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AUGUSTO, Heitor. Blaxploitation: Um cinema de revolta. Acrobata: Literatura, audiovisual e outros desequilíbrios, Teresina, vol. 7, p. 22-25, Out. 2017.

Heitor Augusto

A câmera passeia numa aérea à procura de um alguém muito específico. Ao surgir das
escadarias do metrô um homem negro, um acorde grave reforça sua chegada e troca-se o
enquadramento (do plano geral para um close, com o rosto do ator Richard Roundtree suavemente
entrando à frente da cara de um branco num outdoor em segundo plano). O que se segue nos
próximos quatro minutos da abertura é uma performance de diva da masculinidade: John Shaft
tem a cidade em suas mãos.
John Shaft não é um homem, mas uma entidade da ordem do supra-humano. Ele é cool,
transita entre a sociedade formalmente estabelecida e os brothers, age à revelia dos mecanismos
de poder e controle. Real e imaginado, super-herói que tem carne, osso e, principalmente, cor – a
negra. John Shaft é o protagonista de Shaft (1971), o mais icônico filme do Blaxploitation, gênero
que ascendeu num brevíssimo hiato em que a indústria de cinema nos Estados Unidos não sabia
para onde correr para fazer dinheiro e, desesperada, abriu frestas para a chegada de outros corpos
à frente e por trás das telas.
Blaxploitation é um momento único, em que negros não só foram pensados como o
público-alvo – retomando, de certa forma, a tradição dos race pictures1 –, mas também como
protagonistas absolutos. Assistir a um filme Blaxploitation é sair com a sensação de que o mundo é
negro.
As imagens legadas pelo cinema Blaxploitation não são moldadas para estruturar um
programa político revolucionário fechado nem para agradar uma sensibilidade de esquerda branca
interessada na tematização dos problemas sociais. O que essa produção nos lega, em especial os
filmes produzidos entre 1970 e 752, é um cinema de vingança, que modula os momentos de
contenção e liberação da raiva. Não por acaso os protagonistas desses filmes são considerados
cool, pois “ser um negro descolado” dentro do panorama racial norte-americano é negociar uma
ameaça. Como resumiu Questlove num seminal artigo3, “E se a máscara for levantada e a fúria
liberada?”.
Blaxploitation é cinema de rebeldia, de revolta e de vitórias simbólicas. De inversão de
papeis e transferência da vilania. Como espectador, um filme como Shaft me permite de alguma
forma me curar da dor de ter sido violentado pela existência de um personagem como o Gus de O
Nascimento de uma Nação, da Mammy de E O Vento Levou, do empregado traiçoeiro de A Filha do
Advogado, do infame quadrinho Scrub me mama with a boogie beat, do que o cinema brasileiro
fez com Grande Othelo, da cena de dança em Xica da Silva, do negro “não, senhor-sim, senhor” de
Advinhe quem vem para Jantar?. Shaft me devolve o direito de ter raiva.
Talvez por ser cinema de gênero e, especialmente, por trazer a experiência negra como um
elemento central que o Blaxploitation seja tratado como algo menor. O pensamento acadêmico o
ignora porque ele não se encaixa no esquema de interpretação que privilegia nem os grandes
autores nem os ciclos/escolas que supostamente organizam a história do cinema. O campo da
cinefilia, grosso modo, não enxerga nesses filmes os códigos do cinema de arte. A crítica
hegemônica desconhece sua existência e a contra hegemônica/de internet não vê neles interesse
suficiente para se entrincheirar nas igrejinhas de defesas. A interpretação militante tende, numa
primeira leitura, a desprezar os heróis e heroínas do Blaxploitation porque eles não se encaixam
numa interpretação mais rígida de superação da opressão racial.
Recolocar o Blaxploitation num lugar nobre para além da nota de rodapé, onde merece
atenção, análise, ser visto e discutido não implica, contudo, ignorar que se trata de uma gama
ampla de filmes, cujas condições de produção fazem com que a existência e a circulação de certas
imagens propagadas sejam, no mínimo, complexas, por vezes na antessala de uma perspectiva
libertadora, outras na da reação conservadora.
A performance cool em Shaft, Super Fly (1972) ou Truck Turner (1974) muitas vezes torna-
se sinônimo de negro viril, máquina de fazer sexo que não consegue controlar suas tendências
“naturais” (estereótipo tão utilizado em obras racistas para justamente justificar a castração do
homem negro); quase sempre a ideia de negritude que está em jogo é a do homem negro
heterossexual, sendo destinado às mulheres negras o papel de apêndice sexual – pouco mais que
bitches e hoes. Até mesmo num filme protagonizado por uma mulher como Foxy Brown (1974), o
que conhecemos primeiro da personagem são seus atributos físicos, vide o infame close nos seios
de Pam Grier nos créditos de abertura; do mesmo jeito que Hollywood entregou imagens do negro
como um sub-humano, o Blaxploitation o fez com outras minorias, em especial gays e lésbicas.
Ou seja, aqui não se idealiza o que foi o Blaxploitation, e sim propõe-se um olhar para a
totalidade da experiência que esses filmes trouxeram. Entre os grandes filmes do gênero quase
sempre há forças internas em disputa, puxando o filme rumo à reação ou à libertação. Presencia-
se em muitos deles um agenciamento poucas vezes visto de personagens negros na história do
cinema e uma frontalidade de abordagem de assuntos sem negociar com a boa consciência crítica.
Não há meio termo ao se falar do racismo e da truculência da polícia em Cleopatra Jones
(1973), da apropriação cultural e exploração do artista negro em Ganja & Hess (1974), dos traumas
da diáspora forçada pela escravidão em Blacula (1972), do estado americano como um corpo
terrorista hábil em esfacelar corpos negros em Sweet Sweetback's Baadasssss Song (1971), da
consciência de que sem poder não há empoderamento em The Mack (1973), de fazer um ousado
sampler da tradição de filmes de gângster em O Chefão do Gueto (1973).
Imagens que uma vez assistidas não nos saem da cabeça: a derrocada do poderoso chefão
Tommy Gibs; a entrada em cena de Tamara Dobson no deslumbrante CinemaScope; os devaneios
do Dr. Hess Green; a montagem picotada e suingada do Sweet Sweetback, a colonização do tempo
e do espaço por Sun Ra; a tragédia de um vampiro negro arrancado de seu reinado; os dilemas
éticos do traficante e seu melhor amigo, um Pantera Negra; a clareza de Shaft em saber de qual
lado realmente está.
Imagens que clamam por (re)descobrimento.

1. Os chamados race pictures foram filmes realizados entre o final da década de 1910 e meados de 1950 majoritariamente por

realizadores negros e voltado para esse público. Para saber mais consultar o catálogo da mostra “Oscar Micheaux: O Cinema Negro

e a Segregação Racial”, disponível em: https://pt-br.facebook.com/MostraOscarMicheaux/

2. Tentar traçar uma linha temporal capaz de apontar a inauguração e o encerramento da produção Blaxploitation é uma

empreitada não apenas complicada, mas sempre terá uma porção de arbitrariedade. Priorizo esse recorte temporal tendo em vista

LAWRENCE, Novotny. Blaxploitation of the 70's: Blackness and Genre. Nova York: Routledge, 2008 (1ª edição).

3. “Questlove’s How Hip-Hop Failed Black America, Part III: What Happens When Black Loses its Cool?”, versão traduzida para o

português disponível em: https://ursodelata.com/2016/12/11/traducao-questlove-sobre-quando-o-negro-perde-seu-ar-cool-hip-

hop/

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