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Resumo
Abstract
Since the end of the 1960s, the discipline of history has passed through a real "turn"
regarding the studies traditionally known as History of Ideas. In this renewal of the
field of political history, the "Cambridge School" stood out for its theoretical and
methodological approach: the linguistic contextualism. Following the premises of this
historiographical project, this article aims to present partial results of a research that
aims, among other things, to demonstrate how Brazilian antislavery intellectuals, as
Perdigão Malheiro (1824-1881), have appropriated the European abolitionist thought
to present a particular type of critique of slavery in Brazil during the decade of 1860.
My hypothesis lies in the argument that were French politicians and intellectuals, who
wrote in the context of the eradication of slave labor in French colonies, who mostly
contributed to the antislavery ideas of Perdigão Malheiro.
1 Uma leitura possível da crítica francesa à tradicional História das ideias é feita em Febvre (FEBVRE,
1989). Para um exemplo tradicional de História das ideias que se aproxima da crítica aqui realizada,
ler Lovejoy (LOVEJOY, 2005, p. 13). Um balanço sobre o assunto “História das ideias” é também
encontrado em Falcon (FALCON, 1997).
3
2Desenvolvi parte do parágrafo sintetizando o que escreveu Silva (SILVA, 2010, pp. 299-335).
3 Em entrevista concedida ao colaborador da Revista de História Bruno Garcia, Quentin Skinner
declarou haver uma “dívida intelectual” com duas figuras especialmente importantes no mundo
anglófono: Collingwood (1889-1943) e Wittgenstein (1889-1951). Quanto ao primeiro, lembrou o
historiador: “escreveu trabalhos importantes sobre metodologia na história da filosofia, especialmente
nos anos 30. Na sua autobiografia, no começo dos anos 1940, ele escreveu algo muito importante,
que chamou de lógica de pergunta e resposta: propunha que o conceito crucial de interpretação era o
de recuperar as perguntas elaboradas pelos autores cujos textos parecem respostas. Esta me
pareceu uma ideia luminosa”. Já sobre Wittgenstein, contou Skinner: “Eu era um estudante de
graduação em Cambridge e ele era nosso herói. O que entendíamos que Wittgenstein estava dizendo
é: pare de falar sobre significados, pergunte para que os conceitos estão sendo usados, trate-os
como ferramentas, pergunte para que essa ferramenta é útil. Isto também foi luminoso para mim,
especialmente pela forma como era recebido por John L. Austin (1911-1960), o filósofo da linguagem.
Ele deu uma explicação que acho bastante útil, chamando isso de “atos de fala””. Ver entrevista
completa em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/quentin-skinner-1. Acesso em: 14
de setembro de 2015 às 19:43.
4
(2002), sendo esse último escrito em três volumes, dentre os quais o primeiro deles
se destacaria pela retomada daqueles ensaios iniciais que salvaguardaram o seu
olhar sobre a História.4
Quanto a isso, Quentin Skinner vislumbrou várias possibilidades de leitura e
interpretação dos textos históricos. Uma delas é situar os escritos no seu devido
contexto intelectual e discursivo, atentando-se para o fato de que os atores os
produziram de acordo com as motivações específicas de seu tempo. Como ficou
explícito ainda na escrita da introdução do primeiro volume do Visões da Política,
menos do que “entrar” na cabeça dos indivíduos para se valer das suas intenções,
caberia ao historiador das ideias, na medida do possível, a tentativa de se aproximar
das “coisas à sua maneira” (SKINNER, 2002, p. 1-7).
A compreensão dos “significados” de ideias ou mesmo de conceitos passaria
pelo próprio questionamento do lugar de onde essas ideias e conceitos se
desenvolveram. Mais do que isso, refletir sobre tais questões nos remete a um maior
diálogo com os autores e os reais escopos de suas práticas sociais. Ou seja, com o
argumento de que “speech is also action” - expresso ainda mais abertamente nos
volumes seguintes de sua obra de talvez maior fôlego teórico -, Skinner validou na
historiografia o pensamento de que a língua não traduz apenas um ato retórico, mas
igualmente uma relação de poder. Uma vez tomada como recurso, ela poderia
moldar o “mundo” no qual os indivíduos atuaram e deram significados às suas ações
políticas quase sempre conscientes (SKINNER, 2002, p. 1-7).
A matéria ganharia destaque em dois dos capítulos do já citado livro Visões
da Política: ‘Social meaning’ and the explanation of social action; e Moral principles
and social change. O fato é que, seguindo a risca as ponderações trazidas pelo
historiador, não haveria como negligenciar a “agência humana” no processo de
mudança social, especialmente quando entendemos que os autores são de
fundamental importância para uma boa compreensão das obras que pretendemos
estudar (SEWELL JR., 1992, p.1-29).
Nessa lógica, definir os conceitos e a linguagem empregada por eles revela
não só o conhecimento do seu vocabulário e das suas possibilidades de escrita,
como também as variadas intencionalidades presentes nos seus respectivos
trabalhos e atos discursivos. Apreender “motivos” e “intenções”, assim, acaba sendo
4Todos os trabalhos acima mencionados podem ser encontrados já traduzidos em língua portuguesa.
Consultar as referências completas das obras no final deste artigo.
5
trabalho escravo nas suas colônias, aqueles que contribuíram de forma mais
decisiva para a formação das ideias antiescravistas de Perdigão Malheiro ao
fornecerem os elementos chave para a sua apreensão do fenômeno da escravidão
em território nacional.
5 Sobre o assunto, Ricardo Salles deu importante contribuição (SALLES, 2002, p. 53-53). Ver também
como Joaquim Nabuco se apropriou do tema (NABUCO, 2005). Uma leitura sobre o aprendizado nas
faculdades de Direito do Brasil foi feita por Wolkmer (WOLKMER, 2010, p. 102-107).
8
O Corpus Juris Civilis (533 d.C.) - considerado como o feito de maior relevância
do governo do Imperador romano Justiniano (527-565) para a cultura ocidental -
relacionou-se positivamente com os quadros jurídicos apresentados pela geração de
Perdigão Malheiro. O conjunto das recolhas publicadas por Justiniano compreendia
quatro partes: primeira, o Código (Codex Justiniani), compilação de leis imperiais
que visava substituir o Código Teodosiano; segunda, o Digesto (Digesta ou
Pandectas), vasta compilação de trechos de mais de 1.500 livros escritos por
jurisconsultos da época clássica – principalmente Ulpiano, Paulo, Gaio, Papiniano e
Modestino (todos eles citados na obra de Perdigão Malheiro); terceira, as Institutas
(Institutiones Justiniani), espécie de manual elementar destinado ao ensino do
Direito, sendo redigida por dois juristas, Dorotéu e Teófilo, sob a direção de
Triboniano; e quarta, as Novelas (Novellae), recolha das constituições promulgadas
por Justiniano após a publicação do Codex (GILISSEN, 1979, p. 92). Pelo seu teor,
o interesse pelo Digesto seria uma constante entre os jurisconsultos brasileiros,
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que, não por acaso, o próprio Wallon redigiu um texto intitulado L’Ésclavage dans les
colonies, posteriormente incorporado como introdução à sua obra maior na reedição
de 1879. Em ambos os escritos, segundo Joly, encontra-se o mesmo raciocínio: a
escravidão é contrária ao direito natural, corrompe tanto senhores como escravos e
impede o desenvolvimento do trabalho livre e sua respectiva produtividade (JOLY,
2006, p.8-9).
Seriam então os franceses e não os ingleses aqueles que, na esteira da
erradicação do trabalho escravo nas suas colônias, contribuiriam de maneira mais
decisiva na formatação das ideias antiescravistas de Perdigão Malheiro. Isso porque
tais atores forneceram ao letrado imperial os elementos chave para sua
compreensão do fenômeno da escravidão no Novo Mundo. Conforme Antonio
Penalves Rocha, Portugal e Brasil, dos fins do século XVIII e início do XIX, estavam
inseridos na esfera de influência da cultura erudita francesa, além de os mais
importantes textos ingleses que condenavam a escravidão terem sido traduzidos, a
partir dos fins da década de 1780, pela Sociedade dos Amigos dos Negros da
França. Ainda segundo o autor: “a reprodução das ideias dos ilustrados franceses
pelos brasileiros ocorreu não somente em relação às medidas para acabar com a
escravidão, mas está igualmente presente nas críticas feitas à instituição” (ROCHA,
2000, p. 40-58).
O volumoso corpus acerca da escravidão Antiga e Moderna congesto pelo
antiescravismo inglês não obteve na obra de Perdigão Malheiro o mesmo espaço
reservado aos textos do antiescravismo francês. Não que as muitas referências
inglesas não tivessem sido incorporadas às suas leituras. As “grandes ações
humanitárias” dos emancipacionistas ingleses seriam priorizadas no conjunto da
obra do jurisconsulto tendo em vista o seu caráter mais pragmático. Dito de outra
maneira, interessava a Malheiro às experiências abolicionistas inglesas pelo fato
delas indicarem, efetivamente, caminhos para o problema da escravidão em seu
próprio país. Munido das apropriações dos estudos - anteriores e contemporâneos -
de intelectuais franceses, ele atribuiria aos ingleses o papel de convencimento das
nações modernas e civilizadas do mundo de que se aproximava o dia do fim do
cativeiro.
Dessa forma, podemos dizer que grandes nomes do antiescravismo inglês -
como Wilberforce, Clarkson, Canning e Buxton - foram diversas vezes mencionados
por Perdigão Malheiro não por esse último ter tido contato com suas principais obras
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ou tomar partido das suas práticas políticas, mas devido ao conhecimento por ele
adquirido dos ingleses através da leitura de autores franceses, como Wallon e
Cochin (1823-1872). Além de dialogarem com os britânicos em muitos aspectos,
eles ajudariam a aperfeiçoar nas sociedades modernas um tipo de interpretação do
abolicionismo baseado em um modelo histórico-comparativo, empregado largamente
também por Malheiro em seus escritos sobre escravidão (MALHEIRO, 1867, p. 33).
Nessa perspectiva, importava mais ao jurisconsulto exaltar a competência política,
organizacional e estratégica da Inglaterra e dos seus atores, no cenário abolicionista
internacional, do que, distintamente, analisar a sua literatura, tomando-a, ao mesmo
tempo, como fonte de estudo ou paradigma intelectual.
Assim como em relação aos ingleses, é inegável o fato de que Perdigão
Malheiro fez mais uma leitura Moderna da Antiguidade do que, propriamente, uma
análise profunda do repertório Clássico nos seus originais. Com exceção do
conhecimento jurídico acumulado ainda na faculdade de direito e do estudo do bom
latim – os quais permitiram a ele decodificar o Direito romano e apreciar a
bibliografia de autores latinos, como Tácito (55-120) -, não é sem razão inferir que a
sua ciência da Antiguidade fosse, em grande medida, uma extensão das
construções que outros modernos, tais como ele, fizeram do sistema escravista de
Roma.
Muitos intelectuais e ativistas modernos, nesse sentido, serviram não só de
referência para Perdigão Malheiro, como também de inspiração para o seu
antiescravismo. Concepções metodológicas provenientes de Leibniz, Bentham e
Savigny, isto é, do conceitualismo teórico-doutrinário e da “ciência jurídica alemã”
(WOLKMER, 2010, p. 115), dariam a Malheiro uma rica e sólida base para sua
compreensão das legislações romana e Moderna. Ainda na tradição alemã,
destacavam-se entre as diversas leituras de Perdigão Malheiro uma em especial: a
do jurista, político e historiador liberal Theodor Mommsen (1817-1903). O alemão,
que começou a escrever a História de Roma em vários volumes, em 1854, foi um
daqueles estudiosos modernos que mais se destacou por realizar trabalhos sobre a
Antiguidade, amparando Malheiro no seu diagnóstico e conhecimento da história de
Roma. A escravidão seria tratada, desde o princípio, por Mommsen, de forma
original, como algo de fundamental importância para a sociedade e a história de
Roma. O historiador não só colocaria a escravidão romana numa posição central,
mas a condenaria moralmente e com vigor (1854 apud FINLEY, 1991, p. 37). Da
12
6O assunto foi bem discutido ao longo do capítulo IV da obra de Tâmis Parron (PARRON, 2011).
Sobre o tráfico de escravos, ler Jaime Rodrigues (RODRIGUES, 2005).
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Discursos de cunho moral e cristão ditaram igualmente boa parte dos princípios
que sustentaram as narrativas abolicionistas no cenário europeu a partir de fins do
século XVIII. No Brasil, não se pode dizer que tais narrativas divergiram muito
daquelas produzidas na “Europa das abolições”. Como sustentou Antonio Penalves
Rocha, os escritores brasileiros, observando a escravidão segundo o prisma das
ideias antiescravistas da Ilustração, condenaram a instituição sob todos os ângulos,
acompanhando a “sensibilidade humanitária” dos autores europeus e considerando
a escravidão como um atentado ao direito natural e ao Cristianismo (ROCHA, 2000,
p. 52).7 Esse tipo de pensamento pode ser encontrado em figuras “vivas” da época,
como Montesquieu, para quem:
7 Em estudo que parte da análise do Iluminismo português do século XVIII, Lúcia Maria Bastos
Pereira das Neves estabelece uma cultura política comum a luso-brasileiros da América e
portugueses de Portugal. Tendo como referência a ideia de império luso-brasileiro, a pesquisadora
institui uma conexão entre o movimento iniciado em 24 de agosto de 1820, no Porto, e a
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Independência brasileira. Para uma leitura de trabalho que exemplifica a apropriação por atores
brasileiros das ideias ilustradas, ver: Neves (2003).
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8 A discussão é bem mais ampla e pode ser aprofundada em Brown (2006); Davis (1975; 1984; 2001;
2006); Blackburn (2002, pp. 147-174/445-497); Drescher (2011, pp. 291-416); e Bender (1992).
9 A abolição da escravidão na França foi analisada por Jennings (2000); retratando também o caso
inglês, ver: Kielstra (2000); Drescher (1987, cap. 3/2011, pp. 205-253); Davis (1975, p. 137-148); e
Blackburn (2002, pp. 179-279/505-546). Para o caso haitiano, consultar James (1938); Fick (1990); e
Kolchin (1987, pp. 49-51).
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Considerações finais
10Para uma abordagem comparativa entre Brasil, Cuba e Estados Unidos, ler: Bergad (2007);
Marquese (2004); Berbel, Marquese e Parron (2010); e Marquese e Parron (2011, p. 97-117).
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