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Copyrighc© Sandra G.

Vasconcelos, 2002
Copyrighc© Boiternpo Edicorial, 2002
SUMÁRIO

Editora
Ivana Jinkings

Editora assistente
Sandra Brazil

Revisão INTRODUÇÃO 7
Márcia Nóboa Leme
Maurício Balrhazar Leal v>~ PRIMEIRA LiÇÃO
Ascensão do romance 9
Capa
Antonio Kehl SEGUNDA LiÇÃO
sobre Why rmd tohat (YelloUJ), .. c- Realismo e estória romanesca 27

óleo de Sean Scully, 1988.


TERCEIRA LiÇÃO
Diagramnção Teorias do romance 43
\
Rica Mello da CosraAguiar
QUARTA LiÇÃO
Coordenação de produção A prosa de ficção entre 1700 e 1740:
Eliane Alves de Oliveira . um panorama 57

FotoLitos QUINTA LiÇÃO


OESP Subjetividade e.mundo
doméstico no romance G.uP-o 71
Impressão
Banira SEXTA LiÇÃO
Ensaios teóricos: os capítulos
ISBN 85-7559-013-8 •.......
introdutórios de Henry Fielding II""" t~~ 86

SÉTIMA LiÇÃO
Todos os direitos reservados.
O romance feminino do século XVIII 'u 103
É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer pane
desta obra sem expressa autorização da editora. OITAVA LiÇÃO

1a edição: novembro de 2002


Romance gótico: persistência
do romanesco
c- r.or t)..
118

BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda,
NONA LiÇÃO
Público leitor e romance 9(0.) r 136
Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes
São Paulo SP 05030-030 DÉCIMA LiÇÃO
r
cel./fax: (11) 3875-7250/3872-6869 Recepção do romance: periódicos e ")""'r
resenhas 151
e-rnail: ediroratêboiternpo.corn
www.boirernpo.corn
INTRODUÇÃO

objetivo deste livro é apresentar ao estudante de graduação, na


[orma de dez lições, algumas das questões centrais que cercam toda
:1 discussão sobre o período de ascensão e formação do romance na
Inglaterra do século XVIII.
Trata-se, como o leitor verá, de um conjunto de pequenos ca-
pítulos introdutórios que visam, além de situar essa discussão, puxar
,dguns fios que o estudante interessado poderá continuar perse-
guindo, por meio de uma pesquisa mais aprofundada e sistemática.
Daí a sugestão de leituras, que se segue a cada capitulo. Advirto
,linda que, embora as dez lições tenham sido pensadas como um
lodo, no intuito de fornecer ao leitor uma visão geral sobre o pro-
hlema, e por isso obedeçam a um certo encadeamento, cada uma
delas poderá também ser lida de modo independente, de acordo
com a necessidade de cada um.
Esta introdução busca, fundamentalmente, traçar um panora-
ma, a partir de ângulos diversos, ancorando a história da ascensão
(' formação do romance na história de seu tempo, a fim de subli-
nhar o papel desempenhado por todos os envolvidos tanto no seu
processo de produção quanto na sua recepção. Dele fizeram parte
,IS mulheres que, apesar dos constrangimentos históricos a que es-
tuvam submetidas, assumiram importância capital como leitoras
(' como produtoras de ficção, pois não só ajudaram na dissemina-
(,,10 do hábito de leitura, como consumidoras de romance, mas
r.unbérn exerceram grande influência como alvo preferencial de
11111 itos dos romancistas de en tão, Ver-se-à ai nda o papel dos perió-
dicos e das revistas literárias, que, vindos à luz quase que sirnulra-
8 O ROMANCE INGL~S

neamente ao romance, se constituíram em elos fundamentais na ASCENSÃO


cadeia de difusão do novo gênero, contribuindo de forma inegá- DO ROMANCE
vel para sua popularização. Foram todos - romancistas, leitores, •
jornalistas e resenh istas - atores, seja na esfera pública ou privada,
numa importante trama cujo desfecho foi transformar um gênero
popular, plebeu e malvisto, recém-chegado à cena literária e por
isso sem nenhuma tradição, na grande forma literária que, assu-
mindo um Iugar proeminente no século XIX, iria privilegiar o ho-
mem comum em seus embates com a realidade. () processo de formação e ascensão do romance na Inglaterra do
século XVIII enconÍ:rouum quadro bastante bem definido no que
São aspectos dessa história que este livro tem como objetivo
liiz respeito aos modelos estéticos e literários à sua disposição. De
trazer ao público brasileiro, pretendendo, sobretudo, colocar à sua
disposição, por meio dessa introdução, algumas questões sobre a lado, a popularidade do romance de educação de Fénelon e a
\\111

teoria do romance e a história de sua formação. voga da ficção heróico-galante representada pelos romances' de
Ilonoré d'Urfé, Mlle. de Scudéry, La Calprenede', para citar al-
gllns nomes: incrivelmente longos, cheios de complicações, com
enredos frouxos, e apresentando um mundo aristocrático, artificial
idealizado, onde quase não havia lugar para os comportamentos
l'

humanos comuns, já que nele imperavam o amor elegante, o he-


I ofsrno, o decoro. As freqüentes referências aos romances pastorais
I' heróicos franceses do século XVII, nos prefácios dos romances,
11.\ correspondência de leitores, em resenhas, não deixam dúvidas

IJlI:1I1tO
à penetração dessas obras junto ao (ainda que restrito) pú-
hlico leitor inglês, durante o século XVIII'. Numa vertente mais
I('.dista, o que havia à disposição eram os romances de costumes OLl

I \ 1>.,,10 aqui na acepção de estória romanesca. Ver capítulo seguinte, sobre as distinções cn-
IH' mmnncc (novel) e estória romanesca (romaJlce),
(J ré d'Urfé, autor
, I I1111 de L'Astrée (1607-27), romance pastoral; Madeleine de Scudéry, autora
01,. /lmrhim (164\), Armmene, ou L» Gmnd C)'l'IIi (\649-53) e C/élie (1654-60); Gautier de ia
I "1'1l'ncde, autor de Cassnndrc (1642-45) e La Cléoptltre (1646-57), romances heróicos; Péne-

11111•. 111101'de Aventures de Télémnoue (1699). Ronald Paulson comenta que as duas obras de ficção
, 1I.II\g,;iras em tradução mais populares no período entre \720 e 1740, a julgar pelos jornais
IlIllIl'IIII1<. foram Téiemaque, de Fénelon, e Dinbie boiteux, de Lesage. Ver Popular and Palite Art
111 1111'Ilgt of Hogarth and Fie/dillg, Universiry of Notre Darne Press, 1979.

\lu lurd Church lembra que foram as traduções e imitações dos romances heróicos fran-
II ,I" quI.:consolaram lima sociedade sufocudn por um governo puritano c privada de teatro
1 O o ROMANCE INGLÊS 1 I
PRIMEIRA LiÇÃO

picarescos, na linha de Sorel ou Scarrori', ou ainda os clássicos da que é muito difícil falar no romance inglês do século XVIII em
picaresca espanhola, como Lazarillo de Tormes (1576) e Guzmdn liloco, pois sua origem é tão complicada quanto o processo de es-
deA!fàrache (1662), que, junto com Dom Quixote (1612), de Mi- truturação da própria sociedade, e ele não possui propriamente
guel de Cervantes, e Gil Blas de Santilanne (1749), de Alain-René II m padrão bem delineado de desenvolvimento. Gênero extraor-
Lesage, deixariam marcas em muitos romances ingleses, como os dinariamente inclusivo, segundo ela, o romance apresenta uma
de Sarah Fielding, Francis Coventry ou Tobias Smollett, por orientação voltada para um ponto de vista social e, tendo-se apoia-
exemplo'. do numa variedade de formas, técnicas e tradições, bebeu de dife-
Havia também, por certo, uma produção ficcional doméstica. rentes fontes - tanto em prosa quanto em verso, medievais e poste-
John Richetti, estudando a ficção que se tornara bastante popular riores, realistas e romanescas.
no período entre 1700 e 1739, portanto antes de Samuel Richard- Desse modo, o romance teria ido buscar em formas menores
son, rnapeia alguns padrões narrativos que julga importantes para .iqueles elementos que os romancistas do século XVIII reconfigu-
o desenvolvimento do romance: a literature of roguery, com suas rnrarn como um novo tipo de prosa de ficção. Os contos e novelas
biografias de criminosos e prostitutas, a literatura de viagem, com medievais (jabliaux e exemp!a), as nouelle renascen tistas, os panfle-
suas histórias de peregrinos, viajantes e piratas, e as novelas de ti is, a tradição dos [esi-booles, mesmo os romances franceses - todas
amor e novelas pias". essas formas já apresentavam, em maior ou menor grau, algum tra-
Se a história do romance inglês teve início no século XVIII, a 1,0real ista, fosse através do diálogo vivo, da caracterização, da aten-
prosa de ficção já havia palmilhado longos e sinuosos caminhos, 1,,10aos pormenores, de uma situação ou de uma descrição de ce-
deixando marcas de que, freqüentemente, o novo gênero iria se Idrio. Também ao tratar do homem comum, como haviam feito
apropriar. Margaret Schlauch, assim como outros historiadores do I'hornas Nashe e Thomas Deloney a ficção dera mais um passo
romance, argumenta, em Antecedents ofthe English Nove! (1963), 1'111
direção ao novo modo literário, que iria fazer da vida privada e
.luméstica seu grande tema.
e de outras formas públicas de divertimento. Ver Tbe Crowtb 01 the Ellglisb Nooel, Londres,
Sem ignorar, portanto, seus antecedentes, o romance surgiu
Methuen/Nova York, Barncs and Noblc, 1961.
4 Charles Serei, autor de Frauciou (1623) e de I.e St1ger Extrttvagam (1627-28); l' Scarron, 1:lll cena como uma forma histórica para dar conta de um novo
autor de Le Roman Comique (I '! parre 1651; 2'! parre 1657), romances que Henri Couler de- Illllteúdo social. Poucos gêneros literários parecem ter tido, como
fine como "cômicos e paródicos". Ver Le ROIl1((Jljltsquâ Ia Rduolution, Paris, Arrnand Colin,
1991, p. 191-207 II I ornance, suas raízes mais firmemen te fincadas no tempo histó-
, As datas entre parênteses se referem aó ano da tradução dessas obras para o inglês, Laza- 111() e em con textos socioculturais específicos. Fruto dos ideais ilu-
ri//o de Tonues, de autor desconhecido, rrad David Rowland, 1576; Gnzmâu de Alfizmche
I11i11 istas, o romance surgiu na cena literária como expressão artís-
(primeira parte: 1599; segunda pane: 1605) é de Mareo Alernnn, rrad. James Mnbbe, 1662.
A primeira tradução de DOII Q/lixote é de Shelron em 1612 e 1620; Cil Blas (1715-1735) lil .t de um espírito democrático e, ainda que sua maleabilidade lhe
foi traduzido por SmolJerr em 1749, Lazarillo e Cllzmán tiveram grande penetração tam-
1"1111:\permitido acolher uma multiplicidade de vozes e valores
bém na França durante o século XVII, onde havia um interesse generalizado pelos costumes,
moda) língua e lirerarura espanhóis, parricularrncnre por DOlZ Quixote que ganhou diversas l
11!l11',lis,ele serviu sobretudo para exprimir uma certa visão de so-
rrnduçôcs c edições. Ver Gusrave Reynicr, I.e ROII/all Réaliste at: XVII' Siecle, Paris, Librairic
1.11'll.ldcque os romancistas procuraram traduzir em termos ar tís-
Hacherrc, 1914.

(, Ver )ohn Richcrri, I'o/,/(/((r /;',.tiOIl B~(ore Ricbardsan, Narrurive Parrerns. 1700-1739. l l« /I/I(iJ/'l/(lIfllt Ti'fil,efler, 01' Ib,' Li/i> ofjll(k WilllJlI (1594), de Nashe, e j((t'k IJI Neu.bur»
Oxford, Clnrcndon Prcss, 1992, tI ','1 ), <I" nela "")', s.io exemplos de u.u .•.ativas realistas do período elisabcr.mo.
1 2 o ROMANCE INGLÊS PRIMEIRA LiÇÃO 1 3

ticos. Nesse sentido, o novo gênero não se limitou a refletir os va- roda uma tradição de pensamento crítico sobre a ascensão do ro-
lores de seu tempo, mas ajudou a criá-Íos, ou, para dizer de outro mance e foi dos primei ros de uma linhagem de obras de crítica e his-
modo, os romances foram "instrumentos que contribu[íram] para rória literária que se dedicaram a tentar compreender esse fenômeno.
constituir interesses sociais mais do que len tes que os reflet[iram]", Explicitadas logo na abertura do livro, três interrogações instiga-
8
como lembra Terry Eagleton • Assim, o romance inglês do século I:1mWatr a tentar desvendar o aparecimento do romance na Ingla-
XVIII representou uma ruptura importan te com a tradição literá- terra do século XVIII: o romance é uma forma literária novai; em
ria e com modos de pensar as relações entre a I ireratura e a socieda- raso afirmativo, como se diferencia da prosa de ficção do passado,
de, apesar das recorrentes afirmativas, por parte de muitos dos au- .1 da Grécia, por exemplo, ou a da Idade Média, ou a da França seis-
tores, de seus vínculos, mais ou menos estreitos, com aquela ((,;11 tista?; há alguma razão para que essas di ferenças tenham apare-
tradição. cido naquele lugar e momento?
Depois de refutar a noção de que o "realismo" é-a característica
COMO NASCEU O ROMANCE?
que distingue os primeiros romancistas do século XVIII da ficção
A tentativa de explicar o nascimento do romance tem ocupado a
.mterior, pois isso implicaria inferir que todas as formas literárias
crítica desde o final do século XVIII. As marcas de suas origens têm
.rnteriores teriam perseguido o irreal, Watt afirma a necessidade de
sido variadamente situadas na épica, no romanesco, no discurso
q ualificar o termo, dando-lhe con tornos mais precisos do que a sua
jornalístico, na ascensão da burguesia, no declínio da aristocracia,
simples associação a um "retrato da vida das camadas mais baixas"
no surgimento do público leitor feminino e no desenvolvimento
da população. São dois os seus pressupostos: o realismo do romance
do mercado livreiro. De modo geral, as teorias do romance se ins-
não está no tipo devida que ele apresenta mas no modo como o faz;
crevem dentro de duas grandes perspectivas: a formalista e a histo-
() romance, mais do que qualquer outra forma literária, levanta de
ricista. Para a primeira, o romance é produto de causas puramen-
lill'llla aguda o problema da correspondência entre a obra literária
te formais, tendo resultado seja de uma síntese de propriedades
(';1. realidade que imita.
formais de diferentes gêneros e subgêneros existentes antes de seu
Se, do ponto de vista con textual, Watt procuraria as causas da
aparecimento, seja como reação a gêneros anteriores. Os histori-
.isccnsâo do romance nas transformações ocorridas no interior da
cistas, por sua vez, atribuem o desenvolvimento do gênero a mu-
sociedade inglesa, que ele identifica como sendo o desenvolvimento
danças nas condições sociais, políticas e econômicas. Assim, o ro-
(10 capitalismo, a secularização do protestantismo, o poder crescen-
mance seria uma resposta a alterações no modo de produção, na
1(' das classes industriais ecomerciais e o crescimento do público lei-
organização social e nas noções filosóficas do sujeito.
101', também as mudanças de orientação no pensamento filosófico
O livro seminal de Ian Watt, The Rise ofthe Nove!: Studies in De-
(10 período lhe pareceram capitais para esclarecer a natureza do rea-
fie, Richardson and Fieldinl, de 1957, por assim dizer inaugurou
lismo do romance. Essas mudanças haviam deslocado a atenção
p.lra o indivíduo e colocado uma ênfase especial nas questões de
S Terry Eagleton. Thc Rtlpe 01 Clarissa. IV;'';úllg, Scxltflllt)' tlllei C/(W Slruggle in Samucl Ri-
chardsan, Oxford, Blackwell, 1985, p. 4. i([entidade pessoal, tendo como um de seus corolários a percepção
')lan \X1att.TIl< Rúe olthe Nove!: SllItli,·, 111D~(oe, RiclJardsol/ tll/eI Fie/dlllg. Londres, Penguin, d.1 importância assumida pela dimensão temporal como uma for-
1983. [Ed. brns.: A ascensão do·rOIll((l/ce. 5:'0 Paulo, Companhia da, Letras, 1990.J
1,.1 plasmadora da história h umana. Tudo isso iria se traduzir, segun-
1 4 o ROMANCE INGL~S PRIMEIRA LiÇÃO 1 5

do Watt, num outro modo de imitar a realidade, através de um mé- dividual e no aprendizado por meio dos sentidos, Finalmente, in-
todo narrativo a que denominou "realismo formal", uma conven- . luíarn, no plano literário, um certo fastio com os tediosamente
ção que não significa que o relato da vida humana apresentado pelo longos e artificiais romances heróicos franceses e a descoberta de
romance seja mais verdadeiro do que aqueles apresentados por novas possibilidades na língua inglesa como um meio expressivo
meio das diferentes convenções dos outros gêneros literários. Tra- mais simples, direto e, portanto, mais próximo da linguagem co-
ta-se, nesse caso, de um conjunto de técnicas narrativas que busca- tidiana do homem comum.
vam produzir um relato autêntico das experiências reais dos indiví- oncordando, de modo geral, com as premissas e os argumen-
duos, de um modo de apresentação que se apoiava no repúdio a tos de Watt, Michael McKeon afirma, em The Origins ofthe EngLish
enredos oriundos da tradição, na busca de uma linguagem mais re- Nouel 'fi (1987), a necessidade de complicar a versão que Watt nos
ferencial, e portanto mais próxima do cotidiano, na particulariza- (LI sobre a relevância do contexto histórico, particularmente na sua
ção das personagens e do espaço, na temporal idade, e no princípio vertente social. Nesse sentido, observa a falta, já apontada por ou-
da causalidade como motor do enredo. Longe de ser orquestrados, 1105 críticos, de evidências a respeito da preponderância da burgue-
esses procedimentos Watt os depreende da prática concreta de De- ~i.lno início do século XVIII, assim como a permanência de situa-
foe, Richardson e Fielding, constituindo-se dessa forma na respos- (,oes e convenções romanescas nas obras de Defoe, Richardson e
ta li terária que esses três rom an cistas deram aos p ro b lemas de rep re- l'iclding, ainda que esses autores possam explicitamente ter preten-
sentação da realidade que tiveram de enfrentar. dido "subverter a idéia e o ethosdo romance". É a partir do que Watt
A força do argumento de Watt reside na homologia que ele es- deixou de fora - o romanesco e a aristocracia - que McKeon vai
tabelece entre forma literária e processo social. É aí, na busca de i onstruir seu argumento, tendo como pressuposto a idéia de que o
uma explicação histórica cuidadosamente argumentada, que se li 1\:11 do século XVII foi marcado por uma instabilidade de catego-
pode perceber o alcance de sua tese, que procura descobrir, na ma- 1 i.1S genéricas e sociais que provariam ser centrais para a ascensão do
terialidade da História, as causas de um fenômeno cul tural da mais I 11 111 ance. O imperativo de compreender como as categorias con-
alta relevância. Seu método consiste em investigar as condições ,('illlais, sejam elas literárias ou sociais, existem e se definem em
materiais que estavam dadas, em determinado momento históri- momentos de mudanças históricas leva-o a investigar esse período
co e lugar, para que pudessem ocorrer transformações na maneira ,1(· Iransição e verificar a existência de uma crise cultural, fruto de
de pensar a prosa de ficção e para que uma sociedade em fase de mudanças de atitudes quanto ao modo de relatar a verdade nas nar-
mudanças encontrasse numa forma nova de representação literá- 1.11 ivns ("questões de verdade") e de relacionar aordem social, exter-
ria o espaço em que expressar suas concepções de mundo, seus va- 11.I,:t0 estado moral, interno, de seus membros ("questões de virtu-
lores, ideais e desejos. No caso inglês, essas condições incluíam, no ,I,·"), <.:nquanto versões análogas uma da outra. A constatação dessa
plano histórico, uma revolução que, em 1688, havia estabelecido "mvrnbilidade categórica", corporificada na dificuldade de distin-
as bases de uma democracia burguesa e provocado o desmantela- 1',11 i I L: 11 tre fato e ficção, por um lado, e na contraposição entre a no-
mente do Estado absolutista dos Stuarts, levado a cabo pela bur-
guesia inglesa aliada a proprietários de terras mais "progressistas". 'li 111"h.icl lvlcKeon. TI" Origil/j r1/he EI/g/isb Nooe! (1600-/740). Balrimorc, The Johns
r ncluíarn, no plano filosófico, a ênfase colocada na experiência i 11- 11"1,111" Universiry Press, 1991.
1 6 o ROMANCE INGLÊS
PRIMEIRA LiÇÃO 1 7

ção de honra aristocrática e mérito ou virtude pessoal, de outro, IIl'rt Kellog, em The Nature ojNarrative, ou por Ernest Baker, em
ajuda, do ponto de vista de McKeon, a rever e complementar a po- / /istory ofthe Eng!ish Nove!, funda-se na noção do romance como
sição de Watt e a postular o romance como uma "simples abstra- .ipcnas um "galho na árvore evolutiva da narrativa", urna forma
ção", nos termos de Marx, isto.é, uma "categoria enganosamente II'IC sofreu, a partir de urna origem que se perde no tempo, um
monolítica que encerra um processo histórico complexo". Dessa Ill'clesso lento e progressivo de mudança, com base na noção bio-
forma, o crítico propõe que, graças a seu poder tanto de formular I"lgica de adaptação. Para Oavis, esse modelo tem o problema de
como de explicar um conj unto de problemas centrais à experiência ('xigir que, na tentativa de descobrir antecedentes, se proceda à
moderna, o romance nasceu para mediar essas mudanças de atitu- \('Icção (o que implica descarte) en tre uma diversidade de textos,
des e foi, em grande medida, capaz de conciliar no interior de uma ('111 busca daqueles que apresentam uma relação de consangüini-
forma suficientemente plástica as narrativas e ideologias conflitan- .lnde ou homologia entre o romance e seus precursores. Por seu
tes que se sucederam no período de transição do idealismo roma- 111 mo, o livro clássico de Ian Watt exernplificaria uma aborda-
nesco e da ideologia aristocrática para a época moderna. É por J',l'm osmótica do problema das origens, que enxerga urna con-
meio dessa analogia entre problemas epistemológicos e socioéticos fluência de forças, uma "cadeia de causas e efeitos necessários"
que McKeon acredita ser possível "sofisticar e recuperar a correla- que conduzem à origem e hegemonia do romance (sugerida pela
ção entre a ascensão do romance e a ascensão da classe média", rea- metáfora contida na palavra rise). Watt alinharia, dessa forma,
firmando a relevância do argumento de Watt, ao mesmo tempo mudanças na estrutura do pensamen to filosófico do período e
em que repropõe, em outros termos, a tese pioneira. Para ele, "as i 111 portantes mudanças na vida social que teriam, por sua vez,
origens do romance inglês implicam postular uma categoria gené- produzido alterações fundamentais nas estruturas literárias.
rica 'nova' enquanto negação dialética de um predomínio 'tradicio- Nessa tese da contaminação e permeabilidade entre literatura e
nal' - o romanesco, a aristocracia - cuja natureza ainda satura, processo social, Davis vê o problema da impossibilidade de COI1-

como uma força anritética mas constituriva, a textura da categoria Iraprova. Se a conjectura lhe parece evidente e aceitável, Oavis
pela qual está em processo de ser substituída?". julga que falta a Watt fornecer as "rnicroconexões" entre os dois
lenômenos. O terceiro modelo, que Oavis chama de convergen-
OUTRAS FORMAS DE EXPLICAÇÃO Il', é representado por The Theory ofthe Novel, de Phillip Stevick.
Lennard Davis", por sua vez, mapeia, na história da crítica do ro- Ali, Stevick propõe que o romance surgiu de tudo o que o prece-
mance, três grandes modelos explicativos para a questão das ori- .lcu, isto é, da convergência de uma variedade de formas (en-
gens do gênero: o evolucionista, o osmótico e o convergente. O x.rio, história, estória romanesca, drama sentimental e cômico
primeiro, representado, por exemplo, por Robert Scholes e Ro- ct c.) que se juntaram para constituir um gênero distinto, agluti-

" Idem. Generic Transformarion and Social Change: Rcthinking rhe Rise of rhe Novel, In nnndo o que de melhor cada uma das formas apresentava, indi-
l.eopold Darnrosh J r. Modern Essa)',011 EigIJtemrh-CenHtI)' l.itemture. Nova York, Oxford vidualrnente. O problema, nesse caso, reside, segundo Davis,
Universiry Press, 1988, p. 176.
1),\ total ausência de causalidade, de um mecanismo que expli-
,~ Lennard Davis. Toward a Meihodology ofBeginnings. ln Factual Fictious. TI" Origil/S o[
tlrc ElIglis/; Nooel. Nova York, Columbia Univcrsiry Press, 1983. Os comenr.írios acima ba- qlle as razões pelas quais rodos esses tipos de escrita repentina-
seiam-se na exposição dessas I11crodologias, apresentada na Introdução.
mente converguam.
1 8 o ROMANCE INGLÊS
PRIMEIRA LiÇÃO 1 9

É evidente que esse mapeamento e a crítica à inadequação desses 1\ leis de libelo e de libelo sedicioso contra a imprensa que se definiu o
modelos servem ao propósito de introduzir aquela que parece a Davis qlll' constituía notícia e, conseqüenremente, o que constituía história
ser a melhor explicação para compreender o surgimento do roman-
," omance. Esses romancistas descobriram, cada um a seu modo, uma
ce: tratã-lo, na esteira de Michel Foucault, como um campo discur- 1II.IIlCirade explorar os limites novelísticos dessa relação entre fato e
sivo, isto é, um conjunto de textos que constituem o romance e, dessa 11I~.IOe encontraram formas de escrever sobre o mundo simultanea-
forma, o definem, limitam e descrevem. Para isso, abre o campo e
11I1'IHe
inventivas e referenciais.
vai buscar também em outros tipos de textos escritos - cartas, leis, A busca de diferenciação entre fato e ficção é problema impor-
jornais, anúncios - as bases para estabelecer a distinção entre "fato" r.uuc e tema recorrente entre os romancistas que estão tentando
e "ficção", ou investigar a matriz netos/nouel, que ele julga categorias ".nferir a suas narrativas alguma dignidade literária e vencer as re-
centrais para definir as origens do gênero na Inglaterra do século 1',,0ncias de um público acostumado à arenga de que leitura de fic-
XVIII. Do ponto de vista de Lennard Davis, os leitores do final do ',.11)era sinônimo de perda de tempo e hábito reprovável. Por outro
século XVII e início do século XVIII não poderiam assumir, de Lido, se a tese da necessidade de se distinguir entre práticas discur-
modo rotineiro, que as obras que liam eram fictícias. Essa incerteza IV;lSque estiveram indiferenciadas em algum momento no tempo
quanto ao caráter factual ou ficcional da narrativa fez, então, com
I pl.iusfvel e solidamente argumentada, parece insuficiente atribuir
que uma das maiores preocupações dos primeiros romancistas fos- 1 origem do romance a questões de autoridade e poder, por mais
se desenvolver uma teoria do romance que lidasse de forma adequa-
1"'1t inentes que elas possam ter sido. No máximo, poder-se-ia con-
da com essa questão epistemológica. Nos seus estágios iniciais, o ro- Idnar essa constatação como mais um elemento que contribui
mancese apresentava como uma forma ambígua, uma hcçâo factual
11,11,1
explicar o problema da origem.
que negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores um senti- Numa linha mais ou menos semelhante se filia a perspectiva de
mento de ambivalência quanto a seu possível conteúdo de verdade. I Hunter, em Before Nouels. The Cultura! ContextsofEighteenth-
11.1111
Essa indiferenciação teria de ser desfeita para que as narrativas fac- r ~'II/llry Fiction", que busca, como seu título revela, compreender
tuais pudessem se disti nguir das narrativas ficcionais e se pudessem I',origens do romance a partir do estudo de tradições - inclusive as
constituir os dois tipos de discurso originários daquela matriz: o jor- Iltll1 ficcionais, não-artísticas e não-escritas - e de manifestações
nalismo e a história, de um lado, e o romance, do outro.
.1.,\ ultura popular que exerceram, na visão do autor, influência de-
Davis se coloca decididamente a favor daqueles que não conse- I 1\1V:Isobre os assuntos e as preocupações que se tornariam centrais
guem ver nenhuma utilidade em propor o romanesco como precur- 111110VOgênero em seus pri mórdios. Com o olhar voltado para as
sor do romance, advogando uma ruptura profunda entre esses dois ti- 11I.I~'ÜCS
entre a escrita e o que Hunter chama de "diversas formas
pos de prosa de ficção, e vai rastrear o processo de separação entre os 11"Ilescjo cultural", seu recorte é o dos "pre-textos", isto é, do mate-
discursos jornalístico (news) e novelístico (nove!) como decisivo na II,d de leitura que os leitores contemporâneos à ascensão do rornan-
constituição do novo gênero. Seu argumento principal é que os ro- I I I ill harn à sua disposição e que, segundo ele, determinaram as ex-
mances de Defoe, Richardson e Fielding surgiram da ruptura entre
narrativas factuais e ficcionais. Segundo ele, foi da necessidade que o
I 1',,111l Iunrer. Befo:« Nooeis. TI" Cnlt ural COlIll'XU o( Eiy,/Jlem,h-Cenl1lrJ' Fiction. Nova
sistema legal teve de estabelecer essa diferenciação para poder aplicar I ,,1.11 nndrcs, \'1/. \V Norron & Cornpany, 1990.
2 O o ROMANCE INGL~S PRIMEIRA LiÇÃO 2 1

pectativas e os modos como esses leitores se aproximaram do novo garam a idéia mesma de temporal idade, Hunter se alinha aos crí-
gênero. Talvez o interesse maior da contribuição de Hunter resida ticos e historiadores que defendem a ruptura radical entre nouel e
na sua firme intenção de, entre outras coisas, a) fornecer uma des- romance e que encareceram a inovação como um aspecto funda-
crição operacional do romance, que escape a uma definição essen- mental do novo gênero, posição essa radicada na constatação de
cialista do termo; b) demonstrar a independência do romance em que, por volta da metade do século XVIII na Inglaterra, havia uma
relação a modelos narra ti vos anteriores, o que leva o crítico a desta- "percepção quase universal", por parte tanto dos tradicionalistas
cá-Ia principalmente da história do romance romanesco; c) parti- quanto dos inovadores, de que uma revolução literária estava em
cularizar a interação causal entre as assim chamadas culturas alta e marcha. Os novos ventos que parecem ter soprado na Inglaterra,
baixa; d) sugerir a cultura oral como um componente importante Hunter os localiza em dois momentos específicos, descrevendo-os
no estabelecimento de expectativas de padrões verbais e portanto como uma reação à "literatura" tal como era compreendida en tão:
na produção de desejos que as estruturas escritas poderão absorver. o decênio de 1690, quando as novas direções ainda não estavam
O argumento central é que o romance em ascensão é de fato gêne- muito claras mas já podiam ser pressentidas, e o decênio de 1740,
ro novo, e portanto distinto do romanesco, e precisa ser colocado quando Samuel Richardson e Henry Fieldingpropõem uma "new
no contexto mais amplo da história cultural ao mesmo tempo que species" ou "neu/ province" para a narrativa ficcional, seguindo a
os materiais "paralirerários" - jornalísticos, didáticos, privados, po- lorte tendência para a novidade que havia caracterizado algumas
lêmicos e outros - precisam ser considerados, pois teriam contribuí- manifestações culturais da virada do século. Contrário à idéia de
do de maneira decisiva para a constituição do mundo social e inte- que as características do novo gênero possam se resumir apenas ao
lectual em que surgiu o romance. O trunfo de sua abordagem, "realismo", ao "individualismo" ou à "personagem", Hunrer pos-
conforme explica o próprio Hunter, é envolver "mais gente prove- rula que a inovação consistiu fundamentalmente numa série de
niente de uma maior variedade de estratos sociais do que a história traços que viriam a caracterizar o romance e foram sendo codificados
literária geral mente acolhe"I'I. IIc: forma gradual e progressiva. Hoje, em retrospecro, podem-se
Proclamando, de saída, seu enorme respeito pela "posição co- lisrar vários deles: contemporaneidade; credibilidade e probabili-
rajosa que Watt assumiu em 1957 a respeito da base 'sociológica' .l.idc; familiaridade, existência cotidiana e personagens comuns;
do romance inglês" mas anunciando suas discordâncias e reservas u-jciçâo de enredos tradicionais; língua liberta da tradição; indivi-
quanto a alguns pressupostos e procedimentos do autor do pionei- .lu.rlismo e subjetividade; empana e vicariedade; coerência e un idade
ro The Rise ofthe Nove! - sua teleologia e sua leitura de autores e li- 111'concepção; inclusividade, digressividade; fragmen ração; auto-
vros específicos, por exemplo -, Hunter dedica os dois capítulos 1uusciência da inovação e da novidade. Essas, segundo ele, seriam
iniciais de seu longo estudo à discussão, que é o que nos importa 1'.características que a crítica se acostumou a associar ao gênero,
aqui, dos traços característicos do novo gênero. Decididamente 11.10 levando em conta outras, cuja presença tem ignorado porque
contrário às posições teóricas que procuraram explicar as origens 111'wslabilizam suas noções sobre a forma do romance: a presença
do romance por meio do recurso a modelos platônicos ou que ne- dll vurpreendente, do proibido, do bizarro, do estranho, do incx-
,,11\.ulo, também esses elementos que pertencem 11 ordem da expe-
14 Idem, ibidcrn, P: 5. I II'IH ia humana, da existência cotidiana e ao mundo familiar elas
2 2 o ROMANCE INGLtS PRIMEIRA LiÇÃO 2 3

pessoas comuns e que escapam a uma definição estreita de realis- vência do romance com outros tipos de texto contemporâneo e
mo e de probabilidade. McKeon as procura nos seus antecedentes. Como se vê, as dife-
Hunter percorre um caminho em parte semelhante ao de Watt, rentes tentativas de cercar a questão dão bem a medida das difi-
pois também nos oferece uma definição operaciorial de romance, culdades envolvidas. Por outro lado, essas quatro interpretações a
uma análise detalhada da questão do letramento e do público lei- respeito do surgimento do romance, cobrindo um espectro tem-
tor, uma discussão dos fatores coritextuais, enq uanto revisa e atua- poral amplo, fornecem uma idéia clara das diversas posições ado-
liza muitas das constatações do estudo de 1957 (principalmente tadas para discutir o problema. Nos últimos vinte anos, houve
no que se refere a informações e dados sobre os leitores). Ao mesmo lima mudança perceptível na compreensão do fenômeno da as-
tempo, expande o argumento e amplia a exploração das condições ccnsão do romance, graças a novas pesquisas nos campos da his-
de possibilidade do aparecirnen to do romance a fim de incluir a in- tória política e social. Uma certa visão tradicional das origens e
vestigação de materiais de leitura que, na sua visão, prepararam e dos objetivos do romance tem sido questionada e sofisticada no
predispuseram aqueles leitores para o contato com, e a aceitação .sforço de mostrar que o romance não se define pelo realismo da
do, novo gênero. O pressuposto sempre presente das rápidas mu- rl:presen tação mas pelas funções culturais e ideológicas que assu-
danças sociais, da migração e da urbanização ocorridas na Ingla- 111
iu no mundo da cultura impressa. Davies e Hunter, em grande
terra no período não ocupa, no entanto, o centro da reflexão de medida, representam essa nova tendência. O "realismo formal",
Hunter, cuja ênfase recai na situação dos leitores históricos e nas proposto por Watt como uma definição operacional do novo gê-
necessidades e nos desejos que os motivaram à leitura. ncro, parece ser insuficiente para dar conta da multiplicidade de
I .iminhos percorridos pelos romancistas no século XVIII ou ex-
CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS plicar os desvios mesmo de um escritor realista como Henry Fiel-
É sempre um risco resumir drasticamente discussões complexas e dillg. É um conceito, portanto, que foi problematizado e refina-
ricas sobre uma questão também ela nada simples e fácil. Mas (11)à luz de novas descobertas.
penso ser possível perceber, nas quatro abordagens comentadas Esse breve apanhado do "estado da arte" na discussão do pro-
acima, algumas confluências e algumas discordâncias importan- IIJt.rna das origens e ascensão do romance na Inglaterra, longe de
tes. Se nenhum dos críticos chega a refutar peremptoriamente a 111('1
cnder ser exaustivo e abrangente, objetiva apenas demonstrar,
tese sociológica de Ian Watt, McKeon se diferencia de seus suce- I 11\que pesem as divergências apontadas, quão fundamentais,
dâneos ao fazer uma forte defesa da continuidade histórica entre 11'1u-is e duradouros foram os aportes de Ian Watt. Seu pioneiris-
romance e romanesco. Watt, Oavies e Hunter, por sua vez, argu- 11111,
xc lhe concedeu o mérito de ter aberto caminhos e recoloca-
mentam em favor da ruptura radical entre os dois gêneros narra- 11111'111
pauta um período na história do romance em grande par-
tivos. E, embora tenham todos os quatro seus olhares voltados I1 .tIl- aquele momento negligenciado pela história literária,
para o contexto histórico em que surgiu o novo gênero, Watt é o 1lllIdll-1ll lhe valeu o ônus, por constituir ponto de referência, de
único que planta de modo firme esse fenômeno no terreno das 11.11I~1()I'1l1ar-se
em alvo da crítica e da incompreensão de muitos.
mudanças sociais em curso na Inglaterra do século XVIII, en- \ 111\portância de uma obra como The Rise ofthe Novel se mede,
quanto Oavies e Hunrer buscam suas causas na relação ou convi- 1I111'11I.mto, pela insistência e pela regularidade com que críticos
2 4 o ROMANCE NGLÊS
PRIMEIRA LiÇÃO 2 5

e historiadores literários a retomam, seja para enriquecê-Ia, seja SUGESTÕES DE LEITURA


para questioná-Ia. Admiradora do trabalho de Watt, escolh.i aqui
expor algumas das posições que melhor me parecem cornplernen- !\LLEN,Walter. The English NoveL. Londres, Penguin, 1968.
tá-Ío, contribuindo para ressaltar a complexidade da questão da BAKER, Ernest. History of tbe English Nouel. Witherby, 1924-
formação do romance. Desse exame crítico, o que permanece, 1938.
além das teses de Watt, é a postulação do romance, nas palavras I~URGESS, Anthony. The Nouel Now. Londres, Faber and Faber,
de Hunter, como "uma forma literária distinta e definível que 1971.
existe no tempo, que surge e se desenvolve num contexto especí- (:ARPEAUX, O tto Maria. História da literatura ocidental. 3~ed. Rio
fico (ainda que não, shazam, plenamente desenvolvida num de- de Janeiro, Alhambra, 1985, vol. 4.
terminado momento) e que tem um lugar específico na história (:1 !URCH, Richard. Tbe CI'owth of the English NoveL. Londres/
dos fenômenos culturais?". Igualmente digno de nota é o esforço Nova York, Methuen/Barnes and Noble, 1961.
de Hunter de definir o romance em termos mais abrangentes e I )AICHES, David. A Critica I History of English Literature. Londres,
devolver à descrição de seus traços a riqueza que o caracterizou no Secker and Warburg, 1960, vol. 2.
século XVIII, procurando enxergá-Ios na prática concreta dos ro- I )AVIS, Lennard. Factual Fictions. The Origins of the English
mancistas, o que não apenas pinta um quadro mais instável e menos Nooel. Nova York, Columbia University Press, 1983.
esq uernático de noções que têm sido sistematicamente associadas I )AY, Geoffrey. From Fiction to Nove!. Londres, Routledge &
ao novo gênero naquele período, como probabilidade, plausibili- Kegan Paul, 1987.
dade, conduta moral etc., mas também efetivamente recupera sua I )OODY, Margaret. The True Story ofthe NoveL. Londres, Fontana
capacidade de incluir o espectro inteiro da experiência humana Press, 1998.
como sua matéria. 1:( lRD, Boris (ed.). The New Pelican Cuide to English L itera tu re.
From Dryden to [ohnson. Londres, Penguin, 1991, vol. 4.
1 IAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo,
MestreJou, 1972, vol. 2.
I Il JNTER, J.- Paul. Before Nove/s. The Cultural Contexts of Eighte-
enth-Century English Fiction. Nova York/Londres, W. W.
Norton & Cornpany, 1990.
I\ML, Frederick R. A Readers Cuide to the Eighteenth-Century No-
uel. Nova York, The Noonday Press, 1974.
1< I'.I·"I"LE, Amold. An [ntroduction to the English NoveL. Londres,
Hutchinson, 1972, vol. 1.
"11 'KWN, Michael. The Origins ofthe English Nouel (1600-1740).
Baltimore, TheJohns Hopkins University Press, 1991.
I" Idem, ibidern, p. l). IW:IIETT1, John. Popular Fiction before Richardson. Narrative
26 O ROMANCE INGLÊS

Patterns, 1700-1739. Oxford, Clarendon Press, 1992. REALISMO E


SCHLAUCH, Margaret. Antecedents o/ the Eng/ish Novel, 1400- ESTÓRIA ROMANESCA
1600 (from Chaucer to De/oney). Oxford University Press,
1963.
STEVENSON, Lionel. The Eng/ish Nove!. A Panorama. Londres,
Constable, 1960.
WA.TT, Ian. The Rise ofthe Nouel: Studies in Dejoe, Richardson and
Fie/ding. Londres, Penguin, 1983.
Desde o começo, os primeiros romancistas e teóricos do romance,
no esforço de desemaranhá-Ia do romanesco, acentuaram o com-
promisso do novo gênero com a verdade, os acontecimentos co-
muns e naturais, com a probabilidade, opondo-o ao que conside-
ravam um tipo de ficção que transgredia "os limites de tempo e
lugar, de natureza e possibilidade", como explicita George Can-
Iling no periódico The Microcosm, de 1787. Samuel Johnson, em
ensaio de 1750, já apontava a relação estreita entre o novo gênero
I' o real, distanciando-o do mundo idealizado e improvável do ro-
mance romanesco:

As obras de ficção, que parecem deleitar particularmente a atual geração,


são as que exibem a vida em seu verdadeiro estado, diversificada apenas
por acidentes que acontecem diariamente no mundo e influenciada por
paixões e qualidades que realmente podem ser encontradas nas conver-
sas com a humanidade.' (The Rambler, n. 4, 31 de março de 1750)

No esforço de esboçar-lhe os traços, Johnson prossegue, agre-


1'"llldo uma série de requisitos que julga serem componentes essen-
I I.lis do gênero - "familiaridade com a vida"; "observação precisa
.Íu mundo vivo"; "exatidão de semelhança"; "histórias familiares";
"1.1'll:1Sdo drama universal que podem ser o destino de qualquer

11 "IIII.'l1 minha. No original: "The works of ficrion, wirh which rhe presem generelion
"" nuu C parcicularly dclighced, are such as exhibir life in irs rrue stare, diversified only by
, ,.1"11" lha r daily happen in rhe world , anel inílucnccd b)' passions and qualiries which are
, "" '" he found in conversing wirh mankind".
2 8 o ROMANCE INGLÊS SEGUNDA LiÇÃO 2 9

homem"; "probabilidade" -, ao mesmo tempo em que descreve d.IS as possibilidades de combinação, gradação e mescla entre esses
seus praticantes como "copiadores exatos dos costumes humanos". dois extremos. O romance, dos gêneros narrativos, parece ser
O uso recorrente de termos como "comum", "verdadeiro", "real", .iqucle que melhor equilibra esses dois pólos, porque seu funda-
"cotidiano", "contemporâneo", de idéias como familiaridade e pro- mcnto, conforme explica Antonio Candido, é
ximidade e a própria insistência nos mandamentos da probabilida-
(...) a realidade elaborada por um processo mental que guarda intacta a
de e credibilidade, na definição do gênero, não são nenhuma novi-
sua verossimilhança externa, fecundando-a interiormente por um fer-
dade e fazem crer num total afastamento do romance em relação mcnto de fantasia, que a situa além do quotidiano - em concorrência
ao romanesco. com a vida.
2

Como compreender, então, mesmo dentro do universo das


Se os modos não-realistas predominaram na prosa de ficção
ações cotidianas e dos homens comuns, as concessões ao estranho
IIt'-:t ascensão do romance, o novo gênero não sufocou, por com-
e ao surpreendente, ao incornum e ao imprevisível que se encontram
Idl'IO, o elemento romanesco no interior da narrativa realista.
nas narrativas realistas? As coincidências, as pequenas subversões
11\\.1 permanência explicaria, por exemplo, a reatualização do
das leis da probabilidade não necessariamente implicam falta de
Ildl<> da Cinderela em um romance como Pamela, de Samuel Ri-
realismo, pois, mesmo se improváveis, esses acontecimentos per-
, lurdson, ou o recurso persistente ao herói de origens obscuras
tencem à esfera do possível. Não é preciso romper o mandamento
'JlII' :IScomplicações do enredo de muitos romances se encarregam
da verossimilhança e nem violar as leis naturais para que, por
exemplo, Henry Fieldingpossa promover o encontro casual deseis
,li Icstituir ao seu verdadeiro lugar na sociedade, como é o caso de
lvtu fones, de Henry Fielding. Ou o seu retorno, digamos, desa-
de suas personagens na mesma taverna, a caminho de Londres; ou
1I1li 10 c desavergonhado no romance gótico das últimas décadas
para que, tantos anos depois de seu naufrágio na ilha, um dia Crusoe
,111\(~t'LlloXVIII. Os modos não-realistas de ficção sempre sobre-
inexplicavelrnente tope com Friday. Não é difícil vincular muitos
. 11'1'1.lm,ainda que tendo de recorrer ao mecanismo do desloca-
acontecimentos, no domínio do romance, àquelas áreas da expe-
111i'IIIO(para usar o conceito extremamente útil proposto por
riência humana que não encontram explicação racional ou que,
rJ1111hrop Frye), mesmo no interior do romance dito realista.
contra todas as probabilidades, não exigem a intervenção de agentes
I~illl ( .ibe, na reivindicação do predomínio do realismo como tra-
sobrenaturais para que possam ocorrer mesmo com os comuns dos
,i I'\\cncial do romance, o conceito do gênero como forma
mortais. Afinal, o sonho, o incompreensível, o visionário também
11111
.r", avessa à mistura, às contaminações, à variedade e ao cru-
fazem parte do que chamamos de realidade.
11111'1110
de fronteiras. Sua natureza bastarda, "vira-lata", aberta,
I, '111uvida de regras fixas e imutáveis pressupõe, quase por defi-
o EFEITO DO REAL
ill" 111,.1desobediência à rigidez e a abertura ao novo (não vem daí
Desde seus primórdios (definidos como sendo aAntiguidade clás-
em língua inglesa").
I11111I1H.:,
sica ou não), a prosa de ficção oscilou entre a pura fantasia, sem
grandes compromissos com as leis da probabilidade e da verossi-
milhança, e a tentativa de representação fiel da realidade, chegan- ,11111111
( .mdido. Um instrumento de descoberta e interpretação. In Formação da lite-

do aos limites do verismo ou naturalismo no século XIX, com to- 1,(,,11'/1", decisivos), São Paulo, Marrins, s.d., p. 109.
(MOfllCIII05
3 O o ROMANCE INGLÊS SEGUNDA LiÇÃO 3 1

Dessa forma, se até mesmo a narrativa mais fantástica exige um 'ill'llll'cndida no contexto mesmo da ascensão do novo gênero,
certo grau de "realismo" e demanda do leitor a "suspensão da des- 111111
til' cujas lutas mais centrais foi se opor ao distanciarnento ca-
crença", parece mais proveitoso recorrer ao mandamento da coe- 1.\1 I1I (~I ico do modo romanesco, trazendo a ação para o mundo
rência interna, tal como o faz Antonio Candido. Em seu A perso- 'illlt'lllj1orâneo a seus leitores. Ora, isso implicava necessaria-
nagem de ficção, à noção de verossimilhança, entendida como 1\\1'1111'
11111
empenho em presentificar e objerivar esse mundo, e
"sentimento de verdade", Antonio Candido agrega o conceito de 111111
d,I.' maneiras de fazê-Io era justamente recoristituir e descre-
coerência como elemen to fundamental na organização interna do I 111'r o rrn a precisa e concreta os detalhes da existência cotidiana.
romance. Nesse caso, sua verdade "não depende apenas, nem so- 1.1" pode-se insistir, não é tão-somente o acúmulo de detalhes,
bretudo, da relação de origem com a vida, com modelos propostos 111111.'011.1
exatidão ou sua perfeita correspondência com a realida-
pela observação, exterior ou interior, direta ou indireta, presente ou 11'j(' confere à obra literária caráter realista. A escolha e a dispo-
passada". E continua: I~ 111,11'les,como lembra Georg Lukács, são essenciais e devem se
li 1'1I Ilt'lo critério da necessidade, pois, ainda que um detalhe cor-
Assim, a verossimilhança propriamente dita - que depende em princí-
"1"11111.1
fotograficamente à vida, a verdade artística que encerra
pio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o mundo
real (ficção igual a vida) - acaba dependendo da organização estética do
1111,1. ~I'I "puramente casual, arbitrária e subjetiva". Essa necessi-

material, que apenas graças a ela se (Orna plenamente verossímil. (... )


Ilhh, 11,11':1
Candido, é ao mesmo tempo interna e externa, isto é,

Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parece- illl "IIII)('(,'SSOpor cujo intermédio a realidade do mundo e do ser
rá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente. ' 1'111101,
na narrativa ficcional, componente de uma estrutura li-
I,li I t'" uu, dito de outra forma, a realidade é objetivada em for-
Reside, portanto, na perfeita combinação entre essas duas exi- 11111
('.1 irn.

gências aquela impressão de verdade que os romances nos comu- " p,lrcce ser prerrogativa do romance, gênero cujas mais al-
nicam, desde que todos os seus elementos internos estejam orga- Irdi/,I~'ões individuais são, cada uma, sedimentação formal de
nizados em um todo perfeitamente orgânico. Dessa maneira, I 'IH'I iência
1111111 sócio-histórica, plasmada em obra de arte. No
justificados por essa organização interna, mesmo os traços mais ir- "" Io 111 anesco, o requisito da coerência interna pode rebater
realistas podem se tornar verossímeis. A im pressão de verdade nasce, 1I~11t.:lt)
de falta de compromisso com o real e justificar o recur-
portanto, muito mais da articulação coerente dos materiais no in- 111111.1
LIViIhoso e a violação das leis naturais. História de amor e
terior dos textos do que de seu caráter document,ári? ou das suas 11'l'11111I
,1, o romanesco opera por justaposição de episódios e
referências ao mundo exterior. Isto posto, como entender então o "·'r.h ,I obedece a exigências diversas, uma vez que al i toda a
comentário do próprio Candido de que "[o]s romancistas do sé- ill.I'llll";J no estabelecimento da heroicidade do herói, posta
culo XVIII aprenderam que a noção de realidade se reforça pela 1'111\'11
1111
\ scrn-núrnero de vezes e sempre a ser testada e compro-
descrição de pormenores"? Essa é uma afirrn.attiiw.a«!lll!le '50 pode ser
11111"1-.1,,.
Arte)' verdad objetiva.In Problemas dei Realismo. México,Fondode
I 01111""111".
1966,p. I l-54 (I" 28).
\ AntonioCnndido Ctnlii. A personagem do romance.InA perso/lagem de ficção. 550 Paulo, !tI' 11101111
o, I'reEício.I n O discurso e a cidade. SãoPaulo,LivrariaDuasCidades,
Perspectiva,
J 972, p. 53-80 (p. 74-5). II li
3 2 o ROMANCE ING:..tS SEGUNDA LiÇÃO 3 3

vada. As estórias romanescas dos séculos XVI e XVII, que são as 111~('111re as classes sociais, no romance do século XIX, e ao reconhe-
IIIlt'IIlO do que há de trágico na existência cotidiana do homem
que interessam aqui, se ambientam no passado, são vagas quanto
1111111
.unbiente médio, entre coisas médias. Para Spitzer, estabelece-
aos detalhes da vida cotidiana, apresentam estrutura episódica,
I" ( IlI11esses novos parâmetros, uma "democracia exclusivamente
personagens aristocráticas e herói e heroína idealizados, para com-
binar com sua alta condição social. A estruturação formal do gê- 111111I,ll1a,
à qual corresponde, no domínio dos procedimentos lite-
I IIIIIS, a mescla de estilos, condenada pelo classicisrno'". O ordinário
nero, desse modo, se rege por regras de outra natureza, em que vale
, II I ornum, perdendo seu estatuto de complemento cômico, dei-
antes, na maneira como ali se organizam os acontecimentos, o
princípio da casualidade ou a intervenção da Providência, o que 1111para trás sua posição secundária e subordinada na hierarquia
111111
,JI c literária do mundo da epopéia e do romanesco, para ocupar
acarreta total abdicação da organicidade do enredo. Ao romanesco,
em que vogam técnicas formulaicas e convenções quase inaltera- "'1 1'1111'0da cena e ser encarados com um nível de seriedade inaudita.

das ao longo dos tempos, portanto, não cabe cobrar a verdade de I 1\1hora Spitzer mencione apenas o século XIX, basta lembrar uma
correspondência que, segundo Hayden White, caracteriza a repre- 111",1como Clarissa, de Richardson, para ver que o borramento de

sentação do real no romance e na narrativa hisroriografica". 1IIIIIIl'il'as e o reconhecimento dessa tragicidade já se encontravam

A fal ta de adeq uação co mo uma" imagem de algo além de si mes- 1II1,I~,IO no romance inglês do século XVIII.
mo" (a expressão é ainda de White) descreve o romanesco e, se não
é forçoso estabelecer uma hierarquia entre esse gênero literário eo UI IMANCE E NOVEL

romance e conferir a um ou ao outro um status de superioridade, I 11I,llldo tiveram que denominar aquilo que consideravam "a new

também não é o caso de se apagarem distinções. Sem pretender rei- 111'1I('Sofwriting", os escritores ingleses tinham àsua disposição duas

vindicar a exclusividade do realismo para o romance - Erich Auer- l"deIVI<lS:romance, que designava um certo tipo de narrativa associa-

bach demonstra de forma cabal as mudanças na concepção do real e ,1110111o maravilhoso, com o inverossímil e com um mundo ideali-
nas maneiras de representá-Io em diferentes períodos da história li- I1111(' arisrocrático que Ihes havia chegado pela mão dos franceses.e

terária, desde Homero e a Bíblia até [oyce' -, fica evidente que hou- 11\\'1.1gozado de grande popularidade desde o século XVII; ou ainda
ve um claro movimen to em direção a um maior realismo a partir do ,1/',,/, (llIC se referia ahistórias curtas, de temática amorosa. Para com-

romance do século XVIII, pensado como encenação de um entre- 1,11111.iinda mais, muitos se valeram de termos como history ou bio-

choque de forças sociais, como imitação da vida prosaica de um in-


divíduo, como elemento central de composição e de configuração " "I'"lIcr.ta enurneración caótica en Ia poesia moderna. In Lingüística e bistoria litera-
artística da experiência do homem comum. Vale retomar o comen- ~11011" EditorialCredos, 1974, P: 288. A citação completa é a seguinte:"(...) esa mez-
I, • li ir ";'.1 gue Auerbach ha esrudiado particularmente en Ia novela dei siglo XIX. En
tário que Leo Spitzer faz a propósi to da "mescla esrilística" estudada I 11111111. ,'11Balzac, en Flauberr, en tantos erros, se borran Ias frontcrasentre Ias clases
I lI. I~II1.1 cxisrencia cotidiana dei hombre en un ambiente 'rnedio', entre cosas 'medias'
por Auerbach em Mimesis. Refere-se ele ao borramento de frontei- I

" 1111"qllc para lossiglosXVII )' XVIlI, que distinguíanclaramentelosgéneroslirerarios


I I" I110,111 ""1tOIajerarquíasocialcornoIa lireraria, sólo lospríncipesde Ia tierra eran dig-
(,Ver Hayden Whitc, Ficrions or Facrual Represenrations,in Tropics o[ Discourse. Essays i" d, I" 1I.I[;edia,)' eI hornbrernedioy sus sufrirnientospcrrcnccían a Iacomedia. Llegaa
Cultnral Criticism, The Johns Hopkins UniversiryPress, 1990. 1"1,,I" ,.",. así,en Ialiteraturadei sigloXIX,una democraciaexclusivamentehumana, a Ia
, Ver Eric Auerbach, Miinesis. A representação da realidade lia litemtum ocidental, São Paulo, ,I ' '"II"l'onde, cn el dominio de los procedimientoslirerarios, Ia rnezclade estilos, con-
Edusp/Perspecriva,1971. 1'liUII1"11' ,·1clasicisrno".
3 4 o ROMANCE INGL~S SEGUNDA LiÇÃO 3 5

graphy também na tentativa de colocar alguma ordem na confusão 11111,11/ não significa que os historiadores literários não reconhece-
terminológica. Ou, tudo indica, aumentá-Ia. Ao longo de pratica- I I1IIque a ruptura também ocorreu na prosa de ficção francesa
mente todo o século XVIII inglês, essas designações foram usadas 1I11I~ou menos na mesma época que na inglesa;e, finalmente, que
quase que indiferentemente até que nove! entrasse de forma definiti- \ I \ ivrêucia da distinção terminológica em inglês facilitou em par-
va para o vocabulário crítico já no final do século com o sentido que I" ,I percepção de que uma mudança histórica ocorrera, dando à
lhe atribuímos hoje. Se, de início, houve uma espécie de área cinzen- 1IIIl.l' :1llglo-americana espaço considerável na formulação de
9
ta e nebulosa, a distinção acabou por se impor. Um pouco de histó- icoria do romance
11111.1 até a metade deste sécul0 •
ria da origem das duas palavras pode, ainda, ajudar a desfazer confu- Miis do que um problema de nomenclatura, o que subjaz a toda
sões e estabelecer diferenças. ,I polêmica são interpretações divergentes e conflitantes do sig-
Oriunda do latim romanicus, nome dado às línguas populares 11dll .ulo de romance (nove!) e estória romanesca (romance), são
faladas localmente em oposição ao latim erudito, a palavra roman- 111111111,.,
diversos de compreender e tratar a questão do realismo e di-
ce (derivada da forma adverbial romanice] era inicialmente usada 111I1('sposicionamentos em relação aos sentidos possíveis de que
para se referir àquelas línguas, com o sentido de vulgar. Desse ra- I \ III i1110termo possa ter se revestido desde sua incorporação ao
dical surgiram os termos enromancier, romançar, romanzare, sig- 111tlud:írio crítico no século XIX, mais precisamente em 1856.
nificando traduzir livros numa língua popular ou escrevê-I os nes-
sa língua. O próximo passo foi chamar esses livros escritos nessas t~'(AI ISMO
línguas de romanz, roman, romance, romanzo, que passaram mais 11,.1111
Il'lomar a questão, pode valer a pena resumir algumas obser-
tarde (a partir do séculoXY) a denominarum gênero literário que ,!,/II'~ (k Raymond Williams sobre o termo "realismo", a propó-
narrava hi;tórias de amor cortês em verso. Esse foi o termo que aca- 111I I li' ~ll;laplicabilidade à discussão do romance contemporâneo.
bou ficando consagrado em diversas línguas européias para se re- illlllll.\ :1rgumenta que, mais do que um objeto a ser identifica-
ferir a um certo tipo de prosa de ficção. Itil 11~1)('ci{jcado e apropriado, o realismo deve ser entendido
Nouel, por sua vez, é o adjetivo nove! (novo) substantivado e ado- um modo de descrever certos métodos
111111 e atitudes, e as des-
tado de forma definitiva, em língua inglesa, no final do século XVIII 1''''1,'', muito naturalmente, têm variado, na troca e no desenvol-
parase referir ao novo g~nero. A inexistência de termos distintos, em 11111
111
Ii comuns da experiência""'. Desde o princípio, "realismo",
outras línguas européias, para denominar aquilo que se verifica se- 1.1Wt\1ido técnico, foi usado para descrever a precisão e a vivi-
rem dois gêneros narrativos diversos tem levado ao uso da expressão 11111\
(111(;se apresentam artisticamente os detalhes observados,
"romance moderno", ao passo que muitos dos críticos de língua in- I' Ir 11I Ip()S tanto à caricatura quanto à idealização. Esse sentido
glesa falam em "ancient nove! ". Enfim, a confusão parece que se IIJ uiro, porém, conviveu ao mesmo tempo com a referência
11"1
mantém.]. -Paul Hunter, ao comentar a disponibilidade de apenas "tios relacionados
(1111 com certos tipos de assunto vistos como
um termo, genético em outras tradições lingüísticas, lembra cerrei-
ramente que a distinção parece mesmo mais crucial na tradição crí- I I'1111111""<",
Before Nove/s. Tbc Cultural Contaxrs oJEighteenth-CellIUlJ' Fiaion, Nova
I I ,,,,11,"W.W. Norron & Cornpany, 1990,especialmente páginas 25 e 27.
tica inglesa; que o faro de, por exe.nplo, a língua francesa abarcar
IH"",I Wlllillllll, Realisrn and rhc Conremporary Novel. In The LOlIg Reooliaion. Londres,
tanto o significado de nove! quanto o de romance na mesma palavra 1"1'.'11111',,·\\,1992,
p. 274-89.Ver p. 274.
3 6 o ROMANCE INGL~S S:::GUNDA LiÇÃO 3 7

realistas. "Realismo" ficava então definido como uma realidade 1"I','IlS:l0das relações entre indivíduo e sociedade. O realismo, por-
cotidiana, comum, contemporânea, em oposição a assuntos len- I illll', não estaria num estilo particular, ou na descrição de pormeno-
dários, romanescos ou tradicionalmente heróicos. Com a ascen- 1["" ,!rtalhes, mas no equilíbrio a ser buscado e atingido entre esses
são da burguesia, essa realidade cotidiana, comum, contemporâ- 1'""I,I~'ll1entos constitutivos e que é essencial ao método. Assim, é na
nea passou a ser associada com essa nova classe social e foi Itll',11l viva entre a sociedade, vista em termos fundamentalmente
denominada "doméstica" e "burguesa" antes de ser chamada de li"",.IÍ.~, c as pessoas, por meio das relações, vistas em termos funda-
"realista", tendo sido o romance um dos principais veículos dessa "" 111.11
mente sociais, que se encontra a melhor tradição realista e que
nova consciência. Depois de acompanhar as variações existentes " 1,11',1possibilidade de sua renovação contínua e permanente.
no "realismo" enquanto termo descritivo também nos séculos XIX I',I!,' ()que interessa aqui, basta sublinhar o fato de que, como mos-
e XX, mostrando como seus sentidos se expandiram, Raymond IIL' \XIilliams, é possível compreender o realismo como um modo de
Williams chega a uma formulação extremamente produtiva e es- '!l' I'I'II~:lOdas relações entre o social e o pessoal que ultrapassa a noção
clarecedora de "realismo", compreendido como "uma apreensão I, 11111
simples processo de registro, e depende, para sua consecução,
particular de uma relação entre indivíduos e sociedade" radicada 1"I,'sl obcrta de novas formas de percepção e comunicação em arte.
na idéia de que I Ii h ", ,10desse ponto de vista apresenta, de imediato, a vantagem de
lil ""1< izar o conceito, transformando-o num princípio ativo e dinâ-
A sociedade não é um pano de fundo contra o qual as relações pessoais
são estudadas, tampouco os indivíduos são meras ilustrações de aspec-
11110."1',
portanto, afeito às mudanças.

tos do modo de vida. Cada aspecto da vida pessoal é radicalmente afe- (l,l':llismo, dessa forma, não deve ser entendido como mera re-
tado pela qualidade da vida geral, contudo a vida geral é vista no que i","IIIi"IO artística da realidade, obtida mediante a imitação da natu-
tem de mais importante em termos completamente pessoais. Atenta- II 11111,1
huscado semelhante, como pensaram os primeiros téoricos
mos com todos os nossos sentidos para cada aspecto da vida geral, con- It I IIIIILIIlCC,ainda muito presos a uma concepção clássica de veros-
tudo o centro do valor está sempre na pessoa humana individual- não in illll",,~·a. A obra literária obedece a leis internas, é regi da por pro-
qualquer pessoa isolada, mas as muitas pessoas que são a realidade da 11', til' composição e depende da ordenação de materiais brutos
VIid a gera. I"
1'101I' li Il' de seu criador, cuja tarefa é captar o típico, o característico
, uurvuncnto social, é apreender a totalidade num destino indivi-
Esse movimento dialérico entre geral e particular e individual e
1" ti, lI'pl'cscntá-los sob forma artística. À função referencial do de-
social foi o veio, acrescenta Williams, que o romance, desde o século
XVIII, explorou e amadureceu graças ao aprofundamenro da com- II'l, ,,·,\i111,sobrepõe-se sua função estética.

i_ '" !'IMO E ROMANCE


" Idem, ibidcm, p. 278-9. Tradução minha. No original: "The sociery is nor a background "'11,' ~Iicicdade marcada por divisões sociais mui to rígidas, es-
againsr which rhe personal rclnrionships are srudied, nor are rhe individuais merely illusrra-
rions of "'pecrs of rhc way of life. Every aspecr of personal life is radically affecred by rhe
"11,, ,III.ISc hierarquizadas, cada indivíduo nascia determinado
qualiry of rhe general lifc, yer rhc gcneral life is seen ar irs rnosr imporranr in cornplerely per- I 1I,'lII'igcll1, títulos, posses, raça. A esse mundo correspondia
sonal rerrns, We atrend wirh our wholc sensos to ever)' "'pccr of rhe generallife, )'er rhe cen-
rre of vaiue is always in rhe individual hurnan person - nor an)' one isolared pcrson, bur rhe
11""I,) Iitcrário predominan rernen te aristocrático, caracteri-
m'1I1)' pcrsons who are rhe realiry of rhc gCllerallife". 1" 1""' 11rua alta carga de idealização, personagens estilizadas
3 8 o ROMANCE INGL~S SEGUNDA LiÇÃO 3 9

e polarizadas, quase arquétipos psicológicos, e linguagem eleva- Itll' 111Robinson Crusoe '\ os antagonismos sociais e a luta do
da, que se con figurava como uma li teratura da satisfação do de- iillidd\IO na e com a sociedade constituirão sempre seu assun-
sejo. A nova ordem socioeconômica, que iria se construir sobre • '.11.1razão de ser. São personagens em busca de uma identi-
as ruínas da estrutura feudal, trazia no seu bojo uma ruptura dos 1"I, ','lci~ll, baseada antes nas suas qualidades pessoais e in tr ín-
nexos entre o homem e a sociedade e o colocava em situação de I~ '1\1<';nas suas origens, ou seja, não mais na nobreza de
permanente mobilidade, uma vez que sua posição no mundo já iI~. 1111,'l1to e sangue mas na nobreza de caráter e coração. São
não estava mais predeterminada, o que o obrigava a buscar seu 111"I Ill'rsonagens que têm de enfrentar o desafio de uma socie-
lugar e abrir seus espaços. Nessa busca, marcada por limitações titll ,;11\ mudança, cujos processos de migração e urbanização
sociais, era de se esperar que as aspirações do indivíduo entras- 11111111:\
111a mobilidade física, geográfica e social e forçam-nas
sem em conflito com a realidade e esse passasse a ser o grande IllM;\r um mundo onde os padrões já não são mais univer-
tema do romance, que ganhou profundidade na análise dos sen- Ilí\l:IIIl' <Iceitos, o que as coloca, o mais das vezes, frente a fren-
timentos de suas personagens. Para retomar mais uma vez He- .111\ "c orifliros entre o ato e a norma" e "problemas de ajus-
gel, o romance nasceu do choque entre a poesia do coração e a pro- de conduta"".
1111'1\111 Um dos coroJários dessa nova condição
sa do mundo, e seu tema preferencial, desde seus momentos 111Ii p.ipcl absolutamente crucial desempenhado pelo tempo,
inciais, serão os embates do indivíduo com a ordem social: IlÍli u.u.unento, no romance, constituirá outro fator diferen-
" 11('11:1111
inan te entre o novo gênero e o romanesco. É Bakhti n,
o romance, no sentido moderno da palavra, pressupõe uma realidade
(1II'IIS:liO sobre os cronotopos no romance, quem chama a
já prosaica e no domínio da qual procura, na medida em que este esta-
do prosaico do mundo o permite, restituir aos acontecimentos, assim 111.,111
p.ira o modo como, no romanesco, não há lugar para
como às personagens e aos seus destinos, a poesia de que a realidade os ,,1I\l1.\l1~·as operadas pelo tempo sobre as personagens", Ali,
despojou. Um dos conflitos mais freqüentemenre tratados pelo ro- IlcI~~,ltl,I'111do tempo é medida apenas no sentido técnico, me-
mance, e que é o tema que mais lhe convém, é o que se trava entre a poe- !tIL11.: cI ias, horas, minutos -, sem que se percebam indícios
sia do coração e a prosa das circunstâncias, conflito que se pode resol-
ver cômica ou tragicamente, ou de uma das duas maneiras seguintes:
111'''I',I'ICa leitura de Robinson Crusoe como uma alegoriado individualismoeco-
ou os caracteres que se tinham revoltado contra a ordem do mundo 01,IdOl'ldade, enquanroo próprio Defoepropõeque o romancedeveser lidocomo
acabam por reconhecer o que ele tem de verdadeiro e substancial, re- 1"11111 ,I,. \Ilfrilllcnroe salvação(ver Serious Rejlectio/lS During lhe Life and S"'prisillg
"I IInl,il/StJIICmsoc, 1720).
signam-se às suas condições e inserem-se nele de forma ativa; ou des-
I" I I 1'\I'''\10Ssão de Antonio Candido. Ver "Um instrumento de descobertae in-
pojam da sua forma prosaica o que fazem e realizam, para substituir a 111 111Farumção da literatura brasileira. (Momel/los decisivos), São Paulo, Marrins,
realidade prosaica em que estão mergulhados por uma realidade trans- I 11' \

formada pela arte e próxima da beleza. 12


111.,,1 1\ti 111111. Ver Formasde tempo e de cronotopo no romance (Ensaiosde poética
01 1111}1II'l/liesde literatura e de estética (A teoria do romance). São Paulo,Editora da
11",1111,I ')88. Um esclarecimento:como aponta Michael Holquist, na Introdução
Mesmo que, ainda quando tateia caminhos, o romance aca- 1,'.1, 1/IIllgil/aliol/, "uooel" é o "nome que Bakhrin dá a toda e qualquer forçaem
be lançando mão de velhos artifícios como a alegoria, como éo uu. 1111' dl' urn dado sistema literário com o fim de revelar os lirnires, os constrangi-
1111111.1" d.iqucle sistema". Nessesentido, para O teórico russointeressaparticular-
III~II,II IHocesso de "novelização",isto é, o diálogo que se estabelece entre "aquilo
li

11r:. Hegel. Euàica. Poesia. Lisboa,Guimarães, 1980, vaI.Vil, P: 190-1. 1I lI! I ,,11'11),1 admire C0l110 literatura e aqueles textos que s50 no contrário excluí-
4 O o ROMANCE INGLÊS SEGUNDA LiÇÃO 4 1

visíveis do amadurecimento do herói ou heroína, ou que ela te- de seus romances que valorizamos, mas a organização de diferentes mo-

nha qualquer impacto no mundo representado. No final das dalidades de experiência, tanto introspectiva quanto social, reflexiva e
" . pessoa I'e gera. I '6
pratica,
aventuras, ambos são o que sempre foram, desde o início, into-
cados pela ação da experiência porque presas de forças impes-
soais e anônimas, joguetes nas mãos do destino, de deuses ou
vilões. São, segundo Bakhtin, pessoas do acaso, destituídas de
iniciativa, e tudo ali é contingente. No romance de cavalaria,
por exemplo, o tempo da aventura se estrutura pela tendência
ao miraculoso, e a distensão ou compressão emocional dos dias
ou horas resulta num jogo subjetivo com a perspectiva tempo-
ral (e naturalmente com o espaço), que lhe confere um caráter
até certo ponto simbólico. Outro é o sentimento do tempo
como força plasmadora de formas e imagens literárias, no uni-
verso do romance. Aqui, as determinações espaciais e tempo-
rais ocupam o cerne das relações da personagem com o mundo
e a noção de tempo carrega dentro de si a possibilidade do
aprendizado por meio da experiência, a chance de mudança, de
amadurecimento.
Foi essa nova realidade que se objetivou numa forma literária
nova, que buscava, na apreensão e representação do real, captar
o movimento da vida contemporânea. Este, o realismo moder-
no, uma forma histórica que o romance soube incorporar como
poucos, por meio do contato estreito com a vida cotidiana e com
a experiência humana, fosse ela psicológica ou social. Por essas
razões, é possível concordar com John Preston que

( ... ) Os romancistas do século XVIII são os fundadores do romance mo-


derno e não desapontam o leitor moderno. Não é a superfície "realista"

i", l'li ',I"", Thc Novel: England. In Rouald Grimsley (cd.). Tb« Age 01 Elllightenmellt,
I 'U') 1"'''l:;uin, 1979, p. 332-3. Tradução minha. No original: "( ... ) The eighteenth-
dos de tal definição de literatura". O romance moderno seria, portanto, "simplesmente a li \' 11""-11\,, are rhe founders of rhe rnodern novel and do nor disappoinr rhe rnodcrn
expressão mais complexa e destilada deste .irnpulso". [Inrroduction. The Ditzlogic I I,,, li'" lhe "realisric'' surface of rheir novels wc value, bur rhe organization of dif-
Falir e5$rt)',. b)' /VI. /VI. Balehtin. Michael
Imagillflúoll. Holquisr (ed.). The Univcrsiry ofTexas i ttlll\l~·\ li!" cxperience, borh inrrospecrive and social, rcflecrive and practical, personal
Press, 1996, p. xxxi.] '11' ri
42 O ROMANCE INGLÊS

SUGESTÕES DE LEITURA TEORIAS DO ROMANCE

AUERBACH, Eric. Mimesis. A representação da realidade na litera-


tura ocidental. São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1971.
BAKHTIN, Mikhail. Epic and Novel. ln The Dia/ogic lmagination.
Austin, Universiry ofTexas Press, 1986, p. 3-40.
--o Questóes de literatura e estética (A teoria do romance). São
Men must be taught as if)'ou taught them not,
Paulo, Editora da Unesp/Hucitec, 1988.
(Alcxandcr Pope, in Essay on Criticism.)
CANDIDO, Antonio etalii.Apersonagemdeficção. São Paulo, Pers-
pectiva, 1972.
CAUDWELL, Christopher. Romance and Realism. A Study in En-
glish Bourgeois Literature. Samuel Hynes (ed.). NovaJersey,
\ 1'\11'11Sãodo romance na Inglaterra do século XVIII marcou tam-
Princeton University Press, 1970.
I II 111,I inauguração de um longo e i ntenso processo de discussão so-
C I1 IIOVO gênero. Inicialmente restrita aos prefácios, em que escri-
111
F RYE, Norrhrop. Anatomy 01 Criticism. Princeton University
/1111'\I orno Defoe, .Richardson ou Fielding refletiam sobre seus
Press, 1973.
,,11/1'1
ivos c sobre os problemas técnicos que enfrentavam, a atividade
--o Secular Scripture. A Study 01 the Structure 01 Romance. Har-
I' I1Ixiva que acompanhou o período de formação do romance se ex-
vard University Press, 1978.
HEGEL, Friedrich. Estética. Poesia. Lisboa, Guimarães, 1980, vol. 7. I' 11111111
de modo surpreendente, invadindo periódicos e revistas lite-
I li 1.1\(' ganhando espaço até mesmo na correspondência de leitores.
LIMA, Luiz Costa. A questão da mirnesis. In Vida e mimesis. Rio de
111'(em-chegado à cena li terária - Georges May o descreve
janeiro, Ed. 32,1995, p. 59-307.
'11111111111
"parvenu de Ia Républiq ue de Lettres" -, ao romance fal-
LuKAcs, Georg. Arte y verdad objetiva. In Problemas dei realismo.
II 1111uadição e sangue nobre. Sua origem bastarda exigia, por-
México, Fondo de Cultura Económica, 1966, P: 11-54.
--o A teoria do romance. Lisboa, Presença, s.d.
til: seus criadores
1111111, definição e demarcação de fronteiras, ex-
1'1111.11,.10
de propósitos, investigação de soluções formais, busca
STEVICK, Philip (ed.). The Theory olthe NoveL. Nova York, The
Free Press/Macmillan, 1967. li li 1'.11
[icarivas. Teorização, em resumo.

WATT,lan. The Rise olthe Nouel: Studies in Defoe, Ricbardson and \\·,i 111,os prefácios, artigos e panfletos que discutiram o novo
Fielding. Londres, Penguin, 1983. 111111 i riam ocupar-se de questões fundamentais como: defini-
IIj dlll\0ncro; problemas de forma e técnica; questionamento do
WILLlAMS, Raymond. Realism and the Contemporary Novel. In
1I11'lidopróprio ao romance; questões éticas; a figura do leitor;
The Long Reuolucion. Londres, The Hogarth Press, 1992, p.
11",1do romancista; estratégias narrativas; a relação do rornan-
274-89.
1I11111l1tros
gêneros, entre as mais importantes.
11111.1
época em que ainda vigoravam os preceitos neoclássi-
1II'gll:l usada pelos contemporâneos para medir o "bom" ou
4 4 o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 4 5

" mau" desempenho dos escritores era a da tradição clássica. Daí a 11" (' "nove!" e uma tentativa de começar a demarcar as diferenças.
preocupação generalizada com o decoro e com a "true resemblan- \,~i111,às violações de tempo e espaço, ao predomínio do maravi-
ce", que se referia à imitação antes da natureza humana em seu as- Illi I\() do primeiro, se contrapõem a exigência de probabilidade e
pecto geral que das condições reais da vida comum. Dar uma apa- I 111.1
ior proximidade do real do segundo. No entanto, a confusão
rência de verdade ao que se representava significava distorcer a [1111('os dois termos vai prevalecer ao longo de quase todo o sécu-
representação de modo a fazê-Ia adequar-se às idéias contemporâ- 111, m.ircando a instabilidade da acepção de "nove!", vocábulo que só
neas de propriedade e decoro. A representação das coisas tal como .u fixar em língua inglesa para denominar o romance já no fi-
'.t'

eram de fato se confinava à comédia e ao anti-rornanesco. 11ti d() século XVIII. Para pôr fim a essa confusão, contribuiu em
Ao novo gênero, portanto, que tinha como seu objeto a vida pri- ,'I urde parte a definição registrada por Clara Reeve em seu The
vada e doméstica do homem comum, cabia dizer a que veio e justifi- I"",I~I'I'SS o/Romance, de 1785, uma das primeiras tentativas de lar-
car sua existência. Acusado por seus inimigos de "perigoso", "pernicio- '11 11'\lt:go
de fazer a história da ficção desde suas origens:
so", "inútil", "subversivo" ou "frívolo", o romance precisou armar-se
t ) romanesco é uma fábula heróica, que trata de pessoas e coisas fabulosas.
de fortes argumentos em sua própria defesa. As acusações vinham na
( ) romance é um quadro da vida real e dos costumes, e dos tempos em
esteira da desconfiança que cercava a ficção, vista num país puritano
'111('de é escrito. O romanesco, em linguagem sublime e elevada, descreve
como a Inglaterra como algo que desviava seus leitores das atividades
II li uc nunca ocorreu nem é provável que ocorra. - O romance faz um re-
sérias e importantes. Numa época em que se valorizava a "palite lite-
I.Ho Euniliar daquelas coisas que se passam todos os dia~ diante de nossos
rature" e a arte e a cultura "altas" eram restritas ao consumo de uma
I dlllls, que podem acontecer com um nosso amigo ou conosco; e a sua per-
elite que as considerava símbolo de refinamento e distinção, a ficção /1'10,,10é representar cada cena de uma maneira tão acessível e natural, e
era associadaao popular e considerada por muitos passatempo de ocio- II/~ Ias parecertão prováveis, a ponto de nos enganare persuadir (pelo me-
sos, leitura pouco recomendável, ou, o que era ainda mais grave, cor- 1111',('Ilquanto estam os lendo) de que tudo é real, até que sejamos afetados
ruptora de costumes. Isso se devia, em grande parte, à circulação e boa 1111."alegrias e aflições das pessoas na história, como se fossem nossas. I
acolhida que haviam recebido os romances romanescos, vindos prin-
cipalmente da França, ao longo de todo o século XVII. r:'" I I) OU FiCÇÃO?
Um dos primeiros problemas que se percebem nas tentativas I .. Illdil1ição de Reeve, que se tornaria canônica, aponta para uma
iniciais de demarcação de fronteiras pelos romancistas é a própria 'I 11' 1I'~lõesque foram centrais a toda a discussão que se travou nos
definição de romanceeo estabelecimento das diferenças entre "roman-
ce" e "nouel", É preciso lembrar que o termo 'nove!" tinha inicial-
I, ~dll',I" IlIillha. No original: "The Romance is an heroic fable, which trears of fabulous
mente o significado de história curta, centrada em geral numa in- 11 11111 rhings. - The Nove! is a picture of reallife and rnanners, and of rhe rimes in
triga amorosa. É com esse sentido que ele aparece, por exemplo, II11li I11\IVI'iltcn. The Romance in lofry and elevated language, describcs whar never hap-
111111 " likcly to happen - The Nove! gives a familiar relarion of such rhings, as pass
no prefácio de William Congreve a Incognita, de 1691, ou no de ,I d 1\ 1II'I0reour eyes, such as ma)' happen to our friend, or to ourselves: and rhe per-
Mrs. Mary Delariviere Manley a The Secret History o/Queen Za- 11:'11 11111, I~ to represenr every scene, in so easy and natural a rnanner, and (O rnake rhern
11 li 1,,"h.\l,lc, as ro deceive us inro a persuasion (ar leasr while we are reading) thar ali
rah and the Zarazians, de 1705. O que se observa nesses primeiros I 1111111 IVcare affecred by rhe joys or disrresscs, of rhe persons in rhe srory, as if rhey
ficcionistas é uma confusão geral no em prego dos termos" roman- 111 11\\'11",
4 6 o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 4 7

prefácios e resenhas: a da representação do real, matéria privilegiada III'~ 11:1\


imen to servia, na realidade, a dois propósitos: se, por
do novo gênero, ou, nos termos da época, o da relação entre verda- Uil Illdo, contribuiu para o enobrecimento do gêq.ero, vincu-
de e ficção. A desconfiança generalizada em relação à ficção obrigou 1111i11l0:\ melhor tradição clássica, por outro lado íhe conferiu
muitos romancistas I •
a mascarar a natureza ficcional de suas obras, es-
, •
lIi.111IIIIção e uma tarefa - a de fazer da ficção um instrurnen-
condendo-se atrás da figura do "editor" ou "relator" de fatos alega- I' ,li l·tIi f1cação moral. .
damente reais, dos quais teriam sido testemunhas ou de que teriam ( h .1,essa exigência acabou por criar um.dilerna para os rornan-
tido conhecimento por meio de manuscritos que Ihes chegaram às 1"l.I~ () da inter-relação entre moral e realidade. O que é mais efi-
mãos não se sabe bem como. Esse é o recurso utilizado ad nauseam i\ 1111'para reforçar uma lição moral: fato ou ficção? Como ade-
ao longo do século para conferir ao relato um ar de verdade. Samuel jll'" ,I u-presentaçâc da realidade ao conteúdo moral, edificante e
Richardson, por exemplo, alega ser o mero editor das cartas de Pa- "1111'1.\1'
dos romances? -
mela, a heroína do romance fundador que publicou em 1740; Ho- \,11nucl Johnson, um dos mais importantes homens de letras do
race Walpole vai se valer do artifício do manuscrito encontrado na ,"111,dedicou todo um número de seu The Rambler, em 1750, à
biblioteca de uma família católica do norte da Inglaterra como fon- 1101
11\\.\0dessas questões. Seu artigo é um ataque veemente ao rea-
te de The Castle o/Ot1'anto (1764). Essa negação explícita do estatu- l! 1IIIItil' personagem e de ação. Sua crença na possibilidade de que
to ficcional de suas obras implicava a asserção concomitante, explí- I.IIIIt>rCS fossem levados a imitar a personagem que admirassem
cita ou implícita, daverdade histórica do que estavam publicando. "', I um que Johnson questionasse a representação fiel da realidade,
Outro corolário do problema da relação entre verdide e fic- 1111111
1IIIdos os vícios, defendendo a personagem pura e enfatizan-
ção acabou se revelando na intensa discussão sobre a própria d'loI unportância do exemplo na ficção. Ele assevera que a simples
questão da representação da realidade, problema que perpassa lillllol~:\()da vida não é um fim legítimo da arte e discute os perigos
toda a teorização no período. A má reputação do romance pro- ruvulvidos na criação de personagens mistas, isto é, personagens
vocou a polêmica sobre a representação adequada da realidade. I,,, ,U I.\Sde boas e más qualidades. A posição conservadora de John-
Daniel Defoe e Richardson contaram entre os primeiros a desco- '111,lJlle o leva a defender fortemente a ficção de Richardson e a cri-
brir o potencial didático da ficção. Havia implicitamente, em "'.11 .rhcrtarnente as posições de Henry Fielding, era representati-
suas visões sobre ela, o raciocínio de que, se a ficção tinha um for- 1,11'lima vertente crítica significati va ao longo do século.
te apelo popular e pti nci pai mente os jovens iam lê-Ia de q ualq uer Nessa discussão, ação e personagem são problemas centrais. A
forma, seria mais adequado que ela contivesse uma boa dose de 111111"
in noção de personagem é, para dizer o mínimo, problemáti-
instrução moral, na melhor tradição horaciana do utile et dulci. 1.1, 1I\lI"um lado, exigia-se o compromisso com a verdade e a cópia da
Richardson 'proclama solenemente a uma de suas corres- Il" dldade. Por outro, a exemplaridade. Como conciliar uma e outra,
pondentes aquela que se transformaria numa máxima setecen- [ 1pri meira implica a representação dos vícios e a segunda a excl ui?
r
risra: "Instructiori, Madam, is the pill, Amusernenr is the gil-
ding"'. O preceito horaciano da instrução combinada com I HJESTÃO DA PERSONAGEM

I 11",'.('S dilemas e contradições, surge um foco importante de discus-


, Cana a Lati)' Elehin, 'f.2 de setembro de 1755. I'A insrrução, Madarne, é 3 pílula; a diver-
são é o dourado,"] "I ,I noção mesma de personagem, cuja teorizaçâo ocupa bastan-
4 8 o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 4 9

te espaço nos prefácios, em geral relacionada com a discussão de con- nuuuc porque eram verossímeis. Na sua visão, personagens moral-
teúdo moral. Com algumas exceções, como Charlotte Srnith, que 1III'Ilteambíguas podiam ser acompanhadas com prazer e interesse
procura em seu prefácio a The Young Philosopher explicar didatica- 1'1,10leitor e por isso eram potencialmente perigosas. Houve ro-
mente ao leitor que ele deve diferenciar entre os sentimentos e opi- nuucistas, porém, defensores das personagens mistas, qu~ apre-
niões das personagens e os do autor, o que vemos é a tentativa de re- 1111
nrarn argumentos igualmente fortes para justificar sua opção.
solver um problema criado pelo próprio objetivo de copiar a vida real. I '1i~1(
Ii ng, por exemplo, defendia que nem a excelência consumada
COIno ser fiel na representação da natureza humana sem tratar de 1li'11\a monstruosidade absoluta podia ser objeto de imitação. E
seus vícios? Ninguém desejava criar um "fauldess rnonster", como di- 11.1posição fez escola. O anônimo autor de The Campaign (1759)
zia Richardson, ao tentar explicar "the unpremeditated faults" ou 1111h.1
consciência de que, se quisesse compor uma pintura da vida
"defects in judgment" de suas personagens e reiterar infatigavelmen- 1IIIIIIIm, precisava criar suas personagens como uma mistura de
te em cartas a leitores e correspondentes suas intenções edificantes e 1IIIIde e vício:
a virtude quase sem mácula de suas criaturas. Ainda assim, admitir a
representação do vício em romances que assumiam para si a tarefa de I".'p~ro que não encontres senhoras e cavalheiros finos monstruosamente
reformar costumes implicava uma delicada operação argumentativa, 11.11)naturais nas personagens mais ai tas, nem uma absurda bufonaria invo-

na tentativa de resolver a contradição. O prefácio de Oaniel Defoe a [unuiria nas mais baixas, tal como encontras na orientação comum dos ro-

Roxana (1724) é um exemplo desta tentativa: II"IIIC~S. Empenhei-me em desenhá-Ias todas como as criaturas humanas
11'1('ternos em torno de nós; algumas muiro más; algumas muito virtuosas,

Se há alguma parte em sua história que, ao ser obrigada a relatar uma 11101'.\maioria o que a maioria dos homens é.uma mistura de bem e de mal.

ação má, parece descrevê-Ia de modo demasiado franco, o escritor diz, ,\dll\ilo abertamente que não fiz de meu herói uma personagem perfeita;

rodo cuidado imaginável foi tomado para fugir das indecências e de ex- 1111111'
1<;freqüentemente observei que, como essas personagens não se pare-

pressões impudicas; e espera-se que não encontres nada que instigue I 1'llll'Om ninguém, não interessam a ninguém através de seu exernplo.Í

uma mente viciosa, mas, em rodas as partes, muito que a desencoraje e


exponha. I h·fl'nsor seja da personagem pura, seja da personagem mista, o
É difícil que se possam representar cenas de crime sem que alguns façam íl 0111,1111
ista do século XVIII teve sempre como perspectiva o caráter
delas um uso criminoso; mas, quando o vício é pintado em rodas as suas
cores pouco apreciadas, não é para fazer com que as pessoas amem-no 11I rI,,"1I111kcep clear of indeceneies, and immodesr expressions; anel 'ris hop'd )'OU will
mas para expô-lo; e se o lei ror fizer um uso errado das figuras a maldade I 1111ri11111'.
!<I prompr a vicious rnind, bur every-where much ro diseourage and expose ir."
111 111, i
I 111 C can scarce be represenred in such a manner, but some may make a criminal use
é só dele.'
I ti" 111,1"11 whcn vice is painred in irs low-prizd colours, 'ris nor ro rnake people in love wirh
1>111'" ,'xl'tI~C ir; and if rhe reader rnakcs a wrong use of rhe figures, the wickedness is his OWI1",

Johnson, por sua vez, instava os romancistas a deixarem de lado 11,1,111',


'li minha. No original: "I hope yOll will nor find such unnarural rnonsters of fine
101,1'1
11101ílnc gcnrlemen in rhe higher characrers, nor sueh unrneaning absurd buffoonery
as personagens mistas, não porque elas falseassem o real mas justa- I thtHI "I t lrc lower, as )'OL! have mer wirhin rhe cornrnon run of novels. I have endeavou-
II .11 I\\' (bem ali, like hurnan crearures as we have about lIS; some very vicious, some
11111"11\,
hur rnosr, whar mosr men are, a mixrure of bad and good, J havc 110r, [ fre-
,; Tradução minha, No original: "If rhere are any parts in her srory, whieh being oblig'd [Q
11.1110,,1,'
my hero a perfecr characrer; because I huve ofren observed, rhar as sueh cha-
rei are a wicked acrion, seem [Q dcscribe ir roo plainly, rhe wrirer says, ali imaginable care has • " "'lIl>lc noboely, so rhey inreresr nobody by rheir exarnple".
5 O o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 5 1

exemplar e didático de seu romance e, na esteira de Richardson ou pll',~as pelos romancistas. Nesse sentido, durante o século XVIII,
de Fielding, muitos outros iriam repetir os mesmos argumentos. O li, .uacterístico retém seu significado de típico. (Character vem do
reconhecimento tornou-se uma questão central no processo de lei- 1',11'1\° c significa instrumento para marcar; daí, marca ou natureza
tura, isto é, exigia-se do leitor que reconhecesse a personagem como 111'1 intiva. O OxfordEnglish Dictionary registra que Henry Fielding
verossímil ou provável. Daí, certamente, a ênfase na "cópia da natu- 1"1 () primeiro, em 1749, a usar a palavra character para designar
reza", as referências ao "livro da natureza" e a intenção de "explorar 11111.1
personalidade investida pelo romancista de atributos e qua-
os recônditos da natureza humana". li,l.ulcs distintas", isto é, no seu sentido moderno.)
As duas noções - de personagem e de natureza - estão intima- No século XVIII, portanto, a soma de individualidade e re-
mente relacionadas na reflexão crítica do período. Natural é a per- l'II"l'f1 tatividade é produto da ten tativa de j untar experiência in-
sonagem reconhecida pelos leitores. Para tanto, é preciso que ela te- dividual e conduta exemplar. Richardson, por exemplo, se propõe,
nha na sua composição uma mistura de traços gerais e singulares. 1111 prefácio a CLarissa, a fazer de sua heroína uma personagem
Para ser uma representação fundada na natureza humana, é neces- l'x(,l11plar to her sex", ao mesmo tempo que procura desenhar
sário que o ator do romance combine o geral e o particular na sua II,I~criaturas como personagens distintas, vivas e variadas. Por
composição. É preciso que seja reconhecido como verossímil e, ao 11.1vez, Fielding afirma que a provisão que faz em Tom fones não
mesmo tempo, assuma uma função exemplar para que sua ação seja I 1111
i ra senão a natureza humana, referil~do-se ao que é geral e ca-
passível de imitação ou de repúdio por parte dos leitores. É o que I u rvrfstico (Livro I, capítulo 1). Em que pesem essas pequenas
parecem pretender Henry Fielding, ao afirmar, emfosephAndrews Iltlt'renças, no entanto, ambos compartilham da noção de perso-
(1742), que seu alvo não é o indivíduo mas a natureza humana, e II,Igl'll1 corrente entre seus contemporâneos. As evidências do
Fanny Burney, ao declarar ser seu objetivo "to draw characrers from IIIIIV{vio entre generalidade e particularidade nos obrigam, des-
nature, though not from Iife" , no prefácio a EveLina (1778). .r mnneira, a relativizar um dos traços que Ian Watt propõe, em
De certa forma, sobrevive, na personagem assim concebida, a I j". Rise ofthe Nouel, como definidores do romance no seu perío-
velha tradição estabelecida pelos caracteres teofrásticos, ainda em 1111 de ascensão.
voga durante o século XVIII. A existência de várias edições da obra Apesar de reconhecer que algumas das personagens, principal-
de Teofrasto (a primeira tradução para o inglês data de 1616), dos IIII'IIICnos romances de Fielding, ainda conservam traços do tipo,
Caracteres de La Bruyêre (1688) e de imitações, como The English \\1:111 afirma que há uma grande ênfase na individualização da per-
Theophrastus (1702), atesta o interesse pelo retrato de caracteres. 1lIl.lgcm, cuja iden tidade se produz por meio de sua nomeação e
Os character-sketches, forma bastante popular no século XVII, per- I,11 .11 ização precisa no tem po e no espaço e que tem sua própria ex-
duraram no século seguinte, podendo ser encontrados não só no 1"'1 iência como única fonte de aprendizagem, já que não pode
Spectator mas em vários outros periódicos. Os objetivos expostos "t.li.~se basear em modelos. Sem dúvida alguma, Watt tem razão.
por Teofrasto em seu prefácio - apresentar a diversidade dos costu- r~.t t cntariva de fortalecer seu argumento, entretanto, deixa de
mes e observações sobre a natureza humana e pintar os gregos em IIIII,itlerar que há ainda muito de exemplar e representativo nas
geral, sem deixar de lado as singularidades que diferenciam um ho- 1"'1 ,onagens setecentistas. Basta ver o que dizem Richardson e Fiel-
mem do outro - coincidem, em linhas gerais, com as intenções ex- "1111\ nos seus prefácios e como constroem suas personagens nos
5 2 o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 5 3

romances, para perceber o propósito evidente de aliar individuali- t\il~ITIde dar forma ao novo gênero, os dois romancistas contribuí-
dade e exemplaridade, principalmente no caso do primeiro. 1,1111
para estabelecer suas bases teóricas em seus prefácios, corres-
1IIindência e capítulos introdutórios. Contemporâneos, os dois es-
ENREDO I I iiores enveredaram por caminhos bastante diferentes no
A outra questão central, referida acima, é a da ação. Ainda que a ação 1IIopósito de dar forma literária à experiência do homem comum.
seja sempre considerada no seu caráter moral e exemplar, o que se de- Samuel Richardson procurou adaptar a teoria do drama ao que
preende da discussão teórica nesse período é a permanência do pa- I h.IITIOUde "new species ofwriting". Preocupado em representar os
drão aristotélico, mais uma vez na tentativa de dar nobreza a um gê- '"ltnitos interiores de suas personagens, divididas entre o coração
nero popular e de aplicar ao romance critérios emprestados da I ,t consciência, entre suas inclinações pessoais e as convenções
tradição clássica. A terminologia usada é a dessa tradição, principal- 111iais, ele encontrou na técnica epistolar a solução formal de que
mente por parte dos escritores que, como Fielding, estavam familia- 111'(cssitava para criar uma narrativa essencialmente dramática e
rizados com a Poética deAristóteles. Foi o filósofo grego quem forne- 11~i(ologicamente realista. Escondendo-se atrás da figura do "edi-
ceu o padrão de que os críticos necessitavam para encaixar a nova 1111
'I, deu voz a suas personagens para expor seus dilemas de forma
forma. Isso levou a uma ênfase no enredo, o elemento narrativo que .111crn. A opção pelo método do "writing to the mornent" permitiu
continha o desenho, o plano, e tornava a estrutura do romance de- 111escritor apreender a personagem em meio às suas contradições e
pendente da relação entre os inciden tes da história. A im portância do 11'~lIllOUnum fino estudo de seus estados de consciência.
enredo, para um romancista como Fielding, por exemplo, para quem liclding, por sua vez, parecia mais interessado em compor um
o romance é a contraparte moderna da épica, ou a discussão do papel !"lIlmama da sociedade de seu tempo e foi buscar na épica o qua-
da catástrofe e da unidade, por parte de Richardson, dão bem a me- IIi li de referência sobre o qual estruturou sua obra. De formação
dida da tendência de trazer o romance para o quadro de referência u r.totélica, via a ficção como um artefato, como imitação de uma
existente e descrevê-lo com os termos disponíveis, no vocabulário crí- ",,111humana, cuja ordenação e organicidade estrutural são obra de
tico que era verdadeiramente o da tradição clássica. I'i1rriador. Ele não esconde o caráter ficcional de sua narrativa e
De Aristóteles, Fielding emprestou conceitos como o da unida- 11',,1,de forma magistral, as intervenções e intrusões de seu narrador
de do enredo, as partes constitutivas da epopéia (fábula, ação, per- 1,".1 não deixar seu leitor esquecer-se disso. Suas teorias sobre o que
sonagens, sentimento e dicção) para propor, em seu famoso prefá- III numinou de "cornic epic in prose" são consistentemente desen-
cio aJosephAndrews, a "new province ofwriting". Foi desse dialógo Iti vidas no prefácio a Joseph Andrews e nos capítulos introdutórios
entre a tradição e o novo que se desenhou uma teoria para o novo .11 til/li Jones. Dois dos termos dessa "etiqueta" criada por Fielding
gênero, teoria essa que produziu os dois modelos paradigmáticos IIII ,I definir sua obra demandam explicação. Cômico, aqui, se refe-
concretizados na obra de Sam uel Richardson e Henry Fielding. 1!.II~\J1licitamente ao propósito de retratar personagens de extração
O pensamento crítico ficou indiscutivelmente marcado, a par- II( 1,11baixa e não necessariamente ao objetivo de provocar o riso.
tir de 1740, pelas idéias defendidas por esses dois fundadores do \" I',I~SOque épico não só reforça o caráter narrativo que Fielding
gênero, pois suas concepções da teoria e da prática do romance se IIIHI 1'1\1prestar à sua obra, mas também um certo distanciamento que
enraizaram e frutificaram na obra de seus seguidores e imi tadores. lill 11'llde, e consegue, manter em relação à matéria narrada. Ainda
5 4 o ROMANCE INGLÊS TERCEIRA LiÇÃO 5 5

que o épico pudesse sugerir o recurso ao maravilhoso, próprio do I I 1I'IIhase distanciado paulatinamente do romanesco, abandonan-
gênero, em Fielding, a despeito da incongruência que poderia sus- 1'1111
ccurso ao maravilhoso, a personagem de poderes sobre-huma-
citar a sua coexistência com o verossímil, é este último que prevalece. 1111\
t' os eventos sobrenaturais, o romance não se livrou de fato de
O recurso às coincidências e à imitação mais evidente do modelo , 11.uuccessor. O romanesco se ocultou, se deslocou (para usar um
épico na ação de seus romances- as batalhas heróico-cômicas - não 1,11110de Northrop Frye) , mas não desapareceu por completo. Ain-
obedece propriamente aos ditames realistas mas também não os in- ,IIIJlIl! inúmeros romancistas o tenham condenado em seus prefá-
valida porque o que permanece fortemente é a adesão do escritor à , 111\,ou em suas reflexões, muitas vezes ele fez suas aparições nos ro-
representação panorâmica da sociedade de seu te~po. 1II,III<'<':S,
por meio do recurso a revelações de última hora (em geral
Contra a orientação mais subjetiva, individualista e privada do 111,11
ionadas ao nascimento do herói), ou de casamentos entre a mo-
método epistolar de Richardson, em que personagem e enredo são "111.1de classe baixa e o aristocrata (PameLa é o mais clássico exern-
indivisíveis, Fielding propõe um modelo em que o enredo tem prio- do gênero, com sua boa dose de
I1111 "wish fulFilment"). A prova mais
ridade, não se subordinando à sondagem das relações pessoais e , 1i r,1i de sua permanência está na sua reaparição com força total no
dos estados de consciência de suas personagens. Em ambos, no en- 1IIIII.IIlCegótico, a partir de 1765.
tanto, prevalecem a solidez do cenário,
rencial, a busca da verossimilhança,
o uso da linguagem
exigências, entre outras,
refe-
do
A h istória do romance inglês do século XVIII se fez dessas ten-
111'\,da resistência a seus detratores
.
e do interessante processo de
que Ian Watt iria definir como realismo formal. Em ambos, o ro- ,II',III~são e reflexão provocado pela novidade de uma forma que,
mance encontraria os caminhos que iria trilhar no futuro. , 111vínculos com a tradição, permitia o rareio e se apresentava
'111110um território de liberdade e experimentação. Os que soube-
TRILHAS E CAMINHOS I 1111
se aproveitar de suas possibilidades e de seu potencial encon-
Não foram poucos nem triviais os embates em que se viu envolvido 11.11,1111
soluções formais que fizeram escola e se incorporaram
o romance no seu processo de ascensão e consolidação. Para se im- 1111110
conquistas definitivas, criando novas convenções e técnicas
por como o gênero cuja vocação seria o tempo presence e cujos en- 1\u r.uivas que deram forma artística ao mundo de sua experiência.
redos passariam a revolver em torno de coisas familiares, circunscre- I h preponderante exigência de moralidade e edificação que
vendo-se ao mundo doméstico e ao "privare men in the common 1\1.llld<.:
parte dos romancistas e críticos setecentistas atrelou ao ro-
walks of Iife", o romance teve de recorrer ao diálogo permanente 111,IIICC,
o novo gênero foi se libertando lentarnente, a ponto de po-
com seu leitor, nos prefácios, a truques, como o do velho manuscri- ,I, I ver introduzida, no prefácio à edição de The British Novelists,
to ou das cartas confiadas ao escri tor! edi tor, a estratégias que confe- 11111,1
coletânea de romances reunida por Mrs. Barbauld em 1804,
rissem um "ar de verdade" à narrativa, em respeito à exigência de I 1\l1~'iioda primazia do entretenimento sobre sua função moral: "o
plausibilidade e verossimilhança. Suas convenções se construíram , uu ctcnimento é sua Finalidade e objeto legítimos"5.
passo a passo através do esforço de reflexão de seus produtores e do
imenso processo de experimentação que caracterizou esse período.
Seu caminho nunca foi linear, tendo inclusive convivido com
aquele outro modo narrativo que iria acabar por sobrepujar. Embo- f'~",,"!,in"1: "enrertainmenr is rheir (rhe novels') legitimate end and objecr",
56 O ROMANCE INGL~S

SUGESTÕES DE LEITURA A PROSA DE FICÇÃO


ENTRE 1700 E t 740:
ALLOTT, Miriarn. Novelists on the Nouel. Londres, Routledge &
UM PANORAMA
Kegan Paul, 1980.
ALTER,R. Fielding and the Nature of the Nove!. Harvard Univer-
siry Press, 1968. .
BALL,Donald L. Samuel Richardson's Theory of Fiction. The Ha-
gue, Mouton, 1971.
BARTHES,Roland. La Bruyere. In Critical Essays. Northwestern
University Press, 1972, p. 221-37. ( ) IJlIl' poderia fazer pobre Amena, cercada por tantos poderes, ataca-
BISSELJR., Frederick. Fielding's Theory ofthe Nove!. Come! Uni- .111 pm tão sedutora força exterior, traída pela ternura interna: A Vir-
versiry Press, 1933. IllIk c o Orgulho, os guardiães de sua honra, fugiram de seu seio e a

BOOTH, Wayne. The RhetoricofFiction. The UniversityofChica- Ih.ll\donaram ao inimigo, restou apenas um modesto acanhamento,

go Press, 1961. '1111' por muito tempo lhe garantiu alguma defesa, mas de modo tão
.!IIi,il que um amante menos impaciente que D'Elrnont teria descon-
G REINER,Walter (ed.). English Theories of the Nove!. English Texts
I.!nado. O calor intenso e seu confinarnento tendo-a impedido de
n. 7, vol. 2. M. Niemeyer Verlag, 1970.
\'I'\lir-se naquele dia, ela portava apenas uma fina camisola de seda
]OHNSON, Maurice. Fielding'sArtofFiction. Filadélfia, 1961.
1111l', abrindo-se quando ele a tomou nos braços, revelou um coração
]OHNSON, R. Brimley. Nouelists on the Nove!. Londres, Noe! Dou-
1I í.uue batendo no compasso do consentimento, um seio palpitante
glas, 1928.
'Ivlllumando-se para ser apertado pelo dele, e cada pulsação confes-
KARL,Frederick. A Reader's Cuide to the Eighteenth-Century No-
111<10 o desejo de ceder; seu ânimo dissol vido soçobrou numa letar-
uel. Nova York, The Noonday Press, 1974. /,,1.1 amorosa, seus níveos braços sem saber agarraram-lhe o pescoço,
M CKEON,Michael. The Origins ofthe English Novel (J 600-1740). I'IIS lãbiosenco ntrararn os dele a meio caminho e estremeceram ao
The Johns Hopkins University Press, 1991. 11I111IC; em suma, havia apenas um instante entre ela e a ruína, quan-
RrCHETTI, John (ed.). The Cambridge Companion to the Eighte- .!" o passo de alguém chegando .. , I (Eliza Haywood. Loue in Excess,
entb-Century Nouel. Cambridge University Press, 1996. 1/19, vol. I, p. 28-9).
THORNBURY,Ethel M. Henry Fielding's Theory ofthe Comic Epic
in Prose. Universiry of Wisconsin Studies, n. 30,1931.
WATT, Ian. The Rise ofthe Novel: Studies in Dejoe, Richardson and
1111111\'.10 minha, No original: "Whar now could poor Amena do, surrounded wirh $0
Fielding. Londres, Penguin, 1983. 111(11)'puwcrs, artack'd by sueh a charming force wirhour, betray'd by tendcrness wirhin: Ver-
lil. 1I1.! Pride, rhe guardians ofher honour fled from her breast, and lefr her to her foe, only
WILLlAMS,Ioan. Novel and Romance, 1700-1800. A Documentary
I lll"d"n bashfulness remain'd, which for a long time made some defence, bur wirh such
Record. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1986. ti 111'\\ as a lover less imparienr rhan D'Elmonr would have lirrle regarded. The heat of
til' "'I':lIher, and her confinernenr having hindered her from dressing rhar da)', she had only
I ti li 11 -ilk nighr gown on, which fl)'ing open os hc caughr her in his arms, he found her pan-
11111', 1,,·.1]'( bear measures of consenr, her heaving brcasr swell to be press'd by his, and every
5 8 o ROMANCE INGLêS QUARTA LiÇÃO 5 9

Foi assim, provocando o leitor, deixando-o suspenso entre as su- \II'x.lllder Pope, cujo desdém pelas suas produções se traduziu em
gestões eróticas e as reiteradas afirmações a respeito da virtude de I 1I(I('IOSbem pouco educados, e dos moralistas de plantão, que vi-
suas heroínas, que Eliza Haywood manteve um público cativo e se I 1111
em seus livros mais uma oportunidade de denunciar os efei-
tornou uma das autoras mais populares e vendidas da ficção da pri- III~I lcletérios da lei tura de ficção. A má recepção de sua obra entre
meira metade do século XVIII na Inglaterra. O estupro procrasti- 11',Icpresenrantes da "alta literatura", porém, não atrapalhou a boa
nado, negado porém desejado, foi uma das poderosas armas dos 1I11111idaque teve entre os leitores. Integrante, juntamente com
enredos que diligentemente construiu para o deleite de seus leito- \1,l1l'a Behn e Mary Delariviefe Manley, do que ficou conhecido
res, convenientemente convencidos, através de seus prefácios e 1111110
"the fair Triumvirate ofWit"2, Haywood foi, assim como
dos inúmeros comentários moralizantes introduzidos ao longo da I l.lllid Defoe, bastante popular e suas novelas de amor represen-
narração, de que seus mais altos propósitos incluíam a condenação 111,1111
um dos veios da prosa de ficção que circulou no período entre
do vício e a exaltação da virtude. Suas histórias, alegava nessa fase I I()O e 1739, contribuindo amplamente para popularizá-Ia e para
inicial de sua longa carreira, eram escritas como advertência à "un- 11111I1:lr
seu público leitor.
thinking part of the world" - as mulheres, naturalmente - contra
os perigos da paixão. Para não cair na armadilha, argumentava ela, AI GUNS PADRÕES NARRATIVOS

e aprender pela força do exemplo (negativo, na maioria dos casos), I 111hora a história li terá ria costume datar a ascensão do romance a
os lei tores (lei toras talvez fosse mais exato) precisavam ser expos- 11.lllil'de Samuel Richardson, a circulação de um tipo de ficção
tos, ainda que vicariamente, às situações de risco. Por outro lado, Ilil~l.lnte popular na quadra anterior ao aparecimento de Pamela
explicava a escolha do tema como adequado às mulheres que se I" unire supor a existência do que lohn Richetti considera "elos
aventuravam no terreno da escrita, pois, privadas do acesso à edu- I" ulidos" no estudo do surgimento do novo gênero. Mapeando
cação, tinham que recorrer a assun tos mais modestos e afeitos à sua I'~~,Ificção em Popular Fiction before Richardson", Richetti discute
esfera de experiência. Sua fórmula: erotismo explícito revestido de "I',III1S dos padrões narrativos que julga importantes para o desen-
um invólucro didático. Concretarnenre, suas obras eram um con- vulvi mente do romance: a literatura de malandragem, com suas
vite à excitação sexual e um feixe de ambigüidades, o que as torna 1IIIIgrafias de criminosos, pícaros e prostitutas, a literatura de via-
paradigmáticas dos dilemas enfrentados pela prosa de ficção no ",1111,com suas histórias de peregrinos, viajan tes e piratas, as nove-
período que antecedeu a publicação de Pamela, or Virtue Rewar- II~ til' amor e as novelas pias. Nessa ficção hoje em grande parte es-
ded, o romance que representou um verdadeiro divisor de águas no 11111ida,
'( Richetti rastreia fórmulas populares e estereótipos, na
processo de formação e consolidação do novo gênero. 111\111':1
do sedutor libertino, da virgem perseguida, do viajante he-
Nadando na contracorrente dos preceitos neoclássicos, Hay- 11111
0, dos piratas e criminosos, que vamos ver reaparecer em rnui-
wood enfrentou o escárnio e a intolerância de seus contemporâ- 111',rumances do século XVIII e que, segundo ele, desempenharam
neos. Pagou o preço do preconceito dos homens de letras como
1,111111
I'"ncglrico a ela dedicado por jarnes Srerling, na introdução a Sccrer Histories, Noueis
pulse confess a wish ro yield, her spirirs ali dissolv'd sunk in a lerhargy of love, her snow)' arrns I,//'orllls (1732), coletânea das obras de Haywood,

unknowing grasp'd his ncck, hcr lips rner his halfwa)', and rrembled ar rhe rouch; in fine, rhc- 1111.11Richerri. Popular Fictiou Before RichflrdsoJl. Narmrine Parterns, 1700-1739. Oxford,
re was bur a rnornenr berv v isr hcr and ruine: whcn rhe rread of some body corning . " I 111'lido" Press, 1992.
o QUARTA LiÇÃO 6 1
6 O ROMANCE INGLÊS

funções culturais e ideológicas importantes porque podiam "pro- ( .nracrerizadas, na sua maioria, pela falta de coerência e con-
porcionar uma supersimplificação da estrutura da sociedade e do IIld\' narrativo, pela ausência de complexidade, de densidade
universo moral que permitia ao leitor situar-se num mundo de va- I I li Imal ou de realização estética, essa ficção explorava por um
lores inteligíveis em que o certo e o errado eram clara e inequivo- l ulo o gosto popular pelo sensacionalismo e pelas aventura-s, ao
camente rotulados"4. 111("1110
tempo em que procurava atender aos imperatiyos da mo-
Alguns problemas desafiam a crítica e complicam sua tarefa, ao I .r1ltlade, encarecendo seguidamente, em seus prefácios, o zelo
tratar da prosa de ficção dessas quatro décadas. Enquanto, por um 1111
11:11
de seus autores. Assim, enquanto se detém sobre os dera-
/

lado, sua variedade formal desautoriza qualquer tentativa de impo- 111("mais mórbidos ou sensacionalistas das biografias de crirni-
sição de um padrão genérico, também sua definição e seu estabele- limos ou de prostitutas, a literatura de malandragem (roguery),
cimento se tornam problemáticos pela imprecisão dos limites entre nvercdando pelo subrnundo, narra histórias de culpa e arre-
fato e ficção e pelo borramento das fronteiras entre real acontecido IlI'lldimento, que obedecem ao padrão pecado, contrição e juizo
e histórias imaginadas que caracterizam essa produção ficcional. dlvi 110iminente. Da exploração de confissões e dramas de con-
Esse parece ter sido, igualmente, um problema para os consumido- di u.rdos se extraía um significado moral, que, no caso das pros-
res dessas publicações. Se os leitores do final do século XVII e iní- uuuns, é sempre tingido por sobretons ao mesmo tempo côrni-
cio do século XVIII não podiam assumir, de modo rotineiro, que LI l~ t' eróticos. Os detalhes sangrentos ou grotescos desses relatos,

as obras que liam eram fictícias era porque essa prosa de ficção se 1'.'.il11como todos os outros paradigmas narrativos do período,
apresentava como uma forma ambígua, uma ficção factual que I I vem, segundo Richetti, simultaneamente à satisfação dos de-
muitas vezes negava sua ficcionalidade e produzia um sentimento I )o.~voyeuristas e das expectativas morais de seus leitores, cons-
de ambivalência quanto a seu possível conteúdo de verdade'. Se a 11111
irido-se em "máquinas de produzir fantasias agradáveis".
dificuldade de discriminar entre fato e ficção, independentemente () mito popular do criminoso, pecador arquetípico cuja morte
do grau de veracidade das narrativas, colocava em pauta o que Mi- ,- 11Iilizada como oportunidade para a homilia ou o exemplurn, pela
chael McKeon chamou de "instabilidade de categorias genéricas'", 11,1.ifirrnação de um radicalismo individual que resume uma visão
do ponto de vista do conteúdo essa ficção tematizava, de modo ge- 11 I\.II mente secular da experiência, encontra seu paralelo na figura
ral, a luta do indivíduo num mundo hostil e cruel, colocando em .111 pi rara, uma espécie de "viajante" que figura numa das formas
cena, muitas vezes, sedutor contra vítima, ou a inocência e a virtu- 11I.li,populares das narrativas que circularam pela Europa nos sécu-
de contra o vício, a esperteza e a agressão. Um mundo de antíteses 1,,\ XVII e XVIII. A literatura de viagem, de que Gullliuers Trauels

morais que, com o propósito de instruir e divertir o leitor, se valia ,I" [unathan Swift (1726) é uma das sátiras mais contundentes,
de estereótipos sociais e veiculava um código moral invariável. r.uubérn mesclava entretenimento e educação, oferecendo a seus
I, limes a experiência vicária dos lugares exóticos e das aventuras ex-
4 Idem, ibidem, P: 11. , u.nues. Emblema do espírito inquisitivo de uma época aberta ao
, Ver Lennnrd Davis. Factual Fictions. The OrigillS oflhe fllgli5h Nouel. Nova York, Colum- II'IVO c de uma Europa consciente da expansão das fronteiras geo-
bia Universiry Press, 1983.
1',l.dicas e culturais, o relato de viagens constituía "uma metáfora de
(, Michacl McKcon. Tbe OrigiJlS of li" fllgl;,!' Nouel (J 600-1 740}. Balrimore, The Johns
Hopkins Univcrsiry Prcss, 1991. I""sibilidades modernas", nas palavras de Richerti, pela sugestão
6 2 o ROMANCE INGLtS QUARTA LiÇÃO 6 3

que oferecia de mudança e conquista e de recompensa ao méiito. «dutor libertino, criaram um mundo hccional onde se encenava
Sem fugir à regra do período, essas narrativas também eram muitas 11111
conflito entre valores masculinos e femininos, caracterizado
vezes revestidas de significação moral, em cujos acasos e coincidên- pela retórica conservadora, pelas cenas eróticas e libertinas e por an-
cias o narrador buscava ver a mão da Providência, operando por I [teses morais do tipo campo versuscidade, amor versus sedução, es-
meio dos acontecimentos. Tampouco as histórias de pirataria esca- jlerteza urbana versus simplicidade rural etc.
pavam às invectivas morais. Ali, não obstante, havia ainda a possibi- Loue in Excess, a novela de Eliza Haywood cujo trecho abre este
lidade de uma leitura política do navio pirata como um microcos- ( .ipftulo, recoloca em cena os estereótipos masculinos e femininos
mo social, uma pequena comunidade de homens regidos por leis (1.15crônicas escandalosas, filiando-se à tradição do mito da inocên-
próprias, cuja independência tinha como contrapartida a instabili- ( ia feminina ameaçada ou destruída por um mundo onde grassa a
dade e a anarquia que essa liberdade acarretava, numa alusão clara, r orrupcâo masculina. Espécie de representante paradigmático de
para muitos, aos riscos de qualquer sistema que contestasse os tradi- 11111
conjunto bastante numeroso de "amatory nouellas" do período,
cionais direitos e deveres sagrados de governantes e governados. ("SC best-seller valeu para sua autora a reputação de reformadora dos
Num movimento cornpletamente antitético, os outros paradig- (OSlUmeS, de feminista auant la !ettre, cuja sensibilidade permitiu
mas narrativos do período em discussão voltaram as costas ao mun- 1'lIxcrgar com mais clareza os vícios masculinos do mundo, tais
do do crime e das aventuras, abandonaram as ruas e os mares para I orno a avareza e a exploração sexual. A moralização explícita, os
entrar nos aposentos e salões palacianos, redirecionando os atos das I"opósi tos alegadamente didáticos, no entanto, ficam comprome-
personagens para outro universo, o dos sentimentos e emoções. lidos pela ambivalência com que lida com o tema da opressão sexual
Aqui, o que vigorou foi o tema da virgem perseguida, ou da tirania c com os alertas contra os perigos envolvidos nos excessos da pai-
masculina em oposição à inocência feminina, visto de dois ângulos XdO. A falta de sutileza psicológica das personagens, o recurso aos
bastan te diversos, um representado pelas cbroniques scandaleuses de ,'~(creótipos, o cenário composto por salões e castelos elegantes são
Mary Delariviere Manley e de Elizabeth Haywood e o outro pelas ,rll\uns dos aspectos de uma estrutura narrativa que, em linguagem
"novelas pias" de Jane Barker, Penelope Aubin e Elizabeth Rowe. I onvencional e inflada, busca exaltar a forçado amor, impossível de
Combinando a dramarizaçâo de antagonismos sociais e de antago- Inislir, e a premia no final, com a devida punição do vício e da cor-
nismos sexuais, Manley e Haywood proporcionaram a seus leitores 1III'ção moral. Se as novelas de Haywood serviram, por um lado,
a chance de "participar vicariamente de um mundo de fantasia ero- 1,.II':tdenunciar os constrangimentos e dificuldades vividos pelas
ticamente excitante e cheio de brilho" onde imperavam "a corrup- mulheres num mundo onde o poder e a agressão masculinos eram
ção e a promiscuidade aristocrãticas'". Enquanto Mrs. Manley, i tônica, não deixaram de explorar os detalhes mais picantes da re-
como propagandista Tory, escreveu para servir a fins mais estrita- 1.11,.10
entre os sexos, tirando grande proveito editorial da "natureza
mente políticos, tanto suas "memórias" quanto as de Haywood pa- rllwlutamente compulsiva da paixão".
reciam satisfazer o apetite popular pelo escândalo e pelas intrigas da
corre. Ambas, apropriando-se do mito da virgem perseguida e do A:;; "NOVELAS PIAS"

\'. paixões ilícitas e os clichês eróticos que fizeram a fama de


7 Richeru, 01'. cir., P: 123. l l.iywood foram vigorosamente rechaçados pelas outras repre-
6 4 o ROMANCE INGLÊS QUARTA LiÇÃO 6 5

sentantes do tema da virtude em dificuldades, em "novelas pias" Tomadas no seu conjunto, as diferentes formas narrativas resu-
que desenharam um mundo nítida e absolutamente dividido en- midas acima adiantam as duas grandes linhas de força que iriam pre-
tre o bem e o mal. Penelope Aubin, Jane Barker e Elizabeth Rowe .lorninar no romance, desde sua formação: as histórias de rnovirnen-
tomaram a pena para narrar histórias que, destituídas de qual- li) exterior, que lançam suas personagens no mundoem busca de um
quer ambigüidade moral, afirmam incansavelmente o valor da 111g:U, e os romances da vida interior, empenhados nos movimentos
preservação da inocência, graças à fé e às intervenções da Provi- 110 coração e das emoções ou enredados em dilemas morais. Nessa
dência, num mundo cruel e descrente. Em campanha contra o .ih ura, já é possível perceber como se entroncam nos padrões narra-
que julgavam a devassidão e depravação da época, as três ficcio- I i vos aqui descritos Love in Excess e Robinson Crusoe, que, jun tarnen-
nistas elegeram a verdade moral, o didatismo, a superação dos I t' com Guiiiver's Traveis, foram as obras de ficção mais populares do
obstáculos, a virtude colocada à prova e sempre triunfante como Iwdodo. Se não creio ser o caso de ir mais longe na discussão de Eli-
algumas das bandeiras dessas novelas que se caracterizam sobre- /,1 Haywood, a quem W H. McBurney atribuiu o mérito de ter
tudo pelo seu moralismo sentimental essencialmente conserva- "rontribuído amplamente para a composição e atitude mental do
dor, como prova essa peroração de Mrs. Aubin: 1','tI,lico leitor de ficção que logo aclamaria as obras maiores de Ri-
I hardson e Fielding'", penso que o mesmo não se aplica a Daniel
Desse modo a Providência, por acidentes inesperados, testa a fé dos ho-
I )t:foe, cuja obra ficcional deixou marcas mais indeléveis na história
mens, frustra seus planos e os conduz por meio de uma série de infortú-
110 romance.
nios, para manifestar seu poder em sua libertação; confundindo o ateu e
convencendo o libertino de que há um Deus justo, tão infinito em seu
I)ANIEL DEFOE
poder que ninguém que creia nele deveria desesperar. Vê-se que ele pode
distribuir alimento na montanha árida e impedir o violado r ousado de 1':llquanto essas senhoras navegavam em águas rasas onde heroínas
realizar seu desígnio perverso: a virtuosa Belinda estava a salvo nas mãos \1' debatem entre o amor e o dever, enredadas em simplificações
de um homem que a amava desesperadamente e cujas circunstâncias de- morais que retiram dessas histórias qualquer densidade psicológi-
sesperadas o fizeram ousar qualquer coisa; mas a virtude era sua armadu- "I ou verdade humana, Defoe soube aproveitar as histórias de
ra e a Providência sua defesa: essas provações não fizeram senão aperfei- I"'ostÍtutas e criminosos, os relatos de viagens e as autobiografias
çoar suas virtudes e aumentar sua fé 8(Mrs. Aubin, The LifeofMadam de "'pirituais tão populares em sua época para criar toda uma galeria
Beaumont, a French Lady, 1721, P: 142). ,lI' personagens e narrativas que fizeram mais do que apenas aten-
dl'l"ao gosto do público leitor. Não que Defoe tenha se notabiliza-
do pela análise das motivações íntimas e dos conflitos morais de
.8 Tradução minha. No original: "Thus Providence does, wirh unexpecred accidenrs, rry
'oI1.IS criaturas, ou que tenha resolvido de vez alguns dos problemas
rnen's fairh, frustrare rheir designs, and lead rhern rhro a series of rnisforrunes, to rnanifest
irs power in rheir deliverance; confounding rhe arheist, and convincing rhe libertine, rhar lurrnais visíveis na produção ficcional de seus contemporâneos,
rhere is a jusr God, so boundless is his power, rhar none oughr to despair rhar believe in hirn.
III.IS sua prosa mais próxima da linguagem cotidiana, sua represen-
Vou see he can give food uponrhe barren rnountain, and prevem rhe bold ravisher ftom ac-
complishing his wicked design: rhe virruous Belinda was safe in rhe hands of a man who was
desperarely in lave wirh her, and whose desperare circurnstances made him dare to do almosr
any rhing; bur vir rue was her armam, and Providence her defender: rhese tryals did bur irn- I \'íIilliam H. Mcburney (ed.). Fora Before Richardsoll: Se!ected Ellglish Nooels, 1720-1727.
prove her verrues, and encrease her fairh". I 111Iversi r)' of Nebraska Press, 1963.
6 6 o ROMANCE INGLES
QUARTA LiÇÃO 6 7

tação realista do meio social das camadas mais baixas, a individua- () périplo marítimo de Crusoe, que culmina na ilha tropical
)idade autêntica de suas personagens e a particularização do cená- illr é obrigado a viver por mais de duas décadas, é uma viagem de
111
rio significaram um passo im portante na história da ascensão do ro- I 11I',c:\ de bens materiais e de ascensão social. Renascimento simbó-
mance. As mudanças formais constituem, na obra de Defoe, um 111li, () naufrágio é chance de recomeço, de construção de um pe-
índice da mudança de direção que gradualmente tornava conta da 11111'110
reino a partir de destroços, onde Crusoe pode sirnultanea-
prosa de ficção, substituindo o improvável pelo possível, o abstrato 1I11'IIIC
acumular, governar e proceder ao mais rigoroso auto-exame
pelo concreto, as personagens aristocráticas feitas de papelão por per- 1IIII/,tI e religioso. Com a liberdade econômica, social e intelectual
sonagens mais parecidas com homens e mulheres de carne e osso. 11'11':t solidão na ilha lhe proporciona, o náufrago, longe de se do-
Defoe não abandonou as intenções edificantes e didáticas que 111.11
às conseqüências psicológicas de tamanho isolamento, usa
justificaram tantas das narrativas que circularam no período, mas 11.1condição em seu próprio benefício, literalmente reconstruiu-
conseguiu uma combinação mais bem resolvida en tre descrição rea- di) ,~II:lvida a partir de quase nada. O significado espiritual de sua
lista e propósi to moral, tornando as reflexões morais de seus ro- 1"lIvação lhe ocorre quando, através da Bíblia, aprende o outro sen-
mances parte integrante da experiência de seus heróis. Não há equi- 111111
da palavra "deliverance": não mais apenas sua libertação da pri-
valen te, nessa prosa de ficção que comentei acima, para a 11)f'lsica da ilha mas a libertação da cul pa e do pecado. Sua história
complexidade da dinâmica entre diário e narrativa, para o jogo 1" vida portanto narra seu progresso material e sua trajetória espi-
temporal que se abre entre a personagem que é também narrador, 11111,11,
uma combinação nâo-con fi ituosa de motivações seculares e
em Robinson Crusoe ou Mo/l Flanders. O submundo londrino de 1'~I)il'ituais, que não coloca em risco seu projeto de ascensão social.
MoU e o mar de Crusoe ganham não só em solidez e concretude Assim, Crusoe pode, sem dramas de consciência, viver sua uto-
como se revestem de um significado simbólico enq uanto locais que 111,1
insular e fantasiar ser "rei e senhor" de sua ilha, onde recria uma
abrigam personagens em pleno exercício da mobilidade física que 111'1
[ucna Inglaterra. Como um "enclosinglandlord" inglês, se apro-
se transmuta em mobilidade social. Vistas como a corporificação 1111.1
da terra, a cerca e mais tarde reproduz, na pequena cornuni-
do individualismo econômico por lanWatt, em seu clássico The 11illv [orrnada com a chegada de Man Friday e dos marinheiros es-
Rise ofthe Nove!'o, as personagens de Defoe são presas da necessida- 11.l1I"6is,relações de soberania. Com a libertação de seu cativeiro
de de sobreviver e do desejo de prosperar num mundo onde impe- I1'''dar, Crusoe pode, finalmente, deixar a ilha carregando o di-
ram os valores comerciais da competição. Seus romances são con- IdH'i 1'0 que acumulou ao longo dos anos e assumir o statusque con-
fissões tão empenhadas na procura de significado espiritual nos 11"I~tou, o de empreendedor capitalista da era moderna. Com as
acontecimentos da vida do narrado r quanto na apresentação de 1111\.15
da "industry" e da "application", para usar a linguagem si-
uma história de sucesso e independência fi nancei ra. Livres dos la- 1111
ilrnneamente afeita à esfera da disciplina do trabalho e da voca-
ços emocionais e familiares - "with money in the pocket one is at 1111)utilizada no romance, Crusoe domou a natureza, venceu as ad-
horne anywhere" (Moll Flanders) -, suas personagens escolhem o 1"1"idades e pode se apresentar como o epítome do capitalista,
mundo como lar, onde se aventuram no encalço da auto-realização. ,'I vindo de inspiração, de acordo com Ian Watt, para os desloca-
"11',do capitalismo urbano e para os construtores dos impérios,
10 Ian Watt. TI" Rise o/the Nouel: St1ldies in Defoe, Ricbardson and Fie/dillg, op. cito
11111\:1
conclusão, lido o romance, parece óbvia:
68 O ROMANCE INGL~S
QUARTA LiÇÃO 69

Atenda ao chamado dos amplos espaços abertos, descubra uma ilha que
titutivos da narrativa. Sobretudo, é a natureza conflitante das duas
seja deserta só porque é desprovida de proprietários ou competidores, e
grandes forças em jogo nos romances - o individualismo econômi-
construa ali seu Império pessoal com a ajuda de um Sexta-Feira que não
co e a redenção espiritual- que se configura como a principal fon-
necessite de salários e torne muito mais fácil suportar a carga do homem
te das suas discrepâncias e incoerências. Diferentemente de seus
branco."
con tem porâneos, porém, Defoe soube criar uma ilusão de verdade,
um efeito de real e, no desassossego e na insatisfação de suas perso-
Não menos individualista é a orientação de MoU Flanders, a
nagens, corporificou o espírito que presidiu sua época. As transfor-
prostituta que, assim como os piratas, salteadores e aventureiros
mações ocorridas no interior da sociedade inglesa, com o desenvol-
que povoam as narrativas de Defoe, é uma pessoa comum, vítima
vimento do capitalismo, a secularização do protestantismo e o
das circunstâncias da vida; uma ladra que, vivendo de pequenos
poder crescente das classes comerciais e industriais, abriam novas
furtos e expedientes, conta apenas com seus próprios recursos para
perspectivas e horizontes para os integrantes daqueles setores da
sobreviver e melhorar sua condição, entre inúmeros casamentos e
população que ocupavam as camadas médias da rígida estratifica-
contravenções. Sua carreira de crime, adultério e bigamia não é ob-
~'ão social e colocavam novos desafios para os escritores de ficção
jeto de um exame das motivações Íntimas ou de qualquer análise
(I ue desej avam, m in imarnen te, estabelecer ai guma conexão en tre o
detalhada de conflitos psicológicos da personagem, mas se apre-
mundo da imaginação e a realidade histórica e social de que faziam
senta como produto da casualidade e resultado de um individua-
parte. Defoe deu corpo a essa nova configuração ao criar uma per-
lismo amoral que, em grande parte, colocam em xeque a sinceri-
sonagern que, descontente com seu lugar no "rniddle station" ou
dade, a profundidade e o significado de seu arrependimento
"upper station oflow life", encarnou esses novos tempos.
quando ela, humilde e penitente, reflete sobre seu passado.
É seu, portanto, de direito um lugar importante na história do
Os paralelos com as viagens imaginárias e com as biografias de
romance, pois a obra de Defoe, atenta às minúcias do cotidiano e
malandros e trapaceiros são evidentes, em ambos os casos. As dife-
profundamente ancorada na sua própria realidade histórica, fun-
renças, no entanto, residem no ar de autenticidade que Defoe con-
I ionou como um elo de ligação fundamental entre essa prosa de
segue emprestar a suas histórias, por meio de uma ação completa-
íicção que circulava na Inglaterra nas quatro primeiras décadas do
mente enraizada na experiência comum. Se o caráter biográfico ea
\\-CLdoXVIII e a publicação de Pamela, or Virtue Rewarded, o ro-
prosa simples asseguram a verossimilhança, os problemas formais
mance de Samuel Richardscn que iria se constituir como um mo-
aparecem nas inconsistências, na falta de coerência e coordenação
mente fundador do novo gênero.
entre os diferentes aspectos estruturais e no enredo episódico, cuja
construção é fruto mais do fato de os incidentes dizerem respeito à
mesma pessoa do que de uma real unidade entre os elementos COl1S-

" Idem, ibidem, p. 96. Tradução minha. No original: "Follow rhe call of rhe wide 0ren pla-
ces, discover an island rhar is deserr uni}' becnuse
ir is barren of owners or cornperirors, and
rhere build }'ollr personal Empire wirh rhc help of a M'II1 Friday who needs no \Vages and
makes ir much ensicr ro SlIppOIT rhe whirc man's burden".
70 O ROMANCE NGLÊS

SUGESTÕES DE LEITURA SUBJETIVIDADE E MUNDO


DOMÉSTICO NO ROMANCE
BALLESTER,Ros. Seductive Forms. Womens Amatory Fiction ji-om
1684 to 1140. Oxford, Clarendon Press, 1982.
DAVIS,Lennard. FactualFictions. The Origins ofthe English Nooel.
Nova York, Columbia Universiry Press, 1983.
KARL,Frederick R. A Readers Cuide to the Eighteenth-Century No-
uel. Nova York, The Noonday Press, 1974.
KETTLE, Amold. An lntroduction to the English Nove!. Londres, Pamela, or Virtue Rewarded, o romance que Samuel Richardson
Hutchinson, 1972, vols. 1-2. publicou em ] 740 e que iria mudar os rumos da ficção inglesa,
MCBURNEY,William H. (ed.). Four Bejore Richardson: Selected nasceu de um acaso. Instado a escrever um manual de cartas, des-
EngLishNouels, 1120-1121. University of Nebraska Press, sas que se trocam entre familiares e amigos, o tipógrafo, com um
1963. 01 ho nas questões de estilo e o outro nas possibilidades didáticas da
MCKEON, Michael. The Origins ofthe EngLishNovel (I 600-1140). empreitada, fez melhor que a encomenda: Imaginou situações
Baltimore, The ]ohns Hopkins University Press, 1991. .orriqueiras e cotidianas que, envolvendo casos de consciência,
RICHETTI,]ohn. Popular Fiction beforeRichardson. Narrative Pat- exigiam dos missivistas uma tomada de posição diante de dilemas
terns, 1100-1139. Oxford, Clarendon Press, 1992. morais e de conduta. Assim, numa das cartas, uma jovem criada
Ro BERT,Marthe. Roman des Origines et Origines du Roman. Paris, consulta o pai, solicitando ajuda e conselhos sobre como repelir os
Gallimard, 1981. repetidos ataques à sua "virtude", por parte de seu senhor. Ao pro-
SCHOFIELD,Mary Anne. Quiet Rebellion. The Fictional Heroines videnciar a resposta paterna, Richardson atinou com o potencial
ofELiza F Haywood. University Press of América, 1982. dramático da situação, deixou o manual de cartas de lado e, desen-
WATT, Ian. The Riseofthe Nouel: Studies in Defoe, Richardson and volvendo esse conflito básico, escreveu o romance que trouxe uma
FieLding. Londres, Penguin, 1983. enorme contribuição para que a ficção não só conquistasse leitores
(' vencesse as resistências de seus críticos mais renitentes mas, sobre-
tudo, atingisse um novo patamar de realização formal. Ao ponto de
vista em primeira pessoa, o da jovem Pamela, determinado pela es-
\ olhada narrativa epistolar, somou-se aquele que seriao grande pas-
,,ono que diz respeito ao enredo, isto é, sua unidade, garantida pela
.ulcrência estrita ao conflito básico.
Richardson substituía, dessa maneira, a série cumulativa de
"venturas característica das estórias romanescas por uma estrutu-
1,1 cuidadosamente construída, em que cada um dos acontecimen-
1\ IS vin ha contribuir para o propósi to central ou plano geral da nar-

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