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Crítica | Ficção
Americana
(American Fiction) -
Plano Crítico
Kevin Rick
6–9 minutos

Enquanto estava assistindo American


Fiction, me lembrei de uma entrevista
com Denzel Washington, em que uma
jornalista questiona o ator/diretor sobre
a razão de Um Limite Entre Nós
precisar de um cineasta negro. O artista
responde que a obra precisava de uma
pessoa negra por trás das câmeras não
por causa da raça, mas sim em razão da
cultura. Essa diferença que Denzel
explica me parece ser o centro das
discussões e comentários sociais que o
diretor/roteirista Cord Jefferson coloca
em sua obra satírica que explora
estereótipos sobre a cultura afro-
americana e a exploração dela no
contexto artístico estadunidense. Por
mais que a produção seja baseada em
um livro chamado Erasure, é curioso
como o filme chega a se tornar uma
espécie de diálogo interno
metanarrativo e quase autobiográfico do
roteirista simplesmente questionando
determinados tópicos e aprendendo
sobre seus próprios preconceitos
durante a jornada do protagonista
Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey
Wright), um autor e professor
universitário que simplesmente não
aceita os clichês da literatura afro-
americana.
De muitas formas, American Fiction faz
críticas ao quebrar estereótipos e
arquétipos. O ambiente da história está
bem longe dos guetos de gângsteres,
bairros marginalizados com rappers,
crimes, escravidão e pobreza que
estamos “acostumados” a ver com mais
proeminência nos retratos
hollywoodianos de pessoas negras. Na
verdade, estamos diante de um
protagonista intelectual e arrogante,
uma família de cirurgiões e problemas
mais típicos da classe média,
envolvendo velhice, brigas entre irmãos,
crises existenciais, isolamento,
problemas de identidade e
masculinidade, que também não se
enveredam para o lado do melodrama
exagerado e excessivamente
disfuncional com o qual problemas
familiares afro-americanos são
representados nos EUA – nesse sentido,
temos muitas cutucadas contra Tyler
Perry, por exemplo. Até temos um
simpaticíssimo policial negro que se
casa com uma empregada negra (num
filme criticamente pobre, como um
Medida Provisória da vida, a
funcionária seria branca, para
evidenciar a ironia sem nenhuma
complexidade ou sutileza).
Não quero dar muitos detalhes da
trama, mas a partir desse cenário, a
narrativa tem duas vertentes claras:
uma comédia satírica e um denso drama
familiar. De início, o filme se encaminha
mais para o lado do humor, de uma
tiração de sarro afiada sobre instituições
americanas (em especial o universo
editorial e literário) por meio de um
protagonista condescendente, no meio
de uma crise de consciência e
absolutamente enraivecido à medida
que uma piada artística se torna o
centro das atenções de uma
comunidade alienada e um público
cheio de preconceitos em meio às suas
próprias defesas sociais equivocadas –
uma piada sobre uma estudante branca
que não quer estudar um livro racista é
absolutamente maravilhosa para abrir o
filme. A questão é que a comédia
aparece de maneira esparsa e às vezes
ate soa intrusiva em relação ao destaque
que Jefferson dá para o drama familiar.
Por uma questão subjetiva e de gosto
pessoal, fiquei um pouco decepcionado
pelo cineasta não focar mais na comédia
satírica. Eu realmente penso que o filme
atinge seus melhores momentos quando
Monk está frustrado com produtores
caricatos, participando de circos
midiáticos sobre “diversidade” ou tendo
discussões hilárias com seu editor sobre
consumismo artístico, tudo ao
acompanhamento de teclas de piano
jocosas que adicionam um toque de
ironia deliciosa de assistir. Inclusive,
penso que muitos blocos são
desperdiçados por conta disso, como
sua disputa com a escritora Sintara
Golden (Issa Rae, ótima, porém
subutilizada), o núcleo sobre
estudantes/professores universitários
ou então seu papel como crítico de uma
premiação literária, que certamente
mereciam mais atenção narrativa.
Só que é difícil discutir com Cordy
Jefferson quando o drama familiar
também funciona incrivelmente bem.
De diferentes formas, esse lado da
história é satírico no jeito que apresenta
dinâmicas familiares afro-americanas
pouco retratadas no audiovisual e na
forma que reforça de maneira crítica
certos estereótipos e preconceitos da
própria cultura afro-americana, como a
sua perspectiva historicamente
homofóbica (algo que outros artistas
contemporâneos têm criticado, como
Kendrick Lamar em Mr. Morale & the
Big Steppers e Donald Glover em
Atlanta) e o ângulo elitista e equivocado
de que minorias têm o “potencial” de
serem melhores, algo muito bem
discutido em uma cena da própria
discriminação de Monk. Para além de
comentários sociais e um
derramamento de discussões temáticas,
o drama familiar é bonito, sensível e
cheio de empatia, progressivamente
denso e íntimo através das lentes
pacientes de Jefferson, que nos
apresenta uma família complexa, falha e
amável das melhores maneiras
possíveis, o que faz a obra ser, de
maneira geral, não só crítica, mas
humana.
American Fiction é uma excelente
comédia satírica e um ótimo drama
familiar, entendendo muito bem como
discutir raça e cultura, suas diferenças e
a percepção em volta delas no contexto
afro-americano. As duas vertentes da
produção nem sempre se comunicam
tão bem, mas Jefferson consegue
trabalhar uma narrativa com
intersecções entre comédia e drama que
criam uma ótima produção. Com uma
quantidade inesgotável de
questionamentos, é notável que o
cineasta se recusa a fazer algo que
vemos muito hoje em dia: mastigar da
maneira mais rasa e expositiva suas
críticas; o que torna tudo ainda mais
ironicamente reflexivo de discutir. Até
em um desfecho metalinguístico
atrapalhado, o filme termina sem nos
dar respostas, o que é absolutamente
fantástico.
Ficção Americana (American
Fiction) – EUA, 2023
Direção: Cord Jefferson
Roteiro: Cord Jefferson (baseado no
livro Erasure, de Percival Everett)
Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis
Ross, John Ortiz, Erika Alexander,
Leslie Uggams, Adam Brody, Issa Rae,
Sterling K. Brown
Duração: 117 min.

Kevin Rick

Comecei minha jornada na Grand Line,


passei pelo Templo de Ar do Leste,
adentrei no Monte da Justiça, em
Happy Harbour, e nadei nas
profundezas de Atlântida. Entretanto,
ainda estou em busca do One Piece.
Durante minhas viagens, pude
descobrir mundos nas imagens de
quadrinhos, imaginá-los nas páginas de
livros e vivenciá-los na tela de cinema.
Ainda não cheguei a Laugh Tale, mas
estou aproveitando o caminho.

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