Você está na página 1de 2

Prenda-me se for capaz1

Adrian Martin

Nã o sou fã de Steven Spielberg, exceto naquele momento glorioso na histó ria


recente do cinema, quando o fantasma de Stanley Kubrick perverteu
maliciosamente todos os aspectos da visã o de Spielberg em AI: Inteligência
Artificial (2001).

Contudo, ninguém pode negar que, quando Spielberg tem um material


potencialmente forte para trabalhar, ele em geral consegue, ao menos no nível
narrativo, entregar aquele feijã o com arroz bem feito.

Estilisticamente, Spielberg é o diretor mais implacavelmente esquemá tico do


cinema contemporâ neo. Cada cena em Prenda-me se for capaz (Catch Me If You
Can, 2002) é diagramaticamente construída: da câ mera sob o ombro à câ mera
rente ao chã o, de planos abertos a planos/contra planos, de movimentos
deslizantes a imobilidade concentrada – e sempre terminando com um movimento
(seja através da montagem, da câ mera, da misé en scène ou de todos os três) no
rosto taciturno de um ou outro personagem central.

Mas o filme conta uma histó ria emocionante. É baseado na autobiografia de Frank
Abagnale Jr. Frank (Leonardo DiCaprio) conseguiu, em tenra idade, enganar muitas
pessoas de que ele era um piloto de aviã o, um advogado, e algumas outras coisas.
Ele era habilidoso nã o apenas em se insinuar em qualquer situaçã o profissional,
mas também em fraudar o sistema. DiCaprio, com esse carisma diabó lico, mas
ainda infantil, foi perfeitamente escalado.

Pela primeira vez desde The Sugarland Express (1974), Spielberg esboça um
panorama da vida social americana e seus costumes. Sinais dos famosos e legais
anos 60, como programas de jogos de televisã o e o romantismo das viagens aéreas,
sã o recriados com elegâ ncia. Seus colaboradores regulares, o compositor John
Williams (desempenhando a difícil tarefa de fornecer uma trilha sonora "alegre") e
o diretor de fotografia Janusz Kaminski, o servem bem.

Mas, em uma histó ria em que o mocinho principal, Carl (Tom Hanks), é um
impassível agente do FBI, a açã o fica bem longe de qualquer problema político
iminente. O filme se desenrola em um EUA abstrato, sem nenhuma histó ria exceto
a do consumismo pop. E essa exclusã o tem muito a ver com o investimento pessoal
mais profundo de Spielberg no material.

Há apenas um assunto que realmente cativa e inflama a imaginaçã o narrativa de


Spielberg: a unidade familiar nuclear dividida e a agonia que isso causa à criança
abandonada. Seus filmes mais intensos sã o aqueles que abordam mais diretamente
o assunto, como Império do sol (1987).

1
Publicado no site http://filmcritic.com.au/reviews/c/catch_me_if_you_can.html Traduçã o de Julio
Bezerra.
Os filmes de Spielberg sã o frequentemente povoados por crianças perdidas e
aterrorizadas, mã es infiéis e pais desaparecidos. Eles estã o igualmente cheios de
figuras parentais substitutas, como a encarnada por Hanks aqui e em O resgate do
soldado Ryan (1998). Que agonia antiquada, sentimental e conservadora que o lar
desfeito desencadeia neste autor!

Normalmente, Spielberg é capaz de reconstituir pelo menos parte desse conto


primordial de abandono, nã o importa com que assunto ele esteja lidando
ostensivamente. Ele nã o hesita em forçar seu material a se encaixar nesse molde,
como certamente é o caso aqui. A histó ria da vida real de Abagnale nã o depende da
adoraçã o do pai, nem do desejo desesperado de provar a si mesmo para seus pais,
nem da tentativa de consertar o lar desfeito.

Mas o Frank de Spielberg nã o pode ser um anarquista alegre. Ele deve ser um filho
choroso e definhado, um rebelde com uma causa. Ele corre (no principal motivo do
filme) nã o para fugir da lei ou para bisbilhotar o mundo, mas por um desespero
doloroso desatado pelo lar infeliz.

A verdadeira histó ria de Abagnale parece ser sobre as coisas que Spielberg
minimiza, como o desejo de muito dinheiro e sexo sem fim. Mas o que teria sido
interpretado por Oliver Stone ou Martin Scorsese como um grande desfile de
dó lares, bens de consumo, viagens pelo mundo e carne é aqui apresentado de
maneira bastante modesta, quase franciscana.

Abagnale se safa de muita coisa, e muitas de suas façanhas sã o escandalosas, mas o


que realmente conta aqui sã o aquelas cenas em que ele olha com adoraçã o para
seu pai vitimizado (Christopher Walken) ou espia o jeito perverso de sua mã e
(Nathalie Baye) – ela comete o pecado do novo casamento - pela janela que marca
sua exclusã o do sonho ideal de família feliz.

Você também pode gostar