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ENSAIOS DE CRÍTICA

CINEMATOGRÁFICA

GUIDO BILHARINHO

FILMES POLICIAIS

EDIÇÃO
REVISTA DIMENSÃO EDIÇÕES
UBERABA/BRASIL - MAIO 2019
Bilharinho, Guido
B492f Filmes policiais / Guido Bilharinho. -- Uberaba, Brasil:
Revista Dimensão Edições, 2019.
88 p.: il. -- (Ensaios de Crítica Cinematográfica).

1. Cinema. 2. Filmes policiais. I. Título. II. Série.

CDD 791.43

Ficha Catalográfica Elaborada Por:


Sônia Maria Resende Paolinelli - Bibliotecária CRB-6/1191

Planejamento Editorial
Guido Bilharinho
guidobilharinho@yahoo.com.br

Capa
Cena do Filme Os Intocáveis

Edição
Revista Dimensão Edições
Caixa Postal 140
Uberaba/Brasil 38001-970

Direito Autoral
Escritório de Direitos Autorais
Protocolo/Registro 0087/2019

Editoração Eletrônica
Mellize Detogni
SUMÁRIO

NOTA PRELIMINAR

Filmes Policiais.............................................................................3

CRÍTICA

ANOS 30
Filmes de Gângster - Padronização Fílmica................................6
Scarface, A Vergonha de Uma Nação - Paradigma do
Gênero..................................................................................10

ANOS 40

O Homem que Se Vendeu - O Gangsterismo Político-


Administrativo.....................................................................15
O Falcão Maltês - Simplesmente Policial..................................19
A Dama Fantasma e Baixeza - A Configuração Humana.........22
Laura - A Almofada e a Víbora...................................................27
Um Retrato de Mulher - Os Lugares Comuns...........................31
De Brutalidade à Profanação - Carreira Mediana....................34
Rancor - Filme N(S)oturno........................................................37
O Terceiro Homem - Amizade x Dever......................................40

1
ANOS 50

Chaga de Fogo - Crime e Drama................................................43


A Morte Num Beijo - Aventura Quadrinesca.............................46
Anatomia de Um Crime - A Peculiaridade Favorável...............50
Seis Filmes Noir - Características do Gênero............................54

ANOS 60
Bonnie & Clyde - Tempo e Lugar...............................................58
Serpico - Santo e Herói...............................................................61

ANOS 80
Vestida Para Matar - Apropriação Competente.......................66
Os Intocáveis - Quadrado e Enquadrado...................................70
Perseguição Voraz - A Imagem Soterrada.................................74

ANOS 90
Crime Verdadeiro - Os Lugares Comuns...................................76
Entre O Poder e a Lei - Crime e Justiçamento..........................79

DIRETORES DOS FILMES ANALISADOS


Indíce..........................................................................................83

ILUSTRAÇÕES
Cenas de Filmes...........................................26, 42, 53, 65, 82

2
NOTA PRELIMINAR

FILMES POLICIAIS

Ao contrário dos filmes de ficção científica, dos quais


muitos deles baseiam-se em livros, nos filmes policiais, por sua
amplitude (quantidade e tematização), essa característica
carece de importância e significado.

Muitos deles podem até terem sido calcados em livros.


Contudo, tais filmes (e livros) não imprimem e muito menos
impõem linha temática diretiva que se ressalte como nos de
ficção científica.

Tais e tantas são suas variedades e variáveis, que o que


se destaca mesmo é tão somente a qualidade da direção.

Em sua linhagem temática ressaltam-se os filmes de


gângsteres, verdadeiro subgênero com características
específicas que se não confundem nem se fundem com
nenhuma outra categoria fílmica.

Da diretiva ou preocupação com a contextualização


dramática, a psicologia dos protagonistas e a ênfase no
intercambiar de claro e escuro surgiu e se consolidou o noir.

No presente livro, tanto esses subgêneros são


contemplados quanto os filmes policiais que neles não se
enquadram.

3
Destacáveis por suas qualidades, dentre os filmes
analisados, são Scarface (1932), de Howard Hawks; O Falcão
Maltês (1941), de John Huston; Rancor (1947), de Edward
Dmytryk; Chaga de Fogo (1951), de William Wyler; e Bonnie &
Clyde (1967), de Arthur Penn, não por acaso todos realizados
por cineastas de envergadura e de merecido (e alguns de até
cultuado) renome.

No mais, a distribuição dos artigos segue a linha


cronológica das realizações dos filmes comentados,
permitindo, ao se percorrer o sumário, visão abrangente da
evolução do gênero.

O Autor

4
CRÍTICA

5
FILMES DE GÂNGSTER

Padronização Fílmica

O filme de gângster é, no mínimo, subgênero do filme


policial, mas, dadas suas peculiares características pode ser
elevado à categoria autônoma, sem deixar, também, de ser
policial.

Para realçar essa independência basta lembrar que o


gênero policial é generalizado, verificando-se em qualquer
rincão da terra. Não, contudo, o fenômeno do gangsterismo, só
ocorrente nos Estados Unidos e em algumas outras poucas
nações.

Do mesmo modo que o cinema estadunidense criou e


desenvolveu o western, que também existe em outros países,
Brasil incluído, mas, nunca da sua maneira, criou, também, o
filme de gângster, que daquele modo e com aquele sentido e
intensidade só lá aconteceu.

O gangsterismo expandiu-se nos Estados Unidos em


decorrência, se não totalmente, mas, pelo menos
essencialmente, da imposição da Lei Seca, em 1920, proibindo a
fabricação, venda e comercialização de bebidas alcoólicas, e que
só foi revogada no primeiro governo Roosevelt, em dezembro de
1933, vigindo por treze anos, nos quais, como nunca antes nem
depois, floresceu e atingiu seu ápice esse tipo de organização e
ação criminosa.
6
Quatro filmes de gângster da década de 1930, de diferentes
diretores, fornecem ampla visão do fenômeno, seja baseando-se
em fatos reais, seja em personagens desse submundo, seja
condensando em determinada estória série de elementos
encontrados esparsamente nesse ambiente delituoso.

Pela ordem cronológica, Alma no Lodo (Little Caesar,


1930), de Mervin Le Roy (1900-1987); Inimigo Público (The
Public Enemy, 1931), de William Wellman (1896-1975); Balas
ou Votos (Bullets or Ballots, 1936), de William Keighley (1889-
1984); e Heróis Esquecidos (The Roaring Twenties, 1939), de
Raoul Walsh (1892-1980), timbram em focalizar o período
áureo do fenômeno, justamente a década antecedente,
vivenciada por seus diretores.

Tais filmes revelam que a percepção e análise do


gangsterismo, que assolara principalmente Chicago e Nova
Iorque, permanecem uniformes em todo o decorrer dos anos de
1930, significativamente surgindo a primeira dessas películas
em 1930 e a última em 1939.

Conquanto haja variação direcional, o background sobre o


qual esbatem-se as ações fílmicas e os décors pelos quais
movimentam-se as personagens são homogeneamente
realizados.

De igual modo, não obstante diversas as personagens, não


se singularizam suas tipologias, atitudes pessoais e conduta
geral, chegando a ponto de repetirem-se os atores principais:
Edward G. Robinson no primeiro e terceiro; James Cagney no
7
segundo e quarto; Humprey Bogart, não ainda um astro, no
terceiro e quarto.

Tirante certas particularidades, e o maior ou menor vigor


direcional notado em alguns deles, pouco distinguem-se esses
filmes uns dos outros.

Pelo menos três causas subjazem para conformar tais


realizações num mesmo padrão de qualidade. A tecnologia, a
orientação comercial dos estúdios e a eleição da mesma
temática.

Tais fatores reunidos e atuando juntos suplantam


quaisquer outras possíveis influências de sentido singular ou
pessoal.

Mesmo que se possam notar - e notam-se - as referidas


peculiaridades distintivas e tonalidades diversas de segurança,
visão e vigor direcionais, elas não são suficientes para suplantar
a força determinante daqueles elementos uniformizadores que,
por isso, impõem-se e dão o tom desses filmes.

Dois deles pelo menos (Inimigo Público e Heróis


Esquecidos) evidenciam-se por mostrar a origem e a formação
de seus protagonistas. Se a esta o primeiro a busca na infância,
como tendência inata, o último já a revela imposta pelas
condições sociais objetivas de desemprego e desamparo dos
jovens soldados que retornam ao país depois de terem lutado na
Primeira Guerra Mundial de 1914-1918. Por coincidência, as

8
personagens principais são encarnadas pelo mesmo ator, James
Cagney.

Se com exceção de Balas ou Votos, os demais cingem-se a


perlustrar itinerários criminosos individualizados, o filme de
Keighley, o menos conhecido e considerado dos quatro
diretores, além de colocar em primeiro plano e realçar como
herói um policial - e não um gângster como os demais - ainda
caracteriza-se por centrar a trama na ação de associação
criminosa e não de indivíduo voluntarioso e que por si abre
caminho a ferro e fogo. Em Balas ou Votos, ao contrário, o
voluntarismo pessoal, mesmo que baseado em estrutura
montada para satisfazê-lo, é substituído por organização que
utiliza e maneja os indivíduos para servi-la.

É obvio, dadas a gênese e a orientação comercial de tais


filmes, que sua amostragem e análise do fenômeno em questão
não ultrapassem o naturalismo fixador de aparências e de ações
externalizadas pelas personagens. Pela mesma razão, sua
linguagem pauta-se por convencionalismo, conquanto eficaz, ao
instrumentalizá-la como veículo expressional para atingir, ser
compreendida e conquistar o público a que se dirige, o que
acontece, com idêntica intensidade, com o tratamento temático.

9
SCARFACE, A VERGONHA
DE UMA NAÇÃO

Paradigma do Gênero

Conquanto narrativo, naturalista no sentido mimético do


termo e convencional na linguagem e montagem, o filme
Scarface, A Vergonha de Uma Nação (Scarface, EE.UU., 1932),
de Howard Hawks (1896-1977), se não é o melhor filme de
gângster ou, no mínimo, um dos melhores, é o insofismável
clássico do gênero, além de pioneiro em vários aspectos, fixando
daí para frente maneira específica de se focalizar o tormentoso
tema.

Se o título brasileiro é excrescente e condenatório, não é


por falta de fundamento. Muito ao contrário.

Talvez para justificar a exploração industrial da violência


gansgsterista, que, à época de sua feitura ainda não havia sido
extirpada do país, Hawks faz, de início, pesada acusação ao
Governo por não combatê-la como devia.

Contudo, sua investida cinematográfica contra o fenômeno


apresenta cambiância ambivalente. Se de um lado desnuda essa
prática criminosa e assassina, carregando cada ato do
protagonista e de seus parceiros e opositores e cada cena de
ferina e contundente condenação, ínsita na própria ação dessas
personagens, não deixa de escamotear as causas e motivos que a

10
propiciaram, desenvolveram e mantiveram por largo tempo e à
custa de muitas vidas inocentes, principalmente de pequenos
comerciantes do ramo de bares e bebidas.

Nem de longe, Hawks aflora a problemática da


organização social e da cultura que a forma e sistematiza, nem
ao menos questiona causalidade evidente e imediata do
surgimento ou pelo menos do crescimento vertiginoso do
gangsterismo, propiciado, provocado e alimentado pela Lei Seca
prevalecente nos Estados Unidos de 1920 a dezembro /1933.

Ao invés de tudo isso e o mais que se pode ter envolvendo


o assunto, o cineasta, seguindo o tradicional viés estadunidense
de atribuir tudo, de bom e de ruim, de positivo e de negativo,
apenas à formação e conformação individual, nucleia na figura
odiosa de Scarface (inspirado, segundo consta, em Al Capone,
ainda vivo à época) toda a responsabilidade pela extremada
violência fílmica.

Sem dúvida, não se pode negar o componente individual.


Todavia, há exagero e deturpação no caso, independentemente
das características pessoais altamente agressivas, destruidoras e
autodestrutivas do protagonista. Principalmente porque, na
contextualização fílmica, se a personagem evidencia êxito na
sua performance, isso só foi possível dadas as circunstâncias da
sociedade ianque ao tempo, que permitiu, não só por ter
proibido o consumo do álcool, o florescimento desse tipo
especial de banditismo.

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Ademais, a inspiração da figura do protagonista em Al
Capone não é linear e automática, haja vista que Capone,
embora impetuoso, corajoso, totalmente dedicado às suas
pretensões e práticas criminosas (características do
protagonista) não era (ou não era tão) desenfreado e descuidado
quanto a personagem, tanto que nunca se logrou incriminá-lo
por qualquer de suas notórias práticas assassinas, o que revela a
fragilidade da legislação penal do país, só o conseguindo e
fazendo obliquamente por infração à lei do imposto dito de
renda, comprovando a natureza orwelliana dessa legislação, que
prende a sociedade numa camisa de força e a submete ao
Estado, a quem tem de prestar contas de rendimentos e atos
comerciais e até pessoais, quando deveria ser o contrário: o
Estado submetido ao controle, vigilância e fiscalização da
sociedade que o sustenta e mantém.

Além da ênfase no sucesso individualista, promoção ad


nauseam do ter e haver e do consumo e outras singularidades, o
verdadeiro fetiche que se tornou o armamento para essa
sociedade, também contribuiu (e continua contribuindo) para
agravar a violência. Tanto que essa particularidade não só não
passou despercebida ao cineasta como a ela dedica pelo menos
duas referências explícitas e condenatórias: quando o próprio
protagonista, à certa altura, afirma que “lei alguma impede a
entrada de armas no Estado” e quando o policial chefe diz que
“a lei não impede a fabricação, só o porte”.

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A “cultura” da arma nos Estados Unidos foi há muito
tempo introjetada na sociedade pela poderosa indústria
armamentista, cuja Confederação (ou que outro nome tenha)
Nacional do Rifle (para tristeza dos cinéfilos, tendo como um
dos líderes e relações públicas o ator Charles Heston), é ativa e
onipresente em todo e qualquer fórum que se debata o assunto.

Em consequência, não obstante profligar acerbamente o


Governo pela sua inépcia contra o crime organizado, Hawks
desfoca a questão de suas causas reais, transformando sua
personagem em verdadeiro herói e self-mad-man às avessas,
tanto pela exacerbada prática predatória quanto pela expressa
diretriz que o guia de “faça primeiro, faça você mesmo,
continue fazendo”, referindo-se Scarface à vitimação dos
opositores.

Não resta dúvida, porém, que mesmo sob tão graves


distorções e unilateralismo, o filme deve ter tido influência no
combate ao gangsterismo, que, de qualquer modo, teria de ser
submetido à forte repressão, visto que, além de escandaloso,
estava fugindo ao controle.

Isso porque é filme forte, vigoroso, de ação tão dinâmica


quanto a linguagem que a exprime e a montagem que a reúne,
seleciona e organiza.

É lícito afirmar-se que, nos parâmetros e limitações da


construção cinematográfica convencional de padrão
estadunidense, constitui uma de suas obras-primas, até hoje
insuperável em seu âmbito. Daí sua permanente e
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extraordinária modernidade narrativa, por força dos atributos
indicados e do ritmo que a molda, singulariza e torna
paradigmática no gênero.

Nele incidem pelo menos algumas importantes


coordenadas: o ambiente físico e social urbano de grande
metrópole estadunidense; a ação criminosa grupal organizada
no gangsterismo; o mercadejar de bebidas alcoólicas; a
violência utilizada como meio ou instrumento de imposição
mercadólogica e, finalmente, o destino pessoal do protagonista
e seu comportamento e relacionamento familiar.

A cada uma delas e a seu embricamento e simultaneidade,


Hawks estipula e aplica tratamento adequado e consentâneo
com sua natureza e conteúdo, de modo a imprimir ao mesmo
tempo unidade e dinamismo ao conjunto e às suas diversas
partes.

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O HOMEM QUE SE VENDEU

O Gangsterismo Político-Administrativo

O Homem Que Se Vendeu (The Great McGinty, EE. UU.,


1940), de Preston Sturges (1898-1959), conquanto não seja bom
filme, como, aliás, não são quase todos os demais da lavra desse
diretor, contempla aspecto da atuação do gangsterismo nos
Estados Unidos normalmente não focalizado pela série de
filmes sobre o assunto realizados no país, tanto à época como
posteriormente.

Em geral, tais filmes restringem sua visão do fenômeno às


atividades externas dos grupos mafiosos, representadas por
suas desavenças inter e intragrupais, violência física,
contrabando em fabricação, distribuição e venda de bebidas
alcoólicas ao tempo em que isso era proibido, venda de
“proteção” contra seus próprios atos destrutivos e
persecutórios, exploração do lenocínio e outras atividades
criminosas correlatas. Às vezes, de passagem, algum filme faz
referência à prática político-administrativa do gangsterismo. Ou
seja, como essa ação criminosa estendia (ou ainda estende) seus
tentáculos além de seus limites naturais, submetendo partidos
políticos, influindo e direcionando pleitos eleitorais, elegendo
candidatos e dominando suas administrações.

Talvez porque o tema seja vexaminoso demais para os


Estados Unidos, esses aspectos negativos de sua sociedade

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sempre foram escondidos debaixo do tapete, tal sua
escrabosidade.

Numa democracia, contudo, sempre é possível abrir-se


janela que permita entrar a luz para espanar a escuridão
propositadamente mantida.

Isso exatamente faz Preston Sturges logo em sua obra de


estreia, em que, de plano, revela perfeito domínio do métier,
realizando filme formalmente convencional e bem comportado,
compensando, porém, tal limitação intelectual e ausência de
atributos artísticos com a reconstituição e revelação dos
bastidores da corrupção eleitoral, política e administrativa em
modus faciendi e intensidade inimagináveis.

Ao invés das costumeiras, ostensivas e violentas


manifestações criminosas, o boss do filme age subrepticiamente
nos bastidores da vida político-administrativa da cidade para
usufruir, posteriormente, das benesses escusas e predatórias de
empreitadas de obras governamentais.

O filme compõe-se e perfaz-se justamente desses e com


essas atividades, tanto em seus grandes e largos aspectos como
nas minúcias de seu proceder, fornecendo visão cabal do
esconso mecanismo expropriatório de recursos públicos e seu
desvio e assenhoreamento pelo empreendimento privado da
organização mafiosa.

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É, nesse sentido, filme ilustrativo, do qual, todavia, tem-se
que tirar a conveniente lição, comparando-a com o que vem
acontecendo nos países periféricos.

A questão é que mesmo e por vezes mergulhado em


corrupção administrativa, intensa e em largas proporções, os
Estados Unidos conseguiram prosperar, atingindo o ápice entre
as nações do planeta.

É que - e isso evidentemente o filme não mostra, já que


alheio ao tema elegido - os Estados Unidos, desde sua
independência, entre outras duas ou três medidas
fundamentais, nunca permitiram que potências e grupos
econômicos estrangeiros os explorassem, subjugando e
direcionando suas fontes de riquezas e produção, mediante
liberdade de mercado, remessa de lucros, royalties e juros para
as matrizes estrangeiras de empresas tidas, enganadamente,
como inteiramente multinacionais, descapitalizando o país e
impedindo seu desenvolvimento autóctone e autônomo, como
vem acontecendo com todos os países latino-americanos (exceto
Cuba), a esmagadora maioria dos africanos e muitos dos
asiáticos.

As ações criminosas e corruptoras intensamente ocorridas


no âmbito interno dos Estados Unidos não carrearam as
riquezas acumuladas para o exterior. Os prejuízos ocasionados
ao país - muitos e vastos, como se sabe - foram infinitamente
menos nocivos a seu progresso do que a espoliação
internacional a que os referidos países periféricos são

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submetidos pelas nações mais desenvolvidas, tornadas, por isso,
hegemônicas, dominadoras, inescrupulosas e exploradoras por
meio da atuação internacional de seus grupos econômicos, os
quais verdadeiramente dirigem a nação. A maioria absoluta dos
candidatos eleitos a postos e cargos públicos não passam de
seus representantes, já que dependentes de seus recursos
portentosos para financiamento de campanhas eleitorais
propositadamente tornadas milionárias, respaldadas por
pertinente, permissiva e complacente legislação eleitoral
imposta pelos referidos representantes do poder econômico,
aliás, o único poder existente.

O filme de Sturges, mesmo não adentrando em tal campo


por não ser esse seu objetivo, permite, no entanto, ao
espectador preocupado e com alguma informação sobre os
efetivos mecanismos da sociedade capitalista e sobre a história
estadunidense chegar a essa conclusão, isto é, que por maior
seja a corrupção interna e os desmandos administrativos sua
prejudicialidade para o povo de um país é infinitamente menor
que a espoliação das riquezas nacionais procedida
metodicamente pelos grandes e cada vez maiores grupos
econômicos privados que atuam globalmente, tornando meras
figuras inexpressivas do crime os Al Capones e seus congêneres
de outrora e mesmo os de hoje em dia.

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O FALCÃO MALTÊS

Simplesmente Policial

Certa publicidade insiste em afirmar que o filme O Falcão


Maltês ou Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, EE.UU.,
1941), de John Huston (1906–1987), é, além de ser filme noir, o
primeiro deles.

Contudo, não chega a ser nem uma coisa nem outra.

O noir não é simplesmente variante do filme policial,


caracterizando-se por série de requisitos que o distingue (e o
destaca), entre eles, a obscurecida tonalidade dos décors e de
cenas urbanas externas, o recorte psicológico, em que esses
elementos fundem-se em amálgama que se inter-relaciona e se
interinfluencia, de modo a formar conjunto indissociável.

Não é o caso de O Falcão Maltês, que, se timbra por tons


enegrecidos, não se respalda em contextualização psicológica e
ambiguidade comportamental. Ao contrário, o detetive Sam
Spade (Humphrey Bogart), protagonista do filme que está no
centro de pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) das
cenas, não é trabalhado nem apresentado pelo corte psicológico.
Muito menos as demais personagens. O máximo que ocorre
consiste em manifestações emocionais, a exemplo da reação da
secretária desse detetive face à morte de outra personagem, ou
comportamentais, como seu modo de se dirigir ao patrão.

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No mais, é filme policial marcado por ação até certo ponto
trepidante, característica imposta pelo próprio modo de ser
(não só de interpretar) de Bogart.

Quanto, à precedência cronológica no gênero, a


Encyclopedie du Film Noir, de Alain Silver e Elizabeth Ward
(Paris, editions Rivages, 1987), aponta como primeiro filme noir
a Underworld (EE.UU, 1927, Les Nuits de Chicago no título
francês), de Josef von Sternberg, que, “très insolite pour
l’époque, peut être considéré comme le premier film de
gangsters moderne”, ponderando, porém, que “même si Les
Nuits de Chicago n’est pas un authentique film noir, la
claustrophobie, l’aliénation et la corruption du milieu en font
en tout cas un important précurseur” (p. 294). Além dele,
seguem-se outros onze filmes anteriores a O Falcão Maltês no
catálogo cronológico do gênero.

Não se pode deixar de considerar, no entanto, que a fama


do filme de estreia de Huston se deve a qualidades que escapam
à definição do noir, como dinamismo da ação, seguras direção e
interpretação dos atores e o mistério que se instala desde o
início, acompanha e permeia o filme até quase ao final.

Por fim, se a referida Enciclopédia o inclui no rol do


gênero, não deixa de ponderar, no entanto, que se “la plupart
des films noirs sont, par nature, désespérés, mais les meilleurs
accordent à leurs personnages les plus névrosés une
authentique dimension humaine qui leur donne une fascinante
ambiguité”, não acontece o mesmo com O Falcão Maltês, “on

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ne trouve aucune nuance de gris”, além de que “les codes de
l’honneur qui motivent profondément les autres privés du film
noir, ne sont ici que des paroles creuses”, isto é, vazias (p. 149).

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A DAMA FANTASMA E BAIXEZA

A Configuração Humana

Quando Robert Siodmak (1900-1973) dirigiu A Dama


Fantasma (Phantom Lady, EE.UU., 1944) já exercitara a
direção por quinze anos. Nem por isso - ou até por isso - realiza
bom filme. A começar pelo seu pecado original de pretender
apenas contar uma estória, cingindo-se a seus estritos limites.
Nenhuma pretensão a mais, nenhuma qualidade, portanto.

O filme é misto de drama amoroso e policial, equilibrando-


se tanto quanto possível nesse pêndulo, a ponto de transformar
o amor em motivação e erigir a apaixonada em persistente e
destemerosa investigadora.

O resultado é filme pífio para simples passatempo de


espectadores pouco ou nada exigentes e que se utiliza da voga
de estudos psicanalíticos nos Estados Unidos à época apenas
como ponto referencial e pretextual para os atos do criminoso,
deixando, porém, inconcluso o principal fator em que se baseia
para deflagrar a ação, ou seja, a insidiosa intenção e a metódica
transferência da culpa para seu melhor amigo sem razão
plausível. A circunstância de não passar de engenheiro
construtor restrito a obras desprezíveis é insuficiente, a todas as
luzes, para provocar e alimentar tão intenso ódio. Menos ainda
sua perturbação mental.

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Em suma, filme convencional e prosaico do ponto de vista
formal e frágil, superficial e descuidado sob o prisma temático e
de conteúdo.

Baixeza (Criss-Cross, EE.UU., 1948), também de Siodmak,


já é de outro nível. Em todos os sentidos supera seu antecessor,
constituindo um dos filmes policiais dignos de nota, conquanto
ainda aquém das melhores realizações do gênero em seu tempo.

Possui impulso interno que torna a ação trepidante. Mais


uma vez, o leit-motiv constitui a força da paixão amorosa, que
origina a ação, a desencadeia e a baliza em todo seu
desdobramento.

Deduzida a linearidade narrativa, vez que profundidade e


complexidade não constituem o forte de Siodmak, e descontado
o objetivo de apenas contar uma estória, o filme contém
aspectos positivos desde o roteiro consistente, que denotam
superior domínio da câmera e suas possibilidades pelo diretor,
tanto por si mesmo quanto em comparação com a frouxidão que
caracteriza A Dama Fantasma.

Em primeiro lugar, salienta-se seu ritmo célere,


compatibilizando ação, interpretação, imagem e montagem, a
começar pela adequada escolha de Burt Lancaster para o papel
do protagonista, obtendo a direção o máximo rendimento da
peculiar desenvoltura do ator.

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A configuração do relacionamento do par amoroso, não
obstante restrita a lances isolados, já que a duração fílmica não
permite maiores delongas, é satisfatória e suficiente para
compor o quadro em que se desenvolve e, com bastante
percuciência, nitidiza sua natureza de conteúdos e significados
antagônicos.

Do cerne de contradição emocional e volitiva constrói-se a


conflituosa estrutura temática, na qual, mais uma vez,
amalgamam-se amor e delito, paixão e crime.

A conduta aparentemente errática e contraditória da


heroína é, ao contrário do ocorrido com o perfil e a motivação
do criminoso de A Dama Fantasma, verossímil, plausível e
autêntica, por resultante de sua natureza egoísta, interesseira e
oportunista, que forte coerência interior alicerça e solidifica.

Como ocorre na realidade, geralmente o apaixonado


sincero é instrumentalizado e submetido aos desígnios malsãos
do parceiro.

O caráter noir do filme sobressai, embora um tanto diluído


ou secundarizado pela impetuosa característica da ação. Não lhe
falta, no entanto, o elemento temático básico no delineamento
psicológico dos protagonistas.

Baixeza extrapola, pois, dos acanhados limites da


narrativa para articular-se em patamar superior, que, na
tradição do melhor noir, é perquirir e revelar por meio dos atos
e do comportamento o perfil humano das personagens, aliás,

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seu principal objetivo, o que legitima essa linhagem fílmica e a
torna interessante e digna de atenção.

Baixeza não se restringe, porém, tão-somente a esses


atributos. Nele destaca-se ainda a composição de todo o quadro
familiar e social do protagonista, articulado com equilíbrio e
adequação, de modo a respaldar (e acentuar) seu caráter e
personalidade tanto quanto a paixão avassaladora que o domina
e direciona, no entanto, comedidamente exteriorizada em
gestos e postura.

A par, pois, com o dinamismo narrativo, o filme contempla


com acuidade e pertinência - a exemplo dos melhores espécimes
do gênero - a verdade da natureza humana conforme
manifestada nas condições dadas.

Ressalte-se, ainda, que o núcleo motivador da ação está na


base de um dos mais significativos noirs modernos, o filme
Corpos Ardentes (Body Heat, EE.UU., 1981), de Lawrence
Kasdan.

25
Scarface, A Vergonha de Uma Nação

O Falcão Maltês

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LAURA
A Almofada e a Víbora

O filme Laura (Idem, EE.UU., 1944), do austríaco Otto


Preminger (1906-1986), é considerado uma das obras
paradigmáticas do cinema noir, subgênero específico do gênero
policial que floresceu nos Estados Unidos principalmente na
década de 1940 com prorrogações incidentais posteriores.

Contudo, do noir, na significação material do termo, de


escurecimento ambiental, lugares esconsos, ruas, ruelas e becos
mergulhados em escuridão, Laura não tem nada. Pelo
contrário. Os interiores onde transcorrem as principais ações
são luminosos, feéricos, quando não luxuosos. Salvo poucas e
rápidas cenas nas quais o obscurecimento é ficcionalmente
necessário, como, por exemplo, no assassínio que se comete,
não se utiliza, no filme, o costumeiro e lúgubre
ensombrecimento, muitas vezes ou sempre, no caso, carregado
de significado e inferências.

No sentido, pois, “físico” do termo não se poderia incluí-lo


no referido subgênero.

Todavia, o noir não se configura apenas por elemento tão


simples quanto restrito, que não passa de exterioridade, muitas
vezes estranha e alheia ao pathos dramático e incidente apenas
ocasional ou circunstancialmente. Sua caracterização assenta-se
principal, porém não unicamente, no dimensionamento

27
psicológico da motivação criminosa, não se limitando seus
espécimes mais célebres à mera articulação fática, ou seja,
simples narrativa de um crime e sua investigação policial.

Essa condição é-lhe, evidentemente, fundamental, já que


na sua falta o noir não se configuraria. Todavia, ela constitui a
base sobre a qual os cineastas traçam o perfil criminal dos
assassinos que povoam e infestam suas estórias, que, aliás, sem
eles também não se articulariam.

No decorrer do processo investigatório, como acontece em


Laura, vão-se desdobrando e sendo desveladas as sutis e
recônditas camadas ou substratos emocionais impulsionadores
e deflagradores do comportamento criminoso.

Sob a aparência oposta aninham-se e escondem-se os


sentimentos mais exacerbados e irracionais, guiados, contudo,
por férrea lógica de execução e ocultação. Tal qual aconchegante
e vistosa almofada em esplêndido sofá, escondendo sob sua
beleza e macia contextura mortal víbora pronta a atacar quando
se lhe retire a confortável e cálida proteção.

É exatamente o caso de Laura, em que mais importante do


que o crime e sua autoria são a motivação e o mecanismo psico
que os retiram do escaninho do sentimento (como a víbora sob
a almofada) e os transmudam em ação (ou bote) fulminante (e
fatídico).

O procedimento inquisitório, efetuado conforme as


práticas usuais, é, porém, conduzido no filme de maneira sui-

28
generis, visto pautado pela simplicidade, objetividade e, não
muito frequente nessas circunstâncias, por certo requinte e
sutileza, com ênfase na inteligência dialogal.

A narrativa, mesmo sendo convencional, não corre tão


linearmente como seria de se supor, já que se desdobra em vias
oblíquas e labirínticas de averiguação, menos de autoria do
crime que da verdade dos acontecimentos, menos de fatos que
de suas razões.

Além disso, sobressai na contextualização dramática,


como já observado em comentários sobre o filme, a posição da
mulher à época, não mais simples coadjuvante do homem e
nem mais adstrita aos limites confinadores (físicos e mentais)
do lar. Laura, a protagonista, independentemente de ser bela e
sensual, é inteligente, autônoma e decidida, porém, sem
afetação e vaidade. Naturalmente atrai e conquista pelo
conjunto de seus atributos e modo de ser, enfim, pelo que é e
não pela artificiosidade da aparência física, manifestação e
exercício da sensualidade. Não é a mulher fatal, mas a natural e
autêntica, prerrogativas da modernidade e da atualização e
inserção feminina num contexto que não é (e nem deve ser) dos
homens, mas, do ser humano.

Essa característica é tão forte no filme, que paraleliza, em


importância ficcional (narrativa e dramática), com o crime
investigado, admirando-se, por isso, não tenha sido objeto nem
ao menos de referência na obra de E. Ann Kaplan justamente

29
sobre o assunto, A Mulher e o Cinema - Os Dois Lados da
Câmera (Rio de Janeiro, Rocco, 1995).

Reparável, ainda, em Laura, além de outros aspectos, a


impropriedade que contém de iniciar-se sob a narrativa e
comentário in off de personagem que pelo desfecho da estória
estava impossibilitado de fazê-lo. Nem pode passar
despercebida a particularidade de que essa contradição, de tão
forte, impediu seu prosseguimento, visto que de certo momento
em diante a narrativa segue por si, direta e objetivamente.

Aliás, esse mesmo fenômeno ocorre no filme brasileiro


Sombras de Julho (1996), de Marco Altberg.

30
UM RETRATO DE MULHER

Os Lugares Comuns

Costuma-se destacar e até mesmo reverenciar o cineasta


alemão Fritz Lang (1890-1976) até mesmo por sua filmografia
estadunidense.

No entanto, esse posicionamento não procede por duas


razões, ambas interligadas e consequentes. A uma, porque não
há termo de comparação com sua obra anterior, efetuada na
Alemanha antes de dirigir-se à França e logo depois aos Estados
Unidos, tangenciado pela perseguição nazista. A duas, porque
mesmo se não existisse esse parâmetro comparativo, pelo qual
se verifica e se evidencia a diferença entre a produção de uma
fase e a de outra, ou seja, independentemente disso, dessa
colação e confronto, sua obra estadunidense peca pela
insuficiência elaborativa e subordinação às imposições
industriais e comerciais dos estúdios.

É claro que num cineasta de tal porte e envergadura, esses


filmes, por mais convencionais e lineares sejam - e são -
possuem certo nível de realização cinematográfica, sem,
contudo, atingirem o patamar artístico.

É o que acontece, por exemplo, com Um Retrato de


Mulher (The Woman in the Window, EE.UU., 1944), filme
policial competentemente aviado.

31
Convencional e linearmente, Lang estende a ação, a partir
de certas coincidências adredemente estipuladas para desaguar
no leito raso de trama exclusivamente policial com seus fatais
lugares (e situações) comuns.

O timbre europeu da realização manifesta-se no costume


(britânico) do clube (onde mulher não entra), em que se reúnem
amigos para conversas anódinas sobre assuntos da atualidade.

A lógica e pertinência do enredo e seu desenvolvimento,


bem como o ritmo que se lhe imprime, não passam nem
ultrapassam os lindes usuais da competência cinematográfica e
do atilamento policial, com vistas à elaboração, nos quadros e
coordenadas do gênero, de agradável passatempo e
divertimento, como o são, a seu modo, os livros policiais de
Agatha Christie por exemplo, aos quais, em sã consciência, não
se pode atribuir nenhuma qualidade artística, mas, apenas,
como a esse filme de Lang e tantos outros, propriedades
específicas do gênero policial, próprias e indispensáveis a
qualquer bom profissional da área no campo da investigação
criminal.

O filme atinge plenamente seu raso e modesto propósito


de distrair o espírito, atrair e galvanizar a atenção e cooptar o
espectador para acompanhar e “viver” emocionalmente as
agruras do protagonista mediante dosagens certas de
dificuldades e suspenses usuais em produções da espécie.
Atributos esses, como se vê, eficazes para alcançar os objetivos
colimados, mas, insuficientes e alheios e até antagônicos ao

32
desiderato, concepção e prática artística, que não se coadunam
com o emocionalismo, a transplantação mimética da realidade,
o convencionalismo e a linearidade, marcas da carência de
intuito e elaboração artística.

Um Retrato de Mulher, designação brasileira pertinente e


consentânea com a temática fílmica, ao contrário da original,
que, se tomada ao pé da letra, nada tem a ver com o entrecho,
nem pode ser, a rigor, enquadrado como policial “noir”, por lhe
faltar suas mais importantes características ou, quando
ocorrentes algumas outras, não estarem convenientemente
exploradas e trabalhadas, o que o coloca, na melhor das
hipóteses, como representante menor do gênero.

No mais, Lang usa de artimanha que recupera o desenlace


do enredo, recolocando-o no espírito que anima, orienta e
preside o filme, de “tudo bem quando acaba bem”. Contudo,
esse recurso o insere no escaninho da ilusão de uma ilusão,
visto que a ficção, como a denominação indica, consiste em
construção imaginária.

33
DE BRUTALIDADE À PROFANAÇÃO

Carreira Mediana

Jules Dassin (EE.UU, 1911-2008) é diretor conhecido e


seus filmes obtiveram grande audiência de público.

De Brutalidade (Brute Force, EE.UU., 1947) à Profanação


(Phaedra, Grécia, 1962), ou seja, dos Estados Unidos à Europa,
para onde vai tangido pela perseguição político-ideológica do
maccarthismo, sua filmografia mantém-se num nível no qual a
regularidade constitui a principal característica. Se não dirige
nenhum filme excepcional, também não decai em realizações
inexpressivas. Qualquer deles possui qualidades que, no
mínimo, revelam o bom artesão, o diretor seguro e conhecedor
de seu ofício.

A filmografia de Dassin não atinge o grau de obra autoral


– conceito, aliás, equivocadamente controvertido – no sentido
de possuir marca inconfundivelmente pessoal, contendo
particular visão do mundo dentro de um dimensionamento
filosófico, além de revelar completo domínio da linguagem
cinematográfica como meio de realização artística.

Não se alça, pois, Dassin à categoria de autor, como o são,


por exemplo, Bergman, Fellini, Visconti, Buñuel, Antonioni,
Humberto Mauro e Gláuber Rocha, não só por carecer seus
filmes dos elementos acima descritos, como, inclusive, por não

34
conseguir o diretor impimir-lhes profundidade e qualidade
artísticas.

A marca pessoal de Dassin restringe-se a elementos


formais, nos contrastes entre o preto e o branco e o uso
frequente dos meios-tons. A qualidade da música de seus filmes,
às vezes, como em Nunca aos Domingos (Pote Tin Kyriaki,
Grécia, 1959), ligada ao próprio tema, é outro aspecto
característico na marcação dos acontecimentos.

É diretor, pois, que se situa num meio-termo entre arte e


entretenimento. Seus filmes não são nem uma coisa nem outra,
contendo elementos de ambas. Se não consegue conferir-lhes
alto nível artístico não descamba, porém, para o puro
entretenimento comercializado. Excetuando-se, dessas
considerações, Cidade Nua (Naked City, EE.UU., 1948),
Mercado de Ladrões (Thieves’ Highway, EE.UU., 1949) e seus
últimos filmes, por ainda não vistos.

A visão do mundo de Dassin é simplificadora e está a


poucos passos da esquematização. Preocupando-se em fixar a
deformação do ser humano dominado pela ânsia de riqueza e
poder, Rififi (Du Rififi Chez les Hommes, França, 1955), e,
principalmente, pela posse e a existência de um e de outro
(Profanação), consegue, até certo ponto, distinguir-se, mas, por
não aprofundar o tema, permanece, o mais das vezes, na
narrativa linear dos acontecimentos.

É o caso de A Lei dos Crápulas (La Loi, França, 1958),


onde, em prejuízo da profundidade, se perde na superfície de
35
história fragmentada em vários fatos marginais. Dilui-se o tema
central, que perde força em favor de amplo painel da vida em
pequena cidade. Entretanto, tal painel, em virtude do excesso
tumultuoso de dramas pessoais paralelos, não chega a ser
realizado. Não convence, porque o diretor não se dá o trabalho
de realizar conveniente seleção de fatos e acontecimentos.

Apesar de estar presente em A Lei dos Crápulas a


preocupação constante acima referida, Dassin, nesse filme, não
consegue desenvolvê-la como unidade temática. O filme – cujo
aparato, direção segura e boa condução de atores pode levar a
entusiasmos exagerados – situa-se também na mediania
característica de toda filmografia desse diretor, não possuindo
qualidades outras que o levem a ocupar lugar relevante no
cinema.

RANCOR
36
RANCOR

Filme N(S)oturno

A temática policial comumente é utilizada no cinema para


realização de filmes comerciais. Mais até que outros gêneros e
temas.

Contudo, uma espécie de filme policial é menos


contaminada por esse viés. É o noir, tipo especial de filme não
exclusivo da referida categoria, mas, quase sempre dela.

Caracterizado pelo décor escuro, em que a luz é utilizada


equilibradamente para composição expressiva do ambiente - e
não apenas como mero artefato de iluminação - o noir
ultrapassa os limites da estória e da ação para atingir patamares
mais consistentes e elevados.

Representa não só visão particular do mundo, mas, sob o


ponto de vista artístico, maneira peculiar de expressá-la.

Segundo Carlos Pinheiro Júnior, “toda temática noir, em


qualquer de suas variantes - negativista, conformista ou
violenta - é fundamentalmente pessimista” (in O Cinema dos
Anos 80, organizado por Amir Labaki. São Paulo, editora
Brasiliense, 1991, p. 44 ).

Contudo, nesse sentido, seu aspecto mais relevante,


juntamente com o peculiar tratamento formal, é o conteúdo
psicológico, quase sempre presente, quando não sempre.

37
É o caso de Rancor (Cross-fire, EE.UU., 1947), do
canadense Edward Dmytryk (1908-1999).

Nele, não é só a ação a condutora da trama, mas, também,


sua motivação. Não é apenas a relação gato (delegado) e rato
(criminoso), de perseguição e cerco policial, o que interessa e se
expõe.

Mais importante, talvez, que isso são o móvel do crime


(antevisto este por meio de projeção das sombras do criminoso
e da vítima na parede) e a atitude do criminoso.

Não se restringe o cineasta a focalizar a causalidade


individual que provoca e condiciona essa conduta. Interessa-lhe
- e os limites da narrativa impõem - menos a problemática
pessoal do criminoso que sua repercussão social. Mais o ser
humano em situação e em ação que em si mesmo, restrito a seu
universo particular.

Mas, ao lado do evolver do enredo, da habilidade de se


mostrar por indícios, indireta e paulatinamente, a autoria do
assassinato, sobressai também a revelação da estrutura
psicológica das principais personagens e de sua contrapartida
comportamental, notadamente do criminoso e do protagonista,
a quem aquele maliciosamente direciona as suspeitas.

Assim, o tema e seu sentido e significado caminham


juntos, já que, sem o primeiro, estes, no caso, não poderiam
existir, embora o contrário seja o costumeiro. Isto é, estória
destituída desses e de quaisquer outros atributos.

38
Não se tem em Rancor, pois, apenas trama policial, mas,
sua própria razão de ser na demonstração das atitudes que a
determinam e ocasionam. O que à primeira vista pode parecer
um filme simples apresenta, ao contrário, certa complexidade
na ênfase da focalização do conteúdo antes e mais do que na
ocorrência factual.

Nesse sentido, o título brasileiro, Rancor, explora o


conteúdo, enquanto que o original, Cross-fire (fogo cruzado),
traduz a ação.

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, a


utilização de seus elementos e dos recursos da câmera é não só
hábil como sensível e dosada na medida das necessidades
fílmicas, desde a gestuação das personagens até seu
enquadramento cinematográfico e o tom lúgubre da
ambientação.

Assim, tanto do ponto de vista do tema como da forma,


não se reconstitui simplesmente a realidade, mas a recria.

No mais, Rancor não é filme noturno apenas por


transcorrer praticamente à noite, mas, notadamente, pela
soturnidade com que focaliza a condição humana num de seus
momentos cruciais.

39
O TERCEIRO HOMEM

Amizade x Dever

À primeira vista O Terceiro Homem (The Third Man, Grã-


Bretanha, 1949), de Carol Reed (1906-1976), parece restringir-
se à temática policial.

Contudo, se é basicamente isso, ou seja, se gira em torno


de ação criminosa e sua repressão policial, transcende essas
coordenadas, atingindo outros temas e significados.

Avultam, nele, inúmeras questões relevantes que o tornam


um dos filmes mais significativos de sua época.

Uma delas é a recriação da atmosfera da Viena do pós-


guerra, setorizada pela ocupação das potências vencedoras,
tendo administração conjunta no centro da cidade.

A ambiência histórico-social da cidade é apreendida com a


sensível captação dos aspectos urbanísticos, arquitetônicos e
sociais, desde enfoques nas ruas e nos exteriores e interiores de
prédios, sobressaindo a perfeição dos enquadramentos e
perspectivas extremamente valorizativas de décors e espaços
externos e da inserção e movimentação neles das figuras
humanas.

Se a estória é esquematicamente simples, deflui; porém,


em síncopes e diástoles de revelações, de modo que o mistério

40
inicial vai pouco (e naturalmente) desvendando-se por si
mesmo, conforme a ação e a atividade das personagens.

Chega-se, então, à verdade dos fatos e nesse


desenvolvimento ou desdobramento dos acontecimentos
complica-se e entra em colapso o relacionamento entre os dois
protagonistas.

Amizade x dever e amor x dever opõem-se, outorgando


complexidade ao que parecia simples, substituindo o mistério,
que se dissipa, pela descoberta ou revelação da verdade, pela
antagonização dos protagonistas.

Resolvido, pois, o mistério, não esmorecem a ação, o


interesse e a trama, ocupando seu lugar nova situação
decorrente da anterior, porém de natureza e conteúdo
totalmente diversos.

Se num primeiro tempo desconhece-se a realidade, no


segundo seu desvendamento afasta o sentimento da amizade e
introduz o da justiça.

A amizade sucumbe ao dever, mas não o amor, que, este,


tampa os olhos à ignomínia.

41
Laura

Rancor

42
CHAGA DE FOGO
Crime e Drama

O filme policial noir comumente extrapola os limites do


gênero policial inserindo-se na categoria dramática. Ou seja,
mais do que simplesmente narrar estória policial, suas
características o impulsionam na direção medular da
problemática humana, seja explorando aspectos da natureza do
indivíduo, seja exacerbando particularidades comportamentais,
seja, ainda, focalizando situações traumáticas de ruptura e
choque emocional.

Um autêntico noir nunca é simplesmente ou puramente


filme policial ou mera narrativa ficcional, mesmo que suas
ênfases sejam essas.

É o que ocorre, por exemplo, com Chaga de Fogo


(Detective Story, EE. UU., 1951), de William Wyler (1902-1981).

Nele, a pretensão mais evidente é narrar o desenlace da


marcante atuação policial do protagonista, policial civil durão,
incorruptível e tenaz. Um policial que o é, antes de tudo, por
questão de princípios.

Gira toda a narrativa em torno de sua atitude e


desempenho frente a caso que lhe está afeto, de médico
praticante de aborto.

43
A ação fílmica desenrola-se no distrito policial, onde
desfilam infratores diversos e policiais em serviço.

Diálogos curtos e incisivos revelam, sintética e


objetivamente, toda singularidade desse mundo e as molas que
o movem, seja de um lado, seja de outro.

Até aí expõe a faceta do noir de documentação realística de


dada situação ou ambiente. Toda movimentação do distrito
policial, em incessante entra e sai, interrogatórios, identificação,
etc. plasma-se naturalmente, com propriedade e precisão.

Tudo isso, porém, constitui o contexto onde nasce e se


desenvolve o drama humano maior do protagonista.

Confluem, pois, essas linhas narrativas, a documental e a


comportamental, no sentido de desfecho pejado de
dramaticidade e tragicidade, em que o desmoronamento do
mundo pessoal do protagonista desencadeia-se a partir e em
decorrência de sua atividade profissional e de sua natureza
íntima, psicológica e comportamental, com raízes profundas na
convivência familiar, na introjeção do que se odeia, em
moldagem de temperamento e em atitudes drásticas e radicais
frente a fatos da vida.

Todas as coordenadas ambientais, profissionais e íntimas


são conduzidas pelo cineasta com domínio de sua essência e
significado, desde o décor à direção e interpretação dos atores.
E, tudo, num ritmo, que se não chega a ser acelerado, é
contínuo e ininterrupto, refletindo o dinamismo particular da

44
personagem e, também, da performance do próprio ator (Kirk
Douglas), num papel em que se confundem e amalgamam-se os
ritmos de ambos.

A segurança do cineasta é total, nada lhe escapando.

O filme, contudo, como é velha praxe hollywoodiana, é


convencional e narrativo, conquanto vigoroso e pertinente.

Mas, falha o roteiro ao utilizar a medida mais fácil para


resolver o impasse em que desemboca a ação. A morte de uma
personagem problematizada ao extremo e colocada diante de
revelação impactante e da descoberta nada lisonjeira de si
própria é de fácil desfecho, simples instrumento ou pretexto que
certos ficcionistas utilizam à falta da busca de sentido vital para
a existência e da elaboração de desenlace vivido. A morte nunca
é solução.

45
A MORTE NUM BEIJO

Aventura Quadrinesca

Robert Aldrich (1918-1983), conquanto tenha dirigido


alguns filmes bem recebidos pela crítica, não é cineasta de
primeira linha. Seus melhores filmes, não obstante
apresentarem virtualidades, dificilmente atingem o ponto a
partir do qual estariam inseridos no campo da arte. Dão a
impressão de que algo os segura e os detêm, impedindo-os de
alçar voos mais altos.

É o caso, entre outros, de A Morte Num Beijo (Kiss Me


Deadly, EE.UU., 1955), propalado e elogiado espécime do
policial noir.

Contudo, se de policial tem muito, de noir tem menos.


Justamente aí é que nele se encontra o ponto que o desvia e o
impede de se estruturar convenientemente.

O roteiro e a direção optam por ressaltar peripécias


próprias de investigação policial, com detetive particular
outsider e de métodos profissionais discutíveis, em detrimento
das características fundamentais que fazem do noir momento
relevante do gênero policial no cinema.

Assim, ao invés de se ter exploração do comportamento


das personagens e seu perfil psicológico e a densa atmosfera do
submundo do crime, tem-se, ao revés, trama própria de estórias

46
em quadrinhos centralizada em eixo narrativo formado por
duas linhas antagônicas de ação: o mistério em torno de algo
valioso e extraviado (elemento por vezes utilizado no noir),
procurado e disputado por sanguinária quadrilha e pelo
protagonista, o detetive Mike Hammer, dedicado a atrapalhá-la.

Nesse esquema, o viés de aventura quadrinesca manifesta-


se de várias maneiras, além da frenética movimentação de
Hammer (também praticada no noir), entre as quais sua
desenvoltura, insensibilidade, leviana coragem e
invulnerabilidade, que o faz enfrentar sozinho poderosa gang
do crime organizado, que não hesita em eliminar quem se
atrever a obstaculizar seus propósitos.

Hammer faz isso o tempo todo, só vive e age para isso no


filme, escapando, no entanto, ileso de raras, tímidas e, no caso,
desastradas tentativas de eliminá-lo.

O artificialismo dessa construção do “herói” é evidente e,


além de infantilóide, representa total concessão e submissão ao
espetáculo.

Aliás, a desmesurada ênfase na estória (peculiaridade


fundamental do cinema comercial ianque), por si já enfraquece
o filme.

Todavia, não obstante poder-se cunhar moeda de uma


única face - não passando a outra de fundo - esta possui duas,
embora uma delas bastante esmaecida. É que se pode, sem

47
necessitar de boa vontade, realçar aspectos positivos no filme,
conquanto isolados e fugazes.

A cena inicial, da personagem descalça e de roupão


correndo desabaladamente, à noite, sobre o asfalto da rodovia, é
impactante, tanto formal como meritoriamente. É de límpida
beleza imagética, valorizada pelos contrastantes tons de branco
(da vestimenta) e negro (do asfalto), tendo como pano de fundo
a escuridão noturna, violentada fulminantemente vez ou outra
pela luz viva e brilhante dos faróis dos carros que passam.

Certos ambientes esconsos, ruas desertas e sombrias,


enquadrados em focalizações que contribuem para composição
do clima de mistério, também são competente e eficazmente
explorados, valorizando trama que, por si própria, nada tem a
oferecer de respeitável.

Além disso, fator imprescindível para classificá-lo como


noir, é a construção, constituindo exceção no filme, do talhe
psicológico de Hammer e de sua secretária, por isso as únicas
personagens que transmitem a impressão de serem
verdadeiramente de carne e osso, já que as demais ou são
artificiosas ou estereotipadas, excetuada a personagem
feminina cuja fuga desencadeia todos os acontecimentos
posteriores e que se revela solidamente talhada nos poucos
minutos que aparece.

Contudo, isso é pouco para dar consistência ao filme, que é


estruturado e dominado pelo deslize apontado.

48
Já as virtualidades e o êxito do perfil da dupla formada
pelo detetive e sua secretária e a singularidade de sua atuação e
do relacionamento entre ambos provocam até mesmo série de
filmes (geralmente de média metragem) baseados em suas
atividades investigatórias, evidentemente de cunho meramente
comercial.

No mais, é de se ressaltar a incongruência e a


inverossimilhança de personagem perseguida e em fuga,
consciente de que poderá ser assassinada a qualquer instante,
que, ao invés de revelar a Hammer, não obstante um
desconhecido, alguma pista do imbróglio em que se acha
envolvida, simples e absurdamente afasta-se no posto de
combustível e escreve recado totalmente enigmático ao próprio
Hammer, “lembre-se de mim”, pedindo ao frentista para colocar
essa correspondência no correio.

Tal circunstância é ridícula e a posterior decifração rápida


por Hammer do enigma é de extrema apelação, impossível de
ocorrer na realidade.

Tais defeitos provavelmente são do livro de Mickey


Spillane, em que se baseia o filme.

Por fim, tão incrível (e incompreensível) quanto esses


fatos (ou mais), é a opinião, conforme consta, de Godard e
Truffaut de que o filme é “obra-prima absoluta”.

49
ANATOMIA DE UM CRIME

A Peculiaridade Favorável

É recorrente o vezo de se levar a sério, como se tivesse


algum valor cultural, já que de valor estético nem se cogita,
filmes destituídos de qualidades, que não passam de produtos
destinados ao mercado do entretenimento, do simples
divertimento ou do mero passatempo.

Isso se dá com a quase totalidade da produção do cinema


estadunidense, que não ultrapassa a linha divisória que separa a
arte da indústria.

É o que ocorre, entre milhares de outros exemplos, com o


filme Anatomia de Um Crime (Anatomy of a Murder, EE.UU.,
1959), do vienense Otto Preminger (1906-1986), que vem
merecendo indevidamente a atenção de alguns críticos e dos
jornalistas cinematográficos, o que no caso destes não
surpreende, visto incrustarem-se na mídia apenas como
promotores de vendas a serviço da indústria de entretenimento.
Contudo, daqueles é de se admirar, já que sua atividade há de
ser balizada, orientada e direcionada para, separando o pouco
trigo do excessivo joio, destacar os filmes que têm valor cultural
e estético, colocando os demais, meras contrafações, em seu
devido lugar.

50
Em Anatomia de Um Crime, como em seus símiles e
congêneres, apenas se destacam aspectos
extracinematográficos, no caso nada menos de três, sendo que
são, os dois primeiros, a trilha sonora de Duke Ellington e os
visuais (letreiros) de Saul Bass, ou seja, duas artes diversas e
independentes do cinema e que nele ocupam o espaço que lhes
é oferecido, integrando-se, porém, no filme.

O terceiro aspecto destacável consiste em elemento não


restrito nem específico da arte cinematográfica, visto que fator
ficcional, incidental, pois, em qualquer de suas manifestações
literárias (romances, conto, novela literária e textos teatrais).
Na espécie, a ambiguidade da proposição que se biparte entre a
possibilidade da versão do acusado e de sua esposa de que o
crime derivou de estupro, ou da insinuação da acusação de que
o crime decorreu de vingança contra possível amante desta
última.

A primeira resultaria de forte e incontrolável emoção e a


segunda de deliberado planejamento, com as conhecidas
consequências judiciais.

Ficção, pois, e não cinema. Cinema tenta ser apenas na


movimentação e decorrentes enquadramentos e angulações da
câmera na sessão de julgamento, com destaque para os closes e
a maior fixação do rosto da esposa quando interrogada.

Na realidade, Anatomia de Um Crime é menos filme


policial do que de julgamento, favorecido pela peculiaridade da
legislação ianque que permite à defesa e à acusação
51
interrogarem (e até dialogarem e pressionarem) diretamente os
depoentes, inclusive réus e vítimas, flexibilidade que por si só já
é cinematográfica, mas, que tem resultado em espetáculo e não
em arte.

52
Chaga de Fogo

Anatomia de Um Crime

53
SEIS FILMES NOIR
Características do Gênero

Existem diversos álbuns de dvds contendo filmes noir. Um


deles inclui Rififi (Du Rififi Chez les Hommes, França, 1954), de
Jules Dassin (1911-2008); A Força do Mal (Force of Evil,
EE.UU., 1948), de Abraham Polonsky (1910-1999); Corpo e
Alma (Body and Soul, EE.UU., 1947), de Robert Rossen (1908-
1966); Redenção Sangrenta (The Breaking Point, EE.UU.,
1950), de Michael Curtiz (1888-1962); Por Amor Também se
Mata (He Ran All the Way, EE.UU., 1951), de John Berry (1917-
1999); e Homens em Fúria (Odds Against Tomorrow, EE.UU.,
1959), de Robert Wise (1914-2005).
Com exceção de John Berry e até certo ponto de Abraham
Polonsky, os demais diretores são famosos e possuem,
conquanto nos lindes do convencionalismo formal e de
subordinação à estória, filmografias consideráveis e dignas de
nota.
Os filmes ora comentados inserem-se na categoria do
policial noir, cujas características são apontadas em outros
artigos a respeito do gênero.
Todos são filmes vigorosos, dirigidos com segurança e
competência, com adequados ritmo e selecionamento de cenas e
sequências nas montagens, além de notáveis e apropriadas
escolhas e direção dos atores e atrizes.

54
Salientam-se nesse caso as performances, em nada menos
de quatro desses filmes, excetuados Rififi e Homens em Fúria,
do ator John Garfield (1913-1952), morto prematuramente de
crise cardíaca, “probablement consécutive à un profond drame
moral” (Jean-Loup Passek, Dictionaire du Cinéma,
organização. Paris, Larousse, 1995), já que submetido à
Comissão Senatorial de Investigação, resultante da campanha
anticomunista promovida pelo senador Joseph McCarthy, que,
muito mais do que isso, perseguiu e processou liberais e
pensadores independentes. Após esse fato, Garfield, como
tantos outros nomes importantes do cinema ianque, não obteve
mais trabalho.
Em cada um desses filmes, como lutador de box (Corpo e
Alma), advogado trambiqueiro (A Força do Mal), capitão de
barco particular (Redenção Sangrenta) e ladrão foragido e
inseguro (Por Amor Também se Mata), por força de seus
predicados e apropriados e competentes direções dos filmes,
suas interpretações apresentam-se perfeitamente adaptadas às
peculiaridades de cada papel, de modo a parecer que são atores
diferentes, tal sua adequação e incorporação em cada um deles.
A propósito dessa questão, no rol dos diretores desses
filmes têm-se dois nomes emblemáticos e de atitudes morais
antípodas: Jules Dassin, perseguido, foi dirigir filmes na
Europa, como é exemplo o célebre Rififi, e Robert Rossen que,
perseguido pelo macarthismo, “a princípio recusou depor no
Congresso mas voltou atrás, admitiu que havia sido comunista
e denunciou 53 (cinquenta e três) colegas. Foi uma atitude que

55
lhe amargurou o resto da vida e que a crítica nunca lhe
perdoou” (Rubens Ewald Filho, Dicionário de Cineastas. São
Paulo, Cia. Editora Nacional, 2002).
Todos esses filmes qualitativamente se equiparam nos
limites acima suscitados, salientando-se um ou outro em certos
aspectos, seja na contenção e unidade dramáticas (Corpo e
Alma); nas notáveis insegurança, tibieza e desorientação do
protagonista (Por Amor Também se Mata); no dinamismo da
ação (A Força do Mal); na aceleração do fio narrativo e amplos
panoramas naturais e urbanos (Homens em Fúria); na extrema
adaptação reativa do protagonista às situações paroxísticas
(Redenção Sangrenta); e na variabilidade de situações e força
narrativa (Rififi).
Todos, também, portam, praticamente em iguais
proporções e adequações, as características do noir, a exemplo
da fixação e exploração ficcional das manifestações psicológicas
dos protagonistas e suas inadaptações ou momentâneas
frustrações pessoais e profissionais e, ainda, também em todos
eles, ênfase na contextualização familiar.
Ou seja, não se limitam esses filmes a simplesmente narrar
crimes, aduzindo-lhes também a preocupação e revelação das
situações pessoais, profissionais e familiares dos protagonistas e
de algumas outras personagens que, por isso, apresentam-se
com sólida conformação e não como simples marionetes
manejadas a bel-prazer pelos argumentistas, roteiristas e
cineastas.

56
Desses filmes emergem figuras, de patente autenticidade
humana, abrangendo protagonistas e demais personagens,
merecendo, pois, serem vistos, porém, com atenção para seu
dimensionamento humano, mais importante do que os fatos
policiais narrados, que não passam, no caso, da aplicabilidade à
realidade dos propósitos das personagens e das circunstâncias
que as motivam, condicionam e impulsionam no contexto da
sociedade capitalista, que conforma, dispõe e baliza os seres
humanos econômica, organizacional e distributivamente, onde
e como cada um é por si e os demais, quando não contra, pelo
menos, parcial ou totalmente alheios e indiferentes aos dramas
e problemas de seus semelhantes.

57
BONNIE & CLYDE

Tempo e Lugar

Conforme pertinentemente ressaltou Rubens Evaldo Filho


no Dicionário de Cineastas (ed. de 2002), Arthur Penn
(EE.UU., 1922-2010), que iniciou sua carreira de diretor em
1958 com Um de Nós Morrerá (The Left-Handed Gun,
EE.UU.), “decaiu de forma espantosa” a partir de 1970, ano em
que realizou O Pequeno Grande Homem (Little Big Man,
EE.UU.), seu último filme de certo valor.

Antes disso, filmou seu maior sucesso de crítica e de


público, Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (Bonnie &
Clyde, EE.UU., 1967).

Nele, efetivamente, Penn reuniu os ingredientes


indispensáveis à realização de filme ao mesmo tempo vibrante e
dinâmico conjuminado com pertinência temática e apuro
formal.

Nada, porém, nesse contexto, que indique ou perfaça obra-


prima cinematográfica, não obstante coerente ficcionalmente,
articulado narrativamente, vigoroso e requintado formalmente.

Tais atributos, no entanto, o tornam filme de primeira


grandeza na união perfeita entre o conteúdo humano imprimido
às personagens, sem exceção, e a articulação relacional que
estabelece entre elas.

58
No primeiro caso, têm-se personagens de densa
estruturação humana, que, por atitudes e intervenções na
realidade, demonstram consistência e coerência psicológica e
comportamental.

Na fluência trepidante da ação, interrompida por pausas


convivenciais do casal protagonista, Bonnie (Faye Dunaway) e
Clyde (Warren Beaty), ressaltam-se equilíbrio narrativo,
entrosamento e sucessão consequencial da ação de tal modo que
impossível desligar-se um ato de suas precedentes causas e
decorrentes efeitos, numa corrente (e torrente) ininterrupta de
fatos encadeados.

Contudo, talvez o ponto mais alto do filme resida na


construção biotipológica das personagens, em que a perfeição
estrutural de suas personalidades alia-se a eficaz desempenho
interpretativo dos atores e atrizes, notadamente o casal
protagonista e a esposa do irmão de Clyde.

No mais, o filme reflete, possivelmente com grande


autenticidade, a ambiência peculiar do país à época dos
acontecimentos narrados, marcada pela recessão econômica
derivada da quebra da Bolsa de Valores em 1929, na qual duas
personalidades fortes, de natureza peculiar e identidade de
caráter e propósitos, coincidem de se encontrar num momento
nevrálgico de suas vidas, dominado por inconformismo,
insatisfação e inadaptação à mesmice sufocante da rotina diária
e da falta de perspectivas de ascensão social e realização
pessoal.

59
Ingredientes, no caso, explosivos, a ponto de Bonnie –
exortada por Clyde a se afastar daquela vida, onde “não teria
um minuto de sossego” – luzindo o olhar de satisfação,
responder-lhe de imediato: “promete?”, selando, daí em diante,
consciente e decididamente, união apaixonada, conquanto, por
deficiência de Clyde, em nível apenas vivencial e convivencial,
porém, forte e exultante como dificilmente houve e haverá outra
em iguais circunstâncias de tempo e lugar.

60
SERPICO
Santo e Herói

O filme policial trata habitualmente da atuação da polícia


no combate aos criminosos.

Contudo, Serpico (Idem, EE.UU., 1973), de Sidney Lumet


(1924-2011), é, se não mais do que isso, pelo menos diferente
disso. Não é filme policial armado (sem alusão) sobre a
repressão policial a meliantes e assassinos. É sobre a própria
polícia e sua atividade delituosa, protegendo ou fazendo vista
grossa ao crime a troco de propinagem arrecadada por meio da
metodologia utilizada para “venda de proteção” pelos
gângsteres de Chicago na década de 1920 e posteriores. Sem
tirar nem pôr.

Como afirma o paradigmático Serpico, se os policiais


pusessem o tempo e energia gastos com essa arrecadação a
serviço do combate ao crime, este acabaria.

Mesmo não se chegando a tanto otimismo e utopia - já que


a repressão ataca, inibe ou diminui os efeitos sem nunca atingir
as causas, cujas fontes são outras, muito mais complexas - é
certo que o índice de criminalidade cairia verticalmente.

Aliás, como acabou por acontecer em Nova Iorque - o


iorque pode ter sua grafia aportuguesada, mas, não pode ou não
deve ser traduzido, por se tratar de nome próprio - onde
transcorrem os fatos, aliás, verídicos, a luta contra a corrupção
61
policial, desencadeada justamente pelos acontecimentos objetos
do filme, fez diminuir sensivelmente, tanto uma quanto outro,
ou seja, a corrupção e o crime.

Lumet estreou na direção de longas-metragens com Doze


Homens e Uma Sentença (12 Angry Men, EE.UU., 1957), tendo
em sua filmografia, além de outros, Um Dia de Cão (Dog Day
Afternoon, EE.UU., 1975) e Rede de Intrigas (Network, EE.UU.,
1976). Serpico, à semelhança de qualquer outra de suas
realizações, não possui qualidades artísticas, estando, pois, fora
desse reduzido círculo cinematográfico.

Contudo, contém atributo relevante na direção segura e


competente, ou seja, profissional e artesanalmente eficaz, que
constitui, há muito, o mínimo cinematograficamente exigível e
admissível, englobando os fatores de seleção, direção dos atores
e sua interpretação, utilização e manejo da câmera, fotografia e
montagem.

Além disso, é particularmente eficiente na focalização e


enquadramento de pormenores de ruas e bairros nova-
iorquinos, apresentados tais quais são, sem nenhuma
glamourização.

Serpico, a teor do filme e parafraseando Sartre a respeito


de Saint-Genet, é santo e herói por sua entranhada honestidade,
idealismo e coragem, atitude paradoxalmente a mais normal e
simples possível e a que deve ser tomada por todo ser humano
em qualquer circunstância.

62
Conquanto narre sua passagem pelos quadros policiais de
Nova Iorque, o filme não é cinebiográfico, mas, presidido por
preocupação veraz, contém alta dose de documentarismo. Além
de tão corajoso e desassombrado como sua personagem, já que
realizado em cima dos acontecimentos ocorridos ou pelo menos
vindos à tona no ano anterior.

Assim, sobre seu aspecto ficcional sobressai a


documentação da realidade do segmento elegido, que, como
revela, tem de tudo, menos anjos, a não ser excepcionalmente o
protagonista que, justamente por isso, teve de sair não só da
polícia como do próprio país.

Já o explícito denuncismo que agasalha não é do filme mas


dos próprios fatos relatados, que são mostrados tais como
ocorrentes, sem acompanhamento, porém, como sói acontecer,
de indicação de sua causalidade.

Filmes como esse servem, no entanto, para (e devem


provocar) discussão sobre motivo, necessidade e eficácia da
criminalização de certas práticas, que, justamente, por isso, são
fontes de corrupção tanto policial quanto política. A exemplo,
entre tantas outras, da repressão ao denominado “jogo do
bicho”. Por que não admiti-lo e, sem estatizá-lo, regulamentá-
lo, carreando até impostos para os cofres públicos e
regularizando a situação funcional de milhares de pessoas que
atuam no ramo? Que malefício essa medida iria produzir mais
que sua criminalização já não produz, propicia e multiplica,
uma delas, da maior gravidade e não devidamente atentada, a

63
de que seus agentes e usuários comprazem-se em prática
considerada ilegal, aceitando e acostumando-se a agir fora da
lei?

Quais pessoas e órgãos estão preocupados com essa e


inúmeras outras questões que afligem a sociedade e o país? E os
chamados impropriamente meios de “comunicação”? Por que
timbram em incomunicar, e negando-se sistematicamente a
discutir os problemas fundamentais da sociedade e do país,
comprazendo-se tão somente com a veiculação de fatos e
intrigas políticas, crimes e escândalos vários, além das
platitudes usuais, todos, no entanto, assuntos próprios para
desviar a atenção do público dos verdadeiros problemas que o
afligem?

64
Bonnie & Clyde

Serpico

65
VESTIDA PARA MATAR

Apropriação Competente

Na terminologia adotada e usualmente empregada nesses


ensaios, costuma-se distinguir cineasta de diretor.

O primeiro é o artista, o autor, mesmo que o conceito de


autoria cinematográfica criado pelos franceses seja
indevidamente rejeitado por muitos, que consideram o filme
obra coletiva e, nesse vezo, relegam à vala comum artistas e não
artistas, nivelando e o fazendo, ainda por cima, por baixo.

O diretor é o simples artesão, o profissional que apenas


domina seu métier sem lhe aduzir nada de pessoal e criativo.

Nesse contexto, Brian de Palma (1940-) é considerado pelo


jornalismo cinematográfico não só como cineasta, mas, como
bom cineasta.

No entanto, sua filmografia não autoriza nem uma nem


outra classificação.

Não passa de diretor, não obstante, competente, hábil e


inteligente, atributos que devem ornar também o artista, porém,
que por si sós, revelam-se insuficientes à sua caracterização, que
requer, além deles, outros requisitos específicos.

66
O filme Vestida Para Matar (Dressed to Kill, EE.UU.,
1980), desse diretor, foi e continua sendo bem recepcionado
pelo jornalismo cinematográfico.

Sem razão, contudo. O filme constitui mera narrativa de


crimes de serial killers, na qual se força a mão até o exagero de
se ter criminoso seletivo, compulsivo, metódico e insistente.
Pode-ser-ia dizer até mesmo programado e não se estaria
equivocado, já que, no filme, tudo é planejado ou premeditado
para, pelos meios previstos, atingir-se ao fim colimado.

Tudo, nele, é também colhido de outros filmes e obras


literárias em obediência à máxima, da física, de Lavoisier, “de
que na natureza nada se cria nada se perde, tudo se
transforma”.

No caso, nem se atinge à última hipótese, visto que não há


transformação, mas, simples adaptação de ideias, fatos e
criações alheias, que o citado jornalismo considera o máximo.

Não é, porém. É simples oportunismo do diretor, que não


obstante competente, habilidoso e inteligente, apodera-se da
criatividade alheia apenas alterando-lhe a indumentária. O
corpo, o cerne, é o mesmo. Justamente nesse núcleo e no modo
de expô-lo é que deve residir a arte.

O “mal” que acomete o protagonista é o mesmo que


convulsiona a personagem de Psicose (Psycho, EE.UU., 1960),
de Alfred Hitchcock. As duas das três melhores e, sem dúvida,
elogiáveis cenas do filme De Palma derivam diretamente de

67
filmes de Hitchcock, convenientemente adaptadas às
circunstâncias e situações diversas.

Uma delas, quando a personagem encontra-se no museu


incide em igual localização de Um Corpo Que Cai. Todavia, é-
lhe mais pobre de sugestões e ambiência, restando fria e
impositiva, enquanto que a original, além de brilhantemente
conduzida, é de grande autenticidade, defluindo logicamente do
contexto, enquanto em Palma não passa de fruto da
intencionalidade de imitá-la, fazendo que sua personagem, sem
qualquer razão ou motivo plausível, visite o museu. No caso,
sem prejuízo para o entrecho, poderia ter ido a qualquer outro
lugar, uma confeitaria, por exemplo, com as mesmas
consequências. Além disso, é desnecessariamente longa.

Já a cena do chuveiro, haurida de sua famosa congênere (e


matriz) de Psicose, conquanto também artificialmente
implantada, é bem desenvolvida e plena de beleza
cinematográfica.

Por sua vez, a terceira cena, a do elevador, que também


pode ter sido pastichada de algum filme de que não nos
lembramos (ou desconhecemos), é primorosa e
verdadeiramente ardilosa na sua surpreendente eclosão.

Contudo, as qualidades apontadas, que convivem e


contraponteiam com os defeitos lembrados, não bastam para
legitimar artisticamente o filme. Muito ao contrário, até o
desequilibram, porque, formal e estruturalmente, nada mais se
tem do que condução competente e hábil da ação em cenas
68
prosaicas e superficiais, destituídas de invenção e criatividade,
simples clichês e lugares-comuns.

A fragilidade de sua concepção e realização patenteia-se ao


se assisti-lo pela segunda ou mais vezes, pela perda da eficácia e
do efeito do impacto causado pelo elemento surpresa, que se
dissolve por seu anterior conhecimento.

No mais, como todo diretor com os atributos já apontados,


De Palma imprime correta e eficaz direção aos atores, de que
resultam irretocáveis interpretações sob o ponto de vista de
espetáculo cinematográfico.

69
OS INTOCÁVEIS

Quadrado e Enquadrado

Assistir a Os Intocáveis (The Untouchables, EE. UU.,


1987), de Brian de Palma (1940-), um dia após ter visto A
Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, França,
1928), de Carl Theodor Dreyer, é até covardia, tais suas
diferenças e tal o abismo qualitativo entre um e outro.

Conquanto não planejada, a assistência a esses filmes tão


próxima uma da outra tem suas vantagens.

Consoante Ezra Pound, o critério ou a medida para


aferição de valor é a comparação. Nada melhor, pois, sob essa
ótica, do que vê-los um após o outro.

Desse modo, as abissais diferenças que os separam


evidenciam-se fortemente, inevitavelmente.

Um é obra de arte, perene, absoluta e eterna, realizada


com consciência de meios e fins, sem qualquer concessão. O
outro não passa de amontoado de clichês e lugares-comuns,
compromissado com a bilheteria e, por isso, fatalmente com o
mau-gosto de um público superficial e ávido apenas de estórias
narradas linear e convencionalmente para entreter-se e passar
algum tempo em vão divertimento.

70
Um, é obra de inteligência e sensibilidade. O outro, apenas
produto de recursos financeiros e infraestrutura técnica aliados
à competência profissional.

Os Intocáveis é exemplo típico do cinemão estadunidense,


totalmente enquadrado nos padrões de sucesso popular.

Por isso, é agradável de se ver e leve de se carregar pelo


espectador que encara o cinema apenas e tão-somente como
mero e inconsequente passatempo. Sem saber, contudo, que
não obstante passatempo, não é mero e muito menos
inconsequente, já que realizado sob estudado e testado
receituário para agradar, atrair, prender e manipular a atenção
e o imaginário do público, mantendo-o cativo do formulário
aplicado, por meio do qual destila-se todo um modo de pensar
(ou que é tido como tal) o mundo, aceitá-lo como é e está,
abominando, em contrapartida, tudo que é inovador, inteligente
e independente, tudo o que revela os proveitos e conveniências
geralmente subjacentes nas iniciativas individuais ou grupais,
denunciando, pela simples revelação, os mecanismos postos em
prática para seu atendimento e prevalência em detrimento dos
interesses gerais do indivíduo e da coletividade.

O filme, como todos seus congêneres, é, pois, superficial


como estória, maniqueísta na construção das personagens,
absolutista como conflito, convencional e sem criatividade como
linguagem.

A atitude de Eliot Ness, o agente do Tesouro, encarregado


de desbaratar a quadrilha de Al Capone, de assassinar
71
deliberadamente um gângster mostrado durante todo o tempo
como indivíduo inqualificável e assassino frio, meticuloso e
violento, ao inverso de quebrar as regras do maniqueísmo
ditadas pelo comercialismo da indústria do entretenimento, é
sua maximização, seu alcandoramento, já que, fascísticamente,
realiza, induz e justifica o justiçamento de mão-própria, a
execução pura e simples adotada pelos grupos de extermínio.

O espectador, que durante todo o tempo fílmico é


bombardeado, chateado e afrontado pelo Mal encarnado em
Nitti, o tal gângster, jaz vingado e satisfeito na sua gana,
despertada e aguçada pelo filme, de liquidar o meliante o mais
violentamente possível. E, por extensão, sem julgamento e
direito de defesa todos aqueles que o establishment indicar
como subversivos e criminosos.

A ação de Al Capone é indefensável. Mas, qual seu crime


originário? Vender bebida alcoólica ao tempo em que uma lei
estúpida e de motivações subjacentes inconfessáveis proibia sua
comercialização. Justamente essa estulta vedação legal é que
propiciou a ação de Capone. A geral corrupção, o incrível
número de assassinatos e a violência generalizada que se
sucedem são decorrências.

Há, por trás dessas medidas restritivas, fortes interesses


calcados na prédica de “criar dificuldades para vender
facilidades”. Assim, chantageia-se e se faz vista grossa para a
infração legal em troca de propina.

72
Toda semelhança, nos dias atuais, com o que ocorre com
as pretensas “proibições”, falsas campanhas de combate ao
crime e, às vezes, efetivos e concretos combates apenas para
servir de lição e/ou manter, valorizar e aumentar o valor da
propinagem.

Em consequência e em suma, Os Intocáveis, ressalvadas as


cenas transcorridas na ponte da fronteira canadense e na
escadaria da Estação Ferroviária, é formalmente enquadrado e
quadrado e, como temática, alimenta e convalida alguns dos
piores sentimentos e práticas sociais, nada discutindo nem
questionando, e, ao contrário, afirmando que o mundo é assim
mesmo e não há como mudá-lo, bastando apenas aprisionar os
maus, liquidar os demasiados maus e reverenciar as soit-disant
autoridades.

73
PERSEGUIÇÃO VORAZ

A Imagem Soterrada

No cinema dos Estados Unidos, como se sabe, a pressão da


indústria de entretenimento sobre os cineastas ocasiona grande
irregularidade na filmografia de boa parte de seus melhores
diretores.

Os exemplos são inumeráveis. Citem-se, apenas e de


passagem, alguns filmes que comprometem a obra, ás vezes de alto
nível de diversos cineastas. Nesse caso, entre outros, Topázio
(Topaz, 1969) e Trama Macabra (Family Plot, 1976), de Hitchcock;
O Casal Osterman (The Osterman Weekend, 1983), de Sam
Peckinpah; e Perseguição Voraz (Cat Chaser, 1989), de Abel Ferrara
(1952-).

Abstraindo-se, para não se perder tempo, a impropriedade do


título brasileiro, esse último filme não se compara a Olhos de
Serpente (Snake Eyes, 1994), do mesmo diretor. Se neste tem-se
drama shakespeariano por sua intensidade e autenticidade, em
Perseguição Voraz (sic) encontra-se apenas entrecho policial, sem
qualquer grandeza.

É claro que, como geralmente acontece, o bom cineasta sempre


deixa sua marca de, no mínimo, competência, em seus filmes
inexpressivos. Com Ferrara também não é diferente.

Se a estória é pífia, se a imagem está soterrada pelo palavrório


em dialogação às vezes longa e sempre excessiva, se a maioria dos
atores é inadequada e a direção não consegue extrair mais deles,
74
subsiste, contudo, certa sofisticação intelectual e contenção
comportamental na atuação do protagonista e em seu
relacionamento amoroso. Todavia, a presença mais marcante, além
da materialidade física dos atores e do décor, são as palavras, a
abundância dialogal, a ponto da ação ser mais condicionada e
impulsionada por elas do que pela imagem.

Não se trata, é bem de ver, de teatralização. No teatro, o


diálogo é essencial, constituindo meio e modo de expressão e
concretização de ideias e atos. Nele, o diálogo conduz a ação. No
cinema, a ação deve conduzir-se por si própria.

No cinema, a conversa é (e deve ser) sempre subordinada,


secundária, auxiliar. Apenas suprimento ou ilustração da imagem,
nunca preponderando sobre ela, como nesse filme.

Além disso, ou seja, além da dialogação rebarbativa, o filme


apresenta vez por outra explicações mediante a intervenção de
locutor invisível.

A utilização de expediente desse jaez só se faz quando a


fragilidade do filme exige complementação, quando falta algo
essencial no desenvolvimento da trama.

A questão é que Ferrara tenta salvar e até sofisticar roteiro


inexpressivo, mas, sua emenda não resolve o que, de si, é insalvável.

75
CRIME VERDADEIRO

Os Lugares-Comuns

O filme Crime Verdadeiro (True Crime, EE. UU., 1999), de


Clint Eastwood (1930-), enquadra-se no rol dos produtos
cinematográficos.

A filmografia de Clint contempla ora substanciais ora


anódinas realizações. Entre aquelas, os westerns O Estranho
Sem Nome (High Plains Drifter, 1972), O Cavaleiro Solitário
(Pale Rider, 1985) e Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992) e,
notadamente, a cinebiografia dramática Bird (Idem, 1988),
além de Coração de Caçador (White Hunter, Black Heart,
1990).

Crime Verdadeiro é apenas produto comercial,


caracterizado pelo burocratismo mental e a manipulação
convencional dos costumeiros ingredientes para agradar ao
público.

Não chega a constituir filme de suspense, como alguns


pretendem, mas, drama policial.

Em seu rosário de deficiências, ressaltam-se em primeiro


lugar a finalidade e a destinação comercial. Em segundo, a
absoluta falta de originalidade, aliás, ao contrário, verdadeiro
pastiche temático de, por exemplo, Quero Viver (I Want to Live,
EE. UU., 1958), de Robert Wise, e de outros filmes do gênero.

76
Depois, alinha-se série de defeitos nos macetes ficcionais
que o recheiam, meros lugares-comuns assaz repetidos, a
exemplo do ambiente da redação do jornal; das usuais
discrepâncias, mil vezes repetidas, entre jornalista ou repórter e
redator-chefe; do pretendido clímax, que não passa de mero
efeito apelativo, no caso levado ao exagero do artificioso desate
no meio-minuto final fatal; e, ainda, da própria investigação
procedida pelo protagonista, repetição de inumeráveis outras de
mesmos conteúdo e feição, em que se salienta a proposital
indefinição do drama, cujo protelado desfecho carece de
novidade.

Em meio a isso, o recheio com ingredientes testados para


atração e deleite da desinformada e condicionada plateia, como
serôdio ou retardatário adultério, conflito familiar,
sentimentalismo exploratório do relacionamento entre pais e
filhos menores.

Tudo isso ainda é pouco diante do tratamento abúlico,


convencional e superficial que se lhe imprime, de que não
sobram nem situação nem tomada com mínimo de criatividade
ou de simples esforço elaborativo, correndo e transcorrendo a
ação com absoluta previsibilidade, em todos os pormenores,
enlaces e desenlaces.

O único elemento destacável, porém, restrito e parco,


constitui a personalidade do protagonista, composta e
pressionada por feixe de contradições que concorrem e
contribuem à configuração de um tipo.

77
Contudo, até isso jaz contaminado pela falta de
originalidade, visto que utilizado frequentemente em livros e
filmes policiais. Mesmo assim, no entanto, no contexto da
extrema mediocridade fílmica, é o único fator positivo,
decorrente do maior, ou, no caso, de algum cuidado que lhe foi
dedicado, já que interpretado pelo próprio diretor.

Enfim, filme não recomendável, que compõe um dos


segmentos em que se biparte a filmografia de Clint, em
decorrência de sua congenial e permanente característica
antinômica de agasalhar e alternar obras (de arte) com produtos
(da indústria) estes, por sinal, em maior número, não obstante o
entendimento contrário do cineasta em entrevista concedida a
Thierry Jousse e Camille Nevers (El Pais, Madrid, 27 março
1993). À indagação se “considera que algunas de sus películas
son comerciales y otras son de más difícil acceso”, aduz que
“non hago mis películas pensando en el aspecto comercial [....]
Lo esencial es atenerse a lo que uno quiere decir, a las
impresiones que uno desea expresar en una película. Sólo
después es al público a quien le corresponde aceptarla o no”.

Todavia, como muitas vezes acontece, na prática a teoria é


outra, bipolarizando-se sua filmografia nas opostas tendências
apontadas, que, no entanto, se assim não for, ou seja, se a
segunda delas não se pautar pelo intuito comercial, configura-se
então, no caso, a hipótese de pretensões não realizadas.

78
ENTRE O PODER E A LEI
Crime e Justiçamento

O filme estadunidense Entre o Poder e a Lei do qual não


se tem a ficha - não confundir com O Poder e a Lei, de Brad
Furman, de 2011 - não é mais que mero (e espúrio) produto da
indústria cinematográfica, embalado e condicionado pelos
instrumentos necessários à atração do público, bem como
composto dos recheios usuais para reter sua atenção e agradá-
lo.
Como simples caça-níqueis que é, não possui nenhum
requisito positivo, seja do ponto de vista da linguagem ou do
conteúdo. Tudo nele é mecânico como o equipamento que
serviu para fazê-lo, não passando suas personagens (todas elas)
de marionetes manobradas ao bel-prazer de estória pífia e seu
roteiro destituído de inspiração.
É tão esquemático e sensaborão que também não porta
nenhuma situação inédita, nenhuma ação ou reação das
personagens que não sejam repetitivas e encontráveis em todos
os filmes congêneres de igual procedência.
Nada o ilustra e ele, por sua vez, além de também nada
ilustrar ainda deslustra os acontecimentos que enfoca e,
principalmente, a si próprio e a todas as pessoas envolvidas em
sua realização.
À semelhança dos artefatos fabricados em série e todos
iguais, em aparência, volume e destinação, esse pretenso filme
compõe série de objetos cinematográficos despejados pelas
79
fábricas de produtos fílmicos, vulgarmente denominadas e
conhecidas por estúdios.
Essa produção industrial, anódina e anti-cultural, invadiu
e dominou o mercado, mercê de infraestrutura de produção,
distribuição e imposição organizada e onipresente, em prejuízo
da arte, da cultura e do saber, impingindo falsas concepções de
vida e de conhecimento.
Contudo, o filme em questão, assistido casualmente em
momento de absoluta disposição de tempo e em decorrência de
sua presença num desses canais comerciais de televisão, contém
atitude e afirmativa do policial protagonista dignas de atenção.
Ressalve-se que uma e outra nada têm com cinema, mas,
com algo que já se esta tornando assombroso: o justiçamento
por mão própria, independentemente de todo o aparato estatal
destinado a procedê-lo.
No caso, é assustador não pela circunstância em si, mas,
pela necessidade de manter o controle da ordem com a
eliminação física dos dirigentes de organizações criminosas que
pouco a pouco estão assenhoreando-se da sociedade.
É justamente a tese e a prática desse enfezado produto
industrial, visto que os meios que a sociedade e principalmente
o Estado utilizam não vêm correspondendo à expectativa na
área de combate à criminalidade. Não só nos Estados Unidos,
mas, em quase todos os países.
Onde há omissão e complacência legal e judicial, como é o
caso, por exemplo, do Brasil, o crime vem se multiplicando e
desenvolvendo, atingindo grandes proporções. Todos os tipos

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de crimes, a começar pelo mais escabroso deles, a corrupção,
que tem debilitado as finanças públicas com seu desvio de
milhões de reais para o domínio particular.
Em decorrência disso, o policial protagonista não encontra
possibilidade de prender e levar às barras dos tribunais duas
poderosas quadrilhas de traficantes, não obstante esteja
cansado de saber de seus atos e (de)feitos. Assim, não anteviu
outro modo de cercear as atividades do bando do que utilizar
seus próprios métodos, simplesmente assassinando-os, sob a
justificativa acima exposta e a concepção contida na resposta
dada ao questionamento de outro policial, de que eles “não
agem em interesse próprio”, o que os diferenciaria dos
bandidos.
Há necessidade, pois, além de imprimir política de
desenvolvimento nacional autônomo, distribuição de renda e
geração de empregos e oportunidades, de se atualizar e tornar
mais rigorosa a complacente legislação penal, bem como de
aparelhar e modernizar os órgãos policiais e judiciais, a fim de
infundir eficácia ao conteúdo e à aplicação da lei para que tudo
deixe de ser mero (e dispendioso) faz de conta e deixe de
acontecer (ou de ser necessária) prática como a narrada no
filmeco em questão.

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Vestida Para Matar

Os Intocáveis

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DIRETORES DOS
FILMES ANALISADOS

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ÍNDICE

ALDRICH, ROBERT
A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly, EE.UU., 1955)

BERRY, JOHN
Por Amor Também se Mata (He Ran All the Way, 1951)

CURTIZ, MICHAEL
Redenção Sangrenta (The Breaking Point, 1950)

DASSIN, JULES
Brutalidade (Brute Force, 1947)
Rififi (Du Rififi Chez les Hommes, 1955)
A Lei dos Crápulas (La Loi, 1958)
Profanação (Phaedra, 1962)

DMYTRYK, EDWARD
Rancor (Cross-fire, 1947)

EASTWOOD, CLINT
Crime Verdadeiro (True Crime, 1999)

FERRARA, ABEL
Perseguição Voraz (Cat Chaser, 1989)

84
HAWKS, HOWARD
Scarface, A Vergonha de Uma Nação (Scarface, 1932)

HUSTON, JOHN
O Falcão Maltês ou Relíquia Macabra
(The Maltese Falcon, 1941)

KEIGHLEY, WILLIAM
Balas ou Votos (Bullets or Ballots, 1936)

LANG, FRITZ
Um Retrato de Mulher (The Woman in the Window, 1944)

LUMET, SIDNEY
Serpico (Idem, 1973)

PALMA, BRIAN DE
Vestida Para Matar (Dressed to Kill, 1980)
Os Intocáveis (The Untouchables, 1987)

PENN, ARTHUR
Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, 1967)

POLONSKY, ABRAHAM
A Força do Mal (Force of Evil, 1948)

85
PREMINGER, OTTO
Laura (Idem, 1944)
Anatomia de Um Crime (Anatomy of a Murder, 1959)

REED, CAROL
O Terceiro Homem (The Third Man, 1949)

ROSSEN, ROBERT
Corpo e Alma (Body and Soul, 1947)

ROY, MERVIN LE
Alma no Lodo (Little Caesar, 1930)

SIODMAK, ROBERT
A Dama Fantasma (Phantom Lady, 1944)
Baixeza (Criss-Cross, 1948)

STURGES, PRESTON
O Homem Que Se Vendeu (The Great McGinty, 1940)

WALSH, RAOUL
Heróis Esquecidos (The Roaring Twenties, 1939)

WELLMAN, WILLIAM
Inimigo Público (The Public Enemy, 1931)

86
WISE, ROBERT
Homens em Fúria (Odds Against Tomorrow, 1959)

WYLER, WILLIAM
Chaga de Fogo (Detective Story, 1951)

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O presente livro teve sua composição em
computador PC-Intel Core Duo 300 GHz
e sua organização procedidas nos meses
anteriores, sendo publicado neste blog no
mês de Maio de 2019, em Uberaba/Brasil.

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