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2.

Introdução - veterano
1. Idéia - story-line - argumento ou sinopse: três fases 11. Memorial ainda não-computadorizado
anteriores ao roteiro O rádio: a primeira escola de roteiristas
A idéia: o primeiro chute na bola O telerrádio: a imagem como simples decoração O teipe
Como encontrá-Ia: a agulha no palheiro muda tudo
Qual é seu gênero ficcional preferido? E depois? _
Surge a idéia: c agora? 12. Trechos contínuos de um roteiro para televisão
Story-line: Shakespearc pode ajudar Uma auto-adaptação
O argumento: o bolo começa a crescer 13.. A Moreninha na tevê
Idéia, story-line e argumento 14. Vocabulário crítico
2. Antes de levar o argumento ao forno, confira:
localização - época - destinação - mensagem
Localização e época
O público a que se dirige: sucesso ou qualidade?
E aquela história de mensagem? A moral da fábula
O que já foi dito, redito rapidinho
3. Sobre o que não deve haver dúvidas: gêneros
plot- narrativa - ingredientes e temperos
A escolha do gênero: apenas uma questão de rótulo
O plot
Quem conta a história: você ou ele?
Ingredientes: sempre falta alguma coisa
4. Os personagens: às vezes eles são a própria
história -
A entrevista: não responda por ele, deixe-o falar
Tipos e protótipos
5. O roteiro: comece assim ...
O diretor precisa saber Não esqueça as rubricas
6. Diálogo: mais arte que técnica
Não olhe para a tela
Solilóquio: para cômicos e doidos O diálogo c suas
modulações
O subtcxto: o invisivcl intcligcnte Diálogos adicionais
Personagens do "alô qucm fala?" A ameaça dos
dialoguistas
7. A imagem: os planos, cortes e flashback
Cenas e suas subdivisões
Os planos: enquanto assiste a um filme, classifique-os O inicio e o final
das cenas
Flashhack: o passado explicando o presente
Inserts
8. O roteirista e quem paga a conta
9. Adaptação: a quase impossibilidade do aplauso unânime
Aqui também o bom-senso é mais importante que qualquer regra
Uma adaptação infanto-juvenil
10. Entrevista (ou mero papo): o aprendiz de roteirista faz perguntas ao
Introdução
1
Idéia - story-line argumento
ou sinopse: três fases
anteriores ao roteiro

Sei que seria mais direto c aparentemente mais didático reunir neste livro uma
A idéia: o primeiro chute na bola
seqüência de fórmulas como os norte-americanos fazem, com incomparável habilidade,
quando transmitem conhecimentos práticos. Em seus Do it yourself, sempre de grande
vendagem, o leitor pode até sentir sobre a sua a mão do autor, emprestando lhe músculos, A idéia é o átomo. Você quer fazer um roteiro de cinema ou tevê, não?
tendões e experiência para produzir deleitosos objetos de fim de semana: de um porta- Ouviu dizer que se paga bem e que se pode escrevê-Io em casa, livre do
retrato a uma estante sofisticada ou como transformar um liqüidificador quebradq num relógio de ponto e da condução. Mas é preciso partir de alguma coisa, de
brinquedo espacial para o caçulinha. Mas - lamentavelmente - o Siga as Instruções, com alguma idéia.
seus desenhos milimetrados, setas e linhas pontilhadas, não funciona com igual segurança Que tal a história dum homem e duma mulher que se conhecem em
quando o material de trabalho são as palavras e o objeto a ser produzido é um roteiro para Paris, pouco antes da chegada dos nazistas, apaixonam-se perdidamente,
cinema ou tevê. e no dia da entrada dos alemães na cidade marcam um encontro numa
Fazendo esse tipo de ponderação, que revela minha incapacidade para criar fórmulas estação ferroviária, ao qual ela não comparece. Desiludido, ele foge com
mágicas, optei nesta empreitada, além de certas normas, pela transmissão de experiências um pianista negro para o norte da África, abre uma boate, e, quando
pessoais, o que aprendi e o que tive de desaprender: estradas, atalhos e becos sem saída menos espera, sua amada ressurge com o ...
duma carreira que ao longo de algumas décadas somou sucessos e fracassos - estes sempre Desista. Isso já foi feito. Chama-se Casablanca.
mais
11. úteis - como roteirista de cinema, tevê e rádio. Afinal, você tem ou não uma idéia?
Além do mais, rebelar-se contra regras fixas, à procura dum caminho pessoal, é
no geral a melhor manifestação de talento dum aprendiz de qualquer ofício. Não pretendo
ensinar como se prepara drinques. No máximo você aprenderá selecionar bebidas e sacudir Como encontrá-Ia: a agulha no palheiro
com time profissional a coqueteleira.
Dizem que a melhor forma de se encontrar uma agulha num palheiro é
sentando-se nele. Se sentir a picada, encontrou a agulha. Nada vem do
nada. E muito menos as idéias, produtos de três vertentes: vivência,
leitura e imaginação.
13.
12.
Vivência: Graciliano Ramos não teria escrito Memórias do cárcere se não usada, pode ter suas impressões digitais, diferençando-se do que já foi feito.
tivesse sido preso na ditadura Vargas. Dostoievski, em certo período da vida, Às vezes a idéia não nasce de fatos que você viveu, mas que
viciou-se na roleta: escreveu O jogador. Knut Hansun vagou pela Europa inteira aconteceram a pessoas do seu meio, parentes, amigos ou conhecidos.
sem ter o que comer, antes de escrever sua obra-prima, Fome. Máximo Gorki viveu Acontecimentos que o impressionaram. O que a memória retém
anos perseguido pelos agentes da polícia política, daí ter escrito com êxito O sempre dá história.
espião. Hemingway não teria publicado Por quem os sinos dobram, se não Leitura: o bom rotemsta normalmente é o que leu muito e que
tivesse participado ativamente da guerra civil espanhola. continua atualizado com a literatura, a grande fonte para qualquer
Você também deve ter vivido uma experiência que lhe deixou sua marca ou gênero ou formato de ficção. Claro que as técnicas do romance nada
cicatriz mesmo sem ter se metido em grandes aventuras. Xavier de Maistre não têm a ver com as do cinema e tevê, mas aí o que interessa 'é o
escreveu Viagens ao redor de meu quarto? Procure na infância, sempre rica de conteúdo, a criação de personagens, o clima e a dialogação.
sugestões. Quem sabe um dos amores da juventude? Guerras conjugais, choques A literatura dá a base, o brilho, a ambição. Ainda não conheci um
com os patrões, doenças, ideais políticos? bom roteirista que não fosse um viciado consumidor de romances,
Não se preocupe muito com originalidade; qualquer idéia, mesmo muito tanto que a grande maioria dos filmes estrangeiros são baseados em
contos, romances e peças teatrais. No Brasil, onde se lê pouco, os produtores não que se viu no cinema ressurgindo com a força duma criação original.
exploraram suficientemente essa fonte. Notáveis contistas e romancistas nacionais nunca Certamente Júlio Verne e H. G. Wells foram autores muito imaginativos,
foram adaptados. Mas adaptação é tema do qual trataremos mais tarde. O que quero porém ao escrever Dom Casmurro, Maehado de Assis, narrando um simples
dizer por enquanto é que a leitura revigora e abre as possibilidades dum roteirista. caso de adultério, não recorreu muito a ela.
Imaginação: é a mais contestável propulsora de idéias, a menos confiável. Muitas O que se conclui é que não é necessário descobrir uma pedra rara,
vezes o que se supõe uma bolação de momento não passa duma lembrança transfigurada. única, para resultar num bom roteiro. Mesmo o lugar-comum, quando
Algo que se leu ou recriado, personalizado, corretamente desenvolvido, tornase um trabalho de
qualidade, e imaginativo.

Qual é seu gênero ficcional preferido?

Sua idéia virá atrelada a um gênero de ficção. Será comédia, drama, policial
ou o quê? Atente para suas tendências naturais. Se detesta comédias não será
por aí que irá procurar sua idéia. Saber o que não se vai fazer já é um passo
à frente.
Concentre-se. O que mais o preocupa ou o encanta? O que mais você
odeia?
O ódio também é uma força criativa. Não o dispense. Cervantes não
suportava os romances sobre cavaleiros andantes e decidiu acabar com eles,
em seu Dom Quixote. Voltaire era outro que escrevia rangendo os dentes.
Depois de ver bem claro o gênero de sua preferência, a idéia pode
tornar-se um parto indolor. Mas não se desespere se a idéia não sair.
Justamente por estar próxima às vezes é menos visível.

Surge a idéia: e agora?

Ótimo que já tenha a idéia, mas, cuidado. Registre-a logo na SBAT,


Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, ou a mantenha em segredo. No
meio pululam os salteadores de idéias que, quando flagrados, costumam
dizer que o importante não é a história, porém seu tratamento. As maiores
vítimas, no entanto, são os autores consagrados, com direitos autorais
prescritos. Roubam tudo dos falecidos, principalmente os dentes de ouro.
E agora?
Precisa testar a idéia, verificar se ela pára de pé, se tem consistência,
contextura. É a hora da story-line.
14.
Story-line: Shal<espeare pode ajudar
Story-line é a linha da história, o resumo. Mas resumo resumido. Vá à máquina e escreva. Po
rém não passe de seis linhas. Se não conseguir resumir, algo está errado. Você ainda não está vendo a idéia claramente. Não a digeriu. Ela está crua, indigesta, dura de roer. E não venha
dizer que a tarefa é impossível em seis linhas. Lembre-se de Shakespeare e confira como é fácil resumir o Romeu e Julieta e o Hamlet em poucas palavras. Mais simples ainda é a
história daquele homem que foi dormir e no dia seguinte acordou metamorfoseado num inseto gigantesco. Está aí um bom exercício para iniciantes: resumir num punhado de linhas
romances, filmes e peças teatrais famosos.
Não foi Cecil B. de Mille quem escreveu a Bíblia mas suas histórias são esplendidamente resumidas. Por isso, certamente, mesmo entre gerações e gerações de analfabetos,
passaram de pai a filho.
Antes de lançar-se à próxima etapa, releia a story-line. Ela realmente contém uma idéia, conta uma história?
Ou você está confundindo story-line com mensagem filosófica ou política, informação jornalística ou lição de moral?
Outro erro comum: limitar a story-line a uma cena ou aspecto do roteiro quando deve abranger a história toda, sua vista aérea, sem detalhes, claro, mas total.
A próxima etapa, já.
o argumento: o bolo começa a crescer
O argumento já descreve toda a ação da história, começo, meio e fim, personagens e tudo mais. É como um conto, porém objetivo, preso aos fatos, e narrado sem literatices.
No caso dum roteirista iniciante, à procura de vender sua idéia, não aconselhamos um argumento longo. A preguiça de ler é um mal nacional e qualquer diretor de cinema assusta-
se diante dum calhamaço. Por outro lado a capacidade de síntese sempre impressiona bem.
Tratando-se, por exemplo, duma telenovela, a direção jamais se contenta com uma única sinopse. Sempre exige outras com no vos detalhes e definições. Algumas chegam a ter 100
páginas ou mais. Porém esse trabalhão só é solicitado quando a emissora já decidiu produzir a novela.
Para cinema, lógico, o argumento nunca é tão extenso. Dez páginas bastam para contar qualquer filme.
O problema é que não é fácil ser claro. E argumento ou sinopse exige como qualidade principal a clareza. Daí a necessidade de ser reescrito sempre com a intenção de eliminar o
supérfluo e ressaltar o essencial. Para sc fazcr um teste de clareza ou objetividade deve-se ler o argumento em voz alta. Para isso, convoque a família. Se alguém bocejar logo a princípio,
escreva tudo outra vez. Só se dê por satisfeito quando sua pequena platéia entender perfeitamente a história.
Outra coisa: principalmente nessa fase seja humilde. Ouça os palpites dos que leram ou ouviram seu argumento. Entre dez bestei ras que ouvirá talvez haja alguma verdade entre
elas, uma pequena observação que pode até mudar o rumo do argumento. Não são apenas os profissionais que oferecem boas sugestões. A titia também pode fazer isso.
Lembro-me que escrevia uma telenovela para a Globo, já com os primeiros capítulos no ar, quando ouvi uma balconista dum shopping center dizer a uma freguesa que gostava da nova
novela, mas ... - É um pouco lenta, a senhora não acha?
Não sei se a freguesa achava porque não esperei pela sua resposta. Corri para casa e tratei de acelerar a ação dos capítulos, evitando cenas monótonas. O resultado logo foi acusado
pelo Ibope. A balconista estava com a razão.
Um argumento ou sinopse bem trabalhado facilita muito o trabalho posterior e livra o roteirista de complicações futuras. Na tevê, no entanto, fala-se de sinopse aberta, que
possibilita alteração
Uma empresa cinematográfica jamais lhe pedirá uma story-line, mas um argumento. A story-line po
de ser transmitida pelo telefone ou numa conversa de bar. Na tevê o argumento chama-se sinopse e a story-line é a pré-sinopse.
O que é o argumento?
Se você entende um pouco ao menos de publicidade exemplificarei dizendo que a story-line é o rough, o desenho preliminar dum anúncio, rascunhado, sem o menor acabamento,
apenas para mostrar a cara que ele terá. Depois do rough, se aprovado, vem o layout, que já é o anúncio detalhado, a ilustração definida, inclusive com as cores aproximadas. Não é o
que vai ser impresso mas uma idéia bem próxima.
15.

2
de rumo, pois o teleautor sempre acaba cedendo às pressões e preferências
de um colaborador anônimo, o público, que se entusiasmando por um ou
outro personagem, não destacado na sinopse, ou por uma das histórias
paralelas, influi decisivamente no resultado geral.
Resumindo, o argumento ou sinopse, planificação equivalente à planta
baixa dum arquiteto ou à fórmula dum químico, precisa englobar
Antes de levar o argumento ao
basicamente as seguintes qualidades: a) clareza: quem lê ou ouve deve
entender sem esforço; b) objetividade: o autor não deve se perder ou se
forno, confira: localização -
alongar em detalhes menos importantes; c) integralidade: o argumento
precisa conter a totalidade da idéia abordada, incluindo o clima geral e o
época destinação - mensagem
comportamento dos personagens.

Idéia, story-/ine e argumento

A idéia é a chispa, o heureca! Pode ser concebida no chuveiro ou enquanto


você faz a barba.
A story-line é a idéia já posta no papel com definição de gênero. Argumento
ou sinopse já é a história detalhada, embora ainda sem os diálogos e o Localização e época Certamente desde a slory-/ine o rotci-
tratamento técnico específico do veículo. rista já se decidiu a respeito do lugar e
da época em que sua história vai se desenrolar. Cidade: São Paulo. Época:
O resto é fácil. Bem, era o que eu pensava. O resto é tudo.
atual. Tudo é mais simples quando o autor conhece bem sua cidade-
cenário e situa o tempo na atualidade.
As pessoas refletem o mundo e a época em que vivem. Se o
personagem é um paulistano não vai pensar, falar e agir como alguém que
tenha passado a maior parte da vida no sertão. E aí não basta colocar em
sua boca palavras e expressões regionais. A credibilidade do personagem
exige mais - falo do comportamento -, mesmo que deslocado do seu meio
vista roupas citadinas. Baiano não é paulista embora um deles tenha
composto Sampa.
Cada personagem, repetimos, deve trazer a marca de sua região ou
nacionalidade, porém sem que seus traços, exagerados, derivem para a
caricatura. Assisti a uma peça teatral, de muito sucesso, em que todos os
personagens, italianos, falavam aos berros e cantavam. Falso. Não há
tantos Carusos assim na Itália. No Brasil, judeus e árabes, principalmente,
sempre surgem caricaturados. Tremendo primarismo. Carregar nas tintas
revela incapacidade de dosar e a imaturidade de quem recorre a clichês já
assimilados pelo público. Evite, pois, italianos que cantem ou briguem
constantemente, cariocas que só falem na gíria e negros que vivam
exclusivamen-
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te para o samba. Como seria rejeitável para nós um personagem brasileiro,
criado por autor estrangeiro, apenas voltado para o futebol e o carnaval.
Localize sua história numa cidade que conheça bem. Não é por acaso que
Jorge Amado situa seus romances na Bahia e Érico Veríssimo situava os seus no
Rio Grande do Sul. José Lins do Rego, pernambucano, quando localizou um de
seus romances no Rio, Eurfdice, realizou sua pior obra.
Ao contrário, a certo escritor que escolheu o pantanal de Mato Grosso,
perguntei se conhecia a região onde movimentara seus personagens, ouvindo
esta resposta:
- Tenho mais que fazer. Pantanal é pantanal.
Evidentemente seu romance, baseado em informações, não dizia nada de
novo sobre a região mato-grossense. Talvez tenha sido para evitar imprecisões e
fugir de compromissos topográficos que Sinclair Lewis e William Faulkner
inventaram as cidades-cenários de seus livros.
A determinação da época é ainda mais complexa, e exige mais trabalho
que o da localização do roteiro, mesmo quando ele foca o passado recente. Nos
tempos atuais tudo muda em dez anos: vestuário, costumes e linguagem.
Lembro que ao escrever certa novela usei palavras de gíria e expressões, para
mim atuais, porém, como constatei depois, desconhecidas do público mais
jovem. Uma ou outra até permaneciam com outro sentido.
Para não elaborar no mesmo erro, ao escrever alguns capítulos da
minissérie Memórias de um gigolô, baseada em romance de minha autoria, e
que na adaptação passava-se nos anos 20, fiz longa pesquisa para introduzir nos
diálogos palavras, maneirismos, máximas e pilhérias que circulavam na época,
com o que suponho ter dado mais autenticidade e sabor à história.
Nunca ouviram numa novela vivida no século XIX personagens dizerem:
legal, bacanérrimo, paca, vai que é mole, cuca fresca? Não digo quais novelas
para não dedarninguém.
Não é porém apenas para questões lingüísticas que a pesquisa é
importante. Já vi numa cena dois personagens comentando um romance de
Machado de Assis que só quinze anos depois seria publicado.
A um novelista que escrevia uma novela vivida no começo do século,
envolvendo disputas e fofocas da política municipal interiorana, perguntei se
sabia quem era o Governador do Estado e o
Presidente da República naqueles dias. Ele não sabia. Fiz-lhe ver, então, que se
pesquisasse um pouco, ou ao menos lesse alguns livros de história, poderia dar
mais vigor, profundidade e realce aos personagens.
Portanto, se pensa escrever roteiro para cinema ou tevê, que se passe em
regiões que não conheça bem ou noutras épocas, pesquise, pois gafes como
aquela do romance de Machado de Assis, comentado muito antes de sua
publicação, sempre expõe o autor à chacota e desmoralização da parte dos bem
informados.
o público a que se dirige: sucesso ou qualidade?
Quando você se prepara para
escrever um roteiro já deve ter em
mira o público que deseja
atingir. Claro que no caso duma telenovela o objetivo é o êxito. O importante é
que um grande número de telespectadores a assista, sendo a qualidade apenas
um dado acessório. Nenhum telenovelista perde o emprego se sua péssima
novela somar muitos pontos no Ibope. Mas perderá com certeza se sua obra-
prima, diferente e criativa, não agradar o "publicão".
Os romancistas fabricantes de best sellers se parecem muito com os
novelistas de tevê porque conhecem o seu eleitorado. Sabem que seus leitores
não se preocupam com estilos, inovações literárias ou verdades profundas,
fascinando-se apenas pela ação e pela carga de emoção que a história possa
conter.
Evidentemente Joyce, ao escrever Ulysses, não estava preocupado com
os aplausos da galera, mas em desbravar, abrir novos rumos para a literatura.
Em todas as artes há pioneiros e seguidores. No cinema tivemos Orson Welles,
que lhe deu linguagem própria, embora seus filmes nunca tenham sido êxitos de
bilheteria.
E seu roteiro? A que público se destina? Aos mais jovens?
Aos mais intelectualizados? Ao público feminino?
É importante decidir-se antes de começar.
A maioria dos roteiros, sejam de cinema ou tevê, objetivam o êxito. É a
exigência de quem paga. O ricaço que entra com o dinheiro nunca está
interessado em obra de arte. Mas é nessa tensão de satisfazer a quase totalidade
do público, gregos e troianos, que o roteirista acaba na maioria das vezes
apresentando um trabalho de qualidade inferior, repleto de concessões ao mau
gosto, lugares-
17.
I' I
comuns, clichês usados e gastos, personagens estereotipados, desagradando por fim até aos menos exigentes.
Não há fórmulas seguras para o sucesso. Roteiros intimistas, difíceis, complicados, obscuros, para surpresa geral, até do roteiris ta, às vezes emplacam. Por que a
crítica os endeusou? Outros, também endeusados por ela, e com mais valor, fracassam. O êxito é 10térico. Se uma fórmula dá resultado uma vez, parecendo garanti 10
definitivamente, já na segunda falha.
Essas, porém, são considerações paralelas. O que o roteirista deve ter em mente é o público que deseja alcançar, a que parte dele seu trabalho se destina.
versas interpretações. Os ficcionistas demasiadamente voltados à sua posição política costumam transformar a mensagem em discurso, o que é desastroso.
Dashiell Hammett, romancista policial norte-americano, tantas vezes adaptado para o cinema, valorizou o próprio gênero fazendo de seus livros verdadeiros libelos
contra a corrupção na justiça e polícia de seu país. Mas sem discurso, sem realces, pois se eviden ciasse demais a mensagem os romances deixariam de ser ficção, virariam
jornalismo. E jornalismo é outra coisa.
Portanto, cuidado com mensagens óbvias, primárias, confusas, demagógicas, piegas, ou sujeitas a prematuro envelhecimento.
O que o autor quer dizer a mais deve estar embutido na história, como parte dela, não como demasia, acréscimo ou apêndice.
Ah, seu roteiro não terá mensagem? Preferível assim.
Seu roteiro, além de contar uma história, possui alguma proposta ou intenção?
Na realidade o roteiro sempre tem
uma, pois entreter também é um objetivo respeitável. O seu é mero entretenimento ou inclui-se num destes casos em que pretende:
a) alertar sobre o perigo duma guerra atômica;
b) difundir ideais políticos;
c) estimular a defesa das riquezas naturais;
d) condenar a degeneração dos costumes;
e) revalorizar o romantismo;
f) defender sonhos e ideais da juventude;
g) ressaltar o exemplo de certas figuras históricas; h) combater injustiças sociais;
h) delatar erros judiciários ou abusos da lei;
i) propagar a prática de esportes;
k) acusar demagogos e inimigos do povo;
1) ridicularizar falsos heróis e enganadores; m) promover esperança num futuro melhor; .n) demonstrar que o amor sempre vence.
Os exemplos são infindáveis mas é bom salientar que uma boa e nobre mensagem não garante a qualidade dum roteiro. Em mui tos casos até atrapalha, quando ela
não convence por ser forçada demais ou ingênua. Preocupado com a mensagem, acontece do roteirista esquecer da história e de seu tratamento. A melhor mensagem é a
que não é muito evidente, capaz de suscitar discussões e di-
E aquela história de mensagem?
A moral da fábula
o que já foi dito, redito rapidinho
Loca/izaçc7o - Localize seu roteiro em cidade ou região que conheça bem. Não chute.
Época - Tratando-se dum roteiro de época, pesquise. Assim agem os profissionais.
Destinação - Reflita sobre o público que deseja atingir. Mensagem - Só quando não for careta nem atrapalhar o desenvolvimento da história.
18.

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binação é bem feita, tudo bem. Sempre há muita comédia nos dra~ mas
psicológicos de Machado de Assis. Ele foi um gênio do claroescuro.
Jogando com os dois gêneros revelava o lado humorístico de certos
dramas e a dramaticidade de situações aparentemente cômicas.
Sobre o que não deve Se você a esta altura já tem seu argumento, que nasceu du~ ma
story-line, que por sua vez nasceu duma idéia, tendo já determinado a
haver dúvidas: gêneros cidade e a época em que tudo vai se desenvolver, certamen~ te já
classificou o gênero de seu roteiro.
p/ot - narrativa - Mesmo assim, dê uma olhada no cardápio abaixo. Alguns ro~
teiristas fazem verdadeiras saladas, confundindo tudo. Vamos lá?
ingredientes e temperos É um gênero e também um condimento, tempero, para qualquer
outro. Suas subdivisões são inúmeras, mas numa simplificação, há os que
envolvem muita ação, como Os miseráveis, de Victor Hugo, e os
psicológicos, paradões, como o já citado Dom Casmurro, de Machado
de Assis. O folhetim, pai da radionovela e avô da tele-

A escolha do gênero: apenas uma questão de rótulo

Há muitos gêneros de ficção e muitas vezes eles se mesclam. Quando a


com-

Drama
no mática, levava sempre às lágrimas. Fazer chorar era a meta do drama. Do
ve drama ao dramalhão é um pulo. Qualquer exagero leva o gênero ao ridículo.
la, As radionovelas e as primeiras telenovelas eram todas dramáticas, não reser-
er vando o menor espaço para o humor.
a Envolvendo ação ou não, psicológicos ou não, o drama entre outras
m engloba as seguintes subdivisões: biográfico, histórico, social ou político,
ov religioso, musical e bélico.
im
en Comédia
ta A comédia, rotulada de gênero leve, pode ser veículo de mensagens
dí muito sérias. Os cartunistas sabem muito bem disso. Há as comédias
ssi ligeiras, destinadas só ao riso; as irônicas, mais intelectualizadas, que não
m chegam a provocar gargalhadas; e as sarcásticas, voltadas objetivamente à
o. crítica política, social, religiosa etc. Como o drama, a comédia possui
O voltagens diferentes, mas sempre com a intenção de divertir, mesmo quando
s pretende sangrar pessoas e instituições. Além das características básicas,
pe aludidas, a comédia pode ser romântica, policial, musical, aventuresca,
rs histórica, de horror ou bélica.
on
ag Policial
en
s Trata-se dum gênero antigamente desqualificado pelo preconceito.
pe Mas produziu tantas obras-primas na literatura e no cinema, no geral
ns adaptações, que sua cotação subiu bastante. Nasceu como entretenimento de
av homens voltados para outras paixões literárias ou especulativas: Edgar Allan
a Poe, Conan Doyle, Chesterton, William lrish e outros.
m Possuindo elementos preponderantes de drama ou comédia, o gênero
po engloba subdivisões, como estas: detetivescos, que envolvem investigação
uc poliCial, sendo o detetive o herói; histórias de crime, nas quais a
o participação policial é dispensável; jornalísticos, quando fundamentados em
e casos verídicos; de submundo, os que narram a formação de criminosos ou
ag de quadrilhas, devido a circunstâncias sociais.
ia O gênero policial é o pai de outro, o de espionagem, tão explorado
m 'pelo cinema, muitas vezes produzido com o propósito claro
m
uit
o.
A

ni
ca
,
te
ns
ão
dr
a
19.
SOBRE O QUE NÃO DEVE HAVER DÚVIDAS: GÊNEROS - PLOT...
de fazer propaganda ou contrapropaganda política. Se a espionagem é filha 21
do gênero policial, o horror também é um parente próximo, embora com
suas características definidas.

Aventura

Um gênero literário que empolgou o mundo e que o cinema soube


explorar muito bem. Quando a televisão nasceu, ele já era decadente no
cinema. Sua mola propulsora era a exploração do desconhecido, florestas
impenetráveis e misteriosas, mares dcsconhecidos, desertos e geleiras.
Nenhum gênero cultuou tanto o herói, o desafiador de perigos. Porém, como
a Terra se tornasse totalmente conhecida e menor que o espírito de aventura
do homem, a solução foi a sondagem do espaço, que abriu um território
infinito, nascendo o gênero ficção científica. Suas subdivisões: científica,
histórica, romântica, bangue-bangue, ficção científica.

Horror

Foi a evolução técnica do cinema que propiciou o retorno do horror,


gênero cinematográfico que parecia extinto após os Frankensteins e Dráculas
dos anos 30. Já o Museu de cera voltara, em terceira dimensão, nos anos 50.
Atualmente as portas estão abertas para todas as formas de monstros, em
filmes, desenhos e comerciais de tevê. É um gênero que combina bem com a
comédia, como prova O jovem Frankenstein, de Mel Brooks.

Musical

Os musicais foram o prato forte do cinema nacional nos áureos tempos


da chanchada, que não subsistia sem música, sendo na maioria das vezes
shows carnavalescos filmados. No rádio, quando toda emissora tinha sua
orquestra, já havia roteiristas especializados em programas musicais. Em São
Paulo, Júlio Nagib era um deles, um incrementador raras vezes lembrado dos
musicais radiofônicos, enquanto no Rio Almirante fixava-se como
respeitável enci-
clopedista da música popular brasileira. Porém, apenas muito mais tarde, na
televisão, e depois do advento do teipe, o gênero cresceu ganhando contornos
de espetáculo, geralmente caros e sofisticados, baseados em figuras literárias
como Emília e o Visconde Sabugosa,
os clips, fantasias musicais com a apresentação de um número, cuja criação,
d através de cortes, fica dividida com o editor, incumbido do ritmo e das
e montagens imprevistas. Algumas subdivisões: musical-revista, com ou sem
M unidade temática; biográfico; fantasioso; adaptação de romances e peças
o teatrais; desfile de sucessos musicais.
n Se muito em matéria de cinema e tevê aprendemos com os norte-
t americanos, neste setor, o musical, temos ainda muito a aprender, pois trata-se
e dum gênero que não deslanchou suficientemente apesar da riqueza de nossa
i música popular.
r
o Infanto-juvenil

L Atualmente quase todas as emissoras de tevê têm seus programas


o infantis, não fundamentados em idéias mas em apresentadoras famosas ou a
b caminho do estrelato. Luxo e linearidade, tudo bem clichezado para que num
a dia ou dois se possa gravar todos os programas da semana. São uma calamidade
t cultural, feitos exclusivamente para olhos e ouvidos, o maior sintoma de
o robotização dos tempos atuais a serviço exclusivo da divulgação de produtos
. comerciais.
E Se a programação infantil ocupa tanto espaço, a juvenil é a grande
m esquecida. Os programadores ainda ignoram que há no país uma literatura
juvenil, já com características nacionais, com ingresso nos colégios, que supera
c a adulta em número de edições c exemplares vendidos. Desconhecem que aí
e está um rico filão, com público garantido, que envolve aventura, mistério,
l romance, suspense e fantasia.
u
l Outros
ó
Há gêneros que desaparecem como a chanchada brasileira, hoje
i
valorizada como curiosidade cinematográfica, e a pornochanchada, imitação
d
um tanto grosseira das comédias eróticas italianas, tornadas subitamente
e
ingênuas pelo nu frontal da nova onda pornô. Como a chanchada, a
o
pornochanchada teve sua importância, pois, além de servir de treinamento para
u
uma geração de técnicos, produziu alguns filmes de qualidade, melhores, a meu
ver, que muitos pornôs de luxo, assinados por diretores famosos, com os quais a
t
crítica tem sido extremamente benevolente. Logo, podem anotar, algumas
e
pornochanchadas serào redescobertas e suas virtudes apontadas ante um exame
i
mais detido e menos preconceituoso.
p
e
s
u
r
g
i
r
a
m
20.
Encerramos aqui essa visão panorâmica com um alerta para o
roteirista aprendiz no sentido de definir claramente o gênero escolhido,
apesar das possíveis combinações, para que o roteiro não resulte numa
mistura indefinida e confusa.
Não escreva ainda, reexamine seu plot. Mas o que é plot?
o plot
Toda história tem seu núcleo, seu ponto central, donde partem as
demais tramas e intrigas. Plot é a ação principal, geradora de conflitos
secundários. A diferença entre plot e storytine não é tão sutil como possa
parecer. A story-line é o resumo do enredo. Plot é sua alavanca, o drama-mo r.
No Romeu e Julieta o plot é o ódio entre Montecchios e Capuletos. Sem esse
plot não existiria a história porque Romeu e Julieta poderiam se amar li-
vremente. Não haveria mortes. É o motor da história, o que origina um
conjunto de ações.
E no Dom Quixote? O plot é a loucura do próprio. Um doido que arrasta um
homem sensato para o caminho da aventura. A loucura de Dom Quixote provoca
todas as ações do livro e suas conseqüências. Um plot fortíssimo.
No Hamlet o plot é o desejo de vingança. Tire esse desejo da
peça? Não fica nada porque tudo nasceu dele.
E no filme Casablanca? Não sei mas o plot deve ser o encontro-
desencontro-encontro. Um núcleo subdividido em três partes.
O plot gera ações, porém não é obrigatoriamente uma ação e
sim o gerador.
Em Rebeca, livro ou filme, o plot é a presença duma morta,
a falecida que parece se interpor entre seu marido e a nova esposa. Aí o plot
tem a forma humana, é um personagem, embora ausente.
Em Vinhas da ira, livro ou filme, o plot é um caminhão. O veículo
precário que leva uma família em viagem do Atlântico ao Pacífico, nos
Estados Unidos, da miséria em que vivia a uma ilusão total. A viagem, o
caminhão, é o que gera os conflitos.
O Pinocchio tem plot? Acho que o plot do Pinocchio é a deso-
bediência. Se o boneco obedecesse o Gepeto nada daquilo teria acontecido.
O fundo moral não está no desfecho mas em todo o decorrer da história.
Parece genial isso, não acham?

O O plot pode ser um sentimento, amor ou ódio, uma


pessoa, esse um plot apenas aparente quando na verdade o motor da história, o núcleo,
uma está no choque cultural e na atração dos contrastes entre europeus e americanos?
coisa ou Quase se pode dizer que o plot é a parte mais intelectualizada dastory-
uma tine. Mas nem sempre isso se confirma e portanto não digo.
série de O melhor é não perder tempo com definições. E mesmo se não tiver
coincidê entendido bem o que é o plot, não se preocupe. Há bons roteiristas que nunca
ncias pronunciaram essa palavra. O importante é que jamais se distancie do núcleo do
como em seu roteiro.
Casab/a Quanto filme você já viu, quanto romance já leu, quanta telenovela já
nca, en- assistiu que, a partir de certo momento, há a impressão de que o autor se perdeu,
contros e esquecido inteiramente do conflito que apresentou no início? O plot funciona
desencon como uma espécie de bússola. Tendo-o em mente o autor não se desvia do
tros, caminho proposto.
produzin Nas telenovelas, devido as suas proporções, há sempre diversos plats,
do ações. fontes de conflitos. O grupo da família rica, dos pobres, dos marginais, e outros.
E Um único núcleo dramático não pode fornecer lenha para tantos personagens,
m A dispostos em cenários diversos. O que acontece nessa modalidade de espetáculo
tragédia é que os núcleos se interligam, através de ações ou reações, como um sistema de
america vasos comunicantes.
na, de O que comumente sucede em telenovelas é que certas histórias paralelas,
Theodore subplots, acabam se desenvolvendo além da previsão da sinopse, passando a
Dreiser, comandar a ação geral. Às vezes basta o acerto ou êxito dum personagem
o plot é o secundário para determinar alterações substanciais na estrutura total. Daí ser a
desejo de telenovela, na maioria dos casos, um gênero de espetáculo ou ficção, como
subir na queiram, pouco respeitável na área da criatividade, tão sujeito está a acidentes
vida, que de percurso, promovidos pela interferência do público, performance dos atores
leva um e contínuas intervenções da censura.
jovem O tema, porém, é o núcleo, a máquina que puxa ou impulsiona o enredo.
ambicios Determina-o. O p/ot de sua história está bem definido? Ele possui gás, força,
o ao conteúdo para ser explorado, sem repeti-
êxito
social e à
morte na
cadeira
elétrica.
E
m
Lotita, o
plot é a
paixão
dum
intelectu
al
maduro
por uma
garotinha
ignorante
. Ou é
ferência do autor; b) com o narrador em of], oculto; c) com o narrador como
personagem principal ou mera testemunha; d) com diversos narradores.

21.

Erroneamente talvez, vou falar de temperos antes de levar a panela ao fogo. Mas o cozinheiro não improvi
sa, sabe de antemão quais os temperos que deve usar. Refiro-me aos ingredientes que enriquecem os roteiros e tornam os pratos mais convidativos. O algo mais que sem ele
ou eles o roteiro sai insípido, dando a impressão vaga de que está faltando alguma coisa.
ções ou lacunas, até o final do roteiro? Às vezes a precipitação, a queima rápida de situações ou conflitos faz com que ele logo se es gote, já tendo dado tudo que tinha
para dar, quando conseqüentemente a ação ou tensão rareia e o interesse se esvai.
U ma história pode ser narrada por diversos ângulos, técnicas de abordagem. A mais comum é
aquela em que o escritor ou roteirista não interfere no enredo. Ele coloca-se no ponto de vista do espectador e deixa a coisa rolar. Neste caso o único olho válido ou
confiável é o da câmera.
Às vezes a câmera pode ter voz, narrador. O narrado r pode estar oculto, um ser impessoal, ou pode participar da narrativa.
No seriado Os intocáveis, o narrador, em olf, invisível, conduz o roteiro, conta, como se fosse um arquivo que falasse. É um recurso que se usa para dar maior
credibilidade no caso de histó-
rias reais.
O narrado r pode também participar do roteiro, como mero ob-
servador, um personagem secundário que apenas presenciou acontecimentos ou como ator principal. Nesse caso ele pode saber tudo que aconteceu ou, como o
espectador, acompanhar o momento prcsente. No filme O crepúsculo dos deuses, o narrador-ator narra a
própria morte.
Um enredo pode inclusive ter diversos narradores, no geral ca-
da um dando sua própria versão do mesmo fato. Ou cada um contando um pedaço da história em que ele, como ator, participa.
Bolar novos ângulos de narrativa exige muita criatividade.
No filme A dama do lago, baseado no romance homônimo de Raymond Chandler, o personagem-narrador é a própria câmera, segue seu ponto de vista, tanto que só é
identificado quando diante do espelho.
No filme A história duma casaca, peça da indumentária que vai de mão em mão~ os personagens surgem como conseqüência duma casualidade. É quase como se
ela, a casaca, narrasse as diversas
histórias que o filme reuniu.
Descobrir um novO jeito de contar, um ângulo ainda não ou
pouco explorado, se não garante o êxito do roteiro pelo menos sem-
pre suscita comentários.
As variações mais correntes são: a) história contada sem inter-
Ingredientes: sempre falta alguma coisa
Quem conta a história: você ou ele?
Humor
Já se disse que não há uma grande história sem uma boa pitada de humor. Humor é sabedoria, dizem outros. Nos bons tempos de Hollywood havia especialistas que se
dedicavam exclusivamente a dar o toque humorístico nos roteiros, fossem eles românticos, dramáticos, policiais ou de aventura. Surgiram aí mestres principalmente nos
rápidos side-jokes, piadas breves, laterais, para o agrado dos espectadores mais atentos e inteligentes. As radionovelas nâo reser vavam o menor espaço para o humor, o que

já não acontece com as telenovelas, embora lidem sempre com o de segunda categoria, grosso.
Suspense
É "o que vai acontecer agora?", típico do policial mas indispensável em qualquer gênero. Se J ulieta acordar agora salvará a vida de Romeu. Acorde, moça! Em
linguagem de tevê o suspense chama-se gancho e é mais fabricado do que criado porque a telenovela precisa dum gancho em cada final de bloco e um ganchão no final do
capítulo, sem falar naquele, especial, dos sábados, para amarrar o espectador até a segunda-feira. O gancho, macete usado para prender o público, é também o maior culpado
do artificialismo do gênero, pois nem sempre surge duma decorrência natural. Já ouvi um telenovelista aconselhar a outro: pense só no suspense, o que vai antes é só para
22. o tempo. Um suspensecrescente, que deslize e
encher
,
engrosse com as cenas, sem enganações que criam falsas expectativas, impactos sem consistência, é arte que valoriza o roteirista. Grampear o espectador, conduzi-Io, é
uma das metas do profissional, mas erram os que supõem que seja esse o objetivo maior.

Erotismo
É o molho mais em uso, atualmente, sempre partindo duma exigência do produtor. Na maioria dos casos não é mero ingrediente, um anzol a mais, é tudo, pois sempre
sobra pouco, se tirado. Embora não tolerado pelos romancistas românticos, os clássicos o adotavam. No cinema o erotismo topou logo com uma barreira, a censura. A única
expressão de amor carnal foi limitada ao beijo, no final, quando já caíam os letreiros. Na década de 30, um filme europeu, Êxtase, onde aparecia uma atriz nua, à distância,
formou filas nas bilheterias do mundo todo. Foi o cinema italiano, após a guerra, que começou apelar ao erotismo, embora mascarado de realismo social. Os franceses
tentaram poematizar o erotismo. Mas foram os suecos, às vezes sob o pretexto de intelectualização, que o levaram para a tela sem constrangimento.
No Brasil, erotismo e mau gosto, salvo exceções, são quase in-
dissolúveis, quando não copiam modelos estrangeiros, xerocando emoções e comportamentos que nada têm a ver com os brasileiros. Condena-se o excesso, as grossuras,
mas o erotismo exagerado, mesmo se um dia passar, já terá se inserido com mais comedimen to à lista de temperos que dão sabor ao roteiro, pois a ingenuidade, a pureza e
os amores totalmente assexuados dos antigos filmes de Hollywood pertencem definitivamente ao passado.
4
Os personagens: às vezes eles são a própria história

O personagem é o grande elo entre o autor e o público. Se bem concebido, por inteiro, pode salvar uma história fraca ou até dispensá-Ia, pois traz no bojo toda uma
biografia repleta de fatos. Shakespeare talvez criasse suas peças teatrais partindo do personagem: Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta, Macbeth. Em nossa literatura é fácil
enumerar os casos em que o personagem é a história ou seu próprio plot, já que é o núcleo da ação: lnocência, Macu-
naíma, João Miramar, Serafim Ponte Grande, Teresa Batista, Moleque Ricardo.
São histórias que giram em torno ou descrevem uma personalidade. Fixam as conseqüências de quem carrega certo tipo de caráter, formação ou temperamento. O
destino de Madame Bovary não poderia ser muito diferente daquele que Flaubert descreveu. E Naná, de Zola, não viveu a vida ditada pela sua personalidade?
Tudo isso para ressaltar como é importante para um roteirista trabalhar com personagens reais e verossímeis. Acontece porém que os escritores convivem anos com
seus personagens, enquanto os roteiristas não dispõem de tanto tempo assim, ligados à chamada indústria cultural, ávida de produção como qualquer outra. O prazo para a
entrega dum trabalho é quase sempre aflitivo, e a pres-
23.
IIII

sa é a maior inimiga da perfeição, embora não sirva como desculpa para o pÚblico, a crítica e mesmo para a emissora de tevê ou empresa cinematográfica que
encomendou o trabalho.
Faça de conta que já criou o seu personagem principal. Ótimo. Agora faça-o sentar-
sc c projete nele uma luz bem forte para o interrogatório. Só acredite nele se responder sem hesitações.
1. Onde você nasceu? Foi numa cidade pequena, grande ou no campo?
2. Você é natural da cidade onde a história se desenvolve?
3. Veio para ficar ou está só de passagem?
4. A que raça pertence: latino, anglo-saxão, eslavo?
5. Qual é sua profissão?
6. Gosta dela ou lhe foi imposta?
7. Qual é seu grau de escolaridade?
8. Mesmo sem ter coneluído cursos escolares possui alguma cultura?
9. Tem religião? Qual? Professa-a?
10. Como é seu temperamento? Calmo ou agitado?
11. Dá-se ou dava-se bem com os pais? Com toda a família? Fale dela.
12. Como foi sua infância e juventude?
13. Já viveu um grande amor? Marcou sua vida?
14. Tem algum ideal político?
15. O que pretende da vida: a curto, médio e longo prazo? Solte a
língua, isso é importante.
16. Tem muitos amigos ou é taciturno?
17. Possui cacoetes?
18. Costuma repetir certas palavras?
19. Gosta de vestir-se bem ou é desleixado?
20. Do que mais gosta ou o que mais odeia?
21. Aceita um drinque? Ah, não bebe. E fuma?
22. Qual sua altura e peso?
23. Pratica esportes? Quais?
24. Já viajou muito ou pretende?
25. Como é que anda de dinheiro?
26. Agora faça uma confissão. Algo que não contaria nem a um padre. Comigo pode se abrir porque sou seu autor. Comece.
O espectador nem sempre precisa saber tudo sobre o personagem que criou, mas você precisa, mesmo se ele declarasse:
A entrevista: não responda por ele, deixe-o falar
Vou atravessar o roteiro todo sem nada revelar de minha personalidade. Vou ser visto, minhas ações serão acompanhadas pe lo pÚblico, ouvirão tudo que eu disser
mas quero manter-me misterioso, enigmático, até o final. Terminado o filme ou programa de tevê, que pensem o que quiserem de mim, analisem-me, condenan do-me ou
absolvendo-me.
O personagem pode, pois, ser íntimo do público, como uma pessoa que já conhece (parece tio Osório!), ou totalmente impenetrável, uma esfinge para ser decifrada.
O primeiro caso, mais seguro, apresenta todavia um risco: a previsibilidade. Um personagem transparente, que lembre muito tio Osório ou o próprio espectador, pode
ter ações ou reações óbvias demais, previsíveis, sem surpresa. Como nem nós nos conhecemos inteiramente, convém que o personagem"mantenha seu lado escuro,
insondável.
Quem assistiu à Dolce vita, de Fellini, deve lembrar daquele professor, homem equilibrado, conselheiro, marido e pai, integra do no lar, que sem explicação do
roteirista mata os filhos e suicida-se, quando numa recente cena anterior fizera verdadeira pregação sobre os prazeres da vida doméstica. Um fato sem preparação nem
esclarecimento que mudaria a conduta do personagem principal, vivido por Marcelo Mastroiani.
Em matéria de criação de personagens só os autores de superhomens nunca erram. Todos são belos, bons e fortes, sem nenhuma complexidade. O que identifica Flash
Gordon é apenas a sorte de ter uma noiva como Dale Arden. Primaríssimos, os super-ho mens marcam-se por ter um amigo fiel, uma companheira espetacular ou um inimigo
implacável. O menos feliz é o Marinheiro Popeye a quem deram Olívia Palito como esposa.
Para os romancistas do antigo romantismo a tarefa também era fácil: os bons dum lado e os maus de outro. Deus e o Diabo. E em ne nhum momento o bom deixava de
ser bondoso e o mau deixava de praticar maldades. Esse processo maniqueísta não podia mesmo durar para sempre pois não é assim que as pessoas se dividem no mundo.
O rádio inventou uma categoria engraçada de personagem: o galã frívolo, que, sem ser um vilão, chegava a namorar com a mocinha, durante os qüiproquós da novela,
mas não chegava a casar com ela, que voltava aos braços do galã. Era um tipo de papel tão marcado naqueles idos que até nos contratos de certos atores se podia ler: galã
frívolo.
OS PERSONAGENS; ÀS VEZES ELES SÃO A PRÓPRIA HISTÓRIA
o é mais complicado. O herói impoluto perdeu a credibilidade. Tornou-se um 31
chato. Conan Doyle foi um dos primeiros autores populares que resolveram O protótipo é criado para demonstrar como o convencido, in-
d macular um pouco o lado moral de seus personagens: Sherlock Holmes era satisfeito ou ingênuo agem em qualquer gênero de circunstâncias. Como
e um dependente de drogas. Parece que depois dele se tornou rotina se o autor fizesse do personagem um mostruário completo de suas
s humanizar personagens através de falhas de conduta. Hercules Poirot, o qualidades ou defeitos. Como um avarento ou mentiroso, que é só
e detetive de Agatha Christie, é um bom cara, mas extremamente vaidoso. avarento ou mentiroso e mais nada.
n Columbo, o do seriado, um relaxado, ao contrário de muitos outros, Evidentemente o protótipo é uma simplificação ou caricatura só
h elegantíssimos. justificável em comédias ou quadros humorísticos, sketches de tevê,
Defeitos de personalidade, falhas de caráter, manias, são também cujos traços exagerados provocam o riso, embora na dependência da
o
macetes para identificar, marcar, realçar personagens. Mas há também qualidade do ator. No Brasil, o humor na tevê é feito de protótipos,
formas materiais, visuais de se fazer isso. Sherlock Holmes não era clichês na maioria oriundos do rádio, que continuam a surtir efeito.
p
reconhecido pelo vício secreto da cocaína, mas pela altura, magreza, Desde o advento da televisão, em 1950, raros foram os programas de
s
elegância axadrezada e boné. Como se Conan Doyle já escrevesse para o comédias, não divididos em quadros, que lograram resultado, ao
i
cinema. contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde seriados como Mary
c
Kojak faria o mesmo sucesso sem sua calva e sua piteira? Mr. Tiler Moore, de humor finíssimo, permaneceram muitos anos em cartaz.
o
Moto tinha como marca registrada sua própria raça: japonês. Há também Aqui, humor que não movimenta os músculos da face, em ex-
l
detetives gordos ou entrevados em cadeiras de rodas. Mulheres e padres, plosões de riso, não é humor.
ó
g todos com seu visual.
i O seu não é um roteiro policial. Os autores policiais são os que mais o personagem é você? Nenhum autor escreve um trabalho
c se preocupam com o exterior de seus personagens. Mas sempre se pode de ficção sem lembrar de suas pró-
o aproveitar alguma lição, principalmente quando se escreve para cinema ou prias experiências de vida. Muitas vezes o personagem é o autor usando
tevê. Pense um pouco em como deve ser seu personagem exteriormente. Vai pseudônimo. O escritor precisa de modelos e o espelho pode lhe oferecer
d facilitar a direção. um. Até aí, tudo bem. O erro é quando, embora o autor não seja
u É magro e alto, baixo e gordo, barbudo, fuma charutos, tem um jeito explicitamente nenhum personagem, aparece a todo momento como um
m peculiar de rir, costuma enrugar a testa para pensar, gosta de roer unhas? intruso, a dar palpites, tecer comentários, intervindo na história para
Não basta inventá-Io. Você tem de ver seu personagem para que outros julgar procedimentos e extrair conclusões.
p também o vejam. No conto e no romance essa intervenção sucede nas narrações,
e espaço do autor, quando nos roteiros, como não poderia deixar de ser, se
r Tipos e protótipos Seu personagem está em qual das catego- dá através dos diálogos, quando põe na boca dos personagens frases,
s rias? críticas e conceitos que eles jamais diriam da forma que foram
o Será um tipo se ele tiver certas qualidades ou defeitos predominantes apresentados.
n que o expliquem. Isso é comum acontecer, e quando o é em escala excessiva pende
a logo para o ridículo, pois força o personagem a sair do tipo para dar vez
O tipo do convencido, "o tipo do insatisfeito, o tipo do ingênuo. Certamente
g ao autor, que num lance de ventriloquia passa a falar por ele.
ele não será só isso, mas seu procedimento levará o espectador a concluir
e Se o personagem não é você pode estar por perto: um parente, um
que, mais que tudo, ele é o tipo do convencido, insatisfeito ou ingênuo.
m amigo. Não sei dizer se somos todos nós personagens, captáveis pela
Mesmo reagindo acaba seguindo essa trilha de conduta. ficção, mas garanto que o mundo está cheio deles. O escri-
h
o
j
e
24.

5
,I tor deve estar sempre atento para reconhecê-I os porque às vezes cruza com
I
eles na rua, no elevador, no ônibus. Apenas desconfio dos que dizem "minha
vida daria um romance". Para estes ficção limita-se a uma seqüência de
desgraças.
No geral, os melhores personagens, como as melhores histórias, são
aqueles que vamos buscar no fundo do baú da memória, pois já superaram o
o roteiro:.
teste de durabilidade, da passagem do tempo. Todos os escritores recorrem a
ele. comece aSSIm ...
Falando de experiência pessoal quase posso garantir que não inventei
nenhum personagem. Mesmo se fizesse ficção cicntífica, não viriam do
espaço. Todos que pus em circulação nos meus romances, contos e roteiros
tirei do aludido baú ou dum cotidiano mais recente. Mariano, o personagem
central de Memórias de um gigolô, foi meu amigo de boemia. Certo
conhecido, que me contou uma espantosa história de ciúme, vivida por ele, o diretor precisa saber Não é você quem vai dirigir o fil-
saiu da mesa dum bar para as páginas dum conto, "O casarão amarelo", mais me ou o programa de tevê, portanto
tarde roteirizado e filmado entre outros contos meus. O passador de dinheiro tudo deve estar bem claro para o diretor, mesmo se ele, com razões ou nào,
falso de A arca dos marechais foi alguém que vi algumas vezes na infância e decidir alterá-Ia. Em caixa alta, maiúsculas, faça as primeiras anotações.
que se tornou assunto no bairro ao ser detido pela polícia. Norma Simone, SEQ.01 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. DIA
personagem principal de meu romance Café na cama, é a combinação de ou
duas atrizes que conheci na ocasião. E o roteirista de Esta noite ou nunca SEQ. 01 - PRAÇA DA REPÚBLICA - EXT. NOITE
tem muito de mim e do que vivi, como autor de qualquer coisa que o cinema As seqüências ou cenas precisam ser rigorosamente enumeradas.
da rua do Triunfo me solicitasse. Em Dinheiro do céu, romance infanto- Depois, esclareça onde a ação se passa: Agência dos Correios ou Praça da
juvenil, usei como personagens parentes e conhecidos da juventude, República. Mais, se a filmagem será em estúdio ou ao ar livre: externa ou
deslocados para uma época mais próxima. E como Hitchcock apareci em interna. E, por fim, a fase do dia: manhã, tarde ou noite.
diversas ficções minhas como coadjuvante ou mesmo figurante. Certamente quando o ambiente é mencionado pela primeira vez
Feito o personagem resta o problema de batizá-Io. Disse bem, o precisa ser descrito.
SEQ. 01 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE
problema. Há nomes que nào vestem bem certos personagens, fica faltando
ou sobrando pano. O recurso de batizá-Ias com nomes extravagantes, ou É uma agência acanhada, dum bairro distante, instalada numa casa
raros, evidencia demasiadamente a intenção da originalidade. Costumo velha, quase em estado de decrepltude, tanto em relação às paredes, com
a pintura desbotada, quanto ao pequeno balcão e
rebatizar inúmeras vezes os personagens durante a redação dum roteiro até
fixar-me no que se ajusta melhor. O ideal é aquele que é fácil de dizer, de
gravar na memória, sem ser muito comum. É antigo o recurso de chamar de
Cândido um personagem cuja marca principal seja a candura, e de Inocência
a moça inocente do roteiro, porém isso só se faz em relação a protótipos, e
mesmo assim em franco desuso. Apenas longinquamente o nome do
personagem deve lembrar ou alertar para qualidades, defeitos ou
características do personagem.
aos raros móveis. No chão, em pilhas, e nas estantes, acumulam-se O chefe da agência e a moça não entendem a ordem. O homem alto
desordenadamente cartas e volumes de diversos tamanhos. Há também um retira um revólver do bolso.
cofre e um ..
HOMEM ALTO - Disse para fechar. Close do
Essa descrição prende-se ao ambiente, mas os pcrsonagens também velho e da moça, assustados.
devem ser descritos: como são e o que estão fazendo. SEQ. 02 - RUA: DIANTE DA AGÊNCIA - EXT. NOITE
Um homem de 60 anos de idade, ou pouco mais, chefe da agência, está
atrás do balcão, com cara de sono. Olha para o relógio da parede, como se Um carro de porte médio está estacionado diante da agência dos
estivesse ansioso para deixar o trabalho. O relógio assinala 18 horas e 55 correios. Dentro, à direção, está uma moça morena, usando enormes óculos
minutos. Perto dele, uma jovem funcionária, modestamente vestida, vende selos escuros, a olhar a porta de ferrp ondulado que está sendo fechada.
a um office-boy fardado, que os cola numa carta e deposita-a numa caixa. Subitamente uma viatura policial pára diante do carro da moça, que,
Quando o office-boy sai. entra um homem alto, forte, bem vestido, que se assustada, não sabe se põe o auto em movimento ou se permanece ali.
aproxima do balcão Nenhum policial sai da viatura.
26.
25. HOMEM ALTO - Fecham às sete? CHEFE DA SEQ. 03 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE
AGÊNCIA - Já vamos fechar. Diante do cano do revólver o chefe da agência, que já cerrou a porta,
O chefe da agência sai detrás do balcão e começa a descer lentamente recebe outra ordem do assaltante.
a porta de ferro ondulado. HOMEM ALTO - Passe a chave.
HOMEM ALTO - (Ordena) Feche logo.
O so
v para o interior da agência.
HOMEM ALTO - Não se mova daí.
el
CHEFE DA AGÊNCIA - Temos pouco dinheiro aqui. HOMEM
h
ALTO - Eu sei.
o
A resposta intriga o velho e a moça, que se entreolham. Para apressar a
o saída do assaltante, ele faz uma pergunta.
b CHEFE DA AGÊNCIA - Quer que abra o cofre?
HOMEM ALTO - Não.
e
d
e
c
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a
p
ó
s
br
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v
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e
si
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ã
o.
A
m
o
ç
a
d
á
u
m
p
a
s
herói Cansada de heróis a ficção inventou o anti-herói,
aquele que não deve servir de exemplo para ninguém.
Creio que um dos primeiros anti-heróis da literatura foi Julien Sarei,
personagem central de O vermelho e o negro, de Sthendai, criado em pleno
romantismo quando os heróis eram todos uma soma de virtudes.
Neste século os anti-heróis proliferaram, pois se descobriu que
possuem um charme especial e à sua maneira são também românticos.
Repetidamente são pessoas de origem modesta, que usam de todos os
truques para ingressarem na alta sociedade. Seu mau-caratismo pode até ser
trocado por austeridade, caso alcancem suas metas.
Nossa literatura deu Macunaíma, um herói sem caráter, ligado
folcloricamente às tendências naturais dos brasileiros, que serviu de modelo
a muitos outros. O anti-herói brasileiro, sem a frieza e calculismo de J ulien
Sorcl, são geralmente os pingentes da sociedade, os que vivem de viração,
atentos ao oportunismo cotidiano. Mais vítimas que outra coisa.
Mas não confundir anti-herói com bandoleiro. Aqui, pelo menos, ele
está mais para Zé Carioca que para Lampião.

Os demais personagens Não faça dos demais persona-


gens do seu roteiro meros antago-
nistas. Mesmo os secundários ou coadjuvantes precisam ser desenhados e
recheados. E não apenas exteriormente. Tem que viver seus conflitos, possuir
marca. Quantas vezes é um deles, de pequeno papel, que dá credibilidade a
todo o roteiro. Oalton Trumbo, famoso roteirista do cinema norte-americano,
sabia valorizá-Ios por menor que fosse sua participação. O filme Viridiana,
roteirizado e dirigido por Luís Bui'iuel, é urna obra-prima nesse particular.
Seus terríveis mendigos, embora inÚmeros, têm todos seu recheio e persona-
lidade. Ficam na memória do espectador. São os personagens secundários
que formam a visão de conjunto. São peças integrantes dum todo, impressão
que se perde quando são criados unicamente para contracenarern com o
personagem principal.

Personagens-múltiplos Há roteiros em
que a situação criada se sobrepõe aos personagens: uma guerra, uma greve,
um naufrágio. Nesse caso o roteirista se

o anti-
28.
27.
propõe apenas demonstrar como reage um grupo de pessoas diante do perigo em que contorce o corpo, ao som do rock que vem do rádio colocado
sobre a mesa, Outro, diante dum pacote recém-desembrulhado,
ou da necessidade de tomar decisões.
contempla e acaricia um novo par de tênis, Leo, sentado numa cadeira,
O cinema-catástrofe inevitavelmente recorre ao processo dos escova meticulosamente os sapatos. Um be//boy entra agitado, beijando
personagens-múltiplos. Comumente revelam uma faceta, a mais marcante, uma nota de dez dólares. A campainha, estridente, soa, sobrepondo-se à
de sua personalidade: o covarde, o mercantilista, o arrependido, o violento, o música. Todos se voltam instantaneamente para o painel no alto da
parede onde um número luminoso pisca insistentemente.
que só cuida da própria pele e o herói embutido, que só no final expõe sua
O rapaz que contava o dinheiro levanta-se e, apressado, vai até o
coragem. painel onde aperta um botão silenciando a campainha e apagando o
O público revela esse primarismo, essa simplificação, porque só pisca-pisca. Ao mesmo tempo, guarda o dinheiro. Sai, apressado,
deseja saber quais personagens vão se salvar do naufrágio, do incêndio, do abotoando-se. Os demais, depois de verificarem o número chamado pelo
tufão ou da bocarra do tubarão. É um tipo de cinemanotícia em que o painel, retornam imediatamente ao que faziam.
Mal bate a porta por onde saiu o rapaz, a estridente campainha
personagem principal é o acidente, a fúria da natureza ou um animal
volta a soar e outro número pisca no painel. Os bel/boys repetem os
ameaçador. movimentos. Agora é Leo que, livrando-se da escova de sapatos, aperta o
Muito diferente é o caso em que o roteiro engloba diversas histórias, botão do painel e sai apressado da sala.
cada uma com seus personagens, começo, meio e fim, ligados ou não ao Outra cena do mesmo roteiro com indispensável descrição longa:
mesmo tema. Contar quatro ou cinco histórias, ou oito como o cinema SEO. 80 - ACADEMIA DE LUTA - INT. DIA
King Kong, atracado ao pescoço do Conde Drácula, tenta estran-
italiano já fez, foi moda nos anos 60, principalmente no gênero comédia, gulá-Io. Drácula vai perdendo as forças; arregala os olh.os e põe a língua
embora tenha sido com o filme de terror inglês, Na solidão da noite, que o para fora_ De repente, num golpe ágil e surpreendente, Drácula
novo formato se configurou. consegue escapar. King Kong persegue o esperto vampiro e vê-se agora
o mas, encostado à parede, toma um refrigerante ao mesmo tempo em que
ringue encara misteriosamente Leo.
da A luta prossegue no ringue_ Agora, o Drácula tenta enfiar suas presas
Acade mortíferas no pescoço de King Kong_ Leo se aproxima de Mister Sandman, o
mia único espectador da luta, no momento em que ele, voltado para o ringue, bate
onde palmas encerrando o treino/ensaio.
no
fundo Não esqueça as rubricas
Leo
vem
entran Nos dois trechos selecionados do roteiro de AIcione Araujo não há diálogo.
do Limitamo-nos ao visual para exemplificar melhor. Mas um roteiro é
meio composto de narração, anotações técnicas e diálogos. Para orientação do
assust
diretor e do elenco estes também precisam de anotações - as rubricas.
ado e
inibido Do mesmo roteiro de Alcione Araujo retiramos alguns exemplos:
. JANDIRA - (Categórica) Neste hotel não vejo, não escuto, não falo.
A
o se
aproxi
mar
do
ringue
, Leo
vê de
um
lado,
fazen
do
solitá-
rios
exerci
cios
de
luta,
ningu
ém
meno
s que
o
Tarzã;
enqua
nto do
outro,
o
Super
-
Home
m
dorme
estira
do no
chão.
Mais
adiant
e,
Fanto
30.
29.
li ALEMÃO - (Em alemão, aos berros) Eu não chamei! Não quero nada! Neste hotel do personagem cabem quantas rubricas forem nccessÚ rias. Dão
só tem ladrões! colorido à interpretação e rompem a monotonia.
BELLBOY - (Em off) Você tem namorada?
Nos tempos do rádio, quando às vezes nem cnsaio havia, acon-
PASCOAL - (De boca cheia) - É bom fazer coisa nova. A freguesia
tá mudando' tecia do ator inexperiente ler a rubrica, assim:
PAULO - Fazendo voz romântica, eu te amo.
IOLANDA - (Benzendo-se) Que Deus me perdoe!
DIOGO - (Quase num soluço) PÔ, ninguém liga pra mim?! Ninguém ou:
PAULO - Ameaçadoramente, saia desta casa!
me dá força?!
RITA - Ele está apaixonadinho ... (Com malícia) - E não é só ele, não ... ÃNGELA Outra rubrica importante no diálogo é a Pausa. Um ins·
- (Excitadissima) - Mas tá na hora de papai chegar ... LEO - (Misterioso e tante de silêncio geralmente diz mais que uma enxurrada de palavras.
detetivesco) - Não sei.
PERCIVAL - (Ao telefone) Emperor Park Hotel. Yes .. yes.
lndica que o personagem vai repensar a situação, perdeu o fio de sua
GINO - Bom dia ... (Tom) - Pra que pressa? (Rindo) O banheiro 11ao argumentação, recebeu um impacto emocional ou fará uma grande
vai fugir. revelação.
RAFA - (Confirmado) E fui ao Acapulco também. (Tom) Desmentiram MARIA - O que quer me dizer? Por acaso está me acusando de ter gasto
tudo. seu dinheiro? (Tom) Pois vou lhe dizer uma verdade (Pausa) Foi sua
A rubrica Tom é muito importante para o diretor e () ator. mãe quem esbanjou tudo.
OTÁVIO - Pensa que me surpreende? (Tom) Então ouça ... (Pausa)
Significa mudança de tonalidade, modula a frase. Evidentemente numa fala
Eu CHEFE DA AGÊNCIA - Não?
HOMEM ALTO - Não me interessam os seus trocados.

O chefe e a funcionária entreolham-se outra vez.
sa
MOÇA - O que o senhor veio ...
bi
HOMEM ALTO - Recebeu hoje um pequeno volume embrulha-
a.
do em papel verde?
Mas O chefe não lembra mas a funcionária sim. MOÇA -
não vamos, Procedente de Blumenau? HOMEM ALTO - Passe-
com essas me ele.
MOÇA - (Usando as mãos) Deste tamanho? HOMEM
noções
ALTO - Vamos. Me dê ele.
preliminare MOÇA - (Embaraçada) Ele ... ele ... (Tom) Não está mais aqui.
s, invadir a O assaltante avança sobre a moça surpreso e desnorteado. Ela recua.
etapa do HOMEM ALTO - Não está mais aqui? MOÇA -
diálogo, Vieram buscá-Io.

que merece O assaltante toca a funcionária com o cano do revólver, exigindo um


esclarecimento rápido.
capítulo à
HOMEM ALTO - Quem?
parte.
MOÇA - (Engolindo em seco) Uma mulher. Não estava em nome dela.
CHEFE DA AGÊNCIA - Agora lembro, ela trouxe uma declaração, com
firma reconhecida da pessoa que deveria receber o volume.
O assaltante perde a agressividade. Torna-se suplicante. Repõe o revolver
na ci ntura.
HOMEM ALTO - Por favor, senhorita ... Descreva essa mulher.
Aí está um início de roteiro bastante simples em suas linhas mas que
começa quente, instigante, já formulando perguntas e questões.
Por que assaltar uma minúscula agência dos correios?
A resposta do assaltante intriga ainda mais: não queria dinheiro. O que
haveria no tal volume verde?
O assaltante foi vítima dum logro?
A moça de óculos escuros teria algo a ver com o logro?
Mas ela, por sua vez, também está em apuros com a chegada da viatura
policial.
Os policiais estacionaram o carro por acaso?
O que a moça fará? Vai fugir ou esperar a volta do provável
parceiro? .
Acrescentemos mais duas cenas que mantêm o pique inicial.
31.

SEQ. 04 - RUA: DIANTE DA AGÊNCIA - EXT. NOITE


A moça de óculos escuros, sentada ao volante do carro, vê um policial fardado sair
da viatura. Dá a partida pondo o carro em movimento mas um caminhão pesado fecha-lhe
o acesso. Para não bater, ela breca fazendo os pneus rangerem. O policial que saíra da
viatura dirige-se a ela.
POLICIAL - (Gaiato) É preciso ter cuidado com esses grandões, moça. Chegou a
bater?
MOÇA DE ÓCULOS (Ou sem nome) - Não. POLICIAL - Foi
sorte.
Esta cena esclarece que os policiais não estavam ali porque desconfiassem da
moça. Mas por que motivo estariam?
SEQ. 05 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE
O homem alto, ainda suplicante, quer que a funcionária descre-
va a mulher que foi buscar o pacote verde.
HOMEM ALTO - Como ela era? A funcionária
parece não lembrar.
MOÇA - (Hesitante) Era morena, magra ... (Lembra) Usava ócu· los escuros.
O assaltante recebe um impacto.
HOMEM ALTO - (Como se desperto para uma suspeita) Óculos escuros? (Pega a
funcionária pelo braço e arrasta-a até a porta da agência)
MOÇA - (Assustada) O que vai fazer?
HOMEM ALTO - Quero que reconheça essa mulher.
O chefe da agência abre a porta. O homem alto, segurando a funcionária, não vê o
carro. Corre para a rua.

Passemos dum roteiro simples para outro, mais detalhado, com descrição
pormenorizada dum ambiente onde se movimentam inúmeros personagens, como o
que se segue, selecionado da adaptação do romance juvenil, de minha autoria, O
mistério do cinco estrelas, escrito por Alcione Araujo.
SEQ.01 - SALA DOS BELLBOYS (Mensageiros de hotel) - INT. DIA

Cinco bellboys, com seus uniformes brancos com debruns dourados, estão
descansando. A sala tem sofá desgastado, algumas cadeiras que não combinam entre si,
duas pequenas mesas. Visivelmente o mobiliário é um reaproveitamento de peças. Alguns
dos rapazes, na faixa dos 16 anos a 20 anos, têm o uniforme desabotoado. Um lê uma
revista em quadrinhos, estirado no sofá. Outro conta dinheiro, desamassando as cédulas.
Outro, diante dum grande espelho espreme espinhas e se contempla em várias posições,
ao mesmo tempo
dade e a princípio a principal atração. Há autores que devem seu êxito ao seu
repertório de palavrões sob o rótulo de rebeldia, liberalismo e oposição aos
preconceitos. Passada a novidade, observa-se que pela repetição acabam esvaziando a
carga dramática, quando um único, no momento certo e imprevisto, causaria impacto
maior.
Além do mais o que hoje em dia escandaliza quem?
Solilóquio: para cômicos e doidos
Antigamente, no teatro, até havia o momento do
solilóquio, quando o personagem falava sozinho, numa
espécie de so
lo instrumental de piano ou violino. Na comédia popularesca o solilóquio ainda é
recurso usado quando o personagem, como efeito humorístico, comenta suas diabruras
ou anuncia próximas maquinações.
No rádio o solilóquio também era normal porque não havia uma câmera para
registrar as reações dos personagens, obrigados a expor o que estavam sentindo e o
que pretendiam fazer. Mesmo quando dramáticos, eram divertidíssimos.
Na literatura, James Joyce criou o monólogo interior, Fluxo de consciência,
que deu profundidade aos personagens revelando seu universo subterrâneo, mas sem
possibilidade de adaptação para cinema e tevê, devido à sua extensão e complexidade.
O monólogo, no entanto, como formato, peça com um só personagem, já
alcançou êxito mesmo no teatro nacional, como As mãos de Eurz'dice, de Pedro
Block, que, ao lado de outras, estrangeiras, Antes do café, de O'Neil, e O homem da
flor na boca, de Pirandello, foram apresentadas na tevê em programas reservados ex-
clusivamente a peças teatrais.
o diálogo e
suas modulações
Foi Ernest Hemingway que a partir dos seus contos deu
novo ritmo e colorido à técnica do diálogo na literatura
moderna.
Sua novela A vida curta e feliz de Francis Macomber expressa-se tão bem através
das falas, caminha tão velozmente a ponto de tornar desnecessárias as descrições,
resumidas ao mínimo. Diálogos que não apenas comentam mas conduzem, empurram
a ação.
32.
"1 1

Ao mesmo tempo Hemingway foi um dos primeiros autores a usar a linguagem


do cotidiano, sem empostações literárias, mantendo porém a qualidade do diálogo. O
comum sem vulgaridade. Nos seus livros o diálogo não aparece como acessório, mas
como elemento essencial para o entendimento dos personagens e do enredo. Antes dele
os personagens só falavam o essencial: diálogos longos chegavam a ser atestado de
fragilidade do escritor, comprovavam sua incapacidade de narrar ou descrever.
Hemingway torpedeou esse velho conceito produzindo diálogos brilhantes, autenticas
e condutores de ação.
John Steinbeck deliberadamente fez romances que eram ao mesmo tempo peças
teatrais e roteiros cinematográficos: Ratos e homens, Noite sem lua e O filho desejado.
Mas só no último revelou essa intenção, em prefácio. Pelo menos o primeiro, o famoso
Ratos e homens, alcançou plenamente seu intento. Não há uma linha do diálogo do livro
que falte ao filme A cadeia fatal, como se chamou em português Of mice and man. O
trabalho mais fácil de adaptação para rádio que fiz na vida foi Ratos e homens porque
apenas copiei os diálogos, em tradução de Érico Veríssimo, e acrescentei anotações para
a técnica e a contra-regra. A adaptação teatral do livro, que assisti no Teatro de Arena,
nada subtraiu nem acrescentou ao original. E a adaptação para a tevê apenas incluía um
palavrão com o que a direção da emissora não concordou.
Em O filho desejado, no prefácio, Steinbeck comentou esse processo: "Apesar
das dificuldades existentes, a peça-romance é altamente gratificante, de vez que, além
de uma oportunidade mais ampla de ser lida, proporciona também a possibilidade de
ser levada à cena, sem as adaptações usuais. Acho, enfim, que se trata duma forma
legítima e que pode ser bastante explorada" .
A não ser num caso como Ratos e homens, em que o processo funcionou
perfeitamente, e que talvez ocasionalmente resultou numa peça-cine-tevê-rádio-
romance, não julgo aconselhável tentativas idênticas porque limitam em demasia a
criatividade além do aspeeto comercial excessivo. Aliás, foi essa a pecha que
aplicaram em Steinbeck nos seus últimos anos de vida.
Outro excelente criador de diálogos, considerado por muitos também um
renovador, foi o romancista norte-americano, do gênero policial, Dashiell Hammett,
que se esmerou em falas secas, cínicas, contundentes e invariavelmente curtas. Sua
dialogação não deu trabalho aos roteiristas que adaptaram seus romances para a tela.

6
Diálogo:
. , .
maIS arte que tecnIca
Não olhe para a tela Se quiser testar a qualidade dos diálo-
gos dum especial ou programa de tevê, não olhe para
a tela. Apenas ouça. Sem a imagem qualidades e defeitos crescem, saltam. Descobre-se,
por exemplo, que certos autores usam o diálogo como simples muletas da ação. Parece
escreverem histórias em quadrinhos. Tudo picadinho, superficial, desestruturado.
Roteiros que sofrem de infantilismo verbal. Brevidade não implica obrigatoriamente em
superficialidade. O breve também pode ser óbvio.
a) É preferível uma ação muda do que complementada com diálogos inúteis.
Imagens também falam.
b) Nunca coloque em palavras o que a imagem ou ação já tornou explícito.
c) Evite diálogos longos; cansam, a não ser que possuam indiscutível carga
dramática.
d) Se diálogos pobres enfraquecem o roteiro, os literários podem torná-lo
artificial.
e) Os diálogos devem ser espontâneos e corretos. Isso já é boa literatura num
roteiro.
Sempre que concluir um dos tratamentos do roteiro, pegue um lápis vermelho e
risque todas as palavras desnecessárias à com
33.
preensão e fluidez dos diálogos. Uma única palavra excessiva dificulta a ça, põe fim às pretensões artísticas de qualquer roteirista, levando o
interpretação do ator. Quanto às frases repetidas, só em situações especiais trabalho à despersonalização total.
para demonstrar obsessão, indecisões ou temores. Corte inclusive pronomes Pior que essa divisão de tarefas só mesmo o videotexto, a produção
(eu, tu, você e ele) quando não fazem falta. E varra sem piedade tudo no de roteiros por computadorização, robôs autores, capazes de memorizar
roteiro que não some, não acrescente, e que já foi dito ou está implícito. No tudo do agrado do grande público, não muito exigente, mas que consome
cinema, principalmente, o tempo é precioso. mais que as elites intelectuais. Temo que não faltariam patrocinadores
E quanto às qualidades dum diálogo? para comprar o produto dessas infalíveis máquinas de fazer roteiros.
Uma das mais importantes é a que coloca na boca do personagem a
linguagem do seu meio social, cultural e familiar. Aquela história de fazer
uma pessoa inculta expressar-se corretamente. O lixeiro que fala como um
doutor.
Há também o caso da faixa etária. Cada geração tem sua linguagem e
maneirismo. É preciso ter isso sempre em mente.
Enquanto as imagens explicam, o diálogo deve ser um conduto de
emoções. Saber dosar ambos garante um bom resultado. Mas, se por um
lado há imagens banais, rotineiras, quadradas, conseqüência da preguiça ou
da falta de talento do diretor, há diálogos COI1Struídos com frases feitas,
clichês, estereótipos e chavões característicos de certas situações.
Eu e minha mulher muitas vezes nos divertimos prevendo faIas de
personagens de telenovelas quando diante de conflitos e problemas
habituais. Quando se conhece o autor, de outros trabalhos, aí nunca se erra.
Essa deficiência veio de Hol1ywood, que, devido a grande produção, não só
repetia idéias, enredos e situações como também possuía um estoque de
frases~ óbvias, sonoras e sentimentalóides para acertar em cheio no imenso
coração do espectador médio.
Há autores, que para se livrarem de velhos chavões, apelam ao
moderninho, enxertando no diálogo gírias e expressões do momento. Nem
Ihes ocorre que com a rapidez com que tudo se transforma esta atualização
ou modernidade acaba virando sucata vocabular antes que o ano termine.
O pessoal do Cinema Novo tinha essa mania, e hoje, quando revemos
seus filmes, podemos observar que o diálogo daquela safra foi o que
envelheceu mais depressa.
O escritor, conclui-se, deve captar o espírito de seu tempo, não do ano
em que está vivendo.
Mais que gíria e modismos foram os palavrões os responsáveis pelos
diálogos quentes. No teatro tornaram-se uma obrigatorie-
34.

7
I Diziam muito com poucas palavras. Mais que isso: o estilo de Hammett
foi adotado pelo cinema, no início dos anos 30, que encontrou o jeito, a
medida e a economia de palavras que convinha aos personagens da tela.
Mais tarde Hammett escreveu diretamente para o cinema, mas sua
A imagem: maneira cinematográfica, quanto à dialogação, já era uma lição
aprendida. Ainda hoje a maioria dos filmes policiais norte-americanos
os planos, cortes traz nos diálogos a marca de Dashiell, feita de cinismo, brevidade e uma
parcela dc humor.
eflashback Vcjam que até nessa questão, a linguagem dos roteiros, a literatura
forneceu suas dicas.
|O subtexto: o invisível inteligente

Subtexto é tudo aquilo que não está cada trocado em palavras mas
embutido no texto, implícito. Um texto primário não tem subtexto: os
diálogos dizem tudo.
A grande dificuldade inicial do rotelrlsla aprendiz é pensar em termos O subtexto é, no geral, a parte mais inteligente do texto, a verdade
de imagem. Sim, porque a princípio ele pensa em termos de palavra. oculta, a intenção principal, o que vai permanecer depois de findo o
É uma dificuldade semelhante à do estudante de inglês, que não espetáculo. Não confundi-Ia com o duplo sentido, no geral picante.
consegue pensar em inglês. E do aluno de auto-escola que precisa pensar um Muitas vezes o espectador não percebe o subtexto, o que nem sempre
pouquinho antes de mudar as marchas. prejudica o entendimento, mas diretor e atores o esmiuçam para dar mais
O roteirista deve habituar-se a ver a história. a imaginá-Ia numa profundidade à interpretação. Uma frase que diz isto mas que também
sucessão de cenas, como se os diálogos não fossem necessá- quer dizer aquilo, mais importante. Um personagem confessa-se
inocente. Mas há um subtexto, feito de hesitações e comprometimentos,
rios.
que o condenam. Uma declaração de amor pode conter um subtexto que a
Pergunte-se, pois, se a idéia que vai desenvolver em roteiro pode ser
negue.
convertida em imagens, desdobrada em takes ou é excessivamente
Os grandes textos, sejam de romance, teatro e cinema, sempre têm
introspectiva, fechada demais ou caótica. Você quer mesmo fazer um'
uma verdade subterrânea, só para os mais perspicazes ou cultos.
roteiro ou o que tem em mente daria mais um conto, ro-
mance ou peça teatral?
Diálogos adicionais Quando o diretor decide acrescentar
Essa indagação liga-se imediatamente a outra: - De novas cenas num roteiro, mais explica-
que tempo vai dispor? tivas, o que muitas vezes ocorre já em fase de filmagem, é obrigado a
Um filme leva em média de 90 a 100 minutos. Sua história não recorrer a diálogos adicionais, que podem ser redigidos pelo autor ou por
acabaria logo no vigésimo minuto? outro profissional. No geral é· o próprio diretor quem os acrescenta, às
Um especial de tevê, teledrama ou musical, tem 50 minutos. Cinqüenta vezes numa linguagem em desacordo com o resto. Noutros casos verifica-
minutos também é geralmente o tempo dum seria do ou capítulo de se que há pouco diálogo na cena, exigindo-
minissérie
35.
se acréscimos. Ou então o diretor resolve substituir diálogos de uma ou As minisséries têm 4, 5, 10, 12 ou 20 capítulos de 45 ou 50 mi -
maiS cenas. nutos, segundo a carga de comerciais. A tendência atual é de diminuir o
Já fiz um roteiro que, ao vê-Io na tela, não o reconheci. Os número de capítulos das minisséries para facilitar a comercialização no
diálogos adicionais substituíram totalmente os meus. E pior, os créditos exterior.
diziam: diálogos adicionais de Marcos Rey. Uma telenovela tem de 150 a 180 capítulos com 30 minutos de
ação, sem comerciais, abertura e encerramento.
Pergunte a quem contratá-Io quantos minutos terá o filme ou
Personagens do "alô quem fala?" programa de tevê para calcular se seu argumento cabe nele. Quantas
páginas ou laudas vai dar?
Havia em nossa televisão um autor de telenovelas que ficou conhecido pela O cálculo do número de páginas é sempre torturante porque
disposição que seus personagens tinham de falar ao telefone. Mesmo nas algumas resultam em 30 segundos de ação e outras num minuto ou dois.
situações de clímax e grandes emoções. Parecia um propagandista da Telesp Depende do espaço de sua máquina. Do ritmo da ação. Da quantidade de
descrição ou de diálogos.
Quando o roteiro ultrapassar o tempo, que na tevê é implacável, a
edição resolve, cortando as demasias. É mais grave quando o roteiro
estiver curto, minguado, pois o diretor terá de espichar as cenas, o que é
mau. Os autores de telenovelas quase não sofrem esse problema: a
e da Telerj. extensão do trabalho e o número de vezes que freqüentemente reescrevem
O resultado era invariavelmente mau porque toda a tensão duma cena os primeiros capítulos facilitam o acerto correto entre páginas e tempo.
saía pelo fio. Hoje usa-se o split-screen, divisão da tela em duas partes, nas
conversações telefônicas mais longas ou quando é importante fixar as Cenas e suas Um filme ou teleteatro, qualquer que seja o gê-
reações dos personagens. subdvisões nero de script dramático de tevê, é constituído
Mesmo assim aconselha-se a racionar o uso, embora uma ligação de cenas, cujo número varia segundo o tamanho e
telefônica que traga uma notícia inesperada - sua mãe morreu _ possa o ritmo. Dificilmente um filme tem menos de 150 cenas ou seqüências.
alcançar o mesmo impacto dramático da que é transmiti- As primeiras novelas de tevê, escritas por autores radiofônicos,
da de corpo presente. preocupados mais com as palavras que com as imagens, tinham poucas
Nos enredos policiais o telefone é geralmente elemento de sus- cenas por capítulo diário, dez no máximo. Hoje, mais dinâmicas e
pense. Há filmes em que ele é o plot, o núcleo dramático, como em A vida cinematográficas, chegam a ter 40.
por um fio, quase um filme de terror, em que uma mulher entrevada na Cada cena divide-se em takes - tomadas -, que equivalem aos
cama, milionária, recebe uma ameaça de morte parágrafos de um romance. A tomada inicia quando o cameraman liga a
pelo telefone. câmera e termina quando ele a desliga para começar outra.
A tomada, como o parágrafo, divide-se em frases - shots que chamamos
A ameaça dos dialoguistas de planos. É o plano que determina a linguagem a ser usada: próxima,
média, geral, subjetiva etc.
A industrialização do roteiro fez surgir nos Estados Unidos, o que faz crer Resumindo: O roteiro é dividido em seqüências ou cenas; as cenas
que vem vindo para cá, uma categoria profissional perigo- em tomadas (takes) e as tomadas em planos (shots).
sa: os dialoguistas. Que se tenha espírito de equipe, vá lá, mas daí a entregar
a dialogação dum roteiro de nossa autoria a outro autor equivale a tirar
grande parte do prazer da criação.
Que existam argumentistas e roteiristas é natural. Argumento é o
romance, o conto, a peça teatral, o poema, que precisam ser transformados
em espetáculo de tela, trabalho que exige especialização. Porém, dividir a
produção dum roteiro em partes, como seções ou departamentos industriais,
cada um encarregado duma pe-
A informação do número da cena e da tomada (também do capítulo quando se trata de telenovela) vão para um pequeno quadro-negro - claquete - que filmado ou
teipado possibilita, em números, a organização da montagem.
Travelling
Chama-se assim quando a câmera acompanha o personagem, o carro, o cavalo, o avião na mesma velocidade em que se movi mentam. É o plano da ação, o que rompe
a monotonia. Os enlatados norte-americanos, que só têm ação e mais nada, vivem dos travellings.
A câmera é a mão que conduz o espectador para o interior do roteiro. Dependendo da escolha de planos, o roteiro fluirá normalmente ou
não.
Trará alguma novidade narrativa ou não. Mas é trabalho quase exclusivo do diretor, onde demonstra sua criatividade ou impõe sua marca pessoal. O autor só determina o
plano no roteiro quando é necessário ressaltar algum detalhe importante.
Alguns planos mais usados:
Os planos: enquanto assiste a um filme, classifique-os
Plano médio
O mais usado. Quando a câmera foca o personagem da cintura para cima. Também chamado de Plano Americano, que na verdade apanha o ator do joelho para cima.
Panorâmica
Close-up ou simplesmente close
Chama-se assim quando a câmera movimenta-se dum lado para outro, ao contrário do plano geral, fixo. Ela passeia, investiga, descreve o local da ação. É
indispensável nas cenas que envolvem paisagens e acidentes geográficos.
É o detalhe dominando a imagem. Um rosto ou apenas um nariz ocupando toda a tela é um close. Close de orelha. Seio em close. Pavio de dinamite sempre dá close.
O close dum beijo. O abuso do close torna o filme monótono. A tevê usa-o excessivamente para mostrar a beleza de atrizes. Ou para ocultar a pobreza do cenário.
Ponto de vista
Usado para mostrar como o personagem, principal ou não, vê e movimenta-se dentro do cenário. Comum ente os roteiros infor mam: do ponto de vista de fulano ou
sicrano. É um plano que funde personagem e público.
Plano geral (Long-shot)
É o que inclui o cenário e os personagens envolvidos na ação.
Quando se pretende informar onde a cena acontece, usa-se o plano geral. Primeiro uma agência de correio vista por fora, depois uma cena já no interior.
O plano geral informa logo se é dia ou noite e onde a cena vai se desenvolver: praia, bairro periférico, praça esportiva, conjunto residencial, navio.
Num baile usa-se muito o plano geral. Quando o mocinho e a mocinha dançam, não. O plano geral informa onde, enquanto os outros planos informam por quê.
Exemplificando
Panorâmica: A câmera passeia por uma floresta até localizar dois garotos.
Plano médio: A câmera apanha os dois garotos, parados, conversando.
Ponto de vista: Partindo do ponto de vista de um dos garotos, algo se move sobre a vegetação.
36.

Close: A câmera pega em primeiro plano uma cobra. Travelling: Os meninos fogem acompanhados pela câmera. Plano geral: Visão total duma hospedaria onde os
meninos
chegam.
o início e o final das cenas
Corte

É quando a passagem duma cena para outra se faz como se usasse uma tesoura, diretamente e sem antecipação. É o recurso mais adequado para dar ritmo ao roteiro.
Usa-se também o corte seco em meio a uma cena para dar idéia de passagem de tempo.
Escurecimento

Há roteiristas e diretores que preferem o escurecimento (fade in) para mudar de cena, sendo que a seguinte começa com a ilumi nação da imagem (fade out). É um
recurso desaconselhável para filmes em que a ação e o ritmo são essenciais.
Fusão
É a mistura de duas imagens, a nova sobrepondo-se à velha.
É mais usado na tevê ou no cinema para iniciar umflashback. A imposição duma imagem-lembrança sobre o presente.
Dissolve

As cenas podem ser cortadas, escurecidas ou dissolvidas. Dissolver imagens é um processo muito usado na direção de filmes românticos ou poéticos ou para
simular um desmaio. Sua repetição,
cansativa, é desaconselhável.
Freeze

A tevê vem abusando desse recurso: congelamento de imagem, seguido dum corte seco. Os personagens e tudo ao seu redor imobi lizam-se por instantes. O
processo vem se limitando mais ao the end.
Ou
Uma cena pode empurrar a outra até sua focalização total.
Outro recurso do gênero é o rodamoinho em que o último fotograma duma cena gira e desaparece. Ambos, mecânicos demais, cansam depressa pela repetição.
F/ashbac/c: O passado explicando o presente
O flashback é um recurso narrativo ao qual o cinema sempre deu grande importâneia e, quando usado
com acerto, funciona esplendidamente. Justifica-se: a) quando algum personagem lembra um fato; b) quando algum personagem conta a outros fatos que acrescentam
informações ou esclarecem enigmas; c) quando o filme começa pelo final, caso de Lolita, todo ele é um jlashback, a explicação do fim-começo.
O gênero policial é o que mais emprega o ./lashback como recurso narrativo, quando o detetive, testemunhas, suspeitos ou o criminoso, contam como tudo aconteceu.
Certos roteiristas colocam um ./lashback dentro de outro, o que sempre leva à confusão.
Inserts São tomadas, geralmente breves, colocadas no roteiro
para lhes dar clima ou criar expectativas. Uma boneca espetada por agulhas, surgindo sem motivo aparente entre cenas, pode significar feitiçaria ou sua
ameaça. Uma arma que dispara, o risco de morte acidental ou não pairando sobre os personagens. Uma bóia solta no mar, o perigo dum naufrágio.
No filme O homem do prego, inserts-relâmpagos, mostrando uniformes e cruzes suásticas, explicava que o personagem principal fora prisioneiro dos nazistas e vivia
escravizado a suas lembranças.
Às vezes, mais longo, o insert representa a fantasia ou imaginação de um personagem em fuga da realidade. Por exemplo, o náufrago duma ilha deserta que se vê a
bordo dum navio salvador. Um sentenciado que se imagina em liberdade.
Nas telenovelas o insert é usado com a intenção indisfarçável de alongar capítulos: desejos, sonhos ou pesadelos consomem al guns minutos livrando o autor do
compromisso de contar alguma coisa.
37.

8
l~;;
;;~
,

1 com realismo o meio em que vai atuar. Excessivo comercialismo,

o roteirista e quem
mau gosto e protecionismo não são males exclusivamente nacionais.
Muitas Como já aconteceu comigo e com tantos outros, para não perder
I1
uma oportunidade, o roteirista acaba aceitando tarefa que não lhe agrada,
II

:,1:1 '11 1111


11
11
paga a conta útil apenas para fixar-se como profissional no meio cinematográfico.
Mesmo porque alguns especializam-se em trabalhar idéias alheias,
demonstrando capacidade para realizar qualquer tipo de roteiro, segundo
interesses ou preferências do produtor.
Na televisão, o produtor ou coordenador de textos, em suma a
pessoa encarregada de julgar roteiros, nem sempre é um crítico ideal ou
imparcial. Sendo ele funcionário, e não alguém que esteja arriscando
dinheiro, é mais influenciável no sentido de atender a pedidos de amigos,
gente ligada a casa, selecionando entre sugestões e sinopses não as
melhores mas de preferência as assinadas por autores que deseja
favorecer.
Quem decide, portanto, tornar-se um roteirista profissional precisa
Um roteiro é criado em duas circunstâncias: quando o roteirista
ver vezes o novato terá de se defrontar com diretores que possuem o
escreve por prazer ou quando atende a um pedido comercial.
cargo, não a competência. Que lêem por alto todos os roteiros que lhe
No primeiro caso faz um trabalho de que realmente gosta, no qual chegam à mesa ou que já engatilharam seu não, mesmo antes de lê-Ios.
acredita e que o satisfaz artisticamente. No segundo, o artista cede lugar ao Mas a verdade, isso também a experiência comprova, é que a qualidade,
comerciante. Para ganhar dinheiro, faz o que o produtor ou a emissora até quando não muito comercial, acaba se impondo.
manda.
Dessa forma, o roteirista estará sempre se debatendo entre o que
A segunda circunstância é a que lhe dá o pão de cada dia mas é a mais quer realmente escrever, o que permitem que escreva e o que lhe
dramática, a começar do tempo para realizar seu trabalho, sempre limitado e mandam escrever. Os que se dedicam à chamada indústria cultural,
urgente. Quanto ao prazer dependerá certamente de quanto lhe pagarão ... voltada para os meios de divulgação de massa, que envolve grandes
No geral o roteirista, principalmente de cinema, é chamado para verbas e exige retornos comerciais imediatos, têm de aceitar as regras do
escrever uma história cujas linhas gerais já existem. Se se tratar duma jogo, tolerá-Ias, se não quiserem ser rejeitados por ela.
adaptação, melhor, pois seu trabalho partirá de algo concreto: adaptar um Até aqui falamos do produtor, de quem paga, no cinema, de quem
romance ou uma peça teatral. Mas às vezes o produtor tem somente uma contrata, na tevê; mas entre o roteirista e o público há outro agente, muito
idéia vaga do que pretende, apenas o reflexo da vaidade de ter uma história atuante, que é o diretor. Do entendimento entre o roteirista e o diretor é
sua filmada, embora confusa e caótica. É o que acontece mais que nascem os bons resultados. Há diretores que colaboram na bolação e
freqüentemente num país onde se lê pouco e portanto os produtores ignoram redação do roteiro. Sugerem, discli~ tem, acompanham, julgam. Assinei
que a literatura é a mais abundante fonte de argumentos. Os filmes norte- roteiros cinematográficos com diretores que realmente participaram do
americanos, já disse, são na maioria baseados em contos e romances. Aqui trabalho, dividindo a responsabilidade do sucesso ou do fracasso. Bunuel
esse procedimento é mais raro resultando em argumentos feitos às pressas nunca dispensou roteiristas para trabalharem com ele suas idéias, O que
não testados pelo público, para atender a uma tendência às vezes ocasional Fellini e outros diretores ainda fazem.
do mercado.
38.
E mo ou falta de tempo. Se o diretor realmente for capaz de melhorar sozinho ponsável, que trabalha com colaboradores, ou há entre eles uma divisão
ssa o roteiro, às vezes limitando-se a simples cortes, tudo bem. Mas se procede a de tarefas. Certamente a primeira opção é mais aconselhável para que o
união modificações profundas para impor o seu estilo, se o possui, ou muda o roteiro, com a mesma linguagem, apresente harmonia de estilo. No caso
entre curso da história, o resultado será danoso. Um concerto a quatro mãos só das telenovelas a equipe surgiu como uma necessidade de humanizar o
quem funciona quando roteirista e diretor tocam a mesma melodia. Se a melodia trabalho, pesado demais para um só autor, sujeito a estafar-se a qualquer
escre for diferente o grande prejudicado será o roteirista, pois crítica c pÚblico momento. Mais de uma vez fui chamado para substituir novelistas que já
ve e não saberão onde seu trabalho sofreu alterações e até que ponto foi sua a não suportando aos constantes espichamentos de suas novelas paravam de
quem responsabilidade. escrever.
vai Na televisão, tratando-se duma novela, há tempo de sobra para um Mário Vargas Llosa, em seu romance-depoimento Tia Júlia e o
realiz entendimento entre autor e diretor, sempre obrigados a dialogarem sobre os escrevinhado,., fala de um Hovelista de rádio que passava o dia e parte da
ar próximos passos. Nesse gênero uma boa direção resume-se mais em noite debruçado sobre a máquina de escrever sem jamais ter tempo para
nem correção e fluência, pois não há tempo para muita criatividade a não ser nos curtir ou reler uma linha que fosse dos seus inúmeros capítulos diários.
sem- primeiros capítulos, feitos com mais vagar, quando todo esforço é Conheci alguns assim, no rádio, que chegavam a escrever até três novelas
pre concentrado na intenção de agarrar ou surpreender o telespectador. Tudo que ao mesmo tempo, sem merecerem as longas férias que hoje em dia gozam
acont o diretor sabe e do que é capaz coloca nesses capítulos iniciais, sendo que todos os novelistas da televisão.
ece. logo em seguida, devido à urgência da entrega, a novela cai ao feijão com Trabalhar em equipe, no entanto, pode tornar-se tormentoso quando
Na arroz, à simplificação técnica, tornando-se "quadrada", ao contrário do que há um desnivelamento cultural entre os roteiristas. Qualquer personalismo
maior fazia prever o seu começo. ou apego exagerado às próprias idéias retarda ou dificulta a tarefa.
ia das Já nos especiais, teledramas ou minisséries, produzidos em ritmo Melhores resultados obtêm duplas ou trios de autores que habitualmente
vezes menos industrial, a participação do diretor ou seu entrosamento com o autor trabalham juntos.
o é mais evidente. A mão, sombra ou perfil do diretor aparece mais, quase A TV Globo criou há alguns anos uma Casa de Criação destinada a
direto como no cinema. A um diretor de tevê sua escalação para dirigir tais gêneros produzir roteiros, examinar sugestões, adestrar roteiristas iniciantes e
r é um prêmio ou teste de' qualidade. Por outro lado, é durante a redação deles estudar novos formatos de programas. Experiência interessantíssima,
pega que os conflitos entre diretor e autor são mais freqüentes. É fácil imaginar o infelizmente interrompida antes que alcançasse resultados concretos,
o que acontece entre um autor relativamente culto e um diretor simplesmente impossíveis a curto prazo.
roteir intuitivo, mas que no final é quem decide. O que no entanto me parece fora de dÚvida é que o trabalho em
o e equipe, mesmo harmônico, não basta como garantia de qualidade. Torna-o
Tudo que disse teve a intenção de demonstrar que o roteirista não é
alte- apenas mais fácil e geralmente melhor acabado, porém, um homem só, o
um criador livre, sem amarras, como o escritor e o poeta. Ele é um elo de
ra-o criador solitário, é mais ousado que dois ou três trabalhando juntos. Minha
uma indústria, o responsável por uma fase de fabricação dum produto que
segun experiência pessoal me leva a concluir que a equipe se submete mais
será julgado principalmente pelo seu retorno comercial.
do docilmente à rotina, ao que já deu certo, ao que já está estabelecido,
A maior prova de que o roteiro é mais um artefato da indústria
suas rejeitando, pela sensatez, aquelas idéias realmente criativas, inovadoras,
cultural que uma obra de arte está no fato de ser a cada dia que passa um
tendê por envolverem riscos maiores. Duas ou três cabeças pensam melhor que
trabalho de equipe. Nesse caso há um roteirista res-
ncias uma. E é justamente isso, o pensar melhor, que no geral trava a
ou tresloucada, a absurda, a inovadora criatividade.
impro
visa
sem
consu
ltar o
roteiri
sta
por
perso
nalis
39.

9
Para o cinema os romances grandes, calhamaços, sempre dão
péssimas adaptações devido à excessiva sintetização. A intenção aí é mais
comercial, para aproveitar o êxito de algum best seller ou a fama
acumulada de algum romance consagrado. Por outro lado, romances

Adaptação: curtos, novelas, freqüentemente resultam em obras-primas


cinematográficas como Ratos e homens, O retrato de Jennie, Morte em

a quase impossibilidade do Veneza, e Asphalt Jungle (O segredo das jóias), O processo, O


segundo rosto e alguns outros. Nenhum desses é simples resumo, sem

aplauso unânime aquela marca suspeita do "baseado em", significando "parcial adaptação".
Como já foi dito, a medida é importante; um romance adaptado
tem de caber confortavelmente dentro dum filme, minissérie, especial de
tevê ou novelá. Mas essa é apenas a condição inicial, a fita métrica do
alfaiate, o que há de mais fácil para ser explicado.
A verdade, porém, é que não se pode adaptar um romance se-
lecionado pela importância literária. Há obras quase impossíveis de
adaptação, como À procura do tempo perdido, de Proust, embora já
Aqui também o bom-senso é mais importante que tentada, Ulysses, de Joyce, os romances de Virgínia Wolf, quase tudo que
qualquer regra Clarice Lispector escreveu, e milhares de outros. A câmera não tem a
sutileza das palavras. É capaz de criar clima mas sua profundidade não
vai além da pele. Ela pode revelar o sentido duma obra literária, suas
Embora sempre tenha preferido criar a adaptar, tive que fazer inúmeras
intenções, mas não o recheio nem a beleza ou singularidade do estilo. Há
adaptações, desde os tempos do rádio, e não tardei em descobrir que elas
escritores que valem pela forma, pela linguagem, pelo subtexto, não
exigem uma boa dose de criatividade, além dum bom-senso que impõe
contam histórias. Esses não podem ser adaptados para a tela com êxito
verdadeiro desafio à inteligência e técnica do roteirista. Desafio maior
porque sendo ela um veículo de entretenimento, mesmo quando pretende
quando a adaptação é imposta, como encomenda, e não escolhida segundo
não ser, vive de ação, de suspense e de espetáculos.
sua preferência.
Certamente há obras que não se prestam a adaptações cinema- Há adaptadores que, mesmo não transpondo para o cinema toda a
tográficas, devido à sua extensão ou conteúdo, mas podem dar resultado, se ação dum livro, conseguem fazer passar para o público a carga emocional
divididas em capítulo, na televisão. Gabriela, cravo e canela, de Jorge que possuem. Um desses casos é o filme Ragtime, baseado no romance
Amado, foi no cinema apenas uma sombra do livro. Havia muito vinho para homônimo de Doctorow, do qual o adaptador retirou apenas os episódios
um único vasilhame; porém, na tevê, em adaptação de Walter George Durst, principais, como se usasse um bisturi, ligando-os com fios invisíveis, que
coube tudo que o livro tem e deu margem para que o adaptado r pudesse tornaram supérfluos os capítulos rejeitados. Referi-me a esse filme para
inventar magnificamente, já que o romance possui inúmeras histórias exemplificar uma afirmação. A adaptação não precisa necessariamente
paralelas. conter tudo que está no livro. Mesmo livros com muita ação têm capítulos
Conclui-se logo que a adaptação impõe uma questão de medida; monótonos ou vazios. O que importa é que ela seja uma obra inteiriça,
inúmeras novelas, adaptação de romances pequenos ou sem muita ação, não redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta de tempo,
deram resultado. Ao contrário do caso de Gabriela, cravo e canela, havia saltos desconcertantes e buracos entre as seqüências.
pouco material para tanto espaço.
40.
I
A adaptação requer uma planificação mais exigente do que a criação Uma adaptação infanto-juvenil
porque implica numa responsabilidade maior, principalmente quando se
trata duma obra conhecida, passível de confrontos. Poucas adaptações feitas para a tevê fizeram tanto sucesso e foram
Por outro lado a adaptação, mesmo excelente, sempre desagrada os que dela tão contestadas como o da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato,
esperavam uma fidelidade maior. O público que leu o livro deseja vê-lo todo realizada pela Rede Globo, de 1977 a 1986. Apenas não participei do
na tela. Notando falta de uma cena ou dum personagem sem importância, fica trabalho no primeiro ano, formando, a partir do segundo, um trio de
contra. Uns arrogam-se defensores da obra deste ou daquele escritor, e diante adaptadores com Wilson Rocha e Benedito Ruy Barbosa, que logo seria
duma adaptação reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido ou substituído por Sylvan Paezzo, e sempre sob a direção de Geraldo Casé.
modificado. A verdade é que certas adaptações ao pé da letra, fidelíssimas, Depois da escolha das histórias, feita em conjunto com o diretor e
são péssimas. Como o escritor escreveu um livro e não um roteiro de cinema adaptadores, quando se discutiam também novas diretrizes para corrigir
ou tevê, precisa haver adaptação, isto é, uma forma de contar para a tela, na erros passados ou atender melhor às preferências do público, cada escritor
linguagem, ritmo e especificidade que ela determina. Isso implica em mudar escrevia o seu episódio, de 20 capítulos, com um mês de duração. O
ordem de cenas, acelerar certas seqüências, resumir diálogos, valorizar ou ponto de partida, claro, eram sempre os livros de Lobato localizados no
não personagens, eliminar excessos e acentuar as linhas de convergência para Sítio do Picapau Amarelo, onde viviam seus conhecidos personagens.
o final. Repito: fidelidade é apenas uma das virtudes exigidas numa adapta- Após a redação de cinco capítulos, havia nova reunião com o diretor para
ção. Ela, sozinha, resulta em desastre. julgamento da parte já escrita, o que no geral resultava em nova redação
A adaptação boa é aquela que concentra, impactua e afunila a carga de para acerto de linguagem, carpintaria e objetivos. Desta reunião, como da
atrativos dum livro. O romance pode ser lido por etapas, guardado na estante, primeira, participavam uma professora de literatura, especializada no
retomado, relido parcialmente nos seus momentos mais complexos, discutido autor, e uma psicóloga.
com parentes e amigos durante a leitura e, geralmente, tem orelhas Depois de definidos os rumos da adaptação, o adaptador gozava de
esclarecedoras. Se o leitor não entendeu tudo, relê. A segunda leitura é bastante liberdade, no tocante à criação, pois logo se verificou que todos
sempre mais proveitosa. E a terceira ainda mais. A tela, porém, não oferece os temas lobatianos sugeriam diversidade de desdobramento. A intenção
essas vantagens. Tem de prender o espectador logo de começo e desenvolver era a de manter a maior fidelidade possível ao texto e principalmente ao
em 100 minutos uma história que ele leria em dez ou muito mais horas. Para espírito e intenções do autor. Mas a engrenagem dos episódios não podia
o adaptador cada segundo é importante. Esse aproveitamento matemático do ser tão simplificada e retilínea como dos livros, onde tudo acontecia
tempo pode até tornar o filme mais interessante que o livro, no que diz muito depressa, concentradamente. Num só volume do S{{io do Picapau
respeito à movimentação, porém sempre perderá em profundidade. Por isso é Amarelo descobríamos várias histórias distintas, sendo que cada uma
mais comum um mau romance dar um bom filme, que se conseguir o mesmo delas fornecia material para episódios completos de 20 capítulos.
com obras-primas. Essa neccssidade de aproveitamento temático transformou o "a-
A propósito, conta-se que Orson Welles, pegando às cegas um livro daptado da obra de" em "baseado na obra de", pois do contrário o
numa estante de livraria, mesmo sem ler o título, disse que faria dele um programa, Sftio do Picapau Amarelo, não poderia ter longa duração,
grande filme. Tratava-se do desconhecido romance, classe C, A dama de como a criançada de todo o país exigia. Uma simples adaptação atenderia
Shangai, aposta ou proposta que provou mais uma vez a competência de ao espírito saudosista dos adultos, que tinham lido a obra, mas não ao
Welles, capaz de dispensar até bons argumentos. Mas ele gostava também de público infanto-juvenil, cuja maioria só a conhecia pela televisão.
topar desafios inversos, dirigindo obras teatrais ou literárias de difícil Como não estávamos adaptando Lobato para que fosse lembrado,
adaptação para o cinema, como nos casos de Macbeth c O processo. porém divulgado e lido pela nova geração, continuamos a trabalhar suas
histórias desdobrando-as, incluindo novos lances, valorizando
personagens acidentais, criando ganchos, naturalmente ampliando
diálogos, modernizdndo a linguagem, e colocando os personagens
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43.
42.
em face de problemas mais atuais. Tudo isso sempre a partir do que havia na gem cultural, como professores e jornalistas. Daí estar ela exposta a
obra de Lobato, dos seus story-lines, extraídos às vezes de pequenos julgamentos apressados e superficiais, naturalmente injustos.
capítulos ou parágrafos. Toda adaptação é sempre uma tentativa. E nela, mais que num
Era um trabalho divertido e ao mesmo tempo estafante, princi- roteiro original, a participação da direção, da cenografia e do elenco tem
palmente quando o melhor da obra já fora adaptado. Além da experiência um peso igualou maior que o do texto. De nada vale uma adaptação
profissional que enriquecia os membros da equipe, a longa maratona serviu honesta e correta, se o visual e a interpretação dos atores não
também para conhecermos o perfil do entusiástico público infanto-juvenil e corresponderem às sugestões do conto ou do romance adaptado.
dos detratadores do programa, sempre mascarados em defensores da
memória de Lobato, que diziam ultrajada pela adaptação. Logo às primeiras
críticas ficou evidente que esses puristas, na quase totalidade, conheciam
apenas alguns livros do Sitio do Picapau Amarelo, os mais conhecidos, daí
julgarem invenção nossa o que adaptávamos dos demais.
Quando Wilson Rocha fez um episódio intitulado Reinações atô-
micas, a crítica caiu de pau afirmando que Lobato jamais escrevera nada
com esse título, sem ao menos se dar ao trabalho de correr os olhos sobre sua
obra. Morto em 1948, três anos após o final da Segunda Guerra Mundial,
Lobato inserira num dos seus livros um pequeno conto, assim mesmo
denominado, ele que costumava atualizá-los no relançamento de novas
edições.
No caso das Reinações atômicas, mais uma vez, Lobato revelouse
pioneiro, alertando seu público para o perigo da nova arma bélica, mas seus
fanáticos admiradores, que ficaram na leitura de A menina do narizinho
arrebitado, seu primeiro livro, atribuíram a idéia ao desvirtuamento dos
adaptadores. No geral existe um juízo preconcebido contra adaptações.
Enquanto durou, entre aplausos excessivos e críticas azedas, o Sitio
do Picapau Amarelo constituiu para a equipe uma experiência exaustiva no
sentido de se extrair o máximo dum texto. Foi uma escola e uma tortura, esta
agravada pela vigilância dos que consideravam sagradas e intocáveis as
páginas de Lobato. Criticaram-nos até pelo fato de introduzirmos um
aparelho de televisão na sala de dona Benta, quando na obra impressa,
datada de 1930, o homem up-to-date que Lobato era já colocara um rádio,
aparelho raríssimo, mesmo nas capitais, nessa época. E fizera mais, criara
uma repórter radiofônica feminina, a personagem Cléo, figura jornalística
que só 30 anos após apareceria em nosso cenário profissional. Mas Cléo
passou para a crítica como absurda criação nossa.
Quase perplexos constatamos que a palavra adaptação não consta do
vocabulário de muita gente supostamente possuidora de baga-
44.
45.

10
em separar o trabalho do diretor e do roteirista. O diretor melhorou ou
comprometeu o roteiro? O crítico não dispõe do roteiro nas mãos para
avaliar responsabilidades. Preocupa-se com o que está na tela, com os
resultados finais, e não com as fases anteriores a eles. Em suma: deixe

Entrevista (ou mero papo): o os diretores se apavorarem com a crítica.


APRENDIZ - Devo mostrar meu story-line ou meu resumo de roteiro a
aprendiz de roteirista faz muita gente?
VETERANO - Principalmente para um aprendiz mostrar é importante.
perguntas ao veterano Quando se começa a escrever, roteiros, poemas ou romances, sempre
há uma tendência de supervalorização do que fazemos. O genial de
ontem pode ser um lixo relido hoje. Mas não perca tempo em colher
opinião de quem não pode dar, por ignorar a matéria ou por não
desejar magoá-Io. E cuidado também para não se confundir num
mundo de opiniões diversas e conflitantes. Como o roteirista pertence
a uma espécie rara, submeta seu resumo a pessoas que ao menos
convivam com as palavras, como jornalistas, professores,
publicitários.
APRENDIZ - Acha que um bom roteiro pode ser considerado um trabalho APRENDIZ - Sempre fez isso?
literário, artístico? VETERANO - Nunca. Mas não siga meu exemplo.
VETERANO - Respondo com uma pergunta: um mau romance pode ser APRENDIZ - FreqÜentar cinema ajuda?
considerado uma obra literária? Não se preocupe com esse tipo de
classificação, mesmo porque raramente roteiros são publicados. Quando VETERANO - Isso é óbvio. Agora, com o videocassete, que possibilita
li o Viridiana, de Bunuel, me fiz essa pergunta e conclui que sim. Mas na revermos um filme muitas vezes, dá quase para ler o roteiro, após um
verdade o roteiro apenas me lembrava o filme, que já vira diversas vezes. reexame frio. Já na segunda vez você deixará de ser o espectador para
O roteiro só se torna obra de arte depois de filmado. Não espere porém dar lugar ao analista. Sentirá a emoção duma criança ao quebrar um
pelas glórias: caberão ao diretor. brinquedo para ver como ele é por dentro. Verá distintamente as fases
do roteiro. Como o autor preparou suspenses, surpresas e impactos. E
APRENDIZ - O que vem a ser precisamente uma boa história? VETERANO como é que foi afunilando a história, concentrando-a, agilizando-a até
- Para o produtor é aquela que agrada a maior número de espectadores, a que o desfecho. Reassista ao filme uma vez só prestando atenção nos
dá lucro. Seu julgamento é concreto. Para o diretor é aquela que mesmo não diálogos para observar o tempo que o autor gastou com eles e o ajuste
alcançando sucesso popular aumenta seu prestígio no meio. Para o roteirista das palavras à ação. Dosar a quantidade de diálogos, não fazendo
é a que escreveu com prazer, apesar do sucesso ou a despeito do fracasso. deles uma pausa meramente, é qualidade indispensável num roteirista.
APRENDIZ - E a crítica nisso tudo? APRENDIZ - Acho que é um bom meio para aprender. VETERANO - É
VETERANO - Ouça e leia todas serenamente. Às vezes um falso elogio um apoio teórico de primeira, eu diria. Aprender mesmo, só escrevendo e
pode prejudicar mais que uma crítica dura. O chato, em se tratando de reescrevendo. Sobre isso queria lhe dizer uma coisa.
filmes, é que existe quase uma impossibilidade APRENDIZ - Isso o quê?
46.
47.
VETERANO - Sobre reescrever. É uma tarefa exaustiva que você tem de VETERANO - O televisor é um objeto de uso doméstico. Ninguém fica
transformar em prazer. Digamos que no primeiro tratamento o bom é de olhos cravados no desempenho duma enceradeira. Entendeu?
criar, pôr a história para fora. Nos demais descubra o prazer de APRENDIZ - Não entendi.
aperfeiçoar. VETERANO - Um espetáculo de tevê não deve ser monótono mas
APRENDIZ - A gente sempre tem de escrever um roteiro maIS de uma vez? também não pode ser uma correria, algo que exija atenção total.
VETERANO - Ninguém acredita no primeiro tratamento. Principalmente o Quem assiste televisão ouve barulhos da rua, atende a telefonemas,
diretor. Ele acha que a coisa saiu fácil demais e pede um segundo. Na grita com o caçulinha e não precisa atravessar um longo corredor
verdade raramente sai bom. Entre tantos que escrevi só lembro de um escuro para chegar ao banheiro. Se o ritmo do espetáculo for outro,
não o do lar, o espectador perderá um grande nÚmero de cenas e
que foi aceito na hora. Mas é possível que o diretor, era o Fauze Mansur,
acabará não entendendo nada. Ao contrário do que acontece no
estivesse de bom-humor ou com pressa de filmar. No primeiro tratamento
cinema, onde só terá a distraí-lo a mão da namorada, se for solteiro,
sempre escapam detalhes importantes, o que é natural quando a
além de concentrar-se mais na tela porque pagou entrada e porque é
criatividade está solta e a maior preocupação é passar a história para o
para a tela que todos olham, já que o resto é escuridão.
papel, verificar se ela existe, se caminha, se funciona.
APRENDIZ - Na televisão se dá a mesma coisa? APRENDIZ - Não me convenceu totalmente ... Muita gente assiste
filmes pela televisão.
VETERANO - Numa novela, não. Não há tempo para isso. A não ser nos
primeiros capítulos, quando se afinam os instrumentos, ainda hesitando- VETERANO - A televisão pode apresentar tudo: programas, filmes,
se quanto aos rumos a seguir e ao ritmo a imprimir. Mas, nas histórias teatro, balés, esportes. Mas, em relação aos filmes, exibidos em
completas ou minisséries, a exemplo do cinema, faz-se mais de uma horários geralmente tardios, o espectador de tevê assume outra
versão. expectativa. Ele sabe que um filme pede mais concentração que um
capítulo de novela ou de minissérie. Acomoda-se melhor para assisti-
APRENDIZ - Cinema e televisão usam a mesma linguagem? lo ou reassisti-lo, mesmo se tratando duma reprise ou se já o viu no
VETERANO - Não. cinema. E mais: sabe que haverá diversas baterias de comerciais,
APRENDIZ - Mas tanto um quanto outro trabalham com imagens. quando telefonará, irá ao banheiro, lerá sua correspondência ou
curiosamente verá o que está acontecendo noutras emissoras.
VETERANO - Durante muito tempo pensei que poderia usar na APRENDIZ - Acho que entendi.
televisão a mesma linguagem dinâmica do cinema. Eu e outros roteiristas, VETERANO - Se não ainda, vai aí um reforço. Programas de televisão
rebelados contra o ritmo demasiado lento das primeiras telenovelas que podem ser assistidos com meia atenção. Por isso pedem um ritmo
lembravam as radionovelas. Crendo nisso escrevi em 1968 uma mais lento. Essa observação, feita por muita gente por ocasião do
minissérie de 20 capítulos, Os tigres, na TV Excelsior, que além de ser lançamento de Os tigres, determinou outra alteração substancial. A
quase toda gravada em externas, o que se fazia pela primeira vez, tinha linguagem também mudou.
diálogos brevíssimos e cenas que se sucediam velozmente. A crítica
aplaudiu, o pÚblico não, o que me surpreendeu porque Os tigres tinha de APRENDIZ - A linguagem? Os diálogos quer dizer? VETERANO - O
tudo para agradá-lo. Fiquei cabreiro e tirei algumas conclusões que espírito, o caráter, ou como queira chamar, dos diálogos.
resumi numa só: televisão não é cinema.
APRENDIZ - Explique isso. APRENDIZ - Explique isso.
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49.
VETERANO - Para fugirem ao dramalhão radiofônico, palavroso, os autores são artística de muitos povos. Nos seus 80 anos de existência já deu
dos anos 60 começaram a fazer diálogos enxutos, breves, apenas muitos gênios. A produção de tevê é feita mais para consumo
conduzindo a ação, como os cinematográficos. O moderno era ser imediato. Diria que ela não inova, acompanha as inovações. É mais
conciso, dizer o essencial. Antes diálogos secos que derramados. Parecia ligada a hábitos que a prazeres, e raramente leva a pensar pois seu fito
ser a fórmula definitiva. Mas isso durou pouco. A brevidade da é entreter, bolir com emoções. Quanto às novelas, apesar da extensão
dialogação queimava logo as cenas e exigia excessiva criatividade. de suas sinopses, são obras semiplanejadas, abertas, um constante
Nasceu então o diálogo mais íntimo, mais pessoal, mais humanizado, rascunho como disse certo diretor, sujeitas a alterações ditadas pelas
mais truncado como no cotidiano, menos formal, menos contido, menos pesquisas ou impostas pela censura.
óbvio. Diálogos que explicassem melhor o personagem, que os APRENDIZ - Atribui maior valor aos especiais e minisséries?
soltassem, os revelassem por inteiro. Foi aí, já na década de 70, que se
VETERANO - Sem dúvida, porque obedecem a um planejamento rígido,
definiu melhor o roteiro de tevê como estilo, como jeito de ser. Lembro
mas esbarram numa barreira, o custo da produção. Numa novela de 150
dum diretor que me disse: não escreva tão corretamente os diálogos, suje-
os bastante, use a linguagem do dia-a-dia. capítulos o custo se dilui, é atenuado pelos merchandisings, os
comerciais disfarçados, e oferece às emissoras a grande vantagem de
APRENDIZ - O que o cinema não faz. preencher horários. Daí eu duvidar de que venham a desaparecer num
VETERANO - Não faz porque tem de ser rápido para que tudo caiba nos futuro próximo.
seus 100 minutos. A televisão procura ser, mais que o cinema, um reflexo APRENDIZ - Falemos sobre coisas objetivas: como devo começar a
da vida, vive mais de detalhes, de fatos corriqueiros. Seus personagens escrever meu roteiro?
param freqüentemente nos bares, restaurantes, saguões de edifício e estão
sempre na cozinha. Lugares onde a vida diária pode ser flagrada, VETERANO - Esquecendo tudo que possa ter lido em livros que
esmiuçada. Foi o jeito encontrado de estreitar o contato com o público, ensinam as regras básicas. Uma página em branco sempre assusta.
antes só interessado em grandes tragédias. Está percebendo melhor a Muna-se de coragem e comece. Se as primeiras páginas não lhe
diferença entre o cinema e a tevê? agradarem, rasgue-as e comece de novo. Não perca tempo em corrigir.
APRENDIZ - Estou. A tevê tenta pôr o próprio espectador na tela. Deixe isso para depois. Vá em frente. Solte-se, descontraia-se. Faça
de conta que já sabe de tudo. Não se intimide. Criar é um ato de
VETERANO - Isso mesmo. Ela procura humanizar ou banalizar o
ousadia. Guarde a paciência do revisor para mais tarde. O primeiro
personagem a ponto de criar uma identificação maior com o espectador. É
tratamento é um vale-tudo, um borrão. Coerência, concisão e
onde ela funciona melhor: nos aspectos menores da vida, incrementando o
equilíbrio ficam para os próximos tratamentos. Mesmo assim não
charme banal do cotidiano. O cinema, com sua tela panorâmica, onde o esqueça no tratamento inicial de enumerar as cenas ou seqüências,
plano geral não se perde, pode transmitir dramas mais coletivos, abrangendo determinar se é dia ou noite, se a filmagem ou gravação será interna
uma fatia maior da sociedade. ou externa, dando já uma moldura ao roteiro para que o seu não seja o
APRENDIZ - Mas o que o cinema faz, repercute mais e é lembrado por mais rascunho de um conto ou de peça teatral.
tempo. Artisticamente tem um valor maior. APRENDIZ - E se mesmo após o segundo tratamento o roteiro ainda não
VETERANO - Evidente. Um filme é obra mais planejada, mais cara e tem me agradar?
melhor acabamento. Não dizem que é a sétima arte? A literatura já imitou VETERANO - Há uma diferença em não agradar e estar correto mas de
o cinema, quanto à técnica e ritmo. É uma linguagem assimilada pela má qualidade.
cultura mundial e um meio de expres-
APRENDIZ - Digamos, que continue sem qualidade. VETERANO -
Neste caso a solução é a gaveta. Abandone a idéia e comece outro roteiro.
Há uma distância entre gaveta e arqui-
50. I
vo. Muitas vezes você ainda trabalha, mentalmente, o que está na gaveta. servavam uma surpresa final, a da última página ou parágrafo, que
Um dia poderá descobrir onde se localizam seus defeitos e reescrevê-Io. sacudia o leitor. O fecho de um roteiro não precisa necessariamente
Quanto melhor a idéia, mais difícil a execução. apresentar uma grande surpresa, um logro para a platéia, à maneira do
APRENDIZ - Com você tem acontecido isso? contista francês, mas não pode deixá-Io insatisfeito, no vazio, com a
testa enrugada.
VETERANO - Não com roteiros, mas com contos e romances. Tenho um
APRENDIZ - Como acontece com os enlatados.
conto, "Traje de Rigor" , que ficou anos na gaveta. Quando tive a idéia
não estava ainda capacitado para escrevê-Io. Mas não foi o único caso. VETERANO - É verdade. A maioria deles termina sem explicar direito a
Isso acontece à maioria dos escritores. solução de enigmas apresentados. Nunca se sabe como o detetive
APRENDIZ - Mas se se trata dum roteiro encomendado ... VETERANO - chegou à conclusão que fulano de tal era o assassino. Resolvem tudo
Aí terá de entregá-Io dentro do prazo mesmo se não estiver satisfeito com com uma piadinha sem graça.
ele. Pode ser que o diretor descubra os defeitos do roteiro. O cansaço às APRENDIZ - Os enlatados, principalmente policiais, são de lascar.
vezes impede o roteirista de ver as coisas claramente. O pior é quando ele só Parece até que os roteiristas são muito mal pagos.
vai perceber os pontos fracos, as deficiências, quando assistir ao filme.
VETERANO - Mas nem sempre o final é um final de verdade. Para mim
APRENDIZ - Aí não há remédio. são os melhores.
VETERANO - Às vezes há: pôr a culpa no diretor ... APRENDIZ - Meu APRENDIZ - Como assim?
maior receio é escrever um roteiro que conte VETERANO - Gosto dos finais que marcam o início duma nova
história muito manjada, parecida com centenas que rolam por aí. situação. Desses em que o espectador pergunta: e agora? O filme
terminou mas a vida não. Os personagens terão que enfrentar novos
VETERANO - Não se tratando dum plágio, aliás comum na tevê, o pecado
problemas como conseqüência natural dos que foram resolvidos. São
não é tão grave. Um enredo original é raridade, mas nem sempre
os finais adultos. Se um dia escrever um roteiro assim, me deixe ler.
significa sucesso ou boa qualidade. A procura obsessiva da originalidade,
o desejo de ser diferente, de criar algo de novo, leva freqüentemente a APRENDIZ - E os finais dos velhos filmes de Hollywood? VETERANO
enganos e exageros. O l1Ol1sense na comédia é uma boa, porém noutros - Eram dum primarismo que hoje faz rir. Noventa por cento deles
gêneros chega a ser burrice. E o original compulsivo no geral pende para terminava num beijo. O mocinho e a mocinha sempre casavam-se, como
o absurdo. Não se meta logo a princípio na busca do ouro. Preocupe-se se o casamento fosse a chave geral da felicidade. Bons e ingênuos
mais em assimilar a técnica do roteiro, a contar histórias que deslizem tempos. Os filmes de cowboys também não apresentavam problemas, já
normalmente, sem tropeços, buracos e incongruências. Correção equivale que o ápice do roteiro colidia com o fim, quando bons e maus resolviam
a talento nessa profissão. tudo num empolgante tiroteio. A variante era um duelo-solo entre o
APRENDIZ - Acho que meu roteiro começa bem mas acaba mal. mocinho e o bandido.

VETERANO - Convém reescrever muitas vezes essas duas pontas. APRENDIZ - Cada gênero tem um determinado tipo de final?
Mas o final realmente é mais difícil porque exige maior responsabilidade. VETERANO - Bem, qual é o melhor meio de terminar uma comédia a
Muitas vezes ele é a explicação de toda a história, a resposta para muitas não ser com uma situação ou piada que provoque gargalhada? O certo é
perguntas pendentes. Qualquer precipitação aí pode tumultuar o desfecho. que, seja qual for o gênero, o final não pode frustrar o espectador. Pode
Por outro lado o final esperado, justamente o que o telespectador irritá-I o com uma saída que ele não esperava: a morte do galã.
adivinhava, também frustra o espectador. Já leu Maupassant? Seus contos Aborrecer, contrariar o espectador, é até saudável. Mostra que o autor não
invariavelmente re- se submete ao gosto da maio-
51.
ria. Mas, contrariando-o ou não, o importante é que o final não revele VETERANO - Quando não imposta pela direção, unindo profissionais
desorientação do autor, indecisão, incapacidade de manter um nível de de tendências diversas, uma dupla sempre rende bem. Pior,
coerência, confusão mental, forçamento de barra ou desinteresse em degradante, era a solução antiga do ghost-writer.
terminar bem uma história por já ter chegado ao final. APRENDIZ - O que é isso?
APRENDIZ - Mas dizem que é no meio que se põe a arte ... VETERANO - VETERANO - Ghost-writer, escritor fantasma. Ele não era obrigado a
Pode ser, mas é nas pontas que o artista mostra que sabe o que faz. Que usar lençol, mas proibiam-lhe mostrar-se à luz do dia, nos estúdios e
mereceu sua inspiração. corredores da emissora. Seus serviços, urgentes, eram cOJ.1vocados
quando o autor, estafado, pifava ou perdia totalmente o pique da
APRENDIZ - Parece que no corpo deste livro há um momento que você se
novela, o motivo mais comum. Nesse caso o substituto, ghost-writer,
rebela um pouco contra o espírito de equipe. Isso de trabalhar em grupo.
não assinava nem como parceiro, porque o autor e a emissora não
VETERANO - Eu até já participei de um ou outro brain-storming bem- permitiam, receando que a notícia da substituição pudesse desacreditar
sucedido. Mas nem sempre se reúnem várias pessoas criativas ou a novela. Isso foi ontem. Mais tarde o tempo provou que o público não
sensatas em torno duma mesa. Às vezes a opinião que fica é a de quem se fixa em autores, trabalhem sozinhos ou em equipe, atento aos
fala mais alto. E os menos dotados são sempre os mais convictos, os que ganchos do folhetim e nos seus atores. Além disso a consciência
defendem com mais veemência seus pontos de vista. Porém o que eu profissional acabou se impondo e retirou do ghost-writer o lençol que
disse foi outra coisa. Disse que o criador solitário é mais ousado, mais ocultava seu talento sempre menor que seu relacionamento de
talentosamente inconseqüente. O grupo fixa-se nos riscos que uma id~ia bastidores.
original apresenta, no interesse da emissora em agradar a todos, no
APRENDIZ - Já assisti a especiais de tevê e a seqüências de novelas
perigo que representa trilhar um caminho novo, sempre baseado nos se-
evidentemente furtadas de romances, filmes e peças teatrais. O plágio
guros resultados obtidos pela rotina. Por isso, em matéria de tevê, é mais
é comum no veículo?
fácil uma emissora pequena aceitar uma idéia nova, arriscando-se, do
que uma grande emissora cuja estrutura não pode ser abalada por VETERANO - Sim, porque sendo a produção de tevê feita para o
fracassos. Mas, evidentemente, o cinema é um campo mais propício para consumo imediato, descartável, apesar das eventuais reprises e da
experiências ou aventuras da criatividade, pois está em mãos de venda de teipes para o exterior, certos autores consideram o pecado do
produtores independentes, não ligados a grandes empresas. O fracasso plágio acidental e tão instantâneo, destinado ao esquecimento, que
financeiro de um filme não causa terremoto. ninguém se dará ao trabalho de comprovar. Sabem também que o
grande público não lê e raramente vai ao cinema, portanto ignora as
APRENDIZ - E o que sucede quando um grupo de roteiristas é incumbido
fontes. Quanto aos cronistas especializados, que eu saiba, jamais
dum seriado?
acusaram roteiristas de plágio e não creio que por solidariedade. Para
VETERANO - Se cada roteirista se incumbir de sua história, escrevendo os roteiristas honestos isso representa perigo, pois seus concorrentes às
uma por mês, por exemplo, acho boa solução. O rodízio provocará uma vezes se chaman Theodore Dreiser, Balzac, Scott Fitzgerald, Agatha
espécie de competição entre eles, ao mesmo tempo que promoverá a Christie e outros cujas obras costumam ser visitadas por espertos
uniformização de linguagem e procedimento dos personagens. Tratando- playwriters nacionais.
se de seriados não há nada melhor. APRENDIZ - Qual a importância da trilha sonora numa produção de
APRENDIZ - Funciona igualmente a redação em dupla? cinema e tevê?
VETERANO - Chega a ser decisiva. Desde os primeiros tempos do
cinema falado que o fundo musical tem grande importância. Há filmes
que ainda são lembrados apenas pela música. Não sei
53.
52.
se sem "As time goes by" Casablanca ainda seria tão lembrado. Duvido. pecialidades diversas. Desistiram ou tiveram de assimilar a nova
A música é melhor conduto de nostalgia que as imagens. Nada melhor técnica. Suponho que com os roteiristas de comerciais, redatores de
agência, se dê a mesma coisa. O cinema não vive de imagens
II1
para lembrar uma época. A nossa chanchada foi o que foi devido grande
parte à música. Já o pomõ não soube explorar trilhas sonoras e talvez nem essenciais, objetivas; nas divagações, aparentes vazios, às vezes está o
o Cinema Novo. Nesse particular as novelas lavraram um tento, graças, é seu valor.
claro, à sua extensão. Seis meses é tempo de sobra para o público fixar-se
APRENDIZ - O que desanima um pouco um aprendiz como eu é pensar
numa trilha sonora. Confesso que acompanhei diversas só para ouvir
que tudo já foi feito. Veja as novelas, como se repetem.
certas músicas ainda não lançadas em gravações. A trilha sonora é tão
importante que, em quase todo capítulo de novela, há um momento em VETERANO - Essa impressão de mesmice, saturação, é causada pelos
que a ação cessa, entra em vazio, para destaque dum número musical que que realmente mandam, pelas cúpulas. No cinema e na tevê inovar,
vai capitanear seu long-play. Um merchandising não desagradável como partir para outro caminho, é sempre um risco. Principalmente em
os ostensivos da propaganda de eletrodomésticos, margarinas e relação à tevê, onde há mais executivos que criadores. Quando a tevê
detergentes. trocou o dramalhão rural e o romantismo piegas pela dramaturgia
APRENDIZ - Há roteiro para clips? urbana e atualizada, deu-se por satisfeita em matéria de modernização.
Embora veículo de invenção recente, ela segue à distância as
VETERANO - Nem sempre. O clip é trabalho de diretor. Aliás, no geral,
conquistas ou inovações da literatura e do cinema.
detesto-os porque impõem um visual que o espectador prefere imaginar.
APRENDIZ - Isso porque o público não aceita produções mais ousadas
A música é como pintura abstrata, que para cada um tem sentido ou
ou mais profundas?
expressão particular. Provoca lembranças íntimas e pessoais cujas
imagens não coincidem com aquelas que o diretor projeta, usando dos VETERANO - Mas também diziam que o público não aceitaria histórias
recursos que tem à mão. O clip invade o mundo particular do ouvinte- que não fossem um vale de lágrimas. A novela-comédia porém pegou
espectador numa tentativa de colocar seu diretor acima do compositor. A facilmente. Modéstia à parte, eu já acreditava nisso e escrevi em 1975,
gente só pode apreciar um clip se for indiferente ao número encenado. na Globo, a que lançou essa inovação. Também não acreditavam que
Ele parece destinado a comprovar que a música atual não se agüenta heróis safados, anti-heróis, pudessem conquistar o público. E hoje eles
sozinha, precisa de apoios exteriores. pululam ... O mesmo se pode dizer das ingênuas que encabeçavam os
APRENDIZ - E os comerciais? elencos, hoje uma espécie em extinção. Com isso quero dizer que o
público não é tão rotineiro como se pensa nem tão resistente a
VETERANO - É sem dúvida o que há de melhor na tevê, pois são novidades, pois ele se renova constantemente. Mais difícil, às vezes, é
produzidos sem pressa nem economia, obedecendo a uma meta vencer a resistência dos que selecionam idéias, sugestões, sinopses e
específica: a publicidade. A limitação de tempo, 30 ou 40 segundos, roteiros. Por outro lado, começam a aparecer produtoras
restringe o filme publicitário ao essencial, o que já é quase uma garantia independentes, que, além de ampliar o mercado para o roteirista, serão,
de qualidade. Mas não são escritos por redatores estranhos ao meio quem sabe, mais interessadas em propor novos caminhos e mais
publicitário, e sim por pessoas que conhecem e acompanham os dispostas ao estudo de idéias menos gastas.
problemas de marketing dos clientes de suas
agências. APRENDIZ - Será também mais fácil entrar em contato com uma
APRENDIZ - Acha então que redatores de comerciais dariam bons produtora independente que com uma grande organização.
roteiristas de cinema? VETERANO - Sem dúvida, pois nela, por ser pequena, sabe-se logo quem
decide.
VETERANO ~ Alguns diretores bem-sucedidos em comerciais dedicaram-
se mais tarde ao cinema. Logo descobriram que são es- APRENDIZ - Nem sei mais o que perguntar.
55.
54.
Você tem uma história que supõe boa, já submetida à apreciação de diversas desordem geral. Dessa forma eliminou-se a cena de
pessoas. Trata-se agora dum problema de prancheta, como dizem os pu-
blicitários quando tudo foi discutido e só resta verificar como a idéia ficará tória fica melhor narrada duma forma acadêmica, como Polansky sempre
em termos de ilustração. A discussão terminou, passemos à realização. faz, não recue. O mais original sempre é a personalidade do autor, é o
Chega de abstrações. Ponha o papel na máquina: Seqüência 01, local, dia ou que marca, não o abuso leviano de recursos técnicos.
noite, externa ou interna, e: Para fazer o roteiro crescer no final, afunile a história, faça com que
Cuidado com cenas vazias, todas têm de dizer alguma coisa. Trate de todos os pontos convirjam para um só. Acelere. Mas o difícil é
definir logo o personagem, a não ser que haja a in- concentrar sem saltos nem precipitações. Um começo pode ser obscuro,
tenção de envolvê-lo em mistério. um final não, mesmo quando ele deixa uma pergunta ou um problema
Evite cenas longas, cansativas. para o espectador pensar em casa.
Sempre mostre, numa geral, onde está acontecendo a cena. A não ser por uma necessidade imperiosa da história, diversifique os
Se for no mercado, uma visão geral do mercado. ambientes das cenas para não saturar imagens e criar monotonia. A
Se seu personagem é um operário, faça-o falar como um operário. mudança de ambiente sempre desperta novo interesse no espectador.
Corte as palavras desnecessárias. Não crie personagens psicologicamente semelhantes, isso anula
conflitos.
Não explique excessivamente o que está acontecendo. O óbvio esvazia
VETER Não se preocupe se o primeiro tratamento ficar muito extenso; pior se
ANO - a emoção.
ele não tiver o que cortar.
Seu caso Não use palavras nas cenas em que a câmera pode contar tudo Terminado, releia o roteiro. A história desliza sobre rodas ou sacode
é o de ir claramente. Ela é o narrado r principal. toda, entrando e parando em buracos e desníveis? Segue um curso reto,
em Se uma cena de ação vai criar proDIemas, faça a câmera focalizar o desimpedido, ou perde-se em desvios e becos sem saída?
frente. após. Exemplo: alguém entra em casa e encontra os móveis numa
Escreva com uma naturalidade cautelosa. Nem euforia nem temores.
APRENDIZ - Sem mais recomendações?
VETERANO - Há dezenas de outras. Mas fiquemos por aqui, pois é mais
difícil escrever um bom roteiro do que um livro para ensinar como é que
se faz isso.
ladrõe m, não tenham uma atuação definida.
s Mas procure marcar, dar realce, a qualquer personagem. A careta dum
revolv figurante pode valorizar uma cena.
endo Não esqueça de registrar os planos principais. Se a cena requerer um
tudo à dose, para detalhar, ou um plano geral, para ambientar, escreva. Um
procur descuido do diretor, nas circunstâncias citadas, pode prejudicar o roteiro.
a de Atenção com as histórias paralelas: precisam ter uma ligação
valore inequívoca com a história principal, mesmo quando não aparente.
s. É Não se precipite nas cenas decisivas; procure extrair delas o máximo
uma de dramaticidade ou hilaridade. Uma cena bem lograda, inteira, perfeita,
forma às vezes basta para garantir o sucesso dum filme ou para permanecer na
de se memória do público.
ganhar
Não confunda moderno com modernoso, isto é, o que está na moda,
tempo
tido como avançadinho por pequenos grupos. Se a his-
e criar
surpre
sas. O
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violên
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77
56.

11
sozinha na divulgação de produtos comerciais. Nem ela nem os bondes ...
Mas transmItIr apenas músicas gravadas, notícias e jogos de
futebol não incrementava a concorrência entre as emissoras, que em
seguida contrataram conjuntos regionais, orquestras, cantores e mais tarde
Memorial ainda não- autores e radioatores. Pode-se dizer que a partir do final da década de 30,
excluindo-se o poderoso rádio norte-americano, apenas o mexicano e o
computadorizado argentino rivalizavam-se com o nosso, porquanto o europeu, estatal, no
geral meramente informativo ou decididamente cultural, sem os estímulos
da competição comercial, era elitista e cristalizado.
Como o número de programas ao vivo superava o de discos,
diversificaram-se, exigindo roteiristas especializados para cada gênero:
autores de radionovelas, de programas humorísticos; redatores de roteiros
o rádio: a primeira No Brasil, os primeiros roteiristas pro- musicais, de programas femininos, de aventura para a infância e
escola de fissionais surgiram no rádio, quando juventude, de crônicas, e de audições mais trabalhadas que aglutinavam o
roteiristas noutros países já proliferavam no cine- elenco de radioteatro; orquestra, cantores, narrador, com trilha musical
ma e no music-hall. Nossa indústria de feita especialmente para cada audição; eram os chamados programas
entretenimentos é pois relativamente recente. montados, cartões de visitas das principais emissoras, como os Vai da
Antes do advento da televisão, enquanto nosso cinema, heróico e valsa, O edif((;io balança mas não cai, Rádio-almanaque Kolynos,
desarvorado, ainda vivia de raras aventuras pessoais, o rádio já adquirira o Meu filho, meu orgulho, Honra ao mérito, O mundo gira, Tribunal do
status de indústria, contratando autores especializados na produção de tempo, PRK-30 e muitos outros.
scripts - a primeira palavra estrangeira a circular desinibidamente pelos Hoje, à distância, podemos afirmar que os programas montados,
estúdios radiofônicos. humorísticos, uma seqüência de esquetes sobre o mesmo tema ou não,
O autor de scripts era chamado de redator, talvez porque a maioria sempre com os mesmos personagens ou não, do tipo O edi!feio balança
viesse da redação de jornais, enquanto outros, em menor número, chegavam mas não cai, foram as produções radiofônicas mais típicas do veículo, de
ao rádio das agências de publicidade, mirante donde se podia acompanhar a melhor qualidade, e alcançaram incrível repercussão popular, graças ao
rápida evolução do veículo. uso da linguagem do momento - em contraste com as radionovelas -, as
O fato é que desde o tempo do rádio em formato de igrejinha, últimas gírias cariocas, como também à criação de tipos extraídos do
vendidos após longos períodos de experiência na casa dos interessados, o cotidiano, repetidores de bordões (você que é feliz, primo; há sinceridade
público se encantou pelo misterioso aparelho. O rádio entrou logo em todos nisso?; vamos combinar outra coisa) que, uma vez lançados no programa,
os lares, aclamado como espetáculo permanente e gratuito das classes menos conquistavam o país. Nesse setor, o humorístico, podemos afirmar
privilegiadas. Em seguida atrairia a verba crescente dos patrocinadores. As tranqüilamente que a televisão, apesar de seus recursos e da transmissão
agências de propaganda criaram então seu Departamento de Rádio. A em rede, jamais aproximou-se daqueles êxitos mesmo ao relançá-Ios no
imprensa já não estava vídeo, redigidos pelos mesmos autores.
Outro prato forte do rádio, embora apenas do agrado do público
feminino, foram as radionovelas, que obedeciam à técnica dos folhetins,
seu contemporâneo, copiando também sua linguagem empolada, espécie
de sucata verborrágica do século XIX, engrossa-
58.
57.
da por falas longas ("bifes") e artificiais, praga lingüística que assolou por estáticos. Em externas, nem pensar.
três décadas a inculta América Latina.
A bem da verdade, no entanto, coexistiam com os noveleiros alguns
mal-sucedidos inovadores, que mexiam na forma e no conteúdo da
radionovela, optando por diálogos mais breves e cotidianos, inspirados pelo
cinema, mas sem resultados positivos porque o povo já se habituara ao velho
xarope; e as agências de publicidade, vigiando o interesse dos
patrocinadores, não encorajavam a mudança de rumos da vitoriosa ópera de
sabão (soap opera).
Como se vê, mesmo na pré-história da profissão de roteirista já
existiam os que apenas repetiam as fórmulas de sucesso, jogando na certa, e
aqueles que se aventuravam a nadar contra a correnteza. Alguns -destes,
marginalizados e tidos pejorativamente como intelectuais, foram, mais tarde,
os que melhor se adaptaram às exigências do novo veículo, a televisão.

Quando nos anos 50 apareceram as primeiras emissoras de televisão,


alguns programas de rádio

o telerrádio: a imagem
como simples decoração

_ os de auditório - começaram a ser televisionados, mas sem roteiros


especiais. Programas que tanto podiam ser ouvidos quanto vistos, pois a
imagem era apenas decorativa, não orientada por anotações técnicas. Mais
serviam para treino de cameramen e de selecionadores de imagens.
Um pouco mais tarde, já nos estúdios, a televisão apresentava seus
primeiros programas de teleteatro, em São Paulo o Vanguarda, e no Rio o
Câmera 1, a princípio com peças teatrais na íntegra,
não-adaptadas.
Esgotando-se o estoque dessas peças, a solução imediata foi
a adaptação de contos e romances, dando início assim, nas duas capitais, à
produção dos primeiros roteiros de televisão propriamente ditos. A página de
redação corrente dividiu-se em duas parteJ, áudio e vídeo, dum lado a
movimentação de câmeras e personagens,
de outro os diálogos.
Desfazia-se aí o parentesco entre a televisão e o teatro, pelo menos na
apresenta~ão dos scripts, pois como os espetáculos eram ao vivo, antes da
invenção do teipe, jogavam com poucos cenários, permanecendo paradões,
No do açougueiro gordo e desajeitado (Marty) que não arranjava namorada, da
entanto, mãe (The mother) que rejeitava a proteção dos filhos ou duma despedida de
limitaçõe solteiros (Bachelor party) que resultava em melancolia e fracasso.
s também Como um anti-Cecil B. de MilIe, não contando ainda com o recurso
criam multiplicador do teipe, Chayevesky pôs seu ovo de Colombo de pé ao fixar-se
estilo. O em histórias duma simplicidade linear, retratos de personagens comuns e
gênio mergulhos em situações do cotidiano, tudo com tal humanidade e acerto que o
desse pe- cinema o convocou e consagrou. Em São Paulo, principalmente, Chayevesky
ríodo serviu de modelo a inúmeros roteiristas que se iniciavam no ofício.
experime
ntal da
o teipe muda tudo Nenhuma novela lançada antes do tei-
tcvê foi o pe teve a repercussão de um programa como O
norte- céu é o limite, por exemplo, lançado em 1956, na TV Tupi, a princípio em
american estúdio e logo depois lotando o auditório da emissora. Baseado num programa
o Paddy norte-americano chamado Quarenta mil dólares (nunca houve nos Estados
Chayeves Unidos um The sky is the limit, como o próprio Assis Chateaubriand supunha
erroneamente) foi rebatizado em São Paulo, pela Standard Propaganda, cujo
ky, que,
diretor lembrara uma frase insistentemente repetida na peça Anjo de pedra, de
acomoda
Tenncssee Williams.
do na
estreiteza Redigi perguntas e respostas desse programa durante poucos meses e
do ainda rio ao lembrar dos gênios que por ele passaram. Pelo menos os que
veículo, atuaram no meu tempo não competiam com os computadores modernos.
passou a Simplesmente perguntava-se a eles o que, em entrevista prévia, já se sabia que
escrever conheciam bem. E por que derrubar do pedestal facilmente personagens que
teleplays carreavam audiência sem constar da folha de pagamento da emissora?
de Inúmeras vezes O céu é o limite e programas iguais, com outros nomes,
movimen foram apresentados mais tarde, sem obterem um décimo do êxito inicial. Foi o
tação maior sucesso da televisão brasileira antes do teipe, apesar de sua nenhuma
reduzida, criatividade e do formato quadrados
cuja
caracterís
tica
fundame
ntal era a
abordage
m de
temas
doméstic
os,
miniatura
s
dramátic
as sem
com-
plicações
, como o
drado. alidos.
59.
Câmer Mas o teipe mudou tudo, talvez a televisão tenha começado a partir
as dele. O que existira antes fora a lanterna mágica doméstica. E seu grande era bom para o Brasil, e estava falado. Mudar podia não ser benéfico às
fixas, prodígio foi trazer de volta a novela, modalidade que se supunha morta e vendas. Rendo aqui, pois, homenagem a alguns roteiristas daquele período,
cenan enterrada. Aqui as primeiras eram argentinas e cubanas, algumas adaptadas como Oswaldo Moles, Túlio de Lemos, Walter George Durst, Mário Lago e
os do rádio, como O direito de nascer, dramalhão de repercussão continental, e alguns outros, que nunca aceitaram o receituário imposto de fora para
chapa dentro, à procura duma expressão criativa mais livre e mais próxima de
Redenção, esta brasileira, que permaneceu dois anos no ar, recorde
dos e nossa nacionalidade.
imbatível de permanência.
de Parecia que as telenovelas, devido a seu início radiofônico,
interpr permaneceriam com temas e linguagem folhetinescos, o que felizmente não
etação aconteceu. Logo se modernizariam. Deveu-se essa guinada ao fato de se
só a tornarem caras demais para um único patrocinador, e patrocinadas por vários E depois? Depois do teipe veio a cor. Se o teipe acelerou o rit-
dos escaparam ao controle de empresas multinacionais ou de suas agências de mo das telenovelas e programas em geral de tevê, a cor
candid publicidade, que não admitiam novas idéias e novos rumos para as veio valorizar cenários, guarda-roupa, adereços e maquiagem, simplificados
atos no preto e branco. Um alterou a dinâmica, a outra atuou no visual.
telenovelas. Para essas firmas estrangeiras, há decênios patrocinando soap
quand Daí a quase-conclusão de que na tevê quem comanda é a técnica. Um
operas, o público latino-americano era um só e estava fadado a gostar
o novo invento, como televisão em tela grande, para fixar na parede, já em
eternamente das mesmas coisas.
repres fase experimental, pode gerar programas diferentes e acabar com outros,
Eram tempos em que um Mister qualquer, com as pernas sobre a
entava hoje produzidos. Talvez a novela, como se faz agora, não se enquadre na tela
escrivaninha, falando maIo português, examinava as sinopses que as
m não panorâmica, empobreça, surgindo produtores independentes, em maior
emissoras lhe enviavam, ou o próprio autor, e sem nenhuma preocupação
lembra número, dedicados à produção de filmes. Pode até haver um ponto final para
com qualidade ou renovação, escolhia entre elas sempre a mais apelativa, a
r as os roteiros de tevê, voltando a época do teleteatro, já que o grande público
respos que tivesse mais concessões ao mau gosto, com receio de que, modernizadas,
desconhece o que o teatro fez em mais de 2 000 anos de existência.
tas, ou pusessem em risco a audiência e vendessem menos produtos. A preferência, a
última palavra, recaía comumente em favor das novelas escritas em Toda a produção do rádio, milhões de toneladas, foi para o lixo. A de
do tevê, nos moldes atuais, pode ter o mesmo destino. Por outro lado, as
aprese castelhano, as quais além de proporcionarem uma viagem de turismo
transmissões a cabo, que ainda não chegaram ao Brasil, especializadas e
ntador, comercial eram adquiridas - segundo a expressão de um desses senhores que
limitadas a audiências menores, exigirão mais roteiristas quem sabe para
ao conheci - a preço de banana.
satisfazer a uma parcela da população mais intelectualizada. A qualidade no
fingir I Libertando-se desse controle colonizador, oriundo da era do rádio, e
lugar da quantidade, pondo fim à guerra que ainda existe na televisão entre
torcer que certamente determinou e manteve a má qualidade das radionovelas, tão
escritores e escrevinhadores, decidida sempre a favor destes, porque em
por deletério como a censura que viria depois, a telenovela pôde encontrar
maior número e mais em sintonia com a média intelectual do país.
eles. caminho próprio, modernizar-se, e falar uma linguagem atual e brasileira.
Eram I No rádio, os patrocinadores estrangeiros não admitiam que se usasse
roteiro nossa linguagem. O que era bom para a América Latina
s ou
script I

s .
invisív
eis,
gênero
talvez
não
menci
onado
em
livros
especi
60.
61.

12
houvesse tempo, pois O homem que salvou Van Gogh do suicídio, co-
mo tudo que escrevi para o veículo, não me satisfez inteiramente, apesar
de sua excelente realização. Ficou a viciosa impressão que tinha algo de
mais ou de menos.
Trechos contínuos Idéia

de um roteiro para televisão A idéia foi a de escrever uma história que usasse a velha Máquina
do Tempo, não por curiosidade histórica, mas por pura malandragem do
piloto. Alguém que viaja ao passado para lucrar, encher os bolsos.

Story-Line
Uma auto-adaptação O roteiro escolhido para se submeter
A história dum homem que reinventa a Máquina do Tempo, viaja
ao bisturi não é modelar nem envol-
para a França, 1890, compra todos os quadros dum pintor holandês
ve muitas complicações exemplificadoras. Infelizmente não disponho de
fracassado, Vincent Van Gogh, volta à atualidade e expõe as telas numa
arquivo de meus roteiros cinematográficos e teleplays, uma pirâmide de
grande exposição. Mas ninguém comparece: cle apagara da história o
papel, do tamanho das egípcias, embora sem sua sedutora antiguidade. No nome e a fama de sua mina de ouro.
cinema e na tevê até o que se faz de mais moderno geralmente envelhece na
virada do ano. Escrever para milhões tem um ônus: o esquecimento de Sinopse
milhões. Foi uma sinopse muito detalhada, que seria fastidioso transcrever,

O Teletema O homem que salvou Van Gogh do suicídio, exibido na mas que já nada tinha do conto original, além da idéia. A sinopse como
TV Globo, sob direção de Fábio Sabag, com Marco Nanini no papel qualquer outra tratava de dar corpo à idéia. Chamei o personagem de Júlio,
engenheiro-arquiteto associado a um antigo amigo, Duílio, rapaz sensato,
principal, foi anteriormente um conto publicado no "Caderno Cultural", do
equilibrado. Dei a Júlio uma namorada pintora, Vera, para ligá-I o ao mundo
jornal O Estado de S. Paulo. Reduzido como uma fábula, umas oito laudas,
das artes plásticas, e um rival perigoso, Rogério, marchand e dono dum
tinha porém conteúdo material para ser desdobrado com a inclusão de novas
salão de exposições. Para dificultar as experiências científicas de Júlio, feitas
situações e novos personagens. Daria um filme. Ou um especial um tanto
no quintal de sua casa, secretamente, inventei uma governanta idosa, Naná,
espremido. Mas, surgindo uma oportupidade no programa Teletema, adaptei
que tinha com ele intimidades de titia, incumbida do departamento
o conto para cinco capítulos de 25 minutos de duração cada.
humorístico. Com estes personagens, e outros, acidentais, dava para
Apesar da extravagância do tema, a Casa de Criação aceitou apresentar uma sinopse bem estruturada. Pelo telefone, Ferreira Guiar me
imediatamente a sinopse do Van Gogh, e um dos seus mais credenciados pediu que começasse a escrever imediatamente.
profissionais, Joaquim de Assis, colaborou com sugestões afinadas com o 1? CAPíTULO
conjunto. Escrevi duas vezes o roteiro; escreveria três se SEQ. 01 - UMA CASA MODESTA DE BAIRRO - EXT. NOITE
A câmera aproxima-se lentamente até enquadrar uma janela onde há luz acesa.
63.
SEQ. a maioria sobre física e eletrônica. Destaque para A máquina do tempo, de H. G. Wells.
02 - Um relógio de parede bate três horas. Apanha a escrivaninha: um cinzeiro com mil
QUAR pontas de cigarro. Júlio, dispondo de um maço de papel e muitas esferográficas, redige
TO- JÚLIO - Os quadros dele estão valendo dezenas de milhões de dólares ...
fórmulas matemáticas apressadamente. Coisa complicada: VERA - Mas em vida nunca vendeu nenhum. Ficou biruta e suicidou-se. JÚLIO -
ESCRI
TÓRIO x,Y,v,r,s . (Tendo uma idéia) Ele pintou muitos quadros?
.. -.- = 0,0. Tempo e Espaco x Espaço x 33.113.
DE 1111 ' VERA - Não tantos. (Tom) Mas o assunto é nosso casamento. JÚLIO -
JÚLIO Júlio usa também a máquina de calcular. Canto dum galo. Olha por instante a moça Claro. (Tom) Ficou biruta, você disse?
- INT. dum porta-retrato, Vera, sua namorada. Num papel, ao lado, desenhado, uma espécie VERA - Ficou. (Tom) Acha que dá para casarmos em setembro?
NOITE
de cabine telefônica com visor de vidro na parte alta e uma série de botões. Os Júlio fica atento ao quadro. Toca-o com os dedos. A idéia!
cálculos não vão bem. Júlio amassa papéis e joga pelo chão. Levanta irritado e dá um
JÚLIO - Tinha muitos amigos, parentes, cão de guarda?
chute numa cadeira.
VERA - Morreu só. (Tom) Júlio, aceite o projeto que Duílio lhe ofereceu.
JÚLIO - (Possesso) Não é isso. Tem um erro aí. O fator Tempo não está em Um edifício de 20 andares.
sincronia com a inversão da velocidade da luz. O que anula a progressão do JÚLIO - Onde ele morreu?
fator Espaço ... VERA - Na França. (Tom) Vai aceitar?
Alguém abre a porta. É Naná, 60 anos, governanta de Júlio. Usa camisolão. Júlio, ainda com os olhos no quadro:

JÚLIO - O que você quer, Naná? JÚLIO - Em que ano?


NANÁ - (Vê a cadeira caída) Tropeçou na cadeira, seu Júlio? JÚLIO - VERA - Em que ano o quê? JÚLIO -
Em que ano ele morreu? VERA -
Não, dei um chute nela.
1890.
NANÁ - Passa das três, não vai dormir?
Q Júlio dirige-se sonambulando até a porta.
JÚLIO - Traga um café. Vou trabalhar até amanhecer.
u
NANÁ - Mas não disse que estava desempregado, sem serviço? JÚLIO - VERA - Não vamos almoçar?
a
rt Claro que estou. O café. JÚLIO - 1890 você disse? Tchau.
o No dia seguinte, Júlio recebe a visita de seu sócio e amigo Duílio, que lhe traz Júlio sai. Vera pega o telefone e faz uma ligação apressada.
- boa notícia: uma empresa queria os dois para a construção dum prédio. Júlio não se
VERA - Rogério? Vera. Está valendo ainda o convite para o almoço? Júlio vai
e interessa: ele que trabalhasse sozinho. Duílio vê os papéis rabiscados sobre a
s escrivaninha e supõe estar sendo traído, profissionalmente. Mas Júlio explica que fazer uma visita a um famoso físico, que foi seu professor, Gam-
c todos aqueles cálculos não passavam dum ... entretenimento. Era um invento. Duílio, bini. Leva uns papéis, cheios de números, e pergunta-lhe:
ri aborrecido, que trouxera uma boa notícia, despede-se com outra, desagradável. JÚLIO - Lembra dos artigos que escreveu sobre a regressão do tempo? A
t
DuiLlO - Tem um cara tentando conquistar sua linda pintora. Um tal Rogério, possibilidade de voltarmos ao passado? Veja essa fórmula.
ó
dono duma galeria. Endinheirado, esperto e bom de papo. Se continuar O professor dá uma olhada no papel e pega um lápis.
ri
o entretendo-se, babau ...
GAMBINI - Aqui há uma incorreção. (Corrige) O fator H é fixo e indivi-
d Na cena n~ 05, Vera está em seu ateliê, recebendo um telefonema do fã rico. sível. Isso altera todos os cálculos.
u Na parede, o famoso auto-retrato de Van Gogh. Júlio chega mostrando no rosto o JÚLIO - Obrigado, agora a máquina vai funcionar.
m cansaço de quem não tem dormido. Ela, ciente de que ele recusara aceitar a GAMBINI - Está se dedicando à ficção científica?
a oportunidade que Duilio lhe oferecera, quer saber o motivo. Afinal casariam em
Júlio faz uma pausa e revela:
p setembro. Júlio responde sem explicar nada.
e Vera aproxima-se do retrato de Van Gogh. JÚLIO - Não, vou fazer a própria máquina. Quer associar-se a mim? Podemos
q partir juntos na primeira viagem. Topa?
VERA - Não quero levar a vida que ele levou. Sabia que dificilmente venao uma
u
tela? O físico, julgando-o louco, apavora-se.
e
JÚLIO - Quem é o cara? Júlio sai da casa do professor, berrando: não vou precisar de você, velho gagá.
n
VERA - Vincent Van Gogh. É uma reprodução muito manjada. Volta ao ateliê de Vera, vazio, e fica a olhar para Van Gogh. De repente ela chega,
a
rindo, com Rogério. Ele mal tira os olhos da reprodução. Cumprimenta o rival, que lhe
c
é apresentado, e sai. Vera tira uma conclusão: Júlio está ficando louco.
a
Saindo para a rua, Júlio entra numa livraria e compra tudo que encontra sobre
s
Van Gogh. Á saída, encontra casualmente com Duílio, que, vendo os livros, pergunta:
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DuíLlO - Que livros são esses? NANÁ - O senhor disse a seu Duílio que vai viajar ... JÚLIO
JÚLIO - Biografias e estudos sobre Van Gogh. - Vou. Para a França.
DuíLlO - Que é? Se amarrando em pintura? NANÁ - Tão longe assim?
JÚLIO - Não entendo nada de pintura nem pretendo entender. JÚLIO - Não se preocupe, pretendo voltar no mesmo dia. NANÁ -
(Sem entende!) Vai à França e volta no mesmo dia?
Chegando em casa com os livros, Júlio diz a Naná que não está para
JÚLIO - (Com naturalidade) Não vou fazer turismo, vou a negócios. NANÁ -
ninguém. Nem para Vera.
Os aviões de hoje são tão rápidos assim?
Duílio procura Vera contando seu estranho encontro com Júlio. Talvez ela JÚLIO - Não vou de avião. Tenho medo.
pudesse explicar o porquê dos livros e de todo seu estranho procedimen to. Ela não
Júlio volta para o interior da casa.
pode.
A colaboração do professor Gambini valeu. Júlio acha que acertou na mosca. E Vera e Duilio conversam e ele a aconselha fazer uma visita ao ex-noivo, que,
para festejar obriga a governanta a dançar com ele, apesar do reumatismo de Naná No talvez, tendo enlouquecido, necessite de assistência. Vera vai visitá-Io, chegando no
momento em que carregadores trazem uma cabine metálica.
dia seguinte ele vai a uma oficina metalúrgica e encomenda a cabine, segundo sua
planta e instruções. VERA - Parece uma cabine telefônica.
JÚLIO - Mas não é. É uma máquina. VERA -
JÚLIO - Faça o trabalho depressa. Vou viajar.
Máquina de fazer o quê?
METALÚRGICO - E vai levar a cabine? JÚLIO - Nem todas as máquinas fazem alguma coisa, sabia?
JÚLIO - Não, vou viajar dentro dela.
Vera deixa a casa de Júlio sem nada ter descoberto, apesar de ter conversado
Duílio, na cena no 15, vai visitar o amigo e só encontra Naná, que tem
também com Naná, que lhe fala da viagem do patrão à França. Numa boate, dançando
novidades. com Rogério, atual namorado, fala o tempo todo sobre o enigmático Júlio. E sobre a
DuíLlO - Ele obrigou você a dançar com ele? Às três da madrugada? NANÁ - cabine. Para que serviria? Mas esta é a pergunta mais persistente:
Obrigou, e o pior é que ele dança muito mal. VERA - Ainda se eu conseguisse descobrir o que Van Gogh tem a ver com
Júlio chega trazendo nos braços um motor de geladeira. isso ...
SEQ. 25 - COZINHA DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
DuíLlO - Sua geladeira pifou? Júlio entra na cozinha. Naná trabalha na pia. Ele procura, procura e num
JÚLIO - Não, está ótima. armário encontra uma garrafa de vinho. Pega-a, sob o olhar desconfiado de Naná, e
DuiLlO - (Procurando penetrar no enigma) Trabalhando muito? JÚLIO - volta ao quintal.
Graças a Deus!
SEQ. 26 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
DuíLlO - Estive com Vera. Parece que o noivado acabou. JÚLIO -
É, acabou. Júlio chega ao quintal com a garrafa. Abre a porta da cabine. Pega algo
DuíLlO - Lamento, deve estar grilado. parecido com uma prateleira e ajusta-a no interior da máquina, onde vai co locar a
JÚLIO - Não estou. garrafa.
DuíLlO - Não gosta mais dela? JÚLIO - (Lê o rótulo) Safra 1979. Pelotas.
JÚLIO - Agora mais do que nunca. DuíLlO -
Então, como não está grilado? Coloca a garrafa na prateleira. Fixa-a no painel. Vira algumas roldanas. JÚLIO -
JÚLIO - (Convicto, firme) Ela voltará correndo quando isto der certo. DuíLlO - Regressão de seis anos. Latitude sul.
Isto o quê?
Hesita antes de apertar o botão do disparo. Aperta. Um zunido prolongado. A
JÚLIO - Por enquanto é só isto. Até que falei demais.
máquina desaparece num flash de luz. Silêncio total. Mas logo a cabine reaparece com
DuíLlO - Se gosta dela, por que não se dedica a coisa mais prática? JÚLIO -
outro zunido. A cabeça de Naná desponta à porta do quintal.
Impossível. Quando eu voltar serei o homem mais rico do país. DuíLlO - Voltar de
onde? NANÁ - Que zunido foi esse?
JÚLIO - Simplesmente voltar. Quem vai volta. Ou não?
Júlio abre a porta da cabine. Sorriso de satisfação. Câmera foca a prateleira
SEQ. 16 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA móvel. No lugar da garrafa está um cacho de uva. Come uma delas. Naná, já no quintal:
Naná vai ao quintal. Num canto, protegido, está o motor de geladeira, uma
NANÁ - Uvas?
direção de carro, roldanas e outras peças. Ela olha a tudo estranhamente. Júlio, feliz,
JÚLIO - Uvas.
surge no quintal trazendo um painel de automóvel.
JÚLIO - Como se encontram coisas úteis nos cemitérios de automóveis!
64.
N ste) Experimente São de 1979.
A Naná experimenta uma. Gosta.
N
NANÁ - O senhor disse de ...
Á
JÚLIO - ... 1979.
NANÁ - Parecem frescas!
-
JÚLIO - E são!
M Final do 1 ° capítulo.
a 2° CAPíTULO
s SEQ.01 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio e
Naná comem as uvas. Naná examina a máquina. NANÁ - Isso é
n
ã uma geladeira?
o JÚLIO - Isto não é uma geladeira.
NANÁ - Onde está a garrafa de vinho que o senhor pegou? JÚLIO -
c Que garrafa de vinho?
o NANÁ - Mas se o senhor não tem saído de casa como comprou as uvas? JÚLIO
m
- Vou sair. Naná.
p
r NANÁ - Depois de 20 dias sem tomar sol. JÚLIO
e - Tem um saco de estopa?
i NANÁ - Pra quê?
JÚLIO - Perguntei se tem.
u NANÁ - Tenho.
v Quando Júlio sai, Naná recebe um telefonema de Vera. Conta o episódio das
a uvas e outros estranhos procedimentos do patrão. Júlio volta com o saco de estopa que
s parece conter alguma coisa. Pede um pouco de leite e um pires. No quintal, solta um
gato, espiado por Naná. Enfia o gato na cabine. Aperta o botão, o flash, o zunido, o
n desaparecimento da cabine e seu retorno.
e SEQ. 08 - COZINHA DE CASA DE JÚLIO - INT. DIA Naná
m trabalha. Entra Júlio e pega o litro de leite. Retoma. Naná
sorrateiramente vai atrás dele.
é
SEQ. 09 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
t Júlio põe leite no pires. Uma ninhada de gatinhos se serve. Naná espia pela
e porta da cozinha. Ao ver a ninhada, no lugar do gato, espanta·se. Não en· tende mais
m nada.
p Na cena nO 12 Naná corre ao telefone e conta tudo para Vera. Fala da ninhada
o de gatinhos. Mas eles já haviam retomado à máquina do tempo e o gato, trazido por
. Júlio, reaparece na sala. Ela larga o telefone.
JÚLIO - Não gosta de gatos, Naná?
J
NANÁ - Mas não era uma ninhada?
Ú
JÚLIO - O que eu faria com uma ninhada? NANÁ
L
- E o que vai fazer com ele?
I
JÚLIO - Pode dar um sumiço no bichano. Não gosto desse bicho.
O

(
I
n
s
i
Vera no ateliê, e esta lhe conta a história das uvas e da ni.
nhada de gatinhos, que Naná lhe passara pelo telefone.
DuíLlO· Agora está claro.
VERA - Claro?
DuíLlO - Como água!
VERA - Mas o que ficou claro?
DuíLlO - Júlio, o mágico! Só mágicos fazem essas coisas. Daí a tal caixa.
Aposto que deve estar fazendo maravilhas com um baralho. Afinal descobriu
sua vocação.

Júlio nesse entretempo mexe·se para a venda dum terreno, seu único imóvel.
Precisaria de dinheiro para sua viagem. Ao voltar para casa, recebe a visita dum
vizinho, o bêbado do bairro, que fora fazer um agradecimento: Na. ná dera o gato para
ele. Ao vê·lo, bebum como sempre, Júlio tem uma idéia.
JÚLIO - O que me diz de tomarmos um trago, vizinho?
LUIZ - (O ébrio) Bebida só rejeitei uma vez na vida. Tinha dois anos.
Era uma tal de mamadeira.
Júlio vai à porta da cozinha:
JÚLIO - Naná, traga o conhaque.
LUIZ - Estou vendo que o senhor é gente boa.
JÚLIO - Eu me esforço.
SEQ. 18 - COZINHA DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
Naná trabalha na cozinha. Chega Júlio com o cálice de conhaque. Jo.
ga o líquido na pia.
JÚLIO - Naná, podia ir ao Correio para mim? NANÁ
- Me dê a carta.
JÚLIO - Carta? Para quê?
NANÁ - Não me pediu para ir ao Correio?
JÚLIO - Ah, melhor é ir à farmácia. Compre esparadrapo. NANÁ -
Temos um rolo.
Júlio repousa a mão sobre uma melancia.
JÚLIO - Então, vá à quitanda e compre uma melancia.
NANÁ - (Vendo a melancia) Que fruta verde é essa, seu Júlio? Júlio
retira a mão da melancia.
JÚLIO - Na verdade não preciso de nada. Mas você precisa. Deve es. tar
cansada desta cozinha. (Retira dinheiro do bolso e dá a Naná) Vá dar um
passeio de metrô. Tchau.
SEQ. 19 - QUARTO·ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA
Câmera foca o litro de conhaque sobre a escrivaninha: Luiz já conse. guiu beber
um palmo.

LUIZ - Modéstia à parte, em sua ausência bebi três doses. Já começo ver
Tiradentes.
JÚLIO - Que história é essa de Tiradentes?
LUIZ - A bebida me deixa comovido e Tiradentes sempre me faz cho. raro
Lembra meu pai.

Duíli
o
visita
65.
JÚLIO - Seu pai? JÚLIO - Então vá para seu quarto e só saia quando eu mandar. NANÁ -
LUIZ - Ele também morreu enforcado. Pelos credores. Por quê?
Júlio pega Luiz pelo braço: JÚLIO - Aquele homem, o Luiz, está passando mal. Sabe, bêbado diz muitos
palavrões ...
JÚLIO - Vamos dar um pulo ao quintal. Um bom porre exige espaço.
NANÁ - Vou fazer um café amargo pra ele.
SEQ. 20 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
Toque de telefone. Naná atende, enquanto Júlio volta ao quintal, preocu-
Surgem Luiz e Júlio no quintal. Luiz leva o litro e o cálice. Param dian· te da pado, à espera do regresso da máquina do témpo. No quintal, Naná chama-o. É
máquina do tempo. Vera ao telefone.
JÚLIO - Diga que não estou.
LUIZ - Que é isso?
NANÁ - Eu não sei mentir.
JÚLIO - Uma máquina que comprei num parque de diversões Quem en· JÚLIO - Então eu digo pessoalmente.
tra, vê coisas.
Júlio vai atender ao telefone e diz:
LUIZ - Que coisas?
JÚLIO - Vera, eu não estou em casa.
JÚLIO - Coisas que a gente gosta de ver. LUIZ
- Não diga! Desliga e retorna ao quintal. Lá estava a cabine! Aproxima-se dela tenso,
JÚLIO - Digo. lentamente.

I LUIZ - Mulheres? SEQ. 25 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA


I JÚLIO - Em três dimensões. Júlio pára diante da máquina. Espia pelo visor. Não vê ninguém. Susto.
I LUIZ - Posso entrar nesse troço? Abre a porta da cabine, precipitadamente. Luiz lhe cai nos braços. Júlio am
JÚLIO - Pode, mas antes tenho de fazer uns ajustes. para-o. O ébrio chora convulsivamente.
Luiz pega a garrafa e toma mais um gole pelo gargalo enquanto Júlio trabalha JÚLIO - Por que está chorando? Machucou-se na viagem? LUIZ -
no painel. (Abraçado a ele) Pobre homem ...
JÚLIO - O que você viu? Vá falando.
JÚLIO - (Para si mesmo) Dia 21. Mês: abril. Ano: 1872. Latitude e longi·
LUIZ - A praça. Eu o vi ser enforcado.
tude: a mesma. Tudo certo.
JÚLIO - Quem?
Luiz aproxima-se: LUIZ - Joaquim José da Silva Xavier. Sabe, nem lembrava que se chamava
LUIZ - Posso levar a garrafa? assim.
JÚLIO - Não há nenhuma proibição quanto à bagagem. Entre, ilustre JÚLIO - (Interessado) Você saiu da cabine?
passageiro. LUIZ - Vi tudo pela janela e ouvi o que diziam. (Ainda chorando) Foi
horrível. .. Acho que nunca mais usarei gravata.
Luiz entra na cabine com o litro. Júlio fecha a porta.
Chega Naná com o café e vê a cabine.
JÚLIO - Tudo bem?
LUIZ - Por enquanto, um tanto monótono. NANÁ - (Surpresa) A cabine! Tinha desaparecido! JÚLIO -
Dê o café ao nosso vizinho.
Júlio aperta o botão central. Luzes. Zunidos. A cabine desaparece. Al-
Luiz pega a xícara e fala com Naná:
guém põe a cara na porta, é Naná.
NANÁ - Onde foi aquela coisa? LUIZ - Foi de cortar o coração. Pobre Tiradentes. NANÁ
- Pobre quem?
JÚLIO - Que coisa?
NANÁ - A caixona que estava aqui. JÚLIO - Tiradentes. Está surda? Leve-o para casa. Luiz
JÚLIO - Vieram buscá-Ia. Quando foi ao metrô. NANÁ vai saindo com Naná.
- Não fui ao metrô, fiquei aqui. LUIZ - Ele estava tão pálido com aquela barba ... Foi subindo os degraus do
JÚLIO - Não foi mas tem de ir. cadafalso. Um a um ... Depois lhe puseram a corda no pescoço ... Os
Júlio vai empurrando Naná para o interior da casa tambores.
Luiz e Naná entram na cozinha.
SEQ.21 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Naná
JÚLIO - (Vitorioso) A confirmação! A máquina funciona! Luiz foi e voltou. Eu
aparece, empurrada por Júlio. também voltarei. Só que rico ...
NANÁ - Eu me recuso a ir ao metrô.
66.
Júlio concretiza a venda do terreno. Já poderia dar novos passos. Em sua JÚLIO - Não, estava em minha manga.
ausência, Vera chega, e levada por Naná ao quintal, diante da caixa, tem com a VERA - (Encantada) Oh, Júlio ... isso com turbante e música oriental em fundo
governanta uma longa conversa. ficará maravilhoso!
VERA - Não há mistério algum, Naná. Seu patrão virou mágico e esta caixa é a Final do 2? capítulo.
prova, 3° CAPíTULO
NANÁ - Mas ele não tem cartola ... Vera sai da casa de Júlio convencida de que seu ex-noivo virou mágico.
Convence Duílio e a própria Naná, que sossega. Júlio, dando prosseguimento a seu
Chega Júlio trazendo um pacote de dinheiro. Naná volta à cozinha. Ve-
plano, vai a uma loja de numismática, e faz uma encomenda: francos que circulavam
ra faz comentários sobre a cabine misteriosa. na Europa por volta de 1890. O proprietário da loja promete conseguir os francos. Em
VERA - Quantos botões tem esta caixa! JÚLIO seguida, Júlio volta ao metalúrgico e pede·lhe que faça um bagageiro, na medida da
- Pretendo trocá-Ios por um zíper. VERA - cabine, para ser adaptado à sua parte superior. A terceira providência do dia consiste
Então é isso, virou mágico? JÚLIO - na visita a um costureiro, ao qualleva um figurino com trajes de diversas épocas e
Adivinhou. Virei. países. Encomenda uma roupa francesa que se usava no fim do século passado.
VERA - Fez algum curso? JÚLIO - Apronte logo. O baile vai ser no mês que vem.
JÚLIO - Por correspondência.
E, por fim, Júlio procura uma professora de francês. Conhecia bem o idioma
VERA - Faça uma mágica para mim.
mas necessitava de algumas aulas práticas. Chegando em casa, recebe um
JÚLIO - Você não pagou ingresso.
telefonema de Vera.
VERA - Um beijo vale como ingresso? (Beija-o) JÚLIO
- Vale um camarote perto do palco. VERA - Vamos à (Voz de Vera ao telefone) Júlio, venha ao meu ateliê. Quero lhe apresentar a uma
mágica. pessoa que poderá ajudá-Io.

Júlio pensa um pouco e vai para o interior da casa, enquanto Vera olha os SEQ. 11 - ATELIÊ DE VERA - INT. DIA Júlio
botões do aparelho. Ele volta com um ovo_ entra no ateliê. Vera recebe-o alegremente. JÚLIO - De
JÚLIO - Agora vamos à questão milenar. Quem nasceu primeiro: o ovo ou a que pessoa você falou?
galinha. VERA - Quero provar que continuo sua amiga. Vou ajudá-Io a exercer
sua nova profissão.
Júlio abre a porta da cabine e coloca o ovo na prateleira móvel. Depois.
JÚLIO - Você não entende nada de mágicas.
faz os ajustes.
Entra um homem de meia·idade, Cleber, com pinta de empresário. VERA - Eu,
VERA - E agora?
JÚLIO - Agora fecho a porta da cabine. não, mas Cleber entende. (A Clebei) Este é o mágico Júlio.
Já o vi fazer um trabalho. É sensacional. Cleber é empresário.
Júlio fecha a porta.
Apertam-se as mãos.
VERA - E depois?
JÚLIO - Depois aperto este botão. CLEBER - Faz a mágica do serrote?
JÚLIO - (Esnobando) Essa é velha.
Júlio aperta o botão. Luzes. Zunido. Vera recua, assustada. Abraçada a
CLEBER - Faz desaparecimentos? Um espectador desaparecer? JÚLIO -
Júlio, não vê a cabine desaparecer. (Ainda esnobando) Já fiz um teatro desaparecer. O chato é
VERA - (Abraçada) A coisa é assim? quando chove. Nem todos os espectadores trazem guarda-chuva.
JÚLIO - Assim. CLEBER - E quanto à levitação? O público adora isso.
JÚLIO - Já fiz 200 pessoas levitarem até o teto do teatro. Só cinco caíram.
A cabine reaparece. Júlio vai abrir a porta. CLEBER - Acho que podemos assinar um contrato.
VERA - O que espera encontrar? VERA - Viu, Júlio? Um contrato!
JÚLIO - Vou fazer uma viagem. Na volta eu o procuro.
JÚLIO - A resposta da pergunta.
CLEBER - Estou com um pouco de pressa. Procure-me na volta. (Aperta a mão
Júlio abre a porta da cabine, retira uma galinha que entrega a Vem JÚLIO -
de Júlio) Muito prazer. (A Vera) Mantenha-me informado. (Sal)
Meu presente de casamento.
VERA - Como fez isso?
JÚLIO - Mágica.
VERA - A galinha estava aí dentro?
I, VERA VERA - A mágica da galinha me pareceu tão real ... Uma pena ficou
- Você
estava
brinca JÚLIO - Bonito nome. Agora queira entrar novamente aí. NANÁ -
ndo, Não.
68.
69. não? JÚLIO - Seja obediente, Naná.
,
I' NANÁ - Não quero entrar. JÚLIO -
I Por que não?
NANÁ - É abafado.
Júlio segura a menina pelo braço. JÚLIO
- Mas tem de entrar, sim. Naná debate-se
e diz gírias antigas.

I
NANÁ - Sossega, leão. Me largue, seu calhorda.
Naná consegue livrar-se de Júlio e correr para o interior da casa.
SEQ. 16 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Naná,
menina, surge correndo, perseguida por Júlio.
JÚLIO - Naná, pare ... Você precisa voltar.
NANÁ - Pra casa de titia, não. Ela bate em mim.

Júlio tenta segurá-Ia. Naná, menina, salva-se outra vez, correndo na díreção da
porta da rua.
SEQ. 17 - RUA DA CASA DE JÚLIO - EXT. DIA
A menina chega à rua no momento em que Duílio estaciona seu caro
ro. Júlio aparece, agitado. Vê Duílio, enquanto a garota foge.
JÚLIO - (Para Ou/lio) Me ajude a pegar aquela menina! DuíLlO -
É ladra?
Júlio e Duílio saem perseguindo a menina pela rua. Júlio tropeça e
cai, mas Duílio consegue detê-Ia.
DuíLlO - Que houve, garota?
NANÁ - Minha tia quer bater em mim. DuíLlO
- Por quê?
NANÁ - Porque tirei cinco mil-réis da bolsa dela. Júlio
chega aos dois.

DuíLlO - (A Júlío) Quem é ela? JÚLIO -


Naná, minha empregada.
DuíLlO - Naná? A plástica faz milagres, não? JÚLIO -
Quis dizer, a neta dela ...
SEQ. 18 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA
Entram, vindos da rua; Júlio, que segura a menina, e Duílio. Naná ain-
da se debate.
NANÁ - Me largue ...
JÚLIO - Vamos para o quintal.
NANÁ - Não vou, seu finório!
DuíLlO - Ela tem um vocabulário engraçado. Finório era uma pala. vra que meu
avô dizia.
e Pega uma toalha que cobre um dos quadros e joga-a sobre Vera, co· brindo-
m lhe a cabeça.
JÚLIO - Chazan!
m
e Quando Vera retira a toalha da cabeça, não vê mais Júlio, que saiu do ateliê.
Voltando à sua casa, Júlio recebe uma visita entusiasmadora. O do· no da loja
u
de numismática trouxera uma sacola cheia de francos antigos. Uma verdadeira fortuna
nos idos de 1890. E no mesmo dia o metalúrgico traz o bagageiro, que prende à
v
cabine, como o de um automóvel. Mais uma encomenda: o traje francês que chega do
e costurei ro. Mas ele teria coragem de entrar na cabine?
s SEQ. 13 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT, DIA
t Júlio observa a cabine. Preocupado. Naná aparece.
i NANÁ - Patrão, me deixe entrar aí? Luiz, o bebum, disse que é gostoso. JÚLIO
d - Ele disse isso?
o NANÁ - Disse. (Tom) Sempre quis entrar num desses caixões de má-
. gicos.
JÚLIO - Quer entrar mesmo? Não tem medo?
J NANÁ - Medo de quê? Mas gostaria que bulisse nesses botões. JÚLIO -
Ú Que idade você tem?
LI NANÁ - 60. Por que quer saber?
O JÚLIO - O mágico sempre precisa de informações. NANÁ -
-
A Posso?
g Júlio permite. Ela entra. Ele começa a girar as roldanas.
al
in SEQ. 14 - RUA DA CASA DE JÚLIO - EXT. DIA
h Um carro, dirigido por Duílio, aproxima-se.
a
SEQ. 15 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
er
a Júlio, aflito. A cabine desapareceu.
v JÚLIO - (Chama) Naná! Volte! Volte! Eu não devia ter permitido. Naná! Por fim a
er
d cabine reaparece. Júlio acerca-se dela. Não vê nada pelo vi-
a soro Abre a porta. Imediatamente sai do interior dela uma menina de uns dez anos.
d Naná, há meio século. Olha para Júlio espantada.
ei
ra JÚLIO - (Também pouco à vontade) Como vai, garota? Como é seu
. nome?
O NANÁ - Mariana.
o JÚLIO - Mariana?
v NANÁ - Mas me chamam de Naná.
o
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q
u
e
n
ã
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p
a
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s
a
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m
tr
u
q
u
e.
70.
J Vamos. JÚLIO - Que menina? Ah, aquela? Pulou o muro e foi embora. DuíLlO -
Não vai atrás dela?
ú Duí.~IO - Você não pode com essa diabinha. Eu ajudo. JÚLIO -
JÚLIO - Minha paciênCia com crianças se esgota logo.
Vá chamar a avó dela, no quarto.
l DuíLlO - Alguma coisa aqui não está bem contada. (Mostra o dinheiro) Veja o
Duílio afasta-se uns passos. que encontrei. Cinco mil-réis. Ela disse que tinha tirado uma nota de cinco
i
DuíLlO - (Chama) Dona Naná! mil-réis da tia. (Tom) Está me escondendo alguma coisa?
o JÚLIO - Esse dinheiro é meu. Coleciono notas antigas. (Vai abrindo o pacote
NANÁ - Naná sou eu.
JÚLIO - Vá, Duilio. dos francos) Veja. Francos do fim do século passado. Coleciono.
a Duilio vai para o interior da casa e Júlio puxa a garota para o quintal. Duilio sai da casa de Júlio muito desconfiado. Naná se sente tão abatida que
r Júlio a convence a fazer uma viagem. Ele pagaria, e de bom grado, pois pretendia
SEQ 20 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
estar só na hora de entrar na máquina do tempo. Mas ao sair, com sua mala, Naná
r Júlio, torcendo o braço da menina, leva-a para a máquina. Ela ainda ainda tem tempo de ver o patrão fantasiado. Na rua, lembra que esqueceu o casaco e
a reage. retorna.
s NANÁ - Me largue o braço. Está doendo. JÚLIO - SEQ.31 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
t Entre que eu largo. Júlio tem na mão um aparelho de controle remoto. Faz os ajustes para a
A menina entra. Júlio começa a ajustar a máquina. viagem. 15 de setembro de 1889. Mas ainda hesita.
a
SEQ 21 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Duilio SEQ. 32 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA

volta. Fala alto. Naná entra. Vê o casaco que esqueceu. Estranha o silêncio da casa.
a
Decide ir ao quintal.
DuiLlO - Júlio, Naná não está.
SEQ. 33 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio vai
m Olha para o chão. Vê uma cédula dobrada. Abaixa-se e pega-a. DuíLlO -
entrar na cabine.
e Cinco mil-réis! Onde ela teria arranjado essa velharia? Duílio, desconfiado
JÚLIO - Adeus, século XX. Quando voltar terei o mundo a meus pés. Entra. O
n de tudo, continua a examinar a cédula.
botão é disparado internamente. Zunidos e jatos de luz. Na-
i SEQ. 22 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA ná aparece no quintal, vê a cabine. De repente a máquina some. Susto de Naná. Cai
n Zunidos e luzes. A cabine reaparece diante de Júlio, que precipitada- sentada num dos degraus da escada do quintal. Close de Naná apalermada.
a mente abre a porta. Naná sai, tonta. Final do 3~ capítulo.
JÚLIO - Tudo bem? 4.° CAPíTULO
,
NANÁ - Tudo bem? Isto é uma fábrica de pesadelos. Que mágica besta! JÚLIO - Naná, apalermada, sai da casa e pega um táxi. Vai contar o que viu a Vera.
Enquanto isso, na cabine, as coisas não correm muito bem. A máquina pousa numa
Desembuche mulher!
q campina. Júlio sai para respirar quando é atacado por um salteador a cavalo. Por sorte
NANÁ - Voltei à infância. Tinha brigado com minha tia. Depois me vi correndo
o cavalo tropeça e o salteador esparrama-se no chão. Júlio pega-lhe a garrucha. O
u pela rua. E sabe quem me segurou? Seu Duilio.
salteador apavora-se.
e JÚLIO - Deve ter comido alguma coisa indigesta.
SALTEADOR - Por piedad, não me mate, hombre! Tengo três hijos,
SEQ. 23 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA mujer, madrezita, diez sonrinhos ... Por piedad!
Entram Naná e Júlio. Duílio permanece com a nota de cinco mil-réis JÚLIO - Troco sua vida por uma informação. Que lugar é este?
d SALTEADOR - Málaga, senior ...
na mão.
e JÚLIO - Dia, mês e ano.
DuíLlO - Terrivel sua neta, não? JÚLIO
s SALTEADOR - Uno de mayo de 1907.
- Ele quer dizer ...
JÚLIO - Preciso ajustar melhor o tensor.
i NANÁ - Neta? Não sou nem mãe solteira ... JÚLIO -
Ela inventou que Naná é avó dela. DuíLlO - Mas Júlio retorna à cabine, que depois de disparar flashes luminosos, desaparece.
s
quem disse foi você.
t
JÚLIO - Eu? (A Naná) Vá descansar.
e Naná vai para seu quarto.
. DuíLlO - Esta história está meio estranha. Onde está a menina?

J
Ú
L
I
O

-
72.
71.
SALTEADOR - Oh ... era um santo! E quase 10 mato! TRECHOS CONTÍNUOS DE UM ROTEIRO PARA TELEVISÃO
I 101
I
Júlio chega a Paris e vendo um casal de namorados pergunta-Ihes sobre o dia,
I
mês e ano em que estavam. A moça, vendo nele um turista, responde-lhe e atira-lhe
uma flor de boas-vindas. Mais além encontra um pintor à margem do Sena.
JÚLIO - Você aí, quantas orelhas tem?
PINTOR - Duas, ora.
JÚLIO - Não me serve_
Depois de andar mais um pouco, encontra outro pintor, mergulhado
numa tela. Aproxima-se dele e ri.
VAN GOGH - (Irritado) Do que está rindo?
JÚLIO - Parece que se atrapalha com os pincéis, não, ruivo? VAN
GOGH - Não comecei ontem.
JÚLIO - Aposto que nunca vendeu um só quadro. VAN
GOGH - Isso é verdade.
JÚLIO - Tem mais jeito de pregador.
VAN GOGH - Já fui pregador. Agora me deixe terminar isso JÚLIO -
Termine que eu compro.
VAN GOGH - (Surpreso) Compra?
JÚLIO - Compro esta tela e todas que já pintou, ruivo. Eu disse todas_ VAN
GOGH - (Duvidando) Por que, se não aprecia meu estilo? JÚLIO - Sou um
milionário latino-americano. O rei do café. Vim pa-
ra a Europa com o único intento de praticar uma boa ação. Se eu comprasse
telas valiosas não estaria praticando nenhuma ... Termine, ruivo.
Vera acompanha Naná à casa de Júlio para confirmar com seus próprios olhos o
desaparecimento da máquina. Depois, como a governanta demonstra medo de dormir
ali, a pintora decide instálá-Ia em seu ateliê. Duilio chega, e vendo as duas um tanto
perplexas com tudo, pede maiores informações.
DuíLlO - Então ele sumiu com a caixa de mágicas?
VERA - Aquilo não é uma caixa de mágicas. É a Máquina do Tem-
po. Júlio viajou para o passado. Estou certa disso.
DuíLlO - Eh, você também pirou?
VERA - Você viu a menina, não? Era Naná. NANÁ -
Era eu, seu Duilio.
Júlio acompanha Van Gogh até um quarto onde ele morava. Modestis-
simo, mas que continha toda a obra do pintor.
VAN GOGH - Gosta dos meus girassóis? JÚLIO -
Sinceridade? Uma droga.
VAN GOGH - Paul Gauguin também não gostava. Um dia que lhe
mostrei uma tela ...
JÚLIO - Ele deu um pontapé. VAN
GOGH - Como sabe?
JÚLIO - Qualquer pessoa de bom-gosto faria isso. Onde estão os outros
quadros que pintou?
VA ais.
N JÚLIO - Dê o endereço, vou buscá-Ios.
G VAN GOGH - (Intrigado) Quer mesmo comprar todos os meus quadros?
O
Júlio derrama sobre uma mesa todo o dinheiro que trouxera na saco-
G
H- la. Van Gogh impressiona-se.
Na JÚLIO - Agora não precisa decepar a outra orelha, ruivo. As gatas de Paris não
Ga
vão deixá-Io em paz. Mas me aguarde. Tenho uma boa idéia para aplicação
leri
desse dinheiro. Volto já.
a
Go Júlio foi procurar o irmão de Van Gogh, e seu médico, Gachet, e comprou as
upi telas que estavam em seu poder. O médico, o único que considerava o pintor holandês
l, um gênio, resistiu, mas entregou seu tesouro.
co
m JÚLIO - Convença-o a deixar de pintar.
me GACHET - Mas a pintura é sua vida.
u JÚLIO - Não é. Assim que lhe dei o dinheiro, perdeu aquele ar de de mente,
irm transformando-se numa pessoa normal. Provavelmente salvei-lhe a vida.
ão Adeus.
Th Ao voltar ao quarto do pintor, onde sobre a mesa ele ainda observa-
éo,
e va a montanha de francos, Júlio deu-lhe o conselho prometido.
co JÚLIO - Já ouviu falar numa coisa chamada telefone? VAN
m GOGH - Já, um aparelho que fala à distância.
o JÚLIO - Estão vendendo ações dessa coisa em diversos países do mundo.
dir
Compre todas que puder.
e-
VAN GOGH - O senhor fala como se fosse meu anjo da guarda. JÚLIO - E nada
t
de pintura. Perda de tempo. Com as ações ficará muito mais rico e da próxima
o vez que vir Gauguin, dê um pontapé num quadro dele.
r
d SEQ. 25 - ATELIÊ DE VERA - INT. DIA
u Vera ao telefone. Impaciente. Ninguém atende. Naná, perto. NANÁ -
m
Seu Júlio já voltou?

s VERA - Ainda não. Acho melhor esperá-Io em sua casa. NANÁ -


Com a senhora tenho coragem de ir.
a
VERA - Então vamos.
n
a As duas saem.
t A câmera foca o auto-retrato de Van Gogh em close. Ele vai ficando esmaecido,
ó difuso, até sumir totalmente.
ri A cabine de Júlio estaciona num lugar ermo. Ele espia para fora, cau-
o telosamente. Subitamente começam a aparecer soldados nazistas. Júlio entra às
p pressas na cabine e aciona o motor. Atingida, a Máquina do Tempo começa a soltar
a fumaça. Júlio sente-se sacudido, a cabine enfumaçada. Abre a porta, para respirar. A
r cabine começa a girar.
a Vera e Naná, já dentro da casa de Júlio, esperam por ele quando ouvem um
d violento estrondo. Correm para o quintal.
o
SEQ. 34 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
e
n
t
e
s
m
e
n
t
73.
Vera e Naná chegam ao quintal. Júlio faz um esforço para se libertar dos ROGÉRIO - Não lembro.
destroços da máquina. Na mão traz a flor que a moça francesa lhe atirou. JÚLIO - O que decepou uma orelha.
ROGÉRIO - Vendo telas, não peças anatômicas. (Tom) Mas uma coi-
JÚLIO - Tudo bem aqui? sa lhe digo: nada de falsificaçôes. Dá cadeia.
Final do 4° capitulo. JÚLIO - Semana que vem trago os quadros.
5? CAPíTULO ROGÉRIO - Mas vamos lá: quem é o génio? JÚLIO -
SEQ.01 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA (Enfático) Vincent Van Gogh!

Júlio sai da máquina, sujo, com a roupa francesa em tiras. Vera e Na- Rogério não demonstra nenhuma reação, como se jamais tivesse ouvido
ná correm para ele. esse nome, enquanto Júlio se afasta e dirige-se, ás pressas, a um estabelecimento
especializado em molduras. O profissional vê as telas e pergunta:
VERA - Onde esteve, Júlio?
JÚLIO - Fui buscar esta flor para você. VERA - ENQUADRADOR - Quem é o cara? JÚLIO -
Mas de que altura isto caiu? Um imitador de Van Gogh. ENQUADRADOR
JÚLIO - Vera, querida! Quem sou eu para construir um avião? Isto - Imitador de quem?
não voa, viaja. Enquanto as telas são encaixilhadas, Júlio cuida também de anunciar a
VERA - Diga a verdade: viajou para o passado? exposição e venda dos quadros de Van Gogh. Esperava atrair uma multidão. Duílio
Júlio atira-se sobre os escombros da máquina. VERA - vai visitá-Io e diz:

O que está procurando? DuíLlO - Rogério me garantiu que o cara é bom.


JÚLIO - Que é bom! Mas que falta de respeito. O cara é Van Gogh. DuíLlO -
Sob os escombros ele responde: Quem?
JÚLIO - (Berra) Vincent Van Gogh!
JÚLIO - Parece que perdi um botão do paletó.
DuíLlO - Calma, não sou obrigado a conhecer todos os pintores.
Mas o que Júlio estava procurando era o bagageiro. Encontra-o. Algumas telas Minha especialidade é outra.
estavam chamuscadas, mas a grande maioria se salvara. Fica feliz. Agora o grande JÚLIO - Não leu nenhuma biografia dele? DuíLlO
negócio ia ter início. A primeira pessoa que procura é justamente Rogério, o novo - Não.
namorado de Vera. Precisava de seu salão para expor os quadros. JÚLIO - Não viu o filme da vida dele? DuíLlO
JÚLIO - A exposição vai render uns 100 milhões de dólares. Trata- - Não vi.
se do maior de todos os impressionistas. JÚLIO - Você está me gozando. Nenhuma pessoa civilizada ignora o nome
ROGÉRIO - O impressionismo está fora de moda. JÚLIO - de Van Gogh.
Este nunca sai da moda.
Na cena nO 12 Júlio vai visitar Vera no ateliê, entusiasmado corri a
ROGÉRIO - (Arrisca) Paul Gauguin?
aproximação da data da vernissage.
JÚLIO - Não.
ROGÉRIO - Degas? VERA - Não há tanta gente assim interessada na compra de qua-

dros, Júlio.
JÚLIO - Errou.
JÚLIO - Mas não se trata de um pintor qualquer. Vou vender Van Gogh! VERA -
ROGÉRIO - Manet? Cézanne? Monet? Será que ele vende tanto assim?
JÚLIO - Está ficando quente, mas não acertou. JÚLIO - Que pergunta! Você que sempre adorou Van Gogh! VERA -
ROGÉRIO - Um mais recente: Modigliani? JÚLIO - (Surpresa) Eu? Quem lhe disse?
Esfriou. JÚLIO - Então por que a reprodução de seu auto-retrato na parede?
ROGÉRIO - Picasso da primeira fase? JÚLIO
Júlio dá uns passos na direção da parede onde sempre esteve a re-
- Suba mais.
produção de Van Gogh. Mas ela não estava mais ali.
ROGÉRIO - Desisto.
JÚLIO - Que tal uma ajudazinha. (Tom) Um que era meio biruta. JÚLIO - Você tirou o Van Gogh? (Tom) Sempre esteve aqui ... VERA -
ROGÉRIO - Todos eram. Está enganado, Júlio. Aí eu tive uma folhinha ...
JÚLIO - Holandês. Júlio passa a mão pela parede, examinando e pensando. Mas logo conclui,
ROGÉRIO - (Tenta lembrar) Holandês impressionista? irritado:
JÚLIO - Viveu muitos anos na França.
JÚLIO - Então também entrou no complô? VERA -
(Também irritada) Que complô?
74.
75.
JÚLIO - Você, Rogério e Duílio ... Querem me gozar, dizendo que não Naná aparece, precipitadamente.
II1111 conhecem Van Gogh. Mas vou lhe fazer uma revelação. (Pausa dramática)
Viajei ao passado para comprar toda a obra dele. Ouviu? Minha cabine de NANÁ - Que foi, patrão?
III!
mágico era a Máquina do Tempo ... JÚLIO - Onde estão os livros de Van Gogh que comprei? Não encontro.
VERA - Não duvido, Júlio. Mas, mesmo sendo pintora, juro que jamais ouvi falar NANÁ - Não tirei livro algum das estantes.
do tal gênio holandês ... JÚLIO - Eram livros grossos, com gravuras.
JÚLIO - Uma brincadeira muito engraçada, Vera. NANÁ - Não sei deles, patrão.
JÚLIO - (Furioso) Você não vendeu eles no sebo? NANÁ -
A exposição foi bem organizada: bebidas, salgadinhos, garçãos, repórteres,
Imagine ...
mas nada de público. Um ou outro curioso entrou, espiou e saiu. Júlio não se
desesperou, à espera dum famoso crítico de artes plásticas, professor Marino, que, JÚLIO - Pelo sim pelo não, está despedida. NANÁ -
Despedída?
vendo as telas, logo reconheceria: são realmente de Van Gogh. O crítico atrasou mas
JÚLIO - Aposto que também está no complô. Quanto lhe prometeram? Um
chegou e foi examinar os óleos. Antes que saísse, Júlio aproximou-se.
milhão de dólares? (Sai nervosamente)
JÚLIO - Boa noite. Sou o proprietário dos quadros. Garanto a autenticidade
Júlio corre à biblioteca e procura no fichário obras sobre Van Gogh.
deles.
MARINO - Não ponho isso em questão. Mas acho as pinturas des se tal Van Não encontra. Vai a um jornal visitar um amigo, crítíco de cinema.
Gogh grosseiras, como se pintasse com o cabo dos pincéis. Os desenhos JÚLIO - Lembra dum filme de Kirk Douglas sobre a vida dum pintor?
são primários. Usa mal as cores e não estudou perspectiva. Temas banais. CRíTICO - (Tenta lembrar) Acho que não.
Alguns girassóis são razoáveis mas tudo aqui me lembra pinturas que os JÚLIO - O filme chama-se Sede de viver.
loucos fazem nos sanatórios como laborterapia. Podem ter interesse CRiTICO - Está enganado, Júlio. Kirk Douglas nunca fez filme com esse
científico, artístico, não. nome.
JÚLIO - (Espantado) O senhor diz isso de Van Gogh??? MARINO JÚLIO - A vida de Van Gogh.
- Nem todos os impressionistas eram geniais.
CRíTICO - Está equivocado. Minha memória é um computador. Como é
Júlio faz uma pausa e lança olhares para Rogério, Vera e Duílio, mesmo o nome do pintor?
cheios de rancor. JÚLIO - Esqueça.
JÚLIO - Mais uma coisa, professor. Júlio em seguida dirige-se ao telégrafo onde passa um longo telegrama para
MARINO - Diga. França. Na volta, uma kombi descarrega em sua casa os quadros da exposição com
JÚLIO - (Sibilino) Quanto lhe pagaram para me dizer essas boba- um bilhete lacônico de Rogério. Não aparecera nenhum interessado. Preenche os
gens ... ? Já estou entendendo o jogo. dias visitando livrarias e bibliotecas, mas sem muita esperança de ler em qualquer
MARINO - (Nervoso, trêmulo) Jogo? livro ou catálogo o nome de Van Gogh. Fazendo as pazes com Naná, dá-lhe um dos
Rogério, Duílio e Vera aproximam-se. girassóis pelos quais arriscara a vida. Ela pendura em seu quarto.
JÚLIO - Talvez não seja mera brincadeira. Vocês formam uma quadrilha ... Vera vai visitar Júlio e conta-lhe que, juntamente com uma amiga, co-
VERA - Júlio, por favor. nhecedora do assunto, estivera fazendo pesquisas sobre o impressionismo sem que
JÚLIO - (Seguro) Sim, uma quadrilha que deseja me arrebatar os quadros de nenhuma revelasse o nome do autor daquelas telas. Júlio então fala-lhe de V~n
Van Gogh por uma ninharia. Mas saiba que não os venderei por menos de Gogh, desde seus amores fracassados ao suicídio, como a própria Vera lhe fizera,
100 milhões de dólares ... (Enquanto fala, agarra o professor pelo braço) antes.
MARINO - (Apavorado) Me largue ... (Libertando-se, afasta-se) Entra Naná, com um telegrama.
Marino choca-se com um garção que traz uma bandeja com copos de uísque. NANÁ - Acaba de chegar.
No dia seguinte, diante do espelho, fazendo a barba com uma navalha, Júlio a Júlio abre o telegrama nervosamente.
abandona com receio de, levado pelo descontrole, amputar a orelha, como Van Gogh
fizera. Vai ao dicionário. Procura o nome de Van Gogh. Não encontra. Pega uma JÚLIO -' É da embaixada holandesa em Paris. Resposta duma solicitação que
enciclopédia e faz a mesma procura: nada. fiz.
! III! VERA - (Ansiosa) O que diz? Leia.
JÚLIO - Naná! Naná!
JÚLIO - (Lê) Atendendo à sua solicitação, confirmamos que um Vincent Van
'I Gogh realmente viveu em Paris em fins do século passado. (A Vera) Viu?
!I'I (Prossegue) Seu nome consta como dum próspero comerciante, falecido
em Veneza, aos 87 anos. Jovem ainda enriqueceu graças à compra de um
grande lote de ações da Compa-
I

II

A Moreninha foi o romance selecionado para dar seqüência à linha de novelas,


baseadas em romances brasileiros, que a TV Globo lançou no ano de 1975,
destinada principalmente ao público jovem. Havia, a princípio, certo
pessimismo da parte da maioria dos profissionais no tocante à adaptação de
romances nacionais, de coloração rósea, mesmo destinada a um horário de
sintonia juvenil. Temia-se que as estórias de época com seus cenários pesados,
seu guarda-roupa suntuoso, sua sonoplastia não do gosto atual da juventude,
como também seu linguajar mais empostado, afugentassem os telespectadores
em geral. Por isso, as primeiras novelas dessa linha, como Helena, de
Machado de Assis, e O Noviço, peça teatral de Martins Pena, não passaram de
tímidas experiências de vinte capítulos apenas para testar o misterioso
interesse público. Todavia, o resultado logo da primeira adaptação
surpreendeu, equiparando-se, em todo o país, aos grandes lançamentos da
Rede. Parece que já havia um público potencial para adaptações desse gênero,
constituído de estudantes de vários graus e de telespectadores que ansiavam
por novelas mais amenas, mais digestivas. Por outro lado, notou-se que a
nostalgia não parava na década de 1920, e que o guarda-roupa antigo podia ser
uma forma positiva de atração. Os professores colaboraram aconselhando os
alunos a acompanharem as novelas baseadas nos livros de nossa literatura. E
os editores foram beneficiados pela imediata procura de livros adaptados para
a tevê. Ficou assim desfeita a crença de que a televisão atrapalha, bloqueia o
interesse pela literatura. Faça-se essa pergunta a Jorge Amado e ele
responderá. Quem ver a novela, tendo poder aquisitivo, eompra o livro para
ler
nhia Telefônica Francesa. Realmente na mocidade conviveu com pintores de sua
geração, mas pelo que se sabe não se dedicou a nenhum tipo de arte.
Uma longa pausa, quebrada depois por Vera.
VERA - Você passou uma borracha no nome dele.
JÚLIO _ (Entendendo tudo) A ambição me ferrou. Se eu tivesse trazido apenas um
quadro, agora seria um homem riquíssimo ... E talvez tenha feito algo pior: matei um
artista.
Vera abraça-o, sorridente.
VERA - Matou o artista, mas salvou Van Gogh do suicídio ...
FIM

13
A Moreninha na tevê
Porque o horário, vespertino, exigia, e porque essa história fugia
bastante dos padrões do programa, fiz um roteiro simples, sem complicações
técnicas, mais preocupado com sua fluência e clareza. O absurdo também
precisa ter a sua lógica, daí a quase necessidade de contar O homem que
salvou Van Gogh do suiddio como uma história rotineira e em linha reta.
76.
"

ou presentear. Principalmente se for estudante. Agora, quanto à qualidade


da adaptação, isto é outro assunto.

Os críticos e as adaptações
As adaptações são o alvo prcferido dos críticos. Não falo dos críticos
especializados em televisão, pois cstes, em sua maioria, são apenas
noticiaristas ou comentaristas ligeiros, que nunca vão ao âmago da
questão. Falo dos críticos literários, que amiúde se ocupam das novelas
quando as mesmas são adaptações de romances. O que se diz geralmente é
que o autor não obedeceu à estória impressa e muitas vezes nem mesmo ao
seu espírito. Qualquer alteração é Ioga acusada de heresia e seu corpo
revestido de intocabilidade. Esse excesso de zelo, esse respeito exagerado,
geralmente revela apenas o azedume que o crítico ostenta como
deformação profissional ou um desconhecimento completo da matéria.
Não é possível adaptar-se um romance para a televisão e talvez nem
para o cinema, mantendo o adaptador tudo o que o livro contém. A maior
prova disso tivemos em Gabriela, a meu ver uma adaptação primorosa.
Teve o adaptador, Walter George Durst, que criar uma série de fatos novos,
desdobrar a ação de outros, valorizar personagens apenas mencionadas no
romance, incrementar conflitos, porém sem fugir ao clima do livro e ao
seu espírito de crônica duma cidade. Aí residia o grande valor da
adaptação: a novela teve o mesmo curso episódico do romanee, a mesma
liberdade, o mesmo tom casual. Um acontecimento puxando outro, sem
esquema, sem os ganchos tradicionais, e mantendo, o que foi mais notável,
a mesma linguagem de Jorge Amado. Durst fez aquilo que Jorge Amado
faria se escrevesse uma novela.
Adaptar para a televisão é isso, portanto: obedecer à obra literária
não em seus detalhes, mas no que ela tem de essencial, de permanente, de
contagiante, de verdadeiro. Uma adaptação ao pé da letra é inviável, tarefa
impossível, que só serviria para mostrar a falta de talento do adaptador.
Mas os críticos, desconhecendo as exigências do veículo, preferem se fixar
no respeito à obra em sua totalidade, o que nem chega a ser uma opinião, é
apenas uma teimosia.
O que acontece, e nisso sim a crítica poderia opinar, é que há livros
que podem ser adaptados com sucesso, outros não. Por isso, a escolha do
livro a ser adaptado é um problema sério e polêmico. Eu
já me vi com outros quatro ou cinco novelistas, numa sala, durante horas,
diante de listas enormes de romances, à proeura de um título que resultasse
numa boa adaptação. E agora já cabe uma pergunta: A Moreninha foi uma
boa escolha?
Não participei da escolha de A Moreninha para a tevê. Poucas
adaptações fiz nestes vinte anos de ofício. Para o gênero novela somente
uma, O príncipe e o mendigo, para a tevê Record, em 1971, uma emissora
que não contava com nenhum recurso para gravações externas, como o
romance de Mark Twain exigia. O príncipe e o mendigo sem áreas
abertas, sem cavalos, sem coches, foi de uma pobreza lamentável. Salvou-
se apenas a direção competente de Antônio Gichoneto e algumas
interpretações isoladas. Mas os resultados do lbope foram os melhores
possíveis para um canal que vinha de terrível derrocada. A Record, no
entanto, resolveu substituí-Ia por uma novela de atualidades,
interrompendo um filão que era mais que uma promessa.
No caso de A Moreninha a comunicação foi breve e telefôniea.
Eu teria que ler imediatamente A Moreninha e planejar sua adaptação.
Quem não leu esse romance de Macedo antes dos quinze anos? E já na
minha época a sedução que ele exercia não era muito grande. A releitura de
A Moreninha, depois de tantos anos, e já com os olhos de adaptador de
televisão, não foi estimulante. Mesmo nas adaptações anteriores, para
teatro e cinema, a solução foi o musical, devido naturalmente à pouca
densidade do entrecho, à falta de qüiproquós e à extrema candura da
estória. À primeira vista, A Moreninha não poderia ser nada mais que uma
opereta ou uma comédia romântica toda alicerçada em vinhetas musicais.
Nenhum grande drama, nenhuma paixão de fogo, nenhuma cena realmente
palpitante a que o adaptador pudesse se apegar.
Embora planejada para ser uma novela curta, duns setenta ou
oitenta capítulos, o material parecia exíguo demais. Não se pode encher
cerca de trinta e cinco horas de gravação com cenas de amor, evocações da
infância, um almoço, um sarau e um final previsto desde o primeiro
momento. Aliás, já em sua época, Joaquim Manuel de Macedo sofrera as
mais duras críticas devido ao seu romantismo epidérmico, apesar do
instantâneo interesse que despertava nas mocinhas casadouras. E hoje?
Como arrastar para o vídeo uma juventude inquieta e problemática, sedenta
de imagens, usando como ímã apenas uma pedra alpinisticamente galgada
por uma donzela ao cair da tarde? A tarefa era difícil, quase isso a que
chamam de desafio para estimular pessoas sensatas.
Fiz novas leituras do livro, sem encontrar nenhum caminho para uma
boa adaptação. Foi então que me caiu às mãos outro livro de Joaquim
Manuel de Macedo, que pouca gente conhece, e que supera a atração de
todos os seus romances: Memórias da Rua do Duvidar. Aí era o autor
descrevendo o que poderia ser um dos cenários da novela. Livro escrito na
década de 1870, fala dum Rio de Janeiro muito mais fascinante do que
aquele que se vê em A Moreninha, escrito em 1844. Em vinte anos o Rio
mudara muito. Já se tornava uma cidade com pretensões a metrópole. As ruas quase todas ilumi nadas a
gás, os barcos a vapor ligando o Rio a Niterói, alguns jornais circulando, as idéias republicanas e
abolicionistas mais amadurecidas, um Jóquei Clube, maior número de estrangeiros nas ruas e,
principalmente, sua grande artéria, a Rua do Ouvidor, com suas lojas e casas comerciais, suas
confeitarias vendendo sorvetes, suas modistas famosas e, logo na esquina da Rua Uruguaiana, o
Alcazar, o primeiro teatro burlesco inaugurado no país, com sua extravasante Aimée, vedete francesa,
espécie de antecessora de Jane Avril e de La Goulue, que Toulouse-Lautrec retrataria alguns anos
depois no Moulin Rouge.
Bem, com esse Rio já se podia fazer alguma coisa. A ordem era continuar pesquisando. Ler as
Memórias do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy, foi maravilhoso. Quase tudo sobre o Rio antigo está
lá. E os dois volumes de Aparência do Rio de Janeiro, de Gastão Cruls, completavam o panorama
desejado. O gosto pela pesquisa torna-se um hábito. Às vezes, vale a pena ler cem páginas para se ob ter
uma única informação. Por seu lado, a TV Globo também pesquisava para orientar a cenografia, o
guarda-roupa, a sonoplastia, a decoração, enfim, um mundo de detalhe que sempre dá realidade aos
trabalhos de época. Embora eu estivesse de posse de um livro de anúncios do Rio antigo, recebi
fotografias dum mundo de reclames dos arquivos de jornais. Era preciso saber o preço das coisas, o que
mais se vendia, o que mais se comprava, marcas de bebidas, refrescos da moda, nomes de
estabelecimentos, a identidade das pessoas que costumavam transitar na Ouvidor e inclusive as músicas
que Mademoiselle Aimée cantava no Alcazar.
Ficou então assentado que a estória se desenrolaria em 181768, e não apenas por causa da
fisionomia modernizada da cidade, mas porque nesses anos alguns acontecimentos tumultuavam a vida
da nação, incrementando, naturalmente, o interesse pelo jornalismo. Um desses acontecimentos era a
Guerra do Paraguai, longa e tormentosa, tendo como mais pungente episódio a retirada de Laguna,
mais tarde relatado com detalhes e dramaticidade por Taunay.
Um país em guerra e, ainda mais, contra uma nação supermili-
tarizada, como era então o Paraguai, é um bom pano de fundo para uma
estória. Essa guerra poderia ser de importância no romance. Principalmente
a trágica retirada, em que centenas de brasileiros perderam a vida. E
enquanto a guerra se travava nas fronteiras e no exterior, dentro dos nossos
limites avolumavam-se as mensagens abolicionistas e republicanas,
estimuladas em grande parte pela Loja Maçônica do Grande Oriente,
situada à Rua do Riachuelo. Tensão externa e interna. Das fronteiras, as
notícias, do centro, os boatos. Nada mais monótono e irritante do que um
romance de amor num clima de paz, com tudo correndo em ordem. Um
pouco de tumulto ajudaria para intensificar os lances.
No plano poético-literário, a transferência da ação da estória para
vinte e quatro anos mais tarde também oferecia vantagens. Álvares de
Azevedo e Casimiro de Abreu já eram uma saudade, enquanto os poemas
panfletários de Castro Alves já começavam a circular. Assim se poderia
criar uma linha divisória mais nítida entre o ontem e o hoje. Os primeiros e
os últimos românticos. Uma mostra inclusive do choque de gerações,
evidenciando que esse é um problema de todas as épocas. Abria-se ao
mesmo tempo um espaço mais largo para citações de poetas e escritores,
capitalizando-se o interesse do telespectador não apenas para Macedo como
também para outros autores. Entre estes, Manoel Antônio de Almeida,
muito citado pelos personagens, José de Alencar e Álvares de Azevedo, que
teriam em toda a novela uma grande importância.
O que se passava nos outros países é assunto do cotidiano dos
personagens, principalmente no que se refere às invenções. É feita a
primeira máquina de escrever experimental, inventam o ventilador e o
elevador. Fala-se num autocarro movido a vapor. Aprimora-se a fotografia.
A palavra eletricidade entra em circulação. O nome de Pasteur chega ao
Brasil. Romancistas como Balzac, Dumas e Vitor Hugo já são lidos aqui
por uma elite. Edouard Manet, que vivera na mocidade no Rio, pinta a sua
famosa Olimpia. É um mundo que revela os primeiros indícios de
mudança, no limiar de grandes invenções, revoluções sociais e artísticas, e
quase na agonia do romantismo da primeira metade do século. Resolvi
fazer então, sem a licença dos puristas, uma Moreninha menos estática,
imobilizada em sua pedra, menos desligada, talvez mais sensual, e um
pouco preocupada com o que acontecia em seu redor. Romântica, sim,
mas não "groselhosa", e, como todas as moças da sua idade, fascinada
pelas notícias que vinham do exterior através da sensacional novidade
do telégrafo e dos rápidos navios movidos a vapor. Podia morar em
Paquetá, com sua avó Da. Ana, mas ter o espírito voltado para a Rua do
Ouvidor com seus estabelecimentos feericamente iluminados a gás.
Os personagens O primeiro estímulo que recebi ao come- to, Bugrinha e outros clichês de imediata fixação visual. Outro ele-
çar a taretà insana do primeiro capítulo foi mento de sucesso foi sem dúvida a paradisíaca ilha de Paquetá, pois o
do diretor da novela, Herval Rossano. Bem-sucedido com novclas amor numa ilha dá maior sensação de intimismo e sinceridade. E, por
anteriores do gênero, já aludidas, deu-me ele a liberdade de criar fim, a novidade da publicação de um livro de literatura brasileira, da
inclusive novos personagens, caso fosse necessário ao interesse da qual Macedo foi cronologicamente um dos precursores.
estória. Não é possível escrever mil e quatrocentas páginas movi- A preocupação imediatamente anterior à criação ou recriação dos
mentando apenas um punhado de personagens. Em A Moreninha, os personagens foi de não situar a estória apenas ou em sua maior parte na
personagens são poucos. Poucos e não muito definidos. Os quatro ilha. O Rio ou a Corte, como ainda diziam os mais velhos, era cenário
rapazes - Augusto, Filipe, Fabrício e Leopoldo - muitas vezes parecem mais empolgante. Tratei de dividir a ação com seus cenários: parte no
irmãos gêmeos, física e espiritualmente. Augusto e Fabrício são os que Rio de Janeiro, parte em Paquetá. Pude, então, pensar nos personagens.
mais se confundem. O autor tratou apenas de dar êntàse ao amor de
Augusto e Carolina, a Moreninha. As moças têm também a mesma Carolina Carolina é a suavc Moreninha de Macedo, persona-
origem ovular: Carolina, Clementina, Joana, Quinquina (que chamei de gem inspirado naquele que seria sua esposa, prima em
Quininha) e Gabriela (que mudei para Marina). Moças que querem segundo grau do poeta Álvares de Azevedo. A apresentação ou criação
casar, nada mais. Macedo apenas deu mais impulso à sua criatividade ao de galãs com suas damas é sempre um problema na televisão c no
compor as figuras de Violante, a solteirona, Keblerc, o alemão cinema. No geral são personagens que marcham em linha reta, como
cervejeiro, e Tobias, o negrinho escravo com mania de falar difícil. No um tapir, para o casamento, a solução de todos os males e a satisfação
resto se omitiu, mas não precisaria de mais nada para alcançar o sucesso de todos os anseios. Em se tratando da Moreninha, Da. Carolina, a coisa
que obteve e que ainda obtém. era ainda mais grave, porque era ela uma romântica quase típica. Afora
Mas qual foi o motivo de tantas edições deste livro? A explicação suas travessuras juvenis, era uma jovem feita para o casamento. Apenas
é simples e reside no próprio título do romance. Numa época em que as a cor de sua epiderme e dos seus cabelos a diferençava um pouco das
heroínas da ficção eram loiríssimas, Macedo resolveu lançar uma outras. Não era, evidentemente, uma Capitu nem uma Sofia, com suas
moreninha, brasileiríssima, embora de alma loira. Mais de cem anos atrações misteriosas e um complexo mundo exterior. Por outro lado, eu
depois, Jorge Amado faria coisa semelhante lançando uma heroína não podia modelar na novela uma heroína que fosse o avesso de seu
mulata. Aliás, aproveitando o êxito de seu livro de estréia e sem sair de modelo literário. A primeira providência,já aludida, foi integrá-Ia em
sua linha pigmentária, Macedo publicava em seguida O moço loiro, sua época - os anos 1860. A segunda foi definir seu relacionamento com
causando um susto nos heróis morenos da moça tradicional. Estava os demais personagens. Se na vida real a musa de Macedo era prima de
pronta a grande receita, que abriu caminho para O mula- Álvares de Azevedo, fiz que o personagem o fosse. Mais ainda, liguei-a
estreitamente ao grande poeta da Lira dos vinte anos através de seu
irmão, Filipe, também poeta, à maneira dos românticos da primeira fase.
Para Filipe logo se prenuncia um fim triste, como o do primo ilustre, e
Carolina, talvez por temer perdê-Io cedo, dedica-lhe profunda e
solidária amizade. Será sua insubstituível companheira até o fim. Outra
ligação bastante afetiva da Moreninha é com Marina (Gabriela), que
inutilmente ama Filipe, à espera de vê-Io livre de sua obsessiva paixão
por Clementina. A Moreninha é na novela um personagem ativo, que
77.
resto do mundo. Também é intensa a amizade que prende a Moreninha
tem opinião ao negro Simão, escravo fugido, que, protegido pelos estudantes, luta
e toma até o final para preservar sua perigosa liberdade.
partido. Sabe Difícil para I-Ierval Rossano, o diretor da novela, foi a escolha da
amar e odiar atriz que viveria a Moreninha. Muitos nomes foram lembrados, mas a
também.
escolha final recaiu sobre Nívea Maria, que vinha de alguns êxitos e que
Sentimental-
já estava a merecer um papel principal.
mente, custa
a decidir-se
Augusto Augusto era um estudante de medicina, como está no
entre
livro. Na época em que Macedo escreveu A Moreninha,
Fabrício e
estudava-se medicina no Rio e direito em São Paulo. No Rio já existia
Augusto,
Faculdade de Direito, mas a famosa era a das Arcadas. Álvares de
ambos
Azevedo estudara em São Paulo e Castro Alves viajara muito para
estudantes de
matricular-se na faculdade paulista. Os personagens de Macedo, sempre
medicina e
bastante radicados na vida da Corte, não se abalariam de lá para estudar.
amigos,
Segundo a descrição do romance, Augusto, por estar ligado a um amor
decidindo-se
de infância, uma menina que conheceu e perdeu no mesmo dia, e por ter
afinal por
tido na juventude três romances fracassados, tornara-se um cético no
aquele que
amor. Gostava de namorar, mas fugia aos compromissos. Seu namoro
conhecera e
com a Moreninha começou, pois, como uma brincadeira, algo para
amara na
preencher as horas dum fim de semana em Paquetá. Na novela esse
infância,
espírito foi mantido: Augusto aproximava-se das moças e escapava do
levada a
amor com a mesma velocidade. Essa descrença, esse medo de ficar
identificá-Io
envolvido, é o que afugenta Carolina e lança em cena seu rival e amigo
por uma
Fabrício.
incrível
Na novela, porém, Augusto tem outras preocupações. Uma delas é
coincidência
seu pai, também médico, viúvo, cuja vida isolada, com um escravo
romântica.
liberto, seu afastamento da medicina e de amigos, seu recolhimento
Seu
incompreensível, torna-o verdadeiro enigma para o filho. E
relacionamen
to com a avó,
a sábia Da.
Ana, é mais
um encontro
do que um
deseneontro
de gerações,
c muitas ve-
zes o diálogo
das duas é o
jornal que
narra ao
telespectador
o que
acontecia
naqueles
anos no Rio,
no pais e no
esse enigma abolicionistas e complicando a sua vida. O estudo c o amor chegam a
cresce ainda ficar em segundo plano. O principal para ele era evitar que o
mais quando desprotegido fugitivo caísse nas mãos vingativas de João Bala. É esse
André, é alheamento à causa, essa luta sem compromissos ideológicos que fazem
como batizei de Augusto um herói por acaso, um soldado sem bandeira, um
o pai de aventureiro abolicionista, embora de todo entregue à sua missão. No
Augusto, entantO', para ele tudo se resumia em salvar um negro, Simão, c não em
elege salvar os negros.
Leopoldo, Outro aspecto da personalidade de Augusto é sua fiel amizade a
colega deste, Filipe, irmão de Carolina. Filipe amava Clementina, conhecida da
seu amigo e família, mas, como nos versos de Drummond, cla amava Augusto, que
confidente. amava Carolina. Aí então o seu drama, pois não sendo de todo
No indiferente a Clementina tinha que zelar para não magoar e humilhar o
tocant amigo. E essa situação se estende até que Augusto no final se define pela
eà irmã de Filipe, reconhecendo nela, depois de alguns anos, a mesma
aboliç menina que o encantara durante uma manhã inesquecível.
ão,
Augus Filipe Filipe é o irmão de Carolina, dois anos mais velho do que
to é ela. Frágil, enfermiço, estudante de medicina, mas sonhando
mudar-se para São Paulo e ingressar na Faculdade de Direito para repetir
levado
um capítulo da vida de seu primo Álvares de Azevedo, falecido sete
a ela anos antes do início da ação da novela. Filipe, mais que primo, é um
pelo irmão gêmeo de Álvares de Azevedo e poeta igual a ele, embora inédito,
sentim e sem a certeza de seu talento. O amor à irmã e à avó substitui o afeto
ento. materno e paterno de órfão. Mora na república de Da. Lalá, com seus
É ele que colegas, onde é o habitante mais retraído.
esconde o Seu desastre foi conhecer e apaixonar-se por Clementina, cuja tia,
negro Simão Violante, pertencia a seu clã familiar. É um amor desastrado, sem
na república compensação de espécie alguma, não correspondido desde o primeiro
de momento, amargo, persistente e suicida. Clementina em momento
estudantes. algum se dignou ao menos a ler um dos versos que inspirava no poeta.
Mais tarde é Prática, moderna, auto-suficiente, repudiava os homens do ti-
ele que o
leva para a
casa de Da.
Ana em
Paquetá. Pisa
nesse terreno
como em
areias
movediças.
Obrigado a
ocultar
Simão em
toda a parte,
vai-se
emaranhand
o nas lutas
78.
:1
po de Filipe, ostentando vivo desprezo àqueles que se atirassem aos seus
II pés. Todo o seu amor, mesclado de astúeia e cálculo, eoncentrase em A
M
Augusto, o que Filipe não tarda a perceber. Ele, todavia, é incapaz de livrar- O
R
se da obsessão inicial, disposto a amá-Ia até as últimas conseqÜências, E
mesmo sem nenhuma esperança. É um amor todo alicerçado naquilo que NI
N
Filipc lcu, nos vcrsos quc decorou, na amargura romântica que trazia da H
A
inü1ncia e que, por hcrança familiar, vinha de Álvares de Azevedo. Ele é o N
produto dum tipo de formação, duma época, dc todo um bclo período de A
TE P
vida e poesia que entrava em declínio. Clementina, sem nenhuma educação V
Ê
artística, não poderia entendê-l o e foge dele como quem foge do caos. 11
7
Vítima desse amor, Filipe, porém, não se mantém al~lstado das lutas
abolicionistas. João Bala, o feitor, era para ele o Inimigo. Não meramente o
opressor dos negros, mas seu inimigo pessoal ou o próprio destino
invencível que no íntimo ele odiava.
Envolvido pelos amigos da tàculdade e da repÚblica, ajuda a Por sugestão de Filipe, Leopoldo é levado para a casa de sua avó, em
esconder o negro fugitivo Simão, levando-o depois, vestido de mulher, para Paquetá, a fim de recuperar-se. Necessitava, inclusive, de tempo para
a casa de sua avó em Paquetá. E é aí na ilha que, na convi vência com medítar no rumo que daria a seu destino, na troca do certo pelo incerto. Na
Clementina, acentua-se o seu fracasso sentimental, e o seu grande drama ilha, Leopoldo fíca conhecendo duas primas de Filipe, Joana e Quininha,
interior toma corpo. No final, desprezado pela mulher que ama, surrado pelo filhas de mãe viÚva, jovem ainda e abastada. A princípio, Joana se interessa
feitor João Bala, já muito doente, embarca para São Paulo numa carruagem vivamente por ele. Como moça dominadora e possessiva que é, tenta
que levaria o seu cadáver. modelar Leopoldo à sua maneira, como sempre tentava fazer com seus
admiradores. Mas, em relação a Leopoldo, encontra um obstáculo: ele não
Leopoldo Um dos quatro amigos da república, o mais pobre se sentia inclinado a tornar-se um marido exemplar, voltado para o lar e
entre eles. Quando a novela inicia, ele é considerado para a família. A segurança burguesa não era a sua meta. Todavia, sua irmã
morto pelos companheiros, mas logo aparece, doente e em farrapos, como mais moça, Quininha, sente-se atraída por aquele rapaz tão diferente dos
um dos retirantes da Laguna. Leopoldo partira para a Guerra do Paraguai muitos que já conhecera nos saraus de menina rica. Não a seduzem as
como voluntário. Não tendo interesse pela medicina, quis viver a aventura idéias polítieas de Leopoldo, mas seu lado aventuresco. Joana, no entanto,
maior daqueles dias: seguir para os eampos de luta. Depauperado pela não quer admitir a derrota e, recuando aqui c ali, entra em franca
cólera-morbo, é internado num hospital, ficando sob os cuidados do Dr. competição com a irmã, num obsessivo jogo dc personalidade.
André, pai de Augusto. Recupcrado, Lcopoldo volta para o Rio, abandona a medieina e,
Entre os dois, o médico e o doente, surge logo uma real amizade. como planejara, ingressa no jornalismo. Aproximando-se cada vez mais de
Diz-lhe Leopoldo que, durante a guerra e sua enfermidade, tivera tempo de seu médico c amigo Dr. André, entra para a Loja Maçônica do Grande
sobra para pensar, terminando por encontrar um ideal para a vida. Pretendia Oriente, participando das lutas subterrâneas pela abolição e repÚblica. Seu
abandonar a medicina e ingressar no jornalismo, para assim participar da amor por Quininha logo se evidencia, mas em primeiro plano coloea
campanha em prol da abolição e da república. É um rapaz sério, sempre seus ideais políticos. Para salvar o negro Simão, que simboliza na
atormentado pelos problemas e mazelas de sua época. novela todos os horrores da escravidão, arrisca a vida consecutivas vezcs,
demonstrando sempre incomparável coragem. Nos últimos capítulos,
excessivamentc enredado nas malhas das conspirações, acaba perseguido e
martirizado, sem que sua amada e seu mentor, Dr. André, figura
exponencial da maçonaria, possam fazer nada por ele.

Fabrício Fabrício é um dos personagens mais fascinantes da no-


vvela. É ele o comediante, o eonquistador, o grande
alienado. Estudante abastado, procura extrair da vida tudo o que ela oferece
de bom e supérfluo. Seus romances são curtos, acidentados e bem-
sucedidos. Mas é justamente o aludido alienamento, a futilidade de suas
ações, que o leva a complicar-se com a abolição, ajudando os colegas a
salvar o negro Simão de seus perseguidores. Faz por brincadeira o que os
outr licionista. Oriundo de família rica, não crê que o país possa prescindir
os dos negros para seu progresso. Defende a escravidão com palavras c
faze duvida da viabilidade da república. É um vivedor, e é com o interesse de
m a namorar que se reúne com os amigos em Paquetá, onde a avó de Filipe
séri comemora, no dia de Santana, o seu aniversário.
o. E Na ilha, as moças, já cientes de quem era Fabrício, principalmente
não Joana, que o conhecia, resolvem não ceder aos seus encantos,
com torturando-o com "nãos" sucessivos. Fabrício, posto à margem, cai em
men si, e, mudando de tática, decide "paquerar" uma só ao invés de todas. A
os escolhida é Carolina, a Moreninha, o que o coloca como rival de seu
cor amigo Augusto. Mas acontece o inesperado: Fabrício, cansado de ser o
age clichê gasto de conquistador, apaixona-se realmente por Carolina, o que,
m e para seu tormento, ninguém acredita.
hab No Rio, Fabrício vive simultaneamente uma grande aventura
ilid amorosa com a vedete-mo r do Alcazar, a bela Aimée, a mulher mais
ade. cortejada em toda a cidade naqueles anos. É porém um amor secreto,
Por pois a francesa é a hipnótica paixão de um amigo seu, já balzaquiano,
ém, chamado por todos de Belo Senhor, que vive com ela um romance de
qua aparências, não correspondido, mas que satisfaz sua vaidade de
ndo transeunte da Rua do Ouvi dor.
a Fabrício chega a namorar a Moreninha, a pedi-Ia em casamento e
abo quase a casar-se com ela, desafirmando todas as pragas já proferidas
liçã contra as uniões indissolúveis. Mas Carolina vivia à procura do seu
o é namorado da infância, que lhe deixara um breve, espécie de relíquia
o religiosa, como lembrança e Fabrício não era esse homem. Embora
tem perdendo no amor, esse Jack Lemmon do século passado não perde no
a jogo da vida. Acaba bem a sua estória com um casamento de
em conveniência que o aproxima ainda mais do sonho de ser proprietário de
disc um hospital e não simples médico.
us-
são, Dr. André Dr. André, médico, é pai de Augusto. Homem atua-
ele lizado, passou alguns anos na Europa, onde se fami-
se liarizou com as teorias e experiências de Pasteur e tomou contato com
mo as invenções de sua década. Mas, em seu regresso, afasta-se um pouco
stra da profissão, sem explicações visíveis para o fato. Seu filho
, imagina que o pai, viúvo, possui alguma paixão que insiste em man-
par
ado
xal
me
nte,
um
anti
abo
ter amigos, e inexplicavelmente também o boêmio Belo Senhor.
em A incógnita, porém, é logo revelada ao telespectador. André
seg voltara da Europa com novas idéias, que eram a abolição e a república.
red E, para dar curso aos seus ideais, participa efetivamente, mas com a
o. discrição exigi da na época, das reuniões da Loja Maçônica do Grande
Se Oriente, na Rua do Riachuelo. Apesar de dividida, agora a maçonaria
u voltava a atuar com desassombro. Afinal, fora ela a maior artífice da
Ún independência do país. O élan que José Bonifácio lhe dera, antes c
ico depois de D. Pedro I, retomava com igual ardor. Dr. André em breve
ínti escalou vários graus, tornando-se voz ativa na loja. Mas não sc limitava
mo a ser apenas um divulgador de idéias. Vai mais além. Transforma-se
par num salvador de negros fujões. Ligado a tàzendeiros e proprietários
ece abolicionistas, conduz os negros fora-da-lei a lugares seguros onde
ser possam viver em liberdade. Um verdadeiro Pimpinela Escarlate,
seu camuflado e ativo, e totalmente insuspeito para a maioria.
esc
Sentimentalmente, o Dr. André quase se deixa enredar em sua
rav
o visita a Paquetá, onde vai prestar assistência a Leopoldo. Lá fica
lib conhecendo Da. Luísa, mãe de Joana e Quininha, primas de Filipe,
ert viÚva de um rico homem do comércio e extremamente apegada a seus
o, bens. Luísa proíbe Quininha de alimentar ilusões em Leopoldo, devido
o às idéias perigosas, e sem o saber acaba se enamorando do mentor do
ve- estudante, crendo tratar-se de um aburguesado médico da Santa Casa.
lho Dr. André, figura definida de quem sabe o que quer, capaz de
Be renÚncias, afasta-se de Da. Luísa, elimina a possibilidade de um ca-
nja samento feliz, mesmo quando, após o martírio de Leopoldo, chega a
mi duvidar do sucesso de suas lutas. André representa na novela a per-
m. sistência dum ideal, a extrema consciência duma posição política, e é o
Ma retrato de muitos homens que, naquele tempo, anteciparam-se em
is pugnar por aquilo que para a maioria ainda era indiferente.
tar
de, Da. Ana Da. Ana é a avó de Filipe e Carolina, de Joana e Qui-
Le ninha. Vive em Paquetá onde resolve reunir parentes e
op amigos no fim de semana de seu aniversário. Perto dos setenta, mantém
old fascinante lucidez e simpatia. Isolou-se em Paquetá por não suportar
o mais o trânsito de coches na Corte e, o que era pior, os bon-
pas
sa
a
ser
um
dos
seu
s
rar
os
e
dil
cto
s
79.
:.,~

des puxados a burro sobre trilhos da Botanic Garden Rail Road Company. e ciente de que em todas as épocas e em todas as cidades há um Belo
Apesar de seu espírito liberto, via com muita desconfiança as invenções da Senhor, situei-o em 1868, morando com os estudantes na república, e
época, a maioria ainda em projeto. Acha, por exemplo, que as novas apaixonado pela vedete principal do Alcazar, Aimée. Tanto este como
conduções e o elevador, já anunciado na Europa, juntamente com a máquina aquele possuem o mesmo hábito de imitar assinaturas, caminho que o
de escrever, tornariam o homem demasiadamente preguiçoso. Quanto aos contemporâneo da Moreninha encontra para chegar com uma jÓia
modernos lampiões a gás, temia que pudessem envenenar a população. Em caríssima, que nunca poderia comprar, ao coração da cobiçada francesa. O
suma, Da. Ana é a própria previsão do futuro, embora seu vocabulário que ignora, e que depois saberá, é que Fabrício, sem esse expediente
desconheça a palavra poluição. Das novidades do seu tempo, a mais condenável, consegue com Aimée resultados ainda melhores, bastando lhe
aceitável é o sorvete. Foi das primeiras senhoras a tomar sorvete nas oferecer a sua juventude. O Belo Senhor é preso, no final, não por ter
confeitarias da Ouvidor, isso quando o gelo vinha ainda do lago Potomac. participado do episódio do negro Simão, não por ter se aliado a rebeldes
Não é ranzinza mas irônica, divertida. De resto, é generosa, alegre e capaz abolicionistas, mas simplesmente por falsa identidade e estelionato,
de penetrar a alma das pessoas. Em matéria de literatura, está em dia com os enquanto a bela do AIcazar regressa à França, depois de sua longa e
autores europeus, principalmente Balzac, e entre os nacionais menciona vitoriosa temporada no Rio de Janeiro.
sempre Manuel Antônio de Almeida, devido às suas lembranças dos
meirinhos. Quanto a Castro Alves, faz restrições por causa dos seus amores Da. lalá e Rafael Da. Lalá é a proprietária da pensão Estre-
escandalosos. Ouvida sempre pelos parentes, fala com razoável sabedoria, e la, no largo do Rossio, onde, além das quatro
seus conselhos são mais aceitos que temidos. jovens moças da novela, moram outros estudantes de ação episódica. A
Da. Ana é, mais que qualquer personagem da novela, a visão crítica tônica de sua personalidade é sua paixão desenfreada e caricata pelo Belo
da época, com sua ironia e ceticismo. Não morre de amores pelo imperador, Senhor, com quem sonha freqüentar o Alcazar. E é ela que lhe empresta
não chega a ser uma beata. E acha ilusória a impressão de que a máquina dinheiro que ele torra justamente com sua famosa rival. O Belo Senhor faria
salvaria o homem. No tocante à abolição, é no contato com o DI'. André que bom negócio se casasse com ela, mas suas ambições são mais altas e
passa a defendê-Ia, participando das manobras para esconder o negro mundanas. Por amor ao seu inquilino, Lalá também se envolve com o feitor
Simão. Mas reconhece tardia a sua participação, tanto que sua maior João Bala, sempre farejando o rastro de Simão.
preocupação continua a ser os netos. É quem mais sofre com os insucessos O gesto mais tresloucado dessa ex-pacata senhora é agredir Aimée
de Filipe e a mais solidária com Augusto em seu amor por Carolina. em pleno passeio, quando tenta desnudá-Ia aos olhos de todos. Mas, quando
seu amado é preso, ela o perdoa e faz o possível para resgatar sua dívida.
o Belo Senhor O Belo Senhor é um boêmio histórico do Rio Mais importante que ela, talvez, seja sua pensão, onde os estudantes vivem
em algazarra e comentam os fatos do dia. É o jornal da novela, o cenário
de Janeiro, descrito por Manuel de Macedo em
onde se informa o que acontecia em 1868.
seu livro Memórias da Rua da Duvidar. Mas ele viveu em época muito
anterior, em plenos dias da devassa que perseguiu os Inconfidentes no Rio. Quanto a Rafael, garoto, escravo de Lalá, é um telefone de recados,
Foi ele amante da Perpétua Mineira, que teria escondido Tiradentes em seu mensageiro de bilhetes perigosos, mas bem-humorado, simpático, veloz e
ateliê de costura. Sempre bem vestido. Porém sem dinheiro, gostava de eficiente. Deve ter havido muitos iguais a ele naqueles dias, pois a missão
mais importante dos negrinhos escravos, nas grandes cidades, era a
imitar assinaturas alheias, fazendo do estelionato um esporte e uma prática
comunicação rápida. Graham Bell veio depois.
para freqüentar as lojas com falsas cartas de apresentação. Para ligar duas
obras de Macedo,
80.
João Bala e Jerô João Bala é o vilão da novela. Descenden- A MORENINHA NA TEVÊ
123
te de capitães-de-mato e feitores de escravos,
seu trabalho é a caça ao negro fugitivo, o que faz com indiscutível zelo.
Mas, no caso do negro Simão, apenas um escravo um pouco mais rebelde
que os outros, João Bala, sem esperar, se expõe a uma derrota pública,
comentada divertidamente pelos jornais. O insucesso de João Bala chega a
tomar as proporções da queda da própria escravidão. Ele, que era capaz de
levar dezenas de negros fujões de volta ao cativeiro, de repente não
consegue o mesmo êxito com um ao menos, embora ajudado pelo seu fiel
Jerônimo --- .Ierô. O que acontece é que espontaneamente, sem nenhum
plano, todos decidem esconder Simão, salvá-Io das garras de João Bala. E
muitos, por motivos pessoais, não ligados à luta pela abolição.
Na realidade, apenas duas pessoas lutam contra Bala como se
lutassem contra a escravidão: Dr. André e Leopoldo. Apenas estes dois eram
abolicionistas conscientes, que defenderiam Simão como qualquer outro
negro. Os outros têm razões particulares e até secretas para isso. Augusto
interessa-se por Simão, porque o viu perseguido e surrado na praia; Juca, o
taberneiro, porque Simão se escondeu em seu estabelecimento e tinha
pressa de livrar-se dele; Fabrício, por espírito de aventura; Filipe, por
solidariedade aos amigos; Lalá, por amor ao Belo Senhor; Quininha, para
afirmar sua identidade com Leopoldo; Da. Ana, para se entrosar com o
espírito da época; Carolina, por amizade a Filipe. O certo é que todos,
mediante ações isoladas ou conjuntas, lutam contra Bala, tramam, enganam,
ocultam, despistam, usando todas as armas sutis da astúcia.
Bala é uma repetição do Vidigal do Sargento de Milícias, embora
ainda mais cruel e vigilante. Sua caça a Simão torna-se uma luta de vida e
morte, incansável, obsessiva, javertiana. É, em suma, a luta de todos os que
sempre se opuseram à liberdade e ao progresso. A ignorância armada contra
a inteligência de braços atados. A lei, dos opressores, desafiada pelos
oprimidos.

Juca Juca é o proprietário da Taberna do Juca, um bar com violeiros


ocasionais, que serve a desagradável cerveja marca barbante. Já existia, na
ocasião, a cerveja de tampinha, mas a outra ainda persistia, fechada com
rolha e amarrada com barbante. Juca é um homem comum e simpático,
amigo dos estudantes. Tudo vai bem
traidor, e esse traidor é Juca. Não, porém, um Silvério dos Reis. Juca trai por
em seu boteco medo, trai porque seu sistema nervoso não agüenta muitos impactos.
até o dia em Logo em seguida, Juca, querido de todos, começa a viver o drama do
que Simão se remorso, mais grave que o do pavor antigo. Torna-se o responsável pela
esconde lá, prisão do negro Simão. A comemoração é feita em seu próprio
dentro dum to- estabelecimento. Não resiste. Suicida-se.
nel vazio de
vinho. Aí Aimée O Alcazar foi o primeiro teatro burlesco do Rio de Janei-
começa seu
ro. Inaugurado em 1864, na Rua Uruguaiana, apresentou logo,
triste
como atração máxima, a cantora e bailarina Aimée, recémchegada da
envolvimento
França. Retratos da época mostram uma trintona bolachuda, sem grande
no drama do
beleza, mas o fato é que ela fez furor. Machado de Assis, então jornalista,
negro
sem ainda ter escrito nenhum romance famoso, escreveu mais de uma
foragido. Juca
crônica sobre Aimée, em tom de admirador apaixonado e sem muito senso
é solidário
de ridículo. Em suas Memórias da Rua do Duvidar, Macedo deplora o
com Simão,
sucesso do Alcazar, que estava esvaziando as casas de espetáculo destinadas
mas lhe falta
ao teatro sério. Era a vitória do gênero pornô, hoje igualmente combatido no
fibra para
cinema.
participar da
luta, aliás Aimée, apesar da crítica azeda de Macedo, foi incorporada à história
como à brasileira do século XIX. Quem falar do Rio antigo tem que falar de Aleazar
maioria das e de sua extravasante vedete. Aí começava o Rio metrópole, que por
pessoas antecipação já apresentava cenas do que seria décadas mais tarde, na França,
naqueles dias. o rumoroso "fim de século".
Seria capaz de Que me perdoe Macedo, por ter colocado sua donzelesca Carolina ao
fazer tudo por lado de Aimée nessa adaptação de A Moreninha para a tevê. Eu é que não o
Simão, se não perdôo por não ter escrito mais, com informações minuciosas, sobre essa
corresse figura cativante do Rio mundano, que a tevê vai ressuscitar nesse trabalho.
perigo. Nem
ele nem sua
taberna, seu
único bem.
Mas João Bala
não tarda a
descobrir isso.
Ameaçando
destruir a
taberna,
intimida Juca,
que acaba ce-
dendo. Assim,
Bala consegue
um aliado.
Nem todos são
heróis nesta
estória. Há um
81.

Violante e Keblerc
!
Tobias e Duda Da. Ana, a simpática aniversariante de Paque- Clementina Clcmentina, na novela sobrinha de Violante, não
tá, tem dois escravos: Tobias e Duda. Tobias é um chega a ser a vilã da estória, mas é a que vai con-
negrinho muito bem vestido e metido a falar bem. Cobra todos os favores centrar os rancorcs do público. O amor à primeira vista que desperta no
que faz pelo dcsejo de mais tarde comprar sua carta dc alforria. No fim, frágil Filipe é correspondido por um desprezo à primeira vista. Talvez por
acaba recebendo a carta dc prcscnte, das mãos de Da. Ana. Ela, porém, lhe um problema epidérmico, Clementina repele o jovem poeta em todas as
pede um favor em troca: que permaneça na ilha, tàzendo-Ihe companhia. suas investidas românticas. Nega-se, inclusive, a lhe conceder o diálogo.
Tobias se comove, mas não lhe diz sim. É que já escolhera seu destino. Quando Filipe é agredido por João Bala, Clementina não vai vê-I o no seu
Queria ir para o Rio. Fazer o que lá? Ser ator, pois sabia cantar, dançar e leito de acidentado. Filipe escrevelhe versos. Clementina não os lê. Essa
imitar pessoas. "E é capaz também de fazer chorar", acrescenta Da. Ana, indiferença por seu irmão desperta o ódio de Carolina. Avulta entre as duas
vendo-o partir. uma inimizade irreconciliável, agravada pelo interesse de Clcmentina por
Duda é a bela escrava que recebe Simão, quando este chega à ilha, Augusto. E como Carolina não se decide, ligada ao seu romance juvenil,
vestido de mulher. O que acontece cntre os dois é o amor imediato de dois CIcmentina consegue ganhar terreno e influencia Augusto. Com seu ativo
saudáveis exemplares de sexos opostos. Mais tarde, Duda é hospedada na desprezo, Clementina arranca Filipe do que poderia ser o seu destino. Sua
casa do Dr. André, para onde, logo em seguida, Simão é levado para trocar prÓpria inspiração seca. Ele se torna um inútil. É um desprezo que mata.
de esconderijo. O romance entre os dois continua aí, agora dramatizado pela
ameaça duma separação imediata e definitiva. Duda não vacila em pôr sua Quininha e Joana Filhas de Da. Luísa, netas de Da. Ana,
vida em risco para salvar Simão, vivendo os dois, nessa casa, acossados por Joana e Quininha representam o tipo de
João Bala, alguns dos capítulos mais pungentes da novela. moças da classe abastada da época, que debutavam nos saraus familim"es.
Violante é um dos poucos personagens que mantêm na novela a linha que Joana é a de personalidade mais forte, habituada a "dobrar" seus
lhe deu Macedo: a da viúva espevitada. Assim foi conservada na adaptação namorados. Seu interesse por Leopoldo é normal até que ela sente a
teatral e cinematográfica. Encarrega-se de muitas das vinhetas 11Umorísticas impossibilidade de ajustá-lo a seus interesses. Ao eontrário dela, sua irmã,
da novela, sempre em sua intenção de coletar clogios dos mais jovens para mais modesta, mais feminina, mais dócil, aceita o homem que ama como é.
se fazer amada por Keblerc. Orgulha-se mesmo dos ideais de Leopoldo. Vê o "namorado secreto" eomo
um herói, um tipo completamente diverso dos rapazes que já conheccra.
Mas é feita duma tênue matéria, e quando Leopoldo caminha para seu
martírio, quando ela vê que seus ideais têm o gosto de sangue c quc podem
conduzir à morte, ela se apavora e procura regressar, acovardada, a seu
Keblerc é um bebedor de cerveja. Chegou ao Rio disposto a criar
destino burguês.
uma indústria, mas acabou fascinado pelo paraíso de Paquetá e seus ócios.
No entanto, não se interessaria por Violante, se os rapazes não recorressem
a um truque: cada um por seu turno chega-se a Keblerc e confessa seu amor Luísa É a viúva sedutora, uma balzaquiana à Machado de Assis,
por Violante. Fabrício vai mais longe e fala em suicídio. Depois dessa farsa solidamente plantada numa situação financeira e disposta a responder pelo
bem montada, Keblerc cede terreno e atira-se, apaixonado, cheirando a nome e tradição da família. Procura guiar o destino das filhas e proíbe-as de
cerveja, aos pés da viúva. Violante, porém, ao saber das confissões, acredita se aproximarem de Leopoldo, porque vê ne-
que realmente os rapazes estavam apaixonados por ela, e que só não se
declaravam de pena do alemão ...
82.
le mais um estróina que um idealista. Mantém-se superior aos erros e
equívocos humanos, embora no peito pulse um coração insatisfeito.
Na ilha de Paquetá conhece o Dr. André e por ele se interessa com
discrição. Lentamente surge entre os dois um amor que vai se intensificando
com o tempo, até que ela descobre as ligações de André com Leopoldo e
com a maçonaria. Tenta recuar, mas é tarde, e é apanh!1 da na armadilha
duma incoerência que ameaça destruir sua própria personalidade.
Marina Sobrinha de Keblerc, Marina é a moça simples que age
com o coração, um tanto alheia às complicações da vida. O
que faz na estória é amar Filipe sem ser amada, mas sem drama e sem
súplicas. Aceita a sua derrota como um fato normal, nada indagando. Ela
poderia salvar Filipe se ele o permitisse. E dar-lhe a mão para retirá-lo do
abismo é o que ela faz o tempo todo. Na realidade, ela e Filipe são os únicos
personagens românticos da estória, os únicos integrados na sua época. Os
que amam sem nada exigir como paga ou troca. Mesmo assim, a
aproximação é impossível. A única diferença entre ambos é que Filipe vai
perecer
83. e Marina, mais forte que ele, vai subsistir...
Benjamim É o escravo liberto do Dr. André, participante das
lutas da abolição. Homem idoso, mas não alquebrado.
Fraco, mas capaz de ficar forte quando a situação exige. Está a par de todas
as manipulações políticas de seu patrão e dos seus problemas sentimentais.
Mais que um ouvinte, é às vezes um conselheiro.
Simão Simão, o negro fugitivo duma senzala, é o personagem
que enfeixa toda a novela, motivo permanente de suspense e
aquele que força com sua fuga a definição dos demais. Ninguém é
indiferente ao drama de Simão, e, tomando partido ou reagindo de qualquer
forma, eles nada mais fazem do que revelar sua identidade mais profunda.
Onde Simão chega, chega junto o interes-

se maior da estória, com suas tramas, surpresas e amarguras. Ele é o homcm


que optou pela liberdade ou morte, como tantos já fizeram nos períodos da
história esmagados pela opressão. Simão não é um personagem real, é um
pcrsonagem simbólico, uma síntese de muitos iguais a ele, cujos nomes não
constam dos jornais e dos livros.
o diálogo na televisão
o diálogo na televisão foi uma das piores heranças
deixadas pelo rádio. Falo, certamente, do
diálogo das telenovelas, originárias das radionovelas,
que durante uns trinta anos deliciaram e deslustraram dezenas de milhões de
latino-americanos. Mas a radionovela não criou obras de arte como seu
avoengo, o folhetim. Não nos deu um Balzac, um Dostoiévski, um Zola. O
seu Everest foi a novela cubana O direito de nascer, cujo engenho consistiu
em reunir todos os lugares-comuns já catalogados num só trabalho. Não
criava, repetia tudo, numa verdadcira maratona que se prolongou por
centenas de capítulos. O direito de nascer não foi a mclhor novela de rádio,
mas foi a maior e a que continha todos os seus chavões. Se alguém, no
futuro, quiser pesquisar o que foi a telenovela latino-americana, bastará ler
pacientemente O direito de nascer e terá a mais perfeita visão panorâmica
do gênero extinto.
Os teleautores de novela herdaram dos radioautores a técnica, os
vícios, a resistência física e principalmente o diálogo. Na maioria vinham
todos do rádio, e à primeira convocação abriram seus poeirentos baús e
adaptaram para o vídeo o que haviam escrito para o dial. Não se
importavam com imagem, cortes, fusões, c/oses e planos gerais. Faziam
uma televisão para ser ouvida. Jamais esquecendo-se, no entanto, dos
ganchos de final de capítulo, que seguram e escravizam o telespectador.
A linguagem coloquial, intimista, não existia no rádio antigo.
As primeiras experiências nesse sentido foram feitas na Rádio Excelsior de
São Paulo, por volta de 1949, com a intenção de criar algo de novo no
mundo das radionovelas. Participei dessa ousada experiência juntamente
com Mário Donato, então diretor artístico da emissora, o jornalista Carlos
de Freitas, o escritor Jerônimo Monteiro e poucos outros. Mais tarde André
Casquel Madrid (Leonardo de Castro) juntou-se à equipe, e hoje, professor
de comunicações da USP, costuma relatar esse episódio a seus alunos. Mas
a ten-
84.
85.

tativa de inovar no gênero, no tocante à linguagem c à técnica, era


demasiadamente prematura. Não deu certo. Os próprios artistas es-
tranhavam que os personagens usassem uma linguagem corrente no país,
inclusive com palavras da gíria atual. Fomos tão criticados por tentar uma
inovação, que chegamos a provocar a irritação geral dos colegas de outras
emissoras. "A novela", diziam, "era justamente aquilo que o povo gostava,
não o que nós gostávamos". E quando as agências de publicidade nos
negaram apoio, retiramo-nos da luta, impotentes para competir com a
enxurrada de dramalhões que inundava as emissoras.
No início das telenovelas, portanto, a linguagem, os diálogos, eram os
mesmos do rádio. A novela A moça que veio de longe é um exemplo disso.
Os enredos remontavam ao mais saudoso romantismo e os personagens
falavam empoladamente, quando não chegavam ao absurdo de pensar "em
voz alta". Os autores jamais se ocupavam da movimentação dos
personagens em cena, como o cinema ensinava. Mas, aos poucos, foi
nascendo uma linguagem de tevê, e os diálogos, do que estamos tratando,
acabaram se atualizando, embora constituam ainda matéria em discussão.
Geralmente quando se aborda o assunto, a pergunta que se faz é se os
personagens das telenovelas devem falar como os personagens do cinema,
isto é, com a maior economia possívcl de palavras e usando o diálogo
apenas como complementação da imagem. Durante alguns anos permaneci
nesse erro. É que adotar o diálog.o cinematográfico já era um progresso.
Melhor frases secas, rápidas, telegráficas do que o exagero verbal, dos
dramalhões. Somcnte algum tempo depois, reestudando o assunto, é que
concluí, por observar e experimentar, que o parentesco entre o cinema c a
televisão não justifica a mesma linguagem por uma série de motivos. O
cinema é veloz e espetacular devido às próprias dimensões da tela. É as-
sistido no escuro, de forma compenetrada, tendo como único empecilho
casual a mão da namorada. Seu texto tem que ser traduzível para todos os
idiomas da Terra. No decorrer de seus noventa minutos, um filme, para não
cair na monotonia, precisa ter no minímo cento e cinqüenta cenas ou
seqüências divididas em seiscentos takes ou muito mais. Quase sempre, o
filme é uma obra de condensação: contos, peças teatrais, romances. Os
próprios roteiros originais são uma estória reduzida.
Na telenovela o que acontece é o oposto. A atenção total do te-
lespectador não é exigida. Ele pode fumar, tomar café, ir ao banhei-
ro, atender o telefone, comer uma sobremesa e comentar com os presentes
fatos relacionados ou não com o que vai surgindo no vídeo. É um
espetáculo caseiro, de ritmo doméstico, repousante. A mulher pode ir até o
extremo da casa para avisar o marido ou quem quer que seja de quc aquela
cena ansiosamente aguardada vai começar ou já está começando. Raros são
os momentos de telenovela que obrigam a família a se conccntrar num
silêncio total. E, como espetáculo gratuito que é, uma cena perdida não dá
ao espectador a impressão de que gastou dinheiro em vão.
Sendo esse o ritmo da tevê, o tcleautor não pode usar nos diálogos a
mesma secura de Ernest Hemingway, nem pretender a precisão dum James
Cain, dum Horace McCoy, nem recorrer às meias frases dum John O'Hara.
A linguagem desses autores funciona no cinema, como funcionou na
literatura, porém na televisão formaria grandes vácuos que a imagem lenta
do vídeo dificilmente preencheria.
O diálogo dos personagens das telenovelas somente chega ao pÚblico
envolvendo-o paulatinamente. É preciso ter um tom intimista, confessional,
de familiar sinceridade, como se o telespectador estivesse assistindo a algo
que lhe fosse pessoalmente destinado. Não a linguagem telegráfica do
cinema, mas a de sua casa, do escritório, da fábrica, das lojas, da rua. As
frases terão sempre que trazer o sabor do improviso, da criação espontânea.
As indecisões vocabulares, a repetição de palavras, as frases soltas, os
modismos, o uso discreto de gíria, certos lugares-comuns, um palavrão não
pronunciado, um adjetivo vacilante levam o personagem à intimidade do
lar, explicam seu caráter e comportamento, e separam, de forma
inconfundível, o que é certo em matéria de diálogo na televisão do que é
certo no cinema. Em suma, quando se escreve para cinema pensa-se no
público, quando se escreve para a televisão pensa-se no espectador. O diá-
logo no cinema tem que servir para todos. Na televisão é só para a pessoa
que se sentou diante do aparelho.
Essas conclusões tendem a parecer óbvias demais. Mas são verdades
que o profissional sempre esquece quando se lança ao trabalho. O que, no
entanto, parece fora de dúvida é que se fez neste terreno um grande
progresso. Já estamos distantes da linguagem dos dramalhões e também
distantes da dialogação moderninha que surgiu logo após, quando o autor
que usasse e abusasse da gíria corrente era imediatamente apontado como
inovador, pioneiro, quando não um gênio. Alguns desses falsos valores, que
escreveram para uma única faixa etária e numa determinada época, não
tardaram a revelar o vazio de suas
86. romances da época, que talvez não fosse a verdadeira linguagem, a dos lares,
a das ruas. Duvido que as pessoas se comunicassem em tom tão
cerimonioso, como se todas participassem dum baile na Corte. Os
românticos não faziam concessões ao realismo. A intimidade era sinal de
idéias e
mau gosto. As pessoas já nasciam "senhoras" e "senhores". Macedo sempre
quase todos
se refere à sua heroína como Da. Carolina. Da. Carolina no seu romance
já foram
tinha quinze anos.
enterrados
juntamente
com sua
própria
pedra
fundamental
. Isso vem A novela não decorre em 1844, mas em 1868. Acredito que, vinte c
demonstrar quatro anos depois, o relacionamento entre as pessoas tinha mudado um
que o "já" e pouco, embora não muito. "Você", como tratamento, já era usual. O respeito
o "agora", reservava-se mais para as pessoas desconhecidas e mais velhas. Pegaria mal,
mesmo num na adaptação, dois namorados se tratarem por "senhora" e "senhor". Aboli
gênero tão totalmente esse formalismo entre os jovens. Mas procurei manter uma
perccível linguagem da época, seguindo a certa distância alguns modelos do
como o da romantismo e usando palavras e expressões então em voga, inclusive alguma
tclenovela, gíria como "cor de burro quando foge", "do tempo do onça" e raras outras. O
envelhccem cuidado foi mais de não dizer nada que não se dizia do que adotar uma
às vezes discutível fidel idade. Mais importante era não errar do que acertar. A não
muito antes ser que os atores resolvam improvisar, o que não acontecerá, nenhum
de que ela personagem dirá palavras ou expressões que então não se usavam. É ridículo
chegue ao um personagem de 1868 falar como um carioca da Idade do Samba. Revelar
último uma influência norte-americana, quando os franceses é que nos influencia-
capítulo. vam. Referir-se a inventos ainda não inventados. E dar - o que é pior - aos
personagens uma visão profética daquilo que viria a acontecer em termos de
o História. Já vi adaptações nas quais os personagens chegavam a ter
diálogo consciência de que pertenciam ao passado.
de A Mas o script, numa novela de televisão, é apenas parte do trabalho, o
Morenin ponto de partida. Depois vem a direção, que é uma soma de tu-
ha
Como se
falava, no
Brasil, na
época em
que se
desenrola A
Moreninha?
Não sei.
O que
se sabe é
como se
falava nos
seleção de imagens, cenografia, guarda-roupa, decoração, sonoplastia (às
vezes com músicas especiais), maquilagem, montagem, edição e não sei o
que mais. No ritmo industrial em que se trabalha, não é possível sair tudo
bem. É muita coisa em pouco tempo. Só o crítico conta com tempo integral
para encontrar defeitos, embora geralmente lhe escapem as soluções.

Resumo de A Moreninha

Este é apenas um resumo sumário da novela. Tudo o quc se disse até


aqui já bastou para dar uma idéia do que ela é. Mais importante do que o
enredo, foi esclarecermos o critério adotado, a razão de transferirmos a ação
para vinte e quatro anos depois e a relação dos personagens com seu recheio
psicológico e seus problemas. Resta acrescentar que, devido ao aspecto
cultural que a novela acabou adquirindo, no tocante às informações
históricas, sugeri e foi aceito pela Rede Globo de Televisão que em cada
capítulo fosse feito um apelo ao telespectador, dirigido principalmente ao
estudante: FREQÜENTE A BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SUA CIDADE.
Não pretende, portanto, a Globo, apenas divulgar obras literárias nacionais,
mas também incrementar o amor à literatura e estimular o confronto entre os
originais e as adaptações.
A ação da novela se inicia com a fuga de Simão, em plena praia, já
perseguido por João Bala e .Ierônimo. Bala consegue deter Simão, mas, não
se contentando com isso, começa a surrá-Io. Nesse instante passavam por ali
dois estudantes de medicina, Augusto e Fabrício. Embora desaconselhado
por Fabrício, Augusto intervém para impedir o massacre. Favorecido pela
intervenção, Simão volta a fugir, desaparecendo. Çomeça aí o ódio de João
Bala pelos estudantes e o acidental interesse de Augusto pela sorte de Simão.
Mais tarde, Augusto se dirige à Taberna do Juca, lugar freqüentado pelos
estudantes, onde .se tomava vinho e a desagradável cerveja marca barbante,
fechada com rolha. Augusto vai encontrar seu proprietário, o Juca, bastante
alvoroçado. Algo teria acontecido com ele, que Juca não quer contar, mas
acaba contando. Dentro duma pipa vazia da taberna estava um negro fujão,
um escravo que por muitas vezes já tentara a fuga. Mal .Iuca conclui sua
revelação, entram na taberna Bala e Jerô. Alguém informara que Simão
estaria ali. Os dois revistam o estabelecimento, inutilmente. Bala senta-se
sobre a tampa da

do: ensaio e
marcação de
atores,
87.
,11
pipa e interroga Juca, que nada confessa. Quando os dois feitores saem, tos, eram a abolição e a república, que dali por diante norteariam o
I Juca cai em pânico. Não poderia manter Simão ali, no interior duma pipa. destino de ambos.
II
Mais cedo ou mais tarde, seria descoberto. Augusto promete ajudá-Io, Simão continua escondido no quarto do Belo Senhor, na república.
levando Simão para outro lugar: a pensão dos estudantes. O primeiro a descobrir que havia uma pessoa dentro da pipa é o
À noitc, Augusto volta à taberna, levando um amigo, o Bclo Senhor, negrinho Rafael. Mas bastam algumas moedas para comprar o seu
homem de meia-idade, simpático boêmio quc morava com os estudantes. silêncio. Depois, já pensando em ter que tirar Simão da república, num
Mas Augusto não lhe conta sua intenção. Diz que queria levar a pipa para futuro próximo, Augusto revela seu segredo a Filipe.
seu quarto, porque tencionava ofereeer o vinho eomo presente à avó de seu Quanto ao Belo Senhor, embora com um negro fujão no quarto,
eolega Filipe, que aniversariava em Paquetá, e que havia convidado os continua preocupado com sua vida mundana, apaixonado que estava
estudantes para um sarau. O próprio Filipe não podia saber. A pipa teria que pela bela Aimée, vedete francesa, que pontificava no Alcazar, teatro
fiear no quarto do Belo Senhor, o únieo que morava só. O Belo Senhor, eujo burlesco que há quatro anos fora inaugurado na Rua Uruguaiana. Logo
nome era Gustavo, ajuda Augusto a transportar a barrica, passando por .João mais, Leopoldo recobra parcialmente a saúde e volta à pensão, porém é
Bala, que vigiava a Praça do Rossio. Ao ehegarem à pensão, a pipa entra convidado por Filipe a viver algum tempo em Paquetá, onde, com
pela janela, para que a dona da república, Da. Lalá, não implieasse com a sossego e boa alimentação, seu restabelecimento seria mais rápido.
entrada de tanto vinho em sua casa. Quando a operação é feita, Augusto é Leopoldo aceita o convite, necessitado que estava também de algum
forçado a contar a verdade. Dentro daquela pipa havia um homem, o negro tempo para pensar nos ousados passos que daria dali por diante. Assim,
Simão. O Belo Senhor assusta-se, mas se assustaria ainda mais quando os quatro amigos de outros tempos voltam a reunir-se. Mas o que
bateriam à porta. Era Da. Lalá, que vira a barrica passar pela janela. O Belo Augusto ignora é que Bala não desistiria da captura de Simão. Voltando
Senhor, sempre capaz de dominar uma situação e ciente de que Da. Lalá à taberna e espremendo Juca, consegue assustar o taberneiro. Este,
tinha por ele uma incontrolável afeição, explica que o vinho não era para ser porém, não cede. Vendo uma pipa, o feitor resolve colocar .Juca dentro
bebido ali, mas seria um presente para uma velha senhora que aniversariava. dela, rodando-a por todo o Rossio. O pobre .Juca não agüenta e acaba
E faz mais: consegue que ela lhe prometa não falar a ninguém daquela pipa, confessando quc o negro Simão estava refugiado na pensão dos
para que a oferta não perdesse seu sabor de surpresa. estudantes.
Aí tem início uma série de incidentes, todos relacionados com o novo Fabrício, presente à tortura, fica sabendo dc tudo, ele que nem
esconderijo do negro Simão. Enquanto isso, os personagens vão sendo sabia onde se achava Simão. Todos os estudantes unem-se, então, para
apresentados. Fala-se da festa que haveria em Paquetá, motivo de salvar Simão das mãos de .João Bala. Os feitores levam a efeito uma
entusiasmo para o frágil Filipe, que ali encontraria Clementina, uma jovem batida na república, mas Simão, graças a um truque do Belo Senhor, não
pela qual se apaixonara ardentemente. Outra preocupação dos estudantes é é encontrado. Bala retira-se, mas crente de que fora hidibriado. Passa a
Leopoldo, colega deles, que tinha abandonado os estudos para lutar no vigiar a pensão dia e noite. Detendo o garoto Rafael, que ia fazer
Paraguai, e pelo que se sabia -participara da desastrosa retirada da Laguna. compras, obriga-o a falar. Atemorizado, Rafael diz que Simão ainda
Logo nos primeiros capítulos, Leopoldo reaparece, com um grupo de estava lá. Agora, parece impossível Simão escapar. O cerco à pensão
soldados, maltrapilho, doente, irreconhecível. É levado para a Santa Casa, fora redobrado e a invasão seria imediata. Mas os estudantes bolam um
onde o pai de Augusto, Dr. André, incumbe-se de curar o amigo de seu filho. plano: o Belo Senhor e Fabrício saem pela porta do fundo da pensão
Entre os dois logo nasceria uma grande amizade, baseada nos mesmos rodando uma pipa. Bala e seus homens saem atrás, detêm os fugitivos e
ideais políticos, que Leopoldo adquirira na guerra, e André trouxera de sua abrem a pipa. Simão, porém, já não estava lá. Vestido de mulher, com
viagem à Europa. Esses ideais, quase secre- Filipe e Leopoldo, é levado ao cais das barcas, rumo a Paquetá.
A estória em Paquetá toma impulso. Fica-se conhecendo a avó de
Filipe, Da. Ana, a aniversariante, Da. Luísa, sua filha, Joana e Quininha,
filhas de Luísa, a caricata viúva Da. Violante e sua
88.
134 O ROTEIRISTA PROFISSIONAL - TV E CINEMA A MORENINHA NA TEVÊ
135
sobrinha Clementina, o alemão Keblerc, residente da ilha, e sua so-
brinha Marina, os escravos Tobias c Dudu, e Carolina, a Moreninha,
órfã, irmã de Filipe, neta de Da. Ana.
É no ambiente de preparativos duma grande festa que Simão
aparece, vestido de mulher, como escrava de Leopoldo. Precisa dum
quarto, e o quarto que lhe dão é vizinho do quarto de Duda. Mulher tinha
que morar com mulher. Certamente, Duda é a primeira pessoa na ilha a
saber que Simão é um homem, um negro fugitivo. A segunda é a própria
Carolina, pois os estudantes precisavam duma aliada de confiança.
Na ilha desenvolvem-se diversos conflitos amorosos. Clcmentina
apaixona-se por Augusto e despreza Filipe, Marina aproxima-se de
Filipe, que não aceita o prêmio de consolação. Joana tenta atrair
Leopoldo, mas é por Quininha que ele se interessa. E Violante, co-
nhecendo Keblere, vê chegar ao fim seu tormentoso celibato invo-
luntário. Mais tarde, chega André para cuidar da saÚde de Leopoldo e
fica conhecendo Da. Luísa, e se esboça entre ambos um discreto
romance. Antes de embarcar, porém, André, entrando em conbto com o
Belo Senhor, convida-o para ingressar na maçonaria. A sociedade secreta
precisava duma personalidade insuspeita como ele, para obter
informações. O Belo Senhor concorda.
Sem desistir de procurar Simão, Bala descobre, depois de mil
investigações, que ele só poderia estar em Paquetá. É para onde parte
com JerÔnimo. Sua presença na ilha causa verdadeiro transtorno. Simão
tem que se manter dentro do quarto, pretextando doença. Da. Ana é
interrogada, ela que nada sabe. Toda a população da ilha fica
sobressaltada. Quando pressente que seu quarto vai ser invadido, Simão
nada para a ilha de Broeoió. Lá, por falta de sorte, uma cobra venenosa o
pica. Bala e Jerônimo concluem que Simão, não estando na ilha, só
poderia estar em Brocoió (mencionada na novela como a "ilha vizinha"),
e vão visitá-Ia. Simão, à distância, vê o bote se aproximar. Algum tempo
depois, entra na água e aos poucos vai empurrando o bote mar adentro
até voltar a Paquetá. Era o momento de fugir, mas a febre provoeada pela
picada de cobra o impede. Bala e Jerô, sem o bote, não podem voltar, o
que só conseguem no dia seguinte, graças a um pescador.
Para despistarem Bala, quando ele volta, Augusto retoma à Corte
levando uma mulher negra. Acontece que de fato se tratava duma mulher
negra: Duda. Ao receber essa informação, Bala retoma também ao Rio,
crente de que a mulher era Simão. Mas parte só, na
a do Dr. André, Jcrô, seu comparsa, decide entrar inopinadamente no
ilha quarto de Simão. E topa cara a cara com ele. A busca parecia ter chegado
fica ao fim. Porém Leopoldo e Fabrício entram e dominam Jcrônimo, que é
Jer amarrado. Agora, com todos da casa sabendo quc Simão está na ilha, e
ô, Jcrônimo amarrado e amordaçado, o escravo tcm quc mudar dc
que escondcrijo. (~ preciso levá-Io à casa do Dr. André, no Rio. Mas seu
con disfarce de mulher já é conhecido no porto. Simão, porém, mais uma
tinu vcz, burla a vigilância, transformado num negro velho.
aria Bala, dois dias dcpois, está novamente em Paquetá. Agindo se-
na gundo um plano, o Dr. André vai a scu encontro c "denuncia" os es-
pro tudantes. E mostra-lhe onde está Jerônimo. A rcpresentação é feliz, e por
cur algum tempo o feitor supõe tcr conscguido um aliado. Mas não vai
a. pcrcorrer as demais ilhas da baía, como o médico lhe aconselha. Volta
En rápido para o Rio. Aí, vai à taberna, pois Juca sempre estava a par de
qua tudo. Faz ameaças ao taberneiro. Destruiria seu estabelecimcnto se ele
nto não lhc dissesse onde Simão se refugiara. Com receio de perder seu
no Único bem, Juca acaba cedendo: Simão estava na casa do Dr. André.
con João Bala e Jcrô se dirigem imediatamente para lá. Invadem a casa. E
tine arrombam a porta do quarto de Simão.
nte E é neste justo momento que a novela começa a esquentar ...
Bal Mais ainda.
a
des
cob Cenários
re 1. Cozinha
que 2. Sala de refeições
for 3. Quarto do Belo Senhor
a 4. Quarto de Augusto e Filipe
ludi 5. Quarto de Fabrício e Leopoldo (na república de estudantes)
bria 6. Taberna do Juca
do, 7. Sala da casa do Dr. André
por 8. Camarim de Aimée
que 9. Sala da casa de Da. Ana em Paquetá
a 10. Quarto dos hóspedes
mul 11. Quarto das moças
her 12. Alpendre
era 13. Quarto de Duda
mul
her
me
s-
mo,
o
que
con
stat
a
na
cas
89.
14
Flashback: cena ou cenas que remetem ao passado, para lembrá-Io,
situar ou desvendar enigmas.
Fusão: quando uma imagem se sobrepõe a outra para mudar de cena ou
Vocabulário crítico enfatizar a ligação existente entre elas.
Gancho: palavra usada na tevê, relativa ao suspense que deve haver no
final dos blocos e no final dos capítulos das telenovelas para prender
o telcspectador.
Insert: imagem breve e quase sempre inesperada quc lembra mo-
Argumento: resumo de uma história, para roteirização dum filme, que mentaneamente o passado ou antecipa algum acontecimento. Os
pode ser origina] ou adaptado de obra literária. Tratando-se de inserts podem ser variados ou repetidos, estes servindo, às vezes, de
telenovela chama-se sinopse. Não confundir com story-line, que é o plot, o núcleo dramático, ou algo que o simbolize.
resumo resumido. Localização: onde a história acontece, informação sempre acompanhada
da época. Localização: França. Época: 1890.
Audio: a parte sonora de filmes e programas de tevê. Nos roteiros ocupa
Long-shot: plano geral, usado para mostrar onde a cena vai se desen-
o lado direito da página. Ação é vídeo, diálogo é áudio. rolar. Plano geral dum estádio de futebol.
Cena: todo o roteiro é dividido em cenas, unidades dramáticas de ação Mensagem: sentido social, político, filosófico ou qualquer outro que
contínua. É o degrau duma escada que leva ao clímax. Numere-as. uma história pode conter. Quase a moral da história, das fábulas.
Claquete: quadro onde se registra o nome do roteiro e números de Oll vozes ou sons não produzidos na cena focada. Um personagem que
cenas e tomadas. fà]e, sem estar em cena, fala em o.fl
Clichê: a repetição enfadonha de diálogos e soluções cênicas em Pano.râmica (pan.): diz-se da câmera que se movimenta, gera]mente em
qualquer tipo de produção artística. exteriores, mostrando-o ou sondando-o. Não confundir com o plano
Clímax: a seqüência mais dramática e decisiva dum roteiro. Clo.se-up: geral, que apenas revela o cenário para simples identificação.
detalhe focalizado em câmera cheia, aproximando-o do espectador. Plano médio: também chamado plano americano; foca personagens da
Co.rte: passagem direta de uma cena para outra, sem escurecimento, cintura para cima.
desfoque ou outros recursos.
Plot: centro da ação, núcleo da história e seu gerador principal. Po.nto
Crédito.s: letreiros no início ou fina] de filme ou programa de tevê em
de vista: plano visto pelos olhos do personagem, à sua altura e distância,
que aparecem título, personagens e agradecimento a pessoas ou
no geral intensificando a dramaticidade do roteiro.
empresas que contribuíram para sua realização.
Rubrica: observação entre parênteses, nos diálogos, indicando a reação
Espelho.: página de abertura dum roteiro que traz informações sobre
dos personagens, bem como mudanças de tom e pausas.
características de personagens, enumera e descreve cenários e ]0-
Script: como se denominavam os roteiros radiofônicos, hoje de pouca
cações externas.
aplicação na tevê.
Seqüência: como se denomina cena, no cinema, embora muitos prefiram
chamar assim uma série de cenas ligadas pela mesma continuidade.
Sino.pse: resumo de uma história, no cinema mais chamado de argu-
mento.
Split screen: imagem dividida na tela, mostrando acontecimentos separados
mais simultâneos, como num telefonema.
Story-line: resumo de uma história em poucas linhas.
Subtexto: verdadeiro sentido dum diálogo, o que está apenas subentendido.
Suspense: diálogo ou ação que faz prever algo chocante, temível,
emocionante ou decisivo.
Take: tomada, o parágrafo duma cena.
Travelling: câmcra em ação, acompanhando personagens ou veículos.
Zoom: lente da câmera que aproxima ou distancia subitamente per-
sonagem e detalhes, para dramatizar ou esclarecer lances do roteiro.
90.
Biografia do autor

Marcos Rey (Edmundo Donato) nasceu em São


Paulo em 17 de fevereiro de 1925. Foi autor de scripts para rádio -
especializando-se em programas humorísticos e policiais -, repórter e colunista
de jornal.
Aos 16 anos publicou seu primeiro conto e com menos de 30 o seu primeiro
romance, Um gato no triângulo, reescrito e relançado em 1995 em
comemoração aos seus 40 anos de carreira literária.
Foi também roteirista de cinema e professor de faculdade de comunicação,
experiências que o levaram a escrever esta obra, além de criador e redator de
inúmeras campanhas de publicidade.
Como escritor, publicou mais de trinta livros e assinou dezenas de crônicas em
jornais e revistas de São Paulo. Marcos Rey ocupa a cadeira 17 na Academia
Paulista de Letras e, em 1995, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano pelos livros
Os crimes do olho-de-boi e O diabo no porta-malas.
91.
OBRAS DO AUTOR
Para o público adulto Proclamação da república,
paradidático, 1985
Um gato no triângulo, romance, 1953 Bem-vindos ao Rio, 1986
(totalmente reescrito e relançado em 1995) Enigma na televisão, 1987
Café na cama, romance, 1960 Garra de campeão, 1988 Quem
Entre sem bater, romance, 1961 manda já morreu, 1989 Corrida
Habitação, coleção Conquistas Humanas, 1961 A infernal, 1991
última corrida, romance, 1963 Na rota do perigo, 1992
(relançado em 1982) Um rosto no computador, 1992
O enterro da cafetina, contos, 1967 Doze horas de terror, 1993
Os 10 grandes crimes da História, O diabo no porta-malas, 1995
divulgação, 1967 Brasil - os fascinantes anos 20,
Memórias de um gigolô, romance, 1968 paradidático, 1995
O pêndulo da noite, conto, 1977 O coração roubado e outras crônicas, 1996
Soy loco por ti, América!, contos, 1978 Gincana da morte, 1997
Malditos paulistas, romance, 1980 Ópera Fantoches!, 1998
de sabão, romance, 1980 O menino que adivinhava, 1999
A arca dos marechais, romance, 1983
Esta noite ou nunca, romance, 1985
A sensação de Setembro, romance, 1989
O roteirista profissional, estudos, 1989
O último mamífero do Martinelli, romance, 1993
Os crimes do olho-de-boi, romance, 1995
O cão da meia-noite, romance, 1995

Para o público infanto-juvenil


Não era uma vez, 1980
O mistério do cinco estrelas, 1981
O rapto do Garoto de Ouro, 1982
Um cadáver ouve rádio, 1983
Sozinha no mundo, 1984 Dinheiro
do céu, 1985
tarde? A tarefa era difícil, quase isso a que chamam de desafio nação, incrementando, naturalmente, o interesse pelo
para estimular pessoas sensatas. jornalismo. Um desses acontecimentos era a Guerra do
Fiz novas leituras do livro, sem encontrar nenhum caminho Paraguai, longa e tormentosa, tendo como mais pungente
para uma boa adaptação. Foi então que me caiu às mãos outro episódio a retirada de Laguna, mais tarde relatado com
livro de Joaquim Manuel de Macedo, que pouca gente conhece, e detalhes e dramaticidade por Taunay.
que supera a atração de todos os seus romances: Memórias da Um país em guerra e, ainda mais, contra uma nação
Rua do Duvidar. Aí era o autor descrevendo o que poderia ser um supermilitarizada, como era então o Paraguai, é um bom
dos cenários da novela. Livro escrito na década de 1870, fala dum pano de fundo para uma estória. Essa guerra poderia ser de
Rio de Janeiro muito mais fascinante do que aquele que se vê em importância no romance. Principalmente a trágica retirada,
A Moreninha, escrito em 1844. Em vinte anos o Rio mudara em que centenas de brasileiros perderam a vida. E enquanto
muito. Já se tornava uma cidade com pretensões a metrópole. As a guerra se travava nas fronteiras e no exterior, dentro dos
ruas quase todas iluminadas a gás, os barcos a vapor ligando o nossos limites avolumavam-se as mensagens abolicionistas
Rio a Niterói, alguns jornais circulando, as idéias republicanas e e republicanas, estimuladas em grande parte pela Loja
abolicionistas mais amadurecidas, um Jóquei Clube, maior número Maçônica do Grande Oriente, situada à Rua do Riachuelo.
de estrangeiros nas ruas e, principalmente, sua grande artéria, a Tensão externa e interna. Das fronteiras, as notícias, do
Rua do Ouvidor, com suas lojas e casas comerciais, suas centro, os boatos. Nada mais monótono e irritante do que
confeitarias vendendo sorvetes, suas modistas famosas e, logo na um romance de amor num clima de paz, com tudo correndo
esquina da Rua Uruguaiana, o Alcazar, o primeiro teatro burlesco em ordem. Um pouco de tumulto ajudaria para intensificar os
inaugurado no país, com sua extravasante Aimée, vedete lances.
francesa, espécie de antecessora de Jane Avril e de La Goulue, No plano poético-literário, a transferência da ação da
que Toulouse-Lautrec retrataria alguns anos depois no Moulin estória para vinte e quatro anos mais tarde também oferecia
Rouge. vantagens. Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu já eram
Bem, com esse Rio já se podia fazer alguma coisa. A ordem uma saudade, enquanto os poemas panfletários de Castro
era continuar pesquisando. Ler as Memórias do Rio de Janeiro, Alves já começavam a circular. Assim se poderia criar uma
de Vivaldo Coaracy, foi maravilhoso. Quase tudo sobre o Rio linha divisória mais nítida entre o ontem e o hoje. Os
antigo está lá. E os dois volumes de Aparência do Rio de primeiros e os últimos românticos. Uma mostra inclusive do
Janeiro, de Gastão Cruls, completavam o panorama desejado. O choque de gerações, evidenciando que esse é um problema
gosto pela pesquisa torna-se um hábito. Às vezes, vale a pena ler de todas as épocas. Abria-se ao mesmo tempo um espaço
cem páginas para se obter uma única informação. Por seu lado, a mais largo para citações de poetas e escritores,
TV Globo também pesquisava para orientar a cenografia, o capitalizando-se o interesse do telespectador não apenas
guarda-roupa, a sonoplastia, a decoração, enfim, um mundo de para Macedo como também para outros autores. Entre
detalhe que sempre dá realidade aos trabalhos de época. Embora estes, Manoel Antônio de Almeida, muito citado pelos
eu estivesse de posse de um livro de anúncios do Rio antigo, personagens, José de Alencar e Álvares de Azevedo, que
recebi fotografias dum mundo de reclames dos arquivos de teriam em toda a novela uma grande importância.
jornais. Era preciso saber o preço das coisas, o que mais se O que se passava nos outros países é assunto do
vendia, o que mais se comprava, marcas de bebidas, refrescos da cotidiano dos personagens, principalmente no que se refere
moda, nomes de estabelecimentos, a identidade das pessoas que às invenções. É feita a primeira máquina de escrever
costumavam transitar na Ouvidor e inclusive as músicas que experimental, inventam o ventilador e o elevador. Fala-se
Mademoiselle Aimée cantava no Alcazar. num autocarro movido a vapor. Aprimora-se a fotografia. A
Ficou então assentado que a estória se desenrolaria em palavra eletricidade entra em circulação. O nome de Pasteur
181768, e não apenas por causa da fisionomia modernizada da chega ao Brasil. Romancistas como Balzac, Dumas e Vitor
cidade, mas porque nesses anos alguns acontecimentos Hugo já são lidos aqui por uma elite. Edouard Manet, que
tumultuavam a vida da vivera na mocidade no Rio, pinta a sua famosa Olimpia. É
um mundo que revela os primeiros indícios de mudança, no
limiar de grandes invenções, revoluções sociais e artísticas,
e quase na agonia do romantismo da primeira metade do
século. Resolvi fazer então, sem a

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