morena
Cheia de beleza e graça
É o símbolo da raça
Cor de leite com café

E essa loura
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
(Uatch!)
De tão fria que ela é

Essa morena
Tem que ter um bom destino
Fez do samba o seu hino
Pra cantar cheia de fé

Pela morena
Que há de ser a padroeira
Da folia brasileira
Tenho que bater o pé

Loura ou morena?

A marcha com que Noel Rosa obteve o quinto lugar no concurso da Folha
de Minas acabaria esquecida. Ou quase. Uns poucos mineiros que a ouviram
naquele verão de 1935 guardaram apenas alguns fragmentos da melodia que um
deles, Rômulo Paes, lembraria para os autores quase meio século depois. Quanto
à letra - publicada pelo jornal em sua edição de 17 de fevereiro - Noel não a
abandonou de todo. Retocou-lhe a primeira parte e escreveu uma outra segunda
inteiramente nova, dando ao resultado título também novo: Morena e Loura.
Essa morena
Que meu coração devassa
Simboliza a nossa raça
Cor de leite com café...

Essa lourinha
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
De tão fria que ela é!

Esta morena
Que eu amo imensamente
Ficará indiferente
Se souber que eu ando assim.

Na minha sorte
Há um golpe que eu receio:
A lourinha que eu odeio
É quem gosta mais de mim!

Partindo da mesma idéia, Noel ainda escreveria, desta feita com a


colaboração de Hervê Cordovil, um samba a que dariam o título de Leite Com
Café:
A morena lá do morro
Cheia de beleza e graça
Simboliza a nossa grande raça
É cor de leite com café.

E a loura da cidade
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela sempre me constipo
De tão gelada que ela é.

A lourinha sobe o morro e desce


Implorando sempre o meu amor
E, pensando em mim, se esquece
Que a mulher que se oferece
Perde todo o seu valor.

Foi no samba que encontrei socorro


Para a minha sorte tão mesquinha
Eu prefiro ser cachorro
Da morena lá do morro
Do que dono da lourinha.
Em 1969, quase trinta e cinco anos depois do concurso da Folha de Minas,
a letra de Uatch! seria remusicada pelo compositor Hamilton Sbarra. Com novo
título, Atchim!, e um subtítulo, Cor de Leite Com Café, foi gravada por Aldacir
Louro para o carnaval de 1970, sendo pouco notada. Curiosamente, a nova
melodia lembra muito os fragmentos guardados pelos mineiros de 1935, um dos
quais, entrevistado por Cidinha Campos num programa de televisão, garantiu
que Sbarra nada mais fizera do que aproveitar tudo, música e letra, da versão
original. A falta de memória - das pessoas, dos registros sonoros, das partituras
impressas - fez com que nessa história toda se tenham dissipado, por entre as
nuvens do tempo, tanto as duas marchas de Noel como seu samba com Hervê,
sobrevivendo apenas sua discutida e anacrônica parceria carnavalesca com
Hamilton Sbarra. Além, é claro, da certeza de que era mesmo pelas morenas que
seu coração batia mais forte.
O vencedor do concurso é um samba intitulado simplesmente Morena, letra
de um certo Minho, música de uma jovem estreante, por ironia loura e ainda por
cima chamada Branca, Branca Tolentino.
Os quatro dias de carnaval - de 2 a 5 de março - agitam a pacata Belo
Horizonte. Pouco se ouve de Noel nos bailes e nas ruas. Canta-se Feitiço da
Vila. E também sambas como Implorar (novamente Kid Pepe e Germano
Augusto tendo sua condição de co-autores contestada, desta vez pelos que juram
ter o crioulo Seda feito tudo sozinho) e Foi Ela. Ou marchas como Grau Dez,
Eva Querida e Cidade Maravilhosa(6).
6. Com base em informação por escrito de Hélio Rosa, Jacy Pacheco sugere em Noel Rosa e Sua Época (página 97) e em O Cantor da Vila (página 31) que Noel teve alguma coisa a ver com
a autoria de Cidade Maravilhosa (na verdade, a informação de Hélio era de que o irmão vendera a marcha a André Filho por 800 mil réis). Mas, a não ser por este "documento", hoje pertencente aos
arquivos dos autores, não há nenhum outro indício de que isso realmente tenha acontecido.

Passado o carnaval, a cidade volta a mergulhar na tranqüilidade, na morna


rotina que Noel estranha desde o primeiro dia. Uma rotina que só é quebrada
pelo fato de que todos já sabem que ele está ali. A entrevista publicada pela
Folha de Minas tratou de espalhar por toda parte que o grande Noel Rosa
encontra-se na terra. Na quarta-feira de cinzas é a vez de O Debate procurar o
visitante para uma entrevista, publicada no sábado, 9 de março, e contendo
importantes declarações (ver boxe A Alma do Samba).
O repórter conta que foi encontrar Noel Rosa tomando chope no Palladio,
vestindo terno cinza, camisa branca de jersey, gola aberta. E observa que, logo
ao primeiro contato, Noel revela-se um sujeito tímido, retraído, modesto. A
entrevista começa com comentários sobre o carnaval, que Noel, mentindo, diz
ter achado bom:
-... não pode deixar de ser bom o carnaval numa cidade tão linda.
O repórter pergunta-lhe, ingenuamente, como se faz um samba. E a resposta
de Noel bem pode ser resumida numa palavra: bossa.
Não saiu mesmo nos Foliões da Floresta. Não foi a bailes, não participou de
"cariocadas". Limitou-se a reunir-se com a turma do rádio para tomar
intermináveis copos de Cascatinha, entre um samba e outro, enquanto os blocos
desfilavam pela Affonso Penna. Tia Carmem guarda a esperança de que, passado
o carnaval, o sobrinho volte a obedecer à rotina tranqüila dos primeiros dias.
Desta vez a ingênua é ela. Na verdade, parecem feitas de ingenuidade todas
as pessoas que vivem ou freqüentam a casa da Rua São Manuel, incluindo o
primo Gilberto, médico dedicado mas nem de longe familiarizado com as
manhas e rebeldias de Noel. Passado o carnaval. Gilberto e Mário Brown voltam
a falar sério com o doente. Tão sério que Noel promete, de agora em diante,
recolher-se às dez da noite, renunciar às madrugadas, deixar a música para os
encontros vespertinos com a turma da rádio.
É quase forçado a prometer tanto, pois Mário Brown diz que esta é a
condição para que continue em sua casa.
Dois, três dias, uma semana, Noel cumpre religiosamente o prometido.
Nelson Orsini estranha que ele não apareça pelo centro, chega a dar um pulo
com Roberto Ceschiatti até o bairro da Floresta. Noel está na varanda. É ali,
longe de todas as tentações da boêmia, que eles terão de cantar seus sambas. O
máximo de arte que Noel se permite é ir ao telefone e repetir, diante de um
Roberto Ceschiatti assustado, a brincadeira: - Desembargador? Aqui é o
embaixador Bill!
Às vezes, tão bem-comportado está que a tia o deixa ir até o centro na parte
da tarde. Numa dessas saídas, reencontra Hervê Cordovil, de breve visita à
família.
O pai, Cordovil Pinto Coelho, é político. Os irmãos, futuros doutores:
- Você está fazendo falta no Casé - diz Hervê.
Os olhos de Noel brilham. Zeno Santa Rosa, Nelson Orsini e Roberto
Ceschiatti são testemunhas desse brilho estranho que, no fundo, significa enorme
vontade de estar longe dali, em Vila Isabel, na Lapa, no Rio distante que as
novidades trazidas por Hervê tornam um pouco mais perto. Estão todos à mesa
do bar do Grande Hotel.
Hervê Cordovil caminha para fazer-se um dos mais prolíficos compositores
populares brasileiros. Sambas, marchas, coisas do Nordeste, canções e até os
ritmos americanos da moda farão parte de sua obra(7).
7. Hervê Cordovil Pinto Coelho, nascido em Viçosa, Minas Gerais, em 1914, morreu em São Paulo em 1979-Entre tantas outras produções - os sambas Força do Malandro, Prelúdio,
Jangada, Mágoa, Uma Loura, as marchas Carolina e Inconstitucionalissimamente, os baiões Cabeça Inchada, Pé de Manacá e toda uma série gravada por Carmélia Alves - comporia também valsas,
choros, toadas, boleros, fox-trots e até um twist, Rua Augusta, sucesso nos anos 60 na voz de seu filho Ronaldo, mais conhecido como Ronnie Cord.

Um homem extremamente generoso, e desde jovem muito espiritualizado.


Cada vez mais para o fim da vida se dedicará ao kardecismo e a movimentos de
caridade. Isso o absorverá inteiramente. Os centros espíritas poderão ganhar
valioso colaborador, mas a música popular perderá enorme talento.
Noel gosta muito de Hervê. Quando este se levanta, deixando-o e aos outros
sentados na mesa do bar, Zeno, Nelson e Ceschiatti vêem o pensamento de Noel
fugir mais uma vez, aquele mesmo jeito assustadoramente vago de estar ali e ao
mesmo tempo longe. Noel deixa a cabeça cair meio de lado, mantém-se calado
por algum tempo, triste, contagiando os amigos. Em seguida, desperta:
- Vocês sabem que o Hervê é um músico extraordinário ?
Puxa o último cigarro do maço de Liberty Ovais, abre o papelão em dois e
escreve nele a letra de Triste Cuíca, samba dos dois que Hervê diz estar pronto
para Aracy de Almeida gravar na Victor.
- Fizemos este samba no ano passado - conta Noel. Escrevia letra primeiro.
Um soneto.
Chama a atenção para a bela e difícil melodia do parceiro e canta:
Parecia um boi mugindo
Aquela triste cuíca
Tocada pelo Laurindo,
O gostoso da Zizica.

Ele não deu à Zizica


A menor satisfação.
E foi guardar a cuíca
Na casa da Conceição.

Diferente o samba fica,


Sem ter a triste cuíca
Que gemia feito um boi...

A Zizica está sorrindo. "


Esconderam o Laurindo.
Mas não se sabe onde foi.

Uma história trágica de um cuiqueiro carioca disputado por Zizica e


Conceição. O verbo esconder é empregado no sentido de matar, coisa rara em
música popular. Como são raras as letras em forma de soneto.
Noel e Hervê encontram-se mais vezes em Belo Horizonte. Para conversar,
intensificar a amizade, compor juntos. Nem sempre no tom de Triste Cuíca. Às
vezes acontece de o humor substituir a tragédia.
Como em O Que é Que Você Fazia?
Deitado no trilho de um trem
Estando amarrado e amordaçado,
Sabendo que o maquinista não é seu parente,
Nem olha pra frente,
O que é que você fazia?
Eu nesse caso nem me mexia.

Sentado, olhando um cachorro


Que da tua mão tirou o seu pão,
Sabendo que o seu bilhete, que está premiado,
Também foi roubado,
O que é que você fazia?
Eu nesse caso nem me mexia.

Se um dia a sua sogra bebesse


Um gole pequeno de um grande veneno,
Se por um capricho da sorte
(ou de algum doutorzinho)
Ela ficasse mais forte
O que é que fazia o senhor?
Eu nesse caso matava o doutor
O que é que você fazia?
Eu nesse caso... desaparecia.
A alma do samba

"- Ninguém sabe como o samba nasceu. Ele foi um dia descoberto na rua e aperfeiçoado. Hoje, tem escola.
Criadores de estilo. J.B. Silva, o célebre Sinhô, foi um deles. Sinhô foi ao morro, captou vários estribilhos
de samba e os estilizou com grande sucesso. Jura, por exemplo, e também Gosto Que Me Enrosco. A
princípio o samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava bem
fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, 'vagou pelas ruas com um toco de cigarro
apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luva
branca nos salões de Copacabana. Mas o companheiro do samba será sempre o violão, que já obteve
também a sua vitória definitiva. O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito,
sem mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba. Mas o morro do Castelo foi
abaixo e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e 'escrachou' as cabrochas. Mas o malandro não
desapareceu. Transformou-se, simplesmente, com a sua cabrocha, pra tapear a polícia. Ele já está de gravata
e chapéu de palha e ela usa meias de seda. Quando se fala em ser doutor em samba, não se diz uma frase vã.
Não faltam médicos e advogados para elevar o samba. Aí estão os doutores Joubert de Carvalho, Ary
Barroso, Olegário Mariano e muitos outros. Futuramente, teremos coisa mais sólida, mais estilizada. Por
enquanto, o samba está evoluindo e o faz rapidamente. O fox-trot e o tango já se transformaram e hoje
representam duas raças distintas. Têm orquestras típicas. O samba ainda não a possui.
Quando houver aqui uma orquestra típica de samba, o brasileiro poderá dizer que o seu país tem a
sua música original.
- Mas, Noel, já existem alguns instrumentos próprios para o samba, não?
- Alguns, mas não todos. E apareceram agora, não se achando ainda popularizados. A cuíca que
ronca. O tamborim repicando em torno do 'centro' que faz a barrica. O omelê que floreia dentro de mil
variedades de ritmo. O afochê. São todos instrumentos destinados a embelezar o ritmo. Não há samba sem
ritmo (uns dizem 'cadência', outros 'batida'). O certo, porém, é que o samba foi inspirado no pisar da morena
carioca."

entrevista a O Debate,
Belo Horizonte, 9 de março de 1935.
Dois, três dias, uma semana, não mais. Não demora muito as noites voltam
a atrair Noel, a acenar para ele com sua lua e suas estrelas. Na praça da
Liberdade, passa a encontrar-se com Nelson Orsini, sempre por volta das onze.
Seus programas variam de incursões às casas da Rua Guaicurus a serenatas
românticas por onde quer que haja quem os ouça. Sabendo que os tios não o
perdoarão por essas madrugadas, tem de contar com a ajuda de Lindaura, que
parece ter esquecido a história da "irmãzinha".
Os dois arquitetam um insólito expediente de fuga para ele.
- Boa-noite, tia Carmem. Boa-noite, tio Mário - despede-se ele, ar inocente,
ao se recolher com a mulher às dez da noite.
Depois, sem trocar de roupa, apaga a luz e recomenda a Lindaura o mais
absoluto silêncio. É preciso convencer os tios de que já estão dormindo. Encosta
o ouvido na porta e se certifica de que Mário e Carmem Brown ainda estão na
sala. Então, vira-se para a mulher: - Preciso dar uma saída.
E tira do bolso uma cenoura crua. A janela do quarto dá para o terreno
baldio. Embora seja casa de um andar só, mais de dois metros separam a janela
do Chão do terreno.
Mas Noel já descobriu que ali pasta, em sossego, o burro de um vizinho.
Amigo e conhecedor de burros, ele acena com a cenoura para o animal. Este se
aproxima da janela, Noel estica-lhe a cenoura, o burro chega mais perto, Noel
pula em cima dele e finalmente sai pela noite. Lindaura, a segunda, terceira vez
em que isso acontece, sabe que o marido não diz a verdade ao prometer que não
demora. Só voltará com o sol.
Com Nelson Orsini, longas prosas, muitas canções. É justamente na Praça
da Liberdade que Noel conclui, na frente de Nelson, a melodia para uma letra em
que deixa toda a sua filosofia de vida, o homem do povo, as criaturas sem eira
nem beira (e muitas vezes sem nome), mas valendo mais que os figurões, os
graúdos importantes.
E a felicidade estando muito mais nas coisas simples do que na luta que,
por exemplo, tia Carmem garante ser necessário travar para se vencer na vida.
Noel como João Ninguém, personagem-título do seu novo samba, não acredita
nesta luta. Nem mesmo em ideais abstratos. Não acredita em nada além de um
canto para dormir, de um prato de comida, um cigarro. Nem sequer no trabalho é
possível acreditar. Lembra-se do pai, matando-se de trabalhar a vida inteira, para
parar entre as paredes de um quarto de hospício. Acredita, sim, em não fazer
inimigos. E em ter muitos amores. Por isso canta: (João Ninguém)
João Ninguém
Que não é velho nem moço,
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar.
Num vão de escada
Fez a sua moradia,
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar.

João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João nunca se expôs ao perigo,
Nunca teve um inimigo,
Nunca teve opinião.

João Ninguém
Não tem ideal na vida.
Além de casa e comida
Tem seus amores também.
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém.

Noel e Nelson ficam conversando até tarde. Todo fim de noite tiram a sorte
para ver quem vai levar o outro em casa. Muitas vezes é o Nelson, estudante de
odontologia, que tem de atravessar o viaduto de Santa Teresa para acompanhar o
amigo à Floresta. Numa dessas madrugadas, um guarda os surpreende no meio
de uma canção.
- Vão pra casa os dois! Isso não é lugar de desocupado.
Nelson e Noel protestam. O guarda pede-lhes os documentos. Ao ver que
está diante de Noel Rosa, muda o tom de voz. Tira do bolso do dólmã uma flauta
e diz: - Então, dá aí um si bemol.
E vão os três cantando e tocando até a São Manuel Às vezes há programas
menos estimulantes, Noel pouco à vontade, indo mais por força da insistência
dos amigos: - Vamos à festa na casa do tabelião Bolívar?
Família tradicional, gente meio grã-fina, Noel tenta escapar ao convite de
Chico Lessa. Mas acaba indo com toda a turma. Lá, como não pode deixar de
ser, os amigos pedem que cante alguma coisa.
- Outro dia - retruca ele, esquivo.
Os amigos insistem, Noel chama Nelson, Roberto, Zeno, todos a um canto.
Numa inesperada crise de modéstia, diz, cochichando: - Vocês me trouxeram
aqui para passar vergonha? Acha que eu vou cantar minhas musiquinhas para
esses grã-finos?
Os amigos insistem. Vendo que nada mais pode fazer, canta. E é aplaudido
de pé.
De tudo que compõe aqui, nada terá seu valor tão pouco reconhecido como
Cansei de Pedir. Neste samba o poeta fala de alguém - seria Clara? - que o fez
sofrer por amá-lo tanto sem que ele pudesse retribuir. A originalidade está
justamente na forma e na causa deste sofrimento. Ao contrário de todos os outros
letristas da música popular, sua queixa não está em ter sido traído, abandonado
ou não-correspondido. Mas no oposto. Sofre com o próprio desamor, peso afinal
de uma consciência que gostaria de ter leve. Um samba cheio de bossa, com uma
letra singular.
Já cansei de pedir
Pra você me deixar,
Dizendo que não posso mais
Continuar amando sem querer amar.
Meu Deus, estou pecando,
Amando sem querer
Me sacrificando
Sem você merecer.

Amar sem ter amor é um suplício.


Você não compreende a minha dor.
Nem pode avaliar o sacrifício
Que eu fiz
Para ver você feliz.

Com a ingratidão eu não contava.


Você não compreende a minha dor.
Você se compreendesse me deixava
Sem chorar
Para não me ver penar.

Em outras ocasiões, o convite vem carregado de prazer. Como na noite em


que Paulo Lessa diz que gostaria de fazer uma serenata para Yolanda Santos, sua
mais recente paixão. Noel se entusiasma. Requisita a voz de Zeno, o violão de
Nelson, o apoio de toda a turma, e se dirigem a pé para a casa da moça. Yolanda
mora bem em frente à igreja da Boa Viagem. O grupo resolve ficar do outro lado
da calçada, num gramado inclinado que desce do pátio central da igreja. Noel
abraça o violão e procura buscar inspiração no nome da namorada de Paulo: -
Yolanda! Yolanda!
A turma constata, então, que um eco vem de dentro da igreja, repetindo o
nome que Noel cantarola: - Yolanda! Yolanda!
Ali mesmo ele faz um samba que dá para Zeno cantar como Francisco
Alves o faria. Um samba que levará a jovem amada de Paulo Lessa a sentir-se a
mais orgulhosa de todas as musas mineiras: (Yolanda)
Yolanda!
Eu chamo, você não vem,
E o eco só responde:
"Yolanda... Yolanda..."
Se eu canto pro meu bem,
Ele canta também.

Não se pode improvisar,


Ele vem incomodar.
Yolanda! Ele responde:
"Yolanda... Yolanda..."
Se me viro pro norte,
Lá no sul ele está.

Se me viro de frente,
Lá nas costas vai ficar.
Já estou até doente,
Não consigo decifrar.

Yolanda! Ele responde:


"Yolanda... Yolanda..."

Mas, para tristeza desses boêmios mineiros, a estada de Noel em Belo


Horizonte não vai durar muito mais. Os tios não se conformam com suas
noitadas, não querem ser responsáveis por uma recaída. É verdade que ele
ganhou preciosos quilos aqui. Mas como estarão os pulmões? Carmem escreve à
irmã dizendo que não pode mais cuidar dele. O próprio Noel não pode cuidar de
si mesmo. Além disso, há as saudades. O Rio, Vila Isabel, Ceci, os amigos, o pai
internado. É hora de voltar.
Nos primeiros dias de abril, começa a fazer as malas. Despede-se dos
amigos, faz com eles a última farra, tomam juntos as últimas cervejas. Dá adeus
a Belo Horizonte, não sem antes pegar de novo no telefone.
- Alô, desembargador? Aqui fala o embaixador Bill.
PARTE V ABRIL DE 1935 MAIO DE
1937
Capítulo 36
ILUSTRE VISITA, TRÁGICO
REGRESSO
E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Só Pode Ser Você

Noel Rosa não hesita em recorrer a Cícero para dizer o quanto é bom estar
de volta. O Rio é seu mundo. E Vila Isabel, sua pátria. Faz questão de deixar isso
bem claro numa entrevista à Voz do Rádio, a primeira desde que chegou de Belo
Horizonte:
"Mineiras gentis, de tez amorenada, com esplêndidas vozes, e verdadeiros
tipos de beleza física também, interpretaram, com grande desvanecimento para
mim, as composições em que mais externei o meu sentimentalismo, envolto na
dolência excitante do samba-canção."
Mais adiante:
"Enternecime vivamente quando pressenti que o meu samba Feitiço da Vila
batera fundo no espírito daquela gente boa. Difundiram-no, popularizaram-no, e
numa mostra de curiosidade bem feminina as moças perqueriram as razões que
lhe inspiraram o título. Traduzi-o por Feitiço de Minha Pátria, pois, como já
disse Cícero, 'a pátria é onde se está bem', e nunca me senti melhor do que no
recanto calmo e bonançoso de Vila Isabel."(1)
1. A Voz do Radio, 11 de abril de 1935. Noel cita Cícero corretamente: Pátria est, ubicumque est bene, diz o orador latino em suas Tusculanae Disputationes, citando por sua vez frase
atribuída pelo poeta Marcus Pacuvius a Teucro, primeiro rei de Tróia.

É sincero. Nunca se sentiu - nem se sentirá jamais - tão bem quanto na Vila
Isabel destes dias de abril, quando começam a cair as folhas dos oitis do
Boulevard e a se cobrir de um sol meio esmaecido as montanhas que se divisam
das janelas do chalé, lá longe, na Tijuca. O verão passou. E embora possa
parecer ainda mais triste o sol da Vila durante os meses de outono, esta é a época
em que o bairro se torna mais agradável e acolhedor. Ou mais calmo e
bonançoso.
Noel Rosa está bem. Mais gordo e corado, as pessoas notam o quanto
lucrou em Belo Horizonte. É na mesma A Voz do Rádio que se lê:
"A novidade do dia é o retorno de Noel Rosa ao broadcasting. Fervilham os
comentários. No studio, Isis Silva relembra o tempo da célebre dupla Aracy-
Noel.
- A última novidade - intervém Solange Mara - vocês ainda não sabem. O
Noel veio de Minas tão forte que agora já não fará mais dupla.
- Como assim?
- Agora vai haver mesmo um trio. Odette Amaral, a um canto, resmungou:
- Vou me candidatar à tríade. Ele é tão interessante..."(2)
2. A Voz do Rádio, 11 de abril de 1935.

A viagem de volta foi feita no mesmo trem de madeira, duro,


desconfortável e preguiçoso. Desta vez, porém, valeu a pena, o destino era outro.
Mal desfez as malas, Martha veio contar-lhe as novas, falar de seus sambas que
as estações de rádio nunca deixam de tocar, os amigos que vieram perguntar por
ele, os vizinhos que se interessavam por sua saúde, as visitas, muitas, quase
diárias. Martha enumera-as todas.
- Também esteve aqui uma moça. Bonita, bem-vestida, elegante. Perguntou
por você, mas não quis deixar o nome. Parecia preocupada.
A mãe faz uma descrição perfeita de Ceci. Dias atrás apareceu alguém no
Apollo com a informação de que Noel estava muito mal, quase à morte, em Belo
Horizonte. Ceci levou um susto. Na mesma hora, dirigiu-se ao chalé, quis saber
como estava Noel. Muito bem, respondeu dona Martha. Doze quilos mais gordo,
corado, ótimo. Mais alguns dias estaria de volta. Ao Rio, ao lar, ao rádio.
Uma descrição perfeita. O rosto bonito, os modos recatados, o jeito de falar.
Então ela foi procurá-lo, saber como estava, interessada? Preocupada, disse a
mãe.
Três longos meses e Ceci ainda não o esqueceu. Quando se viram pela
última vez? O desmaio estúpido no Cine Grajaú, a doença, o casamento, a
viagem, as coisas aconteceram tão depressa que provocaram uma separação
súbita, não planejada. Realista - ou melhor, pessimista -, Noel possivelmente não
contava que Ceci o esperasse, que pensasse nele, que se preocupasse.
Surpreende-se com o que a mãe relata. Mas, em vez de ficar ainda mais feliz, faz
da surpresa motivo para novo samba, a descrença e a ironia saltando de verso
para verso: (Ilustre Visita)
Compreendi seu gesto
Você entrou naquele meu chalé modesto
Porque pretendia
Somente saber
Qual era o dia
Em que eu deixaria de viver.

Mas eu estava fora


Você mandou lembranças e foi logo embora
Sem dizer qual era
O primeiro nome de tal visita
Mais cruel
Mais bonita que sincera.

E pelas informações que recebi


Já vi
Que essa ilustre visita era você
Porque
Não existe nessa vida
Pessoa mais fingida
Do que você.

A melodia, de grande beleza, é iniciada por Noel e completada por Vadico.


Os dois se encontram no estúdio da PRC-8, Rádio Guanabara, na Rua 1 de
Março, onde Noel acerta com Luís Vassalo sua adesão ao cast do Programa
Suburbano. E é justamente na sua apresentação de estréia que ele lança o novo
samba de título também irônico:
Ilustre Visita. Ceci, que há vários dias vem ouvindo a emissora fazer grande
alarde em torno da estréia de Noel ("Não percam a rentrée de Noel Rosa", "Noel
Rosa está de volta", "Amanhã é dia de Noel Rosa"...), liga o rádio na hora
marcada. Desta vez é ela quem se surpreende ao ouvir sua ida ao chalé contada
num tom claramente amargo. Que história é esta de "... porque pretendia
somente saber qual era o dia em que eu deixaria de viver"? Então é isso que ele
pensa dela? Surpreende-se - ou, mais que isso, espanta-se - com os últimos
versos de um samba tão bonito quanto cruel: ...

E pelas informações que recebi


Ceci
A ilustre visita era você
Porque...
Nas apresentações posteriores deste samba, reintitulado Só Pode Ser Você,
Noel não será tão explícito. Nem tampouco na gravação original, de Aracy de
Almeida, aparecerá o nome de Ceci. Foi apenas um impulso que o levou a cantá-
lo assim ao microfone da Rádio Guanabara. Quando se reencontrarem, será
menos amargo. E substituirá a ironia por um sorriso afetuoso e sincero.
- Ouviu o samba que fiz pra você?
Naquela primeira entrevista a A Voz do Rádio deixava transparecer não só
a felicidade por estar de volta, mas também um entusiasmo que não
experimentava há tempos.
Falou de seus projetos, dos sambas que fez no ano passado e que apenas
agora pode gravar, de outros escritos em Belo Horizonte, de outros mais recém-
concluídos. Entre os primeiros estão Triste Cuíca e Século do Progresso. Da
safra mineira, pretende dar Amor de Parceria e DisseMe-Disse para Joel &
Gaúcho gravarem e João-Ninguém para Francisco Alves. Mas mudará de idéia.
Amor de Parceria irá para o repertório de Aracy de Almeida, DisseMe-Disse terá
de esperar 45 anos até chegar ao disco e João-Ninguém será lançado pelo
próprio Noel com substanciais alterações em dois versos. Como se recorda, a
letra original dizia: João-Ninguém Não trabalha e é dos tais Que joga sem ter
vintém E fuma Liberty Ovais...
Por conta própria ou soprado por alguém, Noel convenceu-se de que seu
samba não deixava de ser graciosa propaganda do Liberty Ovais. E procurou os
diretores da Fábrica de Cigarros Souza Cruz. Que tal passarem para o seu bolso
uma modesta fatia da verba destinada aos reclames de seus produtos? Afinal,
uma mão lava a outra, ele fazendo do seu João-Ninguém um poético divulgador
do Liberty Ovais, os fabricantes recompensando-o por isso. Mas os homens da
Souza Cruz não viram as coisas pelo mesmo prisma. E não lhe deram um níquel.
Resultado: Noel fez seu personagem abandonar os cigarros. E gravou o samba
assim:

João Ninguém
Não trabalha um só minuto
Mas joga sem ter vintém
E vive a fumar charuto...

Quanto aos sambas recém-concluídos, um deles é Só Pode Ser Você. O


outro, Silêncio de Um Minuto, beira a perfeição, um amor acabado parecendo-
lhe tão irremediável quanto a morte:
Não te vejo nem te escuto,
O meu samba está de luto.
Eu peço o silêncio de um minuto,

Homenagem à história.
De um amor cheio de glória
Que me pesa na memória.
Nosso amor cheio de glória,
De prazer e de ilusão,
Foi vencido e a vitória

Cabe à tua ingratidão.


Tu cavaste a minha dor

Com a pá do fingimento
E cobriste o nosso amor
Com a cal do esquecimento.

Teu silêncio absoluto


Me obrigou a confessar
Que o meu samba está de luto,

Meu violão vai soluçar.


Luto preto é vaidade,
Neste funeral de amor,
O meu luto é a saudade
E saudade não tem cor.

Um grande samba. Os quatro últimos versos, Noel puro, têm a força de um


epitáfio. Mas um samba de gênese nebulosa. Por que falar em amor acabado se
na verdade tudo agora é começo ou recomeço, ele e Lindaura começando um
casamento, ele e Ceci recomeçando um romance que a doença só fez
interromper por uns meses? E por que essas imagens sobre a morte numa época
em que tudo parece estar voltado para a vida?
O começo de casamento com Lindaura é difícil. O recomeço de romance
com Ceci, mais ainda. Dificuldades que o próprio Noel cria, ausentando-se
demais do chalé, tornando-se demasiado presente na vida de Ceci. Não será feito
apenas de sorrisos afetuosos o reencontro dos dois. Sério, possivelmente
constrangido, Noel lembra a história do casamento às carreiras, ele já sem forças
para resistir a tantas pressões, principalmente da polícia. Nada o apavora mais do
que a idéia de parar um dia na cadeia, atirado no fundo de uma cela escura e fria.
Seria o mesmo que morrer. Esse pavor explica o casamento. O pavor e a doença
que lhe minaram todas as defesas. Ceci, contudo, não lhe pede explicações.
Aceita-o assim mesmo, solteiro ou casado, sem exigências. Noel diz que
não ama Lindaura. Viverá com ela só para constar. É de Ceci que ele gosta.
- Por que não moramos juntos? - propõe.
Aluga um pequeno quarto mobiliado no primeiro andar de um velho prédio
na primeira esquina, à esquerda, de Inválidos com Mem de Sá. Quer que Ceci se
mude imediatamente.
Para que esperar? Ela concorda. Começo e recomeço difíceis. O pequeno
quarto mobiliado vai afastar Noel demais do chalé. E torná-lo mais presente do
que devia na vida da meiga e fugidia Ceci.

Sexta-feira, 3 de maio. Tão logo os raios de sol chegam através da janela


gradeada, Neca se levanta. Ainda não são seis horas, toda a Casa de Saúde da
Gávea parece dormir. Neca toma nas mãos grandes o lençol branco que cobre a
cama. Dobra-o até formar uma tira comprida. Em seguida, em movimentos
lentos mas vigorosos, torce uma das extremidades para a frente e a outra para
trás. Constrói assim uma corda que começa a prender num dos pés da cama. O
que se passará em sua mente neste instante?
Em quem pensará?
Pouco antes das oito, um dos enfermeiros o encontra. O corpo enorme,
pesado, está estendido sob o leito. Imóvel, sinistramente imóvel. Em volta do
pescoço, o lençol transformado em corda. Um quadro tão terrível quanto difícil
de explicar. Preso e ajustado ao pescoço pelas próprias mãos de Neca, o lençol
funcionou como um garrote que lhe tirou a vida. De acordo com os médicos, em
poucos segundos.
As primeiras reações de Noel são de aparente serenidade. Pouca gente,
além dos vizinhos, sabe do que aconteceu. Suicídio é palavra que as pessoas
continuam evitando, os da família por pudor, o gesto encarado como uma
espécie de desonra, e os estranhos por certo temor, como se houvesse na palavra
um quê de maldição. Por isso, não haverá anúncios fúnebres nos jornais, não se
participará a ninguém. Poucos irão ao chalé consolar dona Martha e Hélio.
Poucos acompanharão o enterro.
Christovam de Alencar é um desses poucos. Na noite de sexta-feira mesmo,
vai ao Instituto Médico Legal, na Praça 15(3).
3. No mesmo prédio em que anos mais tarde, ao lado do Museu da Imagem e do Som, funcionaria o Arquivo Almirante.

Encontra Noel sozinho e pensativo, mas calmo. O legista, Gualter Adolpho


Lutz, já cuidou da autópsia. Um longo e minucioso trabalho para que no atestado
de óbito se resuma tudo em três palavras: asfixia por suspensão.
- Ele se enforcou no pé da cama - diz Noel a Christovam.
O amigo se impressiona com os detalhes, o lençol convertido em corda, seu
Medeiros deitando-se no Chão para enforcar-se. Estranho modo de morrer este.
As pessoas, lembra Christovam, geralmente se valem do peso do corpo ao
buscarem a morte por enforcamento. Seu Medeiros valeu-se apenas da força das
próprias mãos. Mas terá sido mesmo assim?
- Se eu fosse você, Noel, mandava abrir um inquérito. No mínimo houve
descaso. Onde estavam os médicos, os enfermeiros?
- De que adianta isso agora?- murmura quase, mergulhando em seguida
naquele profundo silêncio que o afasta de tudo.
No dia seguinte, sábado, o enterro no Cemitério de São Francisco Xavier,
no Caju. Noel continua aparentando tranqüilidade. Christovam de Alencar, não.
Ainda intrigado, vira-se para um dos amigos e pergunta:
- Você não acha que foi uma morte muito estranha?
Os poucos parentes e vizinhos rezam por Neca à beira do túmulo e depois
deixam o local, cada qual com seu destino. Noel, por inexplicável impulso, vai
até a casa dos Graças Mello. Sempre se sentiu bem ali, o padrinho, dona
Glorinha, Edgar, Octávio, Nilda. É recebido com carinho, aquela mistura de
ternura e piedade com que se cercam os enlutados. Estão todos na varanda, Noel
sentado num dos degraus da escada. Súbito, ele, que aparentava tanta
tranqüilidade, começa a chorar.
- Eu sabia que ele jamais sairia daquela casa de saúde!
Chora muito, como nunca mais as pessoas o verão fazê-lo. Até mesmo o
eterno fingidor, indiferente a todas as dores, tem seus momentos de desabafo.
Fala com meiguice da mãe, agora mais sozinha que nunca. Lembra-se do bisavô
que não conheceu. Suicidou-se. E da avó Bella, sempre tão quieta. Suicidou-se.
E agora o pai. Pergunta, aflito, ao Dr. Graça Mello:
- O senhor acredita que essa história de suicídio seja hereditária?
- De forma alguma, Noel-tenta acalmá-lo o médico e padrinho, diante dos
olhos interrogativos da mulher e dos filhos.
Noel já não chora. Retorna ao silêncio, põe-se a olhar para um ponto
distante e impreciso.
- Meu bisavô, vó Bella e agora meu pai...
Pois eu não vou deixar que isso me aconteça!- diz com firmeza como se
para se convencer. - Eu quero viver. Não deixarei que aconteça comigo o que
aconteceu com meu pai!
Seu Medeiros se foi de novo, desta vez para sempre. Vinte e um dias antes
de completar 55 anos. Deixará em todos as melhores recordações, na mulher,
nos filhos, nos cunhados, nos vizinhos, nos amigos dos filhos. Como em
Christovam de Alencar.
- Que suicídio estranho... Pensando melhor, e que Deus me perdoe, este
enforcamento no pé da cama foi a última invenção de seu Medeiros. E a única
que deu certo.
Morrer não é difícil. Difícil é viver com a lembrança de certas mortes. Noel
parece perceber isso com a perda do pai. Uma perda que, além de penas, traz-lhe
impressões muito fortes de que empunhar lanças para enfrentar os moinhos de
vento da vida não passa de luta sem sentido. Que quixotesco personagem foi
Neca quando moço! Galante, nobre, romântico, crédulo, generoso, incorruptível,
vulnerável. Mas, como o cavalheiro da triste figura, não venceu os seus dragões.
E perdeu para a loucura a única verdadeira batalha de sua existência.
Um parceiro no presídio

- Ismael deu dois tiros na bunda do Edu Motorneiro!


Onde quer que a noticia chegasse causava espanto nos que conheciam de perto o sereno Ismael Silva,
misto de malandro e sambista, mais sambista que malandro. Como era possível ter ele sacado o revólver, à
porta do Café Paulicéia, esquina de Gomes Freyre com Visconde do Rio Branco, e disparado meia dúzia de
vezes contra o desavisado Edu? Segundo algumas versões, nenhum dos tiros pegou. Segundo outras, pelo
menos um carimbou feio o pobre motorneiro, deixando-o por longo tempo sem poder se sentar. As versões
também diferiam quanto à causa. Para uns, tudo se devia ao fato de ter o Edu abusado de Orestina, irmã de
Ismael. Para outros, foi briga de ciúmes, os dois homens enrabichados pela mesma mulher. Possibilidade
esta que os mais íntimos de Ismael nem consideraram. Por causa de mulher? Impossível. Como observou,
muito à sua maneira, outro negro bom de música, Getúlio Marinho, o Amor:
- Logo o Ismael, que nem sabe onde a burra mija...
Seja lá como tenha sido, Ismael Silva foi preso em flagrante e processado por tentativa de homicídio.
Naturalmente, não era seu primeiro problema com a Lei. As delegacias de então - em especial a quinta e a
nona - já haviam registrado várias passagens dele por suas dependências, antes do tiroteio no Café
Paulicéia. Malandro, inveterado jogador de chapinha, tentando viver de samba numa época em que sambista
era quase sinônimo de vagabundo, tinha sido preso inúmeras vezes. Numa delas em Paquetá, onde morava o
policial, também compositor, Roberto Martins, para quem o comissário local, Policarpo, telefonou:
- Dá um pulo até aqui, Roberto. Prendi por trapaça no jogo um crioulinho muito magro que se diz
compositor. Ele jura que te conhece.
- Como se chama?
- Ismael Silva.
- Ismael? Não pode ser, Poli. Mas, se for, é o autor de...
E Roberto Martins se pôs a cantar ao telefone alguns sambas de Ismael, Se Você Jurar, Para Me
Livrar do Mal, Não Há, Nem É Bom Falar, Novo Amor, Adeus. Quando acabou, o comissário estava
perplexo:
- Mas tudo isso é dele? É melhor mesmo você vir, Roberto.
Roberto Martins foi. Da porta gradeada do xadrez, viu Ismael lá dentro, sentado no Chão, ar abatido.
O comissário concordou em soltá-lo. Já na rua, muito sem jeito, Ismael tentou se explicar:
- Foi uma besteira minha, Roberto. Eu estava arrestado, sem um tostão. Fui dar uma bolinha, tive
azar, a polícia me pegou.
- Mas você não tem necessidade disso, Ismael. É grande compositor! Em todo caso, vamos fazer uma
coisa: você toma a primeira barca efica tudo entre nós.
- Se eu soubesse que você morava na ilha, Roberto, isso não tinha acontecido. Eu te pedia o dinheiro
para a passagem de volta.
Tentativa de homicídio. Com todo o empenho do advogado Prudente de Moraes Neto, Ismael Silva
não pôde livrar-se de uma pena de cinco anos de detenção, dos quais, por bom comportamento, só
cumpriria dois. Mas dois anos que valeram por quinze. Ao entrar no presídio - o frio e feio prédio da Frei
Caneca - Ismael começava a viver um desterro bem mais longo do que sua pena. Um desterro em parte
forçado, em parte voluntário. Forçado porque os dois parceiros que o haviam ajudado a subir tão alto como
compositor popular, Noel Rosa e Francisco Alves, saíam de sua vida para sempre, deixando-o
repentinamente só. Quando Ismael atirou no Edu, Noel estava em Belo Horizonte cuidando dos pulmões.
Durante o processo, a conselho de Prudente de Moraes Neto, que preferia vê-lo fora de circulação até o dia
do julgamento, refugiou-se em Teresópolis. Condenado, ao sair da prisão, Noel já estaria morto. Quanto ao
outro parceiro, Chico, nunca mais quis saber do "preto de alma branca" que, nas águas de Noel, se atrevera
a abandoná-lo.
Desterro voluntário porque - no fundo um homem de brio, sensível e orgulhoso - Ismael se deixaria
dobrar ao peso da vergonha de ser um ex-convicto. Passou a evitar os amigos, o meio artístico, os lugares
de sempre. Tinha medo que lhe fizessem perguntas sobre o que tanto queria esquecer. Enfim, desapareceu.
Houve até quem o julgasse morto. Sozinho, triste, sem dinheiro, perambulou por aí. Mas houve também
quem tentasse ajudá-lo. O próprio Prudente, por exemplo. E Pixinguinha, que em carta datada de 10 de
maio de 1939 pediria ao musicólogo Mozart Araújo um emprego para o amigo em dificuldade: "... espero
que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim."
Teriam sido essas palavras de Pixinguinha a semente de um antológico samba autobiográfico com o
qual, já em 1950, Ismael se reencontraria com o sucesso e com a vida:

Ô Antonico, vou-lhe pedir um favor


Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade

Ele está mesmo dançando na corda bamba


Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim...
Pode-se imaginar o que terá sentido Noel ao saber de Ismael Silva encarcerado - ele que tinha pavor
de cárceres e carcereiros. No seu caderno de letras, deixou esboçada uma, Saí do Presídio, que bem pode ter
sido sugerida pelos sofrimentos do parceiro:

Saí agora mesmo do presídio


E já cumpri a pena de homicídio
Do qual não fui autor
(Meu Deus do céu, que horror!
Lá dentro faz calor)

Nas grades da prisão eu já sabia


Que o nosso grande amor você traía
Eu aturei suas afrontas
Mas vou acertar nossas contas.

Você foi má
Nunca mais conseguirá
Calcular a imensa dor
Mas vai ter sempre na lembrança
Que o prazer de uma vingança
É maior do que qualquer amor

Não esqueci a ingratidão


E resolvi acabar com o meu grande mal
Se o meu plano não falhar
A "assistência" vai levar
Seu esqueleto ao hospital

Em tempo: ao contrário do que observou o Amor, Ismael sabia, sim. Entre os segredos do seu
passado, muitos, ficou guardada uma filha, Marlene, parecidíssima com ele. Mal chegou a conhecê-la.
Sequer quis registrá-la como sua, embora soubesse ser ela o resultado de um mês - apenas um mês - de
paixão por Diva, passista do Estácio, naquele mesmo 1935. Só 36 anos mais tarde pai e filha se
aproximariam. Mas já então muito tempo teria corrido. Chico, Edu, Diva, Noel, os sambas, o Estácio, tudo
se perdia no passado. E o presente de Ismael - cansado, doente e sempre só - fazia-se de tardias homenagens
e velhas memórias.
Só daqui a algum tempo será possível avaliar o quanto a morte do pai
afetou Noel. Em Martha a tragédia deixa marcas visíveis, no rosto sofrido, nos
olhos cansados, nos cabelos que a partir de agora vão embranquecer
rapidamente. Parte do seu mundo acaba de desmoronar. Tem 45 anos e ares de
muito mais. Sente-se abatida, sem forças. E cada vez mais só.
Em Hélio as marcas da tragédia têm a forma de resignação. Surpreende a
todos com sua firmeza. Ou com a sua cada vez mais forte espiritualidade: "Meu
pai não morreu. Está mais vivo que nunca!"
Noel não fala do suicídio com ninguém, nem mesmo com Ceci. Trabalha
normalmente, vai aos programas de rádio, às editoras, aos lugares de sempre.
Como se nada tivesse acontecido.
É muito solicitado para festas e espetáculos em clubes. No sábado anterior à
morte do pai, 27 de abril, já iniciava a verdadeira maratona de recitais que
ocuparão grande parte de seu tempo até o final de 1935. Naquela noite, a convite
de Leonel Azevedo, cantou velhos e novos sambas para os sócios do Light
Athlético Club, na Rua Figueira de Mello, em São Cristóvão. O sucesso foi tanto
que, desde então, os convites não param de chegar, de clubes, grêmios,
associações.
Participa também de espetáculos em teatros da Praça Tiradentes, entre eles
o João Caetano. É ali, durante um ensaio, que encontra Emma D'Ávila, jovem
atriz recentemente chegada do Sul, preparando-se para atuar na revista Rio
Folhes, produzida pela companhia de Jardel Jércolis. Emma está triste, murcha,
sentada a um canto dos bastidores. Mal se conhecem. Noel se aproxima,
pergunta-lhe o que aconteceu.
-É que vamos estrear na sexta-feira, 2 de agosto - explica ela. - Faltam
poucos dias. E eu até agora não tenho uma música para o meu quadro.
Emma diz que a revista é um alegre canto de amor ao Rio, aos bairros da
cidade. Em cada quadro se presta homenagem a um deles, Lapa, Tijuca,
Copacabana, Santa Teresa, Leblon, Estácio.
- O meu quadro éjustamente sobre o Estácio.
- E daí?
- Não tenho uma música original para cantar, falando no Estácio. Todos os
outros artistas vão cantar coisas novas. Eu, não.
- Emma, por isso não precisa ficar mais triste, não - diz Noel
carinhosamente. - Amanhã trago uma pra você.
No dia seguinte, ele aparece de novo no João Caetano. Os ensaios do Rio
Follies estão em andamento. Emma continua triste, pensando no samba que terá
de escolher, entre os muitos que falam do Estácio. Não crê que o compositor vá
cumprir sua promessa. Noel se aproxima mais uma vez.
- Aqui está.
- O quê?
- Um samba pra você. Sobre o Estácio. Não é dos melhores, pois foi feito às
pressas, de encomenda pro seu quadro.
Noel, acompanhando-se ao violão, ensina-lhe o samba escrito
especialmente para ela. Não é dos melhores? Feito às pressas? De encomenda? É
imprevisível este Noel Rosa. Todo cheio de desculpas e no entanto traz para
Emma D'Ávila cantar não menos que um samba irretocável, de melodia
perfeitamente ajustada a uma letra que é ele do primeiro ao último verso. A
simplicidade e a autenticidade do Estácio, sua escola de samba valendo muito
mais do que um palácio de Copacabana. O samba, O X do Problema, não podia
ter sido escrito por outro. Música e letra. Para identificar Noel nelas, bastariam
os dois versos finais:
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê.

Nasci no Estácio
O samba é a corda, eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você.

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá


E felicidade maior neste mundo não há.
Já fui convidada
Para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é
O X do problema.

Você tem vontade


Que eu abandone o Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana.
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia de Copacabana.

Imprevisível e cheio de talento. Confuso, também. Não é que, dias depois


de Emma lançar o samba, coberta de aplausos, no Rio Follies, ele encontra
Aracy de Almeida jogando sinuca num café da Rio Branco? Pois assim que ela
lhe pergunta se tem algo de novo, um samba, uma marcha, que possa gravar ou
cantar no rádio, Noel simplesmente diz:
- Tenho, tenho sim.
E escreve num maço de Odalisca a letra de O X do Problema. É claro que
sem saber que para o resto da vida Aracy e Emma disputarão a honra de ter sido
para elas que ele fez um de seus maiores sambas.(5) Não é menos intensa sua
atividade no rádio. Sem ter contrato de exclusividade com ninguém, vive
saltando de um lado para outro. Continua no Programa Suburbano, de Luís
Vassalo, mas também se apresenta no Casé, agora na PRA-2, Rádio Sociedade
do Rio de Janeiro, instalada no terceiro andar da Rua da Carioca, 45. Com
Patrício Teixeira, pode ser ouvido ainda em sensacionais "desafios em série" na
Mayrink Veiga, nos mesmos três quartos de hora em que atuam Luís Barbosa,
Aurora Miranda, Ismênia dos Santos e a cantora lírica Maria Amorim.
Esforça-se muito para apresentar sempre números novos em seus
programas. Se não inteiramente inéditos, ao menos versos recém-inventados,
para sambas de sucesso como Feitiço da Vila. É assim que acrescenta, à letra
gravada no ano passado por João Petra de Barros, mais duas estrofes exaltando o
seu bairro, por ele cantadas no rádio:
Quem nasce pra sambar
Chora pra mamar
Em ritmo de samba.
Eu já saí de casa olhando a lua
E até hoje estou na rua.

A zona mais tranqüila


É a nossa Vila,
O berço dos folgados.
Não há um cadeado no portão
Pois lá na Vila não há ladrão!

Uma breve volta à infância, não só pela referência ao choro pra mamar em
ritmo de samba, mas sobretudo àqueles tempos em que Vila Isabel gozava a má
fama de atrair ladrões, seus moradores sempre sobressaltados com assaltos que
ocorriam até nos bondes. Mas esse tempo, garante Noel nos novos versos de
Feitiço da Vila, já passou, todo o bairro podendo se orgulhar de dormir sem
cadeado no portão.
Era a oportunidade que Wilson Baptista esperava para entrar novamente em
ação. Depois que Noel nem ligou para o seu Mocinho da Vila, dando
praticamente por encerrada uma polêmica musical que não lhe convinha, Wilson
saiu de cena. Ainda é um malandreco, ainda anda de chapéu de lado e tamanco
arrastando, num permanente dividir-se entre subempregos e a desesperada busca
de uma chance de se firmar no meio artístico. Acaba de formar com o pianista
Lauro Paiva, o baterista Roberto Moreno e o cantor e compositor Erasmo Silva
um pequeno conjunto que se tem apresentado em cidades do interior fluminense.
Mas quem sabe disso? Quem toma conhecimento de suas músicas? Wilson
continua fiel ao seu sonho: "Ainda vou ser algum troço na vida..." Mas há
sonhos difíceis de realizar. Por isso é preciso aproveitar as oportunidades. Todas
elas. Sabe que nenhum compositor popular brasileiro está tão em evidência
quanto Noel nesses dias em que o Brasil inteiro canta Feitiço da Vila. E não
perde tempo. Certo de que, reabrindo a polêmica, provocando Noel, obrigando-o
a tomar conhecimento do que diz e faz, chamará a atenção do meio musical e
mesmo do grande público para o seu nome, compõe um samba, Conversa Fiada,
que responde literalmente a Feitiço da Vila.
É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço,
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso.

A Vila é tranqüila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.

Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer


E conhecer o berço dos folgados
A lua nessa noite demorou tanto
Me assassinaram um samba
Veio daí o meu pranto.

Ao contrário de Mocinho da Vila, Conversa Fiada não ficará de todo


ignorado. O grande público não chegará a perceber-lhe o sentido e as inegáveis
qualidades (o ajustamento de ritmo e melodia, por exemplo, já contém elementos
que permitem antever o grande sambista que Wilson Baptista ainda será). Mas
alguns intérpretes como Leo Villar, Mário Moraes e Luís Barbosa verão nesta
provocação a Noel um bom número para enriquecer seus repertórios, e de fato o
incluirão em algumas de suas apresentações em rádio, sem no entanto gravá-lo.
Noel não pode deixar de dar importância a esta nova carga de Wilson.
Primeiro, por se tratar de um samba indiscutivelmente bem-feito.
Depois, por ver o seu Feitiço da Vila tão literalmente respondido e seu
bairro tão debochadamente atacado. Desde logo sabe que, se se der ao trabalho
de um contra-ataque, este tem de ser definitivo, mortal.
-Noel, tem gente aí falando mal da Vila-contam-lhe moradores do bairro
como se a exigir providências.
-Já sei, já sei... - responde já pensando no contra-ataque, que vem mesmo
em termos definitivos, mortais, na forma de um samba intitulado Palpite Infeliz,
dos mais bem elaborados de toda a obra de Noel Rosa. Dos mais populares e
perenes também. Alvejado por ele, Wilson ainda vai se debater, tentar reagir,
apelar para estocadas pessoais e insultuosas. Mas com o tempo compreenderá
que o duelo chegou ao fim. Sua admiração por Noel, já grande, crescerá ainda
mais. Palpite Infeliz, mortal, definitivo, é um golpe de mestre:
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo,


Ao som do samba dança até o arvoredo.
Eu já chamei você pra ver,
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?

A Vila é uma cidade independente


Que tira samba mas não quer tirar patente.
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

Obra-prima da música carioca, o samba ficará gravado para sempre na


memória do povo. E muito especialmente na do jovem, talentoso e ainda
desconhecido Wilson Baptista (já em seu primeiro verso Noel nos chama a
atenção para este detalhe: "Quem é você...?"). Porém, mais do que um contra-
ataque, um fim de duelo, um desfecho de polêmica, Palpite Infeliz é obra
sutilmente integradora, promove a confraternização do mundo do samba,
defende Vila Isabel com elegância, sem situá-la acima do Estácio de Sá,
Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz, Matriz. Sutileza de Noel Rosa que, ao
comentar uma partícula, atinge todo um universo.
Wilson Baptista
Capítulo 37

OPERETAS E CONVERSAS DE ESQUINA

Não entendendo a opereta


Fizeste a careta
Pior do planeta
A Melhor do Planeta

Neste conturbado 1935 - crítico para a economia, sangrento para a política,


trágico para Noel Rosa - o rádio é mais do que nunca a mágica que encanta os
milhares de brasileiros cujos receptores estão sintonizados com qualquer das
quatorze emissoras que funcionam no Rio de Janeiro. Em quatro delas Noel
atua: Rádio Guanabara, a PRC-8, no mesmo Programa Suburbano em que se deu
a primeira audição de Só Pode Ser Você; Rádio Mayrink Veiga, a PRA-9, dos
tais "desafios em série" com Patrício Teixeira (o primo Jacy Pacheco, numa de
suas visitas ao Rio, ficará boquiaberto ao vê-los, Noel e Patrício, criando geniais
improvisos já no táxi, a caminho da emissora, para só terminarem muito tempo
depois de findo o programa); Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a PRA-2, no
Casé; e Rádio Club do Brasil, a PRA-3, que vai representar novo, fértil e curioso
capítulo em sua vida profissional.
Mágica. A própria ubiqüidade de Noel, judeu errante do éter, tem qualquer
coisa de inacreditável. Como é possível estar em tantos lugares quase ao mesmo
tempo? Espetáculos em cinemas, teatros e clubes, festas em homenagem à
imprensa, atos variados aqui e ali. Hoje é uma tarde em benefício da Casa dos
Artistas. Amanhã, uma "noite cheia de estrelas" promovida por A Voz do Rádio
no Instituto Nacional de Música, onde é obrigado a trisar um de seus números.
Tudo isso é, é claro, o rádio.
Pura mágica. Por um lado, capaz de encantar o ouvinte, de afastá-lo um
pouco da dura realidade destes tempos difíceis. Por outro, de fazer de seus
artistas - Noel Rosa entre eles - nomes de grande popularidade. Todos falam de
rádio, comentam o rádio, discutem o rádio. Na imprensa principalmente. À A
Voz do Rádio e Syntonia juntam-se novas publicações especializadas, ainda que
de duração efêmera. Jornais e revistas ampliam suas seções dedicadas ao rádio e
à música popular. Multiplicam-se os colunistas, uns se ocupando dos sempre
lidos mexericos, outros da crítica e da informação séria. Há enorme curiosidade
em torno dos artistas do microfone. Quem é, o que faz, o que pensa, tudo a seu
respeito interessa ao ouvinte. Um interesse que a imprensa faz força para
satisfazer. Por exemplo, é ainda A Voz do Rádio que publica reportagem de capa
sob o título "O que eles fazem quando saem dos estúdios"(1), nela revelando aos
leitores a paixão de Hervê Cordovil, Arnaldo Amaral e Jayme Britto pela sinuca.
1. A Voz do Rádio, 25 de julho de 1935.

E o gosto de Custódio Mesquita e Noel Rosa pelas caminhadas noturnas no


centro da cidade, os dois convivendo com os mais diversos habitantes da
madrugada (Custódio e Noel são fotografados ao lado de William Faissal
provando guloseimas do tabuleiro de uma baiana, na Praça da Candelária, e
também com Príncipe Baby, "o apreciado speaker diplomata da Rádio Cajuti",
conversando com garis na hora da limpeza). César Ladeira, na mesma
reportagem, é ouvido em seu Citroen amarelo "rumo ao lado bom da vida..."
"- Vocês querem saber o que faço quando deixo a estação?" - pergunta e
logo responde o famoso locutor: - "O mesmo que aquele expresso paulista
quando chega na serra da Mantiqueira: fico fora da estação..."
Quando se diz que Noel é uma espécie de judeu errante do éter, apenas se
repete o que todo o mundo comenta. Por exemplo, a revista Carioca: "Os judeus,
como é sabido, não se fixam em parte alguma. Erram pelo mundo afora, à
procura da terra prometida por Israel, seu Deus, sem entretanto encontrá-la
nunca. Há artistas de rádio assim. Correm todas as estações, não achando,
porém, aquela em que se devem instalar definitivamente. Ao contrário, outros há
que começam numa emissora e ali ficam para sempre, querendo, com isto, dar
uma prova de gratidão a quem lhes abriu a estrada do triunfo. Entre os judeus
errantes, temos Francisco Alves, Aracy de Almeida, Sílvio Caldas, Noel Rosa,
Jayme Britto e Walter Brasil. No grupo dos constantes, encontram-se Patrício
Teixeira, Mário Reis, Carmem e Aurora Miranda, João Petra de Barros, Oswaldo
Gonçalves e Moreira da Silva. Todavia, isto não importa, porque uns e outros
ganharam fama e são hoje figuras indispensáveis ao nosso broadcasting. "(2) 2.
Carioca, 1? de fevereiro de 1936.

Judeu errante, artista eclético. Pois nas quatro emissoras em que se


apresenta, quase todos os dias, vai-se dividir entre muitas atividades: cantar
sambas seus em primeira audição, participar de desafios, escrever textos
publicitários, criar paródias, contar anedotas, cuidar de discoteca, atuar como
contra-regra, cantar. Nem tudo fará bem, a julgar por alguns críticos que ainda
lhe torcerão o nariz ao ouvi-lo interpretar composições alheias(3).
3. Ver Capítulo 40.

De todas essas atividades radiofônicas, a mais fértil e curiosa será mesmo a


que exercerá na Rádio Club do Brasil nos sete meses que vão de agosto de 1935
a fevereiro de 1936. Instalada no terceiro andar da Rua Bittencourt da Silva, 21,
esquina com o Largo da Carioca (no mesmo prédio onde, a poucos metros do
Nice, funcionam o Bola Preta e o jornal O Globo) , a emissora vem transmitindo
programação nitidamente voltada para o novo, o original. Portanto, sob medida
para Noel Rosa.
É de Almirante, há mais de um ano no casting, a iniciativa de contratar o
amigo e parceiro. Ao saber que Noel voltou de Belo Horizonte gordo, saudável,
precisado de dinheiro, mas acima de tudo disposto a levar o trabalho mais a
sério, o ex-líder do Bando de Tangarás decide ajudá-lo. E ajudar-se também.
Almirante tem mesmo rara vocação para o rádio. Inteligente, inventivo,
dinâmico, sempre alguns passos à frente dos demais, há de ir muito longe.
Dentro de sua convicção de que esta é realmente uma espécie de mágica onde
cabem mil truques, acabará fazendo história. Henrique Foreis Domingues, o
Almirante, a quem César Ladeira rebatizou de "a maior patente do rádio", será,
enquanto o rádio permitir, um de seus artistas mais completos e certamente o
mais brilhante de todos os seus produtores.
De início, Noel é contratado para catalogar os poucos discos da emissora e
tratar da parte burocrática ligada ao pagamento dos cachês aos artistas. Para seu
talento, claro que é pouco. E logo Almirante o requisita para dois de seus novos
projetos. Um, sketches para acrescentar um pouco de humor à programação da
emissora. Isto é, entre um número musical e outro, coisas que façam o ouvinte
rir. Noel fica incumbido de recolher em velhas revistas e almanaques piadas que
ele mesmo monta em forma de diálogos intitulados "Conversa de Esquina".
Nada mais que bate-papos meio puxados ao non sense entre um certo Bonifácio
e um tal de Albuquerque. Eis algumas piadas que Noel recolhe e vai anotando
para usar como matéria-prima de seus sketches. Uma: "- O seu patrão está?
- Não, senhor. Saiu.
- Pode me dizer quando ele volta?
- Espere um pouquinho que vou perguntar a ele!"
Outra:
"- A quem devemos o maior esforço para a elevação da mulher?
- Ao inventor do salto alto!" Outra mais:
"- Por que estás triste, querida?
- O nosso gato comeu o bolo que eu fiz para a sobremesa!
- Não chores, meu amor! Se o gato morrer eu te arranjo outro!"
Mais uma:
"- O senhor me pede 100 mil réis por este quadro? É muito caro!
- Parece... Mas olha que só a tela me custou 50 mil réis.
- Sim, mas quando o senhor a comprou ela estava limpa!"
E algumas outras que vai encontrando e anotando. Como se vê, piadas
menos engraçadas do que as que ele próprio poderia contar se recorresse mais à
irreverência carioca das ruas e dos botequins do que à ingenuidade dos
almanaques. De qualquer modo, é delas que sairão as falas de Bonifácio e
Albuquerque nas "Conversas de Esquina".
Conversas de Esquina

- Olá, Bonifácio! É verdade que estás casado?


- Por enquanto, não! Mas ando procurando uma esposa ideal para um doutor como eu.
- Qual é a esposa ideal para um doutor?
- Ora, essa! Uma pequena imbecil!
- Por que imbecil?
- Para que não se meta em meus negócios e faça todas as minhas vontades!
- Ora, Bonifácio! Escolhe qualquer uma e fica descansado! A mulher que casar contigo há de ser
forçosamente uma imbecil!
- Por falar em imbecil, eu me lembrei agora do teu alfaiate!
- Por que eu lhe passei o calote?
- Não! Porque ele te fez estas calças muito curtas!
- Não concordo contigo, Bonifácio! As minhas calças estão muito bem-feitas! As minhas pernas é
que estão muito compridas!
- Por falar em compridas, eu me lembrei agora das línguas das minhas vizinhas!
-Já sei que vais mudar de casa!
- Adivinhaste, Albuquerque! Mas... não é só por causa das más línguas que vou me mudar. É porque
minha casa, cujo aluguel é de 800 mil-réis, é tão pequena... tão pequena que eu nem tenho lugar para ler os
jornais aos domingos!
- Mas... por falar em domingo, tu vais assistir às corridas no Jockey Club?
- Não! Deus me livre! Eu ando muito pesado.
- E eu também, Bonifácio! O meu azar é tão grande... que qualquer dia me enfio nessas caixas de
papéis da Avenida.
- Não faça isso, Albuquerque! Isso é um "papel sujo"! (Risadas)
- Olá, Albuquerque! Você anda sumido! Por onde tem andado?
- Estive na Europa e agora sou colecionador de moedas! A propósito: quais são as moedas mais raras
daqui do Brasil?
- São todas.
- Todas?!
- Sim, senhor. Aqui no Brasil as moedas são raras! Há três meses que não vejo uma!
- Esta é boa, Bonifácio. E você? Tem clinicado muito?
- Não. Deixei a clínica e agora faço versos.
- Mudou de profissão?
- Não! Faço versos para matar o tempo!
- Não tem mais cliente para matar?
- Que matar!... Eu ando pedindo a Deus que não me matem! Ultimamente vivo isolado de tudo e de
todos.
- Esse seu isolamento é receita médica?
- Não. É outra receita. Estou fugindo daqueles que me mordem.
- Daqueles que pensam que você é banco?
- É. Mas não "banco"! Por falar em bobo... Você está noivo?
- Estou.
- E sua noiva tem juízo?
- Se tem! Nunca ninguém teve cara de pedir um beijo à minha noiva!
- Ela é que não tem cara para que alguém lhe peça um beijo.. (Vaia)
- Olá, Bonifácio! Então tu não me viste ontem na Praia do Flamengo?
- Não! Havia lá tanta gente... que eu não vi ninguém!
- Pensei que estivesses com a "abóbada" da vista estragada!
- Não! Mas meu médico falou que eu perdi o "paladar" do ouvido!
- Por falar em ouvido, quase dei um tiro no ouvido, ontem.
- Por que, Albuquerque?
- Porque a Genoveva desmanchou o nosso noivado!
- Então, tu compreendes o suicídio por amor?
- Compreendo e admito!
- Eu não admito! Se eu me matasse por uma mulher... ficaria arrependido o resto de minha vida!
- Mas, por falar em arrependido, tu deves estar arrependido de fumar.
- Não compreendo. Arrependido de fumar? Por quê?
- Porque Furaste tuas calças novas com o cigarro!
- Estás enganado! Estes dois buracos que tenho nas calças fazem o papel de ventiladores!
- Mas... podes apanhar um resfriado!
- Qual o quê, Bonifácio! O vento entra por um buraco e sai pelo outro!

- Boa-noite, Albuquerque! De onde vens e... para onde vais?


- Acabo de sair do Restaurante Chinês e... vou à farmácia!
- Tenho a impressão de que jantaste bem!
- Estás enganado, Bonifácio! Não jantei bem!
- Mas... em compensação pagaste mal! E... se eu te disser que ainda estás jantando?
- Eu te direi que estás maluco!
- Maluco por quê?
- Porque eu não sou ruminante! Tu é que estás ruminando a filosofia que não digeriste bem!
- Dize-me cá: onde comem três... não comem quatro?
- Sim!
- E onde comem dois... não comem três?
- Perfeitamente! Mas o que tem isso?
- Aposto contigo mil e duzentos réis, que é o preço do teu jantar, como tu ainda estás jantando na
sala.
- Mas que idéia, Bonifácio! Isso é um absurdo!
- Absurdo, não senhor! Se onde comem três, comem quatro... e onde comem dois, comem três... onde
come um, quantos comem?
- Comem dois!
- Isso mesmo, Albuquerque, estás me ajudando! Se onde come um, comem dois... onde nenhum
come... come um forçosamente!
- Chega, Bonifácio! Parei contigo! Toma os mil e duzentos réis!
O segundo projeto de Almirante é muito mais ambicioso e interessante: um
programa semanal de meia hora sob o título "Como se as óperas célebres do
mundo houvessem nascido aqui, no Rio..." Na verdade, seriam pequenas óperas
bufas cariocas, com muito humor e deboche, os textos inspirados nos enredos e
personagens das óperas clássicas, mas os números musicais não passando de
paródias de canções populares brasileiras.
As paródias - todos sabem - são uma velha mania de Noel. Basta que nos
lembremos das que ele andou fazendo em cima do Hino Nacional. E também as
que foram escritas sobre as melodias de Gigolette, Casinha da Colina,
Suçuarana, Diga-me Esta Noite, Cheek To Cheek. Paródias como esta, do tango
El Penado(4), transformado em Pesado 13 e gravado por Paulo Netto de Freitas
em 1931, contando a tragicômica história de um prestamista: 4. Tango de Agustín Magaldi, Pedro Noda e
Carlos Pesce, lançado pelos dois primeiros em 1930.

Num quarto solitário


Na Rua do Rosário
Com um 13 bem na porta
Um turco lá morou

Disse o seu patrício


Que ele morreu no hospício
E cheio de aflição
Porque engoliu um tostão.

O seu nome era Rachid,


Abdula ou Farid,
Nascido na Turquia
Criado na Bahia

Ele era prestamista e vigarista


Nunca perdeu de vista
O bolso de ninguém
Por causa de um vintém.

Seu quarto todo escrito


Com contas de somar
E de multiplicar
Não tinha dividir

E por economia
Pra não gastar seu sangue
Com as pulgas já famintas
Ficava sem dormir.

Em uma carta escrita


Deixava como herança
Ao filho inda criança
As contas por cobrar

Ele era precavido


Pro caixão ser pequeno
Morreu bem decidido
De cócoras, encolhido.

E o pesado 13
Em uma sexta-feira
Também num dia 13
Faz hoje quase um ano

Que teve o intestino


Por choque fraturado
Pois foi atropelado
Por um aeroplano.

Num dia em que um amigo


Ao lhe pedir abrigo
Ao ver aberta a porta
Quase morreu de horror

Pois viu por sobre a cama


O terno de Farid
E viu dependurado
Abdula num cabide.

Ou como esta, da belíssima valsa-canção Dona da Minha Vontade(5), em


que o tom lírico, apaixonado, da letra original, é substituído por versos
inspirados na penúria do carioca (o prestamista mais uma vez revisitado), que
Noel prefere chamar de Dono do Meu Nariz: 5. Valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada pelo primeiro em
1933, do outro lado de Você Só... Mente.

Miséria... de vez em quando


Prestamistas recitando
Minhas contas no portão
E a criada, calmamente,
Diz que eu estou ausente
E não lhe deixei tostão...

Mas alguém que está gozando


Porque vive me manjando
Percebeu que eu não saí...
E aspiro no terreiro
L'Origan de galinheiro
Meu L'Origan de "galli"...(6)
E no meu ninho de penas
Vejo aves tão serenas
A quem dei milho na mão
O vendeiro por afronta
Suspendeu a minha conta
E eu vou ficar sem feijão...

Dono deste meu nariz,


Não paguei porque não quis..
Não sou de todo infeliz
Por consolo vou gritando:
Neste meu nariz eu mando...
E... galinha não tem nariz!
6. Trocadilho com L'Origan de Coty, colônia muito usada na época.

Ou ainda esta, de outro tango(7), aqui convertido em Negócio de Turco,


contendo novas referências ao prestamista e aos imigrantes espertos que Noel
não consegue deixar em paz: 7. A informação de que se trata de um tango é de Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (pagina 128).

Seu Jorge turco tem três anos de Brasil


E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês.

Comprou por cento e um mil e cento e vinte réis


Uma barata pra passear com a mulata
Que ele roubou de um português.

E a mulata que era torcida do Vasco da Gama


Pra comprar colchão, vendeu a cama
E jejuava trinta vezes todo o mês

E hoje anda chique e é tratada com todo carinho


Já desfalcou o caixa do armarinho
Pra reerguer o Sírio Libanês.

O seu "Maneli" chamou o Jorge de João Banana


E já marcou um dia na semana
Pra resolver aquele caso a cachações

O Jorge disse que a banana às vezes tem sementes


E pra vender entrada aos assistentes
Só aceita a luta em doze prestações.

Paródias como Que a Terra Se Abra, feita a partir da marchinha Idem(8),


do último carnaval: 8. Letra e música de Hervê Cordovil, gravada por Almirante em 1934.

Eu quero que vocês todas se suicidem


E a sua sogra... idem!

Quero que a terra se abra


Quero assistir uma dança macabra
Quero que todos se comam
E o mundo se acabe
E o resto você sabe...

Quero um dilúvio colosso


Chuva de fogo à hora do almoço
Chuva de pedra ao jantar
Que o teto desabe
E o resto você sabe...

O segundo projeto de Almirante não passará disto: um projeto. Por não


entusiasmar a mais que duas pessoas - o próprio Almirante e Noel - será posto de
lado. Mas não sem antes o parodista incorrigível trabalhar nele com indisfarçável
gosto. Nas enormes papeletas de programação da Rádio Club do Brasil, escreve
à mão um programa inteiro e deixa outro esboçado. Duas "revistas radiofônicas",
segundo sua própria classificação, mas na verdade duas "óperas bufas cariocas"
como Almirante imaginara.
A primeira é O Barbeiro de Niterói. Como se a célebre Il Barbiere di
Siviglia não houvesse nascido lá nem aqui no Rio, mas do outro lado da baía.
Enfim, uma paródia da ópera cuja popularidade, desde sua primeira encenação
em 1816, não pára de crescer. Em vez da música de Rossini, Noel utiliza coisas
mais nossas e mais atuais: as valsas Teus Ciúmes e Boneca, ambas do repertório
de Sílvio Caldas, e o seu próprio samba Cordiais Saudações, que aliás o mesmo
Sílvio lançou no teatro, anos atrás, num dos quadros da revista Mar de Rosas(9).
9. Já estudada no Capítulo 18.

Já do texto original de Sterbini, são aproveitados o enredo, certas passagens


mais marcantes (a serenata, o leva-e-traz de bilhetes, os disfarces, a aula de
canto, a fuga à meia-noite), o mote "precaução inútil" que o libretista foi buscar
em antiga comédia de Beaumarchais(10) e os personagens.
10. Le Barbíer de Séville ou La Précaution Inutile, comédia em quatro atos de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. Datada de 1775, nela se baseou Cesare Sterbini para escrever o
libretto da ópera.

Só que o doitore Bartolo se transforma em dom Bartolo, um português dono


de armazém; Rosina, sua pupila, numa bela mulata; o Conde de Almaviva,
fidalgo espanhol, em Alma Viva, bicheiro daqui mesmo; e Fígaro, o barbeiro de
Sevilha, em Fígaro, o barbeiro de Niterói.
Mas há muito de Noel nos quatro breves atos desta ópera bufa carioca. O
português que explora a mulata e ao mesmo tempo a cobiça, a força do dinheiro,
o bicheiro herói em vez de vilão, verdades e mentiras, tudo isso são temas seus.
E, embora as músicas tenham sido colhidas no repertório de Sílvio Caldas, é
ainda em Francisco Alves que Noel pensa quando faz suas paródias. Seja
cantando os primeiros versos de uma canção de Chico ("Ordena, fala,
insinua..."), seja citando-o com todas as letras pela boca de dom Bartolo. Por
fim, quando Alma Viva, o bicheiro, diz que "a música é boa e a letra é melhor
ainda", referindo-se à paródia de Boneca, Noel nada mais faz do que chamar a
atenção para sua própria habilidade em converter os versos originais de Aldo
Cabral (uma sucessão de empoladas imagens para exaltar a beleza da mulher
amada) num breve poema satírico que descreve a figura detestável de um imortal
Pão-Duro.
A outra "revista radiofônica" - que ficará no esboço - chama-se Ladrão de
Galinha. Em que terá se inspirado Noel ao escrevê-la? Certamente não numa
ópera conhecida como Il Barbiere di Siviglia. Nem existe no repertório lírico
corrente algo que se assemelhe, no título ou no enredo, a esta estranha farsa onde
até um galo adquire vida, canta e, no fim das contas, vai preso. Entre as operetas,
a mesma coisa. A impressão que fica é de que a história, com todos os seus
absurdos, seria a primeira tentativa de Noel no sentido de escrever uma peça
original. Pode ser. É verdade que ele dá aos personagens nomes bem
"operísticos" (Diogo, Josefina, Genoveva), mas tudo o mais é uma extravagância
musical carioca que nenhum libretista de ópera ousaria pôr no papel.
Mais uma vez Noel recorre à música popular brasileira de agora ao produzir
suas "árias". A partir de um samba do carnaval passado (Foi Ela)(18), de duas
marchas do próximo (Ganhou, Mas Não Leva e Marchinha do Grande Galo) e
do seu próprio Palpite Infeliz(19), compõe as paródias de Ladrão de Galinha,
cuja sinopse e letra se seguem tal qual Noel as escreveu nas papeletas da Rádio
Club: 18. Paródia de Foi Ela, samba de Ary Barroso, gravado por Francisco Alves em 1934.

19-Paródia de Palpite Infeliz, samba do próprio Noel, já estudado no Capítulo anterior.


Ladrão de Galinha
1o ato

A cena se passa no Meyer, entre dois namorados: Diogo, ladrão de galinha, e Josefina, cozinheira de
Madame Genoveva. Josefina, depois de muita insistência de Diogo, promete a este deixar o portão aberto.
Diogo penetra à meia-noite no galinheiro de Madame Genoveva e consegue agarrar um galo, por meio de
bomba de gás lacrimejante. Na volta, porém, ele tropeça na lata de lixo... O galo canta uma Canção do Galo
Capão(16) e Madame Genoveva apita:
16. Paródia de Marchinha do Grande Galo, de Lamartine Babo e Paulo Barbosa, gravada por Almirante em 1935.

Có... có... có... có... có... có... ró


Có... có... có... có... có... có... ró
Eu hoje estou com gogó
Não aperte o meu gogó.
Você é ladrão de galinha
Quem me informou
Foi a minha vizinha
Sou galo e... se você me roubar
O papagaio hoje vai
Me desmoralizar.

Diogo levanta com o galo e corre vertiginosamente... mas, ao virar a esquina, é atropelado por uma
carrocinha de leite. Madame Genoveva, que vem correndo de camisola, efetua a prisão de Diogo. Chega o
comissário que leva ambos para o distrito. Madame Genoveva diz que o ladrão de galinha é namorado de
sua cozinheira. O comissário intima Madame Genoveva a voltar no dia seguinte com a cozinheira Josefina.
O comissário canta para Diogo a marcha Roubou, Mas Não Leva(17):
17. Paródia de Ganhou, Mas Não Leva, marcha de Benedicto Lacerda e Milton Amaral, gravada por Almirante em 1935.

Você roubou...
Roubou mas não leva
O galo é da Genoveva!
Você entrou... agarrou o galo e se pirou
Pirou mas tropeçou
Esse capão vagabundo que nem raça tem
E dela e de mais ninguém.

Fim do 1o ato.
O Barbeiro de Niterói
1º ato

Overture
Rosina: Dom Bartolo! Já estou cansada de aturar o senhor e sua casa de secos e molhados!
Dom Bartolo: Calma, Rosina! Estás nervosa hoje, meu benzinho?
Rosina: Sim, senhor! Estou nervosa e o senhor sabe por quê.
Dom Bartolo: Por quê?
Rosina: Então o senhor não sabe que minha neurastenia é causada pelo excesso de trabalho e pela
falta de distração? Eu trabalho mais que uma escrava e me divirto menos que uma freira. O senhor nunca
me deu mil e cem réis para um cinema!
Dom Bartolo:
(canta Condeno o Teu Nervoso)(11)
11. Paródia de Teus Ciúmes, valsa de Lacy Martins e Aldo Cabral, gravada por Sílvio Caldas em 1935.

Condeno o teu nervoso


Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter

No meu torrão natal


Me chamam de herói
Já tenho capital
E brevemente compro Niterói...

Condeno o teu nervoso


Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter

Condeno o cinema
Que é mau conselheiro
E não é o meu sistema
Esbanjar dinheiro.

(Batem à porta)
Polícia: Abra em nome da Lei!
Dom Bartolo: Ah! É a polícia! Pode entrar! Eu sou negociante nonesto.
Polícia: Nós estamos procurando o bicheiro Alma Viva e... parece que ele entrou aqui!
Dom Bartolo: Viste o Alma Viva, Rosina?
Rosina: Se o senhor não viu, muito menos eu! A última vez que o vi foi anteontem, quando entreguei
a lista que o senhor mandou.
Polícia: Até logo! Se o senhor encontrar esse bicheiro telefone para o distrito.
Dom Bartolo: Está bem!
(Barulho de porta que se fecha)
Rosina: Boa-noite, Dom Bartolo! Já são horas de dormir!
Dom Bartolo: Boa noite, Rosina, e... não se esqueça de levantar mais cedo para conferir a caixa antes
do armazém abrir.
(Na rua)
Alma Viva: Ó, Fígaro! Como vais?
Fígaro: Alma Viva!? A polícia anda à tua procura. Tem cuidado! Todos os meus fregueses da
barbearia já sabem que estás em Niterói!
Alma Viva: Agora, eu mudei de nome e me chamo Lindoro, o empresário. Vou pôr um bigode
postiço e raspar o cabelo. Ficarei horrível e irreconhecível!
Fígaro: Soube que estas apaixonado pela Rosina. É verdade?
Alma Viva: É. E quero que me auxilies.
Fígaro: Por que não cantas agora debaixo de sua janela? Aqui está o meu violão! Rosina é louca por
uma serenata.
Alma Viva: É esta a janela?
Fígaro: É! Pode começar!
Alma Viva: (dá uns acordes no violão e canta)

Ordena, fala, insinua,


Dize o que queres de mim,
Jardineiro...(12)
12. Primeiros versos de Por Teu Amor, valsa de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada pelo primeiro em 1934.

Dom Bartolo: Ó, seu jardineiro! Vá cantar no jardim zoológico! Eu trabalhei o dia inteiro e... você
não me deixa dormir.
Alma Viva: A serenata não é para o senhor!
Dom Bartolo: Que não é para mim, eu bem sei! Você pensa que Rosina se deixa iludir com cantigas?
Alma Viva: O senhor está fazendo mais barulho do que eu e... daqui a pouco o guarda municipal nos
vem meter o pau!
Dom Bartolo: Eu faço barulho porque estou na minha casa e... ninguém me prende. Você é que vai
preso!
(Apitos, gritaria)

Fim do 1o ato.

2o ato

Rosina: Fígaro! Eu preciso que você me faça um favor!


Fígaro: Com muito prazer, dona Rosina! O que manda?
Rosina: Queria que você entregasse este bilhete ao Alma Viva. Mas... não deixe dom Bartolo
perceber!
Fígaro .Já adivinhei o que a senhora escreveu no bilhete! Naturalmente, não gostou da serenata e
pede para que ele não a procure mais! Não é isso?
Rosina: Nada disso! Eu vou ler para você ouvir...
(canta Envio Estas Mal Traçadas Linhas)(13)
13. Paródia de Cordiais Saudações, do próprio Noel, já estudada no Capítulo 17.

Envio estas mal traçadas linhas


Que escrevi a lápis
Por não ter caneta
Andas perseguido
Para que escapes
Corta teu cabelo e põe barba preta.

Em vão te procurei
Noticias tuas não encontrei
Mas, ontem, te escutei
E este bilhete ao Fígaro entreguei.

Sem mais, para acabar


Recebe o beijo que vou mandar
Eu amo... com o amor não brinco.
Niterói, 30 de outubro de 35.
Fígaro: Muito bem, dona Rosina! Aí vem dom Bartolo! Até logo!
Rosina: Até logo, Fígaro, e... obrigada!
Dom Bartolo: O que é isso, Rosina?
Rosina: Nada!
Dom Bartolo: Não mintas! Entregaste um bilhete ao barbeiro! Para quem? Responde, Rosina!
Rosina: (gaguejando) O... o... bilhete que eu mandei foi... foi para o sapateiro.
Dom Bartolo: Sapateiro!
Rosina: Sim, senhor! O sapateiro está demorando a mandar os meus sapatos!
Dom Bartolo: Não mintas, Rosina. Já me disseram que tu gostas de um tal Lindoro, empresário!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Quá! Que gente mentirosa...
Dom Bartolo.- Rosina! Tu és muito mais moça do que eu. Mas...
Rosina: Mas... o quê?
Dom Bartolo: Eu sou o único homem que te pode fazer feliz. Tenho prédios... dinheiro no banco...
Rosina: Seu dinheiro não me interessa.
Dom Bartolo: Se o meu dinheiro não te interessa... a mim, então, muito menos. Bem que aquele
Chico Viola tinha razão quando cantava:

Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher?

Rosina: (também cantando)

Quando ela quer!

Os dois: (ainda cantando)

Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher...
Quando ela quer?(14)
14. Primeiros versos de Que Vale a Nota Sem o Carinho da Mulher?, samba de Sinhô, que nada menos de três cantores registraram em disco em 1928: Mário Reis, Vicente Celestino e
Francisco Alves. Embora a gravação de Mário tenha sido lançada um mês antes das dos outros dois (e obtido mais popularidade), dom Bartolo prefere citar a de Chico Viola.
Fim do 2o ato.

3º ato

(Pancadas na porta)
Dom Bartolo: O que deseja?
Alma Viva: Eu sou o empresário, me chamo Lindoro e vim dar uma aula de canto a dona Rosina.
Dom Bartolo: Mas o professor de canto de Rosina é dom Basílio.
Alma Viva: Foi dom Basílio que me mandou substitui-lo hoje, porque ele está com coqueluche.
Dom Bartolo: Sim! Agora estou compreendendo. Tenha a bondade de sentar! Ó Rosina! Rosina!
Rosina: Pronto, dom Bartolo! O que deseja?
Dom Bartolo: Dom Basílio não pôde vir hoje e mandou um substituto para te ensinar a lição.
Rosina: Creio que conheço este meu novo professor. Acho que já o vi no Cinema Poeira!
Alma Viva: Ou então n'alguma gafieira... da Praça da Bandeira.
Rosina: Acho que não! Foi no jardim zoológico...
Alma Viva: É quase isso! Não é bem jardim zoológico, mas é negócio de bicho!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Agora sei de onde o conheço!
Alma Viva: Qual foi a sua última lição?
Rosina: Eu estava aprendendo a ária Precaução Inútil.
Alma Viva: Precaução Inútil? O título é muito bonito! Tenha a bondade de cantar essa ária.
Rosina: Eu hoje estou um pouquinho rouca. Por isso, espero que o senhor não repare...
(canta Precaução Inútil)(15)
15. Paródia de Boneca, valsa de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral, gravada por Sílvio Caldas em 1935. O próprio Noel escreveu uma variante para esta paródia, dando-lhe o título de Seu Zé.
Começa assim:
Eu vi num armazém de Cascadura
Seu Zé vendendo a mil e cem
Trezentos réis de rapadura
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou três mil
Botando água no vinho do barril...
Os versos seguintes são os mesmos de Precaução Inútil, até os dois finais, que ficam assim:
Enfim, eu vi neste seu Zé
Um imortal Pão-Duro!

Eu vi num armazém de Niterói


Um velho que se julga herói
E teima em ser conquistador.

Lá no Banco do Brasil
Depositou mais de três mil
Botando água no vinho do barril.

Seus lábios só se abriam pra falar


Das velhas contas a cobrar,
Dos que morreram sem pagar...

Eram lábios agressores,


Dois grandes cobradores
Dos seus devedores.

Seu cabelo tinha a cor


De burro quando foge
Do amansador

Seus olhos eram circunflexos,


Perplexos e desconexos,
Mãos de usurário,
Braços de sicário
Corpo de macaco, chimpanzé maduro,
Enfim, eu vi nesse velhote
Um imortal Pão-Duro!

(Palmas)

Alma Viva e Dom Bartolo: Muito bem! Muito bem!


Alma Viva: A música é boa e a letra é melhor ainda!
Dom Bartolo: Os senhores fiquem à vontade! Tenho que ir atender os meus fregueses no armazém!
Com licença!
Alma Viva: Pois não, dom Bartolo. Não se preocupe conosco!
(Barulho de porta que se fecha)
Alma Viva: Até que fim, minha querida Rosina!
Rosina: É verdade, finalmente estamos sós!
Alma Viva: Fígaro já te avisou que nós vamos fugir hoje à meia-noite?
Rosina: Já! E eu estou preparada para fugir contigo! Tu já sabes que dom Bartolo incumbiu dom
Basílio de trazer aqui um padre?
Alma Viva: Um padre? Para quê?
Rosina: Então não sabes que o bobo desse velho quer se casar comigo hoje?
Alma Viva: Isso é mais outra precaução inútil...
(canta novos versos para Precaução Inútil)

Seu cabelo tinha a cor


De burro quando foge
Do amansador

Seus olhos eram circunflexos,


Perplexos e desconexos,
Um bigodão
Na cara indiscreta
Feito bicicleta com o guidon de fora

Enfim, esse velho nunca mais


Se casa com a senhora!

Fim do 3o ato.

4o ato
(Tempestade)
Dom Bartolo: Rosina, tu não deves dar muita importância a esse tal Lindoro, que se intitula
empresário e professor de canto!
Rosina: Por que, dom Bartolo? Ele não é um rapaz distinto?
Dom Bartolo: Que distinto, qual nada! Ele é um malandro que pensa que tu és muito rica e, por isso,
quer casar com o teu dinheiro!
Rosina: O senhor está enganado!
Dom Bartolo: Tu é que estás enganada, Rosina!
(Batem à porta)
Dom Bartolo: Tenha a bondade de entrar.
Dom Basílio: Boa-noite! Aqui estou eu com o senhor reverendo.
Dom Bartolo: Sejam bem-vindos! Como estão molhados! Pensei que não viessem por causa da
chuva! Querem tomar um gole de vinho?
Dom Basílio: Em nome do senhor reverendo... aceitamos a oportuníssima oferta!
Dom Bartolo: Não é bem uma oferta! Vou debitar esses dois cálices na sua conta!
(Gargalhadas)
Rosina: Dom Bartolo, eu ouvi um barulho no armazém e... creio que são ladrões!
Dom Bartolo: Senhores, com licença! Eu vou até o armazém e volto já!
(Batem à porta)
Rosina: Quem é?
Alma Viva: É Fígaro e seu companheiro!
Rosina: Façam o favor de entrar!
Alma Viva: Onde está dom Bartolo, o velho que não tem miolo?
Rosina: Está no armazém, procurando gatunos imaginários!
Fígaro: Por que vocês dois não aproveitam a ocasião?
Alma Viva: Não é propriamente aproveitar a ocasião: é aproveitar o padre, para me casar com Rosina
dentro da casa de dom Bartolo! Tu queres casar comigo agora, Rosina?
Rosina: Não quero! Faço questão de me casar contigo agora mesmo!
(Dom Basílio forçado por Alma Viva a escolher entre uma bala de pistola e um anel de brilhantes,
opta pelo segundo presente e, ao lado de Figaro, torna-se padrinho do casamento. Para a imensa infelicidade
de dom Bartolo, este ao regressar do armazém encontra consumada a união entre o rival e sua pupila. O
enredo chega ao fim quando Fígaro, observando o desânimo de dom Bartolo, filosofa...)
Fígaro: Quando a juventude e o amor estão de acordo para enganar um velho, tudo que este fizer para
impedir deve-se chamar "precaução inútil"!

Fim de "O Barbeiro de Niterói"


Apenas um esboço. Sobras de um projeto que acabou antes de começar.
Para frustração do parodista Noel Rosa.
É provável que poucos percebam, por trás desses rascunhos radiofônicos,
indícios de uma grande e inexplorada vocação para o teatro musical. Nas
situações cômicas, no perfil dos personagens, na construção dos diálogos, na
maneira como as canções são interpoladas à ação, mais do que indícios há a
certeza de que Noel poderia ser um excelente autor de músicas, letras e textos
para o palco. Naturalmente, se quisesse seguir por esse caminho. E se houvesse
no Brasil mais tradição no gênero. Se os ingleses criaram e ainda mantêm vivo o
seu music hall, os franceses a sua revue, os espanhóis a sua zarzuela, os
americanos a sua musical comedy e quase todos os europeus a sua operetta, nós,
além de não possuirmos uma forma própria de teatro musical, as que
importamos acontecem de modo descontínuo, muito hoje, nada amanhã. E
preferimos copiar a criar, montar espetáculos nos moldes do Moulin Rouge ou
do Lido de Paris a deixar que Luís Peixoto leve adiante seu projeto de escrever
revistas formalmente brasileiras, ou traduzir A Viúva Alegre a dar a Lamartine
Babo oportunidade de ver em cena uma das tantas operetas que tem na cabeça.
Luís Peixoto, Lamartine, Noel. Que interessante teatro musical poderíamos ter se
ao menos essas três vocações se consumassem!(20)
20. Dos três, na verdade, apenas Luís Peixoto chegou a escrever com certa assiduidade para o teatro, embora quase sempre de encomenda. Em entrevista a um dos autores, em novembro de
1972, ele falou longamente - e com entusiasmo - da necessidade de se criar um tipo de revista brasileiro, na forma e no conteúdo. Aos 83 anos, lamentava já não ter forças para dar sua contribuição.
Morreria um ano depois.

No caso de Noel, se alguém percebe mais do que meros indícios por trás
dos rascunhos radiofônicos, esse alguém é um húngaro de 38 anos, calvo, bigode
bem cuidado, pele morena, simpático na maioria das vezes, mas austero,
exigente até a rispidez, sempre que o assunto é música. Chama-se Arnold
Glückmann e está no Brasil há quinze anos, daí o português correto que fala,
carregando apenas um pouquinho nos erres brandos ou trocando, por distração, o
gênero de algumas palavras.
Pianista, compositor, regente, Glückmann é desde julho do ano passado o
diretor artístico da Rádio Club do Brasil. Nada se faz ali - nem mesmo os
programas de Almirante - sem sua aprovação. Um músico competente,
respeitado, que teve de trabalhar duro até chegar onde está. Tinha 23 anos
quando desembarcou na Praça Mauá com diplomas obtidos em conservatórios
europeus, mas de pouco valia num país de mornos interesses pela música erudita
e acirrados preconceitos contra artistas vindos de fora para competir com os da
terra. Bom pianista, começou ganhando a vida tocando onde quer que lhe
pagassem, fosse como acompanhante de cantores líricos medíocres em recitais
de caridade, fosse em casas de música. Numa dessas casas, na Avenida Rio
Branco, perto do Jornal do Brasil, seu trabalho era demonstrar aos fregueses as
qualidades de um piano fabricado no Paraná e vendido ali com exclusividade.
Mas tinha valor demais para tão pouco. Ajudado pelo maestro Francisco Braga -
o mesmo do Hino à Bandeira - foi conquistando lugar nas salas de concerto da
cidade. A 12 de agosto de 1925, já o encontrávamos no palco do Teatro
Municipal acompanhando o violinista Lambert Ribeiro num programa de peças
de Bach, Tchaikovsky, Paganini, Paderewsky, Kreisler e do próprio Lambert. E
há seis anos, mais precisamente na tarde de 24 de outubro de 1929, movia a
batuta à frente de grande orquestra, no mesmo Municipal, na execução do
Concerto em Si Bemol Maior, de Tchaikovsky. Ao piano, estreando na Capital
da República, um gaúcho de 23 anos que acabara de chegar aqui cheio de
ambições. Seu nome: Radamés Gnattali.
Foi ainda Francisco Braga quem indicou Glückmann para organizar a
primeira orquestra da Rádio Club, logo após a fundação da emissora em 1924.
Simpático na maioria das vezes, foi aí que o maestro revelou seu outro lado, a
austeridade, a rispidez, a intolerância no trato com os músicos sob seu comando.
E tem sido assim até hoje, difícil, apegado a minúcias, capaz de grandes zangas
quando ouve uma nota fora do lugar. Zangas que já fazem parte do anedotário da
PRA-3. Por exemplo, a seção que A Voz do Rádio publica sob o título Mentiras
Radiofônicas, com venenosas brincadeiras envolvendo o pessoal do meio, não
vai poupar o maestro. A seção é feita de frases deste tipo: "Carmem Miranda não
é portuguesa", "Gastão Formenti tem uma boca pequena e bem-feita quando ri",
"
Ary Barroso é gozado", "A ex-artista de rádio, Aracy Cortes, tem apenas 31
anos de idade", "Noel Rosa e Lamartine Babo são as mais bonitas figuras
masculinas do rádio". Do exigente músico, dirá:
"O maestro Glückmann é a pessoa mais cordata deste mundo."(21)
21. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.

Não é só a música erudita que interessa ao diretor artístico da Rádio Club


do Brasil. É grande sua admiração pelos nossos compositores populares, gosta
das canções que eles criam, tem mesmo contribuído para que elas ganhem
roupagem orquestral (consta que muitos dos arranjos assinados por Simon
Bountmann para a Orquestra Odeon, ouvidos nas gravações de nossos melhores
cantores, na verdade são seus). É também um apaixonado por operetas, não
tivesse nascido numa época em que Áustria e Hungria, partes de um mesmo
império, deram ao mundo os gênios de Lehár, Romberg, Millôcker, Fali,
Kálmãn, Stolz, os Strauss, o Straus com um esse só e tantos outros compositores
que se dedicaram à opereta. É idéia de Glückmann um programa semanal de
meia hora em que algumas das mais famosas "operetas vienenses" (não
necessariamente de Viena, mas identificadas com o espírito das do segundo
Strauss) são radiofonizadas a partir de traduções e condensações supervisionadas
pelo próprio maestro. Ele cuidando da parte musical, o tenor Oscar Gonçalves se
encarregando das letras, é assim que a Rádio Club tem levado ao ar O País do
Sorriso, O Vendedor de Pássaros, Eva, Mazurca Azul, Rose Marie (em cuja
canção-título Nássara foi buscar a melodia de sua Maria Rosa, marchinha de
sucesso no carnaval de 1934), A Gueixa, Amor Cigano, Sangue Vienense, A
Princesa das Czardas e algumas mais. Tudo dentro do capricho habitual do
exigente Glückmann.
Um dia, Oscar Gonçalves cai de cama. O que fazer? Interromper a
transmissão do programa até que ele fique bom? Ou arranjar um substituto?
Neste caso, quem? Alguém se lembra de Noel Rosa, das "revistas radiofônicas"
que andou fazendo para Almirante, de uma ou outra mãozinha que emprestou ao
Oscar neste mesmo programa de operetas. Graças a essa oportuna lembrança,
Noel passa a ser, enquanto Oscar Gonçalves não volta, o libretista de
Glückmann, trocando momentaneamente o samba carioca pelas valsas lá de
longe, as paródias zombeteiras por letras afogadas em romantismo. Infelizmente,
essas letras escritas para melodias de Lehár (seu velho "parceiro" em Gigolette)
e outros mestres da opereta vão-se perder entre tantos papéis velhos dos arquivos
da emissora. Mas têm força e qualidade o bastante para deixar impressionado o
difícil de agradar Arnold Glückmann. Que interessante teatro musical
poderíamos ter se ao menos a vocação de Noel Rosa se consumasse! O maestro
percebe isso. E na primeira oportunidade o convida a escreverem juntos uma
opereta original para ser representada pelo cast da Rádio Club em uma hora de
programa.
Não será uma paródia. Nem uma "opereta vienense", em cujo cardápio a
valsa é sempre prato obrigatório. Não será sequer uma opereta, embora
Glückmann e Noel a tenham classificado assim. A peça que os dois escreverão a
quatro mãos - e que terá o título de A Noiva do Condutor-está muito mais para
uma comédia musical do que para qualquer outro gênero. Mas não importa. O
que vale é o fato de ser este o melhor e mais importante de todos os trabalhos
empreendidos por Noel Rosa em seus sete meses de Rádio Club do Brasil. Um
trabalho a que ele e o maestro se entregam com empolgação. E que só será
concluído no começo de 1936.
A história e todo o texto são de Noel Rosa. Todas as letras também. Duas
das músicas, a mesma coisa. Meros aproveitamentos de melodias que ele tinha
feito já há algum tempo: Cansei de Pedir e Tipo Zero. Esta última, ainda inédita,
é um samba de ritmo movediço e letra provocante:
Você é um tipo que não tem tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece
(Tipo zero... não tem tipo!)

Quando você penetra num salão


E se mistura com a multidão
Esse seu tipo é logo observado
E admirado todo mundo fica
E o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.

De modo a adaptar os dois sambas, Noel escreve uma letra inteiramente


nova para Cansei de Pedir (rebatizando-o de Cansei de Implorar), mantém o coro
de Tipo Zero, retoca-lhe a segunda parte e acrescenta-lhe nova estrofe. No mais,
trabalha em estreita colaboração com Arnold Glückmann. Uma colaboração
mais do que bem-sucedida. Toda a música restante é do maestro, que escreve
uma partitura variada e popular (marchas, samba-canção, valsa), de harmonias
trabalhadas e linhas melódicas onde praticamente não há notas repetidas. As
letras de Noel são, do ponto de vista técnico, perfeitas, uma sílaba para cada
nota, rimas nos lugares exatos, ritmo e acentuação irretocáveis. Como se o fato
de trabalhar com um músico sério e difícil de contentar o obrigasse a esmerar-se
mais.
A Noiva do Condutor é obra pronta. Glückmann chega a escrever, com a
melodia de uma das canções, um prólogo e um finaletto, além de esboços
orquestrais que incluem até um naipe de cordas. O casamento de sua música com
a poesia de Noel, a tradição centro-européia de um somando-se à carioquice do
outro, resultou numa obra curiosa, original, bem-feita.
Nela, evidentemente, a presença de Noel é muito forte, embora meio oculta
pela aparente ingenuidade da história, de acordo com o rádio bem comportado
desses dias. Pois mesmo com esse enredo tipicamente familiar - e de tintas mais
leves do que Noel costuma usar em suas paródias não-radiofônicas - o poeta diz
o que pensa da vida e das pessoas. Salpica de ironia e crítica social a história e
seus personagens, fala da hipocrisia, do apego ao dinheiro, do amor por
interesse, da preocupação com as aparências, de um herói rebelde como ele
mesmo, capaz de trocar o anel de doutor que a família lhe destinou por um ofício
bem mais modesto.
A "opereta", por um desses motivos que ninguém explica, não irá ao ar. Por
maiores que sejam os empenhos que Arnold Glückmann fará até o fim da vida -
e por mais que Almirante guarde para sempre os originais e a vontade de vê-la
montada e gravada - a obra mais interessante de toda a carreira radiofônica de
Noel Rosa terá de esperar meio século para ser conhecida(22).
22. Arnold Glückmann morreu em São Paulo, aos 54 anos, a 13 de maio de 1951. Por muito tempo, tanto no rádio carioca como no paulista, tentou tirar a "opereta" do ineditismo. Numa
dessas tentativas, chegou a pensar em Isaura Garcia para o papel de Helena. Almirante, herdeiro dos manuscritos, foi outro que sempre achou que valia a pena radiofonizá-la ou mesmo montá-la. No
entanto, A Noiva do Condutor só viria a público em abril de 1986, gravada em disco (Estúdio Eldorado 106.86.0447) com Marília Pera, Grande Othelo e Caola nos principais papéis.
A Noiva do Condutor

1o ato Prelúdio
Helena: Meu querido! Já faz um mês que nos amamos e tu ainda não me disseste o teu nome, nem a
tua profissão!
Joaquim: Não te disse porque isso para mim não tem importância! Mas se queres saber... eu me
chamo Joaquim.
Helena-. Joaquim?! Joaquim de quê?
Joaquim: Joaquim Barbosa, brasileiro, solteiro, com 22 anos, vacinado, reservista e advogado, com
escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29º andar... Estás satisfeita agora, queridinha?
Helena-. Então tu és advogado e tens escritório na Avenida, hein? Eu bem que desconfiava, mas o
que eu mais desconfio é da sinceridade do teu amor...
Joaquim: Tu não tens razão para duvidar de mim... Fica sabendo que eu dou a vida pelo teu amor!
(canta o samba-canção Tudo Pelo Teu Amor)

Helena, linda flor de Cascadura,


Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.

Helena, minha deusa encantadora,


Tu és a minha musa inspiradora
Por ti serei mendigo e até ladrão
Eu dou a vida por teu coração.

Por que desconfiar de mim, Helena?


Por que me maltratar assim, morena?
Juro pela falsidade das mulheres
Que faço tudo aquilo que quiseres.

Helena, anjo de candura,


Helena, flor de Cascadura,
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.
Morena, flor de sonho e de ventura
Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.

Morena, minha deusa encantadora,


Tem pena desta alma sofredora
Tu és a minha única ilusão
Eu dou a vida por teu coração.

Por que desconfiar de mim, Helena?


Por que me maltratar assim, morena?
Juro que tu és a rainha das mulheres
E por teu beijo farei tudo que quiseres.

Morena, anjo de candura,


Tem pena desta desventura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor!

(Barulho de trem)
Dr. Henrique: (zangado) Minha filha! O que você faz aqui no portão com este desmiolado? Você
bem sabe que eu não quero você fora de casa depois das dez horas da noite!
Helena: Calma, papai! Não há motivo para você ficar tão zangado! Eu fui ao cinema e este rapaz veio
me acompanhar até aqui...
Dr. Henrique: Qual cinema, qual nada, minha filha! Já estou cansado de ouvir mentiras. Este rapaz é
seu namorado! Toda vizinhança já sabe disso...
Joaquim: Doutor Henrique, permita que eu me apresente...
Dr. Henrique: Eu dispenso a sua apresentação. Vá-se embora! Suma-se daqui!
Joaquim: Mas... doutor Henrique! Eu me chamo Joaquim e sou advogado...
Dr. Henrique: Já cansei de pedir para você sumir daqui...
(canta o samba Cansei de Implorar)

Já cansei de implorar
Pra você desguiar
Dizendo que a minha filha
Ainda é muito moça para namorar

Meu Deus, que teimosia!


Desista de insistir
Na delegacia
Você vai residir.

Casar sem exibir credenciais


E sem dizer o nome dos seus pais
Não pode ser conversa para mim,
Que sou doutor,
Vá-se embora, por favor

Quem casa sem ter casa não se cria


Amor sem nota não tem mais valia
Você me diz que é advogado
De valor
Mas eu também sou doutor.

Helena: Papai! É inútil você desfeitear o Joaquim! Eu gosto dele e não me casarei com outro!
Dr. Henrique: Ah! Ele se chama Joaquim? Mas... Joaquim de quê? Onde trabalha?
Joaquim: Joaquim Barbosa, advogado com escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29°
andar!
Dr. Henrique: Mas eu ignoro as suas intenções com minha filha!
Joaquim: As minhas intenções são as melhores possíveis... (canta a valsa Boas intenções)

Saiba primeiro que o senhor não tem direito


De duvidar do meu amor
Eu sou um rapaz bem-educado
Tenho dinheiro e sou advogado

Meu coração pulsando diz


Que sua filha vai comigo ser feliz
Eu sou um rapaz cuja família
Além do dote, vai me dar mobilia.

Agora, espero que o senhor


Faça o favor de não negar a bela mão
E o coração
De sua linda morena, Helena!

Já declarei minhas tenções


Foi o senhor que assim quis
Mas não terá desilusões:
Helena há de ser bem feliz.

Dr. Henrique: Como é para o bem de todos nós e... felicidade completa de minha filha Helena... eu
consinto que ela seja sua noiva! Mas olhe lá... (canta a marcha Para Bem de Todos Nós)

Foi para bem de todos nós que consenti


Que o senhor namore Helena
E entre sempre aqui

Eu não gostava do namoro no portão


Porque em frente não existe lampião
Se os vizinhos virem vocês dois a sós
Vão escrever para os jornais
Falando mal de nós...

Joaquim e Helena:
(juntando-se ao Dr. Henrique, cantam a segunda parte de Para Bem de Todos Nós)

Agora que se dane a vizinhança


Porque não temos medo de lambança
Quem quiser falar mal de nós...
Bum! Vá falar mal dos seus avós... Bum!

O inventor da intriga é o diabo


Macaco, nunca olhe pra seu rabo
E dizemos a uma só voz...
Bum! Que ninguém bota rabo em nós!

Fim do 1o ato

2o ato
(Técnica: ambiente de bonde)
Condutor (Joaquim): Olha à direita! A direita!
Dr. Henrique: Não olhe, não, minha filha! Deixe lá essa carroça!
Helena: Para que você quer ir ao escritório do Joaquim? Vai consultá-lo?
Dr. Henrique: Não vou procurá-lo como cliente! Apenas quero ver seu escritório!
Helena: Ora essa, papai! Você desconfia do Joaquim?
Joaquim: Faz favor...? A sua passagem...? Faz favor...?
Helena: Oh! Que horror...! Olhe, papai! O Joaquim...!
Dr. Henrique: O que, minha filha?
Helena: O Joaquim é condutor! Que falso! Que miserável! Bem que papai tinha razão! (canta a
marcha O Joaquim É Condutor)

Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim é condutor
Quase que a cara me cai
Estou mudando de cor.

Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim não é doutor
No bonde agora ele vai
Sempre a dizer "faz favor!"

Ele se dizia advogado


Mas não passa de um descarado
Vamos chamar o investigador
Para agarrar esse falso doutor.
Ele se dizia advogado
Dr. Henrique: (também cantando)

Ele se dizia advogado

Helena:

Mas não passa de um descarado.

Dr. Henrique: Mas não passa de um descarado.


Helena: Vamos chamar um investigador.
Dr. Henrique: Vamos chamar um investigador.
Os dois: Para agarrar esse falso doutor!
Joaquim: Quero te dizer ao menos três palavras...
Helena: Não quero mais nem te ver... Quanto mais te ouvir!
Joaquim: Helena, por favor! Deixa que te fale... nem que seja pela última vez (canta o fox-blue
Perdoa Este Pecador)

Helena, meu bem


Não tenho ninguém
Que goste de mim... de mim

Eu sou condutor
Mas não há doutor
Que te ame assim... assim

Helena, peço por favor:


Perdoa este pecador
Que tanto padeceu por ti
E volta bem humilde aqui

Se és boa, por favor, perdoa


Helena, peço por favor
Perdoa este condutor
Que é um pobre pecador
E sofre pelo teu amor
Helena,
por favor, tem pena!

Dr. Henrique: Vá para dentro, Helena!


Joaquim: Boa-noite, doutor Henrique. Como tem passado?
Dr. Henrique: Se tenho passado bem ou mal, não é da sua conta!
Joaquim: O senhor não me conhece mais?
Dr. Henrique: Não conheço, não quero conhecer e tenho raiva de quem conhece!
Joaquim: Então o senhor tem raiva de si próprio, porque o senhor está cansado de me conhecer...
Dr. Henrique: Cansado de aturar o seu cinismo! Nunca o vi mais gordo!
Joaquim: Então o senhor já se lembra que eu era magro. De fato, eu nunca estive tão gordo.
Dr. Henrique: (exaltado) Se você é gordo ou magro não me interessa!
Joaquim: O senhor me faz lembrar uma fita que vi hoje.
Dr. Henrique: Que fita?
Joaquim: A fita do Gordo e do Magro.
Dr. Henrique: Que Gordo e Magro?
Joaquim: Da fita.
Dr. Henrique: Você está me querendo fazer de palhaço?
Joaquim: Por falar em palhaço, o senhor gosta de charuto?
Dr. Henrique: Que charuto?
Joaquim: Palhaço.
Dr. Henrique: Que palhaço?
Joaquim: Charuto Palhaço(23).
23. Marca de charutos preferida dos malandros da época.

Dr. Henrique: Qual charuto, qual nada! Eu dou é um cachimbo de turco a você para você nunca mais
me amolar!
Joaquim: Não sabia que se comprava cachimbo a prestação!
Dr. Henrique: Mas... que prestação?
Joaquim: De cachimbo!
Dr. Henrique: Que cachimbo?
Joaquim: Cachimbo turco!
Dr. Henrique: Por falar em turco, o senhor é mais cacete do que o turco da prestação!
Joaquim: Que prestação?
Dr. Henrique: De bofetão.
Joaquim: Que bofetão?
Dr. Henrique: Bofetão na cara dos tipos incorrigíveis como você!
Joaquim: Pelo que vejo o senhor gosta de uma palestra.
Dr. Henrique: Isso de palestra é jogo para São Paulo...! Você é um tipo que está em toda parte sem
ser nada em parte alguma! Você é capaz de trair um amigo por causa de 200 réis e de matar uma família
inteira por causa de uma média com pão e manteiga. Você é um tipo que não existe nem nas tipografias.
Você é um tipo que não tem tipo. É um tipo desclassificado. O seu nome devia ser "Tipo Zero" (canta o
samba Tipo Zero)

Você é um tipo que não tem tipo


Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece.

Quando você penetra num salão


E se mistura com a multidão
Você se torna um tipo destacado
Desconfiado todo mundo fica
Que o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.

Eu até hoje nunca vi nenhum


Tipo vulgar tão fora do comum
Que fosse tipo tão observado
Você ficou agora convencido
Que o seu tipo já está batido
Mas o seu tipo é o tipo do tipo esgotado.

Jota Barbosa: Ó Joaquim, meu rico filho! Ando à tua procura há três dias. Soube que eras condutor!
Estás maluco?
Dr. Henrique: Quem é o senhor?
Jota Barbosa: Eu sou banqueiro e me chamo Jota Barbosa! E sou pai do Joaquim!
Helena: Jota Barbosa...? Ah! Conheço de nome! O senhor é dono de vários cinemas na Europa, não
é?
Jota Barbosa: Perfeitamente, senhorita. E agora estou para comprar uma mina de bronze na China!
Dr. Henrique: É melhor o senhor comprar o bonde do seu filho.
Helena: Então o Joaquim quis ser condutor de bonde para contrariar o senhor?
Jota Barbosa: Justamente, senhorita. Nós discutimos e ele resolveu sair de casa dizendo que não
precisava nem de mim e nem do meu dinheiro.
Dr. Henrique: Por que brigaram?
Jota Barbosa: Porque o Joaquim queria se casar com uma tal de Helena!
Helena: Tudo por minha causa, Joaquim...? Desta vez quem te pede perdão sou eu.
Joaquim: Tu não tens culpa, queridinha.
Dr. Henrique: Os senhores não desejam entrar para tomarmos chá?
Jota Barbosa: É muito incômodo! Já é muito tarde!
Helena: Aceite, senhor Barbosa! O prazer é todo nosso!
Jota Barbosa: Nunca pensei que a senhorita fosse tão gentil e... tão bonita!
Dr. Henrique: E eu nunca pensei que minha filha tivesse um sogro tão amável e... tão rico!
Helena: Tenham a bondade de entrar. Não façam cerimônia. Façam de conta que estão em casa! (os
quatro cantam a marcha Tudo Nos Une)

Todos sabem que a felicidade


Não depende da nossa vontade
Pra se realizar nosso ideal
Basta amizade e algum capital

Discutir e brigar sempre não convém


Hoje tudo nos une tão bem
Não há mais quem consiga nos separar
Nós havemos de cantar:

Quem se reúne, quem se reúne


Pra tomar um chá ou conversar
Tudo nos une!
Tudo nos une!
Não há quem nos possa separar!

Finaletto
Joaquim, Helena e Dr. Henrique:
(cantam com a mesma melodia de Tudo Pelo Teu Amor)
Joaquim:

Helena, linda flor de Cascadura


Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.

Helena:

Meu belo condutor de Cascadura


Bancaste muitas vezes cara-dura
Por ti fujo da casa do meu pai
E vou casar contigo no Uruguai
Bem que desconfiei de ti, sabido,
Mas a meu pai nunca dei ouvido.

Dr. Henrique:

Juro pelos níqueis que você matou


Que não há pai mais mole do que eu sou.

Joaquim:

Helena, anjo de candura


Helena, flor de Cascadura

Helena:

Eu fui a noiva de um condutor


Prefiro um bobo rico a um doutor

Os três:

Barbosa é um grande milionário


Já sabe que nasceu pra ser otário
Faz tudo por seu filho Joaquim
No mundo não existe sogro assim!

Nós vamos ter mobília primorosa


Oferta grandiosa do Barbosa
As jóias ele vai nos dar depois
Por isso, viva Deus e chova arroz!
Noel, Custódio Mesquita e William Faissal no tabuleiro da baiana
Capítulo 38
COMEÇO E RECOMEÇO
A mulher é o aperitivo que anima o homem a comer o prato indigesto da
vida.
Meus Pensamentos

O difícil começo com Lindaura. Principalmente para ela.


Por alguma razão deixou-se levar pela absurda idéia de que o casamento
mudaria Noel, transformando-o num homem atencioso e caseiro, e que aquelas
noites de solidão na escura metade de quarto da Rua do Acre não mais se
repetiriam. Por alguma razão, também, acredita que ele a ama. E que, com um
pouco de jeito, será possível prendê-lo para sempre. Não tardará a descobrir que
se engana. E que o Noel marido é ainda mais esquivo que o Noel amante. É
mesmo absurda a idéia de que seria possível mudá-lo.
De início Lindaura reclama de suas noites fora, de seus sumiços que duram
dias. Tem dona Martha como aliada, mas isso não basta. Noel ouve-lhe os
protestos, dá de ombros, faz que não entende. Ou então finge-se de carinhoso:
- Vem cá, Lindinha... Não fica zangada, não.
Toda vez que ele dorme fora a cena se repete, as lamúrias de Lindaura, as
desculpas de Noel. Se ela pergunta onde esteve, tem como resposta todo um
complicado relato, repleto de fantasias e peripécias que a mulher acaba aceitando
pelo simples fato de não saber como contestar. Já fez as pazes com a mãe, o
padrasto, o irmão Zeca. Mas prefere não se queixar a eles. Como se fosse
possível impedir que soubessem o quanto o marido Noel se parece com o amante
Noel.
Uma noite, 14 de agosto, quarta-feira, Lindaura e Zeca vão com Noel a
Bangu para um espetáculo no palco do Cinema Vitória. As atrações são muitas,
Luís Barbosa, Odette Amaral, Manezinho Araújo, Barbosa Júnior, Jorge Murad,
Ismênia dos Santos, o piano de Hervê Cordovil, Noel. Um bom espetáculo que
termina tarde, quase onze e meia. O último artista a se apresentar agradece os
aplausos do público, fecham-se as cortinas, as pessoas começam a sair. Lindaura
e Zeca continuam sentados em suas cadeiras, aguardando que Noel venha buscá-
los para tomarem o trem. Meia hora depois, os dois ainda estão ali e nada de
Noel. Chega o homem da limpeza.
- Desculpem, mas a sessão já acabou. É hora de varrer.
- Pode varrer. A gente fica aqui, esperando - diz Lindaura.
- Esperando quem, dona?
- Meu marido, Noel Rosa.
- O Noel? Já se foi há muito tempo, dona. Ele e os outros artistas.
Lindaura e Zeca estão sem dinheiro para o trem. Saem do cinema aflitos,
sem saberem o que fazer. Caminham pela rua deserta e escura, passam por casas
de portas e janelas fechadas, luzes apagadas, todos dormindo. Ouvem, porém,
um barulho mais adiante. À medida que se aproximam, podem identificar o som
de música, gente cantando e tocando. Vêem finalmente um bar de esquina.
Aproximam-se mais, entram. Alguns dos artistas que atuaram no Cinema Vitória
aqui estão. Encontraram-se com Sílvio Caldas, que apareceu não se sabe de
onde, e agora improvisam uma seresta.
- Sílvio... - chama Lindaura ainda aflita. - Você viu o Noel?
-Já foi há muito tempo.
Lindaura conta-lhe que Noel simplesmente os esqueceu em Bangu, sumiu
na noite, evaporou-se. Ela e o irmão estão sem dinheiro para a passagem,
precisam de ajuda para voltarem a Vila Isabel. Sílvio não se surpreende. Sabe
que Noel é mesmo desses extravios repentinos.
- Deixa que eu levo vocês pra casa - Sílvio a tranqüiliza.
Tem motivos de sobra para sentir ciúmes. E nem sempre é tão calma e
aceitativa como em Bangu, ou como nas horas em que ele tenta comprá-la com
falsos carinhos-. "Vem cá, Lindinha..." Também sabe se zangar, fazer alarde,
brigar pelo que é seu. Certa manhã de sábado, encontra Noel na feira da Praça 7,
todo cheio de dengos para os lados de uma bela morena. Enfurece-se, segura a
bolsa pela alça e tenta golpeá-lo. Noel corre. Uma cena meio dramática, meio
cômica, é presenciada pelos feirantes, Noel correndo, Lindaura atrás gritando,
rodopiando a bolsa: - Eu te pego, Noel. Eu te pego!
Um domingo, muito cedo, ela sai para a missa na Matriz de Nossa Senhora
de Lourdes. Estacionado na Visconde de Abaeté, reconhece o carro de Valuche.
Chega perto. É sacudida pela cólera ao ver lá dentro, além do próprio motorista,
Ceci e Noel. Os três dormem depois de mais uma noitada. O marido tem a
cabeça repousada no colo da outra. Lindaura começa a gritar, a bater no vidro do
carro, a fazer um escândalo de despertar quarteirão. Até Noel, de sono
invencível, acorda. E a primeira coisa que faz é dizer para Valuche: - Arranca
depressa!
O amigo obedece. O carro sai em disparada, quase mandando ao chão a
enfurecida Lindaura.
Ela passa a aparecer de surpresa nos lugares onde sabe que o marido está.
Vai em outro domingo ao Programa Casé. Um dos funcionários da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro a vê chegar e se lembra de que Noel está de amores
com uma das pequenas do coro. Sai correndo, passa a frente dela e alcança o
corredor onde Noel e a outra namoram.
- É tua mulher, Noel! Está subindo as escadas!
Noel se assusta. Aproveita que Marília Baptista passa pelo local, puxa-a
pelo braço, toma a pequena pela mão.
- Por favor, Marília, some com ela! Linda está vindo aí.
Marília e a moça entram no banheiro. Quando Linda chega, sente algo no
ar. Noel e o funcionário da emissora se entreolham. Na certa, pensa ela, andou
fazendo das suas. Os olhos dele saltam do rosto desconfiado da mulher para a
porta fechada do banheiro. Lindaura tenta abri-la: trancada. Quem está lá dentro?
- Como é que eu vou saber? - diz ele, ar inocente.
Lindaura força a porta.
- Quem está aí? - grita.
- Sou eu, Marília Baptista.
- Ah, mil desculpas, Marília... Pensei que era outra pessoa - diz Lindaura
sem jeito.
Mas a sorte de Noel não dura para sempre. Uma noite, Lindaura chega
novamente de surpresa ao estúdio da Rádio Mayrink Veiga. E encontra Noel
com uma moça sentada no colo. A emissora no ar, artistas se movimentando de
um lado para o outro, gente entrando e saindo, a maior agitação, e Noel ali,
alheio a tudo, com a moça sentada no colo. Lindaura grita:
- Sem-vergonha!
O violão de Lentine está encostado num canto, bem à mão. Lindaura não
perde tempo: segura o instrumento pelo braço e tenta golpear Noel. É segura
pelo próprio Lentine. A moça, assustada, foge. Mais tarde, a caminho de casa,
Noel faz cara de vítima:
- Você não entendeu coisa alguma, Linda. A moça é órfã, perdeu o pai há
pouco. Eu só estava tentando consolá-la.
Uma vizinha vem contar que viu Noel conversando com uma ex-namorada,
perto do Jardim Zoológico. Então Lindaura não conhece a Fina? Pois é, namoro
de muito tempo, grande paixão de Noel, dizem que a inspiradora de vários de
seus sambas: "Você é mesmo artigo que não se imita, quando a fábrica apita faz
reclame de você..." Será que ainda existe alguma coisa entre eles? É bom que
Lindaura abra os olhos.
Vizinhas alcoviteiras e intrigantes sempre existiram. Noel conhece-as bem e
chegou a fazer delas motivo de samba. Como em Disseme-Disse. E também
como em Mulher indigesta.
- Mas que mulher indigesta!
(Indigesta!)
Merece um tijolo na testa.

Esta mulher não namora


Também não deixa mais ninguém namorar
É um bom center-half pra marcar
Pois não deixa a linha chutar.

E quando se manifesta
O que merece é entrar no açoite
Ela é mais indigesta do que prato
De salada de pepino à meia-noite.

Esta mulher é ladina


Toma dinheiro, é até chantagista
Arrancou-me três dentes de platina
E foi logo vender no dentista.

Vizinhas que nem sempre dizem a verdade, como esta que ele retrata em
Mentiras de Mulher:
São mentiras de mulher,
Pode crer quem quiser...

Que eu tenho horror ao batente,


Que não sou decente,
Pode crer quem quiser.
Que eu sou fingido e malvado
E até sou casado
São mentiras de mulher.

Quando no reino da intriga


Surge uma briga
Por um motivo qualquer,
Se alguém vai pro cemitério
É porque levou a sério
As palavras da mulher.

Esta mulher jamais se cansa


De fazer trança,
Na mentira é um colosso.
Sua visita tão cacete,
Escrevi no gabinete:
"Está fechado para almoço."

Esta mulher, de armar trancinha,


Ficou magrinha,
Amarela e transparente.
Quando vai ao ponto marcado
De um encontro combinado
Dizem que ela está ausente.

Esta vizinha que alerta Lindaura pode adorar uma intriga, mas não se pode
dizer que tenha mentido: Noel e Fina realmente conversavam perto do Jardim
Zoológico. E têm conversado muito por aí, quase que como nos velhos tempos.
Pode parecer incrível, mas a ex-namorada ainda não sabe que ele se casou. Que
esteve meio doente, passando uma temporada em Belo Horizonte, isso o próprio
Noel lhe contou. Mas só. Para ela, está tudo como antes. A única diferença é que
Noel anda ocupado demais, programas de rádio, espetáculos em teatros e
cinemas, gravações.
- Onde é que mora essa tal de Fina?
A vizinha dá o endereço: Rua Moju, 5. Na noite seguinte, Noel tem um
espetáculo para fazer no Cine Meyer, com outros artistas de rádio. Desta vez
Lindaura deixa que ele vá só. Pouco depois do jantar, sai de casa, toma o bonde
no Ponto de 100 Réis, dirige-se para a Barão de Bom Retiro. Em quinze minutos
está batendo no número 5 da Rua Moju. Dona Luísa chega à janela.
- Boa-noite.
- Boa-noite.
- Por favor, não mora aí uma moça... - e Lindaura começa a descrever Fina
segundo as informações da vizinha.
- Sim, é a Fina, minha neta - diz dona Luísa.
-Pois é, eu a vi entrar aqui outro dia. Sou uma vizinha nova, estou atrás de
uma moça de minha idade para me acompanhar ao cinema. Um festival de
artistas de rádio no Cine Meyer. Será que ela gostaria de ir comigo?
Dona Luísa grita lá para dentro.
- Fina! Ó Fina, minha filha. Está aqui uma moça te procurando!
Fina estava no banho, vem enrolada na toalha. A avó explica-lhe que a nova
vizinha gostaria de ter companhia para o cinema.
- Muito prazer - balbucia.
- Prazer.
São muito comuns, nestes tempos e neste lugar, amizades que se fazem
assim, sem cerimônia, uma moça convidando para um cinema, um passeio, uma
festa de família, a nova vizinha que acaba de conhecer de vista. Um espírito de
vizinhança aproxima rapidamente as pessoas nos bairros como Vila Isabel e
Engenho Novo, a pouca intimidade ou mesmo o desconhecimento sendo
quebrado pela mais absoluta falta de protocolos. Por isso, ninguém estranha,
nem dona Luísa, nem Fina, que Lindaura apareça assim, querendo fazer
amizade, apresentando-se por conta própria.
- Artistas de rádio?
- É. Alguns dos melhores. Luís Barbosa, Noel Rosa, muitos...
- Está bem. Vou me arrumar. Amizades que se fazem sem cerimônia e com
muita rapidez. Menos de uma hora depois, Lindaura e Fina estão entrando de
braços dados no Cine Meyer, como velhas e íntimas amigas. Há muitos
motoristas de táxi na platéia, vários deles conhecidos de Noel, de modo que, ao
verem entrar e sentar-se juntas as duas mulheres, a primeira reação é de surpresa.
Depois, porém, vem o pânico. Um deles levanta-se, vai até a porta por onde
devem ingressar os artistas e fica ali parado, esperando Noel. É preciso avisá-lo.
Lá dentro, tranqüilas, Lindaura e Fina. Noel chega.
- Pelo amor de Deus, Noel, não entre neste cinema.
- O que aconteceu?
- Você nem imagina quem está com tua mulher lá dentro, - Minha mulher?
- Sim, sentadas lado a lado.
- Linda e quem?
- Dona Linda e Fina.
É evidente que Noel não entra. Pede que se avise aos outros artistas que
motivos de força maior o impediram de participar do espetáculo. E trata de ficar
no botequim da esquina até que a função termine. Enquanto isso, Lindaura e
Fina assistem ao desfile de cantores, instrumentistas, contadores de piadas, todos
os artistas do programa. Todos menos Noel. As duas, cada qual por um motivo,
ficam frustradas. Por que será que Noel não apareceu? Talvez tivesse outro
compromisso. Talvez os organizadores do espetáculo usassem seu nome para
atrair gente. Talvez.
Dez e pouco, saem as duas no meio de um público que gostou muito do que
ouviu, apesar da ausência de Noel. O mesmo motorista que o alertou aproxima-
se de Linda e Fina.
- Estou indo para Vila Isabel, dona Linda. Quer carona?
Noel vê de longe as duas entrarem no carro. Sai do botequim e vai com
cuidado até a porta do cinema. Outro motorista amigo está por ali, Noel pede-lhe
para seguir o táxi que acabou de partir, tomando o caminho da Dias da Cruz, 24
de Maio e, depois, estação do Engenho Novo até a Barão de Bom Retiro. O
segundo carro vai a uns 100 metros de distância do primeiro, Noel do lado de
fora, em pé no estribo, agarrado no suporte da capota de lona. O carro da frente
entra na Rua Moju, Noel pede que o amigo motorista freie. Observa Linda se
despedindo de Fina e voltando para o carro, que prossegue na direção de
Visconde de Santa Isabel. Noel agradece ao amigo, salta e corre para a casa de
Fina. Assim que ela atravessa o portão, ele a segura pelo braço.
- Noel! Você aqui?
- Aonde é que você foi?
- Ao cinema com uma amiga. Aliás, você também devia ter ido. Não estava
entre os artistas que iam se apresentar esta noite no Cine Meyer? Por que não
foi?
- Não pude. Quer dizer que a moça é sua amiga?
- Sim, nos conhecemos hoje. É muito boazinha. Chama-se Lindaura.
- Só isso?
Fina não entende bem a pergunta. Não faz mal. Ao se certificar de que ela
não sabe de nada, Noel desconversa. Mas terá sido mesmo uma simples
coincidência? Um desses terríveis acasos? Ou haverá algo mais por trás dessa
nova e inquietante amizade entre as duas mulheres? Noel e Fina conversam por
algum tempo no portão, até que ele se vai. Em casa, encontra Lindaura
preparando-se para dormir. É melhor não lhe perguntar nada. Aliás, os dois
preferem não tocar no assunto.
Dias depois, sabendo que Noel foi convidado para cantar numa tarde
dançante na sede do Andaraí Atlético Clube, na Praça 7, Lindaura volta à casa de
Fina. Sempre a propósito de querer companhia, convida-a para irem juntas
dançar um pouco. No domingo, às cinco da tarde. Se Fina quiser, pode dormir na
casa de Lindaura, ali pertinho.
O Andaraí é um clube decadente mas familiar. A comunidade do bairro
anda empenhada em tornar sua sobrevivência menos penosa. Tem um time de
futebol que disputa, Deus sabe como, o Campeonato Carioca. Sofrer goleadas
faz parte de sua rotina, até que uma dessas goleadas acabe funcionando como um
tiro de misericórdia e liquide de vez o pobre Andaraí. Essas tardes dançantes
visam arrecadar um dinheirinho para ajudar o clube a se manter. Apesar do
nome, o Andaraí pertence muito mais a Vila Isabel do que ao bairro vizinho.
Todo o mundo aqui é um pouco torcedor desse saco de pancadas dos campos do
Rio. Noel inclusive. Ele que nunca foi mesmo de se interessar por futebol(1).
1. Por que clube torcia Noel Rosa? Provavelmente por nenhum. Jacy Pacheco nos informa em Noel Rosa e Sua Época (página 50) que o primo "era mengo". Lindaura de Medeiros Rosa já
diz ter "a impressão" de que o marido torcia pelo América. Assim como Lamartine Babo, Sílvio Caldas, Francisco Alves e Mário Reis. Este, porém, autoridade tanto em Noel como em futebol, garantiu
aos autores: "Ele não ligava pra isso. No máximo, torcia pelo Andaraí ou um daqueles clubezinhos decadentes de Vila Isabel." Velhos amigos de bairro, entre eles Arnaldo Araújo e Affonso Guimarães, o
Affonsinho da Copa do Mundo de 1938, concordam com Mário. Noel vivia o futebol meio à distância. Interessava-se, apenas, pelo destino dos modestos clubes do lugar, o Vila, o Confiança, o Andaraí,
condenados a desaparecer. O Andaraí disputava o Campeonato Carioca de Futebol desde 1916 (ausentando-se apenas nos anos de 1925 e 1926). E quase sempre andara rondando os últimos lugares. Foi
menos mal nas disputas de 1933 a 1936, quando a cisão causada pela implantação do profissionalismo enfraqueceu a entidade a que pertencia (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, depois
Federação Metropolitana de Futebol). Com a pacificação em 1937, levaria o tiro de misericórdia. Voltando a enfrentar os chamados "grandes" do futebol da cidade, perderia 41 pontos em 44 possíveis no
Campeonato Carioca daquele ano e ainda por cima sofreria para o Vasco da Gama, no segundo turno, uma impiedosa e humilhante goleada de doze a zero. Nunca mais participou da divisão principal.
Conta-se que o negro Arubinha, famoso macumbeiro de Vila Isabel, fiel torcedor do Andaraí, tomou-se de tal ódio que enterrou um sapo no campo de São Januário como parte de um "trabalho" para que
o Vasco da Gama completasse dez anos sem ser campeão. Em 1945, ao iniciar-se o oitavo ano da "escrita" e o nono sem seu time conquistar um título, os dirigentes vascaínos mandaram revolver todo o
gramado na esperança de neutralizarem os maus fluidos do tal sapo. Deu certo: meses depois o Vasco da Gama se sagraria campeão invicto. De qualquer forma, naquele 1935 em que Fina e Linda foram
juntas ao baile na sede da Praça 7, o Andaraí ainda fazia força para sobreviver. E Noel, como tantos moradores do bairro, ajudava como podia.

A história praticamente se repete. Quando Noel chega, um de seus amigos,


postado à porta, adverte-o: há perigo lá em cima. Melhor desaparecer o mais
rápido possível. Noel está cada vez mais intrigado. Que coisa estranha essa
amizade entre Lindaura e Fina! Como terão se conhecido? Por que estão
andando sempre juntas? Enquanto não encontra as respostas, concorda com o
amigo: é melhor desaparecer. Lá pelas onze da noite vê as duas saírem juntas do
baile e se dirigirem a pé para a Theodoro da Silva. Segue-as de longe. Lindaura
convenceu Fina a dormir no chalé, as duas procuram um telefone para avisar a
dona Luísa. Noel fica apavorado quando elas entram em sua própria casa. O que
estará acontecendo?
Ao atravessar o portão do chalé, Fina também acha estranho. Não é ali a
escolinha de dona Martha? Não é esta a casa de Noel? Acha muita coincidência,
mas supõe que Lindaura simplesmente tenha alugado um cômodo da casa. O
quarto de casal para onde a leva.
- Engraçado, conheço a família que mora aqui - comenta.
- Eu também - completa a outra secamente.
Lindaura não vê limites para sua diabolice. Mal pode esperar a hora de ver
frente a frente o marido e a namorada. Que melhor peça poderia pregar a ele
senão vê-lo entrar no quarto, talvez altas horas da noite, e encontrar as duas
deitadas lado a lado em sua cama? Lindaura está pronta para armar um barulho
colossal, desses de fazer tremer Vila Isabel.
- Você pode dormir nesta cama. Dá para nós duas. Tome, mude a roupa -
diz estendendo a Fina o pijama listrado de Noel.
Percebem um ruído na porta da frente. Lindaura vai ver o que é. Passam-se
alguns segundos, Fina ouve lá de dentro um falatório, vozes de homem e mulher
se confundindo, um zunzum que lhe parece discussão. Pouco depois, silêncio.
Ela está cansada e pega no sono. No dia seguinte, na mesa do café, Lindaura
apresenta a nova amiga aos outros moradores do chalé. Dona Martha reconhece-
a pelo retrato que Noel outrora guardava com tanto carinho. Assusta-se, chama
Fina num canto e conta-lhe tudo.
- O quê? Casado?
- Sim, com Linda.
Fala-lhe da discussão que houve ontem, Noel chegando pouco depois de
meia-noite, Linda interpelando-o na sala de jantar, dizendo-lhe que ia chamar
Fina para pôr tudo em pratos limpos, ele ameaçando ir embora para sempre.
Linda ficou fora de si, trancou a porta da rua, escondeu a chave. Mas Noel pulou
o muro e sumiu noite afora. Uma cena terrível.
- Como é que eles puderam fazer isso comigo?
- Pois é, minha filha. O melhor agora é você ir pra casa, esquecer tudo,
nunca mais dar atenção ao Noel.
Um choro nervoso impede Fina de dizer mais alguma coisa. Um choro
menos de tristeza que de revolta. Foi enganada, passada para trás, tratada como
uma idiota. Jamais perdoará Lindaura, muito menos Noel. É o que jura à avó
assim que chega em casa presa do mesmo choro nervoso, da mesma indignação.
O riso de criança já não lhe enfeita o rosto bonito. "Seu riso de criança que me
enganou..." Tudo mentira. Ele sim a enganou, mentiu para ela, a fez de boba. Ele
e Lindaura.
- Ainda por cima, vovó, me fizeram dormir com o pijama dele!
À noite, sem que ninguém esperasse, Noel aparece com ar inocente para
explicar aos moradores da casa 5 da Rua Moju o que houve, justificar-se
principalmente com dona Luísa, sua eterna aliada. Admite ter-lhe faltado
coragem para dizer a verdade à Fina.
-A senhora sabe, dona Luísa, que a Fina é a única com quem me casaria.
Não, dona Luísa não sabe.
- Mas então por que se casou com a outra? Por que não foi franco?
- Eu não quis magoar a Fina.
-Já magoou, casando-se com outra. Noel explica como pode.
- Foi um casamento complicado, dona Luísa.
Insiste na história da embriaguez, a bebida fazendo com que perdesse a
noção das horas e acabasse passando a noite fora com Lindaura. Não fosse isso,
até agora seria ainda um homem solteiro. Faz questão absoluta de dizer que não
foi o primeiro. Foi, sim, o mais azarado.
- Bem, Noel... - fala dona Luísa com seu jeito simplório. - Se fosse com
minha neta, tinha que casar. Primeiro ou não. Meu irmão comissário te obrigava.
Quem mandou comer a sobremesa antes do jantar?
Fina está trancada no quarto. Prefere não ver Noel, não ouvir suas
desculpas, aquela velha e irresistível "conversa de teso". Jamais o perdoará. Ou
melhor, talvez o coração, com o tempo, perdoe. É muito difícil guardar rancor de
Noel. Mas o amor acabou para sempre. Há de fazer tudo para que ele saiba disso,
namorar muito, divertir-se, passar na sua frente de braço com outro, se possível
um amigo do peito, dos mais chegados a ele. Sim, esta será a sua vingança.
Uma semana depois Fina começa a namorar Luís Barbosa.

O difícil recomeço com Ceci. Principalmente para Noel.


Continua agindo e reagindo como se as regras do jogo fossem umas para
ele e outras para ela. Estará sempre envolvido com muitas mulheres, além da
sua, legítima, invariavelmente em casa a olhar para o relógio, impaciente com
sua demora. Mulheres do bairro, da Lapa, do meio artístico, maduras, jovens,
profissionais, ingênuas, espertas. Ora é Dulce, que vive procurando-o nas
estações de rádio (Marília Baptista chegará a conhecê-la, supondo tratar-se de
Ceci). Ora é a graciosa morena por quem Noel se enrabicha na Rua Felipe
Camarão. Mulheres, muitas mulheres. Segundo suas regras, nada mais natural.
No entanto, mortifica-se cada vez que lhe passa pela cabeça a possibilidade
de Ceci estar interessada em outro. Como no dia em que a vê cheia de sorrisos e
atenções para o lado de Wilson Baptista.
- Mas logo ele?
-Não vejo nada de errado. Wilson é meu amigo, nada mais. Meu
conterrâneo.
- Mas seria melhor se você ficasse longe dele.
Sugestão que Ceci não segue. Ainda tem, muito forte, aquele desejo de ser
tão livre quanto possível, nada de se envolver com homem que queira lhe dar
ordens, controlar sua vida. Não abre exceção nem para Noel, de quem realmente
gosta. Mas está muito nova para pensar em se prender. Prefere sair hoje com um,
amanhã com outro, aproveitar a mocidade.
Noel tem ciúmes. Inclusive de Hélio, que volta e meia lhe persegue as
namoradas. Mas nem precisa ser muito perspicaz para perceber que Ceci não é
como as outras, tem um significado muito especial para Noel. No dia em que
Hélio vai procurá-la, atrás de conversa, o irmão sabe e o adverte:
- Com esta não, Hélio.
O ar de desagrado com que diz isso é mais do que convincente.
As dançarinas de cabaré não são necessariamente prostitutas. Há uma
diferença muito grande entre elas e as mulheres que ganham a vida vendendo
amor, seja num rendezvous freqüentado por senhores da alta, seja numa dessas
pensões da Lapa, seja ainda num pardieiro do Mangue ou da Central. As que
trabalham em cabaré são pagas para serem atenciosas com os fregueses, cercá-
los de sorrisos, dançarem com eles, fazerem-nos consumir bebidas sobre as quais
têm comissão. A nada mais estão obrigadas. Se depois do expediente, lá pelas
quatro, cinco da manhã, quiserem sair com algum freguês, é lá com elas. Façam-
no por prazer ou em troca de dinheiro, o cabaré não tem nada a ver com isso.
Ceci sabe que é assim desde aquela noite de São João no festivo Apollo.
De sua parte, gosta de sair com alguns fregueses. Os mais distintos,
principalmente. Também ela tem suas regras. Só que as de Noel são diferentes,
muitas mulheres para ele, fidelidade absoluta para ela. Noel se mortifica quando
percebe que as coisas não são como quer. E que a mulher com quem acaba de
alugar um quarto não é exclusivamente sua.
- Por que você saiu com aquele sujeito, ontem à noite?
- Ele queria me levar para cear. Só isso.
- Mas você não poderia ter dito "não"?
- Seria indelicado, Noel. Era um senhor tão distinto...
- Pois olha, Ceci, acho que já é tempo de aprender a dizer "não".
Noel é mesmo ciumento. Nem sempre suas conversas com Ceci a respeito
de outros homens, Wilson Baptista ou senhores distintos, são mantidas em tom
sereno. Fica zangado quando bebe. E ela também. Suas discussões podem se
transformar em cenas violentas, ele dizendo coisas desagradáveis, ela preferindo
agir a falar. Ou seja, agredindo-o a tapas. Jamais erguerá a mão para ela, sinal de
que aquele jovem de vinte anos defensor da pancada como ingrediente do amor
("A carícia pode ser transmitida por intermédio de uma paulada ou de um beijo:
pura questão de combinação prévia") era mesmo um fingidor. É o que deixa
claro em mais um samba inspirado em Ceci, O Maior Castigo Que Eu Te Dou:
O maior castigo que eu te dou
É não te bater
Pois sei que gostas de apanhar.
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer
Do que te ver me provocar.

Não dar importância


À tua implicância
Muito pouco me custou.
Eu vou contar em versos
Os teus instintos perversos,
É esse mais um castigo que eu te dou.

A porta sem tranca


Te dá carta branca
Para ir onde eu não vou
Eu juro que desejo
Fugir do teu falso beijo,
É esse mais um castigo que eu te dou.

É o que deixa claro também em outro samba, menos conhecido, de musa


vaga, contendo uma rara exaltação à figura feminina, gravado por João Petra e
intitulado Nem Com Uma Flor:
Na mulher não se dá nem com uma flor
Seja feia ou bonita, sincera ou fingida,
Rica ou pobre ou como for...

Sem mulher, que seria dessa vida


Que foi sempre resumida
Em orgulho, instrução e amor?

Para tudo eu hei de ter certeza


Sem culpar jamais a natureza
Embora, haja o que houver,
Eu me sinto sem razão batendo na mulher

A mulher é linda harmonia


Que enche sempre a nossa melodia
De alegria ou de tristeza.
Quem bate na mulher ofende a natureza.
Noel tem um modo muito particular de agir, difícil de entender para uma
Ceci de raciocínios diretos e lógicas elementares. Quando se zanga, quando se
mostra ciumento, ofensivo ou até mesmo insuportável, é quando sabe que Ceci
nada fez de errado, como se a cena fosse uma espécie de advertência, ela que
não se atreva a passá-lo para trás. Mas quando sente que algo realmente
aconteceu, um senhor distinto impressionando Ceci, ela passando a noite fora,
saindo, divertindo-se, não arma cenas, nem reclama. Sequer faz perguntas. O
silêncio fala por ele.
Ceci também é ciumenta. Mas não sofre tanto. Se fosse se atormentar com
os seus desvios, os desaparecimentos ocasionais geralmente ligados à existência
de outra mulher, não faria mais nada.
Os dois têm um grande amigo, aliado para todas as horas: o motorista de
praça Álvaro Rodrigues Gouvêa, português de nariz adunco a quem chamam de
Papagaio. Noel conhece-o já há um ou dois anos, de suas andanças pela Lapa.
Seria dele o "bom carro" de que o poeta fala em Dama do Cabaré?
Provavelmente. Não há qualquer exagero em dizer-se que Papagaio tem
verdadeira veneração por Noel. Como amigo e compositor. Sabe todas as suas
letras de cor, sempre que pode vai aos programas de rádio e aos espetáculos
teatrais de que ele toma parte, sente-se honrado em servi-lo como chauffeur. Não
lhe cobra nada, fica até meio ofendido se Noel faz menção de pôr a mão no
bolso. Costuma sentar-se com ele a uma das mesas do Indígena ou do Café Club,
calado, ouvindo, bebendo-lhe deliciado as palavras: "Como é inteligente este
Noel!" Troca o trabalho, os fregueses, as corridas mais vantajosas pelo prazer de
ouvir o amigo cantar e tocar.
Muita gente diz ter presenciado Noel compor à mesa deste ou daquele café
um de seus sambas imortais: Conversa de Botequim. Papagaio inclusive. Noel,
com essa história de dizer "vou cantar um samba que acabo de fazer", vive
dando às pessoas a falsa impressão de que o "acabo de fazer" significa,
literalmente, que o samba foi feito há instantes. Mas é de fato possível que o
amigo motorista o tenha visto ao menos trabalhar a letra de Conversa de
Botequim, uma prodigiosa crônica dos cafés cariocas e seus folgados
freqüentadores. Um irretocável retrato da cidade e de alguns de seus tipos, o
garçom que passa o pano na mesa como se a dizer ao freguês que este já lhe
roubou tempo demais, o sujeito que gasta seu último níquel apostando no jogo
do bicho, o interesse um tanto vago pelo futebol (como o de Noel). Quem se
lembrar bem dos tempos do Carvalho, em Vila Isabel, e do papel comunitário
que o botequim então - como ainda hoje - prestava, poderá concluir que tudo
aquilo, o espírito de se tirar do botequim tudo que ele tem para dar (o cigarro
filado, o cartão, a revista, o cinzeiro, o tinteiro, o dinheiro emprestado, o
telefone, o recado, a despesa pendurada) ficou guardado no coração do poeta.
Mas não é apenas por isso que Conversa de Botequim pode se incluir
entre as mais notáveis peças de toda a história da música popular brasileira. Em
nenhuma outra é tão harmonioso o casamento da melodia com a letra, pontuação
perfeita, acentuação irrepreensível (nem todos têm muito cuidado para com esse
detalhe técnico de uma letra, a acentuação da palavra tendo de coincidir com a
acentuação musical, isto é, a sílaba mais forte correspondendo à nota sobre a
qual recai o acento melódico, do que Conversa de Botequim é exemplo
definitivo). Um samba que acaba se convertendo num desafio aos estudiosos.
Sendo feito de parceria com Vadico, a questão se põe em dois pontos: ou Vadico
fez toda a melodia e Noel criou para ela os mais exatos versos de toda a canção
brasileira, ou o próprio Noel teve alguma participação na construção da música -
escorregadia como a de um choro. O que é mais provável(2).
2. Almirante, em mais de uma oportunidade, inclusive em conversa com os autores, falou de sua convicção de que Noel Rosa sempre participava da feitura da melodia de suas obras em
parceria. Mesmo as que escreveu com Vadico. Salvo por poucas exceções (aquelas em que a música comprovadamente já existia, o que aconteceu, por exemplo, com Queixumes, de Henrique Britto, os
três sambas de parceria com Ary Barroso e Feitio de Oração), os autores compartilham da convicção de Almirante. Sobretudo no caso de Conversa de Botequim.

Seu garçom, faça o favor


De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo
E um copo d'água bem gelada.
Fecha a porta da direita
Com muito cuidado
Que não estou disposto
A ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.

Se você ficar limpando a mesa,


Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro.

Telefone ao menos uma vez


Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empreste algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure essa despesa
No cabide ali em frente.

Papagaio bem pode ter acompanhado a lenta elaboração deste primor de


samba. Lenta, sim, porque são francamente inconcebíveis as versões que correm
por aí nos dando conta de um Noel que chega ao botequim, sente baixar-lhe uma
súbita inspiração, pede lápis e papel ao garçom e, em questão de minutos,
escreve de ponta a ponta os versos para a música de Vadico.
Noel, Ceci, Papagaio. Os três fazem inúmeros programas juntos. Vão a uma
festa no grã-fino Fluminense, onde o motorista, animado com as moças da
sociedade que lá se apresentam, cantando e recitando, quer lançar sua filha como
cantora, e a moça simplesmente perde a voz, nervosa, fica muda em pleno palco,
envergonhando o pobre Papagaio (para o resto da vida, Noel gozará o amigo por
sua pretensão: "Como é, Papagaio, quando vamos lançar a tua filha como
cantora de rádio?")- Ou vão jantar em qualquer restaurante que não feche antes
das cinco da manhã. É num desses restaurantes que Ceci ouve Noel pedir ao
garçom:
- Traga-nos uns camarões.
- E como o senhor quer os camarões?
- Fritos em azeite. Muito azeite.
- No azeite?
- Sim. Na superfície.
Outra noite, Noel com um pouco mais de dinheiro no bolso, vão a um
restaurante novo, metido a elegante, no Leblon. Ceci capricha na roupa, Noel e
Papagaio de terno e gravata. No caminho, ela diz:
- Hoje eu gostaria de fazer o pedido.
-Mas é um restaurante grã-fino, Ceci. Deve ter pratos de nomes
complicados, aquela bobagem toda que você conhece.
- Não se preocupe. Deixe o pedido comigo - insiste ela, orgulhosa de si
mesma.
Lá chegando, o garçom se aproxima cheio de reverências, os três à mesa,
Noel e Papagaio calados esperando pela solicitação de Ceci.
- Queremos camarões.
- E como a senhora deseja os camarões?
-À superfície.
Sim, camarões à superfície. Um difícil recomeço com Ceci. Ciúmes,
romances paralelos, brigas, cenas, as regras do jogo de Noel sendo diferentes das
dela, mentiras, um iludindo o outro. Mas nem por isso um recomeço sem bons
momentos, festas, a filha de Papagaio perdendo a voz, os camarões à superfície,
as reuniões nos botequins, a música. E, afinal, as noites de amor.
Capítulo 39

FITA DE CINEMA

A mulher e o dinheiro são, afinal, as únicas coisas sérias desse mundo.


entrevista a O Globo

Grande culpado ou não pela transformação dos hábitos brasileiros, o


cinema falado veio para ficar. Quase cinco anos depois de sua chegada por
aqui, jornais e revistas já não fazem aquelas enquetes destinadas a saber se a
novidade vai vingar ou não, se os fãs dos velhos filmes mudos a aceitarão ou
não, se é coisa passageira ou definitiva. Tais dúvidas já não existem. Não há
uma só casa de projeção do Rio que não exiba filmes sonoros em seus
programas. A própria indústria brasileira, embora modestamente, começa a
investir na produção desses filmes. Foram apenas cinco em 1935 e já serão onze
em 1936. Quem duvida de que a novidade veio mesmo para ficar?
Hoje, as enquetes de jornais e revistas ocupam-se de outros temas, outras
novidades. Fala-se, por exemplo, de um invento no qual cientistas ingleses estão
trabalhando desde 1926. Um rádio que, além de transmitir o som, . coloca
dentro de nossas casas as imagens do programa que estiver apresentando
naquele exato momento. Não se trata de filme, mas de uma transmissão viva,
instantânea. A esta mágica - que afinal ainda não foi feita - os cientistas até
nome já deram: televisão. A Voz do Rádio faz uma enquete sobre o assunto e
ouve Noel: "- O que faria você com a televisão?
- Com a televisão eu não faria nada. Porque quando ela chegar eu não
existo. "(1)
1. A Voz do Rádio, 19 de dezembro de 1935. Foi mesmo em 1926 que o inglês J.L. Baird realizou as primeiras experiências bem-sucedidas com imagens em movimento, consideradas
precursoras da moderna televisão. Na primeira metade dos anos 30, cientistas também ingleses intensificaram suas pesquisas em busca do "assombroso aparelho". O assunto era comentado por aqui, daí a
enquete.

As opiniões de Noel Rosa sobre o cinema já não são tão enfáticas. É


verdade que houve aquela eloqüente reação à novidade nos versos do antológico
Não Tem Tradução. Mas depois disso ele tem convivido muito à vontade com a
chamada "sétima arte", inclusive compondo para ela. Não nos esqueçamos de
que o Noel garoto era freqüentador das sessões vespertinas do Smart, do Chie,
do Boulevard, cineminhas de Vila Isabel. E que ele próprio tinha o seu projetor,
aquele que Almirante não conseguiu comprar.
Sempre gostou de filmes de far-west, Tom Mix e congêneres. Uma das
músicas que deixará inédita, Fita de Cinema, é quase uma reprodução burlesca
de uma dessas aventuras que os cowboys americanos vivem na tela:
Ela era a fotogênica
Filha de um dono de venda
Ele era um vaqueiro
Sem cavalo e sem fazenda

Numa noite se encontraram


Dentro de uma padaria
E a conversa terminaram
Às onze horas do dia

Mas chegou nesse momento


O pai dessa tal mocinha
A gritar que não convinha
Casar sua filha com mau elemento

E um novo pretendente
Aparece de repente
Do cavalo dando um salto
Pegou na mocinha e gritou:
"Mãos ao alto!"

O mocinho neurastênico
Avançou no tal bandido
Levando um tiro bem no peito
E outro dentro do ouvido.

E a mocinha preparou bem ligeiro


No colar uma laçada
E rolou o despenhadeiro!

Agora, tendo a moda vingado, Noel, o compositor profissional no lugar do


garoto das matinées (e também no do nacionalista ferrenho que reagiu contra a
mania do francês e do inglês criada pelo cinema sonoro), não pode resistir ao
apelo com que a nova arte lhe acena.
Louco por cinema, mesmo, é Lamartine Babo. E não podia ser diferente.
Grande parte dos filmes que Hollywood nos manda é de musicais. Operetas
filmadas, comédias da Broadway transpostas para a tela, ou mesmo roteiros
originais que não passam de historinhas românticas intercaladas de números de
dança, canto e humor, tudo isso vai fundo na alma meio teatral de Lamartine. Ele
ainda sonha em montar uma opereta sua, um musical com melodias, letras,
textos só seus. Morrerá sem realizá-lo plenamente(2).
2. Consta que Lamartine Babo escreveu - ou pelo menos começou a escrever - algumas operetas nos moldes das de Lehár, que no entanto jamais seriam encenadas. Uma delas, Viva o Amor,
completada em 1940 ou 1941, era Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda, valsa de parceria com Francisco de Queirós Mattoso.

Com Noel, Lamartine não tem feito tantas músicas como era de supor a
partir da preocupação com a originalidade que, há seis, sete anos, parecia
aproximá-los. Mesmo assim, ainda é possível se unirem para compor com vistas
ao carnaval de 1936 uma marcha que é bem a soma de seus talentos e
temperamentos: Menina dos Meus Olhos.
Menina dos olhos castanhos,
Que reside lá na serra,
Bem juntinho de Deus...
Tu és a menina dos meus olhos,
Estou cego de saudade
Pelos olhos teus.

A serra não precisa de luar,


É iluminada pela luz do teu olhar.
Até o próprio sol resolveu não brilhar
Pra não perder (pra quem?)
pro teu olhar!

Teus olhos abusaram do clarão


Parecem fogos dominando a multidão
Um rasgo de luz teu olhar produziu
Foi o luar (de quem?)
do meu Brasil!

Quem devia gravar a marcha era a dupla Joel & Gaúcho. Acontece que na
noite anterior Joel de Almeida saiu com Russo do Pandeiro para uns goles pelos
botequins da Central. Goles de boêmios sedentos, destes que quanto mais se
sorvem, mais aumentam a sede. Quando Joel chegou em casa na Praça Saenz
Pena, já de manhã, avisou à mãe:
- Tenho uma gravação à uma da tarde. Vou tirar um cochilo, mas a senhora
não esquece de me chamar antes do meio-dia.
Mas a mãe de Joel, vendo-o dormir tão profundamente, depois de uma noite
em claro, ficou com pena de acordá-lo. E ele perdeu a hora. No estúdio da
Victor, pouco antes da uma, mister Evans, sempre impaciente, procurava pelo
parceiro de Gaúcho. Os minutos foram passando, os músicos de Pixinguinha
entraram no estúdio, Gaúcho e o pessoal do coro também. E Joel? Nada. Mister
Evans, uma hora em ponto, sentenciou: - Vamos gravar sem ele.
-Mas ensaiamos para uma dupla, mister Evans - protestou Gaúcho.
- Não interessa. Vamos gravar já! Se quiser, arranja alguém para cantar com
você. Por que não aquele moço afinadinho do coro? - e apontou para um mulato
magro, de olhos rasgados, tímido, encolhido a um canto.
- Está bem - concordou Gaúcho.
O moço afinadinho chamava-se Orlando Silva. Graças à farra do Joel, ele
acabou fazendo dupla com Gaúcho em Menina dos Meus Olhos, depois de
ensaiar às pressas, ali mesmo, no estúdio, acompanhado pelo piano de José
Maria de Abreu.
Além de cinema, Lamartine Babo gosta de cassino. Por esta época, vai a um
deles - Beira-Mar, Atlântico, Urca - todas as noites. Mas não joga. Pelo simples
fato de não ter dinheiro. Essa é uma época de dificuldades para ele. Às vezes mal
tem para comer. Nessa história de sentar-se à mesa de um café, comer e não
botar a mão no bolso, ou de ir ao cassino, acompanhar todas as rodadas da roleta,
ou todas as mãos do carteado, sem comprar uma ficha, Lamartine goza no Nice a
fama de "vagolino"(3).
3. O termo tanto podia significar "vagabundo", "folgado", como também algo parecido com o atual "bicão", como era mais o caso de Lamartine.

No dia em que o filme Picolino (Top Hat) estréia no Rio, com Fred Astaire
e Ginger Rogers formando um par inesquecível, as canções de Irving Berlin
conquistando todas as platéias, Noel vai-se inspirar numa delas, Cheek To
Cheek, para criar uma paródia em homenagem ao amigo Lamartine:
Esse Vagolino
Que atrapalha o movimento do cassino,
Com seu jogo complicado e pequenino,
Na roleta ele é um pente-fino.

Mexe nas paradas,


Tosse alto, pula e dá cotoveladas.
Quando ganha ninguém vê a sua imagem.
Quando perde morde a gente na passagem.

Grita pra qualquer freguês:


"Dá vermelho vinte e três!"
Pede pra jogar no dez
Fichinha de mil réis.

Perguntou ao pagador
Por que é que o diretor
Não põe em circulação
Fichinhas de tostão.

Ele vai às vezes ao Paraguai


Morder o pai
E o velho cai... Ai!

Vagolino, filho ingrato,


Diz que o cobre é pra comprar chapéu
E sapato.
Mas acaba sem sapato e sem chapéu,
Na esperança de comprar um arranha-céu.

Uma paródia que é tão bem recebida que chega a ser publicada num jornal
de modinhas(4), só que com o título de Virgulino do Cassino, o Vagolino da
letra cedendo lugar a um intrometido Virgulino. Engano ou o próprio Noel fez a
mudança?
4. Jornal de Modinhas, 24 de outubro de 1936.

O primeiro filme a utilizar composições de Noel Rosa é Alô, Alô, Carnaval,


que vai estrear no Alhambra a 20 de janeiro de 1936. É uma revista carnavalesca
nos moldes de Alô, Alô, Brasil, realizada no ano passado pelo mesmo Wallace
Downey, produtor americano que não podendo fazer musicais em seu país veio
fazê-los no nosso. O pioneiro Coisas Nossas, aliás, já era obra sua, levada a
efeito muito precariamente em 1931.
O novo filme tem direção de Ademar Gonzaga. Para ele Noel não chega a
fazer propriamente música. Limita-se a escrever letra para uma marcha de
Hervê, Não Resta a Menor Dúvida, e a sugerir que sejam aproveitados, com os
mesmos intérpretes que os levaram ao disco, seus dois maiores trunfos para o
próximo carnaval: Pierrot Apaixonado e Palpite Infeliz. João de Barro e Alberto
Ribeiro, roteiristas aos quais coube também a seleção dos números musicais,
concordam.
A marcha de Noel e Hervê é cantada pelos rapazes do Bando da Lua com
aquela sua dureza habitual (a mesma dureza com que eles, daqui a alguns anos,
como acompanhantes de Carmem Miranda, levarão o nosso samba para os
Estados Unidos, tirando-lhe o melhor condimento e tornando-o assimilável ao
paladar americano). Melhor interpretada, é possível que Não Resta a Menor
Dúvida tivesse mais sorte, no filme e no carnaval:
Você é uma pequena que não resta a menor dúvida
Oh dúvida!
E eu por sua causa já não pago a minha divida
Oh dívida!
Estou só esperando que você me leve o último Tostão
Pra me dar seu coração.

Para possuir seu coração


Darei até meu último tostão.
Pelo seu amor
Serei aviador,
Irei até lamber sabão.

Se acaso você não quiser


Fazer por mim aquilo que puder
Eu irei então
Trocar meu coração
Por outro coração qualquer.

Quem quiser falar do seu olhar


Acaba sem saber o que falar.
Todo o mundo crê
Que os olhos de você
Ainda vão me fuzilar.

Pierrot Apaixonado, outra marcha, será a única colaboração entre Noel


Rosa e Heitor dos Prazeres. Por quê? Não é curioso que dois sambistas com tudo
para produzirem muito juntos só se tenham unido numa única música e assim
mesmo uma marcha? A estranheza procede. Afinal, Heitor é aquele tipo de
indivíduo que fascina Noel. Uma biografia de fazer inveja aos mais respeitados
malandros da cidade, a infância pobre nos morros do Centro, a prisão por
vadiagem aos treze anos, a pena de dois meses cumprida na Ilha Grande, a
adolescência passada na Praça 11, saltando das casas das "tias" baianas para os
quartinhos apertados das mulheres do Mangue. Conheceu bem o samba deste
meio, garante que dois de seus melhores trabalhos em música foram roubados
por Sinhô (Gosto Que Me Enrosco e Ora Vejam Só) e depois dessa primeira fase
passou-se para as bandas do Estácio. Chega a ser conhecido por muita gente
como Lino do Estácio. Muito feio, careca, vesgo, mas sempre bem vestido,
colete, gravata borboleta. É um tipo envolvente, mulheres e filhos por toda parte.
Pelo menos, é a lenda que se formou em torno dele.
Tem jeito para o samba e para a pintura. O que talvez explique o fato de
não ser mais vezes parceiro de Noel: quando este começou a se dedicar
profissionalmente à música popular, Heitor fazia suas primeiras experiências
com as tintas, quem sabe já pensando em trocar o samba pela pintura(5).
5. "Foi em 1937 que começou a fazer uns quadrinhos para enfeitar a parede" - diz Rubem Braga em seu perfil de Heitor dos Prazeres, um dos capítulos de Três Primitivos, segunda edição
(página 103). Mas muitos dos que conheceram o sambista-pintor, entre os quais Cartola, informam que bem antes ele já fazia os seus quadrinhos.

Um dia, quando morava no Buraco Quente, recebeu a visita do amigo


Cartola que o surpreendeu já nos últimos retoques de uma tela.
- Quadrinho feio este seu, Lino - disse Cartola com franqueza.
Heitor continuou misturando suas tintas, passando o pincel na tela, calado.
Cartola afastou-se um pouco, pôs a mão no queixo e perguntou :
- Isso é mesmo pra valer?
- Sim, Cartola. Quero ser pintor.
- Escuta um conselho de amigo, Lino. Deixa esse negócio de pintura pra lá
e fica com o samba onde tu é bom.
Heitor não seguiu o conselho e continua cada vez mais voltado para suas
telas - e cada vez mais afastado do samba. É amigo de Noel, já o livrou de
algumas aperturas, o garoto de Vila Isabel indo bater em sua casa para pedir uma
navalha emprestada. Explicou que era para enfrentar um valente que, vendo-o
acompanhado de uma mulher no botequim da esquina, passou a provocá-lo.
Heitor botou em cima de Noel os olhos estrábicos e deve ter pensado: "Que
diabos pode fazer um menino desse com uma navalha?" Mudou de roupa, foi até
o botequim e resolveu tudo em cinco minutos. Sem navalha, só com conversa. O
outro se foi, Noel ficou. Com a mulher e uma dívida de gratidão para com
Heitor(6).
6. Esta passagem foi contada por Heitor dos Prazeres a Jacy Pacheco, que a incluiu em O Cantor da Vila (páginas 136-138).

A marcha que compuseram juntos é excelente. Tem um contagiante refrão e


uma letra em que Noel, a exemplo do que já fez com outros personagens Julieta,
por exemplo), reescreve a história de Pierrot, Colombina e Arlequim, num tom
carnavalescamente debochado: (Pierrô Apaixonado)
Um pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma colombina
Acabou chorando,
Acabou chorando.

A colombina entrou no botequim,


Bebeu... bebeu... saiu assim... assim...
Dizendo: "Pierrô cacete
Vai tomar sorvete
Com o Arlequim!"

Um grande amor tem sempre um triste fim,


Com o Pierrô aconteceu assim:
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute
Com amendoim!

Joel & Gaúcho foram os intérpretes da marcha, em disco e no filme.


Com a cena em que Aracy de Almeida deveria apresentar Palpite Infeliz
acontece um imprevisto. Ao chegar ao pequeno estúdio de Ademar Gonzaga, em
São Cristóvão, a cantora fica sabendo que Alberto Ribeiro e João de Barro
aceitaram outra sugestão de Noel: a cena tentaria reproduzir um modesto quintal
carioca, Aracy humildemente vestida, lavando e estendendo roupa enquanto
cantasse o samba. Muito influenciada por Francisco Alves, que se acha no
estúdio assistindo à filmagem, Aracy protesta: todo o mundo bem vestido no
filme, por que deveria aparecer enfiada nos trapos de uma lavadeira? E vai-se
embora, aparentemente zangada, enquanto Noel finca pé: a cena será como
estava combinado.
Tenta-se ainda entregar a parte a uma das Irmãs Pagas, Rosina, muito
bonita mas desconfortável numa letra que parece sob medida para Aracy:
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis...

A conclusão é que Palpite Infeliz fica fora do filme. Para desagrado do


produtor, atento ao sucesso que o samba vem fazendo desde o ano passado, e
para irritação de Noel, que vai declarar ao Correio da Noite que não mais dará
músicas para Aracy de Almeida gravar. E pensar que ele tinha deixado de
entregar Palpite Infeliz a Almirante(7).
7. De um recorte do Correio da Noite, sem data, colado por Noel em seu álbum.

Mas, felizmente, a zanga de Noel não vai durar. E Aracy continuará


cantando seus sambas.
Ceci talvez seja a primeira a perceber. Não que Noel tenha sido algum dia
um homem elegante, aprumado, zeloso da aparência pessoal. Mas nunca foi tão
descuidado como agora. De certo modo, quem o conhece de perto, tão
intimamente quanto ele o permite, nota que o descuido não é apenas com a
aparência. A não ser pelo trabalho, compondo muito, jamais recusando propostas
para cantar nesta ou naquela emissora de rádio, há em tudo o mais um começo
de esmorecimento, de entrega, que vai ganhar corpo ao longo de todo o 1936 até
transformá-lo num homem desinteressado de tudo ou quase tudo. Este processo
de desintegração - lento, imperceptível à maioria das pessoas, muitas vezes
porque o próprio Noel, inteligente, vivo, espirituoso, saberá dissimular - só no
final estará claramente posto em sua poesia. Em suas conversas, nunca.
O que Ceci nota primeiro é o relaxamento com a roupa, golas e punhos das
camisas poídos, o terno amarrotado, sapatos por engraxar. É verdade que o fato
de ter duas casas acaba fazendo com que não tenha nenhuma, passando dias sem
ir ao chalé, dias sem vir ao quarto de sobrado que montou com Ceci. Quem
cuida de suas roupas? E de sua alimentação? O que importa nisso tudo é que
Noel não cuida de si mesmo.
Quando a perspectiva do tempo permitir aos que o conhecem agora
compreendê-lo melhor neste ano-chave de sua vida, ainda pairarão dúvidas sobre
a que atribuir esse processo de dissolvência, se à morte do pai, incutindo-lhe no
espírito a desconfiança, depois certeza, de que a vida é algo estúpido e vão, ou se
à doença, que muito em breve vai minar-lhe o fôlego, a tuberculose apenas
contida mas não curada naqueles meses em Belo Horizonte. Como o amigo
Edgar o alertara: - O seu melhor médico é você mesmo. Se não se cuidar...
Jocelyn, o da Encarnação, é outro que o alerta. Mais que isso, repreende-o
com a severidade daquele irmão mais velho dos tempos de criança:
- Você precisa levar a vida mais a sério, Noel.
Um conselho inútil.
- Olha, Jocelyn, pode ser que eu não consiga, mas vou tentar.
- O quê?
- Nunca levar a vida a sério.
- Mas por quê?
- Primeiro, porque ela não é séria. Depois, porque é curta demais.
Jocelyn fica meio preocupado com as palavras de Noel. Ralha com ele,
despeja-lhe em cima longa ladainha, indigesto sermão. Mas Noel inventa uma
desculpa, vai em frente, deixa-o falando sozinho. Nos dias que se seguem
Jocelyn pensa muito no amigo. Será que se zangou? Não terá exagerado o carão?
De noite, ao chegar em casa, alguém lhe diz:
- O Noel esteve aqui. Deixou um bilhete. No papel dobrado em quatro não
está propriamente um bilhete, mas versos escritos com aquela caligrafia
inconfundível:
Jocelyn, Jocelyn,
Jocelyn da Encarnação,
Severo amigo,
Mais que amigo, irmão.

De qualquer modo, para Noel a vida não é mesmo séria. Ou é tão séria
quanto uma fita de cinema, divertida mas quimérica. Ou como o dinheiro e a
mulher, dois dos principais motes de sua poesia, valores pelos quais tanto se
briga e que mais cedo ou mais tarde acabam parando em mãos alheias.
Difícil precisar a causa maior desse pessimismo, se tantas batalhas travadas
e perdidas pelo pai, para acabar daquela forma, atado aos pés de um leito de
hospício, ou se aos pulmões escangalhados. Mas por que não a soma de tudo isso
ajudando a emergir o temperamento, senão autodestrutivo, ao menos de
desapego à vida de um Noel que ninguém conhecerá jamais?
Nem mesmo Ceci. Ele, sim, é que a conhece como ninguém.
- Sabe como é que eu sei que você está mentindo?
- Não.
- Pelos olhos.
O princípio de esmorecimento não chega para arrefecer-lhe os ciúmes. Ceci
tem mudado de emprego com freqüência, Apollo, Roxy, Assyrius, já pensando
em aceitar proposta para ganhar um pouco mais no Royal Pigalle. E quando
Noel não está por perto, muda também de companhia. Continuam brigando
muito, vivendo cenas, trocando insultos. Ele pode até segurá-la pelos braços,
dizer-lhe malquerências. Mas já não é tão convincente quanto antes, os
xingamentos bem menos ofensivos. Ceci, nos momentos de paz, procura cuidar
dele. Repreende-o : - Você é um artista de rádio, Noel. Tem de se vestir bem, se
preocupar com a aparência. Olha essas unhas.
Leva-o à manicure. Noel senta-se diante da moça e estende-lhe as mãos
magras. As unhas estão realmente maltratadas, grandes, sujas. A moça pede-lhe
que mergulhe os dedos numa pequena vasilha de água morna. Ceci está do lado,
observando. Puxa assunto com Noel, nota que ele acompanha com atenção os
movimentos da moça, agora cortando-lhe as cutículas, bem rentes, em alguns
momentos chegando a feri-lo. Noel, num impulso, levanta-se: - Moça, Ceci...
Desculpem-me, só agora me lembrei de que tenho um compromisso inadiável...
É ali pertinho. Esperem que não demoro.
Nunca mais fará as unhas. Nem tampouco cuidará dos dentes, a ida ao
dentista sendo um suplício maior para ele do que para qualquer outro, obturações
e curativos tornando-se mais dolorosos pela dificuldade em abrir a boca. O
defeito agravou-se com o tempo.
É muito amigo de Joaquim Bruno de Moraes, um dentista que mora e tem
consultório quase em frente ao chalé. Sempre que se vêem, passam bom tempo
conversando. Sobre política, espiritismo e samba. Seu Bruno (prefere que o
chamem assim do que por "doutor", já que é apenas prático licenciado) tem uns
vinte anos mais que Noel. Costuma contar-lhe passagens de sua atuação política,
tempos atrás, em Botucatu, Sorocaba, Votorantim e outros pontos do interior
paulista. Liderou greves de operários, andou fugindo da polícia. Foi para não ser
preso que veio parar no Rio, na tranqüila Vila Isabel. Fala com emoção, também,
de velhos companheiros de causa, anarquistas italianos que chegaram ao Brasil
no começo do século e que, consta, as forças de repressão do Marechal Hermes
fizeram sumir como fumaça. O dentista era muito jovem naquela época, mas já
simpatizava com causas em defesa de uma sociedade mais justa, ricos menos
ricos, pobres menos pobres, ou mesmo sem pobres nem ricos. Hoje, seu Bruno é
um comunista animado pela esperança de que o Brasil ainda possa fazer uma
revolução como a da Rússia em 1917. Acredita nisso. Mesmo que, no ano
passado, uma tentativa nesse sentido tenha sido esmagada rapidamente. O que
não o desanimou: continua distribuindo folhetos conclamando os trabalhadores
de todo o mundo a se unirem. Folhetos que o prróprio Noel passa adiante.
O espiritismo é um dos assuntos que mais interessam a seu Bruno. Neste
país de tantas bizarrias, ele é um dos muitos comunistas que, materialistas até a
raiz dos cabelos, acreditam na reencarnação, Karl Marx e Allan Kardec
coexistindo pacificamente. Quanto ao samba, o dentista é apenas um ouvinte,
apreciador da arte do amigo e vizinho Noel Rosa.
Joaquim Bruno de Moraes sempre recomendou a este cliente especial que
cuidasse dos dentes. Os posteriores estão muito estragados, alguns
possivelmente não têm mais jeito. O fato de não doerem não quer dizer nada.
Além de tudo, não adianta Noel beber cerveja ou conhaque como recurso para
disfarçar o mau hálito. É pior, as pessoas o sentem sem que precise chegar muito
perto. O que Noel já havia notado (daí o hábito de usar a mão em concha sobre a
boca quando fala com os outros). Ouve os conselhos do dentista e, em troca,
mente: - Qualquer dia desses venho aqui começar um tratamento.
Também nas questões de dinheiro Noel Rosa é homem difícil de se
compreender. Detesta emprestar, não se importa em dar. Se um amigo ou mesmo
um estranho o aborda num botequim, à porta de uma estação de rádio, na rua,
mordendo-o sem cerimônia - "Tem algum aí, Noel? Quando puder eu te pago..."
- ele tira do bolso o que lhe sobra, põe na mão do outro e esquece o assunto.
Nunca cobrará a ninguém, como também não gosta de ser cobrado. Na verdade,
tem pavor a dívidas, bastando-lhe as que conheceu na infância, os prestamistas
asfixiando toda a família, ou aquelas outras do negócio com Francisco Alves a
propósito do Pavão.
Mas este mesmo Noel, desprendido, indiferente ao "vil metal", pode
surpreender as pessoas. Por exemplo, entregando ao Papagaio um maço de notas
para que ele mande reformar seu carro de praça:
- É o seu ganha-pão. Cuide bem dele.
E negando a Ceci 100 mil réis para que ela compre um soirée. Em vez disso
fará novo samba de parceria com Vadico, dando-lhe por título exatamente a
quantia que negou à amante: (Cem Mil Réis)
Você me pediu cem mil-réis
Pra comprar um soirée
E um tamborim
O organdi anda barato pra cachorro
E um gato lá no morro
Não é tão caro assim.

Não custa nada


Preencher formalidade
Tamborim pra batucada,
Soirée pra sociedade.

Sou bem sensato,


Seu pedido atendi:
Já tenho a pele do gato,
Falta o metro de organdi.

Sei que você


Num dia faz um tamborim,
Mas ninguém faz um soirée
Com meio metro de cetim.

De soirée
Você num baile se destaca,
Mas não quero mais você
Porque não sei vestir casaca.

Pode também pagar despesas altas numa mesa composta de prontos,


desempregados, vadios, boêmios, como costuma acontecer nas noites da Lapa, e
não dar um tostão a Lindaura, tão precisada. Inventa desculpas, faz promessas,
desconversa, mas raramente ajuda a mulher. Se ela lhe tira dinheiro da carteira,
aproveitando-lhe o sono pesado, não se perturba: passa a escondê-lo na meia.
Um dia, ao visitar Mangione, editor de suas músicas, recebe uma bolada de
atrasados, o segundo semestre de 1935 tendo sido muito proveitoso. Manda
fazer, de uma só vez, quatro ternos. Ceci não vive reclamando? Pois então.
Martha vê os Araújos chegarem com as roupas prontas, vai falar com o filho.
Encontra-o bem-humorado, aparentemente acessível: - Quatro ternos, Noel!
Quatro ternos e nada para Lindaura... ?
- Ora, mamãe, a Linda nunca usou terno.
Muitas vezes a mulher vai esperá-lo à saída de um programa de rádio para
pedir-lhe dinheiro. Martha, sozinha, não suporta as despesas, viúva, Hélio
estudando, a escolinha rendendo pouco. Noel sempre dá um jeito de mudar de
assunto. A própria Martha recorre aos amigos, aos diretores de broadeast. Não
podiam falar com o Noel? O máximo que Casé faz, depois de insistentes apelos,
é pagar-lhe diretamente do cachê de Noel. Isto é, tirar um pouco por conta.
- Mas será que ele não vai se zangar?
Ele nem liga, Casé e outros programadores, sensíveis às dificuldades da
família, desviando por conta própria, mas para o devido lugar, parte dos ganhos
de Noel. Lindaura reclama muito. Um dia, diz:
- Vou trabalhar. Não posso viver com o que você me dá.
Noel nunca quis que a mulher trabalhasse. Por que, jamais se saberá. Pouco
ligando para ela, passando a maior parte do tempo fora, sequer lhe dando o
suficiente para o sustento, a propósito de que proibi-la de arranjar emprego?
Também isso ele transforma em samba, a única música inspirada em Lindaura,
cujo título, Você Vai Se Quiser, é de uma liberalidade apenas aparente:
Você vai se quiser...
Você vai se quiser...
Pois a mulher
Não se deve obrigar a trabalhar,
Mas não vá dizer depois
Que você não tem vestido,
Que o jantar não dá pra dois.

Todo cargo masculino


Desde o grande ao pequenino
Hoje em dia é pra mulher.
E por causa dos palhaços
Ela esquece que tem braços
Nem cozinhar ela quer.

Os direitos são iguais,


Mas até nos tribunais
A mulher faz o que quer.
Cada qual que cave o seu
Pois o homem já nasceu
Dando a costela à mulher.

Este é mesmo um ano-chave em sua vida. Trabalho, muito trabalho. E


algumas perdas. Principalmente duas, a do pai e uma outra que se dá no dia do
seu vigésimo quinto aniversário: 11 de dezembro de 1935. O amigo e parceiro
Henrique Britto, gênio do violão, mãos mágicas, o melhor instrumentista dos
tangarás (e um dos mais brilhantes que o Brasil já teve), o Henrique Britto de
espírito inquieto, sempre com pressa, morre de septicemia aos 27 anos. Amigo e
parceiro. Em Queixumes e nesta beleza de miniatura que é Queimei Teu
Retrato, um samba com sabor de Fina, a do retratinho e do riso de criança. De
certa maneira, outra perda:
Indiferente hoje em dia,
Eu sou feliz por ter certeza
Que transformei tua tristeza
Na minha própria alegria.

Findando nossa esperança,


Realizei minha vingança:
Em frente ao teu portão
Queimei teu retrato, queimando meu coração.

Um ano-chave. O trabalho, as perdas, os primeiros sintomas de um íntimo


processo de entrega, de desinteresse pela vida. Brigas com Ceci, problemas em
casa. Descuido com a aparência, descuido com a saúde. A mãe se queixa, a
mulher também. E ainda por cima, num fim de tarde, Lindaura se chega e diz:
- Noel, estou esperando um filho.
Capítulo 40

NOEL VERSUS NOEL

Quem não bebe te condena


Quem bebe zomba de ti
É Bom Parar

Noel Rosa é de fato o grande nome do carnaval de 1936. Em qualidade


como em quantidade, sua presença será de tal ordem que pouco sobrará para os
outros compositores. Os foliões cantarão com muito entusiasmo a curiosa
Marchinha do Grande Galo, de Lamartine Babo, ou a singela A-M-E-I, de
Nássara e Frazão: Aprendi o ABC do meu amor
Na cartilha azul do teu olhar...
Mas serão mesmo de Noel os melhores sambas e marchas que se ouvirão
nas ruas e nos bailes. Alguns vêm de anos anteriores, feitos não propriamente
para carnaval. Mas alcançaram tanta popularidade que acabaram atravessando o
ano e chegando até esses dias quentes de fevereiro. É o caso, principalmente, de
Palpite Infeliz. Mas nove outras composições de Noel constam dos suplementos
carnavalescos das gravadoras: Amor de Parceria, Pierrot Apaixonado, O Que É
Que Você Fazia?, Menina Dos Meus Olhos, Não Resta a Menor Dúvida, Este
Meio Não Serve, Linda Pequena (com um atraso de um ano em relação à
gravação original de João Petra de Barros na Odeon), Que Baixo e É Bom Parar.
Sobre as duas últimas, algumas palavras.
Noel e Nássara fazem a marchinha Que Baixo para aproveitar, com o
humor que os caracteriza, uma expressão da moda(1): 1. A expressão "que baixo!", empregada interjetivamente no
sentido de "que rata!", "que mancada!", estava em moda na época.

Você cozinha, racha lenha e eu não racho


Que baixo! Que baixo!
Namora pulga sem saber qual é o macho
Que baixo! Que baixo!

Você me diz que faz a gente de capacho,


Mas eu não acho, mas eu não acho.
Planta dinheiro pra nascer dinheiro em cacho
Que grande baixo!
Que grande baixo!
Você me diz que toca bem o contrabaixo,
Mas eu não acho, mas eu não acho.
Você afina, parte a corda e eu me agacho
Que grande baixo!
Que grande baixo!

Aracy de Almeida ficou de gravá-la na Victor, do outro lado de Palpite


Infeliz. Contudo, ao ouvi-la de Noel, implica com dois versos: - Não posso
gravar um negócio desses, Noel. Onde já se viu namorar pulga sem saber qual é
o macho!
- Pois a letra é esta, Aracy.
A cantora embirra. Não cantará a marcha. Ou Noel põe a pulga de lado, ou
ela procura outra música para completar o disco.
-Nesse caso - ameaça ele - você também não grava Palpite Infeliz.
E Aracy, que já não se perdoa por ter deixado escapar a oportunidade de
cantar o samba em Alô, Alô, Carnaval, nem quer correr o risco de perder a
segunda chance. Volta atrás, com pulga e tudo(2).
2. A história da gravação de Que Baixo! foi contada pelo próprio Noel Rosa em entrevista ao Diário Carioca de 4 de janeiro de 1936.

Menos simples - condenada mesmo a ficar como uma das mais


controvertidas questões de autoria da música popular brasileira - é a história de É
Bom Parar, o maior sucesso deste carnaval de 1936, fadado inclusive a ganhar o
primeiro prêmio para sambas do concurso oficial da Prefeitura do Distrito
Federal. Tudo começou há poucas semanas, quando Francisco Alves, Nonô, o
lutador de boxe Rubens Soares e alguns amigos deste conversavam a uma das
mesas do Café Trianon. A certa altura, os amigos de Rubens começaram a cantar
um estribilho: Por que bebes tanto assim, rapaz?
Chega, já é demais!
Se é por causa de mulher, é bom parar
Porque nenhuma delas sabe amar.
Francisco Alves, com toda a razão, exultou. Com sua invejável experiência
- e mais ainda com aquele infalível faro para o sucesso - viu logo que aqueles
rapazes tinham nas mãos um bilhete premiado.
- Qual de vocês fez este samba? Rubens, um tanto timidamente, respondeu:
- Eu. Mas por enquanto é só um estribilho.
- Você também compõe?- surpreendeu-se o cantor.
- De vez em quando faço umas bobagens que ponho logo de lado.
Francisco Alves, que sempre gostou de boxe, conhecia Rubens do ring do
Estádio Brasil, na Feira de Amostras, onde costumava vê-lo lutar. Por sinal,
muito bem, vencedor de vários títulos cariocas e brasileiros dos pesos médios.
Fizeram camaradagem. Passaram a se encontrar no Trianon, onde as meninas
dos dancings próximos costumam aparecer para uma conversa fiada antes do
trabalho. Ali, com vários amigos comuns, falam um pouco de tudo, boxe,
corridas de cavalos, mulheres, sambas. Mas Rubens, muito modesto, nunca se
atreveu a dizer a Chico que tinha pretensões a compositor. Que não o
confundissem com Kid Pepe, boxeur que usa os punhos para arrancar parceria de
gente mais fraca que ele. Rubens também é boxeur, mas jamais faria uma coisa
dessas. Nem precisa. Tem jeito para o samba, o que não é o caso de Kid Pepe.
Francisco Alves estava de fato empolgado.
-Me repete esse estribilho, Rubens. E com essa mesma bossa que os rapazes
botaram nele. Quero aprender do jeito que você fez.
Rubens repetiu-o. Uma, duas, várias vezes, até Francisco Alves decorar a
letra e assimilar a tal bossa que o estribilho tem. O cantor decidiu gravá-lo para o
carnaval. Embora sabendo que o tempo é pouco, a primeira semana de janeiro já
vencida, o carnaval marcado para 23, 24 e 25 de fevereiro. No dia seguinte, entra
meio afobado no Nice. Vê Jorge Faraj e Noel juntos, aproxima-se da mesa,
senta-se sem pedir licença.
-Noel, Noel, era você mesmo que eu estava procurando. Tenho aqui uma
primeira parte que vai desbancar todo o mundo nesse carnaval. Mas preciso da
segunda com urgência. Me ajuda?
O caradurismo de Francisco Alves já não surpreende ninguém,
especialmente Noel Rosa. Estão há mais de um ano de relações pode-se dizer
estremecidas. Depois de Retiro da Saudade - um apelo de Noel a Chico em nome
do amigo comum Antônio Nássara - nunca mais o cantor gravou nada do antigo
"parceiro". Mais de um ano, Francisco Alves de um lado, Noel do outro, os dois
se encontrando aqui e ali, trocando cumprimentos frios, a sociedade
aparentemente desfeita para sempre. E então Francisco Alves entra pela porta do
Nice, faz como se nada tivesse acontecido, age exatamente como nos velhos
tempos. Noel, porém, recebe-o com indiferença: - Não estou interessado.
- Que é isso, menino? É um estribilho de arromba.
- Desculpe, Chico, mas já disse que não me interessa.
- Mas eu te pago, Noel. Te pago bem. Noel parece irredutível:
- Que é que há, menino? Recusando dinheiro? Desde quando?
Jorge Faraj, calado, acompanha o diálogo até certo ponto constrangedor, o
grande Francisco Alves quase súplice, Noel seco, distante. Até que o compositor
resolve encerrar o assunto tocando no ponto fraco do cantor: o dinheiro. E faz-
lhe uma proposta mais alta do que o que o Chico está acostumado a pagar: - Está
bem. Eu te vendo a segunda parte: duzentos mil réis!
Francisco Alves leva um susto. Mas não diz nada, olha Noel bem nos olhos,
baixa o tom de voz e concorda: - Está certo, menino. Vou-lhe cantar a primeira
parte.
Em vez de uma, Noel entrega duas segundas partes a Chico:(3)
3. Este episódio à mesa do Nice era conhecido de grande parte do meio musical, daquela época e mesmo de depois. Presenciado por Jorge Faraj, foi por este contado a Bruno Ferreira Gomes,
que o incluiu em seu livro Wilson Baptista e Sua Época (paginas 90-92).

Se tu hoje estás sofrendo


É porque Deus assim quer
E quanto mais vais bebendo
Mais lembras desta mulher.

Não crês, conforme suponho,


Nestes versos de canção:
"Mais cresce a mulher no sonho,
Na taça e no coração."

Sei que tens em tua vida


Um enorme sofrimento
Mas não penses que a bebida
Seja um medicamento.

De ti não terei mais pena


É bom parar por aí
Quem não bebe te condena
Quem bebe zomba de ti.

Segundas magistrais, com a marca registrada de Noel, amor, humor, ironia,


irreverência. É antológica a citação aos versos de Orestes Barbosa para a música
que o próprio Francisco Alves assina em A Mulher Que Ficou na Taça. Gravado
a menos de um mês do carnaval, o samba, mesmo com um estribilho fortíssimo e
duas excelentes segundas partes, tinha tudo para não acontecer. O tempo era
muito pouco para divulgá-lo. Mas Francisco Alves não desanimou. Chamou
Rubens Soares e Evaldo Ruy, contratou o motorista Catumby e foram os quatro
de capota arriada para uma batalha na Rua Dona Zulmira.
Desde que descobriu o carnaval, Noel não perde uma dessas gloriosas festas
de rua que os moradores do lugar, Ocirema e Guedes à frente, organizam com o
maior esmero. Vem gente de todo o Rio para participar do desfile de carros
abertos, sob chuvas de confete e serpentina. Os blocos passam, cada qual com
suas baianas e ritmistas. Compositores - os melhores da cidade - aparecem para
cantar seus sambas e marchas, ou para ouvir o que os outros fizeram. São mesmo
festas gloriosas, animadas a chope, os barris dispostos em pontos estratégicos. A
casa de Zaluar Moura, por exemplo. Quantas pessoas participam? Impossível
calcular. São milhares, muitos milhares que cobrem as calçadas de um lado e do
outro, enquanto os automóveis passam. Noel costuma desfilar num desses carros
abertos. Seja a baratinha branca do Djalma Ferreira, seja uma fubica como
aquela em que certa vez ele e o pessoal da Mangueira despontaram na esquina,
cantando sambas de arrepiar. Noel, Carlos Cachaça, Zé Criança, Cartola, quem
mais? E também uma pastora de voz negra e densa, porte orgulhoso de grande
dama, música na alma, que atende pelo poético nome de Clementina de Jesus.
Naquela noite, porém, quando o carro dirigido por Catumby apontou no
começo da Rua Dona Zulmira, Chico com aquele vozeirão, ajudado pelo coro
dos outros três, a indagar "Por que bebes tanto assim, rapaz?", o povo foi tomado
de assalto. Todo o mundo cantou o novo samba, de fato irresistível. Terminada a
batalha, uma multidão foi seguindo o carro até o Centro, cantando, batendo
palmas, enquanto Francisco Alves, sentado no encosto do banco de trás, sorria,
triunfante: era mais uma vitória sua no carnaval.
Hoje, o próprio Noel conta por aí que as segundas partes são suas. Vendeu-
as ao Chico, é verdade. Nem fez questão de que seu nome aparecesse, mas agora
- em pleno carnaval - uma ponta de arrependimento talvez o incomode: numa
festa onde parecia reinar, sente-se meio destronado. Só Noel Rosa poderia
destronar Noel Rosa. E É Bom Parar destronou em popularidade Palpite Infeliz e
todas as outras que levavam a sua assinatura.
Quanto a Rubens Soares, nega e negará sempre ser parceiro de Noel. Jura
que jamais falou com o compositor de Palpite Infeliz, não gosta dele, não tem a
menor idéia de como nasceu essa história.(4) 4. Rubens Soares não mentia ao dizer que não era parceiro de Noel. Em entrevista aos
autores, voltou a repetir a afirmativa. O provável é que Francisco Alves tenha gravado as duas segundas partes sem nada dizer a Rubens, dando a impressão de que eram dele, Chico. "Eu realmente não
gostava de Noel", diz Rubens. O motivo eram as suas más companhias, Baiaco e outros homens maus, aquela história de incendiar mendigos e anavalhar cães, contada a ele por Geraldo Pereira.

Triunfando anonimamente ou não, o importante é que Noel Rosa é de fato o


grande nome do carnaval de 1936, seu último carnaval em condições de sair,
olhar os blocos, beber, divertir-se, aceitar convites para festas, ser homenageado
por clubes e sociedades. Nunca se faz acompanhar de Lindaura, o filho a
caminho em nada mudando as coisas entre eles. Prefere Ceci. Por exemplo, num
botequim da Lapa, de onde os dois distinguem ao longe o coro vibrante de um
bloco que canta: Um pierrot apaixonado
Que vivia só cantando...
Noel se anima. Então a marcha já pegou? Um bloco da Lapa cantando seus
versos... E com que empolgação! Vai até a porta do botequim, vê o bloco se
aproximar, puxado por um crioulo empertigado, bem vestido, que canta mais
alto que todos os outros foliões. Está explicado. O crioulo é o próprio Heitor dos
Prazeres "trabalhando" a música dos dois.
É ainda com Ceci que na sexta-feira, 21 de fevereiro, vai aos Democráticos
para um grito de carnaval do qual é o convidado de honra. Durante meia hora,
canta seus sambas e marchas para este ano, ouve palavras elogiosas dos
conselheiros da sociedade, acompanha do palco os foliões dançando. Ceci, de
início sentada não muito longe dali, sente repentina vontade de sair, de saber
como estão as coisas lá fora, os blocos, a alegria já dominando a cidade nesta
ante-véspera de carnaval. E sai mesmo, sem avisar Noel.
Às cinco da manhã, ao chegar em casa, encontra-o cercado de garrafas de
cerveja. Uma cena que ela viveu muitas vezes, voltando com dia claro e o
achando ali, imóvel, mudo, as garrafas se amontoando.
- Passou um bloco pela porta dos Democráticos e me deu vontade de ir atrás
- diz ela sem que Noel lhe pergunte nada. - O bloco rodou a noite inteira. Estava
tão animado que não consegui sair.
Nestas horas, como de hábito, nada de brigas. Só o silêncio.
Passado o carnaval, intensificam-se suas atividades no Programa Casé. Um
dos mais fortes patrocinadores desta atração dominical, agora na PRA-2, Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro, é O Dragão, bazar situado na Rua Larga, 193, de
propriedade de Oscar Menezes Pamplona, amigo e admirador de Noel. Foi deste
empresário - que gosta tanto da música quanto dos negócios - a idéia de se
instituir um concurso para apontar a melhor composição que falasse das
qualidades do seu bazar. Musiquinhas publicitárias já não são novidade em
programas radiofônicos. Existem pelo menos há dois anos, ao que parece desde
que Nássara, neste mesmo Casé, cantou um fado com letra de Luís Peixoto
fazendo propaganda do Pão Bragança.
Noel Rosa e Vadico inscrevem uma marcha no concurso de Oscar Menezes
Pamplona. E ficam com o invejável prêmio: um conto de réis.
Você é mais conhecido
Do que níquel de tostão
Mas não pode ficar
Mais popular do que
O Dragão
(Meu amor ideal, sem babado não)

Casé anda sempre muito preocupado com os concorrentes. Sabe que, nesse
negócio de rádio, a criatividade é tudo. O ouvinte adora novidades, vive
permanentemente à espera de uma primeira audição. É por isso que agora, mais
que nunca, recomenda ao seu cast um cuidado maior para que se evitem
repetições. Aos humoristas, pede novas piadas. Aos cantores, que tratem de
incluir em seus repertórios canções inéditas. Chega a prometer 100 mil réis de
abono a cada intérprete que apresentar um número inédito em seu programa.
Noel não perde tempo.
- Tenho um samba novo para hoje, Casé.
- Qual?
- Você Me Pediu.
Casé, péssimo ouvido, pior memória, não nota que o "novo samba" nada
mais é do que Cem Mil-Réis com outro título. Semana após semana, Noel
consegue passar o dono do programa para trás, sempre na base de outros títulos
para o mesmo samba: Soirée e Tamborim, Não É Tão Caro Assim, Barato Pra
Cachorro. E vai ganhando abonos por conta do desligamento do Casé. Até que
este descobre tudo.
- Francamente, Noel, você não tem jeito!
De outra vez, garante a Casé que tem mesmo uma primeira audição para
lançar no programa do próximo domingo.
- Qual o título? - pergunta o outro já desconfiado.
- Ilusão - responde Noel.
Chegado o dia, Casé vai para o estúdio acompanhar de perto a tal primeira
audição. Com ele ali, Noel não terá coragem de pregar-lhe mais uma peça. São
todos chamados para ouvir, os outros cantores, músicos, pessoal técnico,
locutores, funcionários de rádio.
- É uma primeiríssima audição - diz Noel criando expectativa cada vez
maior.
É então que ele canta:
Seu garçom faça o favor
De me trazer depressa...
A ilusão, no caso, era a do Casé. De que Noel, desta vez, cumpriria a
promessa de lhe trazer uma novidade.
Sua falta de pontualidade faz parte do folclore do programa. Ou melhor, as
desculpas que ele dá ao Casé, beirando o inacreditável, vão sendo ouvidas e
passadas adiante pelos outros artistas: - Desculpe, Casé, mas furou o pneu do
bonde.
Ou então:
-Me esqueci de onde era a Rádio Sociedade e fui parar em Cascadura. Ou
ainda: - Sinto muito, Casé, mas hoje não pude chegar mais tarde.
Ademar Casé ainda esboça começos de zanga que ele próprio, o primeiro a
rir das desculpas de Noel, desmoraliza. Mas a questão do horário é importante.
Sendo Noel o contra-regra, o ideal é chegar à rádio às onze e meia, isto é, meia
hora antes da abertura do programa. Assim, teria tempo de sobra para saber com
que artistas contaria, a que horas e em que ordem se apresentariam. Mas as
noites de sábado são longas, invadem sem cerimônia as manhãs de domingo, é
quase impossível Noel acordar antes que a sirene e os primeiros acordes de
Gallito anunciem que o Casé já está no ar. No vão da escada, atrás do piano de
Hervê Cordovil, no banheiro das mulheres, em muitos lugares Noel se esconde
quando não está disposto a inventar desculpas. Ou quando Casé não está com
humor para ouvi-las. Mas basta que o contra-regra troque a papeleta de
programação pelo violão e o cantor Noel Rosa ocupe o microfone para que Casé
esqueça seus atrasos. Por exemplo, quando ele interpreta Cabrocha do Rocha,
primeira parte de Sílvio Caldas, segunda sua, os dois registrando como cronistas
atentos essa mania que certos malandros têm de falar carregando nos x e nos ch:
- Poxxxxxxa! Chhhhhhhhato...
Eu tenho uma cabrocha
Que mora no Rocha
E não relaxa.

Sei que ela joga no bicho,


Que dança maxixe,
Que dá muita bolacha.

Tenho um filho macho


Com cara de tacho
E além disso é coxo.

Ele me fez de capacho,


Qualquer dia eu racho
Este carneiro mocho.

Mas nem sempre torna as coisas difíceis para o Casé. Às vezes chega a
prestar-lhe favores, embora sempre a seu modo.
- Um favor de amigo, Noel.
- Pois não.
- O doutor Oscar vai dar uma grande festa para os seus empregados depois
de amanhã, no Dragão. Além de patrocinador, é grande amigo do programa.
Precisamos ter um artista nos representando nessa festa. Gostaria que fosse você.
- Conte comigo, Casé.
Noel vai. O local está enfeitado, mesa de doces, salgadinhos, o barril de
chope mais adiante. É perto do barril que ele se instala. Lá para o final da festa,
Casé aparece para ver como estão as coisas. Percebe no ar um certo
constrangimento, os empregados da loja olhando para ele. Pergunta por Noel.
Será que não veio?
- Veio sim - informa um dos empregados. - Está lá em cima.
Ainda sob os olhares de todos, Casé vai até o andar superior. Justamente o
local da festa, da mesa de doces, do barril de chope. E encontra Noel, deitado a
um canto, bêbado, uma poça de vômito tendo afugentado dali todos os
convidados da festa de O Dragão.
De vez em quando Casé tenta aconselhá-lo. Chama-o à saída do programa,
pergunta se não quer uma carona de carro até Vila Isabel. Durante a viagem, fala
como amigo, quase como pai. Por que não toma jeito? A vida desregrada já lhe
trouxe problemas, obrigando-o a um período de tratamento em Belo Horizonte.
Já não é hora de levar a vida a sério, de agir como todo o mundo? A poucos
metros da Rua Carlos Vasconcellos, na Tijuca, Noel o interrompe.
- Pare o carro aqui, Casé.
- Onde?
- Aqui. Em frente à delegacia.
Casé obedece, mesmo sem entender. Vê Noel saltar do carro, caminhar em
volta como se a procurar alguma coisa no chão.
-Agora põe o carro em movimento, Casé.
- Que história é essa, Noel?
-Ligue o motor. Quando eu mandar, acelera.
É então que Noel faz seu braço girar em círculo, à maneira dos atletas
lançadores de disco, e joga um pedregulho na janela envidraçada da delegacia.
Voam estilhaços por todo lado. Ele dá uma gargalhada.
- Pé na tábua, Casé! Pé na tábua! Não é a primeira vez que Noel perturba
uma delegacia de polícia. Tempos atrás, quando voltava com João de Barro de
uma festa de São João em Jacarepaguá, decidiu soltar buscapés. A fim de tornar
mais emocionante o brinquedo, Noel cortou as flechas que guiam os foguetes.
Sem direção, um deles entrou, assobiando, dentro de uma delegacia próxima.
Mais adiante, Noel decidiu-se vingar de um homem que não apreciava suas
cantorias de madrugada, reclamava que lhe tiravam o sossego.
- Conheço um careca que não gosta de serenatas. Vamos fazer uma serenata
de bombas para ele.
Noite alta, juntaram os fogos que lhes sobravam e os colocaram
estrategicamente dentro do porão do homem. Fizeram o rastilho de pólvora.
Noel acendeu. A casa quase veio abaixo.
Em outra carona com Casé, o sermão é estritamente profissional. Por que
ele não se fixa num só programa em vez de cantar aqui e ali como judeu errante?
Os ouvintes nunca sabem onde encontrá-lo. E é preciso respeitar os
compromissos, não faltar, não chegar atrasado. Hoje em dia, até o Sílvio Caldas,
outro nômade do microfone, já sentou pé, cantor exclusivo do próprio Casé,
obedecendo direitinho aos tratos e horários. Noel interrompe-o mais uma vez.
- Dá pra aumentar um pouquinho esse teu rádio?
Casé é uma das poucas pessoas do Rio que tem rádio no carro. Não por
luxo, mas por necessidade. Precisa estar informado sobre tudo que acontece na
sua e em outras emissoras, os novos programas, os artistas que começam a se
revelar, os anunciantes em potencial. Não pode perder tempo. Mesmo nas
viagens de carro tem de estar ouvindo rádio.
- Bonita a voz deste cantor - diz Noel.
- É novo. Um tal de Mário Vieira.
- Quem disse?
- O locutor das Horas do Outro Mundo acaba de anunciar.
O cantor tem mesmo linda voz. E é com muito sentimento que interpreta os
versos de Orestes Barbosa para a melodia de Francisco Alves: Meu companheiro
dileto,
Violão és meu afeto
És minha consolação...
Noel, o ar de quem sabe e não quer dizer, observa:
- Engraçado, Casé. Nem o Sílvio Caldas tem a voz tão parecida com a do
Sílvio Caldas como este cantor.
Casé aumenta ainda mais o volume do rádio.
- Espere aí, Noel! Mas este cara... este cara é o Sílvio Caldas!
Mário Vieira é um dos muitos nomes atrás dos quais se esconde o
caboclinho para não ser exclusivo de nenhum programa. Ele, como Noel,
conserva o espírito nômade, definitivamente avesso a tratos e contratos.
Marília Baptista gosta de tricotar. E nos intervalos entre um número e outro,
seja no Casé, seja no programa Samba e Outras Coisas que apresenta com o
irmão Henrique pelas ondas da PRB-7, Rádio Educadora, vai fazendo casacos e
sapatos de lã que uma vez prontos são dados a Noel.
- São para o bebê.
Neste 1936 intensifica-se a amizade entre os dois, Marília freqüenta o
chalé, é amiga de Lindaura, dona Martha a adora. Intensificam-se também suas
relações no campo profissional. Não chegarão a compor juntos, embora a
produção musical de Marília já seja bastante expressiva por esta época. Produção
que ela não perde tempo em mostrar toda vez que lhe cabe como intérprete, "a
menina da voz grossa", ir ao microfone. Há quem a critique por estes impulsos
autopromocionais, achando que tanto a Educadora como a Transmissora a
contrataram como cantora e não como compositora. Mentiras Radiofônicas,
aquela seção com que A Voz do Rádio costuma alfinetar os artistas (a mesma
que disse ser muito cordato o maestro Glückmann e muito bonitos Noel Rosa e
Lamartine Babo), faz de Marília uma de suas vítimas: "Marília Baptista não
interpreta sambas de sua autoria."(5)5. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.

Na mesma seção, uma semana depois, outra provocação:


"Marília, Henrique Baptista e Noel Rosa têm agradado muito na
interpretação do desafio em homenagem a uma casa comercial."(6) 6. Idem, 14 de maio de 1936.
Só que neste caso a mentira é pura verdade. Porque, ao contrário do que
insinua o jornal, os desafios que em torno de De Babado fazem Noel e Marília
serão mesmo dos mais inesquecíveis momentos radiofônicos destes tempos. Os
versos que um e outro improvisam - e nem sempre falando de O Dragão - são
repletos de humor, originalidade, espírito carioca. Infelizmente, tão logo eles
saem do estúdio, sob aplausos de quem os ouve, já terão se esquecido do que
improvisaram.
- Noel, como são mesmo aqueles últimos versos que você cantou no
programa de hoje? - pergunta Newton Teixeira à mesa do Chave de Ouro.
- Não tenho a menor idéia. Sobreviver, só esta meia-dúzia de estrofes e
breques que daqui a algum tempo os dois perpetuarão em disco.
De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado, não.

Seu vestido de babado,


Que é de fato alta-costura,
Me fez sábado passado
Ir a pé a Cascadura
(E voltei de cara-dura)

Com um vestido de babado


Que eu comprei lá em Paris
Eu sambei num batizado
Não dei palpite infeliz:
(Você não viu porque não quis!)

Quando eu ando a seu lado


Você sobe de valor,
Seu vestido sem babado
É você sem meu amor,
(É assistência sem doutor)

Quando andei pela Bahia


Pesquei muito tubarão,
Mas pesquei um bicho um dia
Que comeu a embarcação:
(Não era peixe, era dragão!)

Brasileiro diz meu bem


E francês diz "mon amour",
Você diz: vale quem tem
Muito dinheiro pra pagar meu point-à-jour
(Eu ando sem 'argent toujours!)
Vou buscar um copo d'água
Para dar à minha avó,
Não vou de bonde porque tenho mágoa,
Não vou a pé porque você tem dó:
(Vamos comprar o Mossoró!)(7)
7. Mossoró, cavalo ganhador do primeiro Grande Prêmio Brasil em 1933-8. Diário da Noite, 3 de fevereiro de 1936.

O Programa Casé tem muito de um céu constelado. Não há grande estrela


do rádio que não passe ou não tenha passado por ele. De sambistas de bossa
como Luís Barbosa e Antônio Moreira da Silva a cantoras líricas como Violeta
Coelho Netto de Freitas. Por sinal, estas cantoras nunca se sentiram muito à
vontade no meio do pessoal da música popular. Um dia, o contra-regra Noel se
aproxima de uma delas com a papeleta da programação: - Qual o número que
você vai cantar?
A mulher quase perde a respiração. Levanta-se, lança-lhe um olhar cortante
e explode: - Você?! Quem deu ao senhor permissão para me tratar por você?
Mais respeito, ouviu? Mais respeito!
Repreendido por Casé, Noel se encolhe, humilhado. Muitos anos depois,
Marília se lembraria do episódio: "De Noel todos se lembram, se lembrarão
sempre. Mas quem sabe hoje quem era aquela senhora?"
De sambistas a sopranos. De desconhecidos cantores - desses que estão no
anonimato e no anonimato continuarão - a polpudos cachês como Carmem
Miranda e Francisco Alves. De quem Noel, é claro, não esquece. Inspirado nele,
passado tanto tempo, escreve novos versos para a melodia de Vitória:
E no fim da irradiação
Vem a voz do violão
Que é mais antiga que o Casé.

Dona da minha vontade


Saiba vossa majestade
Que cantarei o que quiser.

Mas Noel não se limita ao De Babado. Nem ao microfone do Casé. Como


cantor - apenas como cantor - é um dos astros do programa Carnaval
Apaixonado que a Rádio Club do Brasil apresenta às sextas-feiras. Com textos
de Bastos Tigre, durante meia hora o programa relembra velhas canções e
compositores do carnaval. O Diário da Noite aplaude a iniciativa que traz de
volta aos ouvintes a música do maxixe e dos sambas "desinfluenciados do fox e
do Jazz". Mas diz o jornal num artigo assinado por um certo X: "Há uma nota
destoante, a interpretação de Noel Rosa, sobretudo no Jura. O senhor Noel Rosa
já poderia ter encontrado um bom amigo que lhe advertisse não possuir nenhuma
qualidade vocal para o microfone. Compositor popular de sucesso, com certa
feição própria nas suas músicas, arranhando bem o violão, o senhor Rosa poderia
renunciar ao canto. Ganharia muito porque no microfone é (...) detestável.
Mas, ao que parece, o senhor Rosa, o gostoso senhor Rosa do Com Que
Roupa? e outros sucessos, está convencido de que vale por um grande intérprete
e, ao ler isto, naturalmente, espontaneamente, exclamará: Meu Deus do céu, que palpite
infeliz
Quem é você que não sabe o que diz?"(8)
Mentiras radiofônicas, primas donnas sensíveis, críticas esparsas. Mesmo
em fase de lento e imperceptível esmorecimento, de sensabor e desencanto, Noel
Rosa ainda brilha neste alvorecer de 1936.
Sílvio Caldas
Capítulo 41

NO PICADEIRO DA VIDA

Também fui do trapézio


Até salto mortal no arame eu já dei
Deixa de Ser Convencida

Como pássaros cantores, os artistas de rádio levam música a toda parte.


Menestréis sem preconceitos sentem grande prazer em mostrar sua arte onde
quer que haja gente para apreciá-la, no aquário de uma emissora, no estúdio de
uma fábrica de discos, num banco de praça, debaixo da janela da mulher amada,
num palco de teatro ou no picadeiro de um circo. A satisfação é a mesma,
recebam invejáveis cachês, cantem em troca de coisa alguma. Têm um profundo
respeito por seu público. Um respeito traduzido em carinho que raros artistas de
daqui a quarenta, cinqüenta anos serão capazes de compreender, muito menos de
cultivar. E uma das maiores provas disso é justamente o picadeiro de um circo.
Artistas mais elitizados - os cantores líricos, por exemplo - têm em relação
ao circo um menosprezo confessado. Consideram imperdoável rebaixamento
cantar sob a lona geralmente rota de um desses pavilhões mambembes que se
montam pela cidade. Para eles, interpretar uma ária de Verdi ou de Puccini
diante de gente que paga dois ou três mil réis por uma entrada, mais interessada
no trapezista do que no cantor, nas piruetas do palhaço do que na música, gente
que se amontoa, gritando, assobiando, nos degraus de uma torrinha, é o mesmo
que atirar pérolas aos porcos. Talvez por isso não tenham muito em conta
Vicente Celestino, não o considerem um dos seus, Vicente jamais abrindo mão
de cantar para os humildes freqüentadores de circo, ainda que lá no íntimo
continue sonhando com as luzes do Municipal.
É muito comum os responsáveis por programas de rádio, Christovam de
Alencar, Renato Murce, Waldo de Abreu, Gastão Lamounier, Eratósthenes
Frazão e tantos outros, organizarem espetáculos em circo, levando seus artistas
aos pontos mais distantes da cidade. O cachê é pequeno, mas sempre fala mais
alto a vontade de cantar para o povo.
Christovam de Alencar é um dos mais ativos produtores desses espetáculos
circenses. Sempre se empenha muito para levar em sua caravana o que há de
melhor no rádio, cantores, regionais, instrumentistas, grandes cartazes que se
apresentam na segunda parte da sessão, isto é, depois das mágicas e acrobacias
da primeira. Um desses espetáculos organizados por Christovam de Alencar é
num circo recém-montado em Niterói. Como de hábito, o organizador procura
um a um os artistas, combina o cachê, marca o encontro no Cais Pharoux, na
Praça 15, às seis da tarde. A idéia é seguirem todos na mesma barca.
Noel Rosa faz parte da troupe. Ele, Sílvio Caldas, Cyro Monteiro, Luís
Barbosa, Odette Amaral, Newton Teixeira, Célia Mendes, Heitor Catumby. Só
que, na hora marcada, Sílvio Caldas não aparece. Christovam de Alencar,
conhecendo o amigo e parceiro, sabendo que só por milagre ele cumpre seus
compromissos, decide não esperar. E ordena que todos entrem na primeira barca,
deixando Sílvio para lá. Dar bolo em programadores de festivais é mais do que
um hábito para este formidável cantor. Quase sempre ele aceita o convite,
combina o cachê, marca hora e lugar, deixa que seu nome saia nos folhetos e
cartazes de propaganda e, sem maiores explicações, não aparece. Esquece tudo
em troca de uma serenata numa praça de subúrbio, de uma conversa fiada com
um amigo, de uma boa sopa de entulho num botequim que acaba de descobrir ou
de uma nova companhia feminina. Não faz muito tempo, Sílvio acertou com
Jorge Murad aparecer num espetáculo dirigido pelo humorista no Cine Ramos,
na Rua Uranos. Seria o principal nome do elenco. Seria, mas não foi. Já no final
da noite, Murad não viu outro jeito senão informar à platéia que, infelizmente,
não haveria Sílvio Caldas. O cinema lotado, imaginou-se sendo linchado por
toda aquela gente. Começou a suar frio. Até que divisou na quarta fila,
encolhidinho numa das cadeiras de pau, um tipo familiar, seu velho amigo desde
os tempos dos espetáculos beneficentes do Teatro Club Andaraí, do Colégio
Nossa Senhora da Misericórdia, na Rua Barão de Mesquita, quando Murad
iniciava carreira em atos variados de sapateado e humorismo. Respirou aliviado:
- Distinto público! - disse recuperando a coragem. - Lamentamos informar que
Sílvio Caldas não está entre nós esta noite.
E antes que a vaia começasse, completou:
-Mas eu tenho uma grande surpresa que vai fazer o distinto público
esquecer o grande seresteiro. Ali, na quarta fila, Noel Rosa!
Aplausos, de início tímidos, aos poucos mais e mais efusivos, mostraram a
Murad que ao menos por momentos Sílvio Caldas seria de fato esquecido. Noel
subiu ao palco, cantou dois, três números, salvou a noite.
São sempre muito divertidos esses festivais, principalmente os que se
realizam em circos. Os artistas que deles tomam parte hão de guardar para
sempre as melhores lembranças de recitais meio improvisados, vividos em
pequenos palcos construídos ao lado quando não no próprio picadeiro. Mais do
que recitais, são aventuras repletas de peripécias e cenas curiosas, já que o
público, sobretudo o das torrinhas, costuma participar vivamente, fazendo coro
com o artista ou mesmo se dirigindo a ele aos gritos: - Vai cantar bem assim no
inferno, ô Sílvio Caldas!
É rico o anedotário desses espetáculos. Quem não se lembra da noite em
que Mário Moraes atreveu-se a substituir Sílvio, que mais uma vez deixara na
mão o organizador da caravana? Mário, com aquela ginga mole, o jeito de cantar
dolente, arrastado, sempre querendo tornar ainda mais lentas as canções já
lentas, entrou em cena e anunciou ao público o seu número: Inquietação, samba
de Ary Barroso. Naturalmente, do repertório do grande ausente Sílvio Caldas.
Quem se deixou escravizar
E no abismo despencar
Por um amor qualquer...

Tão devagar Mário ia cantando o samba, tão prolongadas tornava as notas,


que a interpretação soava interminável aos ouvidos do público. Uns bocejavam,
outros resmungavam baixinho, Mário cantando, o samba parecendo não acabar
nunca. Até que chegou ao final:
Nas asas brancas da ilusão
Nossa imaginação
Pelo espaço vai... vai... vai...

Um sujeito completou lá das torrinhas:


- Vai... pra puta que o pariu, seu Mário! Os artistas sempre se divertem com
essas passagens. Mesmo quando são eles próprios as vítimas. E neste espetáculo
organizado por Christovam de Alencar em Niterói, o circo superlotado, não hão
de faltar acréscimos ao anedotário. Mais uma vez o ponto de partida é a ausência
de Sílvio Caldas.
Christovam de Alencar tenta convencer Heitor Catumby a ser o substituto.
- Mas, Reis... eu sou cantor de samba-choro.
- Você tem boa voz, Heitor. Pode cantar serestas também.
- Não sei, não...
Tanto Christovam de Alencar insiste que Heitor concorda em entrar em
cena com a aba do chapéu caída sobre os olhos, o rosto meio oculto, quse
impossível de identificar. Quem sabe o público não o engole como se sendo o
próprio Sílvio? Vai até o microfone, o regional se aproxima. Christovam o
apresenta, sem citar nome:
- E agora, o grande seresteiro vai cantar para vocês!
Meio hesitante, Heitor começa:
Dorme, fecha este olhar entardecente,
Não me escutes nostálgico a cantar...

Antes que chegue ao fim da canção - sua voz de sambista de bossa nada
tendo a ver com a de um grande seresteiro - ouvem-se as primeiras vaias,
assobios esparsos, um ou outro grito de "Fora! Fora!", até que começam a voar
objetos, ovos, tomates sobre o picadeiro. Heitor pára, tira o chapéu, mostra o
rosto e diz, bem alto:
- Calma, pessoal!Eu não sou o Sílvio Caldas, não!
Ao que um cidadão, lá do último degrau da arquibancada, responde
atirando-lhe mais coisas:
- Por isso mesmo, seu filho da puta!
Por pouco o público indignado não destrói todo o circo. Parte das torrinhas
chega mesmo a ser quebrada, um sujeito ameaça rasgar a lona, outro pensa em
incendiá-la. Só meia hora depois, com a intervenção da polícia, a calma se
restabelece.
Heitor Catumby sai de cena, entram outros artistas, estes sim, agradando em
cheio, ganhando aplausos, deixando Christovam de Alencar feliz(1).
1. Este episódio, um dos mais difundidos do anedotário do circo carioca daquele tempo, tem sido contado de várias maneiras, cada versão sempre mais enriquecida que a outra. Os autores
optaram por esta (muito diferente, por exemplo, da contada por Nestor de Hollanda em Memórias do Café Nice, páginas 185 e 186). Basearam-se nos depoimentos de Christovam de Alencar e Newton
Teixeira, que afinal estavam lá.

Um dos últimos números da noite é o de Noel Rosa.


- E agora, senhoras e senhores, o Amigo Velho tem o orgulho de lhes
apresentar... meu parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Christovam de Alencar e Noel Rosa não são apenas antigos companheiros
de Vila Isabel, mas parceiros em Pela Primeira Vez, samba que fizeram uma
noite dessas no Café da Uma Hora. A música lembra muito as frases finais de
Sorrindo Sempre, de Noel, Gradim e Ismael Silva. E a letra Ceci jura ter sido
feita para ela logo após os dois se separarem na Estação de Pedro II, no dia em
que viajou para curta temporada em Belo Horizonte como girl de uma
companhia de teatro de revistas organizada às pressas para levantar um
dinheirinho.
Pela primeira vez na vida
Sou obrigado a confessar que amo alguém.
Chorei quando ela deu a despedida,
Ela me vendo a chorar chorou também.
Meu Deus, faça de mim o que quiser,
Mas não me faça perder
O amor desta mulher.
Na estação, na hora de partir o trem,
Ela me vendo a chorar chorou também.
Depois fiquei olhando uma janela,
Até sumir numa curva o lenço dela.

Se meu amor não regressar, irei também


À estação na hora de partir o trem.
E nunca mais assisto uma partida
Pra não lembrar mais daquela despedida.

Mal Christovam e Noel haviam concluído o samba, Orlando Silva entrou no


botequim.
Ia a caminho do Engenho de Dentro quando resolveu saltar no Maracanã
para um papo e um café. Ainda atrás de uma música que o projetasse, pediu-lhes
para gravá-lo. Pedido aceito, no dia 5 de maio de 1936 ele entrou no estúdio da
Victor com um grupo de músicos onde se destacavam Luís Americano e
Benedicto Lacerda. Noel também estava presente. Orlando, voz preciosa, mas
ainda um cantor inexperiente, cometeu um engano. Cantou:
Depois fiquei olhando uma janela
Até sumir na esquina o lenço dela.

Durante a passagem de orquestra, Noel, dentro do estúdio, chamou-lhe a


atenção, baixinho:
- Orlando, quem vira a esquina é bonde. Na repetição, Orlando se corrigiu,
dando ênfase à palavra curva:
Até sumir numa curva o lenço dela(2).
2. A cena ocorrida dentro dos estúdios da Victor é contada por Rui Ribeiro em Orlando Silva, Cantor Número Um das Multidões (página 38).

Hoje, Christovam apresenta orgulhoso:


- ... meu parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Noel entra em cena, miúdo, magro, a aparência insignificante de sempre.
Põe o pé na cadeira, pega o violão e começa a cantar. Lá das torrinhas, novo
grito:
- Cuidado para não cair do queixo! Gargalhadas. Noel pára. Espera que o
silêncio se restabeleça e só então continua.
É animada a viagem de volta ao Rio, a bordo de uma bordejante barca da
Cantareira. Uns cantam, outros conversam, todos riem. Newton Teixeira nota
que Noel se afastou, foi lá para a popa, sozinho, olhar o mar que a embarcação
deixa para trás num rastro de espuma. Pensa em se aproximar, mas desiste. Noel
está triste, não é o mesmo da viagem de ida. Se foi o grito da arquibancada que o
perturbou ("Cuidado para não cair do queixo!"), Newton não tem coragem de
perguntar. O fato é que, depois desta noite, nunca mais um circo - cujo público
dá tanta alegria a tanto artista - terá de novo o privilégio de contar com o canto
de Noel.
As vezes se importa, às vezes não. Suas reações às referências e eventuais
brincadeiras que se fazem ao queixo defeituoso também são imprevisíveis. Pode
ser que não ligue ou até participe delas, usando a boca torta para bancar o
ventríloquo como nos tempos de ginásio e assim mexer com os amigos, os
músicos, os garçons:
- Ô inseto! Ô otário!- e quando o outro se aproxima, intrigado, pergunta:
- Você é o Aniceto ou o Otávio?
Gosta de autocaricaturar-se. E sempre de perfil, exagerando o traço ao
chegar no queixo, fazendo graça com a própria deformidade. Há quem garanta
que o samba Mentir(3) foi feito depois de ser apresentado a uma admiradora,
numa festinha em casa de família.
3. Já focalizado no Capítulo 23.

Conhecendo-o apenas de nome, a moça teria ficado desapontada. Esperava


um compositor bonito como suas músicas. Deixou escapar um "oh!", ao que
Noel, sem perder o controle, indagou:
- Sente alguma coisa?
- Sim - respondeu a moça, um tanto embaraçada. - Uma pontada aqui, mas
já passou.
Pode fazer, também, como na dedicatória à cantora Yolanda Rhodes, uma
linda mulher que conheceu na Rádio Guanabara e que ficou impressionada com
um novo samba dele. Foi há três anos, Noel cantando os versos tristes e algo
nebulosos da belíssima composição a que deu o nome de Cor de Cinza. Yola
pediu-lhe a letra, Noel escreveu-a numa folha de papel e, no final, anotou: "Para
que você não se esqueça da feiúra do amigo Noel." A linda Yolanda Rhodes não
o esquecerá.
Em toda a obra de Noel não há composição de versos tão obscuros, tão
indecifráveis. Aparentemente ele conta uma história de amor. Baseado em
informações de Pará, Almirante vai concluir que a inspiradora foi Julinha. Pouco
provável. Há certa finura na mulher de luvas de pelica cinza que não combina
bem com a extravagante Júlia Bernardes. É uma história fora de dúvida
enigmática, enevoada, cuja origem há de morrer com Noel.
Com seu aparecimento
Todo o céu ficou cinzento
E São Pedro zangado.
Depois, um carro de praça
Partiu e fez fumaça
Com destino ignorado.
Não durou muito a chuva
E eu achei uma luva
Depois que ela desceu.
A luva é um documento
Com que provo o esquecimento
Daquela que me esqueceu

Ao ver um carro cinzento


Com a cruz do sofrimento
Bem vermelha na porta,
Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta.

A poeira cinzenta
Da dúvida me atormenta,
Nem sei se ela morreu.
A luva é um documento
De pelica e bem cinzento
Que lembra quem me esqueceu.
Yolanda Rhodes, a Yola.
Cor de Cinza

"Gosto em geral dos versos que convivem com a cidade. Nisso Noel foi o craque absoluto, e não
apareceu no Brasil mais expressivo poeta popular do que ele. O X do Problema, Último Desejo, Três
Apitos, Dama do Cabaré, Feitio de Oração, São Coisas Nossas, Só Pode Ser Você incluem-se todas no
gênero de poesia brasileira popular que me fala. Noel tinha vocação para a coisa, e ele próprio sabia que a
'vocação é necessária até para dar-se laço na gravata'. Há uma letra de Noel maravilhosa servindo a uma
música também muito bonita, raramente tocada. Chama-se Cor de Cinza: 'A poeira cinzenta da dúvida me
atormenta... A luva é um documento de pelica e bem cinzento...' A história narrada pelos versos não é nada
clara, mesmo depois de termos lido a interpretação que o esclarecido Almirante faz para os mesmos. Mas
não importa; trata-se do mais belo e hermético poema impressionista do nosso cancioneiro popular."
Paulo Mendes Campos
Manchete, 20 de abril de 1974.
Mas pode ser também que sofra. E sofra muito. Como acontece no dia em
que Wilson Baptista, ainda lutando para se tornar mais conhecido, reabre uma
polêmica que se supunha encerrada com Palpite Infeliz. Compõe novo samba,
desta vez focalizando a feiúra de Noel. Dá-lhe o título de Frankenstein da Vila,
publica-o no Jornal de Modinhas, canta para os amigos no Nice. O samba, muito
bem-feito, apesar da pronúncia incorreta para Frankenstein, rimando com
alguém, acaba chegando ao rádio.
As testemunhas se dividem. Uns afirmam que Noel não deu maior
importância, chegando mesmo a achar engraçada a provocação de Wilson.
Outros asseguram que foi muito diferente. Nássara conta que viu o amigo
furioso, correndo de banca em banca para comprar todos os exemplares do
Jornal de Modinhas em que estivesse a letra. Cícero Nunes, companheiro de
muitas cervejadas (numa das quais Noel pagou a conta deixando o violão com o
dono do botequim), jura que o viu chorar - um momento raro - quando lhe falou
da crueldade de Wilson.
Mas, eterno simulador, é outra a impressão que dá ao rival em seu primeiro
encontro após Frankenstein da Vila. Wilson está no Café Leitão, nos Arcos, com
Erasmo Silva, seu parceiro na Dupla Verde e Amarelo, quando Noel passa.
- Noel! - grita com o sorriso matreiro. Os dois se cumprimentam. Noel
brinca, diz ter ouvido o samba em que ele o coloca na primeira fila dos feios,
gostou muito, coisa e tal. Wilson fica satisfeito. E aproveita para emendar: - Pois
saiba que eu já fiz mais um.
- Mais um o quê?
- Mais um samba. Para a nossa briga. E canta Terra de Cego:
Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.

És o abafa da Vila, eu bem sei,


Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.

Pra não terminar a discussão


Não deves apelar
Para um barulho a mão.

Em versos podes bem desabafar


Pois não fica bonito
Um bacharel brigar.

Noel acha a melodia interessante. Mas pede para colocar-lhe outra letra.
Elogia Wilson, diz que ele é mesmo terrível, tirou-lhe aquela morena há dois
anos e também andou de namorico com Ceci. De fato terrível. Aqui mesmo no
botequim, faz a nova letra. Sempre se dirá que o alvo de Noel nestes versos para
a melodia de Terra de Cego é o próprio Wilson: "Deixa de ser convencido...",
diz logo de saída. Mas não. Uma análise menos apressada mostrará que é para
uma mulher que ele canta. A começar pela rima, "convencida" com "vida". Uma
mulher que tem um "velho modo de vida". Uma perfeita artista por quem é
obrigado a viver um "amor de parceria". A mulher é Ceci. O parceiro, Wilson.
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.

És uma perfeita artista, eu bem sei,


Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei.
(Muita medalha eu ganhei!)

E no picadeiro desta vida


Serei o domador,
Serás a fera abatida.

Conheço muito bem acrobacia


Por isso não faço fé
Em amor de parceria.

É o fim da polêmica. Uma briga musical da qual muito pouca gente - o


pessoal do meio e um ou outro de fora - tomou conhecimento. Até que ponto
Noel guardará alguma zanga lá no íntimo, mágoa, rancor, ressentimento ou algo
assim, motivada pelo Frankenstein da Vila, é impossível saber. No que diz
respeito a Wilson, não há de ser por essa rixa sonora que se tornará alguém na
vida. Seu tempo há de chegar. Por força do próprio talento e não às custas do
nome de Noel, por quem, afinal, guardará até morrer um grande respeito e
confessada admiração(5).
5. Como se verá no Capítulo 46, Wilson Baptista falará com carinho e saudade de Noel em nada menos de três de seus sambas, o primeiro de 1942. É verdade que em um deles, Chico Viola,
de parceria com Nássara, há este primor de sutileza (intencional ou não?): "(Chico Viola) partiu, partiu, foi pro céu, foi fazer companhia a Noel." Os gozadores do Nice andaram perguntando a Nássara e
a Wilson se era para roubar o sossego de Noel que eles mandaram Francisco Alves fazer-lhe companhia lá em cima. Em seu livro de memórias intitulado justamente Café Nice, cujos originais ainda
inéditos pertencem ao arquivo de Hermínio Bello de Carvalho, Wilson também deixa registrada sua admiração pelo ex-rival: " Noel Rosa - O imortal poeta nasceu aqui mesmo, em Vila Isabel, trocou a
medicina pelo samba, trocou o bisturi pelo violão quando já era quase doutor. Quem ganhou com isto foi a música popular brasileira, pois Noel Rosa marcou todos os tipos e acontecimentos, nos versos
de seus inesquecíveis sambas. Noel imitou a cigarra: cantou, cantou, até morrer."
Frankenstein da Vila

"Foi o seguinte: o povo não sabia que o negócio do Palpite Infeliz era comigo. Na verdade, o povo
pouco ligava àquelas questões. Se alguém tivesse de pensar alguma coisa, havia de ser que o samba era uma
resposta ao Mangueira, de Zequinha Reis e Assis Valente ('Não há, nem pode haver, como Mangueira não
há...') - Mas o pessoal do rádio todo sabia que era comigo. E eu comecei a ouvir indiretas de todo lado.
Vinha um e me dizia uma coisa, vinha outro e me dizia outra coisa. Diziam que o Noel estava preparando
uma porção de sambas que mexiam comigo, sambas que ele cantava pelos cafés. Então, pra não ficar atrás,
eu também fiz um samba pra mexer com Noel. O samba não foi publicado nem gravado(4), mas foi tão
cantado também pelos botequins que um dia, pra minha surpresa, eu o ouvi no rádio por um conjunto
chamado Os Quatro Diabos.
4. Não ainda, à época deste depoimento. A primeira gravação de Frankenstein da Vila seria a de Roberto Paiva, em 1956, na Odeon.

Meu samba era uma pilhéria com o Noel e se chamava Frankenstein da Vila. Noel era homem e não
há mal nenhum em se chamar um homem de feio. Por isso eu fiz o samba, que ficou assim:

Boa impressão nunca se tem


Quando se encontra um certo alguém
Que até parece o Frankenstein.

Mas, como diz o rifão,


Por uma cara feia
Perde-se um bom coração.

Entre os feios estás na primeira fila,


Eu te batizo 'Fantasma da Vila'.
Essa indireta é contigo

E depois não vás dizer


Que eu não sei o que digo
(Sou teu amigo)."

Wilson Baptista
Rádio Tupi, 22 de junho de 1951
Com toda essa agitação, é um ano em que Noel compõe pouco. Desde que
se tornou profissional, nunca foi tão preguiçoso. Preguiçoso ou desmotivado.
Aquela entrega, presente em tudo o mais, começa a se fazer sentir também no
trabalho. Pouco a pouco. Durante todo o 1936, não chegará a vinte o total de
suas composições, apenas onze delas gravadas.
Assim mesmo, se fará tanto é porque Carmem Santos o convida a escrever
músicas originais para seu filme Cidade Mulher. Convite aceito, ele trabalha,
sozinho ou a quatro mãos com José Maria de Abreu ou Vadico, nas canções que
sustentarão a qualidade musical do filme (o programa inclui também
composições de Assis Valente, Waldemar Henrique, Heriberto Muraro e Raul
Roulien, um brasileiro que começou interpretando tango e acabou cantando fox
em filme americano).
Em termos de roteiro, Cidade Mulher é um pouco mais ambicioso que Alô,
Alô, Carnaval. Não é uma revista carnavalesca em que os quadros musicais se
sucedem meio sem pé nem cabeça, mas uma comédia com ligeiro fio de história
ligando os diferentes números, boa parte deles focalizando o Rio, seus bairros e
tipos. A direção é de Humberto Mauro e o elenco, atores e cantores, bem inferior
ao de Alô, Alô, Carnaval.
Mas o filme, estreando no Alhambra a 27 de julho de 1936, é muito bem
recebido pelo público. E os poucos que tiverem oportunidade de vê-lo daqui a
muito tempo(6) talvez possam sentir nas entrelinhas de cada cena o clima alegre
em que foi produzido, contagiando todos que dele participaram, Noel Rosa
inclusive.
6. Até onde os autores conseguiram saber, perderam-se todas as cópias de Cidade Mulher.

As filmagens foram feitas no Cassino Beira-Mar, aonde Noel ia todas as


noites para acompanhar de perto os ensaios e tomadas de cena, não só de suas
músicas mas de toda a produção. Fazia-o com interesse e entusiasmo. Um
entusiasmo que não deixou de transmitir a Ceci.
Muitas noites ela o acompanhou nas idas aos sets de filmagem. Antes ou
depois de pegar no trabalho. Também ficou encantada com todos aqueles
artistas, uma movimentação incessante, técnicos, iluminadores, câmeras,
Humberto Mauro a dar ordens, que se fizesse isso ou aquilo desse ou daquele
modo, as cenas muitas vezes se repetindo até que saíssem boas. Então é assim
que se faz um filme? Uma noite, sentada num canto enquanto Noel participava
dos trabalhos, Ceci sentiu alguém dar-lhe um tapinha no ombro. Era um sujeito
maltrapilho, barba crescida, olheiras, as mãos muito sujas, aspecto assustador.
Apavorada, pôs-se a gritar. Interrompeu-se o trabalho, artistas, todo o mundo
correndo para ver o que havia. Noel, ao reconhecer a voz de Ceci, ficou pálido.
O que aconteceu?
- Um homem! - tentou explicar ela. - Barbado, feio...
Alguém soltou uma gargalhada ao descobrir que quem assustara Ceci era
um extra, vestido de mendigo para uma das cenas. Riram todos, o clima alegre
voltou, Ceci encabulada, Noel achando graça. É mesmo possível que todo esse
ambiente venha a ser sentido nas entrelinhas de Cidade Mulher. Alegria,
entusiasmo, talvez o último trabalho em que Noel conseguirá pôr interesse acima
do trivial.
De suas canções para o filme, todas inéditas, uma ele vai tirar de seus
guardados, relatando o começo de seu romance com Ceci: Dama do Cabaré(7).
7. Já focalizado no Capítulo 31.

Orlando Silva vai gravá-la em disco três dias depois da estréia do filme, no
qual ele divide a cena com Carmem Santos, ela declamando os versos de Noel:
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra...

É ainda Orlando Silva quem interpreta a canção-título, de Noel sem


parceiro, o único canto de amor do poeta de Vila Isabel à sua cidade: (Cidade
Mulher)
Cidade de amor e ventura
Que tem mais doçura
Que uma ilusão.
Cidade mais bela que o sorriso,
Maior que o paraíso,
Melhor que a tentação.

Cidade que ninguém resiste


Na beleza triste
De um samba-canção.
Cidade de flores sem abrolhos
Que encantando nossos olhos
Prende o nosso coração.

Cidade notável,
Inimitável,
Maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher!

Cidade de sonho e grandeza


Que guarda riqueza
Na terra e no mar.
Cidade do céu sempre azulado,
Teu sol é namorado
Das noites de luar.
Cidade padrão de beleza,
Foi a natureza
Quem te protegeu.
Cidade de amores sem pecado,
Foi juntinho ao Corcovado
Que Jesus Cristo nasceu.

José Maria de Abreu é um melodista fértil. Em matéria de canção


romântica, de rico fraseado e suave harmonia, só perde para Custódio Mesquita.
Paulista de Jacareí, está no Rio há apenas três anos. Veio com todo o seu talento,
conhecimento de música e experiência adquirida no íntimo contato com o piano,
o violino, o violão e o pistom, desde os tempos da banda escolar em sua cidade
natal. É jovem - dois meses mais novo que Noel - e ambicioso. Este 1936 será o
seu ano, não só pela oportunidade que tem de trabalhar com Noel Rosa num
filme, mas também porque é o do lançamento de seu primeiro grande êxito, a
valsa Boa-Noite, Amor, letra de Francisco Mattoso: Boa noite, amor
Meu grande amor,
Contigo sonharei...
Também é Orlando Silva - desta vez acompanhado das irmãs Rosina e
Elvira Pagã - quem canta no filme uma marcha da dupla José Maria de Abreu-
Noel Rosa: Morena Sereia. Só que não a gravará em disco, permanecendo a
marcha, de sabor muito carioca, inédita nos próximos 26 anos.
Morena sereia,
Que à beira-mar não passeia,
Que senta na praia e deixa a praia cheia
De lindos castelos de areia.

Cuidado criança,
Que qualquer dia um tufão
Derruba os teus castelos de esperança
E enche de areia o teu coração.

Tenho um bangalô cinzento


Que nos defende do tufão.
Entre quatro paredes de cimento,
Não há quem possa desmanchar nossa ilusão.

Se na praia tu souberes
Que o teu nome eu escrevi
Entre mais de dez nomes de mulheres,
Terás certeza que te amei mas te esqueci.

A segunda das composições da dupla é Na Bahia, escrita nos moldes dos


sambas-de-roda de Salvador. Junto com Dona do Lugar, às únicas que Noel
dedicou àquele Estado. Também vai permanecer inédita - mais tempo ainda que
Morena Sereia. É lançada no filme por Bibi Ferreira, filha de Procópio,
começando praticamente aqui, aos 15 anos, sua carreira artística.
Aonde é que o nosso grande Brasil principia?
Na Bahia! Na Bahia!
Aonde foi que Jesus pregou sua filosofia?
Na Bahia! Na Bahia!

Todo santo dia,


Nasce um samba na Bahia.
Samba tem feitiço,
Todo mundo sabe disso.

A minha Bahia
Forneceu a fantasia
Mais original
Que se vê no carnaval.

Em São Salvador,
Terra de luz e de amor,
Só o samba cabe,
Disso todo mundo sabe.

De Noel sozinho é uma valsa, Numa Noite à Beira-Mar, interpretada


pelos irmãos Amaro, Maria e José. Uma canção romântica, rara na obra do
poeta. E outra que acabará injustamente esquecida:
Ele
- Juro pela lua cheia,
Que ilumina a branca areia,
Que jamais posso olvidar
As palavras que disseste,
Quando teu amor me deste
Numa noite à beira-mar...
Os dois
- Numa noite à beira-mar.
Ele
- Quando a lua foi-se embora
Fiquei sozinho a meditar.
Ela
- Não quero recordar agora
Aquela noite à beira-mar.
Ele
- O nosso amor foi infeliz,
Ela
- Nosso destino assim o quis.
Os dois
- Infelizes nós seremos,
Nunca mais esqueceremos
Que sofremos por lembrar
As palavras que dissemos
Quando nós dois nos conhecemos
Numa noite à beira-mar.

Sendo um filme basicamente centrado no Rio, seus encantos, sua gente, o


cronista que sempre existiu em Noel não podia ficar de fora. Para completar a
série de músicas encomendadas por Carmem Santos, ele compôs dois sambas em
que procurou retratar tipos da cidade, como já fizera tantas vezes antes com
João-Ninguém, Malandro Medroso, Mulato Bamba, Rapaz Folgado, Mulata
Fuzarqueira, Voltaste. Um deles é o Tarzan. Numa época em que o cinema
americano projeta nas telas de todo o mundo heróis de físico atlético, ombros
largos, bíceps avantajados, músculos imensos por todo corpo, rapazes de bairros
grã-finos do Rio, antes tentando seguir as pegadas de galãs do tipo Rodolfo
Valentino ou no máximo John Barrymore, agora trocam a figura do
"almofadinha" pela do "tarzan". Em grande parte porque faz muito sucesso a
série de filmes iniciada em 1932 com Tarzan, o Filho das Selvas (Tarzan, The
Ape Man), em que o campeão olímpico de natação, Johnny Weissmuller, vive o
papel do famoso personagem criado por Edgar Rice Burroughs. Mas muitos dos
rapazes candidatos a galã-atleta são destituídos de predicados físicos, e nem com
ginástica de Charles Atlas conseguiriam passar de tímidos, minguados tarzans
das praias cariocas. Daí recorrerem aos alfaiates. Ou seja, torna-se moda no Rio
o paletó com ombreiras, os providenciais recheios de algodão que aproximam os
esquálidos rapazes de Johnny Weissmuller. Noel registra o fato num notável
samba, parceria com Vadico, que já no título é puro deboche: Tarzan, o Filho
do Alfaiate. A primeira parte parece ser toda de Noel e a segunda contém
modulações em que se percebe a mão do pianista Vadico. O comediante José
Vieira é quem o lança no filme:
Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte
Nem conheço futebol.
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo um ano Inteiro
Sem ver um raio de sol.

A minha força bruta reside


Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer,
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer.

Eu poso prós fotógrafos


E distribuo autógrafos
A todas as pequenas
lá da praia de manhã.
Um argentino disse
Me vendo em Copacabana:
No hay fuerza sobre-humana
Que detenga este Tarzan!

De lutas não entendo abacate


Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar.
Sou incapaz de machucar uma formiga,
Não há homem que consiga
Nos meus músculos pegar.

Cheguei até a ser contratado


Pra subir em um tablado
Pra vencer um campeão,
Mas a empresa, pra evitar assassinato,
Rasgou logo o meu contrato
Quando me viu sem roupão.

O outro tipo é também curioso: Maria Fumaça. A letra não tem a


qualidade da anterior, Noel recorrendo demais ao seu dicionário de rimas. Mas a
melodia, dele próprio, é muito engenhosa.
Maria Fumaça
Fumava cachimbo,
Bebia cachaça.
Maria Fumaça
Fazia arruaça,
Quebrava vidraça
E só de pirraça
Matava as galinhas
De suas vizinhas.
Maria Fumaça
só achava graça
Na própria desgraça.

Dez vezes por dia


A delegacia
Mandava um soldado
Prender a Maria.
Mas quando se via
Na frente do praça,
Maria sumia
Tal qual a fumaça,

Maria Fumaça
Não diz mais chalaça,
Não faz mais trapaça,
Somente ameaça
Que acaba com a raça
Bebendo potassa.
Perdeu o rompante,
Foi presa em flagrante
Roubando um baralho,
Não faz mais conflito,
Está no distrito
Lavando o assoalho.

Seja como for, o samba acabou ficando fora do filme, para tristeza de Noel
que parecia apostar no seu sucesso.
Compõe pouco neste 1936. E começa a sentir que a saúde lhe falta. Gripes
freqüentes, sempre acompanhadas de febre, o levam a recorrer ao amigo Edgar
mais vezes do que desejava, os sermões sempre o aborrecendo: - Cuidado, Noel.
Você está perto de uma recaída.
Preguiça, desmotivação, entrega, saúde fraquejando. Se tinha algum motivo
para pensar no futuro, no dia de amanhã, nas coisas que ainda pode ter ou fazer,
talvez esse motivo tenha chegado ao fim de forma tão triste quanto prosaica:
Lindaura, de gestos e impulsos infantis, sobe na goiabeira, estica a mão para um
galho distante, desequilibra-se e cai. Perde os sentidos. A mesma goiabeira sob a
qual Noel costumava tocar ("Coitado, tão moço...") - e que um dia, para fazer
surpresa ao filho, Martha resolveu iluminar, mandando instalar nela um jogo de
lâmpadas. De noite, diante da surpresa, Noel exclamou: - Prostituíram minha
goiabeira! Ela só pode ser iluminada pela lua...
Foi de um de seus galhos que Lindaura caiu. Martha manda que chamem o
médico, Heleno Brandão, o velho Graça Mello, Renato Baptista, o primeiro que
estiver disponível. O médico chega. Lindaura está bem, mas perdeu o filho.
Nunca se saberá o que Noel sente em relação a isso.
1936. CIDADE MULHER Cia. Prod: Brasil Vita Filmes. Dir: Humberto Mauro
Capítulo 42

O DOM DE SABER ILUDIR

Meu Deus, faça de mim o que quiser


Mas não me faça perder
O amor desta mulher.
Pela Primeira Vez

A sala não é das maiores, mas tem aquela tal "atmosfera montmartroise" de
que falam os cronistas da Lapa. Pelo menos Max Darly se esforça para que
assim seja, adotando gestos e mesuras de um cabaretier de Place Pigalle,
arriscando até um pouco de francês ao recepcionar os habitues mais respeitáveis:
"S'il vous plait, monsieur..." Como se a dizer consigo mesmo: "Já que os
boêmios da Lapa não podem ir a Paris, por que não trazer um pouco de Paris aos
boêmios da Lapa?" O mesmo pensamento, aliás, de Helena, que cuida das moças
de modo tão parisiense quanto sua brasilidade permite.
A luz tímida entre o vermelho e o azul, as paredes em tons escuros, as
cadeiras forradas de veludo, tudo procura "afrancesar" o ambiente. Inclusive o
som que vem da orquestra, o acordeom imprimindo a valsinhas e fox-trots um
acento tipicamente francês ainda que seus autores sejam músicos que jamais
atravessaram as fronteiras da Lapa. É assim o lugar, pobre réplica de
Montmartre. Pois tão logo entram, se sentam, pedem a primeira bebida e lançam
um olhar à volta, por onde as mulheres circulam, tão logo os fregueses deixem
que a primeira impressão dê lugar a um exame mais atento, serão forçados a
concluir que o Royal Pigalle, por mais que Max, Helena, Gus Brown e outros
pensem que não, no fundo não passa de um cabaré da Lapa. Ceci, mais que os
donos da casa, sabe que não há muita diferença entre um cabaré e outro, o
Apollo dos primeiros tempos, o Royal Pigalle de agora. As luzes coloridas, a
decoração fingidamente belle époque, os maneirismos de Max, a estudada
finesse de Helena, nada disso a impressiona como antes. Talvez comece a se
sentir cansada, os dezoito anos feitos há pouco pesando-lhe como se fossem
trinta. Já é indisfarçável o tédio com que sente o champanhe borbulhar-lhe no
rosto e ouve, noite após noite, os repetitivos galanteios que os fregueses
sussurram-lhe ao ouvido. Como tudo é diferente de dois anos atrás! A menina
que então se deixara seduzir pelos encantos da noite (e que divisara entre as
luzes fracas de um cabaré os contornos vagos do que lhe parecia uma nova vida,
repleta de emoções) é hoje uma mulher que se anima de outros desejos. O maior
deles, rever o irmão, reconciliar-se com o pai, voltar para casa. O sonho em que
começou a mergulhar, naquela festa de São João, durou pouco. O brilho dos
cabarés é fugaz e enganoso como o de uma estrela cadente.
Seja como for, é aqui, numa das noites de maior movimento do Royal
Pigalle - as pessoas transitando por entre as mesas, dois ou três pares rodopiando
na pista de dança, Max saudando clientes em francês, Helena perto do bar - que
Ceci tem a atenção atraída por um moço alto, magro, elegante, simpático, a
quem conhece de vista e de nome. Tem uns vinte e poucos anos e, dizem,
enorme talento para escrever peças de teatro, algumas já encenadas com sucesso
na Praça Tiradentes. Os dois se olham. Ele não fica indiferente à figura mignon,
graciosa, da morena de poucas palavras e muitos sorrisos que o fita à distância.
Aproxima-se: - Eu me chamo Mário Lago.
Ao contrário dos demais fregueses que a tratam com extrema
insensibilidade e até com autoritarismo (os homens que freqüentam a Lapa têm a
arrogância dos compradores, plenamente convencidos de que uma garrafa de
champanhe francês lhes dá direito a tudo, inclusive a tratar mal as mulheres que
lhes vendem atenções), Mário Lago chega-se a Ceci com as maneiras de um
cavalheiro. E é justamente esse cavalheirismo, esse respeito tão raro por aqui, o
que mais a impressiona.
- Saio lá pelas quatro da manhã.
-Não, não quero ver você na hora da saída. Quando é sua folga?
- Terça-feira.
- Pois vou buscá-la em casa para irmos ao teatro.
- Ao teatro?
- Sim.
- E você vai entrar comigo, vai se sentar ao meu lado?
- Claro.
Surpresa e encantamento se misturam no rosto bonito de Ceci. Tudo que ela
sabe de teatro são aqueles festivais caipiras de Jararaca & Ratinho, espetáculos
musicais com gente de rádio, coisas assim. Nenhum freguês lhe fez antes
qualquer convite além do óbvio. Mesmo Noel Rosa jamais a chamou para um
cinema, um programa mais divertido do que os jantares de madrugada, as festas
ligadas a seus compromissos profissionais. Mário é diferente, atencioso, de trato
cortês e carinhoso como só as namoradas de fé inspiram. Inteligente, também.
Sabe poesias de cor, fala de coisas que nunca lhe passaram pela cabeça, assuntos
sérios, complicados, adornados de palavras difíceis. E como conhece gente
famosa!
- Ceci, quero te apresentar o Procópio Ferreira.
- O ator?
Procópio sorri. Está todas as noites no Teatro Regina, com Paulo Gracindo,
Delorges Caminha, Elza Gomes, Restier Júnior, Abel Pera, o grande elenco de
Tabu, comédia de Svoboda. Não gostaria de ir? Ceci não vai querer perder a
oportunidade de ver todos aqueles artistas no palco e, depois, convidada a
prolongar a noite de folga num jantar, conhecê-los pessoalmente. Mário promete
apresentá-la a eles. E também a outros grandes nomes do teatro, autores, atores,
diretores, gente interessante, culta, múltipla. Ficar confinada à Lapa, trabalhar de
noite no cabaré e mal sair de dia, não é vida para ninguém. Mário diz isso a Ceci
em tom afetuoso e não de reprimenda. Gente moça - e ela acaba de fazer dezoito
anos - tem de se divertir, conhecer pessoas, aprender com elas. Ceci fica
fascinada.
Seus programas, a partir do momento em que conhece Mário na quase
penumbra do Royal Pigalle, passam a ser outros, teatro, cinema, ceias em
restaurantes de primeira, a mesa sempre cheia de homens e mulheres do meio
artístico, Procópio, Cordélia, Rodolfo Mayer, Modesto de Souza, Óswaldo
Lousada. E também Walter Pinto, filho do produtor Manuel Pinto, ele próprio
produtor em potencial, jurando que um dia ainda vai montar na Praça Tiradentes
revistas ainda mais luxuosas que as do pai. É realmente múltipla essa gente de
teatro. Engraçada como Grande Othelo, cujas caretas, os beiços tomando a forma
de uma flor, matam Ceci de rir, ou altiva como Custódio Mesquita, cuja
personalidade, pelo contrário, a assusta.
Grande Othelo, aquele mesmo crioulinho que veio de Minas sonhando com
o teatro (e que tentou roubar o show de Oscarito na mesma revista em que
lançou Mais Um Samba Popular), já não é um ator tão desconhecido, desses que
vivem correndo coxia cavando pontas. Mas ainda tem os bolsos vazios.
Permanentemente. Ceci gosta muito dele, costuma chamá-lo para dormir em seu
quarto sempre que o sabe sem destino e sem teto - o que não é raro. Quando
encontra Noel, Grande Othelo faz questão de esclarecer: - Pernoite respeitoso.
Na mesma cama, mas pés com cabeças.
Verdade. Ceci e ele são fraternos amigos. Um dia, sempre abusado depois
do quarto trago, o crioulinho de um metro e cinqüenta e poucos chama para
briga um cidadão muito mais forte com quem se desentendeu no Primor. O outro
avança para ele disposto a trucidá-lo! Mas, no meio do caminho, é atingido na
cabeça por uma garrafada e cai. Só depois Grande Othelo vai saber que quem
golpeou o adversário foi Ceci, salvando-o do pior. Naturalmente, também
encorajada por um quarto gole.
Com Custódio Mesquita, não há dessas proximidades.
- Ele é meu parceiro - diz Mário. Parceiro em Menina, Eu Sei de Uma
Coisa, marchinha despretensiosa que os dois fizeram para o carnaval passado,
gravada sem sucesso por Mário Reis. Parceiro, também, em peças de teatro que
os dois ainda vão escrever a quatro mãos, Custódio referindo-se a elas como
"minhas peças" e deixando para Mário e todos os outros eventuais colaboradores
os papéis secundários dos espetáculos onde o astro terá de ser sempre ele,
Custódio.
- Não sabia que você também fazia música - diz Ceci surpreendendo-se
mais uma vez com os talentos de Mário.
Fazer, propriamente, não faz. Não ainda. Um dia Mário Lago ainda porá
sua veia poética a serviço da música popular, criando algumas letras excelentes
para sambas, valsas, foxs, canções, com melodias inspiradas de Custódio,
Benedicto Lacerda, Roberto Martins, Ataulpho Alves e suas próprias(1).
1. A obra de Mário Lago no campo da música popular seria mais do que expressiva, incluindo composições com Custódio Mesquita (Nada Além, Enquanto Houver Saudade), Benedicto
Lacerda (Número Um), Roberto Martins (Dá-me Tuas Mãos), Roberto Roberti (Aurora), Ataulpho Alves (Ai, Que Saudades da Amélia, Atire a Primeira Pedra) e sozinho (Será?, Fracasso, Devolve).

Mas, por ora, seu negócio é mesmo o teatro, aquela marchinha não
passando de uma tentativa, quase brincadeira, a que foi induzido por Custódio.
Ceci passa a viver, nos últimos meses de 1936, seus melhores tempos desde
que chegou ao Rio. E não apenas por encontrar em Mário Lago o amante gentil e
atencioso que a leva a teatros e ceias, passeios e reuniões agradáveis, jamais
limitando seus encontros às mesas do cabaré ou às quatro paredes de um quarto
de sobrado. Isso também conta. E muito. Mas o que de fato a sensibiliza é a
forma pela qual ele sempre lhe abre espaços em sua vida, fazendo-a participar de
tudo, atribuindo-lhe uma importância que já supunha não ter, dividindo com ela
amigos, hábitos, idéias, coisas ligadas ao trabalho. O que faz Noel Rosa quando
não está aqui? Por onde andará durante seus costumeiros sumiços? Ceci não
sabe. Mário é homem aparentemente sem mistérios. Nem mesmo de suas
posições políticas faz segredo.
- Você não tem medo?
- De quê?
- Ouvi dizer que muita gente foi morta ou presa no ano passado.
Mário não tem medo. Ele mesmo foi preso durante as perseguições ao
pessoal da esquerda. E já havia sido preso antes, em 1932, quando andou metido
em greve de operários, sendo obrigado a fugir para o Uruguai. É um dos poucos,
nesse meio de teatro e música, que parecem se importar com política. Os amigos
às vezes se preocupam ao ouvi-lo chamar Getúlio Vargas de caudilho. E mais
ainda ao vê-lo erguer-se inflamado, à mesa de um restaurante, e discursar, para
quem quiser ouvir, sobre a exploração do homem pelo homem, a luta do
proletariado, as injustiças sociais. Tirando ele e Alberto Ribeiro, praticamente
ninguém por aqui se interessa por política. Podem contar à meia-voz uma
anedota sobre Getúlio. Podem fazer músicas de carnaval gozando veladamente
os homens da política. Podem até, os mais sérios, comentar a Guerra Civil que
acaba de eclodir na Espanha. Mas a revolta dos comunistas, aqui mesmo, no ano
passado, é assunto proibido. Só Mário Lago parece lembrar-se dela: - Os
inocentes estão presos. Os criminosos, no poder!
Ceci fica impressionadíssima com tal arrebatamento. E se sente ainda mais
importante ao saber-se incluída entre as pessoas nas quais Mário confia o
bastante para dizer-lhes o que pensa. Na verdade, ele a inclui em quase tudo, nos
debates políticos, sérios, ruidosos, e nas pequenas molecagens que seu humor
eventualmente concebe para gozar um amigo, um companheiro de teatro. Ceci
será sua cúmplice numa dessas brincadeiras. E a vítima, Oswaldo Sampaio,
cenógrafo da companhia de Procópio. A idéia tem um pouco de Mário, um
pouco de Modesto de Souza. Sendo Oswaldo um homem solitário, fechadão,
sempre trancado no seu quarto de hotel na Avenida Gomes Freyre, Modesto e
Mário inventam uma admiradora para preencher, senão a vida, ao menos a
imaginação do amigo. Uma admiradora que teria se apaixonado pelos cenários
de Oswaldo e graças a isso passado a escrever-lhe cartas de amor. Cartas de uma
mulher sensível para um grande artista. Mário capricha nos textos e pede a Ceci
que, com sua caligrafia bonita, passe-os a limpo. Tem início então uma
correspondência que mudará por algum tempo a vida de Oswaldo Sampaio, ele
escrevendo cartas ainda mais apaixonadas à admiradora. O endereço? Também
isso terá a cumplicidade de Ceci, que concorda em emprestar o seu próprio.
Mário e Modesto, a cada nova carta de Oswaldo, dobram-se de rir. Até que
exageram na brincadeira fazendo com que a admiradora desconhecida proponha
ao cenógrafo um encontro em frente ao relógio da Glória, a uma da manhã. Um
encontro ao qual, evidentemente, só Oswaldo irá, tendo quase um acesso de
loucura quando, de um carro estacionado mais adiante, Mário, Modesto e Restier
Júnior aplicam-lhe impiedosa vaia.
- Foram vocês, seus filhos da puta! Seus malditos filhos da puta!
Sim, de todas as formas Ceci participa da vida de Mário. Não há entre eles -
ao contrário do que é comum nos casos de amor nascidos na Lapa - qualquer
relacionamento que envolva dinheiro. Fazendo questão de representar,
impecavelmente, seu papel de amant de coeur, Mário não presta nem recebe
favores materiais. No máximo, ajudará Ceci a restabelecer-se de assustadora
gripe.
- Gripe?- especula apreensivo o médico que Mário chama para examiná-la.
- Esta moça tem mais que gripe. Vamos tirar uma radiografia.
Estava certo o médico: mais que gripe, uma afecção pulmonar, uma
"sombra" como se diz. Um mal que se pode tornar mais sério se não for tratado
logo. É hora de Ceci se cuidar, de ficar algum tempo sem aparecer no Royal
Pigalle, repousando, comendo bem, trocando os remédios caseiros
recomendados pelas colegas de trabalho, o peitoral de mel, guaco e agrião, por
algo mais forte e eficaz. Pérolas Tonka, por exemplo, que Mário vai comprar
depressa na farmácia da esquina.
Noel não está por perto quando Ceci adoece. Como não estava por perto
naquela noite em que Mário entrou na vida dela:
- Não, não quero ver você na hora da saída...
Em parte pelas repetidas brigas que acabaram amornando sua convivência
com Ceci, em parte por seus próprios problemas de saúde, ele anda sumido da
Lapa. E foi justamente no vazio dessa ausência que Mário se instalou. Edgar
Graça Mello, paciente, incansável, obstinado médico e amigo, recomendou-lhe
ficar em casa por alguns dias, depois que dona Martha o chamou ao chalé,
assustada com a tosse, a falta de ar, a febre que mais uma vez derrubam o filho.
- Por favor, Noel, tome juízo e trate de se cuidar.
Conselho inútil, sabe o médico. Mas nem por isso deixa de repeti-lo,
sempre acompanhando-o de receitas e instruções que Noel porá de lado na
primeira oportunidade. Passada a febre - a temperatura sendo a determinante de
seu comportamento - lá estará ele novamente na rua, dando uma espiada no
Ponto de 100 Réis, procurando velhos amigos e até se sentando despreocupado a
uma das mesas do Rio Club.
- Martinez, que tal uma cerveja? Anselmo Seixas, um dos empregados do
bicheiro Lourenço, o vê de longe. A garrafa de Cascatinha, bem gelada, ali posta
pelo Martinez, chama sua atenção. Não lhe tinham dito que Noel estava doente,
com febre, de cama? Então como é que agora se enchafurda numa cerveja?
Aproxima-se.
- Me faz companhia, Anselmo?
- Obrigado, Noel. Mas você não estava de cama?
- Estava, mas agora estou mais forte que um leão.
Anselmo pergunta-lhe se a cerveja gelada não fará mal aos pulmões, se não
poderá provocar uma recaída, trazer a tosse de volta.
- Pelo contrário.
Diante da estranheza de Anselmo, Noel expõe sua teoria:
- Quanto mais gelada a cerveja, melhor. O gelo, não sei se você sabe,
paralisa os micróbios. Congelados, os bichinhos sossegam. E não me fazem
tossir. Como vê, cerveja é um santo remédio.
E, virando-se para o Martinez, ordena:
-Doutor, mais um xarope pra tosse. Bem gelado!
Por esses dias, o máximo que pode fazer para não contrariar Edgar é dormir
cedo, não ir à cidade, evitar certos lugares, principalmente a Lapa. Fica pelo
bairro, visita velhos amigos, quando muito dá uma esticada até o barraco de
Cartola, em Mangueira. Mas nada de saídas muito prolongadas. Mesmo porque
às vezes o fôlego lhe falta. Quanto a largar os botequins do bairro, a cerveja, isso
não pode prometer a Edgar, que agora, quando o encontra entre garrafas vazias
nos cafés do Ponto de 100 Réis, já não se chega como antes. Guarda sua zanga
de médico e amigo, os conselhos, tudo que tem a dizer. Prefere passar ao largo,
cumprimentar Noel com um aceno, seguir em frente.
A teoria do congelamento dos micróbios não é a única que expõe entre uma
Cascatinha e outra a companheiros que acham graça em tudo o que diz, não
percebendo o quanto de irônico e sinistro há em tais histórias. Alguns têm
consciência de seu estado. Como Floriano Belham:
- Não acha que está se matando, Noel?
- Ora, Floriano... Senta e toma uma cerveja por minha conta.
Ou como Nássara, que ouve outra de suas teorias ao encontrá-lo, já de
manhã, a intercalar goles de cerveja com outros de conhaque.
- Por que não come alguma coisa, Noel? Beber assim, cerveja e conhaque,
de estômago vazio, não faz bem. Você tem de se alimentar.
- E o que pensa que estou fazendo?
É então que se põe a discorrer sobre o alto valor nutritivo da cerveja, o
poder sedativo do lúpulo, a riqueza da cevada que é até usada para engordar
gado, os glicídios e as enzimas contidos no malte. Pensando bem, uma cerveja
vale por um almoço.
- Está certo - conforma-se Nássara. - Mas e o conhaque?
- Bem, o conhaque é porque não gosto de comer sem beber.
Noel não pode ou talvez não queira ver o que lhe vai por dentro, os dois
pulmões castiga-os por um mal que se alastra mais rápido do que seus
companheiros de botequim imaginam. A temperatura é de fato o que determina
seu comportamento diante da doença. Se está com febre, deixa-se frear um
pouco, recolhe-se, concorda em tomar os remédios. Se a febre se vai, é hora de
voltar a viver sua vida. Quer dizer, reconciliar-se com as madrugadas, rever a
Lapa, Ceci.
- Como estão as coisas?
- Na mesma.
Uma vez mais ela prefere não dizer a verdade. Para quê? Recomeçar as
discussões, tornar ainda mais penoso o diálogo entre eles? Talvez Noel ainda
não saiba de Mário Lago. Melhor, portanto, que outros lhe contem. E mesmo
que já saiba resta a possibilidade de pensar que o outro é apenas mais um de seus
tantos namorados ocasionais, daqueles a que ela, "por gentileza", não sabe dizer
não. Namorados que sempre fizeram Noel crispar-se de ciúme, mas só por
pouco, até que a voz suave de Ceci lhe viesse segredar: - Gostar, mesmo, só
gosto de você... Ceci espera que ele custe a perceber que Mário não é um
namorado ocasional. Tenta adiar, tanto quanto possível, o impensável momento
em que Noel descobrirá que não é só dele que ela gosta. Frágil esperança,
ingênua tentativa. Então não se lembra que Noel a conhece pelo olhar, pelo
modo de dizer as coisas, pelo tom de voz?
- Você ainda não aprendeu a mentir... - disse ele tantas vezes.
Algo mais, porém, a perturba nesse dividir-se entre Noel e Mário. Mais que
a antevisão de um possível desenlace, ela, Noel, todos sofrendo, o que a
incomoda, de verdade, é a dúvida. Antes, Noel sem aparecer na Lapa, Mário
sempre presente, sentia-se mais segura de seus sentimentos, feliz como nunca,
tudo muito simples. Agora, Noel de volta, ela alternando entre os dois seus
começos de tarde ou fins de noite, a situação muda, tudo muito complicado.
Sente-se repartida, fracionada, feita em pedaços. Por quê? Qual a razão de tanta
dúvida, de não poder se decidir logo entre os dois, sempre pensando em um
quando está nos braços do outro? Uma dúvida tão grande, tão angustiante, que
mesmo daqui a muitos anos, os amores de hoje já convertidos em longínquas
lembranças, ainda se sentirá presa dessas interrogações(2).
2. Por longas horas Ceci conversou com os autores sobre aqueles dias em que se dividia entre Noel Rosa e Mário Lago. Quarenta e cinco anos depois ainda passava de frases como "Eu já
estava apaixonada pelo Mário..." para outras como "Eu amava muito Noel..." Tudo naqueles últimos meses de 1936.

Seus pensamentos voam. Flutuam incertos entre o amor que acaba de


chegar e o amor que ainda não se foi. Decolam de um, pousam em outro,
invertem tudo mais adiante. Vão de um Noel fugidio, volta e meia batendo asas,
amando-a hoje, desertando-a amanhã, para um Mário cada vez mais aqui.
Oscilam entre um Noel inatingível, não só por ser casado (o que já seria o
bastante para eliminá-lo como provável salvo-conduto à sonhada reconciliação
com o pai), mas também por não querer se prender a ninguém, e um Mário
solteiro, livre, dizendo-lhe palavras tão gentis que alimentam nela a esperança de
que a tire daqui para fazê-la sua mulher. A idéia do casamento não a abandona.
Em sua lógica simplista, no dia em que se tornar uma "senhora casada", o
casamento como atestado de respeitabilidade, o pai a receberá de volta. E por
que não como "senhora Mário Lago"? Jamais falará a ele sobre esse projeto,
quase sonho, mas lá no íntimo espera que se realize(3).
3. Mário Lago, em entrevista aos autores, a 5 de janeiro de 1983, confirmou que Ceci jamais lhe deixou perceber seu secreto projeto de casamento. Tinha, porém, consciência de que ela era
uma mulher literalmente dividida. Como deixa muito claro, também, em seu livro Na Rolança do Tempo, quarta edição (página 104): "... o Royal Pigalle, onde trabalhava Ceci-pingo-d'água, que às vezes
me acarinhava as noites com o pensamento em Noel Rosa..."

Noel nunca se importou muito com sua situação familiar. Mário, ao


contrário, vive a perguntar-lhe pelo pai, pela madrasta, pelos parentes menos ou
mais chegados. Não fosse ele, não teria se reaproximado do irmão, Mário indo
descobrir Didito para que ficassem mais perto um do outro e assim começassem
a vencer juntos as difíceis etapas da viagem que poderá levá-la de volta a
Friburgo. O irmão aceita-lhe a vida. E promete, sempre que estiver com o pai,
minar-lhe a resistência para que o velho reabra à filha o coração endurecido pelo
desgosto. Mas Noel tem algo que Ceci não sabe definir, uma certa candura, um
ar desprotegido que se converte em estranha força que a envolve. Nada que
possa explicar, é verdade, mas alguma coisa que a prende tanto quanto a Mário.
Este é bem-apessoado, veste-se com capricho, tem mesmo o porte de um artista
de cinema. Noel é o oposto, feio, descuidado com as roupas. No entanto, de tal
forma ela o vê que não raro surpreende-se a dizer para si mesma: "É um homem
bonito..." Nestes momentos, não pensa no queixo, na boca deformada que se
enfeia ainda mais nas poucas vezes em que Noel mastiga (ultimamente, então,
ele parece viver em constante jejum). Pensa apenas nos olhos, na metade do
rosto poupada pelo fórceps do Dr. Heleno Brandão. Mário também foi extraído a
ferro, mas Deus tem lâ os seus caprichos na hora de traçar o destino das pessoas,
Mário tão bonito, Noel tão dolorosamente marcado desde o dia em que veio ao
mundo. Terá pena dele? Não, Ceci o ama. Da mesma forma que está amando
Mário. Ou um pouco diferente. Os pensamentos voam. Mas de onde para onde?
Os dois são bons, a tratam bem, mas se Mário a distingue com atenções só
concedidas a uma verdadeira dama, Noel talvez a compreenda melhor. Por
exemplo, naquelas terríveis noites em que, por saudade de casa ou lá o que seja,
Ceci mergulha com desespero no champanhe. E não só no champanhe, mas no
conhaque, no pernô, no que lhe puserem nas mãos. Não é comum embriagar-se,
mas quando acontece, o álcool transfigurando-a, nada ou ninguém consegue
aquietá-la: xinga, quebra copos, atira garrafas na cabeça de valentões como
aquele que quis trucidar Grande Othelo. Normalmente tão doce, tão incapaz de
altear a voz, passa a provocar pessoas, a ameaçar agressões que só não se
consumam porque, pequenina, um "pingo d'água" como costuma dizer Mário,
bastam dois braços fortes para conter-lhe o ímpeto. Nessas horas, Ceci deixa de
ser Ceci. E é difícil gostar dela. Mário mesmo é um dos que não lhe toleram os
escândalos ("Esta mulher, quando bebe, é uma chave de cadeia...", resmunga).
Noel nada diz. No fundo, também ele, quando bebe, pode virar chave de cadeia.
Mário é elegante, educado, exigente na hora de escolher os amigos, tudo gente
culta, de teatro, aprumada como ele. Procópio Ferreira, que a trata com a maior
deferência ("A senhora aceita mais um pouco de vinho?"), ou Custódio
Mesquita, que se senta à mesma mesa em que janta com Mário. Amigos
selecionados que Ceci acredita conferirem a ela certa distinção. Pois as colegas
do cabaré, como a belíssima Thereza, não vivem pedindo-lhe que use sua
"influência" junto a Mário Lago para que lhe consiga um encontro com
Custódio? ("Ele é um encanto, Ceci, faça isso por mim...") Já os amigos de Noel
são sempre os boêmios da Lapa, malandros, bêbados, mendigos, compositores
desconhecidos que saem de suas tocas na esperança de que os ajude a "encaixar"
um samba no repertório de algum cantor famoso, samba que talvez o próprio
Noel terá de completar (se não acontecer de fazê-lo todo, música, letra, primeira
e segunda partes, renunciando desprendidamente à autoria). Quantas vezes Ceci
se viu obrigada a partilhar sua mesa com toda sorte de marias-fumaça e joões-
ninguém que compõem o círculo de amizades de Noel? Ela ainda dá graças a
Deus quando, a essa roda de pobres coitados, vêm-se juntar um Vadico, um
Sílvio Caldas, gente educada que costuma lançar algumas luzes nessas águas
turvas em que Noel divide seu tempo com os habitantes de uma Lapa marginal.
Mas também isso - os pensamentos sempre voando, confundindo Ceci,
impedindo-a de se decidir entre os dois amantes - não é necessariamente um
trunfo de Mário contra Noel. Mesmo em sua lógica simplista, em sua maneira
quase sempre superficial de olhar a vida, uma contradição não lhe escapa: é
Mário quem fala na igualdade entre os homens, no quanto é injusta esta
sociedade que deixa desamparados tantos pobres, tantos inocentes, conclamando
todos a lutarem para que a injustiça tenha fim; no entanto, seus amigos são todos
da alta, bem-vestidos, dinheiro no bolso, freqüentadores de lugares chiques, que
não parecem nada interessados em acabar com a pobreza. Ceci nunca viu Mário
sentar-se com um daqueles mendigos que tantas vezes aliviaram o estômago
com pratos de sopa pagos por Noel ("Vem cá, come com a gente...", costuma
dizer fazendo o miserável sentar-se ao seu lado, em vez de mandá-lo embora, a
consciência tranqüilizada por dois ou três tostões depositados no fundo de um
velho chapéu). Mário teoriza sobre o quanto é preciso fazer pelos desvalidos. É
sincero, acredita nisso. Contudo, é Noel quem exerce na prática, todas as noites,
em todos os lugares, os verdadeiros gestos de igualdade.
Mas para que todas essas comparações? De que adianta colocar os dois
amantes nos pratos de uma balança que não lhe dirá nada além do que já sabe?
Ceci ama os dois. E ainda que a cada dia se afaste mais de um para se chegar a
outro, os pensamentos continuarão voando. E ela será, para sempre, uma mulher
permanentemente em busca de respostas.
Mas tão transparente aos olhos de Noel que tais dúvidas não tardam a ser
intuídas por ele. Não é necessário que lhe conte nada, que se perca em
explicações ou tenha de passar pelo constrangimento de dizer que tem outro
amor. Como, quando e por quem Noel vai saber de Mário é impossível precisar.
As mesas dos cabarés da Lapa não guardam segredos, todos sabem de tudo que
se passa à sua volta. É inevitável que, animado por goles de vermute sorvidos
numa madrugada qualquer, alguém lhe diga - talvez em tom de intriga, fato
comum nessas rodas de botequim - da nova aventura de Ceci. Afinal, já
aconteceu outras vezes, incômodos falastrões vindo lhe perguntar, cobertos de
malícia: "Sabe com quem ela saiu na noite passada?" A história teria de se
repetir. Mas a verdade, mesmo, a importância que esse novo caso tem na vida
dela, Noel há de saber olhando-a nos olhos.
Ele e Mário Lago só se conhecem de vista. Embora tenham quase a mesma
idade (Noel é mais velho um ano menos quinze dias), parecem-se bastante
separados no tempo. Pelo menos em termos de boêmia, Noel já se pode
considerar um veterano, um velho freqüentador do Mangue, do Estácio, dos
botequins do Centro, desses cabarés que se dispõem ao longo da Mem de Sá e da
Visconde de Maranguape. E só agora Mário começa a aparecer pela Lapa.
Encontraram-se algumas vezes no Nice, outras em reuniões com amigos
comuns, outras mais aqui e ali. Trocaram meia dúzia de palavras, nada mais.
Hoje, que os dois sabem existir uma mulher entre eles, tornam-se ainda mais
estranhos, olhando-se à distância, cismados. Jamais serão amigos. Nem
poderiam. A impedi-los, Ceci e o tempo. Ceci que não sabe o que quer, tempo
cada vez menos generoso para com um Noel doente e cansado.
- Mas ainda gosto muito de você, Noel.
O silêncio como resposta é o suficiente para que Ceci saiba que ele não
acredita. Sempre foi assim, as queixas, as zangas fingidas, nas horas em que
Noel não vê em seus erros mais do que travessuras de criança, perfeitamente
perdoáveis, e o silêncio, um silêncio frio, cortante, se algo que ela faça o
machuque de verdade.
É durante esse período difícil para todos - ele, Ceci, Mário - que Noel
rabisca os primeiros versos de um novo samba. Nada mais do que rabiscos sobre
os quais ajusta um começo de melodia, sementes que guardará até que tenha
forças para fazê-las brotar:
Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?

Versos interrogativos para uma interrogativa Ceci:


Pra que mentir
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?

Vadico está todas as noites no Lido com seu piano, o sax-tenor de Quincas,
o sax-alto de Lupercílio Lyra, o pistom de Gumercindo Mello, o contrabaixo de
Lilico e a bateria de Busquet. Um conjunto de formação jazzística que toca
choros e sambas porque os dançarinos assim o exigem, mas que se sente bem
mais à vontade num fox dolente, melodioso, sobre cujas frases Vadico improvisa
harmonias, enquanto Quincas e Lupercílio perdem-se em complicados solos.
Terminado o trabalho, o pianista costuma passar pela Lapa para um trago com
algum amigo que esteja vagando por ali. Amigos como Noel Rosa. Eles tanto
podem se encontrar no Indígena como no Leitão, no 1900 como no Siri, mas é
geralmente no Café Club que se reúnem para falar de samba. Porque Vadico, se
é jazzístico no Lido, nem se atreve a pensar em música americana quando está
com o parceiro. Nesses momentos, o assunto é mesmo samba. E samba triste,
pois nada além de tristeza sabe cantar Noel neste crepúsculo de 1936.
É com Vadico que ele escreve mais um inspirado em Ceci, a mentira, a
traição colorindo tudo, os carinhos, as frases sem sentido ditas por ela ao seu
ouvido: (Quantos Beijos)
Quantos beijos quando eu saía!
Meu Deus, quanta hipocrisia!
Meu amor fiel você traía
Só eu é que não sabia.

Não andava com dinheiro todo dia


Para sempre dar o que você queria,
Mas quando eu satisfazia os seus desejos...
Quantas juras! Quantos beijos!

Não esqueço aquelas frases sem sentido


Que você dizia sempre ao meu ouvido.
Você, porém, mentia em todos os ensejos...
Quantas juras! Quantos beijos!

O samba, Quantos Beijos!, reflete o estado de espírito de Noel nos últimos


meses do ano(4).
4. Ao estabelecer para Clemente Neto (pseudônimo de Herberto Salles) a cronologia de sua obra em parceria com Noel - Revista da Música Pupular, número 7, maio-junho de 1955 (página
2) - Vadico comete enganos. Segundo diz, as músicas teriam sido escritas nesta ordem: Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim, Cem Mil Réis, Provei, Marcha do Dragão, Quantos
Beijos!, Tarzan, o Filho do Alfaiate, Mais um Samba Popular, Só Pode Ser Você e Pra Que Mentir? Pesquisa realizada pelos autores, com base em elementos apresentados ao longo deste texto ou então
na musicografria do final do volume, permite concluir que a ordem correta é a seguinte: Feitio de Oração (1932), Mais Um Samba Popular e Feitiço da Vila (1934), Só Pode Ser Você e Conversa de
Botequim (1935), Tarzan, o Filho do Alfaiate, Cem Mil Réis, Marcha do dragão, Quantos Beijos! e Provei (1936) e Pra Que Mentir? 1937).

O inspirado Vadico é seu parceiro ideal nestes dias. Ideal e derradeiro, já


que Noel não se ligará a nenhum outro a partir de agora. Vadico conhece Ceci,
tem acompanhado de perto o romance dela com Noel, sabe bem do que vai no
coração do amigo. Talvez por isso esteja tão afinado com a tristeza de seus
versos.
Mais uma vez Noel se afasta da Lapa, escapulindo sorrateiramente de uma
arena na qual não quer estar. Jamais acreditou nas lutas de amor, em batalhas
que de uma forma ou de outra são sempre perdidas. Daqui por diante, enquanto
forças tiver, será visto em muitos lugares, Vila Isabel, Maracanã, Mangue,
Estácio, mas não na Lapa. Nem no Nice, do qual Mário Lago virou freqüentador,
desses de dois expedientes, de tarde e de noite sentado à mesma mesa.
Pode ser visto, também, nos corredores das emissoras de rádio. Já não
pertence a nenhum cast em especial, suas atividades reduzidas a esporádicas
apresentações na Educadora, na Mayrink Veiga ou na Club do Brasil. Nunca foi
exclusivo de nenhuma delas, quanto mais agora. Por isso os ouvintes bem podem
ser surpreendidos ao sintonizarem a Cruzeiro do Sul ou a Transmissora e lá
captarem a voz miúda, frágil, de Noel Rosa em um de seus sambas. Canta numa
ou noutra em troca de irrisórios cachês. Ou de convites feitos em nome da "velha
amizade".
Nessas andanças pelos corredores das rádios, constata que há muita gente
nova surgindo na música popular. E gente boa. Já não são apenas Francisco
Alves, Sílvio Caldas, Mário Reis, Gastão Formenti, Vicente Celestino, João
Petra de Barros os únicos cartazes do microfone. Nem as irmãs Miranda,
Elisinha Coelho, Aracy e Marília. Começa-se a fazer uma renovação por toda
parte. Orlando Silva, que até bem pouco não passava de um trocador de ônibus
transformado em cantor pelas mãos do Chico, está prestes a alçar vôo rumo às
estrelas. Outros começam a conquistar lugar nas rádios e nas gravadoras. São
bons ventos que sopram.
É na Club do Brasil que certa noite Noel atenta para uma morena que canta
de olhos fechados um sucesso do ano passado:
Coração, governador da embarcação do amor
Coração, meu companheiro na alegria e na dor...
É pequena, magra, o rosto mal se podendo ver por trás do imenso
microfone RCA colocado a meio palmo de distância. Jovem, dezessete anos no
máximo, alguém diz que foi trazida por Jacob Bittencourt, o do bandolim. Noel
fica ouvindo a moça em silêncio, atrás do vidro do aquário. O número termina,
ela sai do estúdio.
- Você tem uma bonita voz.
A cantora pára, meio assustada, paralisada quase pelas palavras com que o
compositor famoso a surpreende no corredor. É a sua primeira noite aqui. E
ninguém menos que Noel Rosa lhe vem elogiar a voz fina, suave, mas ainda
insegura de cantora principiante.
- Mas me diz uma coisa: por que diabos você canta música do repertório de
Carmem Miranda?
- Ainda não tenho meu próprio repertório.
- Vem cá.
A história se repete como há três anos, Aracy de Almeida cantando música
do repertório de Carmem, ele chegando, elogiando-lhe a voz, chamando-a para
ensinar-lhe novos sambas. Quem sabe não dê a mesma sorte? Leva a moça pela
mão até um canto do corredor, vê um violão encostado, tira-o da capa, afina-o,
tudo muito rápido.
- Vou te ensinar um samba. É novo. Se você quiser, pode lançá-lo no
próximo programa.
E ele próprio canta, não um novo samba, mas uma pequena jóia: (Quem Ri
Melhor)
Pobre de quem já sofreu neste mundo
A dor de um amor profundo
Eu vivo bem sem amar a ninguém
Ser infeliz é sofrer por alguém
Zombo de quem sofre assim
Quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!

Felicidade é o vil metal quem dá


Honestidade ninguém sabe onde está
Acaba mal quem é ruim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!

Sabendo disso eu não quero rir primeiro


Pois o feitiço vira contra o feiticeiro
Eu vivo bem pensando assim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!

Noel escreve a letra de Quem Ri Melhor numa folha de papel e a entrega à


moça. Repete que ela pode lançá-lo no próximo programa, Se quiser, é claro.
- Mas eu quero!
A moça mal pode acreditar no que está acontecendo. Um samba inédito
para ela cantar em primeira audição! E não um samba qualquer, mas um samba
lindíssimo. Bons ventos sopram também para ela. Noel talvez não lhe note o
contentamento. Deseja-lhe sorte e pergunta:
- Como é que você se chama? A moça, tímida, responde:
- Elizeth... Elizeth Cardoso.
Mário Lago em sua formatura na Faculdade Nacional de Direito, no Teatro João Caetano. Rio de Janeiro, 1933
Elizeth Cardoso
Capítulo 43

UM GOSTO DE DESPEDIDA

Certa altura, gestos, palavras e canções parecem adquirir um gosto de


despedida. Como esta triste e desconhecida Quem Parte Não Parte Sorrindo:
Quem parte não parte sorrindo,
Sorrindo talvez eu queira te esquecer
E tenha o grande prazer de te dizer
Que não vou sentir nenhuma dor
Sem teu amor.

Quem parte não parte chorando


Na frente de quem não quer bem
E eu choro somente quando
Quem fica saudades tem.

Quem parte só parte sorrindo


Na frente de quem não convém
Saber que quem ri vai fingindo
Não ter amor a ninguém.

Começa a desligar-se de coisas que antes lhe eram importantes, o caderno


de letras e esboços de samba que vai parar nas mãos de Arnaldo Araújo, o
tinteiro que dá a Almirante, a bengala com que presenteia Alegria, a carteira de
músico que entrega a Sylvestre Travassos, seu colega nos bancos da escolinha,
hoje oficial do Exército. A Jocelyn da Encarnação, uma buzina em miniatura:
- É para você botar naquela bicicleta. Ainda existe?
Sim, a bicicleta, a pelerine, os versos em que diz ter aceito sem zanga a
reprimenda do amigo quase irmão. As fotografias também são distribuídas entre
os parentes, os vizinhos mais chegados como Dorica, Vicente Sabonete, seu
Bruno, os Guimarães, os Graças Mello, os Brandões. Fotografias antigas, ele
ainda bebê, ou mais recentes, como a "pose oficial", acendendo o cigarro no
Studio Mamede.
A febre indo e vindo, nos dias em que é obrigado a ficar em casa, sempre
por imposição de Edgar, procura pôr em ordem seus poucos pertences, arrumar o
pequeno bureau entulhado de papéis velhos. Decide, finalmente, entregar-se à
tarefa que vinha adiando há tanto tempo: organizar os recortes de jornais e
revistas, os programas de cinema e teatro, os suplementos de gravadoras, todos
os impressos, enfim, que falem bem ou mal de Noel Rosa. Esses recortes vêm
sendo colecionados desde 30 de julho de 1929, quando os jornais anunciaram, ao
lado dos nomes de Aracy Cortes e de todo o Bando de Tangarás, a estréia no
Teatro Recreio de um certo Noel Medeiros Roxo.
Compra um caderno de capa dura, verde, de duzentas paginas tamanho
almaço, sem pauta, e nele vai colando tudo que guardou. Na folha de rosto, uma
advertência de próprio punho sob o título Este Álbum.
Este álbum não é meu:
É de Martha de Medeiros Rosa (minha mãe).
Foi em 1929 que ela começou a juntar todos os artigos de jornais e revistas,catálogos de gravações e programas de festas que trouxessem meu nome.
No dia 9 de setembro de 1936, em Vila Isabel, os recortes colecionados foram colados nesse álbum.
N.B. -- Os artigos que falam mal da pessoa do sr. Noel Rosa, estão contornados de vermelho para serem encontrados mais facilmente.
Rio de Janeiro
Bairro de Vila Isabel
Rua Theodoro da Silva 130.

(Esse número foi transformado em 392) Noel Rosa


(Noel de Medeiros Rosa)

Nela, pelo menos três detalhes chamam a atenção: primeiro, o fato de


atribuir à mãe o cuidado de ter colecionado tudo isso durante estes oito anos
(como se querendo deixar aos futuros consulentes do álbum a impressão de que
não tem muito interesse por si mesmo); segundo, a ironia de sempre, um nota
bene explicando que os artigos que falam mal dele serão assinalados em
vermelho para que sejam encontrados mais facilmente (e de fato fará isso,
destacando, por exemplo, a carta de um leitor anônimo paulista que lhe manda
recortes de A Acção acusando-o de ter plagiado o Hino Nacional ao compor O X
do Problema); e terceiro, a data de 9 de setembro de 1936, vésperas de uma
primavera que já não lhe sorri como as de antigamente. Este caderno - terá Noel
consciência disso? - será uma valiosa fonte de informação sobre sua carreira e
mesmo sobre sua personalidade, os programas, as críticas, as entrevistas, as
notícias de jornal. Por que terá chegado à conclusão de que é hora de colá-los?
(1) 1. O precioso Este Álbum de Noel Rosa, que durante muito tempo foi dado como desaparecido ("No próprio dia triste de sua morte - diz Almirante em No Tempo de Noel Rosa, primeira edição,
página 209 - inúmeros repórteres presentes, na busca de dados, arrancavam as páginas do caderno que lhes pareciam indispensáveis. Assim foi sumindo Este Álbum, restando somente a capa..."), esteve
guardado com amigos da família que o passaram às mãos de Jacy Pacheco, infelizmente depois de já ter ele escrito seus dois livros sobre o primo. Hoje pertence aos arquivos dos autores.

Sabe por alguém que Ceci mudou novamente de emprego. Do afrancesado


Royal Pigalle para o cosmopolita Caverna. Cosmopolita? Os donos de dancing
vivem lançando mão de expressões como esta, eufemísticas, sempre que se
referem às suas casas. Por que não dizer logo que o cosmopolitismo do Caverna,
ali no subsolo do Cassino Beira-Mar, não passa de desordem e promiscuidade?
Ceci talvez esteja descendo. Não só do primeiro andar do Royal Pigalle para o
porão do Caverna, mas também na vida. Noel, porém, não chega a testemunhar a
queda. Já não a vê, já não vai à Lapa.
Não aparecer em lugares de sua predileção também faz parte desse
desgarramento, dessa despedida inconsciente que empreende nos últimos meses
de 1936. Em geral sai sozinho, evita pessoas, principalmente as que vivem
perguntando como vai a saúde, se está melhor, pronto pra outra.
Nestes dias, tanto pode ser visto numa mesa de fundo de um botequim do
subúrbio, como sentado na soleira da porta do barraco de Cartola em Mangueira.
Quer dizer, quase não pode ser visto. Eventualmente um amigo esbarra nele, mas
é impossível saber de onde vem ou para onde vai. Uma noite, dirigindo-se de
bonde para a Praça 7, onde mora bem ao lado do Convento da Ajuda, Floriano
Belham o vê numa das esquinas do Boulevard. Sozinho, grudado ao violão.
Floriano resolve saltar. Há muito tempo não vê o amigo, quer saber como está, o
que tem feito.
- Perdeu o caminho de casa, Noel?
-Não, apenas cantando minhas mágoas.
Começa a desenhar acordes no violão, enquanto conversa com Floriano. É
quase uma da madrugada, faz calor, há estrelas no céu.
- Não podemos desperdiçar uma noite como esta, Floriano. Tenho uma
idéia: vamos até a Taberna da Glória, tomamos umas cervejas, arranjamos umas
pequenas. Que me diz?
Floriano tenta explicar que tem de acordar cedo amanhã, dia de batente, o
trabalho acumulado na repartição. Mas Noel insiste: - Está cheio de mulher por
lá.
Floriano se anima. Os dois vão até a Taberna da Glória, visitam outros
bares, bebem muita cerveja, misturam com conhaque, ficam olhando as
mulheres. Olhando apenas. Lá pelas quatro da manhã, meio grogues, voltam a
Vila Isabel. Como sempre, as propostas partem de Noel, desta vez para que
terminem a noitada com uma média no Ponto Chie, botequim que nunca fecha.
Noel chama o garçom: - Por favor, uma média com sanduíche.
- Sanduíche de quê?
- De pão com pão.
O garçom olha arrevezado. Quase cinco da manhã não são horas de achar
graça em piada sem graça. Mas Floriano nota que Noel está para brincadeiras. Já
contou uma ou duas anedotas, volta a mexer com o garçom, nem parece ligar
muito para a dificuldade com que mastiga o pão amaciado na frigideira. Floriano
sente-se à vontade para brincar também. Lembra-se de um amigo de repartição
que anda metido com essa história de ocultismo, tirando cartas, lendo mãos,
antevendo futuros. O próprio Floriano anda interessado no assunto, tendo
comprado alguns livros sobre telepatia, espiritismo, magias, vidências,
quiromancia.
- Quer dizer que você sabe ler a mão?- pergunta Noel curioso.
- Claro que sei - mente Floriano.
- Então leia a minha - Noel estica-lhe a direita.
Floriano faz pose de quem realmente entende, leva a mão à testa num gesto
meditativo, fica sério, fecha os olhos. Segura a mão de Noel e começa a
lucubrar: "Esta é a linha da vida, longa, e esta outra é a do destino, cheia de
surpresas." Noel ouve com atenção. Parece acreditar mesmo que os olhos do
amigo sejam capazes de descobrir-lhe na palma da mão todos os segredos do
passado e todos os mistérios do futuro.
-E o futuro é uma continuação do passado...- diz Floriano tornando a voz
mais grave, imprimindo ênfase às palavras.
Notando que Noel está levando a brincadeira a sério, Floriano não resiste à
tentação de pregar-lhe um susto: - A loucura... Sim, a loucura! Noel estremece:
- Que história é essa, Floriano?
- Estou vendo uma coisa aqui na sua mão. Diga-me uma coisa, Noel. Você
já teve algum caso de loucura na família?
Floriano não sabe de seu Medeiros, ouvira falar por alto de sua morte numa
casa de saúde, mas não dos detalhes. Diante da pergunta, Noel empalidece. A
mão treme, os braços tremem, todo o corpo treme. Começa a suar frio, perde a
voz, dá a Floriano a impressão de que vai desmaiar. O amigo se assusta, pega um
guardanapo, põe-se a abaná-lo.
- O que aconteceu com ele?- pergunta o garçom.
- Não sei.
- Não terá bebido demais?
- Não, nada disso. Está passando mal.
- Não é melhor chamar uma ambulância?
Floriano tenta, sem êxito, reanimar Noel, que continua tremendo, suando
frio. Ele e o garçom fazem força para levantá-lo da cadeira.
- Vou ver se consigo levá-lo para casa.
Do Ponto Chie ao chalé são dois quarteirões pelo Boulevard, mais um pela
Souza Franco, uma caminhada normalmente tranqüila, mas Floriano teme que,
nesse estado, meio fora de si, Noel nem chegue à metade.
- Pode deixar, Floriano... Eu vou sozinho - diz como se recuperando a fala,
embora ainda pálido, trêmulo, transpirante.
- Vou com você.
Os dois andam lado a lado, Floriano amparando-o. O que terá dado em
Noel? Por que terá ficado tão impressionado? No chalé, Floriano sente-se na
obrigação de chamar dona Martha e Hélio. Já passa das seis, estão todos de pé.
Lindaura também se aproxima.
- Não sei o que aconteceu com ele - diz Floriano. -De repente, começou a
sair de si, a esmaecer. Parece que entrou em transe.
Vão todos acordar o seu Bruno ali em frente. O consultório ainda não abriu,
mas não tem importância. O dentista, mais amigo que dentista, está sempre
pronto a receber Noel. Manda que o tragam, que o façam sentar-se. Noel
continua tremendo, suando. O dentista abaixa o encosto da cadeira até
transformá-la numa cama improvisada. Pede que Noel feche os olhos, que todos
façam silêncio, diz coisas aparentemente sem sentido e agita as mãos em gestos
mais sem sentido ainda.
- Com estes passes ele ficará bom - explica.
De fato, ele se recupera, a cor lhe volta ao rosto, os braços e as mãos ficam
firmes, o suor frio se vai. Os "passes" de seu Bruno fizeram efeito. Noel se sente
como se despertado de um longo sono, sem lembrar o que se passou depois que
Floriano lhe perguntou se havia caso de loucura na família. Do consultório Noel
vai direto para a cama, dormir de verdade. Só no dia seguinte, ao narrar o
episódio para amigos do Ponto de 100 Réis, Floriano fica sabendo o quanto foi
inoportuna sua quiromancia: - Mas como é que eu podia saber que o pai dele
morreu louco!(2) 2. Esta passagem, já focalizada por Jacy Pacheco em O Cantor da Vila (páginas 134-135), foi recontada aos autores, com novos detalhes, pelo próprio
Floriano Belham.

Despedidas, desgarramentos, Noel deixa isso mais ou menos claro em cada


gesto ou palavra. As pessoas podem não notar, mas a fraqueza geral (ou o que
quer que se vá por dentro de seu indevassável mundo interior) faz com que não
lute muito pela vida, que abdique de tantas coisas. E por falar em abdicar, é este
o tom da resposta que dá ao repórter de Carioca que o procura para incluí-lo
entre as personalidades do rádio convidadas a participar da enquete "Se você
acordasse Presidente da República, o que faria?"
"- Creio que abdicaria imediatamente - respondeu ele.
- Em favor de quem?
- Em favor de João-Ninguém, que não tem ideal na vida... "(3) 3. Carioca, 29 de agosto de 1936
(página 48).

Retirando-se do campo de luta, cansado, mas ainda assim pensando em seus


sambas, no carnaval que se aproxima.
Noel e Cartola continuam grandes amigos, afinidades e afeição que só
aumentaram com o tempo. O compositor de Vila Isabel ainda se sente muito à
vontade no humilde barraco do sambista da Mangueira. Tem trânsito livre no
morro, conhece seus caminhos de terra batida, sabe contornar seus buracos e
suas pedras, equilibra-se por ali com a mesma destreza daqueles que estão
habituados a subir, subir muito, até seus casebres de madeira e zinco pendurados
na encosta acidentada. É num desses casebres que mora Cartola, uma das poucas
pessoas que Noel visita neste novembro de 1936. Ainda tem disposição o
bastante para deixar com o amigo um começo de samba, Nos Três Dias de Folia,
para que ele o complete. O tempo não pôs fim à parceria.
Nos três dias de folia
O que eu fiz fingindo alegria
Pra esquecer meu grande amor!
Ai, ai, meu Deus
Pra esconder meu desgosto
Fantasiei-me a meu gosto
E fantasiei a dor.

Este fragmento de samba não é a única idéia que leva a Cartola. Explica-lhe
que terá de gravar até o fim do mês um disco para o suplemento carnavalesco da
Victor e outro para o da Odeon. São quatro sambas que pretende cantar em dupla
com Marília Baptista. Três serão composições recentes: Provei, Quantos Beijos!
e Quem Ri Melhor. O quarto foi feito no começo do ano, aquele único inspirado
em Lindaura: Você Vai Se Quiser. Um dos discos, o da Odeon, terá
acompanhamento do regional de Benedicto Lacerda. O segundo - e esta é a outra
idéia que leva a Cartola - poderia aproveitar o molho do pessoal da Mangueira, a
bossa dos ritmistas de verdade, a perícia dos melhores tocadores de surdo, cuíca
e tamborim que há por aí. Noel recorda que no início de sua carreira em disco o
Bando de Tangarás fez precisamente isso, Canuto, Puruca, a turma do morro
invadindo os estúdios de gravação. Por que não fazer o mesmo agora? Cartola
aprova a sugestão e se incumbe de arregimentar entre os bambas do lugar alguns
ritmistas para acompanhar Noel e Marília.
No dia 12 de novembro, quinta-feira, é um pouco apreensiva que Marília
espera pelo companheiro de dupla em sua casa na Rua General Rocca, perto da
Praça Saenz Pena. A essa altura Benedicto Lacerda Já deve estar a postos no
estúdio da Odeon. E Noel, como sempre, atrasadíssimo. E o pior é que ela nem
aprendeu as músicas direito. Um dos lados do disco, Você Vai Se Quiser, não
chega a ser problema maior. É samba que ela já cantou muitas vezes no
Programa Casé. Mas e o outro? Noel já cantarolou o refrão para Marília, diz que
ele e Vadico ficaram de terminá-lo, mas que até agora nada. Isso a poucos
minutos do início da gravação.
Noel chega, Marília está nervosa. Ele a tranqüiliza. Enquanto ela vai lá
dentro apanhar a bolsa e ajeitar o cabelo, ele se senta no sofá da sala, tira papel e
lápis do bolso, pega o violão. Quando Marília volta, diz estar fazendo umas
alterações na melodia, retocando a segunda parte da letra, acabando enfim o
outro samba.
- Mas já está na hora da gravação!
No táxi que os leva para o estúdio da Odeon, na Almirante Barroso, um
tanto sem jeito para tocar o violão no banco de trás, o carro em disparada na
tentativa de descontar o atraso, Noel vai ensinando a Marília o samba intitulado
Provei. Ela o canta em tom bem mais baixo que o dele, os dois buscam um
ponto em comum. As modificações que Noel faz na melodia são muito em
função disso, um esplêndido trabalho de recriação.
Provei do amor todo o amargor que ele tem.
Então jurei nunca mais amar ninguém.
Porém, eu agora encontrei alguém
Que me compreende e que me quer bem!

Quem fala mal do amor


Não sabe a vida gozar,
Quem maldiz a própria dor
Tem amor, mas não sabe amar.
Nunca se deve jurar
Não mais amar a ninguém
Ninguém pode evitar
De se apaixonar por alguém.

Você Vai Se Quiser de um lado, Provei do outro, Benedicto Lacerda só na


hora tomando conhecimento deste último samba de Noel e Vadico, o disco é
gravado. O regional ao fundo, o flautista brincando com as notas, criando
bonitas introduções, apoiando Noel e Marília em seus solos e duos, o resultado é
bom. Na verdade, muito bom.
Seis dias depois, 18 de novembro, quarta-feira, a outra gravação. Mais uma
vez, quando Noel e Marília chegam ao estúdio da Victor, já lá estão os músicos e
cantores que vão acompanhá-los, Pixinguinha à frente de sua orquestra, Cyro
Monteiro, Odette Amaral e Almirante para "engrossar" o coro, mas muito
especialmente Cartola e sua turma, Preguiça, Nego, Ataliba, Crioulo, homens
para os quais o ritmo do samba é como a batida do coração, e mais as pastoras
Neuma, Olicéia, Ruth, Ornélia, Crisola, de vozes limpas e afinadas como
merecem os sambas de Noel. Vozes e instrumentos mangueirenses que se
reúnem no estúdio para gravarem Quantos Beijos! e Quem Ri Melhor.
Pixinguinha sugere uma última passagem aos solistas, coro e orquestra.
Ergue as mãos, conta até quatro, pistom e trombone fazem a introdução, o coro
entra. Pixinguinha interrompe logo em seguida: - Tem coisa errada aí. Uma das
pastoras tá fora do tom.
Entreolham-se as moças do coro. Odette Amaral é categórica: - Só pode ser
uma dessas meninas do morro.
Cartola dá um passo à frente, diz que por suas pastoras põe as duas mãos no
fogo. Há um ligeiro jogo de empurra. Cartola propõe: - Então canta uma por uma
que a gente vê quem tá fora.
Constata-se então que era a própria Odette. Feitos os devidos reparos,
começa-se tudo outra vez. O disco fica pronto. Talvez o andamento ligeiro tenha
prejudicado um pouco Quantos Beijos!, ocultando algumas qualidades da
melodia de Vadico. Mas Noel quis assim. Já no caso de Quem Ri Melhor, nem
mesmo a aceleração do ritmo é capaz de roubar a beleza deste samba que,
poucos sabem aqui, uma cantora desconhecida, Elizeth de tal, lançou tempos
atrás no microfone da Rádio Club do Brasil. Saem todos satisfeitos do estúdio,
Marília, Cartola, pastoras, ritmistas da Mangueira, Pixinguinha e até Odette
Amaral, de quem Noel se despede com um gracejo: - Até logo, dona Fora...
Todos riem, o próprio Noel parece contente. Não desconfia de que esta foi a
sua última passagem por um estúdio, que acaba de gravar o seu disco de
despedida.
É 11 de dezembro. Seria um aniversário como outro qualquer, sem festejos,
abraços ou presentes, não fosse a vontade grande de rever Ceci. Pressentimento?
Será esta febre teimosa, renitente, sinal de que não haverá outro 11 de dezembro
em sua vida? Já não guardará no coração a certeza de que seu estado, mais que
grave, é crítico? Mas decerto não pensa nisso agora. É sexta-feira, noite de
grande movimento na cidade. A Lapa certamente fervilha. Ceci só deve sair do
Caverna alta madrugada. Mesmo assim, Noel acha que vale a pena arriscar.
À porta do dancing, pede ao porteiro que a chame. Quer dizer-lhe duas
palavrinhas. Ceci vem.
- Você vai sair muito tarde?
- Hoje é dia do seu aniversário - lembra ela antes de responder.
Mas não, não sairá tarde. Isto é, se ele quiser que deixe o trabalho mais
cedo. Talvez para jantarem juntos. Que tal lá pela meia-noite?
- Ótimo. Espero na Taberna da Glória.
Quando Ceci chega, meia-noite em ponto, encontra Noel sozinho, sentado a
uma das mesas de calçada. As garrafas de cerveja à sua frente mostram que ele
está ali há muito tempo.
- Não esqueci seu aniversário - diz ela tentando ser carinhosa. - Só não
sabia que você ia aparecer.
Os dois conversam com certa cerimônia, Ceci esforçando-se para ser o mais
agradável possível. Não quer discutir, não quer estragar uma noite de sexta-feira,
logo a do aniversário de Noel. Sabe que ele não fará cenas de ciúme, que não
tocará no nome de Mário Lago, que evitará bate-bocas. Mas também não quer
que se tranque, que fique naquele silêncio que tanto a perturba. Puxa conversa,
mas as respostas são, no máximo, irônicas.
- Você está suando.
- É o calor.
Ela põe a mão na testa molhada.
- Mas isso é febre, Noel! E você bebendo cerveja gelada...
- Não seja por isso. Garçom! Por favor, uma cerveja sem gelo.
Nunca a ausência de palavras entre eles disse tantas coisas. Os dois quase
que adivinham o pensamento um do outro. Noel pergunta-lhe o que tem feito,
ela responde com clichês. Ele não lhe faz perguntas embaraçosas, Ceci não
responde o que não lhe é perguntado. Bebem-se mais cervejas quentes, a noite
de quase verão pedindo gelado. A conversa é volta e meia interrompida por
longos silêncios. Noel tenta dizer coisas engraçadas, às vezes retoma o ar
irônico. Até que, depois de um dos silêncios mais prolongados, faz-se
tristemente solene: - Hoje eu tenho certeza.
- De quê?
- De que tudo acabou.
Ceci não retruca. Mesmo se disser que não é bem assim, Noel não
acreditará. Sabe que ele sabe de Mário, mas desconfia de que jamais teve idéia
do quanto ela realmente o amou. Ou do quanto talvez ainda o ame. Novo
silêncio.
Histórias de outro samba

"Foi lá por 1936, 1937. Estávamos num cabaré da Lapa, eu e o Djalma Ferreira, quando Noel entrou,
veio até nossa mesa, sentou-se, pediu uma cerveja. Começamos a conversar. Lá pelas tantas, uma das
dançarinas aproximou-se dele pelas costas, tapou-lhe os olhos com as duas mãos e disse: 'Adivinha quem é.'
Noel citou dois ou três nomes, mas nenhum era o da dançarina. Ela então se pôs de pé diante dele: 'Sou eu',
disse. Mas Noel simplesmente não a reconheceu. Desculpou-se muito, mas não se lembrava de tê-la visto
antes. A moça, desapontada, tentou reavivar-lhe a memória: 'Não se lembra daquela festa de São João? No
ano passado... Nós saímos às escondidas, fugindo dos outros convidados...' Noel começou a se lembrar.
Havia saído da festa com a moça, foram para um terreno baldio, um hotel, sei lá. Ele tinha sido o primeiro.
Agora, a moça estava ali, na nossa frente, uma dançarina de cabaré. Noel ficou visivelmente perturbado:
'Sim, claro, eu me lembro...' A moça se afastou e ele começou a escrever alguma coisa na toalha da mesa.
Pediu mais uma cerveja, mais outra. Quando saímos, notamos que ele estava transfigurado, o pensamento
longe. Pois bem, dias depois eu voltei ao cabaré. O garçom que nos servira perguntou: 'Cadê o Noel? Eu
queria dar a ele esta toalha. Tem uns versos escritos. Será que ele não vai precisar?' Tomei a toalha nas
mãos. Ali estava, inteirinha, a letra de Ultimo Desejo."
Cyro de Souza

"Sempre demos grandes festas de São João em nossa casa. Era assim que a gente comemorava os
aniversários de Heloísa, minha irmã. Noel não perdia uma. Naquele ano, estava um pouco triste, jururu.
Ofereci-lhe um prato de canjica. Ele aceitou, mas pediu-me que levasse para o quarto dos fundos, onde
ninguém pudesse vê-lo. Noel era muito feio comendo, raramente fazia uma refeição na frente de estranhos.
Mas nós éramos como gente de casa, da família. Terminada a canjica, pegou o violão e começou a tirar
alguma coisa. Me pediu que lhe trouxesse lápis e papel para anotar a letra de um samba que acabava de lhe
vir à cabeça. Era o Ultimo Desejo"
Theodorica dos Santos Lima, Dorica

"Em fins de 1936, encontrei o Noel no Programa Casé. Já estava muito magro, doente. Ficamos
conversando sobre música. Ele me disse:
- Engraçado, Floriano, a gente se conhece há tanto tempo, já fez tanta serenata, nos encontramos em
tantos lugares, e no entanto você nunca gravou nada meu. Sabe de uma coisa? Acho que tenho aqui um
samba que casa muito bem com teu jeito de cantar.
Sempre cantei no estilo do Sílvio Caldas, um repertório mais romântico, de valsas-canções, serestas,
sambas dolentes. Noel me mostrou então o tal samba que casava com meu jeito de cantar. Era simplesmente
o Ultimo Desejo. Sabe o que eu disse a ele?
- Muito bonito, Noel, mas não é bem o meu gênero.
Até hoje não me perdôo."
Floriano da Costa Belham
- Quero te fazer um pedido, Ceci.
Ela move a cabeça afirmativamente. Como negar-lhe alguma coisa?
- Gostaria que passássemos a noite juntos.
Vão para um hotel das imediações. De madrugada, quase amanhecendo, ela
desperta. Abre os olhos aos poucos, vê que ele não está a seu lado. Vira a
cabeça, assusta-se ao encontrá-lo na mesma posição em que o deixara ao
adormecer, sentado numa cadeira aos pés da cama, imóvel, os olhos fixos nos
seus. Os primeiros raios de sol entram pela janela do quarto de hotel. E Noel ali,
imóvel, como uma pedra, olhando para ela.
Há muito de adeus nesse olhar. Um adeus, porém, que parece significar
mais do que uma simples separação amorosa. Exatamente como outro samba que
Noel compõe inspirado em Ceci, talvez sua obra-prima. Um samba que fala não
só de um amor que se extingue, mas também de uma vida que perde o seu sopro.
Como terá sido feito? Pelas várias histórias que se contarão, é de se suspeitar que
há muito tempo Noel vem trabalhando em sua melodia comovida, que passa do
lírico ao patético para enfeixar versos alusivos à memória, ternura, magoa,
consciência, vontade de chorar, ironia, desesperança, adeus. Um samba-canção
que, a começar pelo título, Último Desejo, tem a força de um testamento:
Nosso amor que eu não esqueço,
E que teve o seu começo,
Numa festa de São João,

Morre hoje sem foguete,


Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.

Perto de você me calo


Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar.

Nunca mais quero o seu beijo,


Mas meu último desejo
Você não pode negar.

Se alguma pessoa amiga


Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora
A nossa separação.

Às pessoas que eu detesto


Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim,
Que eu arruinei sua vida,
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.
Capítulo 44

A ARTE DO SOFRIMENTO

Os últimos dias de 1936 são passados em casa. Janeiro chega e, com ele, os
dias mais quentes do verão. Alguém sugere que Noel e Lindaura saiam do Rio
por algumas semanas. Não precisam ir muito longe, como a Belo Horizonte de
tia Carmem. Basta que seja um lugar tranqüilo, fresco, de ar puro. Por que não
Friburgo? Bom clima, a montanha, o verde. E é perto, apenas algumas horas de
trem e já se está numa terra abençoada, milagrosa.
Mas os pulmões não são o único problema de saúde que Noel enfrenta neste
começo de janeiro. Um molar inferior esquerdo causa-lhe grandes padecimentos.
É uma dor que se reflete por todo o rosto, impiedosa. Nunca teve muito cuidado
com os dentes. Um pouco por relaxamento, mas principalmente porque o defeito
jamais lhe permitiu abrir a boca o suficiente para que o dentista trabalhasse sem
lhe causar dor na articulação. O tal molar já não passa de um caco. Infeccionado,
deu origem a um abcesso que faz inchar o lado esquerdo do rosto. O processo
avança, uma fístula vai deixar-lhe mais uma marca. Noel, sofrendo muito,
atravessa a rua e recorre outra vez ao seu Bruno. A intervenção é difícil,
demorada, dolorosa. Antes de extrair o molar, o dentista lanceta o abcesso a
sangue-frio. Tenta encarar tudo com resignação. E até com uma dose de humor.
Pega lápis e nanquim, desenha-se de perfil, o lábio inferior pendurado como se
fosse uma gota prestes a cair-lhe do resto da cabeça. Seu nome faz as vezes da
bandagem que seu Bruno recomendou, compressa quente para ajudar a vencer o
abcesso. A caricatura é colada na segunda capa de Este Álbum. O dentista será
pago com a maior riqueza que Noel tem para dar: gratidão em forma de samba.
A ele, "distinto amigo e ilustre dentista Bruno de Moraes", será dedicada a
partitura impressa de Quantos Beijos!
Alguns dias em casa, repousando, levam a febre embora. Mas não
devolvem a Noel as forças que aparenta vir perdendo desde o último encontro
com Ceci. Está meio prostrado, sem ânimo, muito diferente do clima que se
respira lá fora, nas ruas, neste começo de ano. O carnaval está perto. Integrantes
dos pequenos blocos de sujo batem de casa em casa, pires na mão, arrecadando
os mil réis que talvez lhes permitam fazer melhor figura do que no ano passado.
De quando em vez, mesmo lá dos fundos do chalé, ouvem-se os sons que vêm de
pontos distantes, um surdo que pulsa lá pela Maxwell, tamborins que repenicam
na Souza Franco, ecos de batalha no Boulevard. A animação é grande. O Cara de
Vaca e o Faz Vergonha, como de hábito separados pela principal avenida do
bairro (e, mais que isso, por uma rivalidade que a cada ano aumenta), tratam de
se articular. No Ponto de 100 Réis, o pessoal do lado de cá passa a cumprimentar
ressabiado o pessoal do lado de lá: em fevereiro, com a proximidade do
carnaval, Cara de Vaca e Faz Vergonha vão esquecer que são partes de uma
mesma família e se transformar, quase, em duas comunidades distintas. Vizinhas
mas de forma alguma aliadas. Enquanto isso, alheio a essa emulação, o Meninas
Loucas da Vila faz força para tornar-se um bloco, tanto quanto possível, da
estatura dos outros dois. Já conta com verba extra do bicheiro Lourenço, um dos
seus fundadores, e também com a promessa de Affonsinho de trazer para o
desfile um punhado de craques do São Cristóvão, o Carreiro, o Roberto, o Dodô,
sem falar no Quintanilha, que já é daqui mesmo, de Vila Isabel. O clima lá fora,
nestes dias, é mesmo de carnaval. E pela primeira vez na vida - desde que se fez
crescido o bastante para batucar um tamborim - Noel não participa de tudo isso,
dos blocos, das batalhas, das músicas que o povo canta.
Em casa, ouve o rádio. Interessa-se por programas que transmitem, desde
manhã, os sambas e marchas que disputam a preferência popular neste começo
de 1937. Musicalmente, não é um bom carnaval. Basta que se observe que a
marcha de maior sucesso é Mamãe Eu Quero, o maestro Vicente Paiva lançando
mão de antiga canção de ninar para musicar, sem muita inventiva, os versos
maliciosos, mas pobres, de Jararaca. Lig-Lig-Lig-Lé e Como "Vais" Você? (Ary
Barroso aproveitando-se de expressão coloquial da moda para se permitir
intencional ofensa à gramática) também não são lá grande coisa, embora muito
cantadas. Nem mesmo sambas como Falso Amor e Acorda, Escola de Samba
conseguem elevar o nível do que se ouve no rádio.
Será exagero afirmar que as melhores músicas deste carnaval são mesmo as
de Noel Rosa? É inegável que nenhuma delas tem espírito muito carnavalesco.
Tarzan, Cidade Mulher, Dama do Cabaré, Na Bahia e Pela Primeira Vez são
todas músicas de meio de ano, ouvidas já no filme Cidade Mulher. Só foram
incluídas nos catálogos de carnaval porque levam a assinatura de Noel Rosa. O
X do Problema, que o público também já conhece de teatro e de rádio (afinal, foi
lançado há quase dois anos), é gravado por Aracy de Almeida com vistas ao
carnaval, mas, positivamente, de carnaval pouco tem. O mesmo pode-se dizer
dos quatro sambas que o próprio Noel levou ao disco em dupla com
MaríliaBaptista. Nota-se que foi feito esforço no sentido de tornar esses sambas
"carnavalescos", seus andamentos mais acelerados, gente de escola de samba
atuando no ritmo. Mas nem assim foi possível ocultar-lhes a nostalgia. Não tanto
no caso de Você Vai Se Quiser, mas no dos outros três, Quantos Beijos!, 'Provei
e Quem Ri Melhor. Por mais que o ritmo tenha sido adaptado a esta festa de
alegria, o que fica mesmo é o desconsolo de certos versos e a melancolia de cada
frase musical. Dois deles eram feitos de parceria com Vadico, mas todos são
obras bem de acordo com o Noel desses dias. Tristes, mas certamente o que de
melhor se ouve neste carnaval. Não é por acaso que Quem Ri Melhor ganhará o
primeiro prêmio da Prefeitura.
No domingo de carnaval, 7 de fevereiro, Noel sente-se bem o bastante para
fugir, ainda que por poucas horas, da clausura do chalé.
- Quero ver o movimento na cidade-diz ele convidando Lindaura.
Hélio chama um dos motoristas de táxi, amigo do Ponto de 100 Réis, e o
contrata para, capota arriada, levar Noel, Linda, toda a família até a Avenida
Central. Blocos passam, blocos cantam:
Pobre de quem já sofreu neste mundo

Noel, no banco de trás do táxi, ouve:


Quem ri melhor é quem ri no fim!

Mas não ri. Assiste, em silêncio, ao seu último carnaval.


Fica sem sair do chalé por algum tempo. Febre alta, tosse, falta de ar. Edgar
Graça Mello já não perde tempo em se dirigir ao doente. É inútil. Prefere fazer
as recomendações a dona Martha:
- Repouso absoluto. E estes remédios nas horas certas.
O repouso e os remédios - alguns contendo bálsamos para aliviar a tosse - o
deixam fora de combate. Dorme a maior parte do tempo, não sente vontade de
fazer nada. Se melhora, sai. Vai a uma estação de rádio, eventualmente canta um
número ou dois, só para matar a saudade. Cansado, volta para casa, mergulha de
novo na cama. Ainda pensa em Ceci. E como! Pensamentos que podem se tornar
mais fortes, a ponto de perturbá-lo, de levá-lo a impulsos inesperados. Como sair
de casa, ir ao Ponto de 100 Réis e entrar no primeiro táxi.
- Vamos ao Café Nice - diz ao motorista. Encontra Vadico bebericando
com Floriano Machado, capitão do Exército, amigo comum. Vadico era
exatamente quem procurava.
Noel está visivelmente abatido, os olhos mais tristes do que nunca. Floriano
nota isso assim que o parceiro se aproxima da mesa(1).
1. Todo esse episódio faz parte do depoimento de Floriano Machado a Almirante, contado por este na Rádio Tupi a 14 de agosto de 1951, mas não utilizado por ele em nenhum de seus
escritos sobre Noel.

- Vadico, precisamos conversar.


- O que houve, Noel?
- Tem um piano por aí?
- Só o meu, lá em casa.
O apartamento de Vadico fica na Rua das Marrecas, bem perto da Lapa.
Uma garçonnière a que os amigos recorrem sempre que fazem uma conquista
pelas redondezas. É ali também que ele e Noel, em torno do piano, escreveram a
maior parte de seus sambas juntos. Mas desta vez Noel prefere outro lugar, outro
piano. Mais próximo do Nice, como se tivesse pressa. Vadico nota-lhe a
ansiedade, o ar angustiado. Floriano sugere que usem o piano de um clube da
esquina, a poucos passos do Nice. Os três se dirigem para lá.
No caminho, Noel explica que tem um começo de samba que quer que
Vadico o ajude a concluir. é algo que eles têm que fazer logo, o samba está preso
dentro dele, como um nó na garganta.
- Está bem, Noel - diz Vadico.
Noel começa a desabafar, a falar de Ceci, de suas queixas de amor. Nesses
dias - talvez pela doença - são também confusos os seus sentimentos. De ironia,
como naquela noite na Taberna da Glória, ou lamurientos, como agora. Pode ser
até cruel, como nestes versos de Só Você:
Quanto mais se vive, mais se sabe
Mas o dito não lhe cabe
Que você não leve a mal
Mesmo que o mundo se acabe
Você deixa de saber
Porque nunca lê o jornal

Ouço triste o meu violão chorando


E às vezes despejando
Seus trinados da garganta
Ouço até o vento assobiando
E só você... Só você
É que não chora nem canta

Eu por sua causa estou sofrendo


Já estou emagrecendo
Sei que vou adoecer
Tanta gente boa vai morrendo
Só você não percebeu
Que precisa falecer

Enquanto Noel fala com Vadico, Floriano afasta-se discretamente. Sente-se


embaraçado diante das confidencias que sabe feitas a Vadico e não a ele. Fica à
distância, vendo e ouvindo os amigos trabalharem no que parece ser um primor
de samba. Noel vai passar a letra a limpo em seu caderno de folhas soltas.
Anotará o gênero e a autoria (samba de Vadico e Noel Rosa), o titulo (Pra Que
mentir?) e a data (8 de março de 1937). É apenas um esboço. Conseguirá vê-lo
concluído?(2)
2. Está mais ou menos difundida a versão de que Noel Rosa não chegou a conhecer a melodia de Pra Que Mentir?, o que não é exato. Em entrevista ao jornalista e escritor Herberto Salles (O
Cruzeiro, 4 de setembro de 1954), Vadico esclarece que apenas a segunda parte foi escrita depois da morte de Noel. Ao fazê-lo, o pianista naturalmente alterou um pouco a letra original, suprimindo uma
das repetições da expressão-título e substituindo "... embora seja traído por teu desprezo sincero" por "... apesar de ser traído por teu ódio sincero." Não bastasse este depoimento, conclusivo, há também
outra evidência: a estrutura da letra, de versos livres, típicos de quem os escreveu para determinada melodia. Quando fazia letras para serem musicadas depois - do que Balão Apagado e João Teimoso

são exemplos - Noel sempre evitava os versos livres, preferindo formas mais tradicionais, metrificadas, como o terceto, a trova, etc. O samba só seria gravado um ano e quatro meses após a morte de
Noel, na Victor, por Sílvio Caldas e os Diabos do Céu.

Pra que mentir


Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê?! Pra que mentir,
Se não há necessidade de me trair?

Pra que mentir,


Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir, se eu sei
Que gostas de outro
Que te diz que não te quer?

Pra que mentir tanto assim


Se tu sabes que eu já sei
Que tu não gostas de mim?!
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido?!

Bom clima, a montanha, o verde. O cheirinho de eucalipto perfumando o ar,


as flores, a paz. Friburgo parece mesmo uma terra abençoada e milagrosa. Nem
o trem que passa fumegando em plena rua principal, atravessando a cidade de
ponta a ponta, consegue quebrar o sossego em que vivem mergulhadas as casas e
as pessoas. Muitos doentes do pulmão têm vindo aqui em busca de cura - ou de
esperança. A Marinha chegou a construir num alto de morro um sanatório para
marujos tuberculosos ou convalescentes de outros males. Há também pensões
particulares destinadas a moços fracos que vêm do Rio e de cidades mais
distantes. Essas pensões vivem cheias.
Em março, pouco antes da Semana Santa, seguindo conselhos de amigos e
do próprio Edgar Graça Mello, Noel e Lindaura instalam-se num pequeno hotel
da rua que, ao lado da estação de trem, sobe para o cemitério. O proprietário
concorda em cobrar-lhes uma diária especial (24 mil réis) desde que paguem dez
dias adiantados. Este e outros detalhes estão numa carta enviada a dona
Olindina. Uma carta peculiar, cheia de simulações bem ao gosto de Noel. A
começar pelo fato de ele próprio tê-la escrito e assinado como se fosse Linda.
Algumas informações têm a ingenuidade da mulher, no fundo quase uma
menina: falam do levantar cedo, da fome na hora das refeições, dos passeios de
automóvel e bicicleta, do preço do mamão, das frutas e das verduras. Outras
informações, contudo, resvalam no caminho das mentiras: "Noel tem passado
bem: não tem tosse nem falta de ar." Quando na verdade, em momento algum de
sua última e breve estada em Friburgo, chegará a passar realmente bem. Toma
duas injeções por dia, orion e gluconato de cálcio, aplicadas pelo Nelson Ruy da
Farmácia Vieira, que vai ao hotel pela manhã e à tarde. Noel quase não sai,
prefere ficar sentado na espreguiçadeira do hall, conversando com os outros
hóspedes, lendo jornais e revistas do Rio. É ali que os amigos, da terra ou de
passagem, vão encontrá-lo.
- Como é que está, Noel?- pergunta Marino Pinto.
- Cada vez melhor - responde com nova mentira.
A Maríno, Pandiá Pires, Lucas de White, Geraldo Penna, amigos ou meros
curiosos que querem conhecê-lo ("Vocês sabiam que o Noel Rosa está aqui em
Friburgo ?"), não se nega a cantar um ou outro samba. O violão, naturalmente,
veio com ele do Rio. Os amigos o ouvem com a voz muito fraca, sem sair da
espreguiçadeira, num samba triste, banhado em dor, que só completará no Rio e
a que dará o título de Eu Sei Sofrer(3):
3. Geraldo Penna, em depoimento aos autores, fala daquela visita a Noel no pequeno hotel ao lado da estação. Ele, Pandiã Pires e Marino Pinto ouvindo praticamente em primeira audição o
começo de Eu Sei Sofrer, samba que bem traduz o estado de espírito de Noel naquele mês de março.

Quem é que já sofreu mais do que eu?


Quem é que já me viu chorar?
Sofrer foi o prazer que Deus me deu,
Eu sei sofrer sem reclamar.
Quem sofreu mais que eu não nasceu,
Com certeza Deus já me esqueceu.

Mesmo assim não cansei de viver,


E na dor eu encontro prazer.
Saber sofrer é uma arte
E pondo a modéstia de parte,
Eu posso dizer que sei sofrer.

Quanta gente que nunca sofreu,


Sem sentir, muitos prantos verteu.
Já fui amado e enganado,
Senti quando fui desprezado,
Ninguém padeceu mais do que eu.

Velhos boêmios que o conhecem de sua estada anterior em Friburgo


também o procuram. É evidente que este Noel de agora, falando tão
autopiedosamente de seu sofrimento, referindo-se tão masoquistamente ao
terrível prazer que Deus lhe deu, não é o mesmo da outra vez. Já não faz
serenatas. O sereno, o frio das noites de Friburgo, onde mesmo no mês de março
se dorme de cobertor, não é bom. Certa manhã, sentindo-se melhor, abusa: toma
um copo de leite gelado. Esqueceu-se das recomendações de Edgar a respeito do
gelo. A febre volta, a tosse também. Agrava-se o problema da falta de ar. Pior,
não sabe se pelo leite gelado ou lá o que seja, começa a sentir dores pelo corpo.
Lindaura chama um médico, este diz que é nevralgia. Receita analgésicos,
manda que Noel se agasalhe bem, evite o sereno. Penosa imposição a este cantor
das madrugadas, poeta noturno, amigo de todos os serenos. Embora se diga no
seu samba um conhecedor da arte de saber sofrer, a resignação tem limites. Ele
próprio se impacienta, a nevralgia se somando aos pulmões estragados. É o que
deixa transparecer numa carta escrita a Almirante:

"Tenho pena daqueles que estou incomodando com a minha merecida


moléstia. Confesso que não sei agradecer a tanta bondade. Era mais negócio
vocês me deixarem morrer, como eu mereço. Não quero mais amolar.
P.S. Há muito tempo não escrevo. Isto basta para perdoar os meus
garranchos. Qualquer dia não saberei mais falar..."
Estranha carta esta(4).
4. Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, primeira edição (página 201) e segunda edição (página 211).

Contraditória, também. Não é de um poeta que sabe sofrer. Nem de alguém


que escreveu há poucos dias outra carta ("Há muito tempo não escrevo...") tão
otimista para a sogra. Por que tanta amargura? Por que encarar a morte tão
aceitativamente, como merecida fatalidade?
Passam três semanas em Friburgo. A idéia era ficarem um, dois ou mais
meses. Ou mesmo aproveitarem o inverno de frio seco e bom da cidade. Mas a
nevralgia - somada à vontade grande de voltar - acaba mudando os planos.
Alguns amigos tentam demovê-lo:
- Fique mais algumas semanas. O clima daqui tem feito milagres.
Não acredita. O frio seco, o céu muito azul, as estrelas que brilham nas
noites de Friburgo não fizeram a ele o bem que se esperava. Nem ao corpo, nem
ao espírito. Parece que mais uma vez lhe ocorrem as palavras de Cícero: "A
pátria é onde se está bem." Por isso decide mesmo voltar para Vila Isabel.
Lindaura, como sempre, não se opõe. De que adiantaria?
No chalé, o reencontro com a mãe e irmão. A volta repentina cria certo
transtorno. Supondo que Noel e a mulher fossem ficar meses em Friburgo,
Martha convidou Arlinda para passar férias no Rio. Assegurou que haveria lugar
de sobra, apenas ela e Hélio em casa. Detalhe importante: o filho doente fora,
Arlinda não precisava temer o risco de contágio. Podia até trazer Nair, sua filha
de seis anos. Convite aceito, um dia depois da volta de Noel, Arlinda e a menina
aparecem no chalé. O que fazer?
A velha casa que a madrinha de Noel reencontra é uma melancólica sombra
do que foi outrora. Na verdade, é quase uma ruína. Estes anos de sofrimento e
decadência, sobretudo os dois que se seguiram ao suicídio de Neca, bastaram
para dobrar Martha, transformando-a de mulher forte, granítica, como Arlinda
conheceu anos atrás, numa criatura já sem ânimo. Alentos? Poucos. Bons
momentos? Raríssimos. Desde algum tempo Álvaro de Castro, um cinqüentão
que mora na casa 3 da vila 399, em frente ao chalé, faz parte de sua vida.
Primeiro foram os olhares, depois os cumprimentos gentis, as atenções. Álvaro,
boa alma, prestativo, dado a delicadezas, foi aparecendo no chalé. Para uma
ajuda, a troca de uma lâmpada queimada, o conserto de um encanamento, o
reparo de um reboco castigado pelos anos. Aparecia, ia ficando. Para uma sopa
quente, uma prosa mais demorada. Passou a sair tarde do chalé - quando saía.
Arlinda fica sabendo que os vizinhos ainda olham para tais pernoites com olhos
de reprovação. ("Quando alguém pretende praticar qualquer má ação - já dizia
Noel em suas divagações de juventude - só pensa numa palavra: vizinho.") Mas
Martha não pratica nenhuma ação má, ao contrário do que muitos - inclusive
alguns parentes - preferem pensar de sua ligação com Álvaro. É livre para amar
quem quiser. Já os filhos não pensam nem dizem nada. Compreendem. E fazem
como se nada houvesse.
Arlinda continua a grande amiga de Martha. Amiga e confidente.
Impressiona-se muito menos com a presença de Álvaro do que com o
desmoronamento da casa, a derrocada da família. Chegando de tardinha com
Nair, as duas têm de passar a noite ali. Apesar do afilhado doente, espalhando
bacilos pelo ar. Aos olhos dela e da menina, a casa é mesmo uma ruína(5).
5. "Eu achei o chalé horroroso, sujo, abagunçado, mas mamãe me explicou que antes não era assim, não...", diz Nair Goyano Mathias em depoimento aos autores. Segundo ela, a impressão
que Martha lhe dava era a de uma mulher cansada, devendo-se a isso a decadência da casa.

Procura ajudar Martha na rotina doméstica. Por exemplo, pondo a mesa


para Hélio e o amigo que ele trouxe para jantar.
- Até que enfim! - exclama o sobrinho deixando claro que o hábito de
caprichar na mesa, toalha, pratos, talheres, foi há muito abandonado.
Arlinda e Nair jamais esquecerão esta noite. A menina não gosta de Noel,
ou melhor, da caricatura que ele lhe faz acentuando o nariz de turca herdado do
avô. Simpatiza-se mais com Hélio, que no entanto, passados todos esses anos,
ainda tem ciúmes do irmão.
- Viu a mesa que Arlinda pôs só para mim? - diz provocando Noel.
Arlinda, observadora, intervém: -Não faz mal. Vou fazer o mesmo para o
meu afilhado.
Amigos aparecem. Noel, além de desenhar, toca violão. Sente-se bem
melhor do que nas frias noites da serra.
No dia seguinte, bem cedo, Nair é levada para a casa de Eduardinho, na
Avenida Engenheiro Richard, Grajaú (voltou ano passado de Bica de Pedra, o
dinheiro já não lhe é tão farto e, além de não poder ajudar mais a irmã, vê-se
obrigado a ficar com o aluguel do bangalô, que antes amenizava as despesas do
chalé).
O irmão de volta, Hélio apressa-se em contar-lhe as novidades:
-Parece que o caso de Ceci com o Mário é mesmo sério.
-É?
- Ouvir dizer que eles ceiam juntos todas as noites, que ela já não sai com
mais ninguém.
- Não importa.
Mas Noel sabe que importa. O eterno fingidor, o homem sem queixas, tudo
faz para não deixar transparecer que de fato importa - e muito - a repentina
constância da inconstante Ceci. As novidades que Hélio tem para contar não
param aqui.
Um episódio desagradável, passado durante sua ausência, é narrado com
detalhes ao irmão. Hélio e o primo Jacy Pacheco teriam ido certa noite ao
Caverna. Já haviam bebido além da conta quando Ceci aproximou-se da mesa
onde estavam. Sentou-se, os três começaram a conversar e o nome de Noel
surgiu no assunto. De uma hora para outra, Jacy transfigurou-se, passou a falar
da doença do primo, foi ficando irritado, pôs-se a culpar Ceci pelos pulmões
escangalhados de Noel. E quando ela esboçou as primeiras palavras de defesa,
Jacy ergueu furiosamente o copo e atirou-lhe cerveja no rosto(6).
6. Jacy Pacheco, em depoimento aos autores, nega ter havido tal incidente. Seus contatos com Ceci, afirma, foram poucos, breves e superficiais. Ceci, ao relatar o episódio aos autores,
garante não haver a menor possibilidade de estar confundindo Jacy Pacheco com outra pessoa: "Primo de Noel, tinha o nome parecido com o meu e era de Campos como eu."

O que passará pela cabeça de Noel enquanto o irmão vai pintando, talvez
com cores demasiado carregadas, quadros de uma Ceci amada por um, insultada
por outro, mas sempre tão diferente da que conheceu numa festa de São João? O
episódio do copo de cerveja o impressiona tanto que não vê outra saída senão
quebrar intenção de nunca mais procurá-la. No dia seguinte, febril, vai até a
Avenida Mem de Sá. À porta do velho sobrado, não tem coragem de subir. A
essa hora, cinco da tarde, Ceci deve estar em casa. Mas com quem? Sozinha? Ou
repartirá com outro amor o quarto em que viveram juntos tantos momentos de
paixão? Não, Noel não tem coragem de subir. Passa um conhecido e ele pede: -
Você me faz o favor de chamar a Ceci lá em cima?
O conhecido sobe, demora-se alguns instantes e volta. O recado está dado.
Noel espera. Dez, quinze minutos, Ceci desce. Veio tão rápido quanto lhe foi
possível. Ou quanto as explicações a Mário permitiram: "Que diabo! É só ele
chamar e você vai..." Sim, é só Noel chamar que Ceci vai. Os tempos podem ser
outros, muita coisa pode ter mudado, mas ainda guarda pelo ex-amor uma
grande ternura.
- Você está bem de saúde?
- Sim, ótimo.
- Mas parece com febre. Por que saiu de casa? E esta cicatriz no rosto?
- Tinha de falar com você.
Ceci diz que o levará de volta a Vila Isabel, que vai chamar um táxi, cuidar
para que ele não saia até que a febre passe. Por um momento pensa em Mário.
Terá que esperar. Faz parar o primeiro táxi, entra, Noel a segue. Ceci nem sequer
avisou ao Mário. No caminho, Noel pouco fala de si. Explica a cicatriz no rosto,
jura que está melhor, apenas um pouco gripado. Fala do prazer de revê-la,
sempre tão bonita, sempre tão gentil. Desta vez, diz tudo isso sem ironias.
- Mas eu te procurei, mesmo, pra pedir desculpas.
Desculpas pelo primo Jacy, jovem, intempestivo, mas no fundo um bom
homem. Foi por amizade a ele, Noel, que Jacy fez o que fez. Imperdoável, é
verdade, mas mesmo assim Noel espera que Ceci o perdoe. Por que não? Ela não
é de guardar rancor. Promete esquecer, se é que já não esqueceu.
O resto do encontro é feito de poucas palavras, como se já não houvesse
muito mais a dizer. Poucas palavras, muita tristeza. De parte a parte. Por último,
as despedidas. Desta vez, sem que eles saibam, para nunca mais.
Um gosto de despedida. O chalé transformado em retiro, Noel ausenta-se
cada vez mais do mundo lá fora. Armênio Mesquita Veiga aparece para dizer-lhe
que acaba de ouvir Aracy de Almeida cantando Último Desejo. Sim, no rádio.
Noel não sabia.
- Mas ela nem aprendeu o samba direito - espanta-se.
Armênio havia notado. Basta dizer que em vez de "Mas meu último
desejo..." ela canta a Pois meu último desejo..." E em lugar de "que o meu lar é o
botequim" ela diz "que o meu lar é um botequim...". Pode parecer a mesma
coisa, mas não é.
Juro que nunca mais dou música minha para ela gravar.
Uma zanga que dura pouco. Noel gosta de Aracy. Como cantora e como
gente. Tirando esses escorregões, que fabulosa intérprete ela é! Inclusive
cantando Último Desejo. Armênio recorda quando serviu de mediador numa
discussão entre Noel e Aracy, faz tempo. Noel ensinava a ela a letra de O Maior
Castigo Que Eu Te Dou, samba de dois anos atrás, primeiros tempos de um
romance ainda cheio de vida, o anti-romântico Noel dirigindo-se à jovem
dançarina Ceci:
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer do que te ver me provocar
Pois Aracy teimava em querer cantar "não há ninguém mais calma do que
eu sou..." Afinal, argumentava, era uma mulher.
- Este "calmo" aí, depois do "ninguém", não varia, Aracy.
- Não interessa! Não vou cantar como se fosse homem.
- Mas é "calmo", Aracy - insistia Noel já irritado.
- Calma!
- Calmo!
Foi então que Armênio chegou. Ao ver a discussão esquentar, achou melhor
fazer-se de apaziguador. Explicou a Aracy que Noel estava certo, o "ninguém"
não significando alguém específico, nem homem, nem mulher. Neste caso,
sendo um pronome indefinido, o certo era mesmo "calmo". Aracy não ficou
muito convencida. Isso foi tempos atrás, Noel ainda com forças para discutir o
gênero de uma simples palavra. Hoje, suas zangas realmente duram pouco. Hélio
aparece. Vem de dentro do chalé atraído pelo barulho de um avião que faz
piruetas, rasante, tracejando desenhos de fumaça no céu muito azul de abril. É
um monomotor, desses em que pilotos civis ou militares realizam seus
treinamentos. Voa tão baixo que dá a impressão de que vai derrubar a chaminé
da fábrica de tecidos.
- Será o Mello Maluco? - pergunta Armênio pensando no piloto famoso por
suas acrobacias aéreas(7).
7. Major do Exército naquela ocasião, Francisco de Assis Corrêa de Mello, o Mello Maluco, como era conhecido por suas arriscadas acrobacias aéreas, pilotou em 1931 o primeiro vôo
transcontinental militar brasileiro. Em 1941, passaria aos quadros da Aeronáutica, que então ganhava ministério próprio. Chegaria a marechal-do-ar e a ministro da Aeronáutica no governo Juscelino
Kubitschek e mais tarde no de Ranieri Mazili, no curto período em que este presidiu o Brasil logo após o golpe militar de 1964. Era muito popular no Rio de Janeiro dos anos 30.

Hélio olha para o céu, acompanha os movimentos do avião. Ao ver que o


irmão também está atento aos ziguezagues do aparelho, vindo até o portão do
chalé num esforço que já lhe parece demasiado, diz:
- Não é o Mello Maluco, não, Armênio.
Vai ver é alguém que sabe que aqui no chalé mora o grande Noel Rosa.
Estas piruetas são uma homenagem ao maior compositor popular do Brasil.
Noel sorri como se para agradecer a carinhosa brincadeira - elogio raro.
Verdade é que Hélio sabe que a profecia de vó Rita falhou. Não estará ali a placa
com o seu nome. A glória do chalé vai dever-se ao irmão.
Nestes últimos dias de abril há vestígios, ainda que poucos, de melhora.
Noel continua muito magro, pálido, a aparência ainda mais afetada pelo
desânimo que o impede de fazer a barba, pentear-se, vestir melhor roupa. Está
quase sempre metido no pijama de flanela, a gola cossaca circundando o pescoço
afilado, protegendo-o de um frio que só ele sente. A febre causa-lhe arrepios,
derruba-o. Mas, quando a temperatura desce ao normal, há vestígios de melhora.
(8)
8. Pedro Bloch em "O Rio de Noel", Manchete, 10 de abril de 1965 (página 115).

Os que vêm ao chalé, amigos, vizinhos, gente da música, o encontram ora


caído, sem disposição, ora ativo, desenhando ou tocando violão. Desenhar,
porém, é o que mais faz nestes dias. Dedica-se menos aos sambas do que aos
rabiscos. Nássara encontra-se com dona Martha no Boulevard, pergunta-lhe por
Noel. Ouviu dizer que anda adoentado. Não deixa transparecer a falta de
coragem para visitar o amigo.
-Ah, seu Nássara... Ele está muito fraquinho. Não tem forças nem para tocar
o violão. Vive desenhando, fazendo caricaturas.
Dona Martha conta que ia precisamente comprar mais lápis, guache, papel
canson. São interessantes os desenhos que ele faz. Por que não aparece para ver?
Nássara promete ir.
O desenhista Noel Rosa é persistente. Apesar de tudo, continua confiante
no seu traço. Foi na presença do mesmo Nássara que um dia, à porta de um café,
mostrou seus desenhos a Emiliano Di Cavalcanti. Um encontro constrangedor,
Noel orgulhoso de seus rabiscos, o artista indiferente, mudando de assunto:
- Me canta aquele samba, Noel...
- Samba não dá dinheiro a ninguém - retrucou - Eu quero é emprego. Estive
agora mesmo em O Globo...
E Di Cavalcanti, interrompendo-o:
- Canta aquele samba outra vez?. Hoje Noel pensa mais em seus desenhos
que em música. Um deles, a que se vai referir em sua última carta, é feito com o
pensamento na capa da partitura de Eu Sei Sofrer. Mostra-se mais uma vez de
perfil, segurando o violão pelo braço com a mão esquerda, uma garrafa de
Cascatinha pelo gargalo com a direita. O outro desenho tem especial
significação. Noel e o violão estão mergulhados numa pilha de partituras de
músicas suas. Tem a cara assustada, as mãos imobilizadas, sem poder tocar a
vistosa morena de cabelo curto que se aproxima. Não é Ceci, nem Lindaura, nem
Fina. Quem será? A significação especial do desenho, porém, está em outros
detalhes: os títulos das músicas. É neles que Noel se revela autor de algumas
obras que nunca fez questão de reivindicar e cujos registros oficiais (selos de
discos, partituras, fichários de editoras e arrecadadoras) sempre omitiram seu
nome: Fui Louco, Não Faz, Amor, Tenho Um Novo Amor. Até onde se sabe,
será seu último desenho.
Desenhos de pouco valor

"Vila Isabel é hoje o bairro de Noel Rosa, homem estranho que morreu moço e que foi um gênio carioca.
Noel um dia cantou-me um samba, creio que no Café Nice, batendo numa caixa de fósforos, como
acompanhamento. Era admirável, sua voz rouca de rapaz doente, cheia de um sentimento profundo,
acentuando nas palavras a força melancólica de um segredo à bem-amada. Exultei, mas o rapaz, dias
depois, procurava-me noutra mesa do café para mostrar uns desenhos seus, de pouco valor. Disse-lhe que
não desenhasse e fizesse sambas, muitos sambas! Desde então passou a me tratar mal e por minha culpa não
mais tive o seu convívio. Só sabia dele através de Antônio Nássara, outro homem maravilhosamente carioca
e de São Cristóvão. Nascido na Rua Abílio, esquina da Rua Vileta. Nássara é tão carioca como é carioca o
Largo da Lapa. Poderia ser considerado monumento desta cidade: com Orestes Barbosa e Sílvio Caldas faz
um trio que encontra no meu coração um aconchegado recanto de carinhos."
Di Cavalcanti
Diário de Notícias, 11 de março de 1962
Se já não faz novas músicas, ainda tem muitas guardadas, inéditas, prontas
para serem lançadas no rádio ou gravadas em disco. Aracy de Almeida sabe
disso. Ela também aparece no chalé, acompanhada de Benedicto Lacerda,
querendo saber se ele não teria umas coisinhas para mostrar. Claro que tem. A
zanga? Noel nem se lembra mais da troca do mas pelo pois e do o pelo um.
Recebe-a bem, pega o violão, mostra lhe o que tem: quatro grandes sambas. Dois
deles Aracy decide gravar logo. Um é O Maior Castigo Que Eu Te Dou, que ela
promete cantar com a letra certa (a promessa não será cumprida). O outro é Eu
Sei Sofrer, iniciado em Friburgo, terminado aqui. A cantora gosta não apenas do
samba, mas também do desenho que Noel fez para a partitura.
- Me dá esse desenho, Noel?
- Quando estiver pronto.
Os dois outros sambas Aracy deixa para gravá-los depois. É pena. Um
deles, Século do Progresso, de três anos atrás, conta a história daquela briga já
superada com Zé Pretinho. Tudo são reminiscências nestas "coisinhas" que Noel
vai mostrando a Aracy. Inclusive - e principalmente - no mais bonito de tudo que
ele tem guardado: Último Desejo. Sim, é pena que a cantora deixe para gravá-lo
só daqui a dois meses. O tempo já não é muito. Ela e Benedicto Lacerda talvez
não percebam que Noel tem pressa, mais pressa do que muitos imaginam.
Nova visita de Vadico ao chalé, Noel cantarola para ele, nota por nota, o
mesmo Último Desejo. O parceiro vai passando a melodia para a pauta,
prometendo escrever a parte de piano e entregá-la a Mangione.
- Quero mais um favor seu, Vadico. Gostaria que você desse uma cópia da
letra a Ceci.
Vadico promete que o fará. O mais rápido possível. Sai dali, vai para casa,
senta-se ao piano, passa as notas para o pentagrama. A melodia da segunda parte
que Noel lhe cantou é um pouco diferente da aprendida por Aracy de Almeida,
mas exatamente igual à que o mesmo Noel ensinou a Marília Baptista. Uma
diferença que um dia dividirá as duas grandes intérpretes em torno da verdade
que cada qual, com razão, diz conhecer(9).
9. A versão que se tornou clássica de Último Desejo é a que Aracy realmente gravou dois meses depois da morte de Noel. A que Marília aprendeu do próprio compositor - a mesma que está
na partitura escrita por Vadico - tem melodia diferente no terceiro, quarto, quinto e sexto versos da segunda parte. Quanto à letra, na partitura está a forma errada "um botequim" em lugar de "o
botequim", como Noel escreveu.

Vadico passa a pauta a limpo, tira uma cópia da letra e leva-a para Ceci.
Exatamente como Noel pediu. O pianista encontra-a no Caverna, de noitinha,
põe os versos sobre a mesa.
- O que é?
- Um, samba de Noel. Acabei de escrevê-lo(10).
10. Em entrevista a Ary Vasconcelos (Fairplay, 1967), Ceci diz que Vadico lhe entregou o samba no exato momento em que lhe comunicava a morte de Noel. Aos autores ela dá esta outra
versão. Nos dois depoimentos, porém, afirma que Último Desejo tinha música de Vadico. Uma confusão a que deve ter sido induzida pela frase "Acabei de escrevê-lo..." Vadico jamais reivindicou a
autoria deste samba. Na certa queria dizer que acabara de passá-lo para a pauta, como fez com tantas outras composições de Noel.

- Para mim?
- Sim, ele me pediu que eu te desse. Vadico não consegue evitar o
comentário:
- Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceci.
Capítulo 45

O FIM

Foi estrela que brilhou


E pra sempre se apagou
Nuvem Que Passou

A notícia soa, em tom grave, na voz de um dos locutores da Rádio Cruzeiro


do Sul: Noel Rosa morreu! Como, quando ou através de quem chegou à
emissora, ninguém sabe.
Na pressa de divulgá-la em primeira mão, não se teve o cuidado de
confirmá-la. E no entanto, Noel Rosa está vivo.
Vivo mas muito doente. A reportagem da revista Carioca desloca-se até o
chalé para saber como está ele. Repórter e fotógrafo vão encontrá-lo na
desordem do pequeno quarto, entre papéis velhos, começos de samba, esboços
de desenho. Está muito agasalhado, o pijama de flanela abotoado até o pescoço.
Nega a gravidade da doença, fala com naturalidade da notícia de sua morte,
finge-se confiante: - Como vai essa força?- indaga o repórter.
- Não sei. Eu não posso adivinhar o que ela esta pensando em me fazer.
Mas acho que dessa vez endireito.
Admite ter estado muito doente, mas melhorou. Sente-se pronto para voltar
às suas atividades de compositor. O tom é sempre de confiança:
- Logo que possa, estarei de novo ganhando a vida como cantor também.
Perguntas e respostas desviam-se em seguida para a música. Noel recorda
seus tempos de Tangará, diz já ter mais de duzentas composições gravadas
(cálculo exagerado), conta que fez Eu Sei Sofrer metade em Friburgo, metade no
Rio, e que Aracy de Almeida vai gravá-lo no mesmo disco de O Maior Castigo
Que Eu Te Dou. Chega até a cantá-lo para o repórter. Com a alma nos lábios,
dirá este. É a última entrevista de Noel Rosa.(1)
1. Carioca, 1o de maio de 1937.

A fotografia no pijama de flanela ilustrará a matéria de Carioca. Mas não


será a última. Dois dias depois também vai ao chalé o pessoal de A Noite, talvez
por sugestão de Orestes Barbosa. Noel posa para o fotógrafo em outro pijama,
muito magro, abraçado ao violão. Curiosamente, ao lado de antiga foto em
moldura oval, ele bem mais jovem, gordo, pensativo, o queixo apoiado nas
costas da mão.
Todos se preocupam, os jornais, os parentes, os amigos, o médico, os
vizinhos. Alonso Guimarães, pai de Walter e Affonsinho, dois jogadores de
futebol, um do América e o outro do São Cristóvão e da Seleção Brasileira,
aparece depois do jantar para visitar o doente e fazer uma sugestão à família:
- Por que não o levam para fora do Rio?
- Já fizemos isso. Esteve em Friburgo, mas não se deu bem.
- Friburgo é muito frio, dona Martha. Por que não tentam Piraí?
Alonso Guimarães mora na Visconde de Abaeté, quase na esquina de
Theodoro da Silva. Costuma passar férias em Piraí, ele, os filhos e a mulher,
Alice. Hospedam-se todos numa pensão modesta, mas limpa e confortável, de
propriedade de uma senhora que por sinal também se chama Alice. A cidade é
pequena, muito sossegada. Decerto fará bem a Noel.
Consultado, Edgar Graça Mello nada tem a opor. O clima de Piraí não é o
que se recomenda a um doente dos pulmões, mas a essa altura, a moléstia já
atingindo o estágio final, pouco importa. Diante da aprovação do médico, Noel e
Lindaura viajam de carro para a cidade fluminense, sábado de manhã, 24 de
abril. Alice Guimarães e a filha Jurema foram um dia antes. Cuidaram para que
dona Alice, a da pensão, reservasse o melhor quarto para Noel, tomaram as
providências necessárias a uma boa estada do doente na tranqüila Piraí.
Tranqüila mas não milagrosa. A cidade é mesmo pequena, meia dúzia de
ruas, uma pracinha central, botequim, armazém, padaria, açougue. Mas nem
cinema, nem clube. Para repousar, excelente. Noel e Lindaura, com Alice
Guimarães e Jurema no quarto ao lado, passam aqui uma semana. Ele realmente
descansa, quase todo o tempo trancado, portas e janelas fechadas para evitar que
o vento de outono o incomode. Há no quarto uma velha escrivaninha. É sobre ela
que, logo no domingo, dia 25, Noel escreve para a mãe sua última carta. Uma
carta com novas simulações, o passar bem, a intenção de ficar o maior tempo
possível em Piraí, as lembranças comerciais ao esperto Mangione, as lembranças
sinceras aos amigos. Para tranqüilizar Martha quanto à quietude da cidade,
ressalta que nela não há sabiás (seresteiros), pardocas (mulheres) e feitiçarias
(farras e outras tentações). Não se esquece de seu Bruno. Nem dos barulhentos
cães dos vizinhos, Sultão, Negrinha, Neru. Acentua que a caricatura para a capa
de Eu Sei Sofrer ainda será aperfeiçoada. Martha não deve entregá-la a Aracy.
Ao fim, em vez da assinatura, rabisca-se de perfil.
Sobre a mesma escrivaninha, fica até altas horas trabalhando em novas
composições. Simples esboços de letra para serem musicados depois? Ou obras
já acabadas, versos e melodias devidamente casados? Nunca se saberá. Contudo,
a julgar pelas duas únicas letras que sobreviverão a estas noites de Piraí (e que
ficarão como suas últimas), a segunda hipótese é a mais provável. Suas
estruturas sugerem que foram escritas já com as melodias em mente. Além disso,
outra evidência de que são obras já prontas é o fato de o próprio Noel ter-lhes
definido os gêneros: um samba e uma embolada. Com sua inconfundível
caligrafia, passa-as a limpo num caderno escolar de folhas pautadas e marcadas
com um de seus carimbos: "Remetente Noel Rosa". O samba intitula-se Mas
Quem Te Deu Tudo Isso? Lembra um pouco o tema de Onde Está a
Honestidade? e tem mesmo muito de Noel. A começar pela referência ao
prestamista, o eterno vilão, o fantasma de sua infância perseguindo-o até o fim:
Antigamente tu moravas num cortiço
Pra pagar o prestamista fazias um rebuliço
Hoje tu tens palacete e avião
Mas quem te deu tudo isso?
Mas diga aqui entre nós:
Quem foi que te deu tudo isso?
Tu só comias farinha com chouriço
Não tinhas um dente postiço
(Ela:)
Tu não tens nada com isso!
Já tens uma dentadura toda de ouro maciço
Mas quem te deu tudo isso?

A embolada, Chuva de vento, é datada pelo próprio Noel: 29 de abril de


1937. Uma quinta-feira em que parece sentir-se melhor. O bastante ao menos
para um reencontro com o humor ingênuo daqueles dias de Minha Viola e Festa
no Céu:
Quem nunca viu
Chuva de vento a fantasia
Vá em Caxambu, de dia,
Domingo de carnaval!
Chuva de vento
Só essa de Caxambu!
Domingo chove chuchu
E venta água mineral!

Um espanhol
Que está me ouvindo desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que abala Caxambu
Esse espanhol
Que na mentira não me apanha
Garantiu que lá na Espanha
Chove bala pra chuchu!
Chuva de vento
É quando o vento dá na chuva
Sol com chuva - céu cinzento,
Casamento de viúva

Zeca Secura
Da fazenda do Anzol
Quando chove não vê sol
Vai comprar feijão no centro
Bebe dez litros
De cachaça em meia hora
Pra agüentá chuva por fora
Tem que se molhar por dentro.

Vento danado
É aquele lá de Minas
Sopra em cima das meninas
Diverte a população
Até os velhos
Vão correndo pras janelas
Para ver se algumas delas
Já usa combinação

Fez sol com chuva


Uma viúva lá da Penha
Disse que não há quem tenha
Tanto pretendente junto
Mas um por um
Dos pretendentes é otário
Pois o vencedor do páreo
Ganha resto de defunto

Quem nunca viu


Chuva de vento a fantasia
Vá em Caxambu de dia
Domingo de carnaval
Chuva de vento
Só essa de Caxambu
Domingo chove chuchu
E venta água mineral!

Um Zé Pau-d'Água
Tem um amigo parasita
Não trabalha e sempre grita:
"Viva Deus e chova arroz!"
Gritando assim
Do seu povo ele se vinga
Viva Deus e chova pinga
Que arroz nasce depois.
Chuva de vento
Muita gente desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que eu vi em Caxambu
Se o espanhol
Contar a dele não me ganha
Vai dizer que na Espanha
Chove bala pra chuchu!

Na verdade, dois reencontros. Este, da embolada, com os dias já distantes


em que os Tangarás morriam de amores pela música nordestina, e aquele outro,
do samba, com o prestamista. Como se tudo agora fosse vontade de voltar a
infância em Vila Isabel, aos primeiros passos como compositor, a tudo mais.
Mas Noel sabe que já é tarde. Nenhuma volta é possível. E entre tantas marcas
deixadas nestas folhas de caderno escolar - os versos, as datas, o carimbo, as
letras caprichosamente desenhadas - ele inclui mais uma, algo macabra, numa
das páginas em que passou a limpo Chuva de Vento: uma cruz negra, pequena,
feita a lápis.
No sábado, 1º de maio, sente-se realmente melhor. Sai do quarto, conversa
com os outros hóspedes. Alguém sugere, a ele e a Lindaura, um passeio na
manhã de sol. Por que não uma visita ao sistema hidrelétrico de Ribeirão das
Lajes? Fica aqui pertinho, na Serra das Araras, num dos distritos de Piraí. Há
muito para ver no caminho, o campo, as árvores, o gado pastando. Sem falar na
represa, na usina, naquela obra que, embora feita pelos canadenses da Light,
enche de orgulho os habitantes do município. Noel e Lindaura aceitam a
sugestão. Visitam o imenso reservatório, ficam sabendo que há ali mais de
setecentos milhões de metros cúbicos de águas vindas pelos leitos do Paraíba do
Sul, do Piraí e do Ribeirão das Lajes. Decidem conhecer de perto a usina,
construída lá embaixo, no vale. Têm de tomar o bondinho que desce, em trilhos
de bitola estreita, da estaçãozinha da represa. No caminho, um vento úmido
começa a soprar, invade o bondinho, castiga os passageiros. Noel, com arrepios,
pede a Lindaura para voltarem.
Na pensão, o frio parece ainda mais cortante. Está com febre, vai direto
para a cama. De noitinha, outra melhora aparente. Volta à escrivaninha, rabisca
alguma coisa, pára, deita-se de novo. Lindaura está a seu lado, deitada também.
Alonso Guimarães tinha razão, Piraí é um lugar sossegado. Tão logo a noite cai,
um manto de escuridão e silêncio envolve ruas e casas. Por volta das nove horas,
Lindaura quase pegando no sono, Noel debruça-se sobre ela na tentativa de
alcançar o abajur na mesinha de cabeceira do outro lado. Tudo se passa muito
depressa, Lindaura sentindo sobre o rosto um líquido denso e quente, Noel
tateando no escuro sem achar o interruptor. Há desespero neste gesto. Ainda sem
entender o que está havendo, a própria Lindaura acende a luz. É tomada de
pânico ao ver o marido sentado, o sangue a escorrer-lhe pela boca, as mãos
levadas à garganta como se algo o asfixiasse. Numa inexplicável presença de
espírito, empurra o corpo dele para trás, enfia-lhe o indicador goela adentro, tira
de lá um enorme coágulo que impedia Noel de respirar. E grita: - Socorro! Meu
marido está morrendo!
Todos acordam na pensão. Os que vão até o quarto ficam impressionados
com o que vêem, a cama coberta de sangue, o rosto de Lindaura também. E Noel
deitado, imóvel, respiração fraca. Alguém corre atrás de um médico. Quantos
existirão neste fim de mundo? Lindaura permanece ao lado do marido. Alice
Guimarães e Jurema tentam ajudar como podem. O médico chega, examina o
doente.
- Uma hemoptise. Coisa séria. Chama Lindaura a um canto e adverte:
Noel não pode continuar aqui. Não há recursos na cidade, ninguém garante
que outra crise desta não seja fatal. O melhor é levá-lo de volta ao Rio. Amanhã
mesmo. Que se chame um táxi de modo a que viaje no maior conforto possível.
Sim, coisa muito séria, acentua o médico.
O táxi pára na porta da pensão. Lindaura tem as duas mãos presas ao braço
magro do marido. Alice Guimarães e Jurema, todos os hóspedes vão levar até a
calçada o casal que se despede. Há no ar um pressentimento que ninguém ousa
mencionar, o silêncio no lugar de tudo, até mesmo no das lágrimas que Lindaura
abafa na garganta. Mas o silêncio dura pouco. Logo a atenção de todos é atraída
pelo movimento no interior da pensão. Dona Alice e os empregados começam a
arrastar para fora o colchão ensangüentado. Nem sequer esperam que Noel e
Lindaura entrem no carro.
- Depressa! Depressa com o querosene! O colchão é estendido na calçada.
Dona Alice se incumbe ela mesma de despejar em cima uma lata inteira. Tira do
bolso uma caixa de fósforos. Os olhos miúdos de Noel a seguem. Dona Alice
acende um fósforo, atira-o sobre o colchão, uma fogueira lança ao céu labaredas
que fazem brilhar o rosto de quem está perto.
- Santo Deus!- exclama uma das hóspedes. - Nem esperou ele ir embora.
Que falta!
As palavras da hóspede parecem despertar Lindaura, que se deixa tomar de
repentina fúria:
- A senhora não tem coração, é perversa, uma bruxa!
Noel segura o braço de Lindaura:
- Deixa, Linda. Deixa... Seus olhos estão vermelhos:
- Não tem importância.
Nem agora o sofredor resignado admite, enfim, que algo importa. Senão a
vida que levou, pelo menos a vida que começa a perder. Os empregados lavam o
Chão com creolina. Lindaura arranca a vassoura da mão de um deles.
- Desapareçam daqui!
Dona Alice entra na casa e volta. Traz os travesseiros já sem as fronhas
sujas de sangue.
- Os travesseiros, não!- grita Lindaura. E os tira das mãos da mulher.
Lembra-se das recomendações do médico, Noel precisa viajar com todo o
conforto. Com os dois travesseiros, procura tornar mais macio o banco de trás do
táxi, acolchoando carinhosamente o corpo magro do marido. Noel, ofegante,
entra ajudado pelo motorista. Antes que o carro parta, ele deixa escapar um
sorriso triste para os que ficam. Talvez sua forma de dizer que jamais voltará a
vê-los.
A viagem para o Rio, apesar de tudo, é boa. O motorista sabe exatamente
quem é o passageiro do banco de trás.
- Fique tranqüilo, seu Noel. O senhor vai ficar bom. Ainda tem muito
samba pra fazer.
Noel finge concordar. Conversam sobre sambas e automóveis. O motorista
procura não correr, evita os buracos, toma cuidado para que os solavancos não
incomodem Noel Rosa.

É domingo, 2 de maio. O chalé está vazio. Martha, Hélio, Arlinda, ninguém


esperava que voltassem hoje. Quando Martha chega, assusta-se com a luz acesa
no quarto do casal. O susto não tarda a ser substituído pela aflição, assim que
Lindaura lhe fala da terrível noite de véspera, a hemoptise, o sufocamento. Dr.
Edgar Graça Mello é chamado. Tenta tranqüilizar as mulheres:
- Vai melhorar com o repouso. Guarda a franqueza para uma conversa à
parte com Hélio:
- Está muito mal. Acho que é o fim. Estende-lhe uma caixa de Canphydral
injetável:
- Isso alivia. Ajuda a respirar.
A segunda-feira é de sol. A noite de repouso, como Edgar previa, fez bem
ao doente. Noel sente-se forte o bastante para levantar-se, caminhar pela casa,
acomodar-se na cadeira de balanço que Hélio coloca no lado de fora, perto da
porta lateral do chalé. É ainda o irmão quem traz para ali o velho rádio Philips de
alto-falante tipo corneta, lembrando o gramofone onde o pai se deliciava com os
discos de Caruso. Daquela boca sai um som alto, estridente, de programas
radiofônicos que Noel acompanha interessado. É assim que Arnaldo Araújo vai
encontrá-lo, de passagem pelo chalé a caminho do trabalho. Ouviu dizer que o
amigo está muito mal, mas acha que talvez tenham exagerado. É sincero: - Você
está com bom aspecto, Noel.
Conta que já marcou a data do casamento, acabou de alugar casa aqui perto,
pois nem de longe pensa em sair de Vila Isabel. Os dois conversam, Noel
falando com dificuldade, mas falando. Arnaldo anima-o. Promete voltar no
domingo, acompanhado da noiva.
- Se você vier aqui no domingo, Arnaldo. .. acho que não vai mais me
encontrar.
Aos olhos de Marília e Henrique Baptista também não parece tão mal. Os
dois o visitam, ficam alguns momentos conversando sobre música. Henrique fala
de suas últimas composições com a irmã. Noel pergunta se já pensaram em
gravar a sua favorita, o samba-canção Nunca Mais:
Nunca mais eu hei de amar como te amei
Nunca mais hei de querer como te quis...
Depois, exibe um olhar desconsolado e trocadilha:
-Ah, Henrique, teu amigo agora... nunca mais!
Outro que não consegue perceber o verdadeiro estado de Noel é Fernando
Pereira, seu companheiro nas tardes do Casé. Após visitá-lo neste mesmo dia,
despede-se de dona Martha no portão.
- Até que eu o achei bem.
- Não temos ilusões - diz ela, voz mansa e conformada. - Sabemos que é
grave.
De qualquer forma, mesmo de sol, é sombria para Noel esta segunda-feira.
Em algum momento, entre a viagem de carro de Piraí para o Rio e esta tarde
passada na cadeira de balanço, apático, entregue, ouvindo o rádio, pensando em
morte, surgiu nele a consciência de que sua hora está mesmo próxima. Olha para
Lindaura, movido por tardia compaixão:
- Eu nunca quis fazer você sofrer...
Ela não guarda, jamais guardará rancor dele. Quer apenas que fique bom.
Noel sorri. Ficar bom? Sua hora está mesmo próxima. Pra que mentir? Por
ironia, Carioca acaba de chegar às bancas com a reportagem feita dias atrás,
intitulada "Noel Rosa não morreu". Boato desmentido, verdade adiada: Noel
Rosa está morrendo.
A manhã de terça-feira, 4 de maio, não é tão ensolarada. O doente passou a
noite saindo de sonos leves, breves, para freqüentes crises de dispnéia. Lindaura,
paciente, velou por ele. Bem cedo, pede para voltar à cadeira de balanço, mas
Martha não concorda. Quando muito, depois que os alunos se forem, poderá
ficar na sala da frente, olhando a rua, as pessoas que passam. Noel ainda
encontra forças para alargar, com as próprias mãos, um buraco na velha parede.
Transforma-o no seu periscópio. Cola o rosto no estuque frio, posiciona o olho
no buraco e espia a rua - derradeiro olhar. Lá fora, garotos fazem algazarra. Um
gari retardatário passa com sua carroça. Noel não resiste. Arquejante, quase sem
voz, revive os antigos tempos e grita: - Burro-sem-rabo! Burro-sem... Derradeira
travessura. Martha e Lindaura acham melhor levá-lo para a cama. Edgar tinha
razão, é preciso repouso, qualquer excesso causando-lhe desconforto no peito. A
mãe manda que não se mexa. Já não desobedece, está sem forças, mal pode falar.

É quase noite. As pessoas que entram e saem do chalé o fazem na ponta dos
pés, comunicam-se por sussurros. Em frente, no 385, acertam-se os últimos
detalhes da festa que Vicente Gagliano - o Vicente Sabonete das serenatas de
antigamente - faz questão de dar pelo aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a
mesa de doces, fura-se o bolo com as quarenta velinhas, manda-se entrar o
chope. Heitor Bateria - um negro alto e magro, tocador de pandeiro, surdo e
tamborim, cuja jazz band costuma alegrar as festas do bairro em troca apenas de
comida e bebida - chega com seus músicos. Os convidados também. Pouco
depois de oito da noite, a casa de Vicente Sabonete está cheia e animada.
O silêncio e a penumbra do chalé contrastam com a barulhenta e iluminada
residência em frente. Alguns amigos vêm ver Noel, entram devagar, olham da
porta do quarto para o corpo consumido, cansado, a palidez disfarçada pela
pouca luz. Depois se afastam em silêncio, trocam palavras com dona Martha e
Hélio, saem como entraram, mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato
Baptista, bons amigos, estão entre as visitas cautelosas. A dança na casa de
Vicente Sabonete fica mais animada, a música se espalha, todos homenageando
Emília. Dorica, que não perde uma festa nas vizinhanças, desta vez faz diferente:
vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor de ferver a seringa. O filho está
prostrado, talvez uma injeção o reanime. A música atravessa a rua, chega até o
chalé.
- Seu Vicente, ouvi dizer que o Noel está muito mal aí defronte - alguém
avisa, voz baixa, ao dono da casa.
Vicente Sabonete manda um de seus filhos saber se é verdade. Talvez a
música esteja incomodando o doente. Dona Martha diz que não, a música nunca
incomodou Noel, seu Vicente que se tranqüilize, que prossiga com a festa.
Heitor Bateria comanda compenetrado a sua jazz band. É ele quem sugere, como
próximo número, um samba de Noel Rosa:
De babado, sim
Meu amor ideal
Sem babado, não
Noel, provavelmente, já não ouve. Tem a cabeça pousada no colo de
Lindaura, os olhos semicerrados. Dorica ferveu a seringa, Hélio vai até a sala
buscar a caixa de Canphydral. No portão, Martha despede-se de Orestes e do Dr.
Renato. Do outro lado, a música continua:
Passeando a meu lado
Você sobe de valor
Seu vestido sem babado
É você sem meu amor
(É assistência sem doutor...)

Hélio prepara a injeção, Dorica vem da cozinha com uma xícara de café
bem quente. Noel, a cabeça no colo de Lindaura, parece dormir um sono calmo,
profundo. Um fio de respiração é todo o vestígio de vida que há nele. Por pouco
tempo, porém. A mãe já se despediu das visitas e está agora de pé à porta do
quarto. Chega a tempo de ver aquele fio de respiração se extinguir. Pouco antes
das onze da noite, no mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte
e seis anos, quatro meses e vinte e três dias, morre Noel Rosa.
Cometas e outros corpos celestes passam ligeiros deixando em seu rastro
um mundo de superstições. Foi assim com o Halley naquele 1910 e volta a ser
assim com o Hermes neste 1937. Vinte e seis anos e alguns meses separam os
rumores apocalíticos inspirados na passagem de um e de outro. Tempo de uma
vida, ainda que curta como a de Noel Rosa. Quando ele nasceu, falava-se no fim
do mundo. A mesma coisa agora, os jornais abrindo espaço para que cientistas,
profetas e loucos digam o que pensam. Assis Valente - com quem Noel conviveu
em muitas noites da Lapa - chegará a converter tais rumores num samba que será
sucesso no próximo carnaval. O primeiro carnaval sem Noel Rosa:
Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso lá no morro nessa noite não se fez batucada...

Será que alguém associa a morte de Noel Rosa, esta pequena tragédia
carioca, aos maus presságios que cercam a vinda do Hermes? É mais certo que
não. Mas é em clima de grande confusão que são vividas, no chalé, as horas
entre a morte do compositor e seu sepultamento. A casa é literalmente invadida
por amigos, vizinhos, curiosos, gente de rádio, estranhos. A imprensa se
mobiliza. Um jovem repórter, David Nasser, avisado por Marino Pinto, acorda
fotógrafo e motorista do plantão noturno de O Globo e vão todos correndo para a
Theodoro da Silva no Ford 37 que Roberto Marinho acaba de comprar para dar
velocidade e aparência à reportagem do jornal. Ao voltar, David terá dificuldade
para convencer o secretário de redação, José Maria Pereira, de que o assunto
merece a primeira página. Sua matéria de dez laudas será reduzida a dez
linhas(2).
2. "Noel Rosa nasceu depois da morte", artigo de David Nasser, Manchete, 13 de fevereiro de 1971 (página 111).

Já outros repórteres não precisam convencer ninguém de que a morte de


Noel Rosa é um acontecimento na vida da cidade. Nestor Moreira, por exemplo.
Sem pedir autorização a nenhum chefe, corre para o chalé. É furão, ousado,
daquele atrevimento que tanto pode levar um cavador de notícias a conseguir
grandes manchetes como a ter penosos dissabores (daqui a alguns anos, ele
próprio, furão, ousado, atrevido demais, acabará morrendo nas mãos de um
investigador violento, o Coice de Mula, a quem desacatará numa de suas
reportagens policiais). Nestor talvez seja o que mais acintosamente "invade" o
chalé. Tira de gavetas e armários tudo que pode encontrar para uma boa
reportagem sobre o compositor morto: manuscritos, letras de música, partituras,
fotos, desenhos. A família, atordoada, só se vai dar conta na semana que vem,
quando ler as duas páginas dedicadas a Noel Rosa por A Noite Ilustrada. Ainda
bem que alguém se lembrou de guardar Este Álbum, tirando-o das mãos ávidas
do Nestor.
Aracy de Almeida e Benedicto Lacerda, sem saberem de nada, chegam com
a prova do disco que gravaram há duas semanas na Victor: Eu Sei sofrer e O
Maior Castigo Que Eu Te Dou. Ficam perplexos. Ouvem, como todos, relatos
imprecisos sobre os últimos momentos de Noel:
"Estava nos braços da mulher", "Não, nada disso, parece que cantava um
samba", "Morreu batucando na mesinha de cabeceira", "Ouvi dizer que estava na
festa da casa em frente". Até o atestado de óbito, assinado pelo amigo Edgar,
tropeça numa imprecisão. Hora da morte: dezesseis e trinta. O declarante, o
sempre próximo Álvaro de Castro, dirá isso para que não se tenha problemas
com a Santa Casa da Misericórdia, muito exigente nestes dias quanto a só se
fazer o sepultamento 24 horas após o falecimento. Uma grande confusão. O
noticiário dos jornais e tudo que se escrever depois sobre o assunto refletirão
essa mistura de lenda e realidade, destino afinal de todo grande personagem, seja
ele um vulto da História, seja um poeta do povo. A todos, Martha repete a sua
versão, singela e sucinta: - Morreu como um passarinho.
As outras mortes do poeta

"O cantor querido do povo carioca expirou ao som do samba De Babado de sua autoria. Foi a sua
última vontade. Pressentindo a sua hora final, Noel Rosa, que ouvia os acordes de uma orquestra próximo à
sua residência, pediu que tocassem uma de suas composições. Transmitida a solicitação, a família vizinha
atendeu. E o cantor do morro e da cidade, que guardava o leito desde algum tempo, atacado de pertinaz
enfermidade, ficou atento à música. Em dado momento, a esposa e a progenitora do compositor notaram
que uma lágrima corria pela face do enfermo. Era o fim de Noel Rosa que cerrava as pálpebras para sempre.
Um colapso cadíaco punha termo àquela existência."
O Globo 5 de maio de 1937

"Noel Rosa expirou, vitima de atroz dispnéia, pouco depois das 23 horas de ontem. Seu estado,
embora despertasse cuidados por parte da família, não era de gravidade assustadora. Por isso, a surpresa
dolorosa que tomou os seus depois do desenlace.
Assistiram-no sua genitora e seu irmão Hélio Rosa, também artista de rádio. Expirou serenamente,
não obstante a moléstia pulmonar. Pouco antes, mandou que um irmãozinho fosse à residência de uma
família amiga, bem próxima à sua casa, à rua Theodoro da Silva 385, onde havia festa, para que tocassem
uma música sua. O garoto ao chegar lá ouviu os primeiros compassos do grande êxito de Noel Rosa: De
Babado.
Pouco depois, o compositor falecia, ao som longínquo da música. Quando a triste nova chegou à
festa, todos correram à casa onde expirara o príncipe dos compositores populares."
Diário da Noite 6 de maio de 1937

"Noel Rosa, o conhecido compositor e cantor de rádio, faleceu ontem à noite vitimado por uma
síncope cardíaca.
O artista, que residia à rua Theodoro da Silva 382, achava-se na ocasião em uma festa na casa de uma
família amiga sita à mesma rua n? 385. Havia grande alegria na casa e o cantor e compositor tinha
começado a cantar um samba de sua autoria quando foi acometido do mal súbito, extinguindo-lhe a voz nos
lábios e a vida também."
Jornal do Brasil 5 de maio de 1937

"O compositor Noel Rosa, que se encontrava doente há tempos, quando cantava um samba inédito na
casa de uma família amiga foi acometido de uma síncope cardíaca falecendo repentinamente."
A Manhã 6 de maio de 1937
"O autor do O X do Problema estava doente há meses. E descansando em Friburgo, chegara há três
dias. No sanatório em que estava, sentiu saudades do morro e seus fãs. Veio porém para durar poucos dias.
E anteontem morreu de um colapso cardíaco. Conversava com a sua progenitora e com a sua esposa quando
a morte chegou."
A Nação 6 de maio de 1937
As carteiras da sala de aula são afastadas. Sobre quatro delas improvisa-se
uma mesa. Em cima, coloca-se o caixão de pinho barato, o único que a família
pôde comprar (um dinheiro recolhido durante o velório por gente do rádio, com
o intuito de ajudar nos funerais, desapareceu das gavetas da cômoda de Martha,
impossível saber, neste entra-e-sai, nos bolsos de quem). O corpo será velado
durante toda a madrugada e parte da tarde de quarta-feira, 5 de maio. Martha tem
esperanças de que Carmem, o marido e os filhos cheguem a tempo de Belo
Horizonte. Não quer que o enterro seja antes das cinco.
Os que passam pelo caixão nunca esquecerão este último olhar. Noel, o
corpo mirrado, exaurido pela doença, quarenta quilos no máximo, tem a
aparência de um menino. Apesar dos olhos encovados, dos ossos salientes, dos
fios de barba ruiva no queixo torto. É um rosto sem vida, mas sereno. Vestiram-
no com um terno branco, a gravata borboleta de que tanto gostava, os sapatos
fantasia. Pela manhã, esta roupa desaparecerá sob as flores com que Martha,
Lindaura, Arlinda, Nilda, Heloísa, Dorica, Emília enfeitarão o caixão. Um
quadro que se repete nos velórios do bairro: enquanto bocas masculinas falam do
morto, sempre bem, mãos femininas o cobrem de rosas, cravos, palmas e
saudades.
É um estranho velório. Exatamente como a integradora democracia dos
botequins de Vila Isabel, que Noel freqüentou desde garoto, reúnem-se aqui
pessoas das mais importantes famílias do bairro, os artistas mais conhecidos do
rádio, as figuras mais representativas da vida mundana da cidade. E ao lado
delas, chorando mais que todos, compositores de pés descalços, bêbados em raro
instante de sobriedade, mendigos como o Bela Idéia, sambistas humildes como o
Osso, que não tardará a fazer aquele que talvez seja o primeiro samba em
memória de Noel Rosa:
Havia grande festa em meu barraco
Quando a noticia do fato
Veio o morro entristecer
Era o filósofo Noel
Que Vila Isabel acabava de perder...

Constrangimento geral
De luto o morro ficou
Samba ninguém mais cantou.
Tu não te lembras do filósofo,
Sambista por excelência?

Quero esquecer e não posso


Dos seus sambas de cadência
Mas viverá eternamente na história
Aquele que em samba foi bacharel
Deus te conceda o reino da glória
Ó, inesquecível Noel!

Uma primazia que pode ser discutida por Cartola, o amigo Cartola, que
também faz, ainda sob o impacto da notícia, um samba para Noel:
A Vila emudeceu
Dolorosamente chora
O que perdeu
Ninguém é imortal
Morrer é natural
Ó, Deus, perdoa
Se é que estou pecando
Que mal lhe fez a Vila
Que lhe estás torturando?

Era o rei da filosofia


Fez da musa o que queria
Zombou da inspiração
Os seus versos ritmados
Por ele mesmo cantados
Tinham bela entoação.

Na Vila onde ele morava


Todos os seres cantavam
As glórias do seu poeta
Hoje a Vila é triste e muda
Ao bater Ave-Maria
Quando a aurora desperta.

Pouco importa, porém. Seja qual for o primeiro - Inesquecível Noel ou A


Vila Emudeceu - tão duas homenagens sentidas, que talvez nenhum outro
compositor da cidade mereceria desses humildes, quase anônimos, mas
admiráveis sambistas do morro.
Uma confusão. As quatro e meia, o chalé está intransitável. Ary Barroso
fica incumbido pela classe de dizer algumas palavras sobre o amigo e parceiro.
Promete que o fará, de improviso, à beira da sepultura. Mas tem pressa. Acha
que o velório está se prolongando demais, gente e mais gente chegando atraída
pelo noticiário dos jornais e das rádios. Faz menção de fechar o caixão, no que é
contido por Martha.
- Por favor, seu Ary. Estamos esperando nossa irmã de Minas.
Armênio Mesquita Veiga se põe do lado de Martha. Corta com uma palavra
firme os argumentos de Ary para que se feche o caixão já.
- Ela é a mãe do Noel. Tem esse direito. Mas Carmem não chega e pouco
antes das cinco o caixão é fechado. Fica decidido que o cortejo fúnebre será a pé
até a matriz de Nossa Senhora de Lourdes. Dali seguirá de carro até o cemitério
de São Francisco Xavier, no Caju. Pelas mãos de amigos, o corpo de Noel é
levado por Theodoro da Silva, Souza Franco, Ponto de 100 Réis, Boulevard. Um
caminho tantas vezes percorrido por ele, desde os tempos de menino. As casas
comerciais baixam suas portas, o botequim do Carvalho encerra o expediente,
pessoas choram à passagem do caixão.
Mais uma confusão: pretendia-se que o corpo fosse levado até o altar em
que a menina Bernadette está ajoelhada diante da visão da Virgem de Lourdes,
para ali ser encomendado por um dos sacerdotes. Mas monsenhor Jayme Sabba
Batistoni manda que se fechem as pesadas portas de madeira para que o cortejo
não entre na igreja. Por quê? Há gente demais, explica o vigário. Arma-se uma
discussão, a multidão pedindo que se abram as portas, Batistoni irredutível. No
máximo, concorda em benzer o caixão, dali mesmo, da escada.
Uma chuva miúda molha os caminhos de terra do cemitério. Há muita gente
aqui, parentes, amigos, cartazes da música popular. Francisco Alves não veio,
detesta enterros, é supersticioso, acha que morte atrai morte. Mas vieram Mário
Reis, Lamartine Babo, Almirante, César Ladeira, Marília Baptista, o pai e os
irmãos, Pixinguinha, Celso Guimarães, Patrício Teixeira, Horestes Barbosa,
Benedicto Lacerda, Vadico, Orlando Silva, Nássara, Christovam de Alencar,
Nuno Roland (o soldado 415 daquela noite em Porto Alegre, hoje realizando seu
sonho de cantar no rádio, já no cast da recém-fundada Nacional), João de Barro e
Alvinho, Jayme Britto, Aracy de Almeida, Joel & Gaúcho, representantes da
Mangueira e do Salgueiro, os irmãos Barbosa, os irmãos Petra de Barros, um
grande elenco de amigos.
A cova é rasa e fica ao lado de uma árvore copada numa das alamedas do
fundo. Ary Barroso faz o discurso prometido, de improviso, eloqüente, por vezes
inflamado. Tão inflamado que, num movimento mais brusco de braços, perde o
equilíbrio, escorrega na terra molhada e por pouco não cai dentro da sepultura.
Discurso que só não será esquecido porque o zelo e as habilidades taquigráficas
de Armênio Mesquita Veiga o passarão para o papel. Logo o Armênio, que
quase briga com Ary na confusão do chalé.
Há mesmo muita gente aqui. Uns se aproximam da sepultura, atirando lá
dentro sua pá de cal. Outros, ao contrário, ficam de longe. Como a dama de
tailleur escuro, a aba do chapéu a cobrir-lhe os olhos, que aproveita a semi-
escuridão do cemitério para não ser notada. É Ceci. Por que terá vindo? Pensa na
madrugada que passou em claro, bebendo, chorando sem parar, depois que
alguém se aproximou dela no Caverna e disse: - O Noel, Ceci...
- Já sei! - ... morreu agora há pouco.
Pensa também nas duas palavras meio sem sentido que deixou escapar
baixinho, como se ditas para si mesma:
- Pronto... acabou.
Sem sentido porque, afinal, tudo parecia ter acabado há algum tempo,
naquele adeus feito de escusas e silêncios. Por que só agora ela admite o fim
definitivo, como se apenas o irremediável da morte pudesse sepultar o velho
amor? Haveria em seu coração uma oculta esperança de que ainda pudessem se
reencontrar numa dessas esquinas que o destino costuma pôr no caminho das
pessoas? Não sabe dizer. Sabe apenas que acabou. Sente isso enquanto vê, olhos
úmidos, as pessoas se comprimirem sob a chuva em torno do caixão de Noel.
Clara também não veio. Ficou em casa, trancada no quarto para que
ninguém lhe visse as lágrimas. Fina está longe. Casou-se, saiu do Rio, só vai
saber da morte do ex-amor daqui há meses. Julinha e as outras, onde andarão?
Coberta de terra a cova rasa, começa-se a sair do cemitério. A alameda
principal é margeada por árvores frondosas. Daria gosto apreciá-las se suas
sombras não abrigassem tantas perdas. As pessoas, em grupo, ainda falam do
amigo que acaba de se ir. Cada qual tem uma definição mais ou menos fácil para
este personagem de suas vidas: um boêmio, um sambista, um poeta. É destino
dos poetas morrer na flor da idade, lembram uns. O maior compositor brasileiro
de todos os tempos, dizem outros. O Bernard Shaw do samba, acrescenta
alguém. Um humorista ou um filósofo? Um gênio. Especula-se: a morte do pai e
as desilusões amorosas teriam lhe abreviado a vida? Ou terá sido o queixo
defeituoso, impedindo-o de alimentar-se direito, a causa de tudo? Era um sujeito
alegre. Não, era um triste.(3)
3. A Noite Ilustrada, 11 de maio de 1937 (páginas 15 e 16).

Lado a lado, pela mesma alameda, vão Eduardinho e o Dr. José Rodrigues
da Graça Mello. Pensativos, num silêncio que o primeiro quebra:
- Sabe, Graça Mello, acho que ele próprio causou a sua morte.
Novo silêncio. O médico que o ajudou a nascer, naquele domingo
ensolarado de 1910, pensa no menino que acaba de enterrar nesta quarta-feira
chuvosa:
- Não, Eduardo. Noel apenas viveu a vida que quis viver.
"O desenlace ocorreu inesperadamente, quando no seu leito e na presença de sua esposa, genitora e
diversas outras pessoas, cantava o samba De Babado Sim."
Monitor Juvenil, maio de 1937

"Por volta das 21h30m, enquanto dona Martha e Lindaura, no portão, se despediam de amigos da
família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira, notou que o doente abria os olhos, esgazeadamente.
Parecia querer dizer algo. E como Hélio lhe indagasse o que sentia, Noel respondeu em voz quase
imperceptível:
- Estou me sentindo mal. Quero virar para o outro lado...
O irmão o ajudou. Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a mesinha de cabeceira,
em cujo tampo, como que obedecendo a um tique nervoso, ficou batendo pancadas surdas, ritmadas,
esmorecendo, ralentando. Por fim, a mão de Noel quedou imóvel.
Estava morto o maior compositor de samba do Brasil."
Almirante, No Tempo de Noel Rosa

"Conta-se muita história por aí, tudo mentira. Noel Rosa, pode escrever no seu livro, morreu nos
meus braços. Sim, nos meus braços."(4)
4. Bucy Moreira, depoimento aos autores.

O adeus de Ary

"Noel, meu amigo!


Desejo dizer a você o meu adeus. Éramos colegas e rivais. Colegas porque estávamos no mesmo
caminho e rivais porque éramos os garimpeiros do mesmo garimpo, em busca do mesmo brilhante, do
mesmo diamante azul da glória. E hoje, Noel Rosa, eu me despeço de você dizendo: morrer assim até é
glória. Porventura você era pobre como eu, como seu colega, e talvez muita gente que anda aí por cima não
possa receber nesse momento doloroso essa consagração e essa saudade espontânea de todos que aqui
viemos trazer o nosso adeus doloroso a você, glorificando a sua inspiração maravilhosa, o trajeto glorioso
de sua inteligência espontânea pelo caminho vário e duvidoso da vida.
Eu que conheci você tocando violão no Bando de Tangarás e que depois me encontrei com você
novamente já vitorioso, já na boca do povo, já na boca do Brasil que eu entendo, eu, Noel Rosa, nunca
poderia supor que viesse a ter esta dolorosa oportunidade. Seu retrato saiu ontem num jornal dizendo que
"Noel Rosa não morreu". Foi uma profecia. Você estava com os olhos abertos, mas hoje continua para
todos nós com os olhos abertos e mais vivos ainda, porque a morte destrói o corpo, mas tem a grande
ventura de constituir a imortalidade. E você a merece porque era grande; pequenino era assombro; sendo
modesto era inexcedível. Pode ir, Noel, é o nosso destino. Mas vai com essa grande satisfação de ter
deixado na terra somente amigos, somente admiradores, somente colegas. Adeus!"
Ary Barroso, palavras à beira do túmulo
PARTE VI MAIO DE 1937
Capítulo 46

POSTERIDADE

Meus inimigos
Que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim
Fita Amarela

Primeiro as lágrimas, depois o esquecimento. A Noel Rosa parecia


destinada a mesma posteridade de quase todos os artistas populares brasileiros -
muito pranteados assim que se vão, mas tendo sua vida e sua obra, pouco a
pouco, tragadas pela areia movediça do tempo. Parecia, apenas. Porque a
história, na verdade, tornou-se outra.
Primeiro as lágrimas. Muitas e sempre tocantes foram as homenagens que
se seguiram à noite de 4 de maio de 1937. Como a missa de sétimo dia celebrada
às onze da manhã de terça-feira, 11, na matriz de São Francisco de Paula. A
mesma igreja em cujas escadas Noel um dia adormecera, sendo então
confundido com um mendigo, piedosos fiéis madrugadores depositando esmolas
em seu chapéu de palhinha (ver Capítulo 26). Mais de trezentas pessoas
assinaram o livro de presença, nem metade das que estiveram lá. Martha e
Lindaura ajoelhadas lado a lado, Hélio, Eduardinho, Odette, os Graças Mello, os
Brandões, os Boamortes, amigos, parceiros, astros e estrelas do rádio, muita
gente. E também Arlirio depois recordaria: "Uma missa linda. A mais bonita
cerimônia religiosa a que já assisti." Linda, principalmente, pela música.
Assim que soube onde seria, Arnold Glückmann procurou o vigário da
paróquia de São Francisco de Paula para pedir-lhe favor muito especial:
autorização para que músicos da Rádio Club do Brasil executassem durante a
missa uma peça litúrgica que o próprio Glückmann estava escrevendo.
- Que tipo de peça litúrgica?
O maestro explicou que seria uma breve suíte para orquestra de câmera,
construída a partir de fragmentos de sambas de Noel. O vigário franziu a testa,
preocupado. Sambas de Noel Rosa na igreja de São Francisco? Por que não
Bach, Handel, Schubert? Glückmann tratou de tranqüilizá-lo : a música haveria
de ser adequada ao lugar e à ocasião, séria, solene, grave, respeitosa, um preito
de saudade ao amigo e parceiro Noel.
- Muito bem, muito bem. Mas pelo amor de Deus, maestro: o samba, o
ritmo de samba, o senhor disfarce o mais que possa.
Assim, com citações a Nuvem Que Passou, Palpite Infeliz, Com Que
Roupa?, Quem Ri Melhor e Estamos Esperando, além da indefectível Marcha
Fúnebre, de Chopin, Glückmann escreveu a suíte que se ouviu durante a missa.
Formalmente, nada de que o maestro pudesse se orgulhar, mas de qualquer modo
uma peça capaz de levar muita gente às lágrimas. O próprio Glückmann a regeu.
Num dos violoncelos, comovido, Homero Dornellas, o Candoca da Anunciação
a quem Noel devia a providencial diferença entre o "Agora vou mudar minha
conduta" e o "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas", lá se iam oito anos.
Muitas e sempre tocantes as homenagens. A missa, os programas de rádio,
as reportagens em jornais e revistas, os poemas, as canções dedicadas a Noel.
Dos programas de rádio, dois merecem ser lembrados. O primeiro foi ao ar na
noite de sábado, 8 de maio, pelo microfone da PRE-8, Rádio Nacional.
Oduvaldo Cozzi - que ainda não era o "professor" dos modernos locutores
esportivos brasileiros, mas apenas um speaker bastante influenciado por César
Ladeira - foi o apresentador, lendo com voz bonita e dicção perfeita uma crônica
que Carioca reproduziria dias depois(1):
1. Carioca, 15 de maio de 1937.

"Pássaros da madrugada, por que vocês andaram cantando na manhã de


hoje? Vocês ainda não sabem que morreu o melhor dos seus irmãos? Por que
vocês cantaram de manhã cedo, na festa musical de tantos gorjeios, se dentro da
noite o próprio canto chorou na voz do cantor que para sempre emudeceu?
Pássaros da madrugada... Ele também era assim como vocês... Ele também
cantava quando a vida ia chorando pelos caminhos da vida."

Amigos e parceiros, apresentados por Cozzi, falaram de sua saudade: João


de Barro, André Filho, Assis Valente, Alberto Ribeiro. O auditório lotado, a
parte musical ficou por conta de orlando Silva (Quando o Samba Acabou e
Filosofia), Mário Petra de Barros (AtéAmanhãe Fita Amarela), Cynara Rios
(Palpite Infeliz) e Nuno Roland (Com Que Roupa? e Feitio de Oração), todos
acompanhados pelo clarinete de Luís Americano e os violões de Pereira Filho e
Valzinho Teixeira.
O outro programa - uma hora dedicada a Noel pelo Casé, domingo à tarde,
na Transmissora - teve Marília Baptista à frente de um grupo de cantores que
recordaram Com Que Roupa?, Fita Amarela, Até Amanhã e Tarzan, o Filho do
Alfaiate. Mas o ponto alto foi quando, voz embargada, Sebastião Fonseca, outro
poeta de Vila Isabel e redator do Lux Jornal, leu seu recém-concluído poema
Violões em funeral, informando aos ouvintes que Donga prometera musicá-lo.
Promessa que afinal não se cumpriria, os versos só ganhando melodia, de Sílvio
Caldas, quatorze anos depois(2):
2. Sílvio Caldas só musicou as duas primeiras e as duas últimas estrofes, gravando-as ele mesmo, como samba-canção, em 1951.

Vila Isabel veste luto


Pelas esquinas escuto
Violões em funeral...
Choram bordões, choram primas,
Soluçam todas as rimas
Numa saudade imortal!

Entre as nuvens escondida


Como de crepe vestida
A lua fica a chorar...
E o pranto que a lua chora
Goteja, goteja agora
Dos oitis do Boulevard!

Toda a cidade soluça


Comovida se debruça
Sobre o caixão de Noel...
Matriz, Estácio, Salgueiro,
Todo o Rio de Janeiro
Consola Vila Isabel!

Adeus cantor da seresta


Que tinhas sempre a alma em festa
Ainda quando sofrias...
E que, chorando, cantavas
Cantando, filosofavas
Filosofando, sorrias!

Adeus, poeta do povo


Que ressuscitas de novo
Quando na morte descambas...
Sinhô de pele mais clara
No qual Sinhô encarnara
A alma sonora dos sambas!

Adeus, cigarra vadia


Que mesmo em tua agonia
Cantavas para morrer...
Tu viverás na saudade
Da tua grande cidade
Que não te pode esquecer!
No mesmo programa anunciou-se que Casé daria total apoio à campanha
que A Noite acabara de lançar para que se erguesse um busto de Noel em seu
bairro. A idéia era de Orestes Barbosa e Nássara, que a tinham levado ao
português Vasco Lima, diretor do jornal.
- Um busto?
- Isso mesmo.
- Mas diga-me lá, seu Orestes, este Noel Rosa foi mesmo tão importante
que esteja a merecer busto em praça pública?
- Importante, não. O mais importante! - sentenciou Orestes.
- Muito que bem. Ponham-me isto no papel.
Nássara e Orestes Barbosa escreveram então uma carta que, publicada no
jornal, deu início à campanha. Em menos de uma semana, eram muitas as
adesões, amigos, casas comerciais, gente do rádio, ex-companheiros de São
Bento, admiradores anônimos, todos mandando dinheiro a A Noite. O escultor
Alfredo Herculano, amigo de Nássara, aceitou o convite para cuidar do projeto.
Não quis nada em troca. Só vira Noel uma vez e nunca mais esqueceu seu jeito
meio aéreo no dia em que fora procurar Nássara no jornal em que este e
Herculano trabalhavam: - Não está?
- Não.
- A que horas volta?
- Não tenho a menor idéia.
- Então me faz um favor: diga a ele que o compositor do Com Que Roupa?
esteve aqui.
Mas nem todos acharam feliz a idéia do monumento. Álvaro Armando, por
exemplo, protestou em versos em sua coluna Pingos & Respingos(3):
3. Correio da Manhã, 16 de maio de 1936. Álvaro Armando era o pseudônimo da cronista e poetisa Helena Ferraz de Abreu, filha de Bastos Tigre.

A idéia é boa, não nego


Mas - só não vê quem for cego -
Teu busto nada nos diz
Busto ganha toda a gente;
Para Noel, francamente,
Isto é "palpite infeliz"!

E, quatro estrofes adiante:


Que os teus amigos de samba,
Gente boa, gente bamba,
Façam-te um samba, Noel,
Que se espalhe na cidade
Cantando a imensa saudade
Da tua Vila Isabel!
Sugestão que, independente do monumento, muitos compositores e letristas
aceitariam. Como veremos, dezenas de músicas ainda seriam feitas inspiradas
em Noel, lembrando Noel ou pelo menos citando Noel.
Outro que tentou minar o projeto foi Raymundo Magalhães Júnior, escritor
e jornalista, redator de A Noite, de confessado ódio por Orestes desde o dia em
que este o apelidou de Caspa Ambulante. Passados cinco meses do lançamento
da campanha e vendo que não se falava mais nela, Raymundo pôs-se a inserir
em suas matérias insinuações maldosas em torno do dinheiro arrecadado, que
supunha estar com o poeta de Chão de Estrelas. Um tiro pela culatra. Orestes
escreveu em resposta: "Não pergunte a mim pelo dinheiro, porque nada sei.
Pergunte aí mesmo, em A Noite, a Vasco Lima." Resultado: o português passou
uma descompostura em Raymundo pelo atrevimento de pôr em dúvida a
honestidade do seu próprio jornal.
Fato é que bom tempo transcorreria até que o monumento se fizesse
realidade. Só em 18 de agosto de 1938, numa cerimônia simples prestigiada por
alguns cartazes do rádio e da música popular, foi inaugurado no centro da Praça
Tobias Barreto, no lado mais novo de Vila Isabel. Não era, como se pretendia de
início, um busto. Depois de vários esboços um tanto ambiciosos, Herculano
acabou optando por algo mais simples: uma pequena coluna de pedra na qual o
escultor talhou o perfil do poeta, um violão e a inscrição "A Noel Rosa - 1910-
1937".
Foi ainda sob o impacto da morte - na verdade, dois dias depois-que o
interventor do Distrito Federal, cônego Olympio de Mello, prometeu dar a duas
ruazinhas do Morro do Livramento os nomes de Sinhô e Noel Rosa. Outra
promessa não cumprida, mais uma homenagem que não se faria sem longa
espera: a Rua Sinhô só foi inaugurada em 1948, na Consolação, e a Noel Rosa,
dois anos depois, quando seu nome foi dado à antiga Sarií, descampada, sem
saída, paralela à Gonzaga Bastos. Portanto, numa Aldeia Campista muito mais
de Quidinho e Orestes Barbosa que de Noel.
Homenagens. Foram mesmo muitas e sempre tocantes. Modos de a cidade
chorar o seu cantor.
Depois das lágrimas, o esquecimento. Como de fato costuma acontecer aos
artistas populares de um país de frágil memória e permanente sede de novidades,
o nome e a obra de Noel Rosa, nos doze, treze anos que se seguiram à sua morte,
foram sendo pouco a pouco esquecidos. Quem se lembrava deles, por exemplo,
nos primeiros meses de 1950, quando as vozes de Dick Farney e Lúcio Alves
acariciavam jovens ouvidos fazendo de Ponto Final, de José Maria de Abreu e
Jair Amorim, e Amargura, de Radamés Gnattali e Alberto Ribeiro, modelos
definitivos daquilo que então se chamou de "moderna música romântica
brasileira"? Poucos. O pessoal do meio, velhos autores e intérpretes, os
saudosistas, mas não o grande público. Deste estavam esquecidos o poeta e suas
canções.
Mesmo naquele maio de 1937 - com todas as homenagens - raros se deram
conta do que a perda de Noel Rosa realmente representava para a música popular
brasileira.
- Sabíamos que era grande, muito grande - lembra Nássara. - Mas
consciência exata de sua genialidade, na época, só o Orestes tinha.
"Uma perda trágica", dissera Orestes ainda no enterro. Por privar nosso
cancioneiro de seu maior poeta, sua figura mais original, inquieta e influente,
quem sabe a única capaz de resolver certos impasses estéticos que estavam a
caminho. Uma perda trágica, mas que já no dia seguinte os jornais estariam
minimizando para que se abrisse espaço à tragédia de proporções maiores,
embora mais distante: o incêndio do Hindenburg, sem dúvida a principal
manchete da semana(4).
4. O dirigível alemão Hindenburg incendiou-se na noite de 6 de maio de 1937, quando se preparava para pousar no campo de aviação naval de Lakehurst, Nova Jersey, Estados Unidos.
Trinta e seis de seus 97 passageiros morreram. Os jornais brasileiros, como os de todo o mundo, deram grande destaque à tragédia, muitos em matérias de página inteira. A morte e o enterro de Noel
Rosa, salvo as exceções de algumas poucas revistas mensais, já estavam reduzidos a breves notas de coluna.

Poucos se davam conta, também, de que o próprio mundo em que Noel


Rosa vivera começava a desmoronar sem ele. Como o dirigível em chamas,
rápida, inexoravelmente. A família, o chalé, o Rio boêmio, a música popular, por
motivos vários, nunca mais seriam os mesmos.
No dia mesmo da missa, Martha reuniu os poucos pertences do filho e
desfez-se deles como se assim pudesse afugentar as lembranças dos últimos anos
de sofrimento. As roupas para os pobres, o violão para Hélio, o álbum de retratos
da família para o sobrinho Eduardo Nelson, um ou outro objeto para este ou
aquele amigo. Os manuscritos (cartas, letras de samba, rascunhos das Conversas
de Esquina e das operetas radiofônicas) foram postos num saco de pano e dados
a Marília Baptista, junto com um dicionário de rimas em cujas margens Noel
anotara um punhado de versos. Sábia decisão a de Martha: Marília passaria os
manuscritos às mãos do zeloso Almirante e guardaria o dicionário. Anos depois,
musicaria alguns versos transformando-os em dois sambas no mais puro estilo
de Noel, tão bem assimilado pela amiga e discípula. Um deles é Balão
Apagado, o diabo tirando o chapéu para os pecados do boêmio:
Sobe, balão... Sobe, balão...
Por este céu azul sem fim,
Vai dizer ao meu São João
Que não se esqueça de mim

Já mandei um balão com foguete


Levar um bilhete
Ao meu Santo Antônio
E o balão, para fugir do inverno
Entregou no inferno
O bilhete ao demônio!

Satanás respondeu meu recado:


"Balão apagado
Não entra no céu...
No inferno tu serás respeitado,
Tu tens tanto pecado
Que eu tiro o chapéu!

Num balão que a chuva apagou


Alguém me mandou
Este triste recado:
"Eu espero ver a tua descida,
No céu da minha vida,
És balão apagado!"

O outro samba João Teimoso, mais um tipo para a galeria de Noel:


Tenho mais o que fazer,
Não discuto com teimoso,
Não posso perder meu tempo.
O meu tempo precioso
É para viver
Tenho mais o que fazer!

João Teimoso é seu nome


Dorme em pé naquela rede
Dá bebida a quem tem fome
Dá comida a quem tem sede

Foge das meninas boas


Diz que prefere as coroas
Quando começa não pára
Este cara cismou com a minha cara

Ficava clara a intenção de Martha de desfazer-se de tudo. Exausta, parava


de lutar. Carmem e Eduardinho, querendo ajudá-la, abriram mão de suas partes
no chalé. Quem sabe não se poderia construir uma vila residencial em seu lugar,
Martha morando numa das casas e vivendo do aluguel das outras? Afinal, eram
onze metros de frente por 66 de fundos, um belo terreno. Martha prometeu
pensar no assunto. Mas, Lindaura voltando para a companhia da mãe, Hélio
viajando, os irmãos longe, via-se, além de exausta, só. Chegou a passar algum
tempo com as primas que viviam num casarão da Duque de Caxias com a
Conselheiro Autran, irmãs de Heleno Brandão, solteironas apegadas ao seu voto
de pobreza. Depois, o chalé fechado como se nele sepultasse todo o passado (a
escolinha acabou, Martha passando a dar aulas particulares), mudou-se para um
quarto no Andaraí, de lá para outro na Rua dos Artistas, na Aldeia Campista, e
por fim para a Corrêa Vasques, no Estácio. Já estava ali, no lendário bairro dos
sambistas que o filho tanto admirava, quando, examinada pelo Dr. Jorge
Sampaio de Marsillac (marido de Heloísa, uma das filhas do mesmo Heleno
Brandão), soube-se que o caroço que tinha no seio esquerdo era um tumor
maligno. Apenas dois anos se haviam passado desde a morte de Noel. Se é que
em algum momento Martha pensara seriamente no projeto da vila, a doença a
fazia desistir de vez. A 10 de fevereiro de 1940, vendia a Othon José Antunes o
chalé modesto que todo o bairro há muito conhecia como "a casa de Noel". Os
irmãos não gostaram. Principalmente Eduardinho, cada vez menos identificado
com ela. Nunca a perdoara pelos comentários feitos a amigos comuns quando, de
volta de Bica de Pedra, ele decidira ficar com o aluguel do bangalô, que de
direito lhe pertencia. Mais de uma vez Martha desabafara: - Eduardinho nos
deixou praticamente na miséria.
Para ele, injustiça de irmã ingrata. Nunca a perdoara, tampouco por sua
ligação com Álvaro de Castro, "traição à memória" do cunhado e amigo Neca.
Por fim, lá se ia a casa onde haviam vivido o pai, a mãe, os irmãos, Bella, Neca,
Arlinda, as crianças de Mário Brown, Hélio, Noel. Mas tudo isso agora - como o
pouco que ficara entre as paredes do chalé - pertencia ao passado. Certa tarde,
quando se preparava para ir ao cinema com uma aluna, Martha sofreu um
derrame cerebral. Ao recobrar os sentidos, já no Hospital Evangélico da Rua
Bom Pastor, na Tijuca, balbuciou: - Chamem a Arlinda...
A amiga quase irmã, confidente de tantos segredos, a quem dera o primeiro
filho para batizar, veio de São Paulo o mais depressa que pôde. Mas o bastante
apenas para entrar no quarto, segurar a mão de Martha e vê-la morrer às duas da
tarde de 26 de julho de 1940. Para o médico que assinou o atestado de óbito, de
arteriosclerose, hipertensão arterial, ictus cerebral e colapso cardíaco. Para os de
casa, de câncer. Para os que a conheciam bem de perto, consumida pela vida.
Tinha 51 anos.
A família dispersava-se para sempre. Carmem em Minas, Arlinda em São
Paulo, Eduardinho no Rio, morreram cada qual num canto. Hélio, formado em
veterinária, entrou para o Exército e andou servindo no interior. Mais tarde,
retomando tradição que vinha dos Corrêas d'Azevedo portugueses, mas que o
irmão interrompera para ser "o Miguel Couto do samba", estudou medicina.
Psiquiatria foi a especialidade que escolheu. E ele próprio, como costumava
dizer, seu primeiro paciente, a luta contra a epilepsia não lhe dando descanso.
Casou-se em 1938, fez-se pai de duas filhas, descasou-se, voltou a casar-se(5)..
5. A primeira mulher separou-se dele para viver com Annibal Augusto Sardinha, o Garoto. A segunda seria a prima Lourdes, irmã de Jacy Pacheco.

Jamais deixaria de surpreender e impressionar as pessoas por suas


excentricidades. Durante o velório da mãe, ao ver grande esperança pousar no
ombro de Marília Baptista, assustando-a, soltou ruidosa gargalhada. Não parou
de rir o resto da noite, feliz da vida. Marília, achando a atitude no mínimo
estranha, interpelou-o.
- Tenho motivos para estar contente, Marília. Mamãe me disse que,
chegando lá em cima, encontrando-se com Noel e estando tudo bem, me
mandaria um aviso. A esperança foi o aviso de mamãe.
Até o fim de seus dias não perderia oportunidade de se comparar ao irmão.
Mesmo no consultório, podia pôr Freud momentaneamente de lado para puxar o
violão debaixo do divã e mostrar ao cliente um velho samba de Noel.
- Veja, era assim que ele se acompanhava.
Em seguida, exibindo suas próprias harmonias para o mesmo samba:
- Me diga agora: qual dos dois é melhor?
Hélio de Medeiros Rosa morreu (ou, como preferiria, "desencarnou") a 15
de abril de 1974, em Niterói, de um ataque cardíaco.
Lindaura sobreviveu a todos. Casou-se de novo, teve com o segundo
marido o filho que não pudera ter com o primeiro, trocou Vila Isabel por
Copacabana. Mas nunca renunciou à condição de "viúva de Noel", papel que
representaria, orgulhosa e compenetrada, pela vida afora.
Lindaura idosa

As outras musas do poeta também seguiram por caminhos diversos. Julinha,


imitando a Maria Fumaça do samba, sumiu. Fina, como vimos, já estava casada
e longe quando Noel morreu. Clara também se casou. Suave, discretamente,
como era de seu feitio, tratou de sair de cena: fez tudo para que os curiosos
pensassem que seu namoro com Noel tinha sido "coisa de criança", há muito
esquecida. Nas malhas desta mentira feita de prudências, constrangimentos e
saudades, até o atento Almirante deixou-se enredar(6).
6. Foi em 1982 que Clara concordou - muito por sugestão da filha Lucy - em falar com os autores sobre seus sete anos de namoro com Noel Rosa. Fazia-o pela primeira vez, quase quatro
décadas depois de ficar viúva. Na ocasião, admitiu que ao ser procurada por Almirante, quando este levantava dados para uma série de programas de rádio sobre Noel, contou-lhe versão diferente,
tentando assim diminuir a importância de seu papel na história: "Afinal, a mulher dele era a outra..." Isto é, a Lindaura que os separara para sempre.

Ceci, a inesquecível dama do cabaré, não ficou muito tempo mais com
Mário Lago. Os amores da boêmia, afinal, não foram feitos para durar. Mas não
se esqueceriam um do outro. Embora ele o negasse, ela seguiria convencida de
ter sido a inspiradora dos versos que, com música de Benedicto Lacerda,
correram o Brasil na voz de Orlando Silva:
Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado,
Com outro que te encontrou

Este "outro" seria José Antônio de Araújo, que tirou Ceci da noite, casou-se
com ela, ajudou-a a reencontrar o caminho de casa, onde um pai arrependido
recebeu-a de braços abertos. Mas não é este o final feliz de sua história. Um ano
e cinco meses depois do casamento - exatamente no dia em que Noel estaria
fazendo 35 anos -José Antônio morreria intoxicado por uma injeção deteriorada
de Necroton na veia. Ceci voltou a ganhar a vida como antes, cabarés, dancings,
casas noturnas baratas, no Rio e no interior. Mas conseguiu juntar o dinheiro que
lhe permitiu comprar seu próprio chalé modesto na Vila Kennedy, subúrbio
carioca, onde envelheceria como professora particular de crianças pobres.
Ceci, como as demais mulheres da vida de Noel, se lembraria dele sempre
com ternura. Musas e exceções num tempo de esquecimento.
Tempo de esquecimento porque tempo de mudanças. Depois da morte de
Noel Rosa - embora não necessariamente por causa dela - o mundo em que ele
vivera realmente desmoronava. Ou melhor, mudava. A música popular, o Rio
boêmio, o Brasil, nada seria como antes.
A 10 de novembro daquele mesmo 1937, a decretação do Estado Novo
aplicava duro golpe nas esperanças brasileiras de democracia. Uma ditadura
populista nos moldes do fascismo era importada da Europa por Getúlio Vargas
para substituir o regime de trajes imprecisos - com que roupa? - que aqui se
implantara sete anos antes. Como toda ditadura, dada a arroubos ufanistas. De
repente, segundo a propaganda oficial, além de gigante pela própria natureza, o
Brasil tornava-se o país do futuro.
Dentro desse espírito (ainda que ingenuamente, sem perceber que servia aos
propósitos da nova ordem que dizia combater), Ary Barroso criaria com a sua
Aquarela do Brasil uma grandiloqüente novidade: o samba-exaltação:
Brasil, meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos...

Pela mesma trilha logo estariam seguindo outros compositores e letristas


preocupados em exaltar as belezas e riquezas de uma terra abençoada por Deus,
um país muito diferente do Brasil de tanga de Noel Rosa.
Mas o samba-exaltação, que substituía a sátira e a crítica tão caras ao poeta
de Vila Isabel, foi apenas a primeira - e não a mais importante - das três
determinantes das mudanças que se processariam na música popular brasileira
depois de 1937. As duas outras, a importação da música americana e a
exportação da nossa, conquanto parecessem se opor, eram na verdade partes de
um mesmo todo: o intercâmbio cultural embutido na chamada Política da Boa
Vizinhança, criada pelos Estados Unidos em 1933 e tornada mais intensa e
eficaz ao longo da década de 40.
Em 1939, eclodia a II Guerra Mundial. Antes de entrarem nela - e de
levarem o Brasil a fazer o mesmo, forçando Vargas a romper o flerte que vinha
mantendo com o Eixo - os Estados Unidos adotaram nova política em relação à
América Latina. Esta imensa extensão de terra, rica e generosa, de solo farto e
costa atlântica estratégica (o Nordeste brasileiro, por exemplo, sendo o ponto
mais próximo de uma África cobiçada e disputada, localização importante para
bases aéreas num momento em que o combustível de avião valia mais que ouro),
esta imensa extensão de terra, enfim, precisava ser conquistada. Só que os
Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt, em vez de bombas, canhões e
exércitos, empregavam agora arma mais sutil e eficaz. Conscientes de que povos
culturalmente mais vulneráveis eram mais fáceis de conquistar, política e
economicamente, os Estados Unidos entravam por esta porta. Em nome de um
intercâmbio na realidade unilateral, exportavam para o Brasil sua música, seus
livros, seu teatro, seu cinema, sua ideologia, e o pouco que importavam era
devidamente adaptado ao seu gosto.
Por exemplo, Carmem Miranda. Com ela - que no Brasil era a Pequena
Notável, a rainha das marchinhas, a cantora que tinha it, mas que os americanos
não tardariam a transformar na Brazilian Bombshell, uma figura quase caricata
com suas baianas estilizadas, seus tamancões, seus turbantes abarrotados de
bananas e abacaxis, seus gestos espalhafatosos que nada tinham a ver com o
samba - iniciou-se nova fase na música popular brasileira, a segunda
determinante das mudanças que se fariam de modo irreversível: a fase do sonho
de conquista da América. Carmem realmente conseguiu realizar o seu. Levada
pelo empresário Lee Schubert, começou fazendo ponta em show da Broadway e
acabou como uma das mulheres mais bem pagas de Hollywood. Até ali, nenhum
brasileiro, dentro ou fora da música, fizera tanta fama e dinheiro no exterior.
A partir de então, muitos se deixaram embriagar pelo mesmo sonho, anos
mais tarde objeto de minucioso, documentado e polêmico estudo assinado por
José Ramos Tinhorão(7).
7. O Samba Agora Vai... - a Farsa da Música Popular no Exterior, publicado em 1969, não se limita à fase Carmem Miranda. Na verdade, cobre um período que vai de Caldas Barbosa a
Antônio Carlos Jobim - duzentos anos de esforços da música brasileira em se fazer conhecida lá fora.

Com maior ou menor êxito, mas sempre tendo de amoldar sua arte aos
gostos de lá, também tentaram fazer a América inúmeros seguidores de Carmem:
o Bando da Lua que a acompanhava e os Anjos do Inferno, Laurindo de Almeida
e Garoto, o agitado Russo do Pandeiro, ao lado de quem Noel vivera a deliciosa
aventura do Gente do Morro, e o equivocado Cândido de Arruda Botelho, a
quem o Departamento de Imprensa e Propaganda, o temível DIP da ditadura
Vargas, mandou à América para divulgar não só nossas canções, mas certa
fantasia de mamoeiro, desenhada por Santa Rosa a partir de detalhes de trajes
típicos de todo o Brasil, das bombachas do gaúcho ao chapéu de couro do
cangaceiro. Um sonho que a muitos atraiu, inclusive ao ufanista Ary Barroso,
contratado para escrever música de filmes e até de uma peça da Broadway,
Pedro Song, jamais encenada. E também ao talentoso Vadico, que viajou com a
orquestra de Romeu Silva, incorporou-se ao grupo de Carmem e mais tarde
serviu como pianista e arranjador à companhia da bailarina negra Katherine Du-
nham. Sonhos, enfim, muito diferentes do que poderia alimentar, olhos e
corações voltados para a realidade à sua volta, o poeta Noel Rosa.
A terceira determinante é sem dúvida a mais importante: a cultura que os
americanos exportaram às toneladas desde fins dos anos 30 e que recrudesceria,
já no pós-guerra, através do mesmo "intercâmbio" patrocinado pela Comissão
Coordenadora dos Assuntos Interamericanos, do Departamento de Estado já
agora do governo Harry Truman, política esta a cargo do magnata americano
Nelson David Rockefeller. Se o samba-exaltação e a necessidade de adaptar
nossas coisas ao sabor americano já haviam, por motivos vários, provocado
mudanças, esta terceira determinante não seria menos que uma revolução:
mudaria literalmente tudo, os hábitos, os valores, a moda, o comportamento, a
cultura, o Brasil.
Na música popular, os sons vindos da América ecoavam mais alto que
quaisquer outros. Através dos filmes, dos discos, dos programas de rádio
retransmitidos aqui, entre os quais o célebre Your Hit Parade, ganhavam a cada
dia novos adeptos. Enquanto nos Estados Unidos muitos intelectuais reagiam,
nos anos 40, ao excesso de importação do que consideravam "bizarrias latino-
americanas" (o venezuelano Carlos Ramírez, o mexicano Tito Guízar, os
Lecuona Cuban Boys, os rumbeiros do espanhol Xavier Cugat e até mesmo a
brasileira Carmem Miranda), a ponto de um deles ter escrito uma protest song
que os próprios brasileiros aprenderiam a cantar pelo Your Hit Parade...
Take back your samba,
Ai, your rumba,
Ai, your conga...
Ai, ai, ai!(8)
8. Este detalhe, que escapou a Tinhorão em seu estudo, é importante por mostrar as diferenças de postura nos dois países. South America Take it Away, a começar pelo título, era uma
verdadeira canção de protesto. Harold Rome escreveu-a em 1944 e Betty Garrett lançou-a dois anos depois no musical da Broadway Call Me Mister, mas se popularizaria no Brasil através da gravação
best-seller de Bing Crosby com as Andrews Sisters.

Enquanto lá alguns reagiam, aqui a música popular americana era sinônimo


de bom-gosto, em oposição ao samba e a outros gêneros brasileiros mais
tradicionais.
O cinema e o disco nos punham em contato permanente com as orquestras
de Glenn Miller, Jimmy e Tommy Dorsey, Benny Goodman, HarryJames, Artie
Shaw, Woody Herman. E como nunca se dançara tanto quanto nos Estados
Unidos daqueles dias, dançar também virou mania brasileira. Nas festas em
casas de família, nos clubes, nos bailes de formatura, nas noites de debutantes.
Em pouco, tínhamos também nossas próprias big bands, a Tabajara de Severino
Araújo, a de Oswaldo Borba, a do maestro Carioca, a de Napoleão Tavares e
seus Soldados Musicais. Todas, naturalmente, de acordo com o figurino
americano(9).
9. O maestro Napoleão Tavares não fazia segredo de que os arranjos tocados por seus "soldados musicais", nos bailes da época, eram por ele mesmo copiados, instrumento por instrumento,
nota por nota, de discos das mais famosas big bands americanas.

Numa época em que os principais intérpretes de música popular brasileira


baixavam a guarda (Mário Reis aposentando-se cedo, Luís Barbosa morrendo
pouco depois de Noel, João Petra suicidando-se, Orlando Silva consumindo-se
nas drogas, Sílvio Caldas preferindo pescar e garimpar a cantar
profissionalmente, Castro Barbosa trocando a música pelo humorismo, Francisco
Alves empostando a voz e deixando-se seduzir pelas versões, Marília Baptista
casando-se e afastando-se, Almirante dedicando-se mais ao rádio que ao disco,
isso para citar apenas os intérpretes de Noel Rosa), os crooners americanos
entravam mais facilmente no mercado brasileiro. Foi ainda através do cinema e
do disco que Bing Crosby e Frank Sinatra chegaram para ficar, fazendo fãs e,
como as big bands, seguidores. Destes, os principais foram os já citados Dick
Farney e Lúcio Alves, que depois de também tentarem realizar o seu sonho
americano acabaram ficando por aqui e estabelecendo, com Ponto Final,
Amargura e outros sambas-canções na mesma linha, os modelos da "moderna
música romântica brasileira": intimista, lenta, de suaves contornos melódicos e
sofisticadas harmonias, mas de letras simples e em geral queixosas, ditas com as
inflexões de Bing e Frank, estes sim os verdadeiros modelos. Canções, afinal,
nada parecidas com as do nacionalista e anti-romântico Noel Rosa.
Dick Farney era bem o símbolo do jovem brasileiro de então, embora já
estivesse às vésperas dos trinta. Chamava-se na verdade Farnésio Dutra e Silva,
filho de um velho chorão de Santa Teresa e ele próprio um pianista que já
apreciara o choro e o samba tradicional: "Eu era aluno do São Bento e
costumava, todas as tardes, à saída do colégio, passar pelo Nice só para ver e
ouvir Noel, Pixinguinha, Orestes, Lamartine, Alberto Ribeiro, Chico Alves, os
grandes da época."(10)
10. Depoimentos de Dick Farney aos autores em 25 de junho de 1981.

Os novos tempos, porém, levaram-no a mudar. De nome, de música, de


estilo, a voz parecida com a de Bing Crosby, o fraseado idêntico ao de Frank
Sinatra. Da mesma forma, Lúcio Alves, excelente cantor saído da escola das
serestas, rompia com o passado e abraçava a nova estética.
Mudava também o Rio boêmio. A Lapa, ao contrário do que diria o samba,
nunca mais voltaria a ser a Lapa. Um chefe de polícia moralista e zangado, o
coronel Alcides Gonçalves Etchegoyen, não se limitava a perseguir bicheiros e
estudantes que combatiam o nazifascismo, operários insatisfeitos e opositores do
regime. Enquanto estivesse no cargo, de julho de 1942 a agosto de 1943,
empreenderia histórica cruzada contra a prostituição e tudo aquilo que
considerava contrário aos bons costumes. Fechava as pensões de ruas como a
Taylor, a Joaquim Silva, a Conde de Lajes, investia contra mulheres e
homossexuais que transitavam em torno da "fatia de queijo", resolvia tirar da
Lapa a fama de bairro do pecado. Batidas freqüentes roubavam a paz dos
cabarés. Prendiam-se homens, fichavam-se mulheres. A velha freguesia da Lapa
dos poetas, pintores, músicos e políticos, gente boêmia que coexistira com os
lendários Camisa Preta, Miguelzinho, Edgar, Saturnino, Joãozinho, foi mudando
de ares. Botequins e restaurantes famosos - o Siri, o Bahia, o Leitão, o Capela, o
Indígena, o Danúbio, o 49, o Viena-Budapeste, o Lords, o Gruta do Frade, o
Café Club de que Noel tanto gostava - foram perdendo clientela e, um após
outro, fechando suas portas.
A boêmia mudava de pouso, tomava o caminho do mar. Saía da Lapa e da
Cinelândia, dos arredores da Central e dos subúrbios longínquos, para se instalar
em Copacabana, novo bairro que crescia para além do túnel. Mudava de pouso e
de clima, a penumbra das boates substituindo as luzes dos cabarés. Uma boêmia
mais íntima e refinada, regada a uísque escocês e embalada por chorosa música
romântica. A partir de fins dos anos 40 - coincidindo com um pós-guerra que
ampliaria a cidade para a Zona Sul - a boêmia instalava-se definitivamente nas
boates. E se é verdade que cada boêmia tem a música que lhe é apropriada - os
morros com seus sambas sentidos, os subúrbios com suas rodas de choro, a Lapa
com seu cosmopolitismo barato, a Vila com seus botequins - a Copacabana de
1950 cantava as canções de Dick Farney e Lúcio Alves(11).
11. Ambos, por sinal, gravariam os mais conhecidos hinos da música popular ao bairro: Dick, Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, e Lúcio, Sábado em Copacabana, de Dorival
Caymmi e Carlos Guinle.

É verdade que Vila Isabel não mudara tanto. Ainda guardava vestígios da
"grande família" de que falava vó Rita, o mesmo espírito de vizinhança, a
mesma solidariedade. Um bairro residencial de classe média, fábricas de um
lado, casas novas do outro, o Boulevard no meio, correndo como um rio por
entre margens contrastantes. Mas já não era o grande "celeiro", deixara de ser o
bairro musical dos tempos dos Tangarás.
É verdade, também, que ali, mesmo nos anos de esquecimento, todos se
lembravam de Noel. Mas um Noel mais personagem, mais mito que compositor.
Os velhos moradores, em especial os boêmios, quando se reuniam nos botequins
para conversas e cervejas, falavam de Noel sempre com carinho, mas pareciam
mais interessados em contar-lhe as histórias do que em cantar-lhe os sambas. Os
sambas saíam de moda; as histórias, não. E os mais jovens, os que vinham
chegando, aprendiam a admirar o poeta sem lhe conhecer a poesia.
Noel Rosa tornou-se realmente uma espécie de mito no bairro. Quase tudo
que se ligava ao seu nome tinha sabor de anedota. Ou de lenda. Como naquela
manhã de 1946 em que os moradores da Tobias Barreto se depararam com a
praça vazia, apenas um buraco onde até a véspera estava o monumento a Noel.
Uns telefonaram para os jornais, outros chamaram a polícia. Quem o teria
roubado? Quando os repórteres de A Noite chegaram, representantes que eram
do órgão que encampara a idéia de Nássara e Orestes, havia uma multidão no
centro da praça. Um dos moradores apontava para os lados da Mangueira: - Na
certa foi o pessoal do morro.
E explicava que os negros lá de cima viviam dizendo que Noel era mais da
Mangueira do que daquele lado meio grã-fino da Vila. Talvez, naquelas horas, o
monumento já estivesse em frente a uma birosca do Buraco Quente. Outros
acreditavam que algum vizinho, apaixonado pelas músicas de Noel, tivesse
carregado o bloco de pedra para o próprio quintal. Afinal, o bairro estava cheio
de doidos. Mas não. Antes do fim da tarde o mistério se desfez: a Prefeitura do
Distrito Federal, sem avisar a ninguém, decidira levar o monumento para a Praça
7, que agora se chamava Barão de Drummond. Vila Isabel não mudara tanto,
mas mudara.
Aos poucos, arrefecera-se a rivalidade entre o Cara de Vaca e o Faz
Vergonha, este, nos dias de carnaval, desfilando com um estandarte oval onde se
via o retrato de Noel pintado por humilde artista do bairro. As batalhas de
confete já não eram as mesmas. Nem as do Boulevard, nem as do Maracanã,
todas em extinção. Só os blocos resistiam, embora menos animados, sem rixas e
principalmente sem os improvisadores de antigamente. Foi em homenagem a
Noel Rosa que surgiu, na década de 40, novo bloco que nada tinha a ver com as
emulações entre o Faz Vergonha e o Cara de Vaca. Era o Unidos de Theodoro,
que em seu primeiro desfile cantou:
O orgulho que eu tenho na vida
Fica na vila querida
Onde morava Noel

Salve Unidos de Theodoro,


Orgulho de onde eu moro!
Salve Vila Isabel!

O mesmo bloco, a cada ano, lembrava seu patrono. Afinal, poeta que
nasceu, viveu e morreu na rua que lhe emprestava o nome:
Vila, terra querida,
Foi lá onde eu nasci
De lá vem o samba
Terra de gente bamba
Berço do grande Noel...
A vila toda emudeceu
No dia em que Noel Rosa morreu.

Emudecer, propriamente, não. Mas quase. Do velho "celeiro" pouco restava


agora, a Vila se fazendo menos e menos musical. Assim como a boêmia se
deslocara da Lapa e dos subúrbios para Copacabana, a música popular se fora
para o outro lado do túnel.
Neste tempo de mudanças - e de peculiar "intercâmbio" cultural - parecia
mesmo não haver lugar para Noel Rosa. De 1937 a 1949, os anos críticos de
esquecimento, apenas dezenove gravações foram feitas de composições suas. E
cinco delas - Último Desejo, Século do Progresso e Rapaz Folgado, todas com
Aracy de Almeida, e Pastorinhas, com Sílvio Caldas e logo depois com a
Orquestra Odeon - aconteceram praticamente em meio ao impacto de sua morte.
Além das três primeiras citadas, das dezenove só mais quatro tiravam do
ineditismo obras que Noel deixara engavetadas: Pra Que Mentir?, novamente
com Sílvio, De Qualquer Maneira, com Deo, Silêncio de um Minuto, com
Marília Baptista, e Pela Décima Vez, de novo com Aracy. O restante foram
regravações, menos ou mais representativas, de Feitiço da Vila (Namorados da
Lua e Orquestra Tabajara), Palpite Infeliz (Carolina Cardoso de Menezes),
Queixumes (Luís Gonzaga e Carlos Galhardo), Pastorinhas (Aurora Miranda) ,
Pierrot Apaixonado (Fernando Alvarez), João Ninguém (Aracy de Almeida),
Último Desejo e Século do Progresso (ambas com Isaurinha Garcia).
Enfim, tratando-se de discos, dezenove gravações em doze anos, Noel Rosa
era quase um desconhecido, com pelo menos três dezenas de composições
inéditas à espera de quem as lançasse. Em 1950, só com muita sorte encontrava-
se um disco seu nas lojas. Desconhecido e raro. Em uma palavra: esquecido.
As lágrimas, o esquecimento, a redescoberta. Em 1950 - e mais uma vez se
menciona este ano-chave - Aracy de Almeida cumpria vitoriosa temporada na
boate Vogue. A moça do Encantado, que antes cantava para as mulheres de Noel
nos prostíbulos baratos da Central e que dizia como se fossem seus os versos de
O X do Problema ("Palmeira do Mangue não vive na areia de Copacabana..."),
tinha agora novas e elegantes platéias. Artistas e grã-finos, intelectuais e
políticos, uma seleta clientela, que podia pagar sem reclamar o que o Barão von
Stucker cobrava por uma dose de uísque, ia vê-la e ouvi-la todas as noites à luz
pouca do Vogue.
Aracy estava melhor que nunca. A voz continuava anasalada, o ouvido
ainda podia pregar-lhe algumas peças, mas a intérprete amadurecera. Cantava
com bossa os sambas mais ligeiros e com sentida emoção os que falavam de
amor, saudade, desilusão, sofrimento:
Quem é que já sofreu mais do que eu?
Quem é que já me viu chorar?
Os anos a haviam convertido numa das maiores intérpretes de música
popular brasileira. Em seu repertório, Noel, muito Noel. Um Noel Rosa que os
grã-finos só agora conheciam. E aprendiam a admirar. No dia seguinte, iam às
lojas em busca de discos seus na voz de Aracy. A exceção de um - Pela Décima
Vez de um lado, João-Ninguém do outro - estavam todos fora de catálogo. A
procura aumentava. Alguns se espantavam ao saber que certas preciosidades
ouvidas ontem no Vogue - como Três Apitos e Cor de Cinza - nunca tinham sido
gravadas. E que muitas outras havia guardadas nos papéis de Noel. Como
consegui-las?
Foi para atender a essa demanda - que parecia surpreender até o seu diretor
João de Barro, o mais velho dos Tangarás - que a gravadora Continental, a antiga
Colúmbia onde Noel gravara seu imortal Gago Apaixonado, decidia produzir um
álbum de três discos com Aracy interpretando Noel. O primeiro no gênero que se
fazia no Brasil, considerado na época um empreendimento audacioso (um disco
de 78 rotações por minuto custava vinte cruzeiros, o álbum seria vendido a
oitenta). Com capa de Di Cavalcanti (o que aconselhara Noel a desistir dos
desenhos), textos de Lúcio Rangel e Fernando Lobo, arranjos de Radamés
Gnattali - o mesmo que criava os backgrounds para os sambas-canções de Dick
Farney e Lúcio Alves. Radamés era músico de raro talento, criativo, avançado,
com ambições às salas de concerto e alguma intimidade com o jazz. Foi a ele
que mister Evans, o homem forte da Victor, no começo da onda das big bands,
havia praticamente ordenado: - Ouça estas orquestras, maestro. É assim que eu
quero.
Radamés, que até então conseguira o milagre de produzir um som
elaborado e ao mesmo tempo brasileiro para o acompanhamento orquestral de
cantores (do que as gravações de Orlando Silva, na década de 30, são ótimos
exemplos), modernizaria Noel Rosa, adaptando-o à sonoridade da época. O
álbum - reunindo Conversa de Botequim, Palpite Infeliz, Feitiço da Vila, Último
Desejo, O X do Problema e Não Tem Tradução - foi lançado perto do Natal,
coincidindo com o que seria o quadragésimo aniversário do poeta de Vila Isabel.
Um sucesso. Tão espetacular que, menos de dois meses depois, a Continental
não só partia para a reprensagem de todo o álbum como já pensava no segundo.
Que sairia em maio com mais seis reencontros: Pra Que Mentir?, Silêncio de um
Minuto,Feitio de Oração, Três Apitos, Com Que Roupa? e O Orvalho Vem
Caindo. Outro sucesso. Noel Rosa, de repente, brigava por um lugar nas paradas
com Dick e Lúcio, Frank e Bing, as big bands, os boleros de Gregório Barrios, o
baião que acabava de virar moda.
Pouco depois, já entrando na era do LP, duas novas gravadoras, a Rádio e a
Musidisc, seguiam as pegadas da Continental. A primeira tirava do recesso
Marília Baptista para que também ela revivesse Noel. A segunda tentava uma
réplica de Aracy & Radamés, unindo a voz morena de Horacina Corrêa aos
sofisticados arranjos de Leo Peracchi. Dois projetos igualmente bem-sucedidos.
Ao mesmo tempo, a partir do êxito do primeiro álbum da Continental e às
vésperas do lançamento do segundo, animado pelo que começava a se
transformar numa vitoriosa arqueologia em torno de Noel, Almirante iniciava, na
noite de 6 de abril de 1951, pelos microfones da PRG-3, Rádio Tupi do Rio de
Janeiro, uma série de programas semanais, No Tempo de Noel Rosa, em que
fazia desfilar depoimentos, histórias, personagens, músicas, muitas delas até
então inéditas, que vinham revelar inúmeros traços da personalidade e do talento
do amigo e parceiro. Mais um sucesso. Almirante, que ao longo dos anos se
firmara como o mais competente produtor do rádio brasileiro, brilhava como
nunca. Autor do script, ele próprio funcionando como apresentador, mestre de
cerimônias, guia e intérprete de várias canções, dava com seus programas
verdadeiras aulas de rádio, pelo ritmo, pela dinâmica, pelo equilíbrio entre texto
e música. Apresentada nas noites de sexta-feira, a série ficaria no ar por cinco
meses. E forneceria a Almirante material para a biografia em capítulos que a
Revista da Semana publicaria de outubro de 1952 a janeiro de 1953. Com seus
programas, seus escritos, as palestras que nos anos seguintes realizaria pelo
Brasil, o velho líder dos Tangarás tornava-se dos maiores responsáveis pela
posteridade de Noel Rosa.
Fato isolado em 1950, esta redescoberta acabaria, já pela metade da década,
incluindo-se em contexto mais amplo: o movimento de retomada e revalorização
da música popular brasileira tradicional, mantido em várias frentes, na imprensa,
no rádio, nos teatros e boates, no disco. Na imprensa, por estudiosos como Lúcio
Rangel, primeiro em seus artigos em Manchete, depois com o heróico
lançamento da Revista da Música Popular. No rádio, por produtores como Paulo
Tapajós, Renato Murce, Paulo Roberto, o forte time da Rádio Nacional e, é
claro, Almirante. Nos teatros e boates, pelos festivais da Velha Guarda, que
traziam de volta Pixinguinha e sua turma, ou por espetáculos como O Samba
Nasce no Coração, de título inspirado em Noel, mas na verdade reabilitando
Ismael Silva, que em 1950 já ressuscitara com Antonico e que agora se mostrava
mais vivo que nunca. E no disco, por nova política das gravadoras: ou
reeditavam velhas matrizes de Noel Rosa, Francisco Alves, Mário Reis, Carmem
Miranda, ou levavam de volta aos estúdios, para regravações em alta fidelidade,
o mesmo Ismael Silva, Ataulpho Alves, Moreira da Silva, Manezinho Araújo,
Jorge Fernandes, Aurora Miranda, J.B. de Carvalho, Orlando Silva, Lamartine
Babo, Sílvio Caldas, a Velha Guarda. E também Marília Baptista, sempre fiel a
Noel, tirando do ineditismo sambas lindos como este Remorso:
Remorso todos nós temos na vida
Para marcar a quadra dolorida
Que não se pode olvidar

Remorso muitas vezes é saudade


Da felicidade
Que não se soube aproveitar
Remorso é acompanhar o enterro
De um grande erro
Que não se pôde consertar

Remorso é sonhar acordado


É sentir no presente o passado
É ver nas trevas um vulto
Que ameaça descobrir o segredo mais oculto

Remorso é aquilo que tu sentes


Perto de alguém na hora em que tu mentes
Com sutilezas sem fim
Remorso é veneno em poesia

E eu hoje em dia
Vivo com ódio até de mim
Eu sofro com pena do teu remorso
E muito me esforço
Para não ter tanta pena assim.

Mas o movimento morreria com a década, afogado em mais um mar de


novidades musicais, umas boas, outras não, umas importantes, outras
descartáveis, mas todas se opondo ao tradicionalismo, às chamadas raízes
("Quem tem raiz é mandioca", responderia à crítica mais nacionalista o
compositor e cantor Gilberto Gil, apóstolo de algumas das novidades que a
próxima década traria). Espantoso, porém, é que desta vez Noel Rosa
sobreviveria. Os velhos nomes da música popular brasileira, empurrados
novamente para o passado, voltavam a ser "velhos". Ele, morto havia mais de
vinte anos, permanecia jovem.
O que vem depois já é parte do presente. Nas duas últimas décadas, a
permanente juventude de Noel Rosa continuou afinada com a alma e as coisas de
sua gente. Pode ser que seja justamente este o seu segredo: ter escrito em forma
de samba a tragicomédia carioca dos anos 30, para e sobre uma desgraçada
população marginal, o boêmio triste e a mulher da vida, o malandro e o lumpen,
o homem do povo e o credor que o persegue, e mesmo assim ser compreendido e
sentido para além de seu tempo e lugar - os temas de sua poesia, de sua intuitiva
filosofia de esquina, sendo no fundo comuns a todos nós, habitantes de um país
não só de tanga, mas absurdo. A propósito de Feitiço da Vila, disse Paulo
Mendes Campos:"... era através do regional que o samba passava a buscar o
universal." O que talvez se aplique ao conjunto da obra de Noel. Mais do que
jovem, intemporal. Mais do que da Vila, de todos os lugares.
Fato é que, nestas duas últimas décadas, a popularidade de Noel Rosa -
mais o prestígio que a popularidade - não parou de crescer. Não há aniversário
de nascimento ou morte em que seu nome não seja lembrado pela grande
imprensa, às vezes em reportagens de página inteira. Já inspirou meia dúzia de
livros, além deste que o leitor tem em mãos. Virou programas de rádio e
televisão, filmes e peças de teatro, recitais e shows em casas da moda,
universidades e praças públicas. É mais gravado agora do que nos anos que se
seguiram à sua morte. Dezenas de compositores e letristas já lhe dedicaram
canções (na verdade, não há personagem, na música ou não, tão cantado). Tem
sido, também, objeto de estudos, interpretações, análises, teses, debates e - por
que não? - polêmicas.
Quem primeiro pensou em escrever um livro sobre Noel Rosa foi José Lins
do Rego. Em entrevista ao semanário Diretrizes, a propósito de seu roteiro para
o filme O Dia É Nosso, que acabaria não saindo do papel, revelava:
- Mas eu ainda não escrevi o argumento que sempre imaginei escrever:
aquele que contasse a vida de Noel Rosa. A vida de Noel Rosa dá um filme
formidável, cheio de pitoresco e poesia. Ainda faço isso. Aliás, o que tinha
vontade era de escrever a própria biografia de Noel. Infelizmente não sou a
pessoa indicada para isso.
- Quem é o indicado?
-Marques Rebelo ou Prudente de Moraes Neto. Ambos são cariocas,
conhecem perfeitamente o espírito da cidade e já conviveram com elementos
ligados a Noel Rosa. Se não me engano, Prudente de Moraes Neto foi mesmo
um dos amigos de Noel. Marques ou Prudente podem escrever um belo livro
sobre a vida do nosso maior sambista."
E, finalizando, diz José Lins:
"- Para mim, Noel Rosa foi verdadeiramente genial!"(12)
12. Diretrizes, 24 de abril de 1941.

Nem José Lins, nem Marques Rebelo, nem Prudente de Moraes Neto.
Quem realizou a empreitada, quatorze anos depois, foi Jacy Pacheco, o primo
Jacy. O mesmo que Noel e o Gente do Morro haviam conhecido em Campos em
1932 (o mesmo também que, segundo Ceci, a culpara pelos pulmões doentes do
amante). Em 1955 vinha à luz Noel Rosa e Sua Época, escrito com carinho, de
poeta para poeta:
"Cheio de ternura, de saudade dele, vou contar o que sei.
As palavras serão simples e claras.
Uma história para se guardar no coração.
Era uma vez uma cigarra boêmia, cantora das madrugadas..."

Um livro sincero e enternecido, mas polêmico. Por algumas imprecisões


(Hélio Rosa fora praticamente a única fonte do autor) e por revelar um Noel
politicamente mais engajado do que se sabia:
"Aproveitando aquele instante em que não havia ninguém próximo de nós,
Noel se referiu aos meus versos, lembrando que eu era filho de um ferroviário
escravo do capitalismo inglês (Leopoldina Railway), que eu ganhava no banco o
mesmo salário que meu pai ganhava na estrada de ferro. Por isso eu deveria
escrever poemas de fundo social, falando da operária da fábrica, que sem meias
vai pro trabalho..."
As imprecisões Jacy tentou corrigir algumas num segundo livro, O Cantor
da Vila, lançado três anos depois, mas não foi o bastante. Das críticas que sofreu,
as mais contundentes partiram de Almirante, que não só se dizia revoltado por
terem "pintado Noel como um comunista", como também acusava Jacy Pacheco
de ter-lhe plagiado os programas de rádio e as reportagens da Revista da
Semana. E foi justamente com base neste material que Almirante lançou o seu
livro, No Tempo de Noel Rosa, em 1962. Corrigindo imprecisões de Jacy e
cometendo as suas próprias (a música popular é armadilha na qual costumam
cair os pesquisadores mais cuidadosos) . Outros livros viriam depois - um cordel
de Jacy, um estudo crítico de João Antônio, uma tese de Jorge Caldeira - fazendo
de Noel o nome mais focalizado na bibliografia brasileira de música popular.
Cinema, teatro, rádio e televisão. O longa-metragem com que sonhou José
Lins do Rego ainda não foi feito. Consta que já esteve nos planos do excelente
Nelson Pereira dos Santos. E que é projeto há anos acalentado por Rogério
Sganzerla. Assim, por enquanto, a filmografia sobre Noel se limita a dois curtas
menos ambiciosos, um de Gilberto Santeiro, outro do mesmo Sganzerla. Já a
produção teatral, vida e obra de Noel como pontos de partida, tem sido bem mais
expressiva, embora o poeta continue à espera de que alguém lhe faça um musical
como os ingleses já dedicaram ao seu Noel Coward, os franceses ao seu Maurice
Chevalier, os americanos ao seu Cole Porter. Se os programas de rádio são as
melhores revisitas feitas ate aqui ao homem e compositor Noel Rosa (além da de
Almirante, houve pelo menos uma série de qualidade, produzida e apresentada
por Paulo Tapajós, em 1987, na Rádio MEC), o mesmo não é possível dizer-se
da televisão, sempre teimando em glamourizar Noel, em modernizá-lo, em
adaptá-lo aos padrões hollywoodianos do nosso vídeo. A não ser por uma ou
outra colagem tentada por emissoras mais modestas como as da Rede Educativa
(um Noel mais em preto e branco, porém menos deformado), os especiais
televisivos a ele dedicados não têm passado de caras e desastrosas
extravagâncias. Noel Rosa parecia adivinhar em 1935: quando a televisão
chegasse, já nao estaria aqui para vê-la.
Os recitais, os espetáculos em casas diversas, universidades e praças
públicas têm sido muitos e quase sempre bons. Marília e Aracy, enquanto
puderam, apareceram em vários deles. Mas quase todo o mundo, de Sílvio
Caldas a Caetano Veloso, tem incluído Noel em seu repertório. Espetáculos
muitos e quase sempre bons, desde os da linha defendida a partir de 1975 pelo
conjunto carioca Coisas Nossas, o didático intercalado à farsa e à surpresa (a
surpresa tanto nos sketches como nas canções, em geral pouco conhecidas ou
inéditas), mas a música procurando não fugir à sonoridade dos anos 30, até a
linha do grupo paulista Rumo, mais moderna, eletrificada, mas nem por isso
distanciada da irreverência e do humor de Noel.
Antes tão esquecido, o nome do poeta está hoje em toda parte. Na rua da
Aldeia Campista e numa travessa perto da Praça 7, nos letreiros de casas
comerciais do bairro e na escola pública construída num dos cantos do antigo
jardim zoológico do Barão. Nome dado ao edifício que ocupa o lugar do chalé e
ao túnel que une Vila Isabel ao Jacaré. Nome nos vários monumentos em sua
memória, o bloco de pedra talhado pelas mãos de Alfredo Herculano, a placa na
fábrica de tecidos convertida em supermercado ("Ao Poeta da Vila, Noel Rosa,
que, entre tantas canções inesquecíveis, celebrizou esta casa com a sua obra
musical Três Apitos, a nossa mais sincera homenagem - Centro Comercial
Boulevard"), o painel na parede do Petisco, o busto comemorativo do
cinqüentenário de morte, inaugurado na estreita calçada que divide o Boulevard
28 de Setembro em dois, bem em frente à Rua Rocha Fragoso. Chama-se Noel
Rosa o clube dos baloeiros que enfeitam o céu da Vila nas frias noites de junho.
Nome que tanto pode estar em lugares nada poéticos, como os anúncios do
Classifone, a lista telefônica de assinantes do Rio ou o novo Café Nice,
arremedo do antigo, como estar também em letras de música. Além de Cartola,
Osso, Sílvio Caldas, Sebastião Fonseca e os sambistas dos blocos carnavalescos
do bairro, muita gente boa seguiria a sugestão de Álvaro Armando e faria samba
para Noel. Ou pelo menos citando seu nome. Como o "inimigo" Wilson Baptista.
De parceria com Waldemar Gomes em Quero um Samba:
Diga para o dono do baile
Que nós queremos sambar
A noite inteira sem tocar um samba
Nem parece que estamos no Rio,
A terra de Sinhô e o berço de Noel...

Ou juntando forças com Ataulpho Alves em Terra Boa:


Terra de Santos Dumont Carlos Gomes, Ruy Barbosa,
Grande Duque de Caxias, Castro Alves, Noel Rosa...
No lugar do chalé está hoje o Edifício Noel Rosa
A lista dos que homenagearam Noel em canções é longa - e sempre se corre
o risco de não estar completa. Além dos já citados, fazem parte dela Ademir
Jacaré, Adilson Bispo, Alcebíades Nogueira, Alcebíades Barcellos (Bidê),
Alcides Gonçalves, Arlindo Marques Jr., Armando Cavalcanti, Armando
Fernandes, Armando Marcai, Arnô Provenzano, Augusto Flávio Brunetti, Baden
Powell, Caetano Velloso, Carolina Cardoso de Menezes, Chico Buarque de
Hollanda, Cipó, David Nasser, Dida, Diógenes, Dora Lopes, Dunga, Evaldo
Ruy, Fábio de Luca, Fernando Lobo, Fernando Pimenta, Flavinho Machado,
Flávio Soares, Gemeu, Grande Othelo, Heraldo Farias, Herivelto Martins, Hervê
Cordovil, Jayme Bochner, João Nogueira, Jorge Canuto, Jorge de Castro, José
Ribeiro, Jota Albertino, Klécius Caldas, Lamartine Babo, Lino do Vai-Vai,
Martinho da Vila, Maysa, Moacyr Mangueira, Monarco, Moreira da Silva,
Nássara, Nelson Cavaquinho, Ney Silva, Oswaldinho da Cuíca, Otolino Lopes,
Paulinho Corrêa, Paulo Soledade, Portinho, Roberto Roberti, Rodolpho, Rubens
Silva, Tião Pelado, Tolito, Trambique, Vadico, Vinicius de Moraes, Waldemar
Ressurreição, Walli Salomão, Wilson Falcão e Zé Roberto.

Cantado por milhares de vozes nos dias de carnaval. Vozes da escola do seu
bairro no desfile de 1975:
Noel, és amor, és poesia,
Tua Vila, carnaval
Cantando nostalgia...

Ou no de 1982:
De azul e branco,
Por este mundo sem fim,
Lembrando Noel Rosa
Eu vou cantando assim

Ou vozes da vizinha - e tão cara a Noel - Estação Primeira:


E nas noites suburbanas
A luz colorindo o céu...
E na Vila eu ouvi Melodias de Noel

Nome sempre lembrado, também, nos concursos de trovas promovidos pelo


Grêmio Artístico e Literário Vila Isabel. Nesta:
Ao coração tu nos fala,
Bairro de Vila Isabel,
Não pelas glórias e galas,
Mas pela voz de Noel
Ou nesta:
Vila Isabel, doce e terna,
O teu samba tem mais brilho:
Ganhaste a glória materna
Por ser Noel o teu filho

Cantado em prosa por Álvaro Moreyra:


"Poeta do povo. Não existirá glória mais pura. O povo ouvia Noel, e o que Noel lhe dava, em
palavras e sons, parecia subir de todos os corações e se debruçar em todas as bocas. As caras riam se Noel
falava e entoava alegre, choravam se Noel ficava e entoava triste. Depois, no silêncio, a melancolia, que é
o ar do povo, levava Noel para a pequena casa de Vila Isabel, a mesma melancolia que acompanhava os
destinos das mulheres e dos homens recordando - Assim... assim... Ele adivinhava as coisas... Nosso
Noel..."

Ou em versos por Drummond:


Vem Sinhô, vem Caninha, vem Pixinga
e vem João da Baiana e tantos mais,
depois vem Noel Rosa, o samba-jovem,
com tristezas urbanas e malícias,
tão de mim, de você, de todos nós,
a biritar no botequim da vida
quando o amor nos surpreende e nos derruba.

Ou ainda elevado à condição de símbolo pela fala macia de um de seus


sucessores, Martinho da Vila, que em janeiro de 1987, um ano antes de a Unidos
de Vila Isabel viver na passarela do samba o seu mais glorioso momento, disse,
cheio de orgulho:
- A Vila sonha com um supercampeonato, mas nunca fez força para ganhar
"de qualquer maneira". O importante pra gente é "fazer bonito". Herança de
Noel Rosa. A Vila fez bonito. E o sonho se realizou.

O Noel Rosa polêmico são dois, o primeiro deste e o segundo do outro


mundo. Em 1954, após viver por quinze anos o seu sonho americano, Vadico
voltava ao Brasil. Voltava para ficar, mas voltava indignado. E com razão.
Desde o ano anterior seus advogados vinham processando a Continental pela
omissão de seu nome como parceiro de Noel em Feitiço da Vila e Conversa de
Botequim, no histórico primeiro álbum gravado por Aracy de Almeida. O caso
seria resolvido fora dos tribunais, com a Continental assegurando a Vadico seus
direitos sobre a venda dos discos e comprometendo-se a corrigir os erros em
futuras reedições. Mas teria dois desdobramentos: um, chamava a atenção do
público para o talentoso Vadico, cujo nome também submergira nos anos
críticos de esquecimento; outro, dava início a uma discussão que punha em
dúvida a importância de Noel Rosa como compositor. Seria ele tão bom quanto
se dizia? Ou não passava de um grande letrista a depender, sempre, das melodias
de seus parceiros?
Um dos maiores responsáveis pela lenha nesta fogueira seria o produtor e
apresentador de rádio e televisão Flávio Cavalcanti, cujos programas, de gosto
indisfarçadamente sensacionalista, perseguiam índices de audiência
transformando heróis em vilões e vilões em heróis(13).
13. Flávio Cavalcanti não mudaria de estilo. Anos mais tarde, no mesmo programa em que apresentava, todos os domingos, o detetive Nelson Duarte como policial exemplar (o Nelson
Duarte que acabaria respondendo a vários processos por suborno, fraude, desvio de dinheiro e ligações com ladrões de carro e traficantes), Flávio voltou a atacar Noel. Em entrevista ao Pasquim de 6 de
outubro de 1970, justificava-se: "... me contaram que Noel Rosa era vigarista, botou a mulher na zona, e eu gravei e botei na televisão para salvar a imagem de Vadico..."

Contra as acusações de Flávio - de que Noel fora um esperto sambista a


surrupiar idéias e a ocultar parceiros - ergueram-se, entre outras, as vozes de
Lúcio Rangel e Almirante. A discussão, que ocupou parte do tempo de rádio e
televisão em meados de 1956, deu em nada. Em pouco Flávio Cavalcanti tentava
outro alvo: mostrar que mau letrista era o grande compositor Ary Barroso.

O Noel Rosa do outro mundo aconteceu pela mesma época. Em São Paulo,
Hervê Cordovil - seu parceiro em Triste Cuíca - via o amigo Batista Lima, da
Editora Allan Kardec, cometer uma inconfidência e publicar no jornal espírita O
Porvir - a letra de Noel que ele, Hervê, psicografara numa sessão em casa do
próprio Batista. A intenção de Hervê era não dar publicidade ao assunto : "Estou
lhe dando um pouco do que eu fui para que você possa interpretar o que eu sou",
teria dito Noel antes de ditar-lhe os versos de Vila Isabel do Espaço:
Minha Vila agora é outra
Muito longe da Isabel
Meu papel agora é doutra
Qualidade de papel
Que representei na terra
Andando de déu em déu
Alma voltada pro samba
Nada voltado pro céu

Se eu fizesse agora um samba


Ia ter mais harmonia
Não teria gente bamba
Não teria valentia,
Pois valente nesta Vila
É aquele que perdoa
Que padece e não estrila
Não é rei nem quer coroa
Se eu fizesse agora um hino,
Ah, se um hino eu compusesse,
Começaria com sino,
Terminaria com prece,
Prece serena, tranqüila,
E teria este pedaço:
"Faça, Senhor, lá da Vila
A Vila Isabel do espaço!"

Outra polêmica. Uns levaram Hervê Cordovil a sério, outros o acusaram de


aproveitador. Homem bom, extremamente generoso, que até o fim da vida
estaria à frente de formidável obra de caridade nos centros espíritas de São
Paulo, Hervê sofreu muito com isso. Os que o levaram a sério chegaram a
submeter os versos a prova de estilo (Noel sempre dissera "estrilha" em vez de
"estrila", nunca rimaria "outra" com "doutra", mas quem garantia que o além não
o tivesse mudado?). Alguns faziam blague. Como Ary Barroso: "Só quero ver
quem vai ficar com os direitos autorais, Lindaura, Hervê ou Noel..." Vila Isabel
do Espaço acabaria tema de concurso promovido pelo Correio da Manhã e TV
Rio com o objetivo de escolher uma melodia para a letra. Do júri, entre outros,
participaram Pixinguinha e Lúcio Rangel. Uma jovem desconhecida, Maria
Therezinha Costa Leite de Oliveira, foi a vencedora. E o samba, reintitulado A
Outra Vila, seria gravado por Aracy Cortes. Hervê, que também se inscrevera no
concurso, gravaria a sua versão pela voz de outra desconhecida: a cantora Anesy
Rost.
Mas a obra póstuma de Noel Rosa não ficaria por aí. Pelos anos afora seria
multiplicada nas sessões da médium paulista Martha Gallego Thomaz, "amiga
do compositor da Vila desde 1950". De tal modo que daria repertório para um
LP, gravado em 1979 pelo grupo Alta Tensão. Coisas assim:(14) 14. Martha Gallego Thomaz calculava
em mais de duzentas as composições de Noel psicografadas por ela, algumas já devidamente editadas por Mangione. Os direitos seriam divididos, meio a meio, entre Lindaura e a Federação Espírita de
São Paulo.

Na terra há gente que sabe


onde alguém encontra alguém
Que abandonou a vida
partindo pra mais além

Entretanto é preciso ter


cuidado com o que diz
Pra que não aconteça
dar um palpite infeliz

Precisamos ter certeza


daquilo que se ensina
Para o mundo ser feliz,
vivamos nossa doutrina
Nasce ontem, morre hoje
pra renascer amanhã
É isso que nos ensina
esta doutrina cristã

E como tudo na terra


é ação e reação
Aproveitemos, amigos,
a atual encarnação!

Polêmico. Mas uma coisa, aos estudiosos de Noel, parece certa: o poeta da
outra Vila é bem menos inspirado do que o da Isabel.
Estudiosos muitos, antigos ou recentes, obstinados ou ocasionais, atentos ou
apressados, interjetivos ou contidos, fãs irrestritos ou críticos eventuais. Nenhum
compositor popular brasileiro foi tão estudado. Estudos que Rubem Braga já
reclamava em 1955 ao ressaltar em Noel Rosa excepcionais qualidades de
cronista. Paulo Mendes Campos, com sua autoridade de poeta, foi um que
percorreu atentamente a obra de Noel para concluir que "os melhores versos de
nossa lírica popular são encontrados facilmente nas palavras espontâneas do
rapaz de Vila Isabel". Ary Barroso, ciumento como sempre, escreveu que o
parceiro, "como melodista, às vezes tinha sorte". Mas admitiu venerar "a
memória daquele que criou uma escola de poesia para o samba". Sylvio Tullio
Cardoso, em sua coluna de discos em O Globo, foi o primeiro a apontar no Billy
Blanco de Banca do Distinto, Camelô e Piston de Gafieira um novo Noel. Outros
fariam o mesmo com Chico Buarque de Hollanda quinze anos depois. Na
verdade, tornou-se quase inevitável dissociar os letristas do cotidiano do Noel
das melhores crônicas, ainda que tais letristas estejam, como Billy, tão pouco
identificados com o povo, ou tenham, como Chico, forma e conteúdo próprios.
Jorge Mautner romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda pop -
preferiu esquecer o Noel compositor e letrista para denunciar nele o anti-semita
de Cordiais Saudações e Quem Dá mais?. Se os entusiasmos de um admirador
como Nássara o ligam a um Baudelaire, um Rimbaud, um François Villon, ou se
outros recorrem ao cinema para pensá-lo em termos de Chaplin, Bunuel, Fellini,
o escritor João Antônio desconsidera todas essas analogias para dizer,
simplesmente, que "Noel é noelino". Também têm sido tentadas aproximações
com movimentos literários e musicais de diferentes épocas. O Modernismo, a
Bossa Nova, o rock'n roll. No ensaio As origens do samba, Noel Rosa e o
Modernismo(15), Affonso Romano de Sant'Anna ressalta a instintiva afinidade
do poeta de Vila Isabel com a plataforma estética de 1922, "o antiliterário, as
expressões corriqueiras, o humor, as soluções imprevistas e outros efeitos"
presentes no criador de Conversa de Botequim tanto quanto nos modernistas.
15. In Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (páginas 183 187).

Um Noel que freqüentemente descarta a métrica, adota linguagem prosaica,


utiliza rimas surpreendentes como forma de reforçar o irônico e o musical. Um
Noel, como os modernistas, realizando trabalho de crítica pela sátira e pela
paródia. É, mais que primeiro, único em seu tempo. Já o Noel precursor da
Bossa Nova não é tão evidente. Mesmo que alguns dos jovens adeptos do
movimento se comparassem a ele, mais em atitudes do que em intenções
formais, e mesmo que um historiador como José Ramos Tinhorão também
percebesse o paralelo, um compositor de classe média bebendo nas fontes do
povo. Ou, como os rapazes da Bossa Nova fariam mais tarde em relação ao
samba-canção, rompendo com o "mau gosto" das letras parnasianas dos antigos
modinheiros para adotar linguagem simples, coloquial. Mas nada evidente, pelo
menos aos olhos dos autores, é a aproximação de Noel Rosa com o rock,
sugerida por estudiosos recém-chegados como Jorge Caldeira e Mauro Dias.
Mesmo quando seus sambas são adornados pelo som de guitarras amplificadas.
Ou quando Evandro Mesquita, ex-Blitz, faz uma releitura do Gago Apaixonado.
Mas à frente - ou por trás - de todos esses estudos, interpretações, análises,
teses, debates e polêmicas está um Noel Rosa carismático. De um carisma que os
autores não ousam explicar. Impressionados, limitaram-se a testemunhar o que
aconteceu na noite de 4 de maio de 1987 - o cinqüentenário de morte - quando
Vila Isabel em peso saiu às ruas para homenageá-lo. Moradores de outros bairros
também vieram para ver e participar. Bares e calçadas do Boulevard, no trecho
que vai da Pereira Nunes ao Ponto de 100 Réis, cobriram-se de gente. Nas
mesas, nas esquinas, no caminhão estacionado em frente ao Boteco teco,
cantaram-se seus versos: A estrela d'alva no céu desponta
E a Lua anda tonta com tamanho esplendor...
Quantos artistas populares, de ontem ou de hoje, deste país de frágil
memória e permanente sede de novidades, serão lembrados com tal carinho
cinqüenta anos depois de se terem ido?
Sinal de que a estrela de Noel Rosa - que despontou um dia no céu da
música popular brasileira - continua brilhando. Seu esplendor ainda é capaz de
deixar tontas as luas de nossa sensibilidade. É possível que não seja tão nítida
aos olhos dos que se deixam iluminar pelas luzes ligeiras da última moda. Mas
brilha. Talvez para sempre.

Vila Isabel,
agosto de 1980-abril de 1988.
FOTOS
fonte: WEB
Tombadilho do couraçado S. Paulo, durante revolta. Fotografia tirada dois dias antes da rendição.
João Cândido na prisão da Ilha das Cobras
A localização estratégica do bairro de Noel Rosa
Vista da igreja e do mosteiro de São Bento, anos 1900. Em segundo plano, à direita, prédios e oficinas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e a chaminé da Companhia City
Improvements (fundada em 1866).
Arsenal da Marinha e Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro, anos 1900.

Largo da Carioca com Mosteiro São Bento ao fundo, início do século.


Vista frontal da Igreja com prédio do antigo ginásio à esquerda, inaugurado em 1904 e demolido na década de 1970
Chalé Modesto de Noel Rosa
Rua Teodoro Silva – Anos 30
Bando de Tangarás (Almirante, Noel Rosa, João de Barro, Alvinho e Henrique Brito). imagem extraída de vídeo descoberto em 1994, único registro cinematográfico de Noel tocando. O
cantor, primeiro à esquerda é Almirante.
Bando de Tangarás
Henrique Foréis Domingues, o Almirante
Recorte com a foto de Clara feito por Noel

Fina
Antonio Nássara e autocaricatura

Lamartine Babo e Almirante


Companhia de Fiação e Tecidos Confiança, anos 30
Mário Reis e Francisco Alves
Cartola nos anos 30
Ismael Silva
Orestes Barbosa
Romualdo Peixoto (Nonô)
Francisco Alves, Noel Rosa, Carlos Lentini, Carmen Miranda, Josué de Barros, Almirante, Betinho e João Martins no 2o Broadway Cocktail em 1932. No destaque, Francisco Alves.
Custódio Mesquita
Vadico
Lapa, na região central do Rio de Janeiro, anos 1900. Em segundo plano, os Arcos da Carioca e o Morro de Santo Antônio, seguidos das fachadas da rua Evaristo da Veiga. No fundo, o
Mosteiro de São Bento, as torres e a cúpula da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, a Ilha das Cobras e as torres da Igreja de Nossa Senhora do Carmo

Largo da Lapa, 1908


Adhemar Casé
Benedicto Lacerda e Pixinguinha
Benedicto Lacerda e grupo Gente do Morro: Russo no pandeiro, Gorgulho, violão; Benedicto, flauta; Canhoto no cavaquinho e Carlos Lentine, violão
Ceci aos 16 anos
Aracy de Almeida
Marília Monteiro de Barros Batista, cantora, compositora e instrumentista, foi uma das mais importantes intérpretes da obra de Noel Rosa. Noel gravou com ela em dupla seis de suas
composições: “De Babado”, “Cem Mil Réis”, “Provei”, “Quantos Beijos”, “Você Vai Se Quiser” e “Quem Ri Melhor”.
Noel Rosa (o último à direita) observa Marília Baptista numa apresentação da Mayrink Veiga
João Petra de Barros
Noel com Lindaura, dezembro 1934
Wilson Baptista
Noel, Custódio Mesquita e William Faissal no tabuleiro da baiana
Sílvio Caldas
Yolanda Rhodes, a Yola.
1936. CIDADE MULHER Cia. Prod: Brasil Vita Filmes. Dir: Humberto Mauro
Mário Lago em sua formatura na Faculdade Nacional de Direito, no Teatro João Caetano. Rio de Janeiro, 1933
Elizeth Cardoso
Este álbum não é meu:
É de Martha de Medeiros Rosa (minha mãe).
Foi em 1929 que ela começou a juntar todos os artigos de jornais e revistas,catálogos de gravações e programas de festas que trouxessem meu nome.
No dia 9 de setembro de 1936, em Vila Isabel, os recortes colecionados foram colados nesse álbum.
N.B. -- Os artigos que falam mal da pessoa do sr. Noel Rosa, estão contornados de vermelho para serem encontrados mais facilmente.
Rio de Janeiro
Bairro de Vila Isabel
Rua Theodoro da Silva 130.
(Esse número foi transformado em 392)
Noel Rosa
(Noel de Medeiros Rosa)
Lindaura idosa

No lugar do chalé está hoje o Edifício Noel Rosa


O sambista carioca Noel Rosa, em cena do filme 'Vamos Falar do Norte'
Em foto para a amiga e intérprete Araci de Almeida
Profissão "CANTOR"
O sambista Noel Rosa (1910-1937) fuma em foto de 1936
Noel Rosa, 1937
Autocaricatura a guache (Arquivo de João Baptista Figueiredo)
ÍNDICE DE MÚSICAS

001. AEIOU
002. A Melhor do Planeta
003. A Noiva do Condutor ("Revista Radiofônica")
004. A Razão Dá-se A Quem Tem
005. A.B. Surdo
006. Adeus
007. Agora
008. Alô Beleza
009. Amar Com Sinceridade
010. Amor de Parceria
011. Ando Cismado
012. Ao Meu Amigo Edgar (Carta de Noel musicada por João Nogueira)
013. Araruta
014. Arranjei um Fraseado
015. Assim, Sim!
016. Até Amanhã
017. Balão Apagado
018. Belo Horizonte
019. Boa Viagem
020. Bom Elemento
021. Cabrocha do Rocha
022. Cadê Trabalho?
023. Cansei de Pedir
024. Capricho de Rapaz Solteiro
025. Cem Mil Réis
026. Chuva de vento
027. Cidade Mulher
028. Com Mulher Não Quero Mais Nada
029. Com Que Roupa? (1)
Com Que Roupa? (2)
030. Contraste
031. Conversa de Botequim
032. Cor de Cinza
033. Coração
034. Cordiais Saudações
035. Cumprindo a Promessa
036. Dama do Cabaré
037. De Babado
038. De Qualquer Maneira
039. Deus Sabe o Que Faz
040. Devo Esquecer
041. Disse-Me-Disse
042. Dona Aracy
043. Dona do Lugar
044. Dona Emília
045. Dono do Meu Nariz (paródia de Dona da Minha Vontade)
046. É Difícil Saber Fingir
047. É Peso
048. É Preciso Discutir
049. Escola de Malandro
050. Espera Mais Um Ano
051. Esquecer e Perdoar
052. Esquina Da Vida
053. Estamos Esperando
054. Estátua da Paciência
055. Este Meio Não Serve
056. Estrela da Manhã
057. Eu Agora Fiquei Mal
058. Eu Não Preciso Mais do Seu Amor
059. Eu Queria Um Retratinho de Você
060. Eu Sei Sofrer
061. Eu Vou Pra Vila
062. Faz de Conta Que Eu Morri
063. Feitiço da Vila
064. Feitio de Oração
065. Felicidade
066. Festa no Céu
067. Filosofia
068. Fiquei Rachando Lenha
069. Fiquei Sozinha
070. Fita Amarela
071. Fita de Cinema
072. Fui Louco
073. Gago Apaixonado
074. Gosto, Mas Não É Muito
075. Habeas-Corpus
076. Ilustre Visita
077. Ingênua
078. Isso Não Se Faz
079. Já Não Posso Mais
080. Já Sei Que Tens Um Novo Amor
081. João Ninguém
082. João Teimoso
083. Julieta
084. Ladrão de Galinha ("Revista Radiofônica" com paródia de Marchinha do Grande Galo)
085. Leite Com Café
086. Linda Pequena (1)
Linda Pequena (2) (ou Pastorinhas)
087. Mais Um Samba Popular
088. Malandro Medroso
089. Mão no Remo (ou Iça Vela)
090. Marcha da Prima... Vera
091. Mardade de Cabocla
092. Maria Fumaça
093. Mas Como... Outra Vez?
094. Mas Quem Te Deu Tudo Isso?
095. Menina dos Meus Olhos
096. Mentir
097. Mentiras de Mulher
098. Meu Barracão
099. Meu Sofrer
100. Minha Viola
101. Morena e Loura
102. Morena Sereia
103. Mulata Fuzarqueira
104. Mulato Bamba
105. Mulher indigesta
106. Na Bahia
107. Não Brinca Não
108. Não Digas
109. Não Faz, Amor
110. Não Foi Por Amor
111. Não Há Castigo
112. Não Me Deixam Comer
113. Não Morre Tão Cedo
114. Não Resta a Menor Dúvida
115. Não Tem Tradução (ou Sem Tradução)
116. Nega
117. Negócio de Turco
118. Nem Com Uma Flor
119. No Baile da Flor-de-Lis
120. Numa Noite à Beira-Mar
121. Nunca Dei A Perceber
122. Nunca... Jamais!
123. Nuvem Que Passou
124. O Barbeiro de Niterói ("Revista Radiofônica" com paródia de Il Barbieri di Siviglia)
125. O Maior Castigo Que Eu Te Dou
126. O Orvalho Vem Caindo
127. O Pulo da Hora
128. O Que é Que Você Fazia?
129. O Sol Nasceu Pra Todos
130. O X do Problema
131. Onde Está a Honestidade?
132. Paga-me Esta Noite
133. Palpite
134. Palpite Infeliz
135. Para Atender a Pedido
136. Para Me Livrar do Mal
137. Pela Décima Vez
138. Pela Primeira Vez
139. Perna Bamba
140. Pesado 13 (paródia de El Penado)
141. Picilone
142. Pierrô Apaixonado
143. Por Causa da Hora
144. Por Esta Vez Passa
145. Por Você Sou Capaz
146. Positivismo
147. Pra Esquecer
148. Pra Lá da Cidade
149. Pra Que mentir?
150. Prato Fundo
151. Prazer em Conhecê-lo
152. Primeiro Amor
153. Provei
154. Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?
155. Quando o Samba Acabou
156. Quantos Beijos
157. Que a Terra Se Abra
158. Que Baixo
159. Que Horas São?
160. Que Orgulho
161. Que se Dane!
162. Queimei Teu Retrato
163. Quem Dá Mais?
164. Quem Não Dança
165. Quem Não Quer Sou Eu
166. Quem Parte Não Parte Sorrindo
167. Quem Ri Melhor
168. Quero Falar Com Você
169. Rapaz Folgado
170. Remorso
171. Retiro da Saudade
172. Rir
173. Riso de Criança
174. Rumba da Meia-Noite
175. Saber Amar
176. Salada Russa
177. Samba da Boa Vontade
178. São Coisas Nossas
179. Se a Sorte Me Ajudar
180. Século do Progresso
181. Sei Que Vou Perder
182. Seja Breve
183. Sem Tostão
184. Seu Jacinto
185. Silêncio de Um Minuto
186. Sinhá Ritinha
187. Só Pra Contrariar
188. Só Você
189. Sorrindo Sempre
190. Suspiro
191. Tarzan, o Filho do Alfaiate
192. Tenentes... do Diabo
193. Tenho Raiva de Quem Sabe
194. Tenho Um Novo Amor
195. Terra de Cego
196. Tipo Zero
197. Três Apitos
198. Triste Cuíca
199. Tudo Que Você Diz
200. Uatch!
201. Último Desejo
202. Uma Jura Que Fiz
203. Vai Haver Barulho No Chateau
204. Vai Para Casa Depressa (ou Cara ou Coroa)
205. Vejo Amanhecer
206. Verdade Duvidosa
207. Vingança de Malandro
208. Vitória
209. Você é um Colosso (ou Pisou no Meu Calo)
210. Você Foi o Meu Azar
211. Você Só... Mente
212. Você Vai Se Quiser
213. Você, Por Exemplo
214. Voltaste
215. Vou Te Ripar
216. Yolanda
OBRAS

Este é o mais completo levantamento já publicado da obra de Noel Rosa.


Mais completo, mas não necessariamente completo. É provável que o leitor
tenha ouvido, mais de uma vez, pesquisadores da música popular brasileira se
queixarem das dificuldades para realizar trabalhos como este. Pois os autores
fazem coro com eles. As editoras de música no Brasil são, na maioria,
descuidadas (a Mangione, para citar apenas uma, chegou ao extremo de perder
exemplares únicos de partituras de músicas de Noel). Das gravadoras, poucas
mantêm arquivos atualizados e consultáveis. A Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro - guiada talvez por tolo preconceito - jamais se preocupou em guardar
publicações consideradas "menores", tais como jornais de modinhas,
suplementos de gravadoras, catálogos de editoras e boletins de sociedades
arrecadadoras. Parte da pesquisa dos autores foi feita com o acervo do Museu da
Imagem e do Som amontoado em salas sujas de um velho prédio de Niterói.
Discotecas? Só as particulares, de renitentes e apaixonados colecionadores.
Enfim, pode ser que se repitam, mas de modo algum exageram os que dizem que
somos um povo muito pouco zeloso de sua memória cultural.
Daí ser difícil - e por vezes impossível - fazer o inventário da obra de um
nome da chamada Era de Ouro da música popular brasileira, aquela que os
historiadores situam de 1930 a 1937. No caso de Noel Rosa, então, as
dificuldades redobram. Tendo sido compositor pouco apegado ao que era seu, de
um desprendimento que o levava a passar adiante letras, ou melodias, ou sambas
inteiros, em troca de alguns mil-réis ou de um simples "muito obrigado", não há
como saber o quanto dele corre por aí, já gravado em nome de outros, ou ainda
inédito, no baú de algum velho sambista.
Viajar em busca da obra de Noel Rosa é, mais que difícil, caminhar por
entre uma sucessão de armadilhas. O que fazer, por exemplo, quando um homem
com a credibilidade de Dom Lourenço de Almeida Prado, reitor do Colégio de
São Bento, revela ter Noel lhe confidenciado ser seu o Galo Garnizé, de
Almirante? Ou quando o parceiro Manuel Ferreira jura que Foi Audácia, de Kid
Pepe, Germano Augusto e um certo Fado, foi dado a eles por Noel? Ou quando
Hélio Rosa deixa escrita e assinada a declaração de que o irmão vendeu Cidade
Maravilhosa a André Filho por 800 mil-réis? Ou quando inumeráveis boêmios
da antiga se chegam prometendo trazer, no próximo encontro, um ou dois
"novos" sambas de Noel que ouviram cantados pelo próprio? Ou ainda quando a
excelente memória de Armênio Mesquita Veiga nos põe em contato com este
belo fragmento de samba, segundo ele de Noel, com uma melodia que antecipa
em quase vinte anos o Cais do Porto, de Capiba:
Francamente, é pra gente enlouquecer
Por mais que eu queira, eu não posso acreditar
Que tu não tenhas tempo de escrever
Para ao menos duas linhas mandar

Como é que se pode querer bem


E viver tanto tempo sem saber
Se está vivo ou morto esse alguém
A quem tanto nós juramos querer bem?

Se há partes deste livro que os autores sabem sujeitas a reparos e


acréscimos, uma é esta. Os critérios para se dar aqui como de Noel Rosa obras
que em levantamentos anteriores não são atribuídas a ele vão explicados após
título, gênero, ano de feitura, co-autores (quando houver) e editoras (quando se
souber) de cada uma. Segue-se uma discografia na qual procurou-se arrolar:

1. Todas as gravações de obras de Noel Rosa que aparecem em discos de 78


rotações por minuto (representados pelo número 78 na antepenúltima coluna à
direita);
2. Todas em compactos (representados pelas iniciais Cp);
3. Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 10 polegadas/25
centímetros de diâmetro (representados pelas iniciais minúsculas Ip);
4. Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 12 polegadas/30
centímetros de diâmetro (representados pelas iniciais maiúsculas LP). Neste
caso, só se citam selo e número de catálogo do primeiro lançamento.
Um asterisco (*) indicará quando houve uma ou mais reedições da mesma
gravação em LP.

Observação importante: ao contrário do que já foi dito em outros


levantamentos, Noel Rosa não gravou nada que não fosse, pelo menos em parte,
seu - exceção apenas de sua participação no coro dos Tangarás. Portanto, esta
discografia cobre também toda a sua carreira como cantor.
Completam o trabalho registros da presença de Noel no teatro, cinema e
televisão. O teatro em que poderia ter brilhado tão mais, o cinema que chegou a
fustigar, a televisão que sabia não viver o bastante para conhecer.
MUSICOGRAFIA / DISCOGRAFIA
1 - A.B. SURDO
Marcha. 1930. Com Lamartine Babo Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não no selo da primeira gravação
Olga Jacobino e Vozes do Outro Mundo Parlophon 13.273 - 78 1930 1931 Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983 Orquestra dirigida por Romeu Fossati
Mocambo 40.191 - LP
2 - ADEUS
Samba. 1931. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Jonjoca e Castro Barbosa com
Grupo da Velha Guarda
Victor 33.548 - 78 1932 1932
Abril Cultural MPB 12 • - Ip 1932 1970
Ismael Silva com orquestra e coro Sinter SLP 1055 - Ip 1955 1955 Sinter SLP 10'-LP 1955 1956
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor LPNG 4014 " - LP 1958 1958
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2153 - LP 1962 1962
Ismael Silva com Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 • - LP 1973 1973
Grupo 10.001 e Vocal Documenta RCACamdem 107.0211 - LP 1975 1975
Toquinho e Vinícius com conjunto e coro Philips 6349.134 * - LP 1975 1975
3 - A.E.I.O.U.
Marcha colegial. 1931. Com Lamartine Babo. Ed. Mangione
Lamartine Babo com Grupo de
Canhoto e coro
RCA Victor 33.503 - 78 1932 1 932
RCA Camdem CALB 5122 * - LP 1932
1967
Arrelia e Lamartine Babo com Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana 5863 - 78 1957 1958
Copacabana 11.017 - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com orquestra ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 4.036.074 * - LP 1975 1975
Grande Orquestra Chantecler Chantecler 2.26.407045 - LP 1976 1976
Marlene com orquestra
Philips 6349.330 - LP 1977 1977
A Patotinha
RCA Victor 107.0296 - LP 1978 1978
As Melindrosas
Copacabana COMLP 25.040 - LP 1978
1978
Sargentelli, coro e ritmo, ao vivo Continental 1.01.404.222 - LP 1980 1980
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326-1982
4 - AGORA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Lucilla e Bando de Tangarás Parlophon 13.312 - 78 1931 1931
5 - ALÔ BELEZA
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo.
Melodia perdida
6 - AMAR COM SINCERIDADE
Samba. Com Sylvio Pinto
Ensinado por Sylvio Pinto ao Conjunto
Coisas Nossas em 1976
7 - AMOR DE PARCERIA
Samba-choro. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Regional RCA Victor RCA Victor 33.973 - 78 1935 1935
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1011/1012 *- LP 1963 1963
8 - ANDO CISMADO
Samba. 1933. Com Ismael Silva
Francisco Alves com Gente Boa Odeon 10.936 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.640 - LP 1933 1970
Ismael Silva, Hermínio B. de Carvalho e Antônio C. Brandão (violão) Tycoon 992.06112 - LP 1962
1985
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
9 - AO MEU AMIGO EDGAR
Samba. 1935-1978
Carta musicada por João Nogueira
João Nogueira com acompanhamento
instrumental
Odeon 062.421088 • - LP 1978 1978
Odeon 016.420873 - Cp 1978 1978
10 - ARARUTA
Samba. C. 1932. Com Orestes Barbosa
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
11 - ARRANJEI UM FRASEADO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa com Turma da Vila Odeon 10.989 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.041 * - LP 1933 1958
12-ASSIM, SIM!
Marcha. 1932. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Carmem Miranda com Harry Kosarin e
seus Almirantes
RCA Victor 33.581 - 78 1932 1932
13-ATCHIM!
Marcha. 1935-1969. Letra musicada postumamente por Hamilton Sbarra. Ver boxe Loura ou Morena
< no Capítulo 35
Aldacir Louro com orquestra e coro Caravelle CD-CAR 3.009 - Cp 1969 1969
14-ATÉ AMANHÃ
Samba. 1932. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Gente Boa Odeon 10.950 - 78 1933 1933 Radíobrás/Odeon RA 001/2/3/4
* - LP 1933 1967
Gilberto Alves com conjunto e coro RCA Victor 80.0993 - 78 1952 1952
Orquestra Rádio
Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Leal Brito, seu piano e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Dilermando Pinheiro com conjunto Musidisc M 50.008 - 78 1957 Musidisc M 044 - Ip 1957 1957
RCA Camdem 107.9056 * - LP 1957 1973
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716-LP 1957 1957
Canhoto e seu regional
RCA Victor 80.1936 - 78 1958 1958
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Sambistas da Guanabara
Odeon SMOFB 3.215 * - LP 1961 1961
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.211 - LP 1961 1961
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2.153 - LP 1962 1962
Silvio Caldas com regional Columbia 37.185 * - LP 1962 1962
Waldir Calmon e seu conjunto Copacabana SOLP 40.039 *-LP 1962
Marília Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana CLP 11.214 - LP 1964 1964
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 - LP 1965 1965
Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro
com regional
Philips P 632.788 L * - LP 1965 1966
Aracy de Almeida com conjunto de Roberto Menescal e coro Elenco ME-34 - LP 1966 1966
Elizeth Cardoso com
Caçulinha e seu conjunto
Copacabana CLP 11.466 •- LP 1966 1966
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.129 " - LP 1967 1967
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR 33.010 • - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e
Jacob do Bandolim com Zimbo Trio
MIS MIS-005 - LP 1968 1968
Marlene, Nuno Roland, Blecaute, índio e conj. ao vivo Teat. Casa Grande MIS MIS-009 - LP 1968
1969
A Turma do Embolo
RCA Victor BBL 1.472 - LP 1969 1969
Geraldo Vespar e Turma Pra Frente Parlophon PLH 13.018 - LP 1969 1969
Jair Rodrigues e orquestra
Philips R 765.096 L - LP 1969 1969
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Conjunto Explosão do Samba CID 2.124-LP 1973 1973
Moreira da Silva
CID 4.004 *-LP 1973 1973
Os Três Moraes
Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Os Velhinhos Transviados
RCA Camdem 107.0224 - LP 1975 1975
Grupo dos Foliões
Esquema 1.239.107 - LP 1978 1978
Pedro Vargas e Silvio Caldas
com regional, ao vivo
RCA Victor 103.0236 - LP 1978 1978
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e orquestra Musidisc M 15.020-78 Musidisc MV 005 • - Ip
José Menezes e seu conjunto SinterSLP 1.722-LP
Luiz Bandeira (Sargentelli e o Sambão) Copacabana CLP 11.602 - LP
Lyra de Xopotó SinterSLP 1.707-LP
Saraiva (sax-soprano) com acompanhamento Tropicana 01028 - LP
15-BAIANINHA
Choro, 1929 Melodia perdida
16-BALÃO APAGADO
Samba. 1936-1961. Letra musicada postumamente por Marllia Baptista Ed. Mangione
Elizeth Cardoso com orquestra e coro Copacabana 6.254 - 78 1961 1961 Copacabana SOLP 40.039
"- LP 1961 1962
17-BELO HORIZONTE
Fox-trot. 1935. Paródias de l'm Looking Over a Four Leaf Clover de Mort Dixon e Harry Woods
Ensinadas aos autores por Rômulo Paes e Paulo Lessa
18-BOA VIAGEM
Samba. 1934. Com Ismael Silva Ed. Mangione
Aurora Miranda com Orquestra Odeon Odeon 11.187 - 78 1935 1935
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 * - LP 1973 1973
19-BOASTENÇÕES
Valsa. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
20 - BOM ELEMENTO
Samba. 1930. Com Euclydes Silveira
(Quidinho)
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria a ele atribuída por
Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Noel Rosa e Arthur Costa e seu grupo Columbia 22.023 - 78 1931 1931
21 - BRINCADEIRA DE RODA
Citada por Noel Rosa em seu caderno de
músicas
Letra e melodia perdidas
22 - CABROCHA DO ROCHA
Samba. Com Sílvio Caldas Depoimento de Silvio Caldas no álbum duplo Histórias da Música
Popular, lançado pela CBS em 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com orquestra, ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 403.6074 • - LP 1975 1975
23 - CADÊ TRABALHO
Samba. C. 1932. Com Canuto
Letra publicada em Harmonia. Melodia
perdida
24 - CANÇÃO DO GALO CAPÃO
Marcha. 1935. Paródia da Marchinha do Grande Galo de Lamartine Babo Da opereta Ladrão de
Galinha
25 - CANSEI DE IMPLORAR
Samba. 1935. Paródia de Cansei de Pedir,
do próprio Noel Rosa
Da opereta A Noiva do Condutor
Grande Othelo e Conjunto Coisas Nossas Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
26 - CANSEI DE PEDIR
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Grupo de Canhoto
RCA Victor 33.949 - 78 1935 1935
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1935 1971
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.559 *- LP 1969
Ary e seu pistom, com conjunto e coro Chantecler CLP 2.012 • - LP
27 - CANTA COLOMBINA
(?). 1935. Com Jorge Faraj
Citada por Noel em entrevista ao Diário
Carioca
Melodia e letra perdidas
28 - CAPRICHO DE RAPAZ SOLTEIRO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 11.003 - 78 1933 1933 Fenab 104.105 - LP 1933
1982
Cara ou Coroa
Ver Vai Para Casa Depressa
29 - CEM MIL-RÉIS
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.337 - 78 1936 1936
Imperial IMP 30.205 " - LP 1936 1971
Risadinha com orquestra Continental 17.806 - 78 1960 1960
Caçulinha e seu conjunto
Odeon MOFB 3.553 - LP 1968 1968
Paulo Marquês com orquestra e coro de
As Gatas
V-Som 2809.073 - LP 1976 1976
Noel Rosa: Uma Biografia
Fafá Lemos e seu trio RCA Victor BPL 7 - LP
30 - CHORO
Choro. 193...
Anotado em pauta por Jacob do Bandolim
Ver nota 8 do Capítulo 11
Luís Otávio Braga, Henrique Cazes e Caola Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
31 - CHUVA DE VENTO
Embolada. 1937 Melodia perdida
32 - CIDADE MULHER
Marcha. 1936. Ed. Mangione Do filme Cidade Mulher
Orlando Silva com conjunto
regional RCA Victor
Victor 34.085 - 78 1936 1936
RCACamdem CALB 5.130-LP 1936 1967
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Cinema Falado
Ver Não Tem Tradução
33 - COISAS DO SERTÃO
Samba. 1929
Citada por Almirante em
No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
Coisas Nossas
Ver São Coisas Nossas
34 - COM MULHER NÃO QUERO MAIS NADA
Samba. 193... Com Sylvio Pinto Ensinada por Sylvio Pinto ao Conjunto Coisas Nossas em 1976
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
35 - COM QUE ROUPA?
Samba. 1929. Ed. Mangione
Noel Rosa com Bando Regional Parlophon 13.245 - 78 1930 1930 MIS MP 001 " - LP 1930 1965
Noel Rosa e I. G. Loyola com
Orquestra Guanabara
Parlophon 13.269 - 78 1931 1931
Aracy de Almeida, Radamés e Orq. de Cordas, Trios Melodia e Madrigal Continental 16.393 - 78
1951 1951 Continental 1.19.405.012 - LP 1951 1975
Orquestra Rádio e coro Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Trio Surdina
Musidisc M 014 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) e
ritmo
Odeon MODB 3.017 - Ip 1955 1955
Nelson Gonçalves
RCA Victor BBL-3.010 - Ip 1955 1955
RCA Camdem CALB 5.130 "- LP 1955 1967
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Canhoto e seu regional
Odeor) MOFB 3.063 - LP 1959 1959
Turma da Bossa
Musidisc HiFi 2.023 • - LP 1959 1959
Sambistas da Guanabara
Odeon MOFB 3.215 - LP 1961 1961
Marília Baptista com orquestra e coro Nilser NS 1.001/1.002 •- LP 1963 1963
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1966 1966
Tânia Maria (piano e vocal) com
trio, ao vivo
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Elza Soares, Miltinho e orquestra Odeon MOFB 3.510 * - LP 1967 1967
Helena de Lima com
quinteto da Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Martinho da Vila com Regional de Canhoto Abril Cultural - RCA MPB 01 - Ip 1970 1970
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP" 10.104 - LP 1973 1973
Manuel da Conceição, solo de violão RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Maria Creusa com orquestra
RCA Victor 110.0004 * - LP 1974 1974
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Paulo Marquês com Altamiro Carrilho e
seu conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Evandro (bandolim), orquestra e coro com regência de Guerra Peixe Chantecler CMG 2.126 - LP
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp 1987 1987
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755-LP
Rosinha de Valença Elenco ME-16*-LP
36 - CONDENO O TEU NERVOSO
Valsa. 1935. Paródia de Teus Ciúmes, de
Laci Martins e Aldo Cabral
Da opereta O Barbeiro de Niterói
37 - CONTRASTE
Samba. 1933. Ed. Mangione
Almirante com Conjunto Victor Victor 33.662 - 78 1933 1933 RCA Camdem CALB 5.186 * - LP
1933 1968
38 - CONVERSA DE BOTEQUIM
Samba. 1935. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa com conjunto regional Odeon 11.257 - 78 1935 1935 MIS MP 001 • - LP 1935 1965
Aracy de Almeida com Quarteto
Continental
Continental 16.317 - 78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 8 - LP 1950 1967
Trio Surdina
Musidisc LPO 14 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Vadico e seu regional
Continental 17.117-78 1955 1955
Continental LPP 15 - Ip 1955 1955
Dilermando Pinheiro com conjunto
Musidisc M 043 - Ip 1956 1956
RCA Camdem 107.9056 - LP 1956 1973
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon - 78 1957 1957
Fafá Lemos e seu conjunto
Odeon MOFB 3.045 * - LP 1958 1958
Dolores Duran com orquestra Copacabana CLP 11.039 * - LP 1959 1959
Vadico e sua orquestra
Festa LDV 6.009 - LP 1959 1959
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.001/1.012 *- LP 1963 1963
Moreira da Silva com orquestra Odeon MOFB 3.450 * - LP 1965 1966
Elza Soares com orquestra
Odeon MOFB 3.500 - LP 1967 1967
Helena de Lima com quinteto da Boate
Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Martinho da Vila com Regional de Canhoto Abril Cultural MPB 01 - Ip 1970 1970
Doris Monteiro com orquestra Odeon SMOFB 3.698 - LP 1971 1971
Jorge Veiga
Copacabana COELP 40.187 - LP 1975 1975
Os Caretas
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Paulo Marquês com Altamiro Carrilho e
seu conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Doris Monteiro com orquestra Odeon 052.422.027 - LP 1978 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Dolores Duran
Copacabana COLP 12.411 /12 - LP 1979 1979
Grupo Chapéu de Palha
Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1979
Heraldo (cavaquinho) com
acompanhamento
Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Nelson Ayres (piano) e Roberto Sion (sax-alto) Eldorado 77.83.0421 - LP 1983 1984
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Jorge Veiga
Copacabana CLP 11.052 - LP
Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Oswaldo Borba e sua orquestra Odeon MOFB 3.009 - LP
Paulinho Nogueira RGEXRLP 5.154-LP
Risadinha com orquestra Continental LPP 39 -
Robledo e seu conjunto Musidisc LP 40.005 -
Sandoval Dias e seu conjunto Philips P 630.447.1 - LP
39 - COR DE CINZA
Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK 20.018 * - LP
1955 1967
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Grupo Rumo Independente-LP 1981 1981
Zezé Gonzaga e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
40 - CORAÇÃO
Samba anatômico. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa com Orquestra Copacabana Odeon 10.931 - 78 1932 1933 MIS MP 001 "-LP 1932 1965
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor 583.0000 - Cp
1955 1956 RCA Camdem CASB 5.310 * - LP 1955 1971
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 " - LP 1963 1963
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
41 - CORDIAIS SAUDAÇÕES
Samba epistolar. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e Bando de Tangarás Parlophon 13.327 - 78 1931 1931 Imperial IMP 30.205 - LP 1931
1971
Noel Rosa e Orquestra Copacabana (1) MIS MP001 - LP 1931 1965
Marflia Baptista com orouestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com regional ao vivo no
Canecão
RCA Victor 103.0236 - LP 1978 1978
Silvio Caldas Mocambo 3.123 -Cp
42 - CUMPRINDO A PROMESSA
(?). 1925. Ed. Carlos Wehrs e Cia. Letra publicada no Jornal de Modinhas, novembro de 1929
Melodia perdida
43 - DAMA DO CABARÉ
Samba. 1936. Ed. Mangione Do filme Cidade Mulher
Orlando Silva e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.085 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5,340 - LP 1936 1971
Marilia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Orlando Silva com Regional de Canhoto Abril Cultural MPB 01 - Ip 1970 1970
Carmen Costa com acompanhamento
instrumental
Continental 1.01.404.215 * - LP 1979 1980
Roberto Silva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
44 - DE BABADO
Samba. 1936. Com João Mina Ed. Mangione
Noel Rosa e Marilia Baptista com Regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.337 - 78 1936 1936
Imperial IMP 30.205 - LP 1936 1971
Marllia Baptista com orquestra
Nilsen NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Aracy de Almeida e partídeiros com
Conjunto Samba Autêntico
Polydor LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Sambistas do Asfalto
Itamaraty DLP 1.011 * - LP 1969
Os Velhinhos Transviados
RCA Camdem 107.0224 - LP 1975 1975
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
João Nogueira e Alcione com orquestra Polydor 2.451.170 • - LP 1981 1981
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
45 - DE QUALQUER MANEIRA
Samba. 1933. Com Ary Barroso
Deo com Conjunto Odeon Odeon 11.762 - 78 1939 1939
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.526 - LP 1968 1968
Abílio Martins com orquestra e coro Sinter 108.003 - Cp 1972 1972
46 - DEIXA DE SER CONVENCIDA
Samba. 1935. Com Wilson Baptista Depoimento de Wilson Baptista a Almirante durante a série de
programas de rádio No Tempo de Noel Rosa
47 - DEUS SABE O QUE FAZ
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco só está o
nome de Ismael. Na partitura, os dos três
Jonjoca e Castro Barbosa com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.019 - 78 1933 1933
48 - DEVO ESQUECER
Samba. 1930. Com Gilberto Martins
O nome de Noel Rosa não está no selo do
disco. A co-autoria é atribuída por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Noel Rosa e Léo Villar com Pixinguinha e
sua orquestra
Columbia 22.240 - 78 1933 1933 Continental LP 19 - Ip 1933 1955 Disco Lar LPDS 32.051 - LP
1933 1969
49 - DISSE-ME-DISSE
Samba-choro. 1935
Partitura manuscrita pertencente ao
Arquivo Almirante
Conjunto Coisas Nossas
Independente LPCN 001 - LP 1980 1980
50 - DONA ARACY
Marcha. 1930. Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.271 - 78 1931 1931
51 - DONA DO LUGAR
Samba. O 1933. Com Ismael Silva e
Francisco Alves. Ed. Mangione
O nome de Noel Rosa não está no selo do
disco
Na partitura, não consta o de Ismael
Castro Barbosa e Jonjoca Odeon 10.966 - 78 1932 1933
52 - DONA EMÍLIA
Marcha. 1930. Com Glauco Vianna Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.290 - 78 1931 1931
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
53 - DONO DO MEU NARIZ
Valsa. 1933. Paródia de Dona da Minha Vontade.de Francisco Alves e Orestes Barbosa
54 - É BOM PARAR
Samba. 1936. Com Rubens Soares O nome de Noel Rosa não aparece nos discos, nem na partitura.
Vários depoimentos, inclusive de Almirante e Jorge Faraj, atribuem a
ele co-autoria. Ver detalhes no Capitulo 40
Francisco Alves com Diabos do Céu
Victor 34.038 - 78 1936 1936
RCA Camdem 803.224 - LP 1936 1985
Carolina Cardoso de Menezes (piano) Victor 34.398 - 78 1938 1939
Bando da Lua
MCA 4.07.404.087 - LP 1941 1975
Fernando Alvarez com regional Victor 34.885-78 1941 1942
Nuno Roland com Simon Bountmann e sua Orquestra do Cassino Copacabana Victor 34.837 -78
1941
Fats Elpídio e Britinho (duo de pianos) com acompanhamento rítmico RCA Victor 80.1084 - 78
1952 1953
Francisco Alves com conjunto e coro RCA Victor 80.1046 - 78 1952 1952 RCA Victor 583.5033 -
Cp 1952 RCA Camdem CALB 5.063 * - LP 1952 1963
Gilberto Milfont com orquestra e coro
Noel Rosa: Uma Biografia
Continental LPP 5 - Ip 1954 1954 Continental 1.19.405.032 - LP 1954 1977
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.008 - Ip 1955 1955
Britinho, seu piano e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Luizinho ao piano com coro Columbia LPCB 35.019 - Ip 1956 1956
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.019 • - LP 1957 1957
Orquestra Rádio
Rádio 0056 GV-LP 1958 1958
Zé Maria, seu órgão, seu conjunto Internacional CID 27.017 - LP 1959 1959
Nelson Martins dos Santos
RCA Victor BBL 1.080 - LP 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 * - LP 1962 1962
Avéna de Castro (citara) e conjunto Copacabana CLP 11.214 - LP 1964 1964
Lana Bittencourt
Philips P 632.774 L - LP 1965
Os Catedráticos
Equipe EQ 810 - LP 1965 1966
Gilberto Alves com orquestra Copacabana CLP 11.476 * - LP 1966 1966
Elza Soares, Miltinho e orquestra Odeon MOFB 3.510 * - LP 1967 1967
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR-33.010 • - LP 1968 1968
Marlene e Nuno Roland, Índio e seu conj. ao vivo Teatro Casa Grande MIS MIS 010-LP 1968 1969
Moreira da Silva
CID 4.004 "-LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Mato e Morro
Copacabana SOLP 40.487 - LP 1974 1974
Silvio Caldas com orquestra, ao vivo
Teatro Fênix
Som Livre 403.6074 * - LP 1975 1975
Poly e seu conjunto
Continental 030.404.078 * - LP 1977 1977
Sílvio Caldas
Music Master KML 9.007 - 1979
Bloco Pierrôs e Colombinas
Som Livre 403.6245 - LP 1981 1981
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124-LP
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.730-LP
Os Satélites com orquestra Odeon MOFB 3.016-LP
Vadinho (guitarra) com Scarambone e seu
conjunto
Carrousel SELP 3.002 - LP
Walter Gonçalves, piano, bateria e coro LPN - Ip
55 - É DIFÍCIL SABER FINGIR
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo
Melodia perdida
E Não Brinca Não Ver Não Brinca Não
56 - É PESO
Samba. 1932. Com Ismael Silva O nome de Noel não está no selo do disco. A co-autoria é atribuída
por Harmonia
Francisco Alves com Gente Boa Odeon 10.936 - 78 1933 1933
57 - É PRECISO DISCUTIR
Samba. 1931. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.905 - 78 1932 1932
58 - ENVIO ESSAS MAL TRAÇADAS
Samba. 1935. Paródia de Cordiais Saudações, do próprio Noel Rosa Da opereta O Barbeiro de
Niterói
59 - ESCOLA DE MALANDRO
Samba. 1932. Com Orlando Luiz Machado e Ismael Silva
O nome de Noel Rosa não está no selo do disco. A co-autoria é atribuída por Almirante em No
Tempo de Noel Rosa e por Hamonia
Noel Rosa e Ismael Silva com Batutas do
Estácio
Odeon 10.949 - 78 1932 1932
60 - ESPERA MAIS UM ANO
Samba. 1932
Noel Rosa e Arthur Costa com
orquestra (2)
Matriz 131.285-78 1932
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
61 - ESQUECER E PERDOAR
Samba. 1931. Com Canuto
Canuto com Orquestra Guanabara Parlophon 13.349 - 78 1931 1931
62 - ESQUINA DA VIDA
Samba. 1933. Com Francisco Queirós Mattoso. Ed. Mangione
Mário Reis com acompanhamento de
piano (3)
Columbia 22.242 - 78 1933 1933
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
63 - ESTAMOS ESPERANDO
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Gente Boa
Odeon 10.956 - 78 1933 1933 Odeon MODB 3.075 - Ip 1933 Odeon MOFB 3.363 " - LP 1933 1963
64 - ESTÁTUA DA PACIÊNCIA Fox-trot. 1931. Com Jerônimo Cabral Partitura manuscrita
pertencente ao Arquivo Almirante
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
65 - ESTE MEIO NÃO SERVE
Samba. 1936. Com Ernesto dos Santos (Donga)
Mário Reis com Orquestra Odeon de
Simon Bountmann
Odeon 11.326 - 78 1936 1936
66 - ESTRELA DA MANHÃ
Samba. 1933. Com Ary Barroso
Francisco Alves e Madelou Assis com
orquestra
Odeon 11.079 - 78 1933 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1933 1970
67 - EU AGORA FIQUEI MAL
Samba. 1931. Com Antenor Gargalhada
Canuto com Orquestra Copacabana Parlophon 13.349 - 78 1931 1931
68 - EU NÃO PRECISO MAIS DO SEU
AMOR
Samba.
Ensinado aos autores por Armênio
Mesquita Veiga
69 - EU QUERIA UM RETRATINHO DE
VOCÊ
Samba. 1933. Com Lamartine Babo
Mário Reis com Diabos do Céu RCA Victor 33.668 - 78 1933 1933
70 - EU SEI SOFRER
Samba. 1937. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade
RCA Victor 34.176-78 1937 1937
RCA Camdem CALB 5.026 * - LP 1937 1961
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716-LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 " - LP 1963 1963
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 • - LP 1968 1968
71 - EU VOU PRA VILA
Samba. 1930. Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.256 - 78 1931 1931 Fenab 104/105 - LP 1931
1982
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Aracy de Almeida e a Turma da Vila Polydor LPNG 4.014 * - LP 1958 1958
Astor e orquestra
Odeon MOFB 3.026 • - LP 1958 1958
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
72 - FAZ DE CONTA QUE EU MORRI
Samba. 193... Com Henrique Gonzalez Ensinada aos autores por Moreira da Silva Letra reproduzida
por Jacy Pacheco em O Cantor da Vila
73 - FAZ TRÊS_SEMANA
Canção. 193... Paródia de Suçuarana, de
Hekel Tavares e Lu/s Peixoto Ensinada aos autores por Armênio Mesquita Veiga
74 - FEITIÇO DA VILA
Samba. 1934. Com Vadico. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Orquestra Odeon Odeon 11.175-78 1934 1934 Odeon MOFB 3.041 * - LP
1934 1958
Os Namorados da Lua Continental 15.613 - 78 1946 1946 Continental 1.19.405.028-LP 1946 1976
Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara Continental 16.129-78 1949 1949
Aracy de Almeida com Francisco Sergi e sua orquestra
Continental 16.318 - 78 1950 1950 Continental 6 - Ip 1950 1954 Continental LPK 20.018 * - LP
1950 1967 Continental DEZLP1.001/2/3 - Ip 1950 1973
Silvio Caldas com Orquestra da Radio
Nacional, ao vivo
Collector's 992.330 - LP 1951 1986
Benê Nunes (piano)
Continental 16.772 - 78 1953 1953
José Luciano, seu piano e ritmo Mocambo 15.065 - 78 1954 Mocambo LP 10.004 - Ip 1954 1954
Garotos da Lua Sinter347-78 1954
Philips 6328.387 - LP 1982
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.016 - Ip 1955 1955
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem CALB
5.095 * - LP 1955
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Fafá Lemos e seu conjunto RCA Victor 83.0043 - Cp 1956 RCA Victor 80.1624 - 78 1956 RCA
Victor BPL 3.023 - Ip 1956 1956
Francisco Egldio com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Gentil Guedes e sua orquestra Continental LPP 18 - Ip 1956 1956
Sílvio Caldas com orquestra Columbia LPCB 35.027 - Ip 1956 1956 Columbia 37.068 - LP 1956
1958
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Luiz Bonfá
Odeon MOFB 3.014 - LP 1958 1958
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BBL 1.040 - LP 1959 1959
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Coro Odeon
Odeon MOFB 3.140 * - LP 1960 1960
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Lord Astor e seu conjunto
Imperial IMP 30.025 - LP 1961
Luiz Arruda Paes e sua orquestra RCA BBL 1.173 * - LP 1962 1962
Silvio Caldas com regional Columbia 37.185 • - LP 1962 1962
Ângela Maria
Copacabana SOLP 40.039 *-LP 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Os Velhinhos Transviados RCA BBL 1.247 - LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214-LP 1964 1964
Benê Nunes e seu piano
Fantasia FLP 2.020 - LP 1965 1965
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Victor Assis Brasil (sax-alto), com piano,
oa,xo e bateria
Forma FE 1.017 - LP 1966 1966
Bola Sete (violão), com baixo e
percussão (4)
Fantasy (USA) 8.364 - LP 1967 1967
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Nelson Gonçalves com orquestra
RCA Camdem CALB 5.130 *-LP 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim com Conjunto Época de Ouro MIS MIS-005 - LP 1968 1968
Geraldo Vespar (violão)
Parlophon PBA 13.010-Ip 1968 1968
Conjunto Nosso Samba
Beverly BPL 80.738 - LP 1969 1969
Helena de Lima com quinteto da
Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 848 - LP 1969 1970
Os Três Moraes com orquestra Continental. SLP 10.104 - LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues e Samba Som Sete com Nelsinho (trombone) Equipe XPTO 1 - LP 1973 1973
Manuel da Conceição (violão)
RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Odette Amaral com Altamiro Carrilho e seu
conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Sílvio Caldas e Elizeth Cardoso com orquestra, ao vivo Teatro Fênix Sigla 403.6074 * - LP 1975
1975
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Codó (violão) com Elizeth Cardoso e
acompanhamento
CID 8.024 - LP 1978 1978
The Pop's
Equipe EQ 817 - LP 1978 1978
Abdias e sua sanfona, com Oswaldo
Oliveira
Uirapuru 350.047 - LP 1979 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Edu da Gaita com orquestra
Eldorado 17.79.0337 • - LP 1979 1979
Nilze de Carvalho (bandolim), Conjunto Época de Ouro e Netinho (sax) CID 8.036-LP 1980 1980
Georg Brass (piano) e ritmo CID 8.048-LP 1982 1982
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Continental 1.07.405.291 - LP 1983 1983
Waldir Calmon e seu conjunto CID 4.167-LP 1985 1985
Aimé Vereck e seu conjunto de boate Odeon MODB 3.026 - Ip
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.311 - LP
Britinho, seu piano e ritmo Sinter SLP 1.061 - Ip
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 11.013 • - LP
Elza Soares e Miltínho com orquestra Odeon 3.540 - LP
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc M-15.020-78
Musidisc MV 005 - Ip
Irany Promodeon 02 -
João de Lima e seu conjunto Copacabana CLP 11.042 - LP
Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Leal Brito
Musidisc M-015 - Ip
Leal Brito
Musidisc M-038 - Ip
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755 - LP
Os Coroas da Fuzarca Tropicana 3.002 - LP
Santana e seu regional moderno Polydor LPN 2.003 -
Saraiva (sax-soprano) com acompanhamento Tropicana 01028 - LP
Silvar e o seu regional Beverly BLP 80.092 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia 37.118 - LP
Feitiço Sem Farofa Ver Feitiço da Vila
Noel Rosa: Uma Biografia
75 - FEITIO DE ORAÇÃO
Samba. 1933. Com Vadico
Francisco Alves e Castro Barbosa com Orquestra Copacabana Odeon 11.042 - 78 1934 1934 Odeon
MOFB 3.617 * - LP 1934 1969 Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1934 1977
Aracy de Almeida com Radamés e sua
orquestra de cordas
Continental 16.392 - 78 1951 1951
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor 800.760 - 78 1951 1951
RCA Victor BPL 3.032 - Ip 1951
RCA Camdem CALB 5.031 - LP 1951 1961
Silvio Caldas com Carioca e sua orquestra,
ao vivo
Collector's 992.330 - LP 1952 1986
Mardia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1-V- Ip 1953 1953 Rádio LP 0011-V - Ip 1953
Trio Surdina
Musidisc M-50.005 - 78 1955
Musidisc DL 1.007 - Ip 1955 1955
Britifino, seu piano e ritmo Sinter 481 - 78 1956 1956 SinterSLP 1.061 - Ip 1956
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 3.067 - Ip 1956 1956 Copacabana CEP 4.515 - Cp
1956 Copacabana CLP 11.066 • - LP 1956 1958
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MOFB 3.002 - LP 1957 1957
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
Silvio Caldas com orquestra Columbia LPBC 41.003 • - 1957 1957
Zezinho com Os Copacabanas e
Vadico (piano)
Odeon MOFB 3.007 " - LP 1957 1957
Agostinho dos Santos com Simonetti e
orquestra
RGE XRLP 5.057 * - LP 1959 1959
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Coral de Ouro Preto
Odeon MOFB 3.273 • - LP 1961 1961
Rosana Toledo com Orquestra RGE RGE XRLP 5.160-LP 1962 1962
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Helena de Lima com conjunto RGE XRLP 5.285 * - LP 1965 1965
Maria Bethânia com orquestra
RCA Camdem CALB 5.329 "- LP 1965 1965
Primo Trio
Musidisc HiFi 2.120 - LP 1965 1965
Aracy de Almeida com conjunto de
Roberto Menescal
Elenco ME-34 - LP 1966 1966
Mauricio Oliveira (violão)
Musiplay LPM 1.112 * - LP 1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos CODIL CDL 13.007 - LP 1967 1967
Agnaldo Rayol com orquestra Copacabana CLP 11.523 - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim com Conjunto Época de Ouro MIS MIS-004 - LP 1968 1968
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 * - LP 1968 1968
Quarteto 004
Ritmos (Codil) CDL 13.011 - LP 1968 1968
Helena de Lima com Quinteto da
Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Zimbo Trio e Orquestra de Metais RGE USLP 5.331 - LP 1969 1969
Silvar e seu regional
Bemol BMLP 80.035 - LP 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 848 • - LP 1970 1970
Ângela Maria com orquestra
Copacabana SOLP 40.432 - LP 1971 1971
Wilson Simonal com orquestra Philips 6349.049 • - LP 1972 1972
Nelson Gonçalves
RCA Camdem 107.0084 • - LP 1973
Cláudia Barroso com orquestra Continental SLP 10.137 - LP 1974 1974
Os Caretas com orquestra
Polydor 2.488.234/5/6 - LP 1975 1975
Francisco Petrônio e
Conjunto Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Márcio Montarroyos com orquestra Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Manuel da Conceição (violão) com ritmo Musiquim LPM-MC-002 - LP 1979 1979
Celso Machado (violão) com
acompanhamento
Marcus Pereira MPL 9.414 - LP 1980 1980
Plauto Cruz (flauta) com regional Clack Bandeirantes BR 33.085 * -LP 1980 1980
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 "-LP 1981 1981
Guilherme Rodrigues Quarteto Independente LPVR 010 - LP 1982 1982
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Breno Sauer Quinteto Columbia 37.063 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Hugo Luiz, seu violão e ritmo Paladium PAL 50.006 - LP
Josemir e conjunto Enir E-9.004 - LP
Leal Brito
Musidisc M-015 - Ip
Orquestra Continental de Jaú, regida por Waldomiro de Oliveira Internacional CID 27.022 - LP
Pedrinho Mattar (piano) com orquestra Copacabana CLP 11.651 - LP
Simonetti e sua orquestra RGE RLP 001 - Ip
76 - FELICIDADE
Samba. 1932. Com René Bittencourt O nome de Noel está em partitura, mas não no selo da primeira
gravação
Noel Rosa com Grupo Columbia Columbia 22.083 - 78 1932 1932 Continental LPP 19 - Ip 1932
1955 Disco Lar LPDS 32.051 * - LP 1932 1969
Francisco Alves com regional Odeon 13.259 - 78 1952 1952 Odeon MOCB 3.011 - LP 1952 1958
Trio Irakitan e orquestra
Odeon MOFB 3.526 - LP 1968 1968
Francisco Petrônio e Conjunto
Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Os Demônios da Garoa Chantecler CMG-2.525 - LP
77 - FESTA NO CÉU
Toada. 1929
Noel Rosa e conjunto
Parlophon 13.185 - 78 1930 1930
Fenab 104/105 - LP 1930 1982
78 - FILOSOFIA
Samba. 1933. Com André Filho Ed. Mangione
Mário Reis com Pixinguinha e sua
orquestra
Columbia 22.225 - 78 1933 1933
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Mário Reis com orquestra
Odeon SMOFB 3.690 • - LP 1971 1971
Chico Buarque com orquestra Philips 6349.122 • - LP 1974 1974
Adoniran Barbosa com regional Eldorado 86.84.0437 - LP 1980 1984
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
79 - FINALETO
Samba-canção. 1935. Com Arnold
Glückmann
Da opereta A Noiva do Condutor
Marilia Pera, Grande Othelo, Caola, Oscar Bolão, Coisas Nossas e orq. Eldorado 106.86.0447 - LP
1985 1986
80 - FIQUEI RACHANDO LENHA
Samba. 1934. Com Hervê Cordovil Partitura manuscrita pertencente ao Arquivo Almirante
81 - FIQUEI SOZINHA
Marcha-rancho. 1931. Com Adauto Costa Ed. Mangíone
Ruth Franklin com Orquestra Guanabara Parlophon 13.413-78 1932 1932
82 - FITA AMARELA
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.961 - 78 1933 1933 Odeon MODB
3.075 - Ip 1933 Odeon MOFB 3.363 • - LP 1933 1963
Trio Surdina
Musidisc M 15.002 - 78 1953
Musidisc LP 014 - Ip 1953 1953
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK 20.018 * - LP
1955 1967
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.016 - Ip 1955
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.010 • - LP 1957 1957
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Silvio Caldas com orquestra e coro Columbia LPCB 41.003 • - LP 1957 1957
Betinho e seu conjunto
Copacabana CLP 11.077 - LP 1958 1958
Fafá Lemos e seu conjunto
Odeon MOFB 3.045 - LP 1958 1958
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.075 - LP 1959 1959
Sivuca e seu conjunto
Barclay EBPL 920.105 * - LP 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Sambistas da Guanabara
Odeon SMFB 3.215 - LP 1961 1961
Lord Astor e seu conjunto Imperial 30.025 - LP
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 - LP 1962 1962
Simonetti e sua orquestra
RGE XRLP 5.167 - LP 1962 1962
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Paulinho Nogueira (violão)
RGE XRLP 5.088 • - LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Miltinho com conjunto, ao vivo RGE XRLP 5.281 * - LP 1966 1966
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
José da Conceição (violão)
Itamaraty ITAM 7.042 * - LP 1968
Sambista(r) do Asfalto
Prestise OLP 1.011 - LP 1968
Luiz Bandeira, ritmo e coro Copacabana CLP 11.602 - LP 1970 1970
Elizeth Cardoso e Sílvio Caldas com
orquestra
Copacabana 11.644-LP 1971 1971
Xixa e seu conjunto
PremierPRLP 1.197-LP 1971 1971
Nelson Gonçalves com regional RCACamdem CASB 5.310 * - LP 1971
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues, Samba Som Sete e
Nelsinho (trombone)
Equipe XPTO 1 - LP 1973 1973
Conjunto OTR'74
Guarani LPG 510-LP 1974 1974
Os Caretas
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Francisco Petrônio e
Conjunto Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Carlinhos Polidoro com orquestra CID 4.103-LP 1980 1980
Ivanildo (sax) com conjunto CID 4.107-LP 1981 1981
Caola (vocal e violão) e Zenio (tuba) Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Continental MOFB 3.045 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Fats Elpldio com acompanhamento rítmico RCA Victor BPL 4 - LP
Guimarães e seu conjunto Odeon MOFB 3.250 - LP
Lauro Paiva (órgão) e seu ritmo Copacabana 11.163 - LP
Mcacir Silva e sua orquestra Copacabana 6.509 - 78 Copacabana CLP 11.409 - LP
Orquestra Continental de Jaú, regida por Waldomiro de Oliveira Internacional CID 27.022 - LP
83 - FITA DE CINEMA
(?). 1935
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
Melodia perdida
84 - FOI ELE
Samba. 1935. Paródia de Foi Ela, de Ary
Barroso
Da opereta Ladrão de Galinha
85 - FUI LOUCO
Samba. 1933. Com Alcebíades Barcellos O nome de Noel não está no selo da primeira gravação.
Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por José Maria Arantes
em depoimento aos autores
Mário Reis e Grupo da Velha Guarda Victor 33.645 - 19 1933 1933
Lyra de Xopotó
Sinter SLP 1.725 - LP 1957 1958
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 L - LP 1965 1965
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana COLP 11.466 • - LP 1966
1966
Sambistas do Asfalto
Prestige DLP 1.011-LP ' 1968
Mário Reis com orquestra
Odeon MOFB 3.690-LP 1971 1971
José Menezes e seu conjunto Sinter SLP 1.722-LP
86 - FUI UMA VEZ_
Canção. 192... Paródia de Gigolette, de Franz Lehár
Ensinada aos autores pelo general Moacyr Mattos de Oliveira
Fuzarqueira
Ver Mulata Fuzarqueira
87 - GAGO APAIXONADO
Samba. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa acompanhado de seu grupo Columbia 22.023 - 78 1931 1931 Continental LPP 19 - Ip
1931 1955 Continental LPK 20.002 • - LP 1931 1967
Moreira da Silva com Orquestra de Oswaldo Borba
Odeon 14.457 - 78 1959 1959 Odeon BWB 1.093 - Cp 1959 1959 Odeon MOFB 3.096 * - LP 1959
1959
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
MPB 4
Elenco 61 * - LP 1970 1970
João Nogueira com conjunto instrumental Odeon SMOFB 3.843 • - LP 1974 1974
Grupo Chapéu de Palha com orquestra Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1979
Moreira da Silva com conjunto
instrumental
Polydor 2451.138 * - LP 1979 1979
Evandro Mesquita e seu conjunto Philips 830.621-1 - LP 1986 1986
88 - A GENOVEVA NÃO SABE O QUE DIZ
Samba. 1935. Paródia de Palpite Infeliz,
de Noel Rosa
Da opereta Ladrão de Galinha
89 - GOSTO, MAS NÃO É MUITO
Marcha. 1931. Com Ismael Silva e Francisco Alves
O nome de Noel não está no selo do disco. Co-autoria a ele atribuída por Almirante em No Tempo de
Noel Rosa
Francisco Alves e Bambas do Estácio
Parlophon 13.375 - 78 1931 1932
Odeon MOFB 3.507 - LP 1931 1967
Noe/ Rosa: Uma Biografia
90 - HABEAS-CORPUS
Samba. C. 1933. Com Orestes Barbosa Ensinada por Armênio Mesquita Veiga aos autores. Co-
autoria atribuída a si mesmo por Orestes Barbosa em Samba
Iça a Vela
Ver Mão no Remo
Ilustre Visita
Ver Só Pode Ser Você
91 - INGÊNUA
Valsa. 1930. Com Glauco Vianna Partitura manuscrita pertencente ao arquivo de Glauco Vianna
Glauco Vianna (solo de violão) com acompanhamento de piano Parlophon 12.886 - 78 1928 1928
92 - ISSO NÃO SE FAZ
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco só está o
nome de Ismael. Na partitura, os dos três
João Petra de Barras com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.031 - 78 1933 1933
93 - JÁ NÃO POSSO MAIS
Samba. 1932. Com Puruca, Canuto e Almirante. Ed. Mangione
Almirante com Bando de Tangarás Parlophon 13.364 - 78 1931 1932
94 - JÁ SEI QUE TENS NOVO AMOR
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco, autoria
atribuída a Carlos Martins. Na partitura, apenas a Noel, Ismael e Francisco
Jonjoca e Castro Barbosa com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.019 - 78 1933 1933
95 - JOÃO-NINGUÉM
Samba. 1935. Ed. Mangione
Noel Rosa com conjunto regional Odeon 11.257 - 78 1935 1935 MIS MP001 "-LP 1935 1965
Aracy de Almeida com Fats Elpídio e seus Muchachos
Odeon 12.953 - 78 1949 1949
Odeon 13.206 - 78 1949 1952
Imperial IMP 30.165 - LP 1949 1969
Francisco Egidio com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Lygia com orquestra
RGE XRLP 5.232 - LP 1964 1964
Cynara e Cybele
CBS 37.548-LP 1968 1968
Paulinho Nogueira com regional de
Evandro
Continental 1.01.404.083 * - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Roberto Luna com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc 50.005 - 78
Musídisc M-020 - Ip
96 - JOÃO TEIMOSO
Samba. 193... - 1962. Com Marllia Baptista. Ed. Mangione
Marllia Baptista com orquestra Musidisc 2.060 • - LP 1962 1962
97 - O JOAQUIM É CONDUTOR
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Marilia Pera e Grande Othelo com Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP
1985 1986
98 - JULIETA
Fox-trot. 1931. Com Eratósthenes Frazão Ed. Mangione
Castro Barbosa com orquestra Odeon 11.063 - 78 1933 1933
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
99 - JUJU
Marcha. C. 1935
Citada por Noel em entrevista à revista
Carioca, 14 de dezembro de 1935
100-LATARIA
Marcha. 1930. Com João de Barro e
Almirante
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria a ele atribuída por João
de Barro em entrevista a Sérgio Cabral,
O Globo, 24 de janeiro de 1977
Bando de Tangarás
Parlophon 13.248 - 78 1931 1931
Leilão do Brasil Ver Quem Dá Mais?
101 - LEITE COM CAFÉ
Samba. 1935. Com Hervé Cordovil. Ver boxe Loura ou Morena? no Capítulo 35 Melodia perdida
Linda Pequena Ver Pastorinhas
102 - LIRA ABANDONADA
(?). 193... Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
103 - MADAME HONESTA
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
104 - O MAIOR CASTIGO QUE EU TE
DOU
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Boêmios da Cidade
RCA Victor 34.176 - 78 1937 1937
RCA Camdem CALB 5.026 *-LP 1937 1961
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 * - LP 1981 1981
105 - MAIS UM SAMBA POPULAR
Samba. 1934. Com Vadico. Ed. Mangione e Vitale
Ana Cristina e conjunto de Luís Bittencourt Sinter354-78 1954 1954
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
106 - MALANDRO MEDROSO
Samba. 1930. Ed. Mangione
NoeJ Rosa com o Bando Regional Parlophon 13.245 - 78 1930 1930 Imperial IMP 30.205 - LP 1930
1971
107 - MÃO NO REMO
Samba. 1931. Com Ary Barroso Ed. Mangione
Sílvio Caldas com orquestra Victor 33.479 - 78 1931 1931
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
108 - MARCHA DA PRIMAVERA
Marcha. 1934
Ensinada por Armênio Mesquita Veiga aos
autores
109 - MARCHA DO DRAGÃO
Marcha publicitáric 1936. Com Vadico Citada por Vadico em entrevista a Clemente Neto em Revista
da Música Popular Melodia perdida
110 - MARDADE DE CABOCLA
Canção sertaneja. 1931 Ensinada por José de Souza Pinto (Alegria) aos autores
111 - MARIA-FUMAÇA
Samba. 1936. Ed. Mangione
Almirante e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.086 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1936 1971
112 - MAS COMO... OUTRA VEZ?
Marcha. 1932. Com Francisco Alves Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.961 - 78 1933 1933 Odeon MODB
3.075 - Ip 1933
113 - MAS QUEM TE DEU TUDO ISSO?
(?). 1937
Letra reproduzida por Almirante em No
Tempo de Noel Rosa. Melodia perdida
114 - A MELHOR DO PLANETA
Samba. 1934. Com Almirante Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK 20.018 * - LP
1955 1967
115 - MENINA DOS MEUS OLHOS
Marcha. 1936. Com Lamartine Babo Ed. Vitale e Mangione O nome de Noel está na partitura, mas
não no selo do disco
Orlando Silva e Gaúcho com os
Diabos do Céu
Victor 34.034 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.130 • - LP 1936 1967
Menina dos Olhos
Ver Menina dos Meus Olhos
116-MENTIR
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Gente Boa Odeon 10.943 - 78 1933 1933
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Mentira Necessária Ver Mentir
117 - MENTIRAS DE MULHER
Samba. 1931
Noel Rosa e Arthur Costa com
Grupo Columbia
Columbia 22.083 - 78 1932 1932
Continental LPP 19 - Ip 1932 1955
Disco Lar LPDS 32.051 • - LP 1932 1969
118-MEU BARRACÃO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com acompanhamento de
piano (3)
Columbia 22.242 - 78 1933 1933
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK 20.018 * - LP
1955 1967
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD 1.142 - Cp 1965 1966
RCA Victor 110.0021 - LP 1965 1980
119-MEU BEM
Samba. 1931
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa (Jornal de Modinhas, junho
de 1931)
Melodia e letra perdidas
120-MEU SOFRER
Canção. 1930. Com Henrique Britto Ed. Mangione
No selo da primeira gravação recebeu o nome de Meu Sofrer. Posteriormente seria mais conhecida
como Queixumes
Gastão Formenti com acompanhamento de
violões
Brunswick 10.120 - 78 1930 1930
Luiz Gonzaga com acompanhamento Victor 800.333 - 78 1945 1945
Carlos Galhardo com orquestra Victor 800.388 - 78 1946 1946 RCA Camdem CALB 5.130 • - LP
1946 1967
Jaime Ferreira
Odeon 14.776 - 78 1961 1961
Luiz Bonfá (violão) com acompanhamento Odeon SMOFB 3.360 • - LP 1964 1964
121 - MINHA VIOLA
Embolada. 1929
Noel Rosa e conjunto
Parlophon 13.185 - 78 1930 1930
MIS MP 001 -LP 1930 1965
Momento Quatro
Fontana 6470.562 • - LP 1976
Rolando Boldrin e Lurdinha Pereira com
conjunto
Continental 1.01.404.237 - LP 1980 1980
Martinho da Vila
RCA Victor 710.0632 - LP 1984 1984
Morena e Loura Ver Atchim!
122-MORENA SEREIA
Marcha. 1936. Com José Maria de Abreu
Ed. Mangione
Do Filme Cidade Mulher.
Marllia Baptista com orquestra Musidisc HiFi 2.060 * - LP 1962 1962
123 - MUITO RISO, POUCO SISO
Citada por Noel em seu caderno de
músicas
Melodia e letra perdidas
124 - MULATA FUZARQUEIRA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e Bando de Tangarás Parlophon 13.327 - 78 1931 1931 MIS MP 001 --LP 1931 1965
125 - MULATO BAMBA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Mulato Forte Ver Mulato Bamba
126 - MULHER INDIGESTA
Samba. 1932
Noel Rosa com acompanhamento de
Os Sete Diabos
Columbia 22.089 - 78 1932 1932
Continental LP 19 - Ip 1932 1955
Disco Lar LPDS 32.051 • - LP 1932 1969
127-NA BAHIA
Samba. 1936. Com José Maria de Abreu
Ed. Mangione
Do filme Cidade Mulher
Conjunto Coisas Nossas e coro Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Na Esquina da Vida Ver Esquina da Vida
128-NÃO BRINCA NÃO
Embolada. 1932
Almirante com o Bando de Tangarás RCA Victor 33.557 - 78 1932 1932
129-NÃO DIGAS
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco só está o nome
de Ismael. Na partitura, os dos três
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.066 - 78 1933 1933
130-NÃO FAZ, AMOR
Samba. 1932. Com Cartola O nome de Noel não está no selo da primeira gravação. Co-autoria
atribuída por Cartola em depoimento aos autores
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.927 - 78 1932 1933
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
131 - NÃO FOI POR AMOR
Samba. 1934. Com Zé Pretinho e Germano
Augusto
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria atribuída por Zé Pretinho
em depoimento aos autores
Orlando Silva e os Diabos do Céu
Victor 34.047 - 78 1935 1936
RCA Camdem 803.223 - LP 1935 1985
132-NÃO HÁ CASTIGO
Samba. 1932. Com Ernesto dos Santos (Donga). Ed. Mangione
Helena e João Barreto com Gente do Peito Parlophon 13.437 - 78 1932 1932
133 - NÃO ME DEIXAM COMER
Marcha faminta. 1932. Ed. Mangione
Pinto Filho com Gente da Mangueira Parlophon 13.405 - 78 1932 1932
134 - NÃO MORRE TÃO CEDO
Samba. 193...
Ensinada por Aracy de Almeida e Armênio
Mesquita Veiga aos autores
135 - NÃO QUERO MAIS
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nonô). Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
136 - NÃO RESTA A MENOR DÚVIDA
Marcha. 1935. Com Hervé Cordovil Ed. Mangione
Bando da Lua
Victor 34.008 - 78 1936 1936
Marlene com orquestra e coro Philips 6349.330 - LP 1977 1977
Não Tem Bandeira
Ver De Qualquer Maneira
137 - NÃO TEM TRADUÇÃO
Samba. 1933
Um contrato de gravação, da Odeon, cita erradamente Ismael Silva e Francisco Alves como co-
autores
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.057 - 78 1934 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1934 1970
Aracy de Almeida com Vero e sua
orquestra
Continental 16.319-78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 • - LP 1950 1967
Noel Rosa: Uma Biografia
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Odeon 10.927 - 78 1932 1932 The Pop's
Sinter 1.716 - LP 1957 1957 Odeon MOFB 3.640 • - LP 1932 1970 Equipe EQ 813 - LP 1966 1966
Marilia Baptista com orquestra Cristina Buarque de Hollanda e conjunto Banda do Canecão
NilserNS 1.011/1.012 - LP 1963 1963 instrumental Polydor LPNG 4.129 -LP 1967 1967
Tânia Maria (piano e vocal) com trio RCA Victor 1 030088 ~ LP 1974 1974 Elza Soares com
orquestra
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966 , , ..__ ___. , ",""",, Odeon MOFB 3.500 - LP 1967 1967
147 - ONDE ESTA A HONESTIDADE?
Helena de Lima com Quinteto
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Silvio Caldas com regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
João Nogueira com orquestra
Odeon SMOFB 3.887 * - LP 1975 1975
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
138-NEGA
Samba. 1931. Com Lamartine Babo Ed. Mangione
João de Barro com o Bando de Tangarás Parlophon 13.272 - 78 1931 1931
139 - NEGÓCIO DE TURCO
Tango. 193... Paródia de composição não
identificada
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
140 - NEM COM UMA FLOR
Samba. 1933. Com Francisco Alves Ed. Mangione
João Petra de Barras com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.976 - 78 1933 1933
141 - NO BAILE DA FLOR-DE-LIS
Samba. 193... Ed. Mangione
Aracy de Almeida Sinter 45-1007-Cp
142 - NOS TRÊS DIAS DE FOLIA
Samba. 1937
Ensinada por Creusa, filha de Cartola, aos
autores
143 - NUMA NOITE À BEIRA-MAR
Valsa. 1936. Ed. Mangione
Letra reproduzida no Jornal de Modinhas,
maio de 1936. Melodia perdida
144 - NUNCA DEI A PERCEBER
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco só está o nome
de Ismael. Na partitura, os dos três
Francisco Alves e Orquestra Copacabana Odeon 11.066 - 78 1933 1933
145 - NUNCA... JAMAIS
Samba. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa com Choro
Victor 33.488 - 78 1931 1931
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1931 1971
Tavinho Moura e Silvia Beraldo com
regional
Odeon 062.421221 - LP 1981 1981
146 - NUVEM QUE PASSOU
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves com Orquestra Copacabana
Samba. 1933
Noel Rosa com Turma da Vila Odeon 10.989 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.041 • - LP 1933 1958
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Beth Carvalho e conjunto Tapecar X-33 * - LP 1975 1975
Aracy de Almeida com conjunto Sinter 45.1007-Cp Philips P 630.410 L'-LP
148 - O ORVALHO VEM CAINDO
Samba. 1933. Com Kid Pepe Ed. Mangione
Almirante com Diabos do Céu Victor 33.734 - 78 1933 1933 RCA Camdem CALB 5.186 • - LP
1933 1968
Aracy de Almeida, Radamés e Orq. de Cordas, Trios Melodia e Madrigal Continental 16.393-78
1951 1951
Jorge Goulart com orquestra e coro Continental LPP 5 - Ip 1954 1954 Continental 1.19.405.032 - LP
1954 1977
Raul de Barros e seu conjunto Odeon MODB - Ip 1956 1956
Betinho e seu conjunto
Copacabana CLP 11.077 - LP 1958 1958
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.010 * - LP 1958 1958
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2.153 - LP 1962 1962
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 - LP 1962 1962
Sacha e seu conjunto
RCA Victor BBL-1.085 - LP 1962 1962
Simonetti e sua orquestra
RGE XRLP 5.167 - LP 1962 1962
Quarteto Excelsior Copacabana CLP 3.012 - Ip
Quarteto Excelsior
Copacabana SOLP 40.039 • - LP 1962
Marilia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214 - LP 1964 1964
Sambistas da Guanabara
Odeon MOFB 3.388 - LP 1964 1964
Sambistas da Madrugada
Copacabana CLP 11.380 - LP 1964 1964
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Carlos César e Demônios da Garoa Chantecler CMG 2.282 - LP 1968 1968
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR 33.010 • - LP 1968 1968
Marlene, Nuno Roland, Blecaute c/indio e conj. ao vivo Teat. Casa Grande MIS MIS 009 - LP 1968
1969
Xixa e seu conjunto
Premier PRLP 1.197 - LP 1971 1971
Banda do Rio e coro
Guarani LG 407/408 - LP 1972 1972
Os Imperiais do Ritmo
Continental SLP 10.087 - LP 1972 1972
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Djalma Pires com acompanhamento
instrumental
RGE 303.0016 - LP 1973 1973
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Mato e Morro
Copacabana SOLP 40.487 - LP 1974 1974
Conjunto Explosão do Samba CID 2.124-LP 1978 1978
Djalma Dias com orquestra
Marcus Pereira MPA 9.375 - LP 1978 1978
Grupo Roupa Nova
Fontana 6470.609 • - LP 1978 1978
Grupo Chapéu de Palha com orquestra Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1971
Maestro Portinho e banda Clack/WEA BR 83.006 - LP 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124 - LP
Caçulinha, seu órgão e seu conjunto Continental PPL 12.192 • - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Joe Pernambuco e ritmo Audiola A 200.018-LP
Mário Gennari Filho Imperial IMP 30.011 - LP
Scarambone e seu conjunto de dança RCA Victor BBL 1.002 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia37.118-LP
149 - PAGA-ME ESTA NOITE Fox-trot. C. 1934. Paródia de Tell me Tonight, de Mischa
Spoliansky Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
150-PALPITE
Marcha. 1932. Com Eduardo Souto
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.870 - 78 1932 1932
Odeon MOFB 3.640 - LP 1932 1970
151 - PALPITE INFELIZ
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Conjunto Regional RCA Victor
RCA Victor 34.007 - 78 1936 1936 Abril Cultural MPB 01 - Ip 1936 1970 Abril Cultural HMPB 08 -
Ip 1936 1977
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com violão, baixo e pandeiro Victor 34.794 - 78 1941 1941
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.008 - Ip 1946 1955
RCA Victor 80.0515 - 78 1946 1947
Aracy de Almeida com Quarteto
Continental
Continental 16.317 - 78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 • - LP 1950 1967
José Luciano, seu piano e ritmo Mocambo LP 10.004 - Ip 1954 1954
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BBL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem CALB
5.130 * - LP 1955 1967
Os Namorados
Sinter267-78 1955
RCA Camdem CALB 5.095 - LP 1955 1'966
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.050 - Ip 1956 1956
Francisco Egidío com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Agostinho dos Santos com Simonetti e
orquestra
RGE XRLP 5.057 - LP 1959 1959
Roberto Silva e conjunto
Copacabana SOLP 40.039 * - LP 1959 1962
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Jacob do Bandolim
RCA Camdem - LP 1963 1979
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214 - LP 1964 1964
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 L - LP 1965 1965
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
The Pop's
Equipe EQ 813 * - LP 1966 1966
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 • - LP 1968 1968
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp 1968 1968
Marlene com índio e seu conjunto, ao vivo
Teatro Casa Grande
MIS MIS 009-LP 1968 1969
Conjunto Nosso Samba
Beverly BPL 80.738 - LP 1969 1969
Helena de Lima e quinteto da Boate Drink RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Silvar e seu conjunto
Bemol BMLP 80.035 - LP 1969 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 849 - LP 1970 1970
Mane do Cavaco (cavaquinho) com
conjunto
RCA Victor 103.0068 * - LP 1973 1973
Os Três Moraes
Continental SLP 10.104-LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues, Samba Som Sete e
Nelsinho (trombone)
Equipe XPTO 1 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Miltinho, ao vivo
Premier 3.073.186 * - LP 1973
Conjunto DRT'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
Manuel da Conceição (violão)
RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Orquestra
GTA COLP 12.087 - LP 1977 1977
Dom Pedrotti e sua orquestra
IBC Discos LE 100.010 - LP 1979 1979
Turma do Arco da Velha
GTA GTALP 061 - LP 1979 1979
Baden Powell (violão), com baixo, bateria e
percussão
Imagem 4.015 - LP 1982 1986
Imperiais do Ritmo com orquestra Continental 1.07.405.060
Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia37.118-LP
152 - PARA ATENDER A PEDIDO
Samba. 193... Ed. Mangione
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
153 - PARA BEM DE TODOS NÓS
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Grande Othelo, Marilia Pera, Caola, Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP
1985 1986
154 - PARA ME LIVRAR DO MAL
Samba. 1932. Com Ismael Silva Ed. Mangione
Chico Viola com Gente Boa Odeon 10.922 - 78 1932 1932 Odeon MOFB 3.507 * - LP 1932 1967
Ismael Silva com orquestra e coro Sinter 1.055-Ip 1955 1955 Sinter SLP 1.774 * - LP 1955
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor LPNG 4.014 * - LP 1958 1958
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro com
regional
Philips P 632.788 L * - LP 1965 1965
Ismael Silva com Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Originais do Samba
Abril Cultural-Ip 1970 1970
Doris Monteiro, Miltinho e orquestra Odeon SMOFB 3.680 - LP 1971 1971
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 * - LP 1973 1973
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Elza Soares e Miltinho com orquestra Odeon MOFB 3.540 - LP
155 - PASTORINHAS
Marcha-rancho. 1934. Com João de Barro Ed. Mangione
Ver boxe De Linda Pequena a Pastorinhas, no Capitulo 33
João Petra de Barros com orquestra Odeon 11.281 -78 1935 1935 Fenab 104/105 - LP 1935 1982
Sílvio Caldas com Orquestra de Napoleão
e seus Soldados Musicais
Odeon 11.567 - 78 1937 1938
Odeon 12.976 - 78 1937 1950
Abril Cultural MPB 09 - Ip 1937 1970
Abril Cultural HMPB 24 - Ip 1937 1977
Odeon MOCB 3.025 - - LP 1937 1958
Orquestra Odeon dirigida por Simon
Bountmann e coro
Odeon 11.634-78 1938
Francisco Scarambone (piano) Odeon 11.756 - 78 1938 1939
Aurora Miranda e Bando da Lua (4) Odeon 283.627 - 78 1941 1942 Chantecler (MCA) 4.07.404.099
- LP 1941 1975
Alcides Gerardi com orquestra Odeon MODB 3.021 - Ip 1955 1955
Orquestra de Severino Filho e coro Polydor 117-78 1955 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com
ritmo e coro
Odeon 14.089 - 78 1956 1956
Cauby Peixoto com orquestra
RCA Victor BPL 3.033 - Ip 1956 1957
RCA Camdem CALB 5.192 * - LP 1956 1969
Solon Salles e seu conjunto Odeon MODB 3.030 - Ip 1956 1956
Banda de Música do Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara Odeon 14.282 - 78 1957 1957
Odeon MOFB 3.000 * - LP 1957 1957
Noel Rosa: Uma Biografia
Gaúcho e seu conjunto
Rádio 0049 GV - LP 1957 1957
Lyra de Xopotó
Sinter575-78 1957 1957
Sinter SLP 1.707 * - LP 1957 1957
Fafá Lemos e Luiz Bonfá
Odeon MOFB 3.047 - LP 1958 1958
Carlos José com orquestra
Odeon MOFB 3.114 * - LP 1959 1959
Cópia e seu conjunto
Festa LDV 6.007 - LP 1959 1959
Luiz Arruda Paes e sua orquestra Odeon BWB 1,095 - Cp 1959 1959
Orquestra RGE dirigida por Simonetti RGE XRLP 5.059 • - LP 1959 1959
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental LPP 3.076 * - LP 1959 1969
Banda Real de Momo
Plaza 45.004 - Cp 1960 1960
Plaza PZ 302 - LP 1960 1960
Edu da Gaita com RadamèS Gnattali e seu
sexteto
Odeon BWB 1.154 - Cp 1960 1960
Odeon MOFB 3.200 - LP 1960 1961
Ivan Casanova e seus conjuntos Imperial IMP 30.024 - LP 1960
Aracy Barbosa
Odeon MOFB 3.261 - LP 1961 1961
Aloysio Figueiredo e seu conjunto Copacabana SOLP 40.039 • - LP 1962 1962
Luiz Bonfá (violão) com contrabaixo,
bateria e percussão
Odeon SMFB 3.295 - LP 1962 1962
Pequenos Cantores da Guanabara Philips P 630.499 - LP 1962 1962
Corpo Musical da Guarda Civil do Estado
de São Paulo
Chantecler CMG 2.269 - LP 1963 1963
Dom Pacheco y sus Muchachos Copacabana 40.165 - LP 1963 1963
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Coral de Ouro Preto
Polydor LPNG 4.094 - LP 1964 1964
Cipó e Academia de Samba Imperial Imperial IMP 30.077 - LP 1965 1965
Maestro Cipó, grupo rítmico e coro London 064.42.810 - LP 1965 1965
Nanai e seu conjunto, ao vivo Musidisc HiFi 2.130 - LP 1965 1966
Onéssimo Gomes com Orquestra e Coro
Musidisc
Musidisc HiFi 2.127 - LP 1965 1965
Osvaldo Fakel
RCA Victor BBL 1.377 - LP 1966 1966
The Pop's
Equipe EQ 811 • - LP 1966 1966
Anjos do Sol
Guarani G-503 - LP 1967 1967
Helena de Lima e a Banda da Policia Militar do Estado da Guanabara RGE XRLP 5.318 - LP 1967
1967
José da Conceição (violão)
Farroupilha LPFA 424 - LP 1987 1967
Orquestra e Coro no Baile de Carnaval do Teatro Municipal Sideral/Rosemblit LP 40.375 -LP1967
1967
A Nossa Turma
Parlophone PBA 13.015 - LP 1968 1969
Bandinha Psicodélica
Continental PPL 12.363 - LP 1968 1968
Nuno Roland com índio e seu conjunto, ao vivo no Teatro Casa Grande MIS MIS 009-LP 1968 1968
Banda da Saudade
RCA Victor BBL 1.518 - LP 1969 1969
Os Populares
RCA Victor BBL 1.481 - LP 1969 1969
Elizeth Cardoso e Banda do Sodré, ao vivo Copacabana CLP 11.626 • - LP 1970 1970
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
João de Barro com orquestra e coro RCA Victor 103.0054 * - LP 1972 1972
Banda do Canecão
Polydor 2.939.101/2/3 * - LP 1973 1973
Dalva de Oliveira com orquestra Odeon XSMOFB 3.758 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Conjunto DTR'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
Os Três Moraes com orquestra Continental 1.01.404.115 - LP 1975 1975
Sílvio Caldas com orquestra, ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 403.6074 * - LP 1975 1975
Banda da Saudade
Philips 6349.316 - LP 1977 1977
Banda de Ipanema
RCA Victor 103.0197 - LP 1977 1977
Cláudio Moreno com orquestra
Marcus Pereira MPA 9.374 - LP 1977 1977
As Melindrosas
Copacabana COMLP 25.040 - LP 1978 1978
Grupo dos Foliões
Esquema 1.239.107 • - LP 1978 1978
Orquestra e coro dirigidos por José
Menezes
Soma 409.6027 - LP 1978 1978
Superbigband
Continental 1.07.405.130 - LP 1978 1978
A Patotinha com orquestra
RCA Victor 107.0300 • - LP 1979 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Grande Banda do Chopp CID 4 050 •- LP 1979 1979
Manuel da Conceição (violão) com ritmo Musiquim LPM-MC-002 - LP 1979 1979
Banda do Povo
CBS 104.493 - LP 1980 1980
Carlinhos Polidoro com orquestra
CID 4.103-LP 1980 1980
Coral dos Empregados da Petrobrás com
percussão
Petrobrás P-001 - LP 1980 1980
Ivanildo (sax) e conjunto
CID 4.079-LP 1980 1980
Banda Carnavalesca Cidade Maravilhosa Philips 6328.304 - LP 1981 1981
Bloco Pierrôs e Colombinas
Som Livre 403.6245 - LP 1981 1981
Emilinha Borba e Jorge Goulart com
conjunto e coro
Continental 1.07.405.228 - LP 1981 1982
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326 - LP 1982
Samba Livre
Soma 409.6063 - LP 1983
Orquestra e coro
SECC 1.000 - LP 1985 1985
Conjunto Maracangalha Philips 4-5022 - LP
Discomomo Band Continental 1.04.405.264 - LP
Enrico Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.018 - Ip
Evandro
CID 14.017-LP
Fernando Gallo, seu piano, orquestra e
coral
Banco do Brasil s/n
Nelson Gonçalves com conjunto RCA Camdem 107.0084 - LP
Orquestra de Estúdio Som SOLP 40.128-LP
Orquestra e coro Esquema 1.239.077 - LP
Peruzzi e sua orquestra Paladium 2.008 - LP
Sem identificação Oba/CID 16/17/18/19-LP
156 - PELA DÉCIMA VEZ
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida, Geraldo Medeiros, seu conjunto e Bolinha (piano) Odeon 12.804 - 78 1947 1947
Odeon 13.206 - 78 1947 1952 Fenab 104/105 - LP 1947 1982
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Dalva de Oliveira com orquestra
Odeon XSMOFB 3.844 • - LP 1967 1974
Creusa Cunha com orquestra CBS 104.466 - LP 1979 1979
Cristina Buarque com conjunto Ariola 201.628-LP 1981 1981
Lucinha Araújo com orquestra
RCA Victor 103.0552 - LP 1982 1982
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
157 - PELA PRIMEIRA VEZ
Samba. 1936. Com Christovam de Alencar Ed. Mangione
Orlando Silva e conjunto regional RCA
Victor
Victor 34.061 -78 1936
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1936 1967
Orquestra Rádio
Rádio LP 1 -Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 * - LP 1966 1966
158 - PERDÃO, MEU BEM
Samba. 193... Com Ernani Silva Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
159 - PERDOA ESTE PECADOR Fox-trot. 1935. Com Arnold Glückmann Da operela A Noiva do
Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
160 - PERNA BAMBA
Samba. 1930. Com Renato Murce Citada pòr Renato Murce em depoimento aos autores Melodia
perdida
161 - PESADO 13
Tango. 1931. Paródia de El Penado 14, de Agustin Magaldi, Pedro Noda e Carlos Pesce
Paulo Netto de Freitas e conjunto típico Parlophon 13.369 - 78 1932 1932
162-PICILONE
Samba tonético. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e João de Barro com Bando de
Tangarás
Parlophon 13.344 - 78 1931 1931
163 - PIERROT APAIXONADO
Marcha. 1935. Com Heitor dos Prazeres Ed. Mangione
Joel e Gaúcho com Diabos do Céu RCA Victor 34.012 - 78 1936 1936 RCA Camdem CALB 5.109 -
LP 1936 1967
Fernando Alvarez com La Falce e sua
orquestra
Victor 34.836 - 78 1941 1941
Jorge Goulart, orquestra e coro Continental LPP 5 - Ip 1954 1954
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.009 - Ip 1955 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com
ritmo e coro
Odeon 14.089 - 78 1956 1956
Joel e Gaúcho com orquestra e coro Victor BBL 1.217 • - LP 1962 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Cipó e Academia de Samba Imperial Imperial IMP 30.007 • - LP 1965 1965
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD-1. 142 - Cp 1965 1966
Bossa 4
Equipe EQ 815-LP 1967 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e a Banda do Sodré, ao
vivo
Copacabana CLP 11.626* - LP 1970 1970
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Joel de Almeida com orquestra Odeon SMOFB 3.821 - LP 1973 1973
Conjunto DTR'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
As Melindrosas
Copacabana M COMLP 25.040 - LP 19781978
Martinho da Vila com orquestra RCA Victor 110.0020 - LP 1979 1979
Samba Livre
Soma 409.6034 - LP 1979 1979
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326 - LP 1982
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124 - LP
Evandro CID 14.017
Grupo dos Foliões Esquema 1239.117 - LP
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.730-LP
Neyde Fraga
Odeon MODB 3.030 - Ip
Pisou no Meu Calo Ver Você é um Colosso
164 - POR CAUSA DA HORA
Samba. 1931
Noel Rosa com Choro
Victor 33.488 - 78 1931 1931
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1931 1971
165 - POR ESTA VEZ PASSA
Samba. 1931
I. G. de Loyola com Conjunto Vozes do
Outro Mundo
Parlophon 13.288 - 78 1931 1931
166 - POR VOCÊ SOU CAPAZ
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo
Melodia perdida
167-POSITIVISMO
Samba. 1933. Com Orestes Barbosa Ed. Mangione
Noel Rosa com Pixinguinha e sua
orquestra
Columbia 22.240 - 78 1933 1933
Continental LPP 19 - Ip 1933 1955
Abril Cultural MPB 23 - Ip 1933 1971 Abril Cultural HMPB 39 - Ip 1933 1978 Disco Lar LPDS
32.051 * - LP 1933 1969
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 - LP 1981 1981
168-PRA ESQUECER
Samba. 1933. Ed. Mangione
Francisco Alves com Turma da Vila Odeon 11.017 - 78 1934 1934 Odeon MOFB 3.640 * - LP 1934
1970
Francisco Alves com orquestra Odeon 13.290 - 78 1952 1952 Odeon MOFB 3.432 - LP 1952 1965
Marllia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 -Ip 1953 1953
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Solon Salles
Odeon MOFB 3.286 • - LP 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Clara Nunes
Odeon MOFB 3.557 * - LP 1968 1968
Tavinho Moura com regional Odeon 062.421221 - LP 1981 1981
Noite Ilustrada com orquestra Tapecar LPX 39 * - LP
169 - PRA LÁ DA CIDADE
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo
Melodia perdida
170-PRA QUE MENTIR?
Samba. 1937. Com Vadico. Ed. Mangione
Sílvio Caldas com Fon-Fon e sua orquestra
Victor 34.413 - 78 1939 1939
RCA Camdem CALB 5.032 • - LP 1939 1961
Aracy de Almeida com Radamés e sua Orquestra de Cordas Continental 16.391 --78 1951 1951
Continental LPP 6 - Ip 1951 1954 Continental LPK 20.018 * - LP 1951 1967
Rosana Toledo com orquestra RGE XRLP 5.160 - LP 1962 1962
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD-1.142 - Cp 1965 1966
RCA Victor BBL 1.433 * - LP 1968 1968
Terra Trio
Elenco ME 55 - LP 1969 1969
MPB 4 com Paulo Moura
Philips 6349.092 * - LP 1974 1974
Paulinho da Viola (violão e vocal) Odeon SMOFB 3.890 - LP 1975 1976
Paulinho da Viola com César Faria (violão) Odeon SXMOFB 3.924 * - LP 1976 1976
Roberto Sion (sax-alto) com orquestra Eldorado 17.79.0337 " - LP 1979 1979
Noel Rosa: Uma Biografia
Fats Elpidio (piano) com acompanhamento
rítmico
RCA Victor BPL 4 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Musidisc M-15.020-78
Mozar (piston) e Walter (sax-tenor) com
orquestra
Odeon MOFB 3.037 - LP
171 - PRATO FUNDO
Marcha. 1933. Com João de Barro
Almirante com Grupo da Guarda Velha
RCA Victor 33.623 - 78 1933 1933
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1933 1971
172 - PRAZER EM CONHECÊ-LO
Samba. 1932. Com Custódio Mesquita
Mário Reis com Gente Boa Odeon 10.943 - 78 1932 1932 Fenab 104/105 - LP 1932 1982
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas e Nilton
Rodrigues (trompete)
Funarte 599.404.075 - LP 1986 1987
173 - PRECAUÇÃO INÚTIL
Valsa. 1935. Paródia de Boneca, de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral Da opereta O Barbeiro de
Niterói
174 - PREGANDO NO DESERTO
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nonô). Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
175-PRIMEIRO AMOR
Samba. 1932. Com Ernani Silva
Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não
no selo da primeira gravação
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.957 - 78 1933 1933 Odeon MOFB
3.363 - LP 1933 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.559 * - LP 1966 1966
176 - PROEZAS DE SEU FULANO
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
177-PROVEI
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com Conjunto Regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.422 - 78 1936
1936 Odeon MOFB 3.041 - LP 1936 1958
Marília Baptista com orquestra e coro Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Sambistas da Guanabara
Odeon SMOFB 3.388 - LP 1964 1964
Sambistas do Asfalto
Prestige DLP 1.011 * - LP 1968
Nora Ney e Jorge Goulart com orquestra Som Livre 403.6134 - LP 1977 1977
Grupo Rumo Independente-LP 1981 1981
178-0 PULO DA HORA
Samba. 1931
Noel Rosa com conjunto Parlophon 13.350 - 78 1931 1931
179 - QUAL A RAZÃO?
(?). 193... Com Hélio Rosa. Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
180 - QUAL FOI O MAL QUE EU TE FIZ?
Samba. 1932. Com Cartola. Ed. Mangione O nome de Noel não está no selo do disco, nem na
partitura. Co-autoria atribuída pòr Cartola em entrevista a Lena Frias, Jornal
do Brasil, 8 de outubro de 1976
Francisco Alves e Orquestra Odeon Odeon 10.995 - 78 1933 1933
181 - QUANDO O SAMBA ACABOU
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 11.003 - 78 1933 1933
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter 076-78 1951 1951
Marília Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BBL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor 583.0000 - Cp
1955 1956 RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1955 1967
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
Leal Brito e seu piano
Sinter SLP 1.716 • - LP 1957 1957
Silvio Caldas e Conjunto Regional de
Canhoto
Columbia LPCB 70.001 - LP 1958 1958
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Noite Ilustrada com orquestra Philips P 632.164 L - LP 1963 1963
Mário Reis e orquestra
Elenco ME-22 * - LP 1965 1965
Mário Reis e orquestra
Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1965 1977
Ataulfo Alves com regional
Polydor LPNG 44.013 - LP 1967 1967
MPB 4
Fontana 6.641.559 " - LP 1976
Vânia Carvalho com orquestra CBS 138.082 - LP 1978 1978
Lúcia com acompanhamento Somil LPS 405 - LP 1980 1981
182 - QUANDO PELAS AULAS ANDO
Canção. 1927. Paródia de Yes, Sir, Thafs
My Baby, de Walter Donaldson e Gus
Kahn
Ensinada por Lauro de Abreu Coutinho
aos autores
183 - QUANTOS BEIJOS
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com Reis do
Ritmo
Victor 34.140 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.187 - LP 1936 1968
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Grupo Rumo
Independente-LP 1981 1981
184 - QUE A TERRA SE ABRA
Marcha. 1935. Paródia de Idem, de Hervê
Cordovil
Citada por Almirante em No Tempo de
Noel Rosa
185 - QUE BAIXO
Marcha. 1936. Com Nássara Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Conjunto Regional
RCA Victor
Victor 34.007 - 78 1936 1936
Que Bom, Felicidade, Que Vai Ser Ver Felicidade
186 - O QUE É QUE VOCÊ FAZIA?
Marcha. 1935. Com Hervê Cordovil Ed. Mangione
Carmem Miranda com Grupo Odeon Odeon 11.324 - 78 1936 1936
Grupo Rumo
Independente 1-15.101.135-Cp 1983 1984
Que Horas São? Ver O Pulo da Hora
187 - QUE ORGULHO É ESTE?
Samba. 193... Com Alfredo Lopes Quintas. Partitura manuscrita pertencente ao Arquivo Almirante
188-QUE SE DANE
Samba. 1931. Com Jota Machado
Leonel Faria com Orquestra Columbia Columbia 22.101 - 78 1932 1932
189 - QUEIMEI TEU RETRATO
Samba-canção. 193... Com Henrique Britto
Linda Rodrigues com Radamés Gnatalli e sua orquestra
Continental 17.279 - 78 1956 1956
Queixumes Ver Meu Sofrer
190 - QUEM DÁ MAIS?
Samba-humorlstico. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa com Orquestra Copacabana Odeon 10.931 - 78 1932 1933 MIS MP 001 -LP 1932 1965
Eliana Pittman com orquestra
RCA Victor 103.0084 • - LP 1974 1974
Vanja Orico com regional Seta 080.027 - LP 1981 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Quem Muito Corre
Ver De Qualquer Maneira
191 - QUEM NÃO DANÇA
Samba. 1932. Ed. Mangione
Noel Rosa e Ismael Silva com Gente Boa Odeon 10.953 - 78 1933 1933 Imperial MPB 30.205 - LP
1933 1971
192 - QUEM NÃO QUER SOU EU
Samba. 1933. Com Ismael Silva
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.057 - 78 1934 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1934 1970
Conjunto Coisas Nossas com orquestra e
coro
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
193 - QUEM PARTE NÃO PARTE SORRINDO
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo
Melodia perdida
194 - QUEM RI MELHOR
Samba. 1936. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marllia Baptista com Reis do
Ritmo
Victor 34.140 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.187 - LP 1936 1968
Abril Cultural MPB 01 - Ip 1936 1970
Marllia Baptista com Orquestra Rádio e trio
vocal
Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Lygia com orquestra
RGE XRLP 5.232 - LP 1964 1964
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
Ritmo e Vozes
Odeon SC 10.008 - LP 1973 1973
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
195 - QUERO FALAR COM VOCÊ
Samba. 1932. Com Lauro dos Santos (Gradim)
João Petra de Barras com Gente Boa Odeon 10.950 - 78 1932 1933
196-RAPAZ FOLGADO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional
RCA Victor
Victor 34.368 - 78 1938 1938
RCA Camdem 5.026 • - LP 1938 1961
Francisco Egldio e orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
197 - A RAZÃO DÁ-SE A QUEM TEM
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.939 - 78 1933 1933 Odeon
MOFB 3.640 • - LP 1933 1970
Ismael Silva, Conjunto Samba Autêntico e
Carlos Poyares (flauta)
Polydor LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Elza Soares e Roberto Ribeiro com
orquestra
Odeon SBRXLD 12.324 - LP 1972 1972
198-REMORSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Marllia Baptista com orquestra Musidisc DL 1.015 - Ip 1954 1954 Musidisc 2.060 HiFi - LP 1954
1962
199 - RETIRO DA SAUDADE
Marcha-rancho. 1934. Com Nássara
Carmem Miranda e Francisco Alves com
Diabos do Céu
RCA Victor 33.827 - 78 1934 1934
Conjunto Coisas Nossas com orquestra e
Adriana Rodrigues (vocal)
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
200 - RIR
Samba. 1932. Com Cartola e Francisco Alves. Ed. Vitale
No Selo do disco e em partitura, autoria atribuída a José de Oliveira. Em Harmonia, apenas Noel,
Cartola e Francisco
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.939 - 78 1933 1933
201 - RISO DE CRIANÇA
Samba. 1930. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Pixinguinha e
Orquestra Columbia
Columbia 8.107 - 78 1934 1934
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
202 - ROUBOU, MAS NÃO LEVA
Marcha. 1935. Paródia de Ganhou Mas Não Leva, de Benedicto Lacerda e Nilton Amaral. Da opereta
Ladrão de Galinha
203 - RUMBA DA MEIA-NOITE
Rumba. 1931. Com Henrique Vogeler
Dina Marques e Nenéo das Neves com
Conjunto Columbia
Columbia 22.073 - 78 1931 1931
204 - SABER AMAR
Samba. 1935. Com Alfredo Lopes Quintas. Partitura manuscrita pertencente ao Arquivo Almirante
205 - SALADA RUSSA
Embolada. 1930. Com Renato Murce Citada por Renato Murce em depoimento aos autores Melodia
e letra perdidas (parcialmente)
206 - SAÍ DA TUA ALCOVA
Canção. 193...
Ensinada por Nássara aos autores
Melodia e letra perdidas (parcialmente)
207 - SAI DO PRESÍDIO
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo Melodia perdida
208 - SAMBA DA BOA VONTADE
Samba. 1931. Com João de Barro Ed. Mangione
Noel Rosa e João de Barro com Bando de
Tangarás
Parlophon 13.344 - 78 1931 1931
Conjunto Coisas Nossas com
orquestra e coro
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Santa Padroeira
Ver De Qualquer Maneira
209 - SÃO COISAS NOSSAS
Samba. 1932. Ed. Mangione
Noel Rosa acompanhado pelo seu Grupo Columbia 22.089 - 78 1932 1932 Continental LPP 19 - Ip
1932 1955 Continental LPK 20.002 " - LP 1932 1967
Aracy de Almeida e orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK 20.018 * - LP
1955 1967
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas
Independente LPCN 001 - LP 1980 1980
210 - SE A SORTE ME AJUDAR
Samba. C. 1934. Com Germano Augusto
Coelho
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria atribuída por Zé Pretinho
em depoimento aos autores
Aurora Miranda e João Petra de Barras
com Orquestra Odeon
Odeon 11.130 - 78 1934 1934
211 - SÉCULO DO PROGRESSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade
Victor 34.296 - 78 1937 1938
RCA Camdem 5.026 * - LP 1937 1961
Isaura Garcia com regional
RCA Victor 800.409 ->8 1945 1946
RCA Camdem CALB 5.208 - LP 1945
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Isaura Garcia e orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968
Elizeth Cardoso com conjunto Copacabana COLP12.335/6-LP 1978 1978
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.211 - LP
212 - SEI QUE VOU PERDER
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nonô ) e Alfredo Lopes Quintas O nome de Noel não está no
selo do disco. Co-autoria atribuída por Almirante em No Tempo de Noel
Rosa
Francisco Alves com Turma da Vila Odeon 11.017 - 78 1933 1933
213-SEJA BREVE
Samba. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa: Uma Biografia
João Petra de Barros, Luís Barbosa e Custódio Mesquita (piano) (5) Victor 33.701 - 78 1933 1933
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
214-SEM TOSTÃO
Samba. C. 1932. Com Arthur Costa
Arthur Costa com Orquestra Columbia Columbia 22.101 - 78 1932 1932
Sem Tradução
Ver Não Tem Tradução
215-SEU JACINTO
Marcha. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa e Ismael Silva com Gente Boa Odeon 10.953 - 78 1933 1933 Imperial IMP 30.205 - LP
1933 1971
Seu Riso de Criança Ver Riso de Criança
216-SEU ZÉ
Valsa. 1935. Paródia de Boneca, de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral. Variação de Precaução Inútil
217 - SILÊNCIO DE UM MINUTO
Samba. 1935. Ed. Mangione
Marília Baptista
Victor 34.604 - 78 1940 1940
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1940 1967
Aracy de Almeida com Radamés e sua Orquestra de Cordas Continental 16.391 - 78 1951 1951
Continental LPP 6 - Ip 1951 1954 Continental LPK 20.018 * - LP 1951 1967
Nelson Gonçalves
RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor 583.0000 - Cp 1955 1956 RCA Camdem CALB
5.095 * - LP 1955
Zaíra Rodrigues com orquestra Odeon 14.047 - 78 1956 1956
Britinho (piano) e conjunto
Sinter SLP 1.712 * - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Maria Bethânia e Carlos Castilho (violão)
RCALCD 1.142-Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 • - LP 1965 1968
Arthur Moreira Lima (piano) e orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Fafá Lemos e seu trio RCA Victor BPL 7 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc M 15.020-78
Musidisc MV 005 - Ip
218-SINHÁRITINHA
Canção sertaneja. 1931. Com Moacyr Pinto Ferreira. Ed. Mangione
Paulo Netto de Freitas e Bando de
Tangarás
Parlophon 13.290 - 78 1931 1931
219 - SÓ PODE SER VOCÊ
Samba. 1935. Com Vadico. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional
RCA Victor
Victor 34.152 - 78 1937 1937
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem 107.0084 -
LP 1955
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Márcia com orquestra
Odeon SMOFB 3.789 * - LP 1973 1973
Adauto Santos com orquestra e coro MaVcus Pereira MPL 1.014 *-LP 1973
Dominguinhos (acordeom) com
acompanhamento
Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
Só por Contradição Ver Só pra Contrariar
220 - SÓ PRA CONTRARIAR
Samba. 1932. Com Manuel Ferreira Ed. Mangione
Almirante com Bando de Tangarás Parlophon 13.364 - 78 1931 1932
221 - SÓ VOCÊ
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo
Melodia perdida
222 - O SOL NASCEU PRA TODOS
Samba. 1933. Com Lamartine Babo. O nome de Noel não está em selo de disco, nem em partitura.
Co-autoria atribuída por Mário Reis em depoimento aos autores Ver detalhes
no Capítulo 27
Mário Reis com Diabos do Céu Victor 33.738 - 78 1933 1934 RCA Camdem CALB 5.107 * - LP
1933 1967
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
RCA Victor 107.0460 - LP 1957 1985
Solon Salles com Luiz Arruda Paes e sua
orquestra
Odeon 14.224 - 78 1957 1957
Odeon MOCB 3.024 - LP 1957 1958
Lamartine Babo com orquestra e coro dirigidos p/Carlos M. de Souza Sinter SLP 1.784 - LP 1959
1959 Trio Irakitan Odeon MDFB 3.211 - LP 1961 1961
Sílvio Caldas com orquestra
Copacabana CLP 11.661 "-LP1971 1971
Benedito Costa (cavaquinho) Phonodisc 0.34.405.002 - LP 1983 1983
223 - SORRINDO SEMPRE
Samba. O 1933. Com Lauro dos Santos (Gradim), Ismael Silva e Francisco Alves Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não no sele do disco onde apenas Gradim figura como autor
João Petra de Barros com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.031-78 1933 1933
224 - SUSPIRO
Samba. 193... Com Orestes Barbosa. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e conjunto Sinter 45.1007-Cp Philips 630.410-LP
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968 1968.
225 - TARZAN (O FILHO DO ALFAIATE)
Samba-choro. 1936. Com Vadico
Ed. Mangione
Do filme Cidade Mulher
Almirante e Conjunto Victor
Victor 34.086 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.340 * - LP 1936 1971
Zezinho com Vadico e seu regional Continental 17.188-78 1955 1955
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
226 - TENENTES DO DIABO
Marcha discursada. 1932. Com Visconde de Bicohyba e Henrique Vogeler
Ildefonso Norat com Fanfarra dos Tenentes Columbia 22.098 - 78 1932 1932
227 - TENHO RAIVA DE OUEM SABE
Samba. 1934. Com Zé Pretinho e Kid Pepe O nome de Noel não está no selo do disco. Co-autoria
atribuída por Zé Pretinho em depoimento aos autores
Mário Reis com Diabos do Céu
RCA Victor 33.802 - 78 1934 1934
RCA Camdem CALB 5.189 - LP 1934 1968
228 - TENHO UM NOVO AMOR
Samba. 1932. Com Cartola. Ed. Mangione O nome de Noel não está no selo do disco ou em partitura.
Co-autoria atribuída por Cartola em entrevista a Lena Frias, Jornal
do Brasil, 8 de outubro de 1976
Carmem Miranda com Grupo da Guarda
Velha
Victor 33.575 - 78 1932 1932
229 - TEU CORPO É UM VIOLÃO
Samba. 1936. Com Noel Villaça (pseud. César Ladeira)
Citada na revista Carioca, abril de 1936. Melodia e letra perdidas
230 - TIPO ZERO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Da opereta A Noiva do Condutor
Marília Baptista com orquestra Musidisc M 50.046 - 78 1954 1954 Musidisc DL 1.015 - Ip 1954
1954 Musidisc 2.060 HiFi - LP 1954 1962
Ana de Holanda com orquestra Eldorado 30.800.350 - LP 1980 1980
Grande Othelo e Conjunto Coisas Nossas Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
231 - TRÊS APITOS
Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Radamés e sua
Orquestra de Cordas
Continental 16.392 - 78 1951 1951
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter076-78 1951 1951
Trio Surdina
Musidisc LP 014 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA Victor LCD 1.142 - Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 * - LP 1965 1968
Abril Cultural MPB 01 - Ip 1965 1970
Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1965 1977
Aracy de Almeida com Conjunto de Roberto Menescal Elenco CE 25 - Cp 1966 1966 Elenco ME 34
- LP 1966 1966
Aracy de Almeida com orquestra Elenco CE 25 - Cp 1966 1966 Elenco ME 35 - LP 1966 1966
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG 4.121 - LP
1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio, ao
vivo
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Silvio Caldas
CBS 137.573 - LP 1968 1968
Helena de Lima com quinteto da
Boate Drlnk
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Nelson Gonçalves com orquestra
RCA Camdem CASB 5.310 * - LP 1971
MPB 4 com Paulo Moura
Philips 6349.092 * - LP 1974 1974
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Elizeth Cardoso com conjunto, ao vivo Som Livre 403.6227 - LP 1980 1981
Joyce com violão
Pointer 203.0020 - LP 1985 1985
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter SLP 1.004-Ip
Silvio Caldas Mocambo 3.123 - Cp
232 - TRISTE CUÍCA
Samba. 1934. Com Hervê Cordovil Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional de
Benedicto Lacerda
RCA Victor 33.927 - 78 1935 1935
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1935 1971
Aracy de Almeida com orquestra Elenco ME 35 * - LP 1966 1966
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968 1968
Titulares do Ritmo Copacabana CLP 11.121 - LP
233 - TUDO NOS UNE
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Marllia Pera, Grande Othelo, Caola, Oscar Bolão, Coisas Nossas e orq. Eldorado 106.86.0447 - LP
1985 1986
234 - TUDO PELO TEU AMOR
Samba-canção. 1935. Com Arnold
Glückmann
Da opereta A Noiva do Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra
Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
235 - TUDO QUE VOCÊ DIZ
Samba. 1933
Francisco Alves e Mário Reis com Gente Boa
Odeon 10.956 - 78 1933 1933 Odeon MODB 3.075 - Ip 1933
Uatch! Ver Atchim!
236 - ÚLTIMO DESEJO
Samba. 1937. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade Victor 34.296 - 78 1937 1938 RCA Camdem 5.026 * -
LP 1937 1961 Abril Cultural MPB 01 - Ip 1937 1970 Abril Cultural HMPB 08
- Ip 1937 1977
Isaura Garcia com regional
RCA Victor 800.409 - 78 1945 1946
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1945 1967
Aracy de Almeida com Francisco Sergi e sua orquestra
Continental 16.318 - 78 1950 1950 Continental LPP 6 - Ip 1950 1954 Continental LPK 20.018 * - LP
1950 1967
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor 583.0000 - Cp
1955 1956 RCA Camdem CALB 5.095 • - LP 1955
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 3.067 - Ip 1956 1956 Copacabana CLP 11.066 * -
LP 1956 1958
Leal Brito (piano) e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Roberto Luna
Odeon MOFB 3.286 - LP 1962
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor 800.678 - 78
RCA Victor BPL 3.032 - Ip
RCA Camdem CALB 5.031 - LP 1961
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 ) 963
Maria Bethânia e Carlos Castilho (violão)
RCA LCD 1.142 - Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 • - LP 1965 1968
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 * - LP 1968 1968
Maria Bethânia com Terra Trio, ao vivo Odeon MOFB 3.545 • - LP 1968 1968
Francisco Petrônio com Dilermando Reis Continental SLP 10.126 • - LP 1973 1973
Silvio Caldas com regional CBS 104.244 - LP 1973 1973
Wanderley Cardoso e orquestra Copacabana COLP 11.745 - LP 1973 1973
José Frazão e regional
Beverly COELP 40.917 - LP 1974 1974
Odete Amaral com Altamiro Carrilho e seu
conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Ângela Maria com orquestra Copacabana SOLP 40.423 * - LP 1975
Isaurinha Garcia com trio, ao vivo Odeon SMOFB 3.921 - LP 1976 1976
Quarteto em Cy e conjunto Philips 6349.180 * - LP 1976 1976
Maria Creusa com orquestra
RCA Victor 103.0251 • - LP 1978 1978
Carlos José
CBS 104.404 •-LP 1978
Inezita Barroso com Regional de Evandro Copacabana COLP 41.209 - LP 1979 1979
Nelson Gonçalves com regional RCA Victor 103.0341 - LP 1980 1980
Nilze Carvalho com regional CID 8.046-LP 1982 1982
Zezé Gonzaga e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
Aguinaldo Rayol com orquestra WM/Fermata 41.000 - LP 1983 1983
Jair Rodrigues com regional Philips 81.262.913 - LP 1983 1983
Marcos Resende (teclados) e Nivaldo
Ornelas (sax e flauta)
Barclay 821.377-1 - LP 1984 1984
Piano e conjunto (sem identificação) CID 8.068-LP 1984 1984
Nana Caymmi com Rafael Rabello e Hélio
Delmiro (violões)
EMI/Odeon 31C 064.422.949 - LP 1985 1985
Som Game (Karaokê: apenas
acompanhamento)
CID 4.166-LP 1985 1985
Moreira da Silva e orquestra
Top Tape TT 501.005 - LP 1986 1986
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Nora Ney
3M 3M4-0046 - LP 1987 1987
Afonso Maia com acompanhamento CID 4.129-LP
Carlos Alberto CID 8.072 - LP
Don Euclydes (piano) com orquestra CID 4.133-LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
José da Conceição (violão) Itamaraty ITAM 7.042 * - LP
Noel Rosa: Uma Biografia
Lauro Paiva e seu conjunto de dança Copacabana CLP 11.254 - LP
Onéssimo Gomes Relevo RV 208 - LP
Paulo Tito (violão) e percussão Tapecar TC 092 - LP
Silvar e seu regional Beverly BLP 80.092 - LP
Waldir Calmon e seu conjunto Rádio 0043
Uma Coisa Deixei Ver Uma Coisa Ficou
237 - UMA COISA FICOU
(?). 1933. Com Hervê Cordovil.
Citada em recibo de venda, a Enéas
Martins Barros, dos direitos sobre letra
musicada por Hervê Cordovil, em 31 de
julho de 1933
Pertencente ao arquivo de Tárik de Souza
238 - UMA JURA QUE EU FIZ
Samba. 1932. Com Ismael Silva e Francisco Alves
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.928 - 78 1932 1932 Abril Cultural MPB 12 - Ip
1932 1970 Abril Cultural HMPB 16 - Ip 1932 1977
Sílvio Caldas e Conjunto Regional de
Canhoto
Columbia LPCB 70.001 - LP 1958 1958
Roberto Silva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
239 - VAGOLINO DE CASSINO Fox-trot. 193... Paródia de Cheek to Cheek, de Irving Berlin
Ensinada por Fernando Pereira aos autores
240 - VAI HAVER BARULHO
Samba. 1933. Com Francisco Alves
Ed. Mangione
Melodia e letra perdidas
241 - VAI HAVER BARULHO NO CHATO
Samba. 1933. Com Walfrido Silva Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.977 - 78 1933 1933
Joel de Almeida com conjunto Odeon 13.859 - 78 1955 1955
Trio Surdina
Musidisc M 50.005 - 78 1955
Musidisc DL 1.007 - Ip 1955 1955
Britinho (piano) e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Dilermando Pinheiro com conjunto
Musidisc M 044 - Ip 1957 1957
RCA Camdem 107.9056 - LP 1957 1973
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 • - LP 1966 1966
Gasolina
Copacabana U726 - Cp 1968 1968
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Carioca e sua orquestra Rádio 0076-GV - LP
Carolina Cardoso de Menezes (piano) e
percussão
Odeon MOCB 3.002 - LP
Elza Soares e Miltinho com orquestra Odeon MOFB 3.540 - LP
José Menezes e seu conjunto Sinter SLP 1.722-LP
242 - VAI PARA CASA DEPRESSA
Samba. 1933. Com Francisco Mattoso Ed. Mangione
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
243 - VAIDOSA
(?). 1931. Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
244 - VEJO AMANHECER
Samba. 1933
Mário Reis acompanhado por Pixinguinha
e sua orquestra
Columbia 22.225 - 78 1933 1933
Noel Rosa e Ismael Silva Continental LPP 19 - Ip 1933 1955 Disco Lar LPDS 32.051 * - LP 1933
1969
Cristina e Piii Buarque com conjunto Ariola 201.608 - LP 1980 1980
245 - VERDADE DUVIDOSA
Samba. 193... Ed. Mangione
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 ? - LP 1963 1963
246 - VINGANÇA DE MALANDRO
(?). 1930. Ed. Mangione
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
Melodia perdida
Virgulino do Cassino Ver Vagolino de Cassino
247 - VITÓRIA
Samba. 1932. Com Romualdo Peixoto (Nonô). Ed. Mangione
Sflvio Caldas e Francisco Alves com
Diabos do Céu
Victor 33.657 - 78 1933 1933
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor 272 - 78 1958 1958 Polydor LPNG 4.014 - LP 1958
1958
Sflvio Caldas e Boêmios da Cidade CBS 37.142 - LP 1960 1960
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 *- LP 1966 1966
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Fats Elpldio
RCA Victor BPL 3.029 - Ip
248 - VOCÊ É UM COLOSSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Rosinha de Valença (vocal e violão) com
conjunto
Forma 103 VDU • - LP
Aracy de Almeida Sinter 45.1007-Cp
249 - VOCÊ FOI O MEU AZAR
Samba. 1931. Com Arthur Costa
Arthur Costa e Nenéo das Neves com Simão e Columbia Orquestra Columbia 22.076 - 78 1931 1932
Noel Rosa (2)
Matriz 131.284 - 78 1932
250 - VOCÊ, POR EXEMPLO
Marcha. 1933
Almirante com Diabos do Céu Victor 33.734 - 78 1934 1934
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Marlene com orquestra
Philips 6349.330 - LP 1977 1977
251 - VOCÊ SABE DE ONDE EU VENHO?
Canção. 1928. Paródia de A Casa da
Colina, r}(; P<jrlro Sí> W:r<:ira (: I ul'. Hoixcjto
Ensinada aos autores por Hermenegildo de Barros Filho
252 - VOCÊ SÓ... MENTE Fox-trot. 1933. Com Hélio Rosa
Aurora Miranda e Francisco Alves com Orquestra Odeon Odeon 11.043 - 78 1933 1933 Odeon
MOFB 3.640 - LP 1933 1970
Aurora Miranda com orquestra Sinter SLP 1.062 - Ip 1956 1956
Cristina, Miúcha e Piii Buarque com
conjunto
Continental 1.01.404.189-LP 1978 1978
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
253 - VOCÊ VAI SE QUISER
Samba. 1936. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marilia Baptista com regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.422 - 78 1936 1936
Odeon MOFB 3.041 • - LP 1936 1958 Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1936 1977
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170-LP 1981 1981
Miriam Batucada
Chantecler 2.08.404.057 - LP
Vadico
Continental LPP 37 - Ip
254 - VOLTASTE (PRO SUBÚRBIO)
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
255 - VOU FAZER UM SAMBA
Samba. 193... Com Russo do Pandeiro
Ed. Mangione
Melodia e letra perdidas
256 - VOU TE RIPAR I
Samba. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa
Parlophon 13.350 - 78 1931 1931
257 - VOU TE RIPAR II
Samba. 1930
Citada por Almirante na série de programas de rádio No Tempo de Noel Rosa. Ver Capitulo 13
258 - O X DO PROBLEMA
Samba. 1936. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.099 - 78 1936 1936 Continental 16.319 - 78 1950 1950 Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental 1.19.405.012 • - LP 1950 1975
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Leal Brito (piano) e seu conjunto Sinter SLP 1.712 * - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Regional de José
Menezes
RCA Camdem CALB 5.329 • - LP 1965 1965
Aracy de Almeida com Conjunto de
Roberto Menescal
Elenco ME 34 - LP 1966 1966
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755-LP
259 - YOLANDA
Samba. 1935.
Citada por Nelson Orsini em entrevista à
Última Hora, Belo Horizonte, 4 de maio de
1967
Yvone
Ver Picilone
Zélia Fortunata
Ver De Qualquer Maneira
(1) Gravação rejeitada por Noel Rosa. Disco de prova preservado por Almirante e lançado em LP em
1965.
(2) Disco de prova guardado por Eduardo Corrêa de Azevedo.
(3) O pianista, cujo nome não consta do selo, é Nonô.
(4) Gravado nos Estados Unidos.
(5) Noel assina com um anagrama: Leon.
TEATRO

(PEÇAS COM MÚSICAS DE NOEL ROSA)


DEIXA ESTA MULHER CHORAR (1931).
Revista dos Irmãos Quintiliano para o Teatro Nacional de Revistas. Elenco: Aracy Cortes,
Mesquitinha, Leli Morei, Èdith Falcão, Arthur Costa, Escola de Samba do
Salgueiro. Teatro Recreio, Rio de Janeiro, (estréia a 9 de janeiro de 1931). Músicas de vários autores.
A de Noel: Com Que Roupa?
COM QUE ROUPA? (1931).
Revista de Luis Peixoto para a Companhia Mulata Brasileira. Elenco: Rosa Negra, índia do Brasil,
João Felipe e mais quinze atores, cantores, dançarinos. Teatro República,
Rio de Janeiro (estréia a 23 de janeiro de 1931). Músicas de vários autores. A de Noel: Com Que
Roupa?
CAFÉ COM MÚSICA (1931).
Revista de Maciel Pereira, Leo Grim e Eratósthenes Frazão para a Companhia Nacional de Revistas.
Coreografia do professor Nemannoff. Direção musical de J. Cristobal.
Elenco: Aracy Cortes, ítala Ferreira, Mesquitinha, Luíza Fonseca, Affonso Stuart, Henriqueta Brieba,
Oscar Cardona. Teatro Recreio, Rio de Janeiro (estréia a 24
de abril de 1931). Músicas de vários autores. As de Noel: Gago Apaixonado, Com Que Roupa?, Eu
Vou Pra Vila, Malandro Medroso, Por Esta Vez Passa, Dona Aracy, Quem
Dá Mais? e Vaidosa.
MAR DE ROSAS (1931).
Revista de Velho Sobrinho e Gastão Penalva. Elenco: Margarida Max, Olga Bastos, Mesquitinha,
Affonso Stuart, Augusto Annibal, Theda Diamant, Silvio Caldas. Teatro
Recreio, Rio de Janeiro (estréia a 24 de julho de 1931). Músicas de vários autores. As de Noel: Mão
no Remo (com Ary Barroso), Mulata Fuzarqueira e Cordiais Saudações.
COM A LETRA A (1932).
Revista dos Irmãos Quintiliano para a Companhia Neves e Paschoal Segreto. Elenco: Aracy Cortes,
Olga Navarro, Grijó Sobrinho, Arthur Oliveira, Manoelino Teixeira,
Pedro Dias, Oswaldo de Almeida, Balbina Milano. Teatro João Caetano, Rio de Janeiro, (estréia a 15
de janeiro de 1932). Músicas de vários autores. A de Noel: Gosto
Mas Não É Muito (com Ismael Silva).
RIO FOLLIES (1936).
Revista de Jardel Jércolis, Geysa Bóscoli e J. Otaviano. Elenco: Oscarito, Nair Faria, Grande Othelo,
Manuel Vieira, Margot Louro, Juan Daniel, Mesquitinha, Emma
D'Ávila, Maria Costa. Teatro João Caetano, Rio de Janeiro (estréia a 2 de agosto de 1935). Músicas
de vários autores. A de Noel: O X do Problema, Emma D'Ávila, encerrando
com Oscarito o quadro de abertura.
NOEL SÓ NOEL (1976).
Espetáculo com textos, arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas. Teatro de Artes Israelita
Brasileiro, São Paulo (de 1 a 4 de abril de 1976). Músicas:
cerca de 25 composições de Noel Rosa.
SAMBA, PRONTIDÃO E OUTRAS BOSSAS (1976).
Série de cinco espetáculos distintos narrando a vida de Noel Rosa. Textos, arranjos e interpretações
do conjunto Coisas Nossas. Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro
(de 6 de agosto a 4 de setembro de 1976). Músicas: 77 composições de Noel Rosa.
HOJE NÃO É DIA DE ROCK (1976).
Condensação da série anterior. Textos, arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas.
Iluminação de Ziembinsky. Teatro Ipanema, Rio de Janeiro (de 21 de setembro
a 3 de outubro de 1976). Músicas: cerca de 30 composições de Noel Rosa.
O BARBEIRO DE NITERÓI (1977).
Comédia musical baseada na opereta radiofônica. Texto e montagem de Antônio Pedro e Flávio
Santiago. Cenografia de Gianni Ratto. Direção musical de Roberto Nascimento.
Elenco: André Villon, Jece Valadão, Jacyra Silva, Mário Ernesto, Flávio São Thiago, Lafayette
Galvão. Teatro Mesbla, Rio de Janeiro (estréia a 2 de março de 1977).
Músicas de Noel Rosa: Cordiais Saudações, O Orvalho Vem Caindo (com Kid Pepe), Filosofia (com
André Filho), Rapaz Folgado, Dama do Cabaré, Silêncio de um Minuto,
João-Ninguém, Pierrot Apaixonado (com Heitor dos Prazeres) e Onde Está a Honestidade?
O POETA DA VILA E SEUS AMORES (1977).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto
de Plinio Marcos. Direção de Osmar Rodrigues. Cenários e figurinos de Flávio Império. Iluminação
de Domingos. Coreografia de Carlinhos Machado e Marilene Silva.
Cenotécnica de Arquimedes. Elenco: Ewerton de Castro e mais 35 atores. Teatro Popular do SESI,
São Paulo (estréia a 4 de maio de 1977).
NOEL ASSIM... (1983).
Espetáculo de música e mímica em torno de climas e personagens do universo de Noel Rosa.
Pesquisa de Ana Maria. Coreografia de Luisa Monteiro. Direção musical do
violonista Paulo Vasconcelos. Elenco: Luisa Monteiro e Ana Maria. Gente da Noite, casa noturna de
Botafogo, Rio de Janeiro (maio de 1983). Músicas, temas vários
de Noel Rosa.
ROSA (1988).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto de Domingos de Oliveira a partir de pesquisa de Joaquim
de Assis. Direção de Domingos de Oliveira. Cenários de Danilo Gomes
e Domingos de Oliveira. Iluminação de Luis Paulo Neném. Figurinos de Rita Murtinho. Direção
musical de Tim Rescala. Elenco: Pedro Cardoso (Noel), Lucinha Lins, Nelson
Dantas, Cláudio Tovar, Zezé Polessa, Luisa Tome. Teatro Villa-Lobos, Rio de Janeiro (estréia a 4 de
maio de 1988). Músicas: composições de Noel Rosa intercaladas
com citações a temas de outros autores, entre os quais Villa-Lobos e Henrique Vogeler.
CINEMA/TELEVISÃO

FILMES COM MUSICAS DE NOEL ROSA


FILMES SOBRE NOEL ROSA
TELEVISÃO
ALÔ, ALÔ, CARNAVAL (1936).
Produção de Wallace Downey. Direção de Ademar Gonzaga. Argumento e roteiro de João de Barro e
Alberto Ribeiro. Fotografia de Afrodislaco de Castro, Antônio Medeiros,
Edgar Brasil e Victor Chiacchi. Som de Moacyr Fenelon. Cenografia de Emílio Casalegno, Ruy
Costa e Jota Carlos. Figurinos de Gustavo Dória. Elenco: Barbosa Júnior,
Jayme Costa, Cordélia Ferreira, Oscarito, Jorge Murad, Pinto Filho. Números musicais de Francisco
Alves, Mário Reis, Carmem e Aurora Miranda, Almirante, Lamartine
Babo, Luís Barbosa, Joel & Gaúcho, Linda e Dircinha Baptista, Irmãs Pagas, Alzirinha Camargo,
regional de Benedicto Lacerda, orquestras de Simon Bountmann e Hervê
Cordovil, Bando da Lua, Quatro Diabos. Músicas de vários autores. As de Noel: Não Resta a Menor
Dúvida (com Hervê Cordovil) e Pierrot Apaixonado (com Heitor dos
Prazeres).
CIDADE MULHER (1936).
Produção de Carmem Santos. Direção de Humberto Mauro. Argumento de Henrique Pongetti.
Fotografia de Manuel Ribeiro. Elenco: Jayme Costa, Mário e Zilka Salaberry,
Sara Nobre, Aída Isquierdo, Lourdinha Bittencourt, Aída Conceição, Aída Pongetti, Loia Silva, Mary
Kler. Números musicais de Orlando Silva, Joel de Almeida, Assis
Valente e seu Bando Carioca, Bibi Ferreira, José Vieira, Irmãs Pagas. Irmãos Abissínias, Irmãos
Amaro Músicas de vários autores. As de Noel: Morena Sereia e Na Bahia
(ambas com José Maria de Abreu), Tarzan, o Filho do Alfaiate (com Vadico), Cidade Mulher, Dama
do Cabaré e Numa Noite à Beira-Mar. Filmes mais recentes têm utilizado
músicas de Noel. Entre eles, Edu Coração de Ouro (1968), de Domingos de Oliveira: São Coisas
Nossas, na gravação original de Noel; Cabaré Mineiro (1981), de Carlos
Alberto Prattes Corrêa: Nunca Jamais e Pra Esquecer; e Memórias do Cárceres (1984), de Nelson
Pereira dos Santos: O Orvalho Vem Caindo.
CORDIAIS SAUDAÇÕES (1968).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Gilberto Santeiro. Preto & branco. 11 minutos.
NOEL POR NOEL (1981).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Rogério Sganzerla. Fotografia de Renato
Laclete. Narração de Grande Othelo. Colorido. 21 minutos e 21 segundos.
Muitos quadros e colagens têm. sido dedicados a Noel Rosa pela televisão. Incluindo uma
homenagem da TV Educativa por ocasião dos setenta anos de nascimento, o "apadrinhamento"
a Chico Buarque de Hollanda no Bar Academia da Rede Manchete e a dramatização de Pra Esquecer,
Cansei de Pedir, De Babado e Eu Sei Sofrer que Domingos de Oliveira
dirigiu para a Rede Globo, com interpretações de Deborah Duarte e Carlos Vereza, levada ao ar no
Fantástico de 4 de janeiro de 1981. Mas, em termos de superprodução,
com textos e números musicais próprios, em vez de mera colcha de retalhos, a presença de Noel na
televisão se limita a uma:
NOEL ESPECIAL (1975).
Produção de Ruy Mattos e Pituca para a Rede Globo de Televisão. Direção de Augusto César
Vanucci. Textos de Mieli & Bôscoli. Sonoplastia de Milton Porto. Edição
de Ricardo Leitão. Cenários de Frederico Padilha. Colaboração de Almirante, Silvio Caldas, Haroldo
Barbosa e Paulo Tapajós. Direção musical^Jle Nalygia Santos. Números
musicais: Maria Alcina, Carlos Galhardo, Pedrinho Rodrigues, Ernani Filho, Rildo Hora, Arthun
Costa Filho, Sônia Lemos, Paulo Marques, Rita de Cássia, Marilia Baptista,
Djavan, Djalma Dias, João Nogueira, César Costa Filho, Aracy de Almeida, Emílio Santiago, Peri
Ribeiro, Nelson Gonçalves, Elza Soares, Jair Rodrigues, Miltinho,
Elizeth Cardoso, Maysa, Antônio Marcos, Vanusa e Silvio Caldas. Transmitido na noite de 17 de
dezembro de 1975. Músicas de Noel: 35, incluindo a inédita Mardade
de Cabocla.
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HERVÊ Cordovil. Entrevista a Simon Khouri, gravada em São Paulo a 11 de agosto de 1975, para
um especial da Rádio Jor-. nal do Brasil, Rio de Janeiro. Inédita.
ISMAEL Silva. Entrevista a Ary Vasconcelos, Hermínio Bello de Carvalho, limar Carvalho e
Ricardo Cravo Albim, gravada a 29 de setembro de 1966, para o acervo do Museu da Imagem e do Som,
Rio de Janeiro.
ISMAEL Silva. Entrevista a Ricardo Cravo Albim, gravada a 16 de julho de 1969, para o acervo do
Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro.
ISMAEL Silva. Entrevista a Antônio Crisóstomo para um especial da Rádio Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro. Levado ao ar a 27 de fevereiro de 1973.
NO TEMPO de Noel Rosa. Série de 22 programas radiofônicos semanais, produzidos e apresentados
por Almirante pela Rádio Tupi, Rio de Janeiro. Levados ao ar de 6 de abril a 31 de agosto de 1951.
Lançados comercialmente pela Collec-tor's Editora Ltda; em 1987. em onze fitas cassetes de 60 minutos
cada.

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