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Apropriações intelectuais do Novo ao Velho mundo: Perdigão


Malheiro e as origens do seu pensamento antiescravista

Rogério Barreto Santana


Doutorando em História (UFOP-MG)

Resumo

A partir do final da década de 1960, a História testemunhou uma verdadeira “virada”


no que diz respeito aos estudos tradicionalmente conhecidos como História das
Ideias. Nesse cenário de renovação do campo da História Política, a chamada
“escola de Cambridge” se destacou pela sua abordagem teórico-metodológica
intitulada contextualismo linguístico. Valendo-se dos pressupostos desse projeto
historiográfico, este artigo tem como objetivo apresentar resultados parciais de uma
pesquisa em andamento que visa, entre outras coisas, demonstrar como
personagens do antiescravismo brasileiro, como Perdigão Malheiro (1824-1881),
apropriaram-se do pensamento abolicionista europeu para compor um determinado
tipo de crítica à escravidão no país ainda na década de 1860. A hipótese a ser
trabalhada reside no argumento de que foram principalmente os políticos e
intelectuais franceses, na esteira da erradicação do trabalho escravo nas suas
colônias, aqueles que contribuíram de forma mais decisiva para a formação das
ideias antiescravistas de Perdigão Malheiro ao fornecerem os elementos chave para
a sua apreensão do fenômeno da escravidão em território nacional.

Palavras-chave: Brasil-século XIX; Escravidão; História das ideias; Pensamento


abolicionista europeu; Perdigão Malheiro.

Abstract

Since the end of the 1960s, the discipline of history has passed through a real "turn"
regarding the studies traditionally known as History of Ideas. In this renewal of the
field of political history, the "Cambridge School" stood out for its theoretical and
methodological approach: the linguistic contextualism. Following the premises of this
historiographical project, this article aims to present partial results of a research that
aims, among other things, to demonstrate how Brazilian antislavery intellectuals, as
Perdigão Malheiro (1824-1881), have appropriated the European abolitionist thought
to present a particular type of critique of slavery in Brazil during the decade of 1860.
My hypothesis lies in the argument that were French politicians and intellectuals, who
wrote in the context of the eradication of slave labor in French colonies, who mostly
contributed to the antislavery ideas of Perdigão Malheiro.

KEYWORDS: Nineteenth-century Brazil; Slavery; History of ideas; European


abolitionist thought; Perdigão Malheiro.
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Introdução ou aproximando uma abordagem para o estudo dos agentes

Por muito tempo, convencionou-se o pensamento de que a História das ideias


pouco contribuía para o desenvolvimento de uma abordagem pautada na intenção
dos autores bem como no contexto das suas práticas. Tal modelo tradicional de
História era geralmente apresentado pelos seus críticos como de natureza
“contraproducente”, “abstrata”, “estéril” ou ainda “desencarnada” do ponto de vista
dos usos sociais. Como se não bastasse, compreendia-se o estudo das ideias,
sobretudo políticas, a partir de um universo uno, cuja noção de influência aparecia
enquanto elemento principal das continuidades reveladas por uma história de
conceitos normalmente separados das motivações e atitudes dos agentes históricos.
Aproximando-se da Filosofia e da Linguística de maneira nem sempre sugestiva,
preponderavam nesse tipo de interpretação formas “anacrônicas”,
“descontextualizadas” e “generalizadoras” que se valiam da utilização superficial e
vaga do termo ideias. Em suma, faltava uma adequação maior dos textos ao seu
contexto social de produção.1
Foi na esteira de historiadores como John Pocock (1962), John Dunn (1968) e
Quentin Skinner (1966; 1969) que, já no início da década de 1960, observou-se uma
“virada” de perspectiva no modo pelo qual se concebiam a questão da linguagem, do
significado dos discursos e das estratégias narrativas atentas à reconstrução do
contexto. Partindo inicialmente das investidas de Peter Laslett (1956) contra os
estilos convencionais de História das ideias políticas, esses historiadores tomaram
posteriormente suas próprias direções, destacando-se frente ao pioneirismo de
Laslett pelas suas formulações metodológicas mais declaradas. Em 1962, por
exemplo, John Pocock corroborou com a necessidade de se resgatar a história do
pensamento político do domínio do tratamento exclusivamente filosófico dos textos
clássicos. Esse tipo de orientação metodológica, como acenou Pocock,
impossibilitava à compreensão das conexões entre as ideias e os comportamentos
políticos em dado momento histórico. Tal interpretação reapareceria de forma ainda
mais sólida alguns anos depois. Em artigo originalmente publicado em 1968, John
Dunn insistiu na necessidade de se estudar a História das ideias como uma

1 Uma leitura possível da crítica francesa à tradicional História das ideias é feita em Febvre (FEBVRE,
1989). Para um exemplo tradicional de História das ideias que se aproxima da crítica aqui realizada,
ler Lovejoy (LOVEJOY, 2005, p. 13). Um balanço sobre o assunto “História das ideias” é também
encontrado em Falcon (FALCON, 1997).
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atividade discursiva que se restringia ou se capacitava, simultaneamente, à luz do


contexto. Também em Quentin Skinner a afirmação da metodologia contextualista
surgiria, em 1966, de par com a crítica às abordagens tradicionais.2
A emergência e consolidação do contextualismo linguístico se deveram, em
grande parte, à extensa produção dos autores acima mencionados. Coube, porém,
àquele último, a elaboração mais sistemática do encontro da Filosofia da História de
Collingwood com o aparelho analítico da Filosofia da Linguagem ordinária. 3
Ademais, como assegura Ricardo Silva, entre os historiadores de Cambridge
Skinner foi quem mais obstinadamente se dedicou à dupla tarefa de invectivar contra
as abordagens concorrentes e formalizar a metodologia contextualista. Em razão
disso, é contra ele que muitos críticos do contextualismo linguístico têm dirigido suas
baterias. Daí reside o principal motivo de se atribuir a Skinner, e não aos seus
companheiros de escola, um lugar de destaque na reconstituição das discussões
pertinentes ao assunto (SILVA, 2010, p. 300).
Ao que tudo indica, três artigos metodológicos constituíram o ponto de partida
da vasta produção do historiador inglês, a saber: The Limits of Historical Explanation
(1966); Meaning and understanding in the history of ideas (1969); e Meaning and
Context: Quentin Skinner and his critics (1988). Não parando por aí, a concretização
de toda uma análise do autor centrada em grandes obras do pensamento político
moderno emanaria entre as décadas de 1970 e 1980, com a publicação de The
Foundations of Modern Political Thought (1978) e Machiavelli (1981). De nome já
conhecido, a maturidade intelectual de Skinner só seria mesmo reconhecida nos
anos 1990, quando se difundiram trabalhos como Reason and Rhetoric in the
Philosophy of Hobbes (1996), Liberty before Liberalism (1998) e Visions of Politics

2Desenvolvi parte do parágrafo sintetizando o que escreveu Silva (SILVA, 2010, pp. 299-335).
3 Em entrevista concedida ao colaborador da Revista de História Bruno Garcia, Quentin Skinner
declarou haver uma “dívida intelectual” com duas figuras especialmente importantes no mundo
anglófono: Collingwood (1889-1943) e Wittgenstein (1889-1951). Quanto ao primeiro, lembrou o
historiador: “escreveu trabalhos importantes sobre metodologia na história da filosofia, especialmente
nos anos 30. Na sua autobiografia, no começo dos anos 1940, ele escreveu algo muito importante,
que chamou de lógica de pergunta e resposta: propunha que o conceito crucial de interpretação era o
de recuperar as perguntas elaboradas pelos autores cujos textos parecem respostas. Esta me
pareceu uma ideia luminosa”. Já sobre Wittgenstein, contou Skinner: “Eu era um estudante de
graduação em Cambridge e ele era nosso herói. O que entendíamos que Wittgenstein estava dizendo
é: pare de falar sobre significados, pergunte para que os conceitos estão sendo usados, trate-os
como ferramentas, pergunte para que essa ferramenta é útil. Isto também foi luminoso para mim,
especialmente pela forma como era recebido por John L. Austin (1911-1960), o filósofo da linguagem.
Ele deu uma explicação que acho bastante útil, chamando isso de “atos de fala””. Ver entrevista
completa em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/quentin-skinner-1. Acesso em: 14
de setembro de 2015 às 19:43.
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(2002), sendo esse último escrito em três volumes, dentre os quais o primeiro deles
se destacaria pela retomada daqueles ensaios iniciais que salvaguardaram o seu
olhar sobre a História.4
Quanto a isso, Quentin Skinner vislumbrou várias possibilidades de leitura e
interpretação dos textos históricos. Uma delas é situar os escritos no seu devido
contexto intelectual e discursivo, atentando-se para o fato de que os atores os
produziram de acordo com as motivações específicas de seu tempo. Como ficou
explícito ainda na escrita da introdução do primeiro volume do Visões da Política,
menos do que “entrar” na cabeça dos indivíduos para se valer das suas intenções,
caberia ao historiador das ideias, na medida do possível, a tentativa de se aproximar
das “coisas à sua maneira” (SKINNER, 2002, p. 1-7).
A compreensão dos “significados” de ideias ou mesmo de conceitos passaria
pelo próprio questionamento do lugar de onde essas ideias e conceitos se
desenvolveram. Mais do que isso, refletir sobre tais questões nos remete a um maior
diálogo com os autores e os reais escopos de suas práticas sociais. Ou seja, com o
argumento de que “speech is also action” - expresso ainda mais abertamente nos
volumes seguintes de sua obra de talvez maior fôlego teórico -, Skinner validou na
historiografia o pensamento de que a língua não traduz apenas um ato retórico, mas
igualmente uma relação de poder. Uma vez tomada como recurso, ela poderia
moldar o “mundo” no qual os indivíduos atuaram e deram significados às suas ações
políticas quase sempre conscientes (SKINNER, 2002, p. 1-7).
A matéria ganharia destaque em dois dos capítulos do já citado livro Visões
da Política: ‘Social meaning’ and the explanation of social action; e Moral principles
and social change. O fato é que, seguindo a risca as ponderações trazidas pelo
historiador, não haveria como negligenciar a “agência humana” no processo de
mudança social, especialmente quando entendemos que os autores são de
fundamental importância para uma boa compreensão das obras que pretendemos
estudar (SEWELL JR., 1992, p.1-29).
Nessa lógica, definir os conceitos e a linguagem empregada por eles revela
não só o conhecimento do seu vocabulário e das suas possibilidades de escrita,
como também as variadas intencionalidades presentes nos seus respectivos
trabalhos e atos discursivos. Apreender “motivos” e “intenções”, assim, acaba sendo

4Todos os trabalhos acima mencionados podem ser encontrados já traduzidos em língua portuguesa.
Consultar as referências completas das obras no final deste artigo.
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a “chave” para a compreensão dos textos históricos. À medida que os motivos


tratam de condições que antecedem a realização da obra, as intenções, por seu
turno, respondem pelas ações evocadas a partir de fatores aparentemente externos
ao que se empreendeu posteriormente na forma de discurso (SKINNER, 2002, p.
96-102).
Adequar “motivos” e “intenções” à interpretação das narrativas históricas para
a construção do contexto social e linguístico em que se inserem os textos
historiográficos dificilmente seria possível naquele quadro tradicional de História das
ideias como apresentado linhas atrás. O método contextualista, distintamente,
viabiliza uma série de perspectivas não contempladas pela denominada “história do
pensamento”. Como critica Skinner no seu Liberdade antes do Liberalismo, os
historiadores do pensamento fariam bem se, ao invés de se concentrarem num
cânone dos assim chamados textos clássicos, procurassem, razoavelmente, dar
conta do lugar ocupado por esses textos em tradições e quadros mais amplos de
ideias (SKINNER, 1999, p.83).
A censura de Quentin Skinner ao que intitulou de “história do pensamento”
remonta aquela que se tornou talvez a maior das suas contribuições à historiografia
contemporânea. Tomando de empréstimo as considerações de Vanderlei Sebastião
de Souza sobre o tema, em Skinner encontra-se a transformação de um “texto
qualquer” em documento histórico passível de uma leitura objetiva, em que a
dicotomia entre autor, texto, contexto e linguagem é suprimida em função de um
“contextualismo linguístico” mais performático e sensivelmente histórico, cujas ideias
são tratadas dentro das tradições intelectuais e do repertório normativo disponível
numa dada sociedade ou num grupo de indivíduos. Skinner restituiu, por fim, o lugar
do autor no processo de produção e difusão das ideias ao defender a autonomia do
pensamento e invocar uma história de homens e mulheres que pensam, agem e
escrevem a partir de intenções conscientes. (SOUZA, 2008, p. 19).
Valendo-se então dos pressupostos desse projeto historiográfico, este artigo
tem como objetivo apresentar resultados parciais de uma pesquisa em andamento
que visa, entre outras coisas, demonstrar como um personagem do antiescravismo
brasileiro, Perdigão Malheiro (1824-1881), apropriou-se do ideário abolicionista
europeu para compor um determinado tipo de crítica à escravidão no país ainda na
década de 1860. A hipótese a ser trabalhada reside no argumento de que foram
principalmente os políticos e intelectuais franceses, na esteira da erradicação do
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trabalho escravo nas suas colônias, aqueles que contribuíram de forma mais
decisiva para a formação das ideias antiescravistas de Perdigão Malheiro ao
fornecerem os elementos chave para a sua apreensão do fenômeno da escravidão
em território nacional.

Perdigão Malheiro: referências intelectuais e as origens do seu pensamento


antiescravista

Agostinho Marques Perdigão Malheiro nasceu em 1824 na cidade de


Campanha, sul da província de Minas Gerais, falecendo no Rio de Janeiro, em 1881.
Foi membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Presidente
Honorário do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), Procurador dos Feitos da
Fazenda Nacional, curador de africanos livres, entre outras funções. De berço
escravista, originou-se dos laços matrimoniais de um “juiz de fora” com uma filha de
uma família de proprietários de Campanha. Manteve em praticamente toda a sua
trajetória fortes ligações com o grupo político conservador, notadamente a partir de
1869, quando atuaria, pela primeira vez, como deputado pela província de Minas
Gerais (GILENO, 2003, p. 7).
A obra desse letrado imperial foi, até o momento, utilizada mais como fonte
para se ilustrar a escravidão no país do que estudada e contextualizada
pormenorizadamente. Dois livros, quanto a isso, destacam-se entre as produções
bibliográficas: Perdigão Malheiro e a crise do sistema escravocrata e do império, do
sociólogo Carlos Henrique Gileno (2013); e Pajens da Casa Imperial, do historiador
Eduardo Spiller Pena (2001). Esse último dedicou um capítulo do seu trabalho à
análise de Perdigão Malheiro e suas conexões com o tema da escravidão no cenário
jurídico-social. Não obstante as opções teórico-metodológicas e a variedade de
temas e questões abordadas nas duas pesquisas, uma pergunta, apenas
circunstancialmente por eles apresentada, permanece mal resolvida: como é que
Perdigão Malheiro, pessoalmente articulado aos conservadores, pôde conceber a
libertação do ventre em 1863?
Relacionadas à sua erudição Clássica e às experiências escravistas de
diferentes povos, as referências intelectuais e as “origens” do pensamento
antiescravista de Perdigão Malheiro apontam para uma possibilidade de
interpretação do problema historiográfico aqui colocado.
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O aprendizado das línguas francesa, inglesa e latina, componente básico de


uma boa formação no século XIX, não deve ser entendido como mero capricho de
uma elite letrada. Era por meio dele que se podia manter uma maior proximidade e
interação intelectual com o que se produzia em termos de ideias no “mundo
civilizado”, isto é, França e Inglaterra. O país franco motivava principalmente a nossa
cultura letrada. Já o anglo-saxão, fornecia exemplos de como proceder na política e
de como governar uma nação livre. A instrução também em latim justificava-se. O
conteúdo assimilado nas escolas de direito no Brasil era um indicativo de tal
necessidade.5
A biblioteca da faculdade de direito de Recife oferece dados consistentes sobre
a recepção dos Antigos na formação dos estudantes. O catálogo citado por Clóvis
Bevilaqua, que consultou as listagens originais, compreende o período de 1833 a
1839. O documento menciona a existência de, aproximadamente, 3.500 volumes,
chamando à atenção a grande presença de autores gregos e latinos. Dos latinos,
constam títulos de Plínio, Quintiliano, Ovídio, Virgílio, Terêncio, Tácito e,
obviamente, exemplares da legislação romana. Dentre os gregos traduzidos para o
português, encontram-se Aristóteles, expositores da Filosofia Peripatética e Homero
(BEVILAQUA, 1977, p. 304). Diante desse quadro, é possível pensar que a
formação dos juristas da novíssima faculdade de direito de Recife compunha-se de
duas grandes linhas de força. A primeira, a Clássica, com ênfase na leitura de
gregos e latinos e numa concepção jusnaturalista que remontava o Código
Justiniano e tratava da ideia de lei natural a partir de uma apropriação escolástica. A
segunda, de base utilitarista, era representada por Bentham e Stuart Mill
(MOMESSO, 2011, p. 213-214).
Tradicionalmente, a principal fonte jurídica do Império do Brasil era a
Constituição outorgada de 1824, apesar da existência de fontes jurídicas outras que
regulavam, na prática, o cotidiano da sociedade imperial. De 1822 até 1871, vigeram
no país, na ausência de um Código civil, as Ordenações Filipinas. Mas aplicavam-
se, por exemplo, aos escravos e às relações jurídicas de que participavam, as leis

5 Sobre o assunto, Ricardo Salles deu importante contribuição (SALLES, 2002, p. 53-53). Ver também
como Joaquim Nabuco se apropriou do tema (NABUCO, 2005). Uma leitura sobre o aprendizado nas
faculdades de Direito do Brasil foi feita por Wolkmer (WOLKMER, 2010, p. 102-107).
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civis ordinárias, a legislação colonial não derrogada, o Código Comercial (1850), a


jurisprudência, os atos administrativos do governo imperial e os pareceres
oficializados do Instituto dos Advogados do Brasil. Quanto ao crime, vigoraram o
Código Criminal de 1830, o Código de Processo Criminal e sua reforma, a legislação
ordinária e as demais fontes de direito, como na lei civil. Subsidiando juízes e partes,
o Direito canônico e o Direito romano apareciam ainda como alternativa aos
jurisconsultos (WEHLING, 2005, p. 333-335).
Seja na faculdade de direito de São Paulo (concentrada no Convento de São
Francisco, com início das suas atividades em 1º de março de 1828) ou na faculdade
de direito de Olinda (instalada no Mosteiro de São Bento, em 15 de maio de 1828,
depois transferida para o Recife, em 1854) (WOLKMER, 2010, p. 102), era
inquestionável a influência do Direito romano, entendido por muitos, inclusive pelo
próprio Malheiro, como subsidiário ao Direito brasileiro:

Prescindindo, porém, deste histórico e da legislação respectiva,


remontemos aos Romanos, de cujo Direito nos teremos de socorrer
muitas vezes como subsidiário ao nosso, mas bem entendido,
segundo o uso moderno, quando conforme a boa razão, ao espírito
do Direito atual, às ideias do século, costumes e índole da Nação
(MALHEIRO, 1866, p.93).

O Corpus Juris Civilis (533 d.C.) - considerado como o feito de maior relevância
do governo do Imperador romano Justiniano (527-565) para a cultura ocidental -
relacionou-se positivamente com os quadros jurídicos apresentados pela geração de
Perdigão Malheiro. O conjunto das recolhas publicadas por Justiniano compreendia
quatro partes: primeira, o Código (Codex Justiniani), compilação de leis imperiais
que visava substituir o Código Teodosiano; segunda, o Digesto (Digesta ou
Pandectas), vasta compilação de trechos de mais de 1.500 livros escritos por
jurisconsultos da época clássica – principalmente Ulpiano, Paulo, Gaio, Papiniano e
Modestino (todos eles citados na obra de Perdigão Malheiro); terceira, as Institutas
(Institutiones Justiniani), espécie de manual elementar destinado ao ensino do
Direito, sendo redigida por dois juristas, Dorotéu e Teófilo, sob a direção de
Triboniano; e quarta, as Novelas (Novellae), recolha das constituições promulgadas
por Justiniano após a publicação do Codex (GILISSEN, 1979, p. 92). Pelo seu teor,
o interesse pelo Digesto seria uma constante entre os jurisconsultos brasileiros,
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especificamente nas passagens onde se referia à concessão das alforrias; uma


atitude, quase sempre, atrelada a uma tomada de decisão do senhor.
O conhecimento do latim, mas particularmente do francês e do inglês, proveria
as ferramentas necessárias para os primeiros contatos de Perdigão Malheiro com
toda uma tradição de pensamento antiescravista que se estabeleceu na Europa dos
Oitocentos. Como bem demonstrou David Brion Davis, até meados do século XVIII a
escravidão foi uma instituição socialmente aceita tanto pelos senhores de escravos
como pelos próprios cativos. Sua legitimidade tampouco havia sido questionada
pelos filósofos e homens de letras que escreveram sobre o assunto no mundo
Clássico e no Moderno. A partir da década de 1750, contudo, começaram a surgir
vozes que questionaram profundamente a escravidão colonial e as formas
compulsórias de trabalho ainda vigentes na Europa continental. Essas críticas foram
realizadas com base na moralidade evangélica à moda quacre, na teoria iluminista
dos direitos naturais e no discurso econômico da fisiocracia e do Iluminismo
escocês. Escorando-se no conceito moderno de liberdade - visto, em linhas gerais,
como expressão da autonomia individual -, essas três vertentes formularam as
primeiras críticas sistemáticas à escravidão negra, tornando justificáveis as ações
individuais e coletivas para aboli-la (DAVIS, 2001, p. 327-491).
Esse clima intelectual teve desdobramento na Grã-Bretanha e na França, onde
despontaram os primeiros grandes trabalhos sobre escravidão Antiga. Como
observou Fábio Duarte Joly, em 1785 a Universidade de Cambridge anunciou um
prêmio para o melhor ensaio que discutisse o tema da validade de um homem ser
escravizado contra sua vontade. Em 1794, a Convenção, na França, liberou todos
os escravos em territórios sob domínio francês e, em 1807, o Parlamento britânico
votou a favor do fim do tráfico escravo. Em 1833, foi publicada em Edimburgo, pelo
historiador escocês William Blair, um livro intitulado An Inquiry into the State of
Slavery amongst the Romans from the Earliest Period till the Establishment of the
Lombards in Italy. Na França, veio a lume a monumental Histoire de l’esclavage
dans l’Antiquité, de Henri Wallon (1812-1904). Publicada em 1847, apresentou-se
como resposta a duas indagações colocadas em um concurso de 1837 pela
Academia de Ciências Morais e Políticas: “Por que causas a escravidão antiga foi
abolida? A partir de que época a escravidão desapareceu completamente da Europa
ocidental, não restando apenas a servidão da gleba?”. Tais questões remetiam, na
realidade, às dificuldades para se erradicar o trabalho escravo nas colônias, tanto
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que, não por acaso, o próprio Wallon redigiu um texto intitulado L’Ésclavage dans les
colonies, posteriormente incorporado como introdução à sua obra maior na reedição
de 1879. Em ambos os escritos, segundo Joly, encontra-se o mesmo raciocínio: a
escravidão é contrária ao direito natural, corrompe tanto senhores como escravos e
impede o desenvolvimento do trabalho livre e sua respectiva produtividade (JOLY,
2006, p.8-9).
Seriam então os franceses e não os ingleses aqueles que, na esteira da
erradicação do trabalho escravo nas suas colônias, contribuiriam de maneira mais
decisiva na formatação das ideias antiescravistas de Perdigão Malheiro. Isso porque
tais atores forneceram ao letrado imperial os elementos chave para sua
compreensão do fenômeno da escravidão no Novo Mundo. Conforme Antonio
Penalves Rocha, Portugal e Brasil, dos fins do século XVIII e início do XIX, estavam
inseridos na esfera de influência da cultura erudita francesa, além de os mais
importantes textos ingleses que condenavam a escravidão terem sido traduzidos, a
partir dos fins da década de 1780, pela Sociedade dos Amigos dos Negros da
França. Ainda segundo o autor: “a reprodução das ideias dos ilustrados franceses
pelos brasileiros ocorreu não somente em relação às medidas para acabar com a
escravidão, mas está igualmente presente nas críticas feitas à instituição” (ROCHA,
2000, p. 40-58).
O volumoso corpus acerca da escravidão Antiga e Moderna congesto pelo
antiescravismo inglês não obteve na obra de Perdigão Malheiro o mesmo espaço
reservado aos textos do antiescravismo francês. Não que as muitas referências
inglesas não tivessem sido incorporadas às suas leituras. As “grandes ações
humanitárias” dos emancipacionistas ingleses seriam priorizadas no conjunto da
obra do jurisconsulto tendo em vista o seu caráter mais pragmático. Dito de outra
maneira, interessava a Malheiro às experiências abolicionistas inglesas pelo fato
delas indicarem, efetivamente, caminhos para o problema da escravidão em seu
próprio país. Munido das apropriações dos estudos - anteriores e contemporâneos -
de intelectuais franceses, ele atribuiria aos ingleses o papel de convencimento das
nações modernas e civilizadas do mundo de que se aproximava o dia do fim do
cativeiro.
Dessa forma, podemos dizer que grandes nomes do antiescravismo inglês -
como Wilberforce, Clarkson, Canning e Buxton - foram diversas vezes mencionados
por Perdigão Malheiro não por esse último ter tido contato com suas principais obras
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ou tomar partido das suas práticas políticas, mas devido ao conhecimento por ele
adquirido dos ingleses através da leitura de autores franceses, como Wallon e
Cochin (1823-1872). Além de dialogarem com os britânicos em muitos aspectos,
eles ajudariam a aperfeiçoar nas sociedades modernas um tipo de interpretação do
abolicionismo baseado em um modelo histórico-comparativo, empregado largamente
também por Malheiro em seus escritos sobre escravidão (MALHEIRO, 1867, p. 33).
Nessa perspectiva, importava mais ao jurisconsulto exaltar a competência política,
organizacional e estratégica da Inglaterra e dos seus atores, no cenário abolicionista
internacional, do que, distintamente, analisar a sua literatura, tomando-a, ao mesmo
tempo, como fonte de estudo ou paradigma intelectual.
Assim como em relação aos ingleses, é inegável o fato de que Perdigão
Malheiro fez mais uma leitura Moderna da Antiguidade do que, propriamente, uma
análise profunda do repertório Clássico nos seus originais. Com exceção do
conhecimento jurídico acumulado ainda na faculdade de direito e do estudo do bom
latim – os quais permitiram a ele decodificar o Direito romano e apreciar a
bibliografia de autores latinos, como Tácito (55-120) -, não é sem razão inferir que a
sua ciência da Antiguidade fosse, em grande medida, uma extensão das
construções que outros modernos, tais como ele, fizeram do sistema escravista de
Roma.
Muitos intelectuais e ativistas modernos, nesse sentido, serviram não só de
referência para Perdigão Malheiro, como também de inspiração para o seu
antiescravismo. Concepções metodológicas provenientes de Leibniz, Bentham e
Savigny, isto é, do conceitualismo teórico-doutrinário e da “ciência jurídica alemã”
(WOLKMER, 2010, p. 115), dariam a Malheiro uma rica e sólida base para sua
compreensão das legislações romana e Moderna. Ainda na tradição alemã,
destacavam-se entre as diversas leituras de Perdigão Malheiro uma em especial: a
do jurista, político e historiador liberal Theodor Mommsen (1817-1903). O alemão,
que começou a escrever a História de Roma em vários volumes, em 1854, foi um
daqueles estudiosos modernos que mais se destacou por realizar trabalhos sobre a
Antiguidade, amparando Malheiro no seu diagnóstico e conhecimento da história de
Roma. A escravidão seria tratada, desde o princípio, por Mommsen, de forma
original, como algo de fundamental importância para a sociedade e a história de
Roma. O historiador não só colocaria a escravidão romana numa posição central,
mas a condenaria moralmente e com vigor (1854 apud FINLEY, 1991, p. 37). Da
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França, Perdigão Malheiro adotou o sistema filosófico eclético advindo de um


historicismo espiritualista liderado por Victor Cousin (WOLKMER, 2010, p. 165-166).
Contudo, sem dúvida seriam autores franceses como Troplong (1843), Yanoski
(1860) e Augustin Cochin (1861) que legariam a ele as bases para a formulação de
sua tese de que era necessária a abolição da escravidão.
Esse tipo de narrativa deu margem no continente europeu a uma polêmica que
evidenciava como a escravidão Antiga era abordada de um ponto de vista moral
tanto no ideário abolicionista como no pró-escravista. No primeiro caso, buscando-se
ressaltar seus efeitos deletérios sobre a sociedade; no segundo, servindo-se da
metáfora da escravidão para desqualificar o trabalho livre. De um jeito ou de outro, o
fato é que muitos dos caminhos ditados de abordagem da escravidão antiga se
pautaram em justificativas que sugeriam Roma ora como modelo escravista, ora
como padrão de crítica do antiescravismo (JOLY, 2006, p. 9).
Tal debate ganhou uma conotação semelhante no Brasil nas décadas de 1850
e 1860. Na década de 1850, demonstrou a preocupação da elite política e da classe
senhorial brasileira com o fim do tráfico de escravos e com a discussão sobre a
necessidade da introdução de colonos no Império. Já na seguinte, evidenciaria os
resultados da Guerra Civil Americana (1861-1865) que não aqueceram apenas as
arenas parlamentares quanto à possibilidade de um encaminhamento do problema
da escravidão no país, mas a toda sociedade imperial, incluindo aí os próprios
cativos.6
As interpretações antiescravistas no Brasil procuraram muitas vezes
condicionar sua existência a uma memória da escravidão que procurou se legitimar
por meio da elaboração de discursos em favor da liberdade e da crítica aos
diferentes sistemas escravistas da história. Tais narrativas constituíram o que
Perdigão Malheiro considerou como as “origens do pensamento antiescravista
nacional”. Conforme cronologia por ele apresentada em seu livro, em 1836, F. L.
César Burlamaque escreveu sua Memória analítica acerca do comércio de escravos
e dos males da escravidão doméstica. Em 1845, o desembargador Henrique Velloso
de Oliveira publicaria outra: A substituição do trabalho dos escravos pelo trabalho
livre no Brasil. No mesmo ano, o Dr. Caetano Alberto Soares, em sessão magna do
IAB, leu sua memória sobre o Melhoramento da sorte dos escravos no Brasil,

6O assunto foi bem discutido ao longo do capítulo IV da obra de Tâmis Parron (PARRON, 2011).
Sobre o tráfico de escravos, ler Jaime Rodrigues (RODRIGUES, 2005).
13

publicada em 1847 e reimpressa na revista do Instituto em 1862. Em 1852, a


Sociedade contra o tráfico, estabelecida na corte desde 1850, formulou um projeto
de abolição gradual. Em 1861, no Relatório da Exposição Nacional, aventou-se
sobre o problema da escravidão como prejudicial à Indústria. Nas Cartas do
Solitário, publicadas no Correio Mercantil em 1862, e em segunda edição em 1863,
o Dr. A. C. Tavares Bastos estudou a questão do tráfico, dos Africanos livres e
também da escravidão, pronunciando-se contra essa (MALHEIRO, 1867, p. 93-95).
Motivados pelas experiências históricas e escravistas de povos europeus
modernos, muitos atores brasileiros da primeira metade do século XIX, como
Caetano Alberto Soares (antecessor de Perdigão Malheiro no IAB), recorreriam à
escravidão Antiga para melhor diagnosticarem o futuro da escravidão no Brasil. Haja
vista a recepção desse tipo de pensamento no país, não chegaria a surpreender a
última fala de Perdigão Malheiro em uma das suas mais emblemáticas declarações
enquanto presidente do Instituto dos Advogados, a qual demonstraria o seu
entrosamento com a noção de que o problema político da instituição deveria ser,
também por aqui, devidamente encaminhado:

As gerações que nos há de suceder bem diriam tão meritória


resolução. E a bondade do Altíssimo desceria, como o orvalho
criador, sobre a terra, ora abrasada pelo suor e lágrimas do escravo;
só então nossa bela pátria seria verdadeiramente feliz (MALHEIRO,
1863, p. 17).

Discursos de cunho moral e cristão ditaram igualmente boa parte dos princípios
que sustentaram as narrativas abolicionistas no cenário europeu a partir de fins do
século XVIII. No Brasil, não se pode dizer que tais narrativas divergiram muito
daquelas produzidas na “Europa das abolições”. Como sustentou Antonio Penalves
Rocha, os escritores brasileiros, observando a escravidão segundo o prisma das
ideias antiescravistas da Ilustração, condenaram a instituição sob todos os ângulos,
acompanhando a “sensibilidade humanitária” dos autores europeus e considerando
a escravidão como um atentado ao direito natural e ao Cristianismo (ROCHA, 2000,
p. 52).7 Esse tipo de pensamento pode ser encontrado em figuras “vivas” da época,
como Montesquieu, para quem:

7 Em estudo que parte da análise do Iluminismo português do século XVIII, Lúcia Maria Bastos
Pereira das Neves estabelece uma cultura política comum a luso-brasileiros da América e
portugueses de Portugal. Tendo como referência a ideia de império luso-brasileiro, a pesquisadora
institui uma conexão entre o movimento iniciado em 24 de agosto de 1820, no Porto, e a
14

Como todos os homens nascem iguais, é preciso dizer que a


escravidão é contra a natureza, ainda que em certos países esteja
fundada numa razão natural; e deve-se distinguir bem estes países
daqueles onde as próprias razões naturais a rejeitam, como os
países da Europa, onde foi tão felizmente abolida (MONTESQUIEU,
1996, p. 258).

A formulação de Montesquieu (1996) - que no fundo chamava a atenção para


as contradições entre viver no “século das luzes” e aceitar pacífica e acriticamente a
exploração dos negros nas colônias do ultramar - não passaria despercebida.
Perdigão Malheiro fez dilatado uso do ilustrado francês para discutir temas
relacionados ao costume e ao ideal de civilização moderno no Brasil, bem como
para identificar as conexões entre escravidão e cristianismo. Tanto que, valendo-se
de outros dois textos escritos século depois, Histoire de l’esclavage dans l’Antiquité
(1847) e L’Ésclavage dans les colonies (1879), ambos de autoria de Henri Wallon,
ele se apropriaria do pensamento de que a escravidão e o progresso do cristianismo
eram mutuamente excludentes, uma vez que soava estranhamente a coexistência
entre a servidão humana e um sistema de valores fundamentais. O capítulo
intitulado “Da Escravidão dos Negros”, da obra O Espírito das Leis, desde então
pode ser considerado como o ponto de partida intelectual deflagrador do movimento
abolicionista na época das Luzes. Na esteira desse livro, muitos autores franceses,
como o já citado Wallon, abordariam o tema da abolição da escravidão nas colônias
do Velho Mundo, liderando politicamente movimentos abolicionistas não só na
França, como também na Inglaterra.
Nesse caso, um conjunto de acontecimentos evidenciaria como a questão da
escravidão era oportuna. Na década de 1780, foram fundadas sociedades
abolicionistas na Europa, tendo sido a primeira delas criada na Inglaterra, em 1783,
para lutar pelo fim do tráfico negreiro. Mas, suas atividades só se iniciaram
efetivamente em 1787, graças à ação política de Thomas Clarkson, Glanville Sharp
e James Phillips, quando passou a se chamar Sociedade pela abolição do tráfico e
da escravidão dos negros. Com a cessação do tráfico, acreditavam os abolicionistas,
os senhores de escravos das colônias finalmente constatariam que o emprego de
trabalhadores livres era mais produtivo do que o de escravos. Assim, a primeira
vitória do movimento antiescravista inglês veio em 1807, com a proibição do tráfico

Independência brasileira. Para uma leitura de trabalho que exemplifica a apropriação por atores
brasileiros das ideias ilustradas, ver: Neves (2003).
15

negreiro transatlântico para as colônias inglesas. A abolição definitiva da escravidão


inglesa, porém, só viria em 1833, depois da retomada do movimento antiescravista
da Inglaterra ocorrido na década de 1820 e de um novo patamar de resistência dos
escravos caribenhos, já no sentido de abolição da instituição.8 Na França, a primeira
data de 1788: trata-se da Sociedade dos Amigos dos Negros, que tinha à testa
figuras como Brissot, La Fayette, Mirabeau, Clavière, Condorcet, Sieyès, Grégoire,
Lavoiser, Pétion, etc. Os eventos revolucionários, os quais se iniciariam em 1789,
tiveram impacto decisivo nas possessões caribenhas. A Revolução Francesa e seus
desdobramentos no Caribe alteraram por completo o sistema colonial francês, sendo
um efeito disso a própria abolição da escravidão em São Domingos, a partir de
1791. Depois que os franceses extinguiram a escravidão em 1794, libertos e ex-
escravos, em 1804, inspirando-se diretamente nos princípios políticos da Ilustração,
decretaram a independência do Haiti, o segundo país da América a fazê-la depois
dos Estados Unidos. A escravidão fora inteiramente abolida no novo país, enquanto
nas demais colônias francesas (Martinica, Guadalupe, Guiana) isso só ocorreria em
1848.9
Tais acontecimentos repercutiram no Brasil e elucidaram que se havia
quebrado o pacto entre as grandes nações coloniais europeias de defesa da
escravidão. O surgimento de movimentos contestatórios da escravidão na Europa e
a consequente abolição da escravidão em suas colônias surtiriam efeitos
consideráveis para o país, mas não imediatos. Em grande medida, isso pode ser
explicado pelo fato de que, mesmo a escravidão sendo suprimida nas colônias
europeias remanescentes na América, em diferentes estados dos Estados Unidos e
em diversas das novas repúblicas ibero-americanas, não foi o que se observou em
Cuba - ainda uma possessão espanhola -, na maioria dos estados do Sul dos
Estados Unidos e no Império do Brasil. Nessas regiões, não só a instituição servil foi
mantida, simultaneamente, como conheceu notável expansão. Nesses dois últimos
casos, assistiu-se ao que se pode designar de ascensão do “escravismo nacional”.
Ascensão que se deu em íntima conexão com o desenvolvimento do mercado

8 A discussão é bem mais ampla e pode ser aprofundada em Brown (2006); Davis (1975; 1984; 2001;
2006); Blackburn (2002, pp. 147-174/445-497); Drescher (2011, pp. 291-416); e Bender (1992).
9 A abolição da escravidão na França foi analisada por Jennings (2000); retratando também o caso

inglês, ver: Kielstra (2000); Drescher (1987, cap. 3/2011, pp. 205-253); Davis (1975, p. 137-148); e
Blackburn (2002, pp. 179-279/505-546). Para o caso haitiano, consultar James (1938); Fick (1990); e
Kolchin (1987, pp. 49-51).
16

mundial capitalista e com a construção dos Estados nacionais (SALLES, 2008,


p.21).10
Sumariamente, foi isso o que Dale W. Tomich em estudo denominou de
“Segunda Escravidão”. Seu objetivo era chamar a atenção para o caráter variável da
escravidão na economia mundial do século XIX, mostrando, ao mesmo tempo, a
formação e a reformulação das relações escravistas dentro dos processos históricos
da economia capitalista mundial. Em sua visão, se a escravidão havia sido abolida
nas principais partes do globo, o “século antiescravista” seria, contrariamente, o
apogeu do seu desenvolvimento. De outra maneira, enquanto se verificava, no final
do século XVIII, um papel secundário conferido às colônias escravistas da América
do Norte, Brasil e colônias espanholas - com exceção da ilha de Cuba -, a partir do
século XIX, em contrapartida, percebeu-se o crescimento da escravidão nessas
regiões em virtude do aumento da demanda mundial de algodão, café e açúcar e do
declínio dos antigos centros de produção escravista, como o Caribe britânico e
francês, que chegariam aos limites máximos de suas capacidades produtivas
(TOMICH, 2011, p. 87-97).
Em outras palavras, praticamente 13 anos depois de abolida a escravidão nas
colônias francesas (1848), e passado ainda mais tempo da abolição das colônias
inglesas (1833), é que puderam ser sentidos, no Brasil, os resultados diretos da
produção intelectual e dos feitos políticos dos atores sociais daqueles dois países. E
isso não se deveu à demora da divulgação dos eventos europeus ou pelo atraso das
ideias estrangeiras em chegar por aqui. O motivo que faria figuras brasileiras, como
Perdigão Malheiro, a voltarem seus esforços para a complicada questão da
escravidão era outro: o conflito iniciado no Sul dos Estados Unidos em abril de 1861.
Este, contudo, é um assunto que deverá ser analisado em outro momento.

Considerações finais

Em que se pese o esforço de realização de um exaustivo banco de dados


relacionado às referências intelectuais de Perdigão Malheiro e às investidas em
torno da leitura de tais fontes para compor um quadro de autores e obras
expressivos para o cenário político-ideológico imperial, falta ainda um exame mais

10Para uma abordagem comparativa entre Brasil, Cuba e Estados Unidos, ler: Bergad (2007);
Marquese (2004); Berbel, Marquese e Parron (2010); e Marquese e Parron (2011, p. 97-117).
17

profundo quanto à caracterização, diversidade e significado desses repertórios entre


Malheiro e seus contemporâneos, que por sua vez se apropriariam daqueles
conteúdos mirando o encaminhamento do problema da escravidão no Brasil. Este
artigo, antes de tudo, procurou chamar a atenção para a relevância do tema.

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