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Crítica: Pablo Villaça – Prenda-me se for capaz.

Em 1993, Steven Spielberg provou sua impressionante versatilidade ao


comandar duas superproduções bem-sucedidas em suas respectivas ambições, mas
incrivelmente distintas uma da outra: Jurassic Park, uma aventura protagonizada por
monstros pré-históricos, e A Lista de Schindler, um poderoso drama sobre o Holocausto.
Pois, para quem achava que o cineasta já não possuía mais o fôlego de antigamente,
2002 demonstrou o contrário, já que, mais uma vez, Spielberg lançou dois ótimos filmes
em menos de um ano: a inteligente ficção científica Minority Report e este
divertido Prenda-me Se For Capaz.

Roteirizada por Jeff Nathason a partir do livro autobiográfico de Frank William


Abagnale Jr., a história gira em torno da juventude deste último, que, entre os 16 e os 21
anos, tornou-se um dos criminosos mais procurados dos Estados Unidos ao distribuir
mais de 2,5 milhões de dólares em cheques fraudulentos – além, é claro, de assumir
diversas identidades falsas, personificando advogados, médicos e até mesmo um piloto
de avião. Perseguido pelo agente do FBI Carl Hanratty, Frank aplica golpes em diversos
países durante sua fuga, dando origem a uma jogo internacional de gato-e-rato.

Interpretado com charme e energia por Leonardo DiCaprio, Frank Abagnale Jr.
tem, como grande arma, sua aparência jovial e inocente – e ele sabe que uma mentira
dita com firmeza assume caráter de verdade indiscutível. Com isso, o rapaz demonstra
sua inteligência e criatividade em várias situações inicialmente adversas, como na cena
em que, ao chegar em sua nova escola, resolve se passar pelo novo professor de francês
para se vingar de um brutamontes que acabara de humilhá-lo - e este é apenas o início
de uma longa jornada, já que, com o passar do tempo, Frank torna-se cada vez melhor
em suas audaciosas farsas.

Porém, apesar de infringir a lei a todo momento, o personagem jamais deixa de


contar com a simpatia do espectador, já que DiCaprio (um dos melhores atores de sua
geração, e que acabou sendo injustamente antipatizado pelo público em função do
sucesso de Titanic) é bem-sucedido ao retratar o bom coração de Frank, que se
preocupa até mesmo com uma garota insegura que cruza seu caminho. No fundo, Frank
é apenas um garoto que quer reunir os pais divorciados e que reverencia, acima de tudo,
a figura paterna: basta observar a admiração com que o rapaz testemunha os pequenos
golpes de seu pai, vivido por Christopher Walken, e ri com entusiasmo dos casos que
este conta. Por outro lado, o personagem de Walken comove ao insistir em realizar seus
sonhos através das conquistas (mesmo que ilícitas) do filho – algo que fica claro em
uma belíssima cena que acontece em um restaurante de luxo.

Enquanto isso, Tom Hanks assume um papel que, apesar de secundário, lhe
oferece a oportunidade de brilhar mais uma vez: seu agente do FBI, Carl Hanratty, é um
tipo dedicado e carrancudo que sonha apenas em conseguir se tornar chefe de sua seção.
Determinado a prender Frank, Hanratty mal pode acreditar que seu adversário ainda é
um adolescente, o que confere a Hanks a possibilidade de voltar a fazer humor depois
de uma longa pausa (a graça vem, justamente, do mau humor de seu personagem:
observe, por exemplo, o instante em que ele entrega um garfo para um de seus
subordinados e perceba a sutileza com que o ator extrai o riso de um simples
movimento). A escalação de Hanks para o papel é, diga-se de passagem, uma jogada de
mestre por parte de Spielberg, já que, desta maneira, ele imediatamente transformou o
agente do FBI em uma figura que também desperta a simpatia do público, que se divide
entre o desejo de ver DiCaprio escapar e o de ver Hanks obter sucesso em sua
perseguição.

E mais: sempre obcecado com a relação entre pais e filhos (tema presente em
praticamente todos os seus filmes), Spielberg cria, em Prenda-me Se For Capaz, um
verdadeiro triângulo `paterno` (na falta de um termo melhor) entre Hanks, DiCaprio e
Walken: apesar de amar o pai profundamente, Frank Jr. sente falta de alguém que o
contenha, que o discipline – e acaba encontrando esta figura de autoridade em Hanratty
(não é à toa que, em certo momento, ele pede, como uma criança, que o agente `não o
castigue`). Já o personagem de Hanks não consegue esconder sua admiração pela
inteligência de Frank, que é capaz de colocar em prática planos incrivelmente
audaciosos (como ao se esconder atrás de um verdadeiro `escudo de visibilidade` – veja
o filme e entenderá o que digo).

Assim, graças às intrincadas interações entre seus personagens, Prenda-me Se


For Capaz torna-se não apenas um filme divertido sobre uma curiosa perseguição, mas
também um belo estudo de personagens – algo que deve ser atribuído à maturidade de
Spielberg como diretor, que, ao contrário do que fez em Minority Report, mostra-se
incrivelmente recatado em suas movimentações de câmera e enquadramentos,
percebendo que, desta vez, a discrição seria a melhor forma de contar a história (aliás,
até mesmo a trilha sonora de John Williams está mais contida do que de costume,
lembrando, em certos momentos, o trabalho de Henry Mancini – o que talvez tenha
dado a Agnès Deygas a idéia de se inspirar na abertura de A Pantera Cor-de-Rosa para
criar os créditos iniciais. Ou vice-versa: quem sabe não foi Deygas quem deu a John
Williams o tom de sua composição?).

Com o perdão do infame trocadilho, o fato é que Prenda-me Se For Capaz não
precisa se esforçar muito para prender a atenção do espectador. Steven Spielberg teve
mais um ótimo ano. E nós agradecemos por isso.

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