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PEIRANO, Marisa. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

Cap
2: A Favor da Etnografia. p. 31-58.
Mariza Peirano é mestre e doutora em antropologia, defendeu o mestrado na UnB em
1975 e defendeu a tese em Havard em 1980. Ela tem publicações muito famosas de
teoria antropológica, mas também pesquisa na área de antropologia dos rituais e
antropologia política.
Neste ensaio, a autora trata da relação entre pesquisa de campo e etnografia, ela afirma
que é uma tentativa de desenvolver, a partir do debate teórico “atual”, ou seja, dos anos
90 porque o artigo é de 94, algumas questões a partir das formulações do antropólogo
Nicholas Thomas no seu artigo “Against Etnography” ou “contra a etnografia”, que é
uma publicação de 1991, de quem ela discorda.
Ela aponta alguns motivos para sua escolha de debate: primeiro pela provocação do
autor, segundo que de fato naquela época era muito difícil ele saber que estava sendo
rebatido no Brasil e porque ciente da existência de múltiplas tradições etnográficas, sua
provocação reside em questionar: que etnografia Thomas chama de cânone a ser
superado, e qual modelo ele propõe.
Antes, ela faz uma apresentação do autor. Nicholas Thomas é um antropólogo
australiano, professor de antropologia histórica, algo assim, na universidade de
Cambridge, no momento do artigo Peirano aponta que apesar de jovem ele já tinha uma
carreira bem consolidada como acadêmico.
Ele realizou seu campo nas ilhas de Fiji, e seu trabalho tem preocupação com a forma
que os antropólogos tradicionalmente vinham estudando sociedades coloniais. Ele se
posiciona como um pós-moderno, tendo um projeto político “oriundo de um dos vários
campr avançados do mundo britânico, ele se torna um representante da rebeldia dentro
do império.” E, nessa disputa aparentemente localizada no mundo anglo-saxão colonial,
levanta a bandeira * contra a etnografia'. E nos atinge.”.
Seu argumento sobre o porquê a posição contra etnografia de Thomas nos atinge se
baseia na noção de que no Brasil, naquele momento, predominava uma ideologia
universalista da ciência, e também o afã de transformar a última produção reconhecida
na europa ou nos estados unidos num modismo. Ela aponta que os modismos sempre
são problemáticos, mas quando se tem uma pauta política tem o potencial maior de
chegar de forma inadequada. Ela já afirma de início que é necessário cautela, porque da
mesma forma que os questionamentos e temas levantados pelos pós-modernos são
importantes para a disciplina, as soluções oferecidas sem sempre são sensatas.
Nesse ponto ela afirma: “considero que as alternativas oferecidas por Nicholas Thomas
(assim como as de outros autores da mesma vertente) se baseiam em um processo de
reinvenção da história teórica da antropologia que, além de repetir antigas fórmulas,
revive dicotomias que já deveriam estar ultrapassadas.”.

Peirano pontua que esse debate (fórmula positivismo vs. Interpretativismo), é resultado
de um movimento notado por Michael Fischer (1985), que afirmava que a ciência social
assume, muitas vezes, o caráter de duplicação ou repetição, revisitando teorias
anteriores para se inspirar e criar novos movimentos. Velhos debates, como iluminismo
vs. romantismo, ciência vs. arte etc., renascem e na versão atual assumem essa nova
forma. Ela também pontua que os textos sobre pesquisa de campo, reproduzem muitas
das preocupações da década de 30, quandose considerava um perigo a saturação dos
textos etnográficos. À solução proposta em 30 era a adoção de uma abordagem
comparativa como meio de atingir uma discussão teórica mais relevante, similar a
proposta que Nicholas Thomas faz, mas com a natural ressalva de que não se trata *da
velha comparação positivista (Thomas 1991d: 317).
Por fim ela divide suas observações em 4 partes: 1) apresenta brevemente os
argumentos de Nicholas Thomas; 2) depois tece alguns comentários sobre dois clássicos
da disciplina com o objetivo de mostrar que a ‘história teórica' da antropologia
apresentada por Nicholas Thomas está viciada por uma visão que opõe um passado
positivista (representado pelas idéias de Radcliffe-Brown) a uma contemporaneidade
interpretativa; 3) discute o impacto da pesquisa de campo na trajetória intelectual de
alguns antropólogos renomados, e parte para o 4) onde busca concordância com o
desafio de Michael Fischer, de que, mesmo nas repetições históricas há algo novo que,
com sorte, pode ser vislumbrado.
O ponto I – O argumento de Nicholas Thomas é melhor ler no texto (página 5 do pdf).
II Que modelo canônico?
Neste segundo ponto, ela ressalta que Thomas em seu artigo diz que não pretende
condenar toda a disciplina, mas apontar problemas ao modelo canônico. E ela questiona:
que modelo seria esse? Se seria o de Franz Boas, Radcliffe Brown ou Evans Pritchard.
A crítica de Thomas recai sobre a tendencia de tratar questões teóricas totalizadoras a
partir de análises locais de eventos exóticos, e sua solução é uma antropologia
comparativa revigorada e a reformulação da escrita pós-etnográfica. Com isso podemos
pensar que o modelo criticado se fiz na experiencia totalizadora de uma pesquisa de
campo traduzida como exotismo e transformada em experimento teórico, ai ela
questiona: em quem cabe a carapuça?
Então pra pensar as questões colocadas por Thomas ela elege Malinowski, para focar a
questão da coautoria etnográfica, e Evans-Pritchard, para discutir a visão da disciplina
como tradução e da metodologia como impacto.
a) Malinowski
Quando ela começa a falar de Malinowski, ela avisa que toma esse autor para sugerir
que a defesa da coautoria esconde o pressuposto de que os nativos querem sempre ser
coautores ou antropólogos de si mesmos. Ela afirma que essa proposta de coautoria dos
pós-modernos não é uma novidade na disciplina, apenas não acontece entre indivíduos
empíricos concretos, mas está presente teoricamente na produção etnográfica, ela baseia
essa afirmação no autor Stocking Jr que pontuava a existência de uma hierarquia
presente na pesquisa de campo: ou os nativos aceitam a pesquisa, ou não há pesquisa.
Sobre o trabalho de Malinowski, Peirano retoma seu conceito de ‘kula’, o qual o autor
não traduziu para o inglês. O fato de não traduzir não tem relação com o objetivo de
tornar os trobiandeses exóticos, mas sim de ser fiel a uma categoria local que difere das
categorias ocidentais. Ela diz que essa fidelidade permite que Mauss utilize dos dados
trobiandeses na sua teoria geral da dádiva.
Ela diz que mais um exemplo desse projeto de fidelidade diz respeito às descobertas de
Malinowski sobre o poder mágico das palavras entre os trobriandeses. Ela pontua que as
evidências etnográficas que Malinowski coletou, que justificam sua teoria sobre os
aspectos pragmáticos da linguagem que, se até recentemente, nos anos 90, não haviam
recebido maior atenção (a antropologia, assim como as demais ciências do homem,
estava mais preocupada com os aspectos cognitivos e semântico-referenciais dos
sistemas simbólicos), hoje estão na ordem do dia no estudo dos aspectos *
performativos' das palavras e dos rituais (ver, por exemplo, Tambiah 1968, 1985).
Então ela propõe que talvez poderíamos deixar de falar sobre “a teoria da magia de
Malinowski', ou sobre “a teoria da linguagem de Malinowski”, para focalizar as teorias
da magia ou da linguagem dos trobriandeses, que Malinowski teve a sensibilidade de
captar — porque as estranhou — e depois a ousadia e/ou vaidade de divulgá-las.
A autora também aponta que, ao longo do século, antropólogos ingleses se tornaram
africanistas; franceses, americanistas, norte-americanos, oceanístas, isso pode ser um
indício claro do poder político colonial do qual Nicholas Thomas, com razão, se
ressente. Mas, por outro lado, esses rótulos também indicam como, na antropologia, as
orientações teóricas estão relacionadas a especificidades geográficas de uma maneira
que talvez não aconteça em outras ciências sociais. Isto é, se orientações teóricas se
vinculam a especificidades aparentemente “geográficas”, talvez estes fenômenos
resultem do fato de que a teoria antropológica sempre se fez melhor quando atrelou a
observação etnográfica ao universal/teórico. Exatamente como Nicholas Thomas propõe
hoje e como Malinowski já realizava.
Por fim ela pontua que a obra de um antropólogo não é linearmente desenvolvida. Ela
tem nuances teórico-etnograficas que resultam do momento da carreira daquele
pesquisador, contexto histórico e peculiaridades biográficas. E exemplifica isso
mostrando como as narrativas de Malinowski mudam, como inicialmente ele usava a
estratégia “imagine yourself”, ou de convidar o leitor para uma viagem para fazer com
que o leitor partilhe do seu isolamento e perplexidade diante do fato vivido. Depois, em
outras publicações, ele adota outros estilos: publicou uma monografia composta de
vários fragmentos em língua nativa e tradução em inglês, algumas observações sobre
magia agrícola, uma teoria etnográfica da linguagem e depois as “confessions of
failure”.

b) Evans-Pritchard
Se a obra de Malinowski demonstra que não há linearidade na obra de um antropólogo,
a autora afirma: a de Evans-Pritchard reforça e esclarece. Então esse é o ponto principal
da trativa desse autor. Ela começa pontuando que para EP o antropólogo era um
tradutor, portanto a antropologia seria sempre comparativa. Essa tradução tinha um
leitor específico como objetivo. Ou seja, ele não faz o caminho de Malinowski de
manter categorias nativas, ele traduz a bruxaria Azande, as linhagens Nuer, a história
dos beduínos de Cirenaica para os ocidentais, usando das nossas categorias. Ele não faz
isso só porque seu problema era ocidental, mas para que os leitores fossem impactados
com as categorias. A estratégia dele consiste em contrastar as categorias
europeias/familiares com a etnografia azande/diferente.
EP confiava no poder do confronto de experiencias e suas consequencias emocionais e
intelectuais, as impressões do campo para ele exerciam impacto na personalidade do
etnógrafo. Sendo assim, o texto etnográfico resultava da adequação da ambição
universalista da disciplina com os dados detectados pelo pesquisador em determinado
contexto etnográfico. Estes dados, por sua vez, resultavam da combinação da
sensibilidade do etnógrafo e do aprendizado adquirido quando da formação do
pesquisador.
Como exemplo de depoimento nesse sentido ela puxa o fragmento onde EP diz “Eu não
tinha interesse por bruxaria quando fui para a terra Zande, mas os Azande tinham; de
forma que tive de me deixar guiar por eles” (1978: 300). Isso revela o vínculo intriseco
entre teoria e pesquisa, demonstrando que a teoria antropológica se desenvolve a partir
da pesquisa etnográfica. A teoria se aperfeiçoa a medida em que desafia os conceitos
estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para
o campo e a observação entre os nativos que estuda.
Pensar em impacto e/ou confronto é pensar comparativamente. Para E-P este
procedimento deveria ser levado às últimas consequências: ao antropólogo caberia
pesquisar várias sociedades. Ele reconhecia as dificuldades a serem enfrentadas,
especialmente tendo em vista o tempo de pesquisa e de elaboração dos resultados (que
ele estimava aproximadamente em dez anos), mas uma segunda sociedade auxiliaria o
etnógrafo a aborda à luz da experiência da primeira, sugerindo-lhe linhas de pesquisa
novas.
Ele próprio foi um antropólogo que fez etnografia em várias sociedades: Azande do sul
do Sudão, Nuer do Sudão anglo-egípcio e cirenaica (hoje Líbia). Até aquele momento
Peirano avista algumas propostas para resolver o problema colocado por E-P: ou
contando o “tempo de serviço' da leitura de monografias' ou, na versão indiana,
considerando que a antropologia é um empreendimento de natureza coletiva e o
antropólogo não precisa pesquisar pessoalmente diferentes culturas: ele é, ao mesmo
tempo, um insider e outsider em virtude do seu treino acadêmico (Madan 1982, 1994).
A autora afirma que dessas referencias a EP decorrem ao menos 5 implicações:
1) Que o processo de descoberta antropológica resulta de um diálogo comparativo,
não entre pesquisador e nativo como indivíduos, mas entre a teoria acumulada
da disciplina e a observação etnográfica que traz novos desafios para ser
entendida e interpretada. É nesse sentido que Evans-Pritchard (1972) dizia não
haver “fatos sociais na antropologia, mas "fatos etnográficos.
2) não há cânones possíveis na pesquisa de campo, embora haja, certamente,
algumas rotinas comuns, além do modelo ideal. Com isso, talvez não se possa
ensinar a fazer pesquisa de campo como se ensinam, em outras ciências sociais,
métodos estatísticos. Na. antropologia a pesquisa depende, entre outras coisas,
da biografia do pesquisador, das opções teóricas da disciplina em determinado
momento, do contexto histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis
situações que se configuram no dia a dia local da pesquisa.
3) na medida em que se renova por intermédio da pesquisa de campo a
antropologia repele e resiste aos modelos rígidos. Seu perfil, portanto,
dificilmente se adequa a um modelo positivista, como se tenta caracterizá-la
atualmente em certos setores.
4) consciente ou não, cada monografia/etnografia é um experimento, exemplifica
afirmando que a experiencia de campo produziu na trilogia Nuer 3 construções
diferentes.
5) o impacto dos dados sobre o pesquisador acaba gerando totalidades, sejam elas
cosmológicas, sociológicas, ideológicas etc. Estas totalidades, que foram
abordadas teoricamente por Mauss, têm correlação nas recomendações de Rivers
(acatadas tanto por Malinowski quanto por Evans-Pritchard), de que o
pesquisador deveria trabalhar sozinho no campo porque o objeto etnográfico é
indivisível.
Então Peirano diz: se para Geertz EP é o paradigma do vilão colonial, para ela, é um
pesquisador essencialmente comparativo e não-positivista. Ela afirma que sim, durante
um tempo acreditou-se na eficácia de um modelo ecologia-parentesco-política-
cosmologia. No entanto, a história e a força da antropologia não se fizeram por esses
estudos * canônicos, mas muito mais por Asrgonauts, Naven, Witchtecrafl, The Nuer,
Polítical Systems, Islam Observed e outros.
Em seguida questiona: será que reduzir a história da antropologia aos estudos feitos
pelos “politicamente incorretos”, “amantes do exótico” não está se cometendo mais uma
injustiça? Ela questiona se ao construir uma história teórica tradicional que é positivista
e cientificista, os antropólogos pós-interpretativos não estão dando razão história a um
personagem específico, Radcliffe-Brown, e seu projeto de história natural da sociedade?
Então Peirano identifica que o ‘modelo canônico’, em sentido negativo, é localizado nas
ideias de Radcliffe-Brown, que constituíram a vertente hegemônica da disciplina por +/-
duas décadas, mas sua dominância teórica foi suplantada por Evans-Pritchard, ao
afirmar que antropologia era mais arte que ciência. Ou seja, o projeto cientificista da
antropologia e ambições positivistas já faliram.
Ela aponta que para a vertente de Thomas Radcliffe-Brown é o vilão que deve ser
condenado mas que, ao mesmo tempo, inspira as novas propostas. Assim, a comparação
é resgatada (como se tivesse algum dia sido abandonada) para contrapor-se ao excesso
etnográfico, mas ela “não deve ser positivista”. À etnologia é criticada, mas trata-se
exatamente da etnologia de inspiração radcliffe-browniana, isto é, aquela que se opõe à
antropologia social. Ela pontua também que é significativo de todo modo que, como
australiano, Thomas se oponha a um antropólogo que pesquisou entre os aborígenes e
consolidou carreira na Austrália, fazendo do país um campus avançado da antropologia
britânica, ou seja, levando a cosmologia dominante do império.
II Trajetórias etnográficas
Nesse tópico ela trata do problema da relação entre teoria e pesquisa, ampliado pelas
observações das trajetórias individuais. Ela começa afirmando que nem todo
antropólogo é bom etnógrafo. Mas todo bom antropólogo aprende e reconhece que é na
sensibilidade para o confronto ou o diálogo entre teorias acadêmicas e nativas que está o
potencial de riqueza da antropologia.
Ela aponta que nota-se na comunidade antropológica uma relação negativa entre a
pesquisa de campo tradicional e a vocação para a teorização. Ou seja, grandes
etnógrafos nem sempre foram bons teóricos, e grandes teóricos frequentemente
mostram-se avessos a pesquisa de campo. Peirano diz que parece haver um continuum
onde dois extremos são ocupados, de um lado o etnógrafo e do outro o quase filósofo:
“o primeiro caso, é a realidade empírica que parece dominar e ofuscar (e a teoria é fraca
ou pobre); no segundo, é o fascínio pela universalidade que conduz à procura de leis e
princípios gerais, perdendo-se o aspecto sur generis da totalidade empírica (não)
observada.”
A centralidade da tensão entre teoria e pesquisa pode ser apreciada, na disciplina, na
trajetória de alguns antropólogos pesquisadores. Quando a tensão * ótima entre os dois
pólos se perde, a obra do autor consequentemente se empobrece. Em outras palavras,
nem sempre os antropólogos envelhecem bem.
Ela exemplifica sua afirmação a partir das trajetórias de Malinowski, Victor Turner e
Geertz.
No caso de Malinowski, ela aponta a distância entre as monografias trobiandesas, e a
teoria geral da cultura. A distancia não é apenas do tempo entre as obras, diferença de
ênfase etnográfica ou teórica, ela diz que essa ultima obra caracteriza uma excelente
etnografia e má teoria.
Ela aponta que nos primeiros trabalhos Malinowski confrontava as teorias sociológicas,
antropológicas, econômicas e linguísticas de sua época com as ideias que os
trobriandeses tinham a respeito de temas correlatos, e mais, ao comparar tais idéias com
suas observaçõe, Malinowski pôde perceber que ali permaneciam resíduos não
explicados: é nesse sentido que o kula se tornou uma verdadeira descoberta e as
etnografias trobriandesas permanecem até hoje como fonte de inspiração para análises
de mitologia, lingilística e economia. Comparada a este corpus etnográfico, a tentativa
de uma abrangente "teoria geral da cultura' de cunho determinista — porque
universalmente derivada das necessidades biológicas básicas — só confirma e expande
a suposição de que os esforços dos pesquisadores sobrevivem às suas elucubrações
teóricas.
Depois ela passar para Victor Turner, dizendo que ao abandonar os ritos Ndembu ele
perdeu o melhor da universalidade de sua abordagem. Os Ndembu conectavam Turner
com a experiência ritual humana em geral: para eles a vida social girava em torno do
seu simbolismo ritual, que Turner analisou com a centralidade que os nativos o
concebiam (Turner 1967). Quando Turner decidiu extrapolar o que havia descoberto em
sua pesquisa africana para outros eventos religiosos do mundo moderno — incluindo
experiências no México, Irlanda e Inglaterra, tragédias gregas e eventos históricos
(Turner 1974) —, paradoxalmente o aspecto universalista foi eliminado, embora o
objetivo explícito fosse o exame da ação simbólica no plano da “sociedade humana".
No caso de Geertz, ela pontua que ele atentou para o aspecto microscópico e artesanal
da pesquisa antropológica, afirmando que os etnólogos não estudam aldeias, mas em
aldeias (Geertz 1973). É lá que o repertório de conceitos gerais das ciências sociais —
como integração, racionalização, símbolo, ideologia, ethos, revolução, visão de mundo,
sagrado, cultura — se entrelaçam “no corpo da etnografia de descrição minuciosa na
esperança de tornar cientificamente eloqúentes as simples ocorrências” (1973: 38). Mas,
também Geertz não ficou imune ao envelhecimento: ela diz ser quase impossível
reconhecer no autor cético e irônico de hoje o artesão de Islam Observed (1968). Nesta
pequena jóia de pouco mais de cem páginas, Geertz propõe uma teoria da religião
vinculada à análise da experiência histórica do islamismo no Marrocos e na Indonésia,
utilizando-se de uma abordagem de inspiração weberiana. Este feito, que resultou de
extensa pesquisa histórico-bibliográfica, seria inviável, segundo o próprio autor, se antes
ele não houvesse realizado pesquisa de campo nos dois países.
Então ela questiona: o que esses pesquisadores perderam ao longo do tempo? Uma
resposta possível é que o que talvez tenha empobrecido a obra desses antropólogos no
decorrer do tempo tenha sido a ausência da interlocução teórica que se inspira nos dados
etnográficos. Sem o impacto existencial e psíquico da pesquisa de campo, parece que o
material etnográfico, embora presente, se torna meras ilustrações, diferente e distante da
experiencia que a pesquisa do campo simboliza.
IV Novas provocações
Ela propões apresentar no final uma agenda de problemas sobre outras implicações
derivadas da pesquisa de campo.
Ela considera que o impacto profundo da pesquisa de campo sobre o etnólogo ainda não
recebeu devida atenção. Como tradicionalmente o trabalho de campo era realizado
longe de casa, essa desistência fazia com que o pesquisador fosse estigmatizado como
incapaz de enfrentar a experiência do exótico (o campo) sozinho, colocando-se
imediatamente em dúvida sua vocação. Existe também uma outra reação comum, que é
aquela dos antropólogos que, mesmo convencidos de sua vocação, não se dedicam à
pesquisa de campo, embora saibam do preconceito a que estarão sujeitos. Tais
ocorrências apontam para um impacto psíquico de tal dimensão que, em algumas
circunstâncias, se transforma em um desconforto insuportável.
Ela aponta que esse desconforto é menos problemático no Brasil, onde estudamos nós
mesmos, nosso desconforto não é a diferença, mas o autoquestionamento: qual a nossa
especificidade, em que somos peculiares, o que nos separa e nos distingue.
Mesmo assim, ela propõe que o instrumental da psicanálise possa ajudar a esclarecer
certos processos de descoberta etnográfica, na relação entre a transferência analítica e o
o impacto que EP fala como constitutivo da pesquisa de campo.
Outro aspecto que ela ressalta é a conversão religiosa de vários antropólogos que
aderem a crenças institucionalmente reconhecidas. Ela aponta que no caso anglo-saxão
há uma predominância na conversão ao catolicismo (EP, Mary, Douglas, Victor Turner).
E isso parece indicar que a antropologia favorece uma reestruturação da visão de mundo
dos pesquisadores. Até que ponto isso resulta do impacto da pesquisa de campo?
Ela verifica que vários antropólogos reconhecem que as etnografias constituem a
verdadeira herança da antropologia, conclusão de Luis Dumont e Lévi-Strauss. Também
traz uma afirmação de Darcy Ribeiro, que afirma que seus diários de campo
sobreviveriam a todas as teorias que propôs, justamente para que elas sejam refutadas.
Portanto, Peirano afirma que uma boa etnografia é aquela que permite reanalises, ou
seja, a densidade das etnografias originais permitem a construção de uma nova visão.
Para concluir ela faz duas observações:
A primeira de que toda boa etnografia precisa ser tão rica que sustente uma reanalise
dos dados iniciais. Nela, as informações não são oferecidas apenas para esclarecer ou
manter um determinado ponto de vista teórico, mas haverá sempre a ocorrência de
novos indícios, dados que falarão mais que o autor e que permitirão uma abordagem
diversa.
A segunda está na ideia de que a reanálise de um corpo etnográfico é prova da
adequação e qualidade da etnografia — e não, como uma apreciação imediata de senso
comum poderia indicar, da incapacidade analítica do pesquisador.

“Com este fecho a favor da etnografia, concluo: novas análises e reanálises virão para
comprovar a fecundidade teórica do trabalho etnográfico. Elas certamente irão reforçar
a convicção central dos antropólogos: de que a prática etnográfica — artesanal,
microscópica e detalhista — traduz, como poucas outras, o reconhecimento do aspecto
temporal das explicações. Longe de representar a fraqueza da antropologia, portanto, a
etnografia dramatiza, com especial ênfase, a visão weberiana da eterna juventude das
ciências sociais”

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