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O Giro Linguístico e a Ibero-América: Richard Morse, LaCapra e Gumbrecht (Anais

do Congresso de História da Historiografia)

Beatriz Helena Domingues1


Os estudos brasilianistas ou latino-americanistas são, por natureza, comparativos:
consciente ou inconscientemente os autores confrontam seu objeto de estudo com a cultura
na qual nasceram e viveram (ou vivem). Mesmo nos casos em que eles se mudam para o
país estudado, o background vai com eles. Os ensaios do historiador latino-americanista e
brasilianista Richard Morse (1922-2001) são exemplares neste sentido. Além da grande
afinidade com o objeto, a comparação e a interdisciplinaridade são partes intrínsecas de sua
opção metodológica de estabelecer conexões entre textos de natureza diversa (manifestos,
novelas, ensaios e tratados filosóficos) - de diferentes partes da América Latina e do Brasil
- buscando traçar uma genealogia de cada uma das etapas da busca pela identidade no
subcontinente.
Marc Bloch defendia a possibilidade de os historiadores do imaginário contrastarem
universos imaginários com pesquisas historicamente conduzidas. 2 Em outras ciências,
argumentava ele, o "comparatismo" sempre fora intrínseco. Este era o caso da linguística e
da antropologia comparada, definíveis, segundo ele, como "estudos da diferença".3 Já no
caso da história, tratou-se de uma opção, embora comparar, no sentido amplo do termo, seja
inevitável. Tanto a antropologia quanto a linguística eram disciplinas muito apreciadas por
Morse, que se reconhecia como "discípulo" do antropólogo francês Louis Dumont por esse
ter-lhe aberto os olhos de historiador para as comparações entre culturas.4 Dumont defendia
a tese de que as sociedades hierárquicas, em oposição às ditas atomistas e plurais

1
Professora do Departamento de História da UFJF. Este ensaio é resultado parcial de pesquisa financiada pela
FAPEMIG, e CAPES/CNP, aos quais agradeço pelo apoio. Este ensaio foi originalmente apresentado no 6o
Seminário Brasileiro de História da Historiografia, em Mariana, MG, Brasil, entre 20 e 23 de agosto de 2012.
2
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio - França e Inglaterra. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993. Para um histórico da constituição da história comparada enquanto um campo
disciplinar ver: BARROS, José D´Assunção. "História comparada: atualidade e origens de um campo
disciplinar" In: Revista História, Goiânia, v. 12, n. 2, p. 279-315/jul./dez. 2007’.
3
Em "Comparison", publicado no Bulletin du Centre Interncional de Synthèse em 1930, Bloch historia a
chegada da comparação aos estudos históricos. Atribui à linguística a situação de primeira disciplina a elevar
a comparação, originalmente instintiva, à altura de um método razoável.
4
DUMONT, Louis. De Mandeville a Marx: a gênese e o triunfo da ideologia econômico. São Paulo:
Hucitec, 1993; DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
(Ocidente) têm uma enorme heterogeneidade e pluralidade em seu interior, não devendo ser
estudadas pelo que lhes falta para serem como a Europa Ocidental e os Estados Unidos.
Essa é a tese que sustenta O espelho de Próspero (1988) e que serve de parâmetro
para A volta de McLuhanaíma (1990) e "The Multiverse of Latin American Identity since
1920" (1995).5 A proximidade de Morse com a linguística fica particularmente evidenciada
no ensaio "A linguagem nas Américas", incluído em McLuhanaíma.·.
A metodologia comparada pode certamente ser adotada em diferentes direções: da
história econômica à história literária. No caso de Morse, ela foi abraçada desde o início da
carreira quando elegeu a literatura, seguida pelo interesse pelos estudos de história urbana -
uma temática que já nasceu interdisciplinar e comparativa, em grande parte apoiada em
Max Weber -, ambos em diálogo com a história latino-americana. A partir da década de
1970 passou a acentuar as diferenças entre o mundo anglo e o ibero-americano na história,
na literatura, na filosofia, nas artes ou simplesmente no comportamento.
Na década de 1980, quando foram publicadas as primeiras edições de O espelho de
Próspero (1982, em espanhol, 1988, em português), estava em curso o movimento que
ficou conhecido como “Giro Linguístico” por esboçar semelhanças com o giro
antropológico que ocorrera nas artes com o advento do expressionismo e da pintura
abstrata. Momentos de crise no sistema de representações (da arte, ou dos textos) parecem
nos deixar sem orientações objetivas para avaliar uma obra ou texto. E logo vem o temor de
uma queda no relativismo completo.6
No que se refere ao Giro Linguístico, contudo, concordo com José Elias Palti que tal
crise – embora não descarte por completo a caída em um relativismo relativo ou absoluto –
apresentou possibilidades de uma renovação saudável nas ciências humanas. A partir da
corrosão do seu sistema de representações elas teriam se motivado a refletir sobre elas
mesmas. Como o próprio nome indica, o Giro Linguístico foi uma virada interpretativa que
5
RICHARD, Morse. O espelho de Próspero: Cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988;___ A volta de McLuhanaíma. Cinco estudos solenes e uma brincadeira séria. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990; ___The multiverse of Latin American identity (1920-1970). In: BETHEL,
Leslie. Ideas and Ideologies in Twentieth Century Latin America. Cambridge: Cambridge University Press,
1996, pp. 3-129.
6
Alguns nomes: James Clifford, Stanley Fish (literatura), Clifford Geeetz, Eric D. Hirsch, Frederick Jameson,
La Capra, Paul Rabinow (antropologia), Richard Rorth (filosofia). No sentido estreito, o giro remete a
filosofias da linguagem (escola analítica). No sentido amplo, ao fato de o nosso conhecimento do mundo não
ser factual, mas linguístico: não descreve o comportamento de objetos físicos ou sequer mentais. Expressa sim
definições ou as consequências formais dessas definições.
passou necessariamente pela questão da linguagem e da interpretação (intrinsecamente
relacionadas com a crítica literária e com a filosofia). Esses são precisamente os dois
campos do saber muito presentes nas interpretações históricas de Richard Morse. Daí ter-
me parecido adequado conjeturar, neste congresso dedicado ao Giro Linguístico, sobre as
possíveis afinidades do irreverente brasilianista com a proposta do grupo o pensamento do
grupo.
As formulações do historiador, também norte-americano, Dominick LaCapra
(1933-) sobre a história intelectual me parecem em sintonia com a análise morsiana dos
clássicos da literatura latino-americana, que os toma como fontes privilegiadas para
compreender, e não apenas “explicar”, as singularidades da região. 7 Embora o autor não
tenha feito referências explicitas à América Latina, incluiu vários textos da região entre os
considerados textos complexos (clássicos) do pensamento ocidental.8 Nesta comunicação
restrinjo-me à hipótese de que algumas ponderações metodológicas de LaCapra sobre as os
textos complexos da tradição ocidental estavam sendo feitas por Morse nas obras referidas.
O principal desafio da história intelectual - o diálogo entre história, literatura e filosofia – é
plenamente preenchido por ele. Finalizo com uma especulação sobre um possível diálogo
entre algumas proposições de Morse e Gumbrecht.
Embora afirme a proximidade entre a história intelectual e a história social, LaCapra
reafirma a importância da história intelectual manter sua autonomia relativa. Em texto de
1980, o autor propõe-se a contribuir especialmente para a problemática tarefa de ler os
textos complexos – os chamados “grandes” textos da tradição ocidental – dentre os quais se
incluem e se destacam os literários.9 Ele elenca quatro motivos que o levam a fazê-lo:
porque a historiografia contemporânea não o vem fazendo; porque neles o uso da
linguagem se explora de uma maneira especialmente enérgica e crítica, que nos
compromete enquanto intérpretes de uma conversação com o passado; porque abordam
temas triviais de forma excepcional; e finalmente, porque os grandes textos (complexos) –
7
LaCAPRA, Dominik. “Repensar a História Intelectual e ler os Textos” In PALTI, José Elias. Giro
Lingüístico. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, s/d. Tradução de Horácio Pontes. O texto foi
originalmente publicado como “Rethinking Intellectuall History and Reading Texts”, em History and Thoery,
19, 1980, e reimpresso em Rethinking Intellectuall History; Texts, Contexts, Language. Ithaca, New York:
Cornell Univeristy Press, 1983, pp. 23-71.
8
A proposta metodológica de LaCapra para o estudo dos grandes textos (clássicos) do pensamento ocidental é
também de grande valia para meu projeto em andamento: uma biografia intelectual de Morse.
9
É interessante assinalar a sincronia entre o texto de laCapra e o Espelho de Morse, também finalizado em
1980, ainda que só publicado em 1982 e 1988, conforme explicado.
literários - vêm sendo excluídos do registro histórico pertinente, ou lidos de maneira
reducionista, devido ao predomínio de um enfoque documentário na historiografia:
documento versus ser-obra. O reducionismo viria assumindo a forma da análise sinóptica
de conteúdos, amparada em um método mais narrativo e na identificação não problemática
de objetos ou entidades de interesse histórico na história das ideias. Embora seja um
método necessário, é limitado no que se refere ao estudo dos grandes textos.
Este norte-americano, um dos mais interessantes pensadores das últimas décadas, se
dedica com cuidado e criatividade a refletir sobre a dita “história intelectual”, sua natureza
e seus possíveis objetivos enquanto campo de estudo de importância significativa para todo
historiador, seja qual for a área do conhecimento histórico à qual venha este a se dedicar.
Para tal recorre com frequência a estudos de filósofos e críticos literários - Foucault,
Derrida, Heidegger, Nietzsche, Escola de Frankfurt, dentre outros – para sustentar seus
argumentos. Tanto nos textos clássicos interpretados, quanto naqueles que os interpretam,
importa-lhe buscar a interseção entre o aspecto documental e o ‘ser-obra’.
Segundo ele, o predomínio do enfoque documental na historiografia vem sendo
responsável seja pela exclusão dos “textos complexos” - especialmente os literários - do
registro histórico considerado pertinente ou por se restringir a uma leitura muito
reducionista deles (no mais das vezes limita-se a uma análise de conteúdo conhecida como
método sinóptico).10 Isso quando, a seu ver, dos textos históricos deveriam ser destacados
também os aspectos linguísticos e literários, e não meramente sua pretensa função
documental; devemos neles buscar perceber, sobretudo, a forma como se expressam,
porque também a linguagem empregada há de ter uma infinidade de informações
importantes (quiçá muito mais importantes) a nos oferecer.
LaCapra considera a história intelectual uma área específica por se dedicar ao
estudo dos clássicos da literatura mundial (os “textos complexos”, para usar uma expressão
do autor). Para isso, o historiador precisa estar atento a problemas relacionados ao campo
da crítica literária e da filosofia, em especial para como, neles, o uso da linguagem se
explora de una maneira especialmente enérgica e crítica, e que nos compromete como
intérpretes em uma conversa particularmente engajada com o passado.11 Justamente por
este motivo, LaCapra se volta para trabalhos desenvolvidos por críticos literários e
10
Ou seja, que faz a sinopse das ideias de um autor. Idem, p. 250.
11
Idem, p.242.
filósofos. Percebe, então, duas formas de se olhar para eles: a concepção documentária e a
concepção dialógica. A primeira, encarando o texto como registro do “real”, vai até ele com
o intuito de garantir informações sobre a “realidade” que se crê envolvê-lo, justificá-lo e
dar-lhe vida. A segunda, claramente preferida pelo autor, avalia o texto enquanto “obra”,
levando em conta a capacidade de cada um de seus leitores apresentar uma interpretação
própria, criar sobre ele, identificar-se, comprometer-se, inspirar-se, mobilizar-se... Sendo
assim, pontua LaCapra:
El ser-obra es crítico y transformador, porque desconstruye y
reconstruye lo dado, en un sentido repitiéndolo pero también
trayendo ao mundo, en esa variacíon, modificacíon o transformacíon
significativa, algo que no existía antes. (...) Un diálogo implica el
intento del intérprete de pensar más en profundidad lo que está en
discusíon en un texto o una “realidad” pasada, y en el proceso el
mismo cuestionador es cuestionado por el “otro”.12

Isso explica a opção do autor por conceber a realidade (inclusive a realidade histórica)
enquanto construção, por meio da linguagem, e afirma a premência do historiador dar-se
conta, de uma vez por todas, de que tal fato não constitui motivo de alarme, mas condição a
ser trabalhada em todos os aspectos e possibilidades que oferece. É por isso que, ao invés
de nos dedicarmos a demarcar as diferenças entre história e literatura, deveríamos procurar
aproximá-las.
Esses aspectos são perceptíveis, a meu ver, na forma como Morse interpreta com os
clássicos, que são suas fontes favoritas. Ele compartilha a preocupação de LaCapra de
estabelecer um diálogo entre o ser-obra e o ser-documental. O registro documental, por si
mesmo, diz pouco para ele. Muitas vezes simplesmente repete o óbvio, já dito por todos ou,
pior ainda, tomado como “realidade”. Talvez não seja mera coincidência a afinidade de
Morse com os mesmos filósofos e críticos literários admirados por LaCapra. Seu Espelho
começa com uma epígrafe de Nietzsche e termina com uma adaptação singular do
pensamento de Adorno e Horkheimer para uma análise crítica das mazelas da sociedade
norte-americana na década de 1970.
Avaliando a sensação de crise no interior do campo historiográfico a partir da
década de 1970, LaCapra não percebe o momento como “problemático”, e sim como
marcado por uma renovação nos paradigmas, o que lhe soa muito bem. Morse parece

12
Idem, p. 246-247.
menos otimista a esse respeito ao analisar o cenário acadêmico de seu próprio país, no qual
vê se concretizarem os piores diagnósticos da Escola de Frankfurt. Ao mesmo tempo,
demonstrava incontido entusiasmo com a possibilidade de que a crise de paradigmas do
“centro” não só o fizesse repensar seus próprios valores – daí a sugestão de que Próspero se
olhe no espelho - , como abrir perspectivas para que a “periferia”, mais uma vez, tivesse
chances de vir à tona com proposições originais para si mesma e para os demais, inclusive
o “centro”. Digo mais uma vez porque, no entender de Morse, algo semelhante ocorrera nas
primeiras décadas do século XX com o Modernismo, especialmente no Brasil, Argentina e
México.13
Em suma, um ponto importante que aproxima os dois historiadores é o diálogo
efetivo entre história, literatura e filosofia. A interdisciplinaridade proposta por LaCapra é
um ingrediente presente em praticamente toda a obra de Morse. O espelho de Próspero é
um ensaio que mescla história, filosofia e literatura de forma erudita e instigante, conforme
devem ser, segundo LaCapra, as obras de história intelectual. Morse busca as “origens”
(genealogias) do chamado “Grande Desígnio Ocidental” no filósofo Pedro Abelardo e os
desenvolvimentos (ou desdobramentos) do “Velho Ocidente” (América Latina) em
oposição ao “Novo Ocidente” (EUA) no boom do Realismo Maravilhoso latino-americano
da década de 1960. Nessa ocasião, segundo ele, os ibero-americanos conseguiram mostrar
para si mesmos e para o mundo algumas vantagens de se viver em um mundo não
totalmente desencantado, no sentido weberiano.14
Esta tese foi retomada em ensaios do autor que compuseram a A volta de
McLuhanaíma (1990) ou em “The Multiverse”, de 1995. O primeiro foi uma coletânea de
artigos do autor sobre assuntos diversos: uma comparação entre modernistas brasileiros e
norte-americanos, um estudo sobre as linguagens do Novo Mundo, considerações sobre a
delicada profissão dos latino-americanistas (como ele mesmo) e, como capítulo final, uma
versão brasilianista de Macunaíma, “McLuhanaíma” (Macunaíma na era de Marshall
McLuhan). Muitíssimo impressionado com a erudição e interdisciplinaridade da antologia
de textos reunidos em New World Soundings (título original) o crítico literário britânico

13
A análise de Morse sobre o modernismo enquanto um ponto de partida da busca de identidade na América
Latina está em The Multiverse of Latin American Identity (1920-1970). In: BETHEL, Leslie. Ideas and
Ideologies in Twentieth Century Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp. 3-129.
14
Essa proposta historiográfica eclética, que começa com uma referência filosófica e que se demonstra em
grande parte através de textos literários gerou uma enorme polêmica por ocasião da publicação do livro.
Gerald Martin (1948-) iniciou sua resenha sobre a obra recém-publicada de forma
provocativa:
Desta vez o clichê se justifica: este é um livro que cada latino-
americanista vai querer ter em sua estante; ou, talvez, um livro que
todo latino-americanista deveria querer em sua estante, ou não,
porque para muitos de nós ele será um constante aviso do quão pouco
nós sabemos sobre nosso amplo campo de interesse comparado com
a abrangência e profundidade da erudição e brilho intelectual de
Richard Morse em suas problematizações, que ele denomina
“soundings”.15
Segundo Martin, embora os ensaios agrupados nesta coletânea já fossem conhecidos, “o
efeito do conjunto é maravilhoso”. Precisamente devido aos aspectos nostálgicos aí
presentes sugere que a obra seja lida como uma autobiografia intelectual de Morse.16
Considera irônico o fato de Morse demonstrar tanto ceticismo em relação às abordagens
que, na época, vinham sendo denominadas como “estudos interdisciplinares”, pois, em seu
julgamento, o livro é uma demonstração do que de melhor se pode fazer com esta
abordagem metodológica. O último ensaio, “A volta de McLuhanaíma”, é particularmente
uma demonstração da tese de que “não há história sem cultura; ou cultura sem história”.17
No segundo, “The Multiverse”, ao trabalhar sobre a identidade nacional na América
Latina a partir da literatura da região, Morse distingue o que entende por identidade de
“caráter nacional”, tal qual diagnosticado pela psicologia social. Pois identidade,
diferentemente de realidade, pressupõe uma consciência coletiva de uma vocação histórica.
A realidade começaria pelo ambiente e a identidade com tático auto-reconhecimento.
Morse assume que, enquanto um valor humano universal, a identidade assumiu
características especiais com a ascensão das nações modernas. Sua tese é que os
modernistas desempenharam um papel fundamental modelando a sensibilidade dos anos
vinte, que tomou contornos mais definidos com os ensaístas e novelistas dos anos 1930. Em
fins da década de 1940 e início da de 1950, destacaram-se os filósofos, particularmente
aqueles ligados à fenomenologia e ao existencialismo, na reabilitação da imagem
intelectual do continente (ainda que fossem desconhecidos de significativa parte do

15
MARTIN, G. Op. cit., p. 624.
16
É o que venho tentado fazer em minha pesquisa.
17
MORSE, Richard M. A volta de McLuhanaíma. Cinco estudos solenes e uma brincadeira séria. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. O título original da obra de Morse é New World Soundings: Culture and
Ideology in the Americas, 1989. A mudança foi plenamente aprovada e, talvez, sugerida por Morse. Ela diz
muito sobre as culturas e/ou públicos alvos.
público). Eles teriam antecipado os cientistas sociais por duas décadas na profissionalização
de suas disciplinas com um vocabulário que aprofundou alguns insights dos modernistas,
bem como os dos novelistas e dos ensaístas, elevando-os a altos planos de generalização.
Os anos 1950 e 1960 se caracterizaram pela emergência e predomínio das ciências sociais
no cenário acadêmico, com a contrapartida do boom literário do Realismo Maravilhoso nos
anos 1960 e 70.
O diálogo entre história, literatura e filosofia percorre as 130 páginas deste ensaio
que demorou 20 anos para ser escrito 18, nas quais ele analisa pensadores representantes das
três etapas e de diversos países da América Latina e do Brasil. 19 O período coberto
praticamente coincide com sua biografia: ele nasceu na etapa do Modernismo dos anos
1920, o período de elaboração de sua tese de doutorado com o predomínio da filosofia e sua
inserção no campo dos estudos urbanos na América Latina com a ascensão das ciências
sociais, seguida do boom literário do Realismo Maravilhoso nos anos 1960 e 70 (quando
residiu no Rio de janeiro na condição de presidente da Fundação Ford).

Conclusão: A produção de Presença e a Ibéria (Morse e Gumbrecht)

18
Para uma excelente análise do processo de composição desse texto, ver BETHELL, Leslie. “Richard Morse
e a Cambridge History of Latin America” In: DOMINGUES, Beatriz H & BLASENHEIM, Peter L (org.). O
código Morse. Ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, pp. 47-68.
19
Dentre os modernistas brasileiros, Morse escolheu “os Andrade”: Oswald (1890-1954) e Mário (1893-
1945); dentre os modernistas argentinos, Jorge Luís Borges (1899-1986) e Roberto Artl (1900-1942); e dentre
os mexicanos - considerados um caso único em função da Revolução Mexicana -, Martín Luís Guzmán
(1887-1976) e Alfonso Reyes (1889-1950). Os ensaios e novelas da década de 1930 são discutidos por Morse
tendo em vista a singularidade do naturalismo e, consequentemente, do neonaturalismo na América Latina. ?
Destaca entre os novelistas brasileiros Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos e
José Américo de Almeida (também ensaísta). Quanto à Hispano América, os ensaios de autores como José
Carlos Mariátegui (Peru, 1894-1930), Jean Price-Mars (Haiti, 1876-1969) e Paulo Prado (Brasil, 1869-1943)
são analisados lado a lado a novelistas como Alejo Carpentier (Suíça/Cuba 1904-1980), Rômulo Galego
(Venezuela, 1884-1969) ou Ciro Alegria (Peru, 1909-1967). Este seria um primeiro grupo. O segundo, sobre
o qual Morse se debruça com mais vagar, é o que, segundo ele, tentava “equilibrar mito e evidência”, sendo
composto de dois subgrupos: o dos hispano-americanos e o dos brasileiros. No primeiro destaca Ezequiel
Martínez Estrada (Argentina, 1895-1964), Octavio Paz (México, 1914- 1988), Fernando Ortiz (Cuba, 1881-
1969), Ángel Rama (Uruguai, 1926-1983) e José Luís González (República Dominicana/Porto Rico, 1926-
1997). Dentre os brasileiros, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Salienta também a
importância do ensaísmo de Luís Lezama Lima (Cuba, 1910-1976), de quem era confesso admirador. No que
se refere à identidade latino-americana buscada na filosofia, especialmente a partir da década de 1940 e
durante a de 50, considera importante, dentre outros, os trabalhos de Francisco Miró Quesada (Peru, 1918),
José Vasconcelos (México, 1882-1959), Pablo Neruda (Chile, 1904-1973) e Leopoldo Zea (México, 1912-
2004).? Na última parte do ensaio Morse analisa a hegemonia das ciências sociais nos anos 1960 e 1970, lado
ao lado ao boom literário do “Realismo maravilhoso”, também citando representantes brasileiros e hispano-
americanos.
O des-cobrimento da “linguisticalidade” pelo Giro Linguístico não trouxe à tona
qualquer verdade revelada. O objetivo deste giro vem sendo exatamente problematizar os
fundamentos epistêmico-institucionais que sustentam a crítica como prática e de pensar a
crítica como instituição. E a reflexão da crítica sobre si mesma derruba a ideia de progresso
e pressupõe certo direcionamento ao pensamento que prescinda de um princípio originário
ou de um fim último.
O crítico literário alemão Hans Ulrich Gumbrecht (1948-) prossegue nessa linha,
talvez de forma mais radical. Em suas formulações, como nas de LaCapra, encontrei
importantes sintonias com o pensamento de Richard Morse. Uma vez que Gumbrecht não
teve contato com o trabalho de Morse, sou eu, de uma perspectiva da segunda década do
século XXI, quem está acentuando possíveis interações entre eles. Dentre delas duas me
parecem especialmente estimulantes:
1. A valorização da tradição aristotélica lado a lado ao reconhecimento da cultura
medieval, seguida do contraste entre a cultura medieval e a moderna, culminando na crítica
ao modo de modernidade dominante.20 Segundo Gumbrecht, a Idade Média foi de tal
maneira aristotélica que o próprio nome “Aristóteles” tornou-se sinônimo de “filósofo”. 21
Diferentemente das ideias platônicas, o Ser para Gumbrecht, baseado em Aristóteles, não
precisa ser uma coisa meta-histórica “por sob” ou “atrás” de um mundo de superfícies.
Além de buscar as origens do Grande Desígnio Ocidental na Idade Média, Morse confronta
este período com a Idade Moderna chamando atenção para o fato de que a parte da Europa
posteriormente estigmatizada como pré-moderna, a Ibéria, foi exatamente a que seguiu e
desenvolveu os preceitos do aristotelismo medieval. Daí denominá-la “Velho Ocidente” em
oposição ao que rompeu com esta tradição, o “Novo Ocidente”, que se assumiu como a
modernidade por antonomásia. Talvez em função de uma leitura similar da Idade Média,
mas não só, ambos entendem modernidade no plural.

2. O desencanto com o desencantamento do mundo. Gumbrecht associa-o ao predomínio da


Produção de Sentido sobre a Produção de Presença e Morse com a hegemonia do Novo
Ocidente sobre o Velho Ocidente.

20
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC, 2010.
21
Idem, pp. 52 e 90.
Gumbrecht afirma que o projeto metafísico do pleno conhecimento (racional)
atingiu seu ápice no século XVIII com o projeto iluminista das enciclopédias. Por outro
lado, foi nesse mesmo século que surgiram as primeiras frestas no edifício. Um dos
causadores foi o marquês de Sade, que enfatizou o que havia de mais sombrio e de brutal e
carnal na sexualidade humana. Em 120 dias de Sodoma a repetição de cenas de torturas é
tal que o autor chega ao ponto de numerá-las, ao invés de descrevê-las.
Morse também se refere ao marquês de Sade como “um dos grandes profetas do
século XVIII”, ao lado de William Blake, um herético no mundo anglo-saxão.22 Segundo
Morse, Sade virou o argumento científico de cabeça para baixo no que se refere ao
comportamento humano e Hegel, cuja mensagem de que nada era o que parecia, batia de
frente com os crentes da ciência que achavam que tudo era o que parecia ser. Eles teriam
ajudado a preservar valores que se perderam cada vez mais em sociedades hiper-
racionalizadas, como os EUA.
Na visão de Morse, o que Gumbrecht chama de Produção de Presença talvez ainda
não se encontre tão dissolvido pela Produção de Sentido (predomínio da metafísica e do
racionalismo intelectualista) na América ibérica quanto o foi no mundo anglo-saxão. Talvez
uma das razões para isso esteja na atualização da filosofia aristotélica, mais próxima da
Produção de Presença, uma vez que o conceito aristotélico de signo não comporta a
dicotomia entre material e imaterial. Na tradição católica medieval, modernizada pelos
ibéricos, o povo era a “forma” que tornava perceptível a “presença substancial” do corpo de
Cristo.23 A teologia protestante, por seu turno, contestou a presença do corpo e do sangue
de Cristo como substâncias: redefini-o como a evocação do corpo e do sangue de Cristo
“sentidos” pelo indivíduo, que é quem atribui sentido. A modernidade (metafísica,
racional), segundo Gumbrecht, separa signo de substância. A atualização da herança antiga
e medieval pelos ibéricos, diria eu, ancorada em Morse, manteve as duas categorias
integradas na neoescolástica, que foi fortemente desafiada apenas no século XVIII, na Era
do Despotismo esclarecido, precisamente quando a Ibéria mais tentou se aproximar da
Modernidade ocidental.

22
Sobre o marquês de Sade ver: OLIVEIRA, Jefferson Donizeti. Um sussurro nas trevas. Uma revisão da
recepção crítica e literária de Noite na taverna de Álvares de Azevedo. Dissertação de Mestrado, USP, 2010.
23
GUMBRECHT, H. U. Op. Cit., p. 52.
Eu gosto de chamar a Península Ibérica de Ocidente e a França,
Inglaterra, Alemanha e os outros de “o resto do Ocidente” (the rest of
the West) porque a Ibéria estava mais perto de nossas raízes
medievais e das raízes clássicas do que os outros lugares, e ela não
aceitou todas as implicações das duas grandes revoluções dos tempos
modernos: a Reforma Protestante e a Revolução Científica Ela agiu
assim porque era mais moderna que o resto do Ocidente.24

A Ibéria seria mais moderna que o resto do Ocidente nos séculos XV e XVI porque já havia
resolvido problemas como da formação de um Estado nacional, e “pela exigência de
conciliar uma racionalidade para um Estado Moderno com as reivindicações de uma ordem
ecumênica mundial, ou de adaptar os requisitos da vida cristã à tarefa de ‘incorporar’ povos
não cristãos à civilização europeia”.25Naquela ocasião, questões deste tipo ainda não
estavam colocadas para a Inglaterra ou França.
Mas a situação praticamente se inverte nos séculos seguintes. Na parte 2 do
Espelho, e depois mais detalhadamente no “Multiverse”, Morse discute os dilemas da Ibéria
buscando se modernizar pelos critérios desse “resto do Ocidente” nos séculos XVIII e XIX.
De forma que, na segunda metade do século XIX a identidade era um problema para os
ibéricos, e particularmente para os ibero-americanos e para países periféricos da Europa
(Europa subdesenvolvida) como Alemanha e Rússia, mas não mais para França e
Inglaterra.26
Isso é uma excelente ilustração da concepção de história aventureira e não
evolucionista de Morse. Ele negava-se a ver o percurso da história ocidental como o
crescimento de ovo que já contém em si todas as possibilidades de desenvolvimento. Os
povos, culturas e atores fazem escolhas, ainda que delimitadas por contingências temporais
e espaciais.
Morse sempre foi arredio a dicotomias absolutas. Ao invés de opor desenvolvidos a
atrasados preferia falar em “diferentes orquestrações de alguns temas ocidentais”. “Você
pode usar a mesma escala, a mesma pauta e dependendo da maneira como você a orquestra,
uma música pode ser uma marcha ou uma canção de ninar”.27 Além das semelhanças já
24
Entrevista de Morse com Carlos Eduardo Lins e Silva (Matthew Shirts participou da entrevista). FSP
05/03/1988. Interessante notar que ele não utilizou a expressão “resto do Ocidente” no Espelho ou sequer na
entrevista a Helena Bomeny concedida no mesmo ano.
25
MORSE, R. Espelho de Próspero. P. 60.
26
Este aspecto foi aprofundado pelo autor em “The Multiverse”.
27
FSP 05/03/1988
assinaladas, o uso dessa metáfora musical por Morse remete diretamente à distinção feita
por Gumbrecht entre a Produção de Sentido e a Produção de Presença.
Gumbrecht parte do pressuposto de que qualquer contato humano com as coisas do
mundo contém um componente de sentido e um de presença. “A experiência estética é
específica porque nos permite viver esses dois componentes em sua tensão”. Mas longe de
pretender sugerir que o peso desses dois componentes seja sempre igual, Gumbrecht
reconhece que a dimensão do sentido é sempre predominante quando lemos um livro, por
exemplo. Já quando ouvimos uma música predominará a dimensão da presença. “Mas
penso que a experiência estética – pelo menos em nossa cultura – sempre nos confrontará
com a tensão, ou oscilação, entre presença e sentido”. 28 Morse compara sociedades e
culturas nas quais prevalecem os valores mais racionalizados e individualistas (EUA) com
aquelas mais hierárquicas e orgânicas (América Latina). Embora nenhum dos dois esconda
sua preferência por um dos dois polos, ambos estão em busca do equilíbrio, seja entre a
metafísica e o corpo, ou entre o desenvolvimento material e a convivência humana.
Nenhum dos dois preconiza a eliminação do primeiro polo para que o segundo
possa emergir, mas que exista um equilíbrio e respeito entre eles. O desencanto de Morse
com esse “resto do Ocidente” 29 ou o incômodo de Gumbrecht frente à hegemonia do
sentido sobre a presença são, a meu ver, excelentes exemplos de olhares retroativos que
ajudam a iluminar o futuro, em sintonia com o diálogo com o passado proposto por
LaCapra .

28
GUMBRECHT, H. U. Op. Cit., p.15.
29
FSP 05/03/1988. Interessante notar que ele não utilizou a expressão “resto do Ocidente” no Espelho ou
sequer na entrevista a Helena Bomeny concedida no mesmo ano.

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