Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CAXIAS DO SUL
2016
ANTONIO ALAERTE OLIVEIRA DOS SANTOS JUNIOR
CAXIAS DO SUL
2016
ANTONIO ALAERTE OLIVEIRA DOS SANTOS JUNIOR
__________________________________________
Prof. Me. Cezar Cauduro Roedel - Orientador
Faculdade da Serra Gaúcha - FSG
__________________________________________
Prof. Dr. Marcos Paulo dos Reis Quadros
Faculdade da Serra Gaúcha - FSG
__________________________________________
Prof. Me. Rodrigo Pisetti
Faculdade da Serra Gaúcha - FSG
RESUMO
Palavras-chave: Guerra Fria; Soft Power; Cinema; Estados Unidos; União Soviética.
ABSTRACT
This paper examines the American film industry as a "weapon of war" in the context of the
Cold War and its aftermath, with the victory of American capitalism against the Soviet model,
through better handling of soft power. Accordingly, the study investigates the American film
industry as an agent behind the scenes in the collapse of the Socialist nation. In the first section,
the paper describes the concept of soft power, since the term was first coined by Joseph Nye,
and how it was widely used by the United States throughout history in the process to become
hegemon. The second section analyzes the films "Dr. Fantástico" (1964) and "Rocky IV"
(1985), as well as the historical context preceding their releases, portraying them as empirical
evidences of the exercise of American soft power. In the third section, the study explores the
history of American cinema, ranging from its distribution channels to how the cinema is a
means of propaganda used by the governments. Therefore, the study characterizes how the film
industry is a form of cultural diplomacy, which is a form of soft power. By this means, it is
believed that most productions tend to influence viewers by promoting ideas and illustrating
real events, which is exactly how the cinema can be characterized as a political instrument -
and of power.
Key words: Cold War; Soft Power; Cinema; United Stated; Soviet Union.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 53
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 55
ANEXOS ....................................................................................................................... 59
7
INTRODUÇÃO
1
Os termos soft power e hard power serão mantidos em idioma original, visto que as suas definições são melhor
compreendidas do que se fossem traduzidas.
8
uma importante ferramenta de soft power deste país, principalmente na Guerra Fria, onde o
setor ideológico deveria ser altamente expressivo.
Este trabalho, em seu primeiro capítulo, é representado pela definição conceitual e
histórica do soft power, instituído pelo cientista político Joseph Nye, demonstrando suas
funções, características e subdivisões adentras ao termo. Não obstante, de maneira mais prática,
monta-se uma contextualização histórica em que este tipo de poder fora utilizado pelos Estados
Unidos e os logros que o mesmo proporcionou aos anseios deste país.
O segundo capítulo produz uma análise de duas películas de produção norte-americana:
“Dr. Fantástico” (1964) de Stanley Kubrick e “Rocky IV” (1985) de Sylvester Stallone, como
produtos de um contexto histórico antecedente aos seus respectivos lançamentos. Esta seção,
além de estruturar de forma crítica, a estória, o roteiro e as alusões sobre a realidade que ambas
as obras constituem, traz um apanhado da conjuntura da época em que foram lançadas nas telas
do cinema mundial.
O terceiro capítulo foca-se em versar o cinema como ferramenta política. Portanto,
detêm-se em, primeiramente, explicar a conotação política que gerou a postura com que os
Estados Unidos portaram a sua política externa durante a Guerra Fria, através da expressividade
do “The Long Telegram” de George F. Kennan. Posto isso, a sequência da seção propõe-se a
relatar mais puramente o cinema, introduzindo-o com a sua gênese, seguindo pela disseminação
do cinema norte-americano pelo globo, a partir do êxito do seu planejamento de distribuição e
de que forma a publicidade e a política passaram a utilizá-lo como um instrumento de
influência. Cerra-se o capítulo com uma última subseção que trata do esfacelamento da União
Soviética sob a atuação do soft power norte-americano, onde o cinema está introduzido.
Neste sentido, vê-se no cinema, um potente meio de formulação de conceitos e
imposição de um sistema ou de uma cultura a ser seguida. Isto não quer dizer que o cinema
proponha uma capacidade intrínseca de transformação de personalidade ou formação de opinião
do espectador, somente pela abordagem do conteúdo de um filme, nem mesmo como uma fonte
de informação integralmente confiável. Durante a Guerra Fria, o cinema norte-americano
focou-se em estabelecer certa identidade nacional ao espectador, no objetivo de disseminar o
capitalismo e concentrar aversão ao socialismo.
O presente trabalho, portanto, sugere que o cinema pode ser considerado uma ferramenta
política, devendo-se ao fato de que a Guerra Fria foi um embate ideológico-cultural, em termos
diretos entre as duas nações. Face a isto, elenca-se o cinema norte-americano como um
fortalecedor do seu setor cultural, inserido em seu soft power, o qual, supõe-se ter tido maior
êxito em relação às políticas brandas da URSS. Hipoteticamente, as peças cinematográficas
9
analisadas aqui, servem como metáforas ou evidências empíricas de que o cinema norte-
americano foi, direta ou indiretamente, parte deste êxito, tornando-se assim, um coeficiente
substancial no fim da Guerra Fria e na subsequente derrocada da nação socialista.
10
O capítulo em tela monta uma definição teórica e histórica do soft power. Para tanto,
não haveria como explicar seus conceitos e exemplos se não o iniciássemos a elucidação sobre
o que é poder e natureza de poder, já, obviamente, mencionando o autor Joseph Nye, qual dará
o norte para a confecção da pesquisa. Posteriormente, traremos à luz a definição e conceituações
de soft e hard power, instituídas por este mesmo autor, descrevendo minuciosamente as
funções, características e subdivisões adentro de ambos os termos. São inseridas figuras e
tabelas para efetivar maior praticidade no entendimento destes conceitos. Ao fim desta revisão
teórica, é explorado o soft power dos Estados Unidos, trazendo um apanhado de eventos que
representaram a utilização deste poder ao longo da história, no intuito de contextualizar o
capítulo posterior do trabalho.
Nicolau Maquiavel, em sua mais importante obra, “O Príncipe” (1532)2, escreveu aos
príncipes italianos que para se lograr sucesso na política é mais importante ser temido do que
ser amado. Por sua vez, Joseph Nye (2004) diz que no mundo em que vivemos hoje, o melhor
é ser ambos. Ao redor do globo, muitos líderes políticos sabem que a natureza do poder tem
mudado e, ainda mais essencialmente, pensam em “como incorporar as dimensões brandas nas
suas estratégias de manutenção do poder” (NYE, 2004).
Para tanto, é necessário que se entenda melhor o que é e do que se trata o poder. “O
conceito engloba a habilidade para conseguir que outra pessoa faça alguma coisa que de outra
forma não seria feita”. Conceito, este, muito próximo ao utilizado pelos teóricos da corrente
realista quando relacionam o poder ao sistema internacional (DAHL, 2001). Por exemplo, Aron
sugere que “o poder no cenпrio internacional corresponde р capacidade de uma unidade política
impor a sua vontade рs outras unidades” Enquanto Morgenthau o define como “a capacidade
de cada Estado influenciar ou obrigar os demais a agirem de determinada maneira ou a deixarem
de fazê-lo” (ARON, 1966).
2
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1969.
11
Joseph Nye faz uma curiosa comparação de poder com amor, onde diz que “ambos
seriam uma experiência mais fácil de experimentar do que definir ou medir, mas não menos
real por isso”. Pode-se dizer, generalizadamente, através disto que o poder trata-se da
capacidade de fazer ou conseguir aquilo que se almeja, ou mesmo, a capacidade de afetar o
comportamento de outros para fazer coisas acontecerem. Há muitas maneiras de se fazer isso.
“Você pode coagi-los com ameaças; induzi-los com pagamentos; ou atraí-los e cooptá-los a
querer o que você quer” (NYE, 2004).
Diante deste contexto e das dezenas de teorias que classificam recursos como sinônimos
de poder, Nye traz à tona a questão, sustentando que é problemático definir o poder de um
Estado baseando-se somente em suas capacidades e recursos, como população extensa,
território e fontes de riquezas naturais, força econômica e militar, e estabilidade social. Estas
ferramentas apenas aparentam tornar o poder mais palpável e concreto, porém, produzirão um
paradoxo de que nem sempre aquele com mais poder conseguirá aquilo que deseja. Nye
exemplifica com maestria esta colocação:
Ter recursos de poder não lhe dá garantia que você consiga tudo o que você quer. Por
exemplo, em termos de recursos os Estados Unidos eram muito mais poderosos do
que o Vietnã, e mesmo assim perdeu a Guerra do Vietnã. Ainda, os Estados Unidos
eram a única superpotência em 2001, mas falharam em prevenir o 11/093 (NYE, 2004,
p. 3, tradução nossa).
3
Having power resources does not guarantee that you will always get the outcome you want. For example, in
terms of resources the United States was far more powerful than Vietnam, yet we lost the Vietnam War. And
America was the world's only superpower in 2001, but we failed to prevent September 11.
12
[...] sua acepção é a de prognóstico do comportamento dos países, ou seja, que serão
desenvolvidas políticas que impeçam qualquer outro país de desenvolver um poder
capaz de lhes ameaçar a independência (NYE, 2003, p. 44).
De acordo com a definição de Nye sobre o poder, existem três dimensões do poder,
sendo eles, o militar, o econômico e o “brando”, considerando os dois primeiros como
caracterizações do hard power (NYE, 2004). As três dimensões de poder definidas pelo autor
estão resumidas na tabela abaixo:
Desencorajamento Aliança
Proteção
Poder Econômico Indução Pagamentos Apoio
Coerção Sanções Subornos
Sanções
Joseph Nye começou a utilizar os termos soft power e hard power em 1990, quando
publicou um livro chamado “Bound to Lead: The Changing Nature of American Power”4.
Como o próprio nome diz, Nye percebeu uma certa mudança no peso que fatores como o
poderio militar e econômico representariam no futuro e na maneira como as nações exerciam o
poder e influenciavam outras, muito pelo que se assistiu na Guerra Fria. Instituía-se, então, os
termos soft power e hard power, no intuito de distinguir as formas de executar e manter o poder.
Entender estes termos, a maneira como funcionam e as suas capacidades de afetar a dinâmica
no cenário global é importantíssimo para compreender a configuração atual dos Estados.
O hard power centra-se nas raízes das forças militares e econômicas e é uma forma mais
tradicional de poder, ameaçando e induzindo o outro de maneira direta. Este poder exercido de
forma bruta, com caráter militar, pode ser visto em atuações diplomáticas coercitivas, ou seja,
negociações que deixam nítidas as condições de ameaça ou mesmo de alianças militares.
Caracteriza-se como um tipo de poder cuja sua execução é considerada mais tradicional. No
entanto, o soft power já pôde ser visualizado no século XIX, após a Guerra Franco-Prussiana5,
onde o governo francês, derrotado, utilizou-se de um estilo de política com a intenção de
impulsionar sua língua e literatura, através da Aliança Francesa, reconquistando credibilidade,
admiração e ao fim, cooperação (NYE, 2003).
No caso dos EUA – país de estudo deste trabalho - a composição do soft power nasceu
pela necessidade de rivalizar com o modelo nazifascista durante a Segunda Guerra Mundial e
mais puramente na Guerra Fria, onde o confronto deu-se contra o modelo soviético, sendo este
último o período da história em que o presente trabalho propõe-se a analisar mais a fundo.
4
NYE, Joseph S. Bound to lead: The Changing Nature of American Power. Basic Books, 1990.
5
Conflito armado disputado entre a França e um conjunto de estados germânicos liderados pela Prússia, que
levaram a melhor sobre os gauleses.
14
Joseph Nye dá maior atenção às definições de soft power em sua obra “Soft power: The
Means to Success in World Politics”6 (2004), trazendo à tona uma análise que coloca no centro
as dimensões de poder vinculadas a atração e a persuasão. Nye menciona a recomendação de
Maquiavel aos príncipes da Itália em que dizia que era mais importante ser temido do que ser
amado e sustenta, afirmando que nos dias de hoje, o melhor é ser ambos: “Ganhar corações e
mentes sempre foi importante, mas na era da informação global, é mais ainda” (NYE, 2004).
Tendo em vista esta afirmação, ganhar corações e mentes se torna ainda mais importante
na era da informação global, pois esta tem características que a diferenciam de qualquer outra
na história mundial. Com o avanço da informação, a diminuição das fronteiras econômicas e a
interdependência entre os países nas mais variadas questões de interesse mundial, preconizar o
uso do hard power é, para Nye, uma atitude pouco inteligente, justamente por esta variedade
de informações, e, ainda, as interligações que um evento tem com outro no cenário global. Por
exemplo, alguma sanção econômica por parte da União Europeia frente a China, pode abrir
precedentes para entendimentos entre EUA e Beijing. A própria aplicação do embargo
econômico contra Cuba pode comprometer o combate ao tráfico internacional de drogas no
Golfo do México – questão esta, problemática para ambos países.
Nye conceitua o soft power da seguinte forma:
Na política mundial, é possível que um país obtenha os resultados que quer porque os
outros desejam acompanha-lo admirando os seus valores, imitando-lhe o exemplo,
aspirando ao seu nível de prosperidade e liberdade. Neste sentido é igualmente tão
importante estabelecer a agenda na política e atrair os outros quanto força-los a mudar
mediante a ameaça ou o uso das armas militares ou econômicas. A este aspecto de
poder – levar os outros a querer o que você quer – dou o nome de soft power. Este
coopta as pessoas, ao invés de coagi-las. (NYE, 2002, p. 36)
Daí, entra-se na máxima de como fazer com que os países cooptem, tal como o autor
propõe. Para ele, os meios de atração serão a cultura, as instituições e políticas governamentais
6
NYE, Joseph S. Soft Power: The Means to Success in World Politics. 1st. ed. United States: Public Affairs,
2004.
7
It is the ability to get what you want through attraction rather than coercion or payments. It arises from the
attractiveness of a country's culture, political ideals, and policies. When our policies are seen as legitimate in the
eyes of others, our soft power is enhanced.
15
que sejam compartilhadas pelos atores que determinado país quer cooptar. Ainda, Nye
exemplifica tais ações, em relação ao uso da cultura, quando o Ocidente instaurou valores de
liberdade aos países do Leste Europeu, levando jovens a reivindicarem a abertura da democracia
nos anos 1980. Quanto às políticas governamentais, exemplifica a concessão de bolsas de
estudos para estudantes estrangeiros e no que se refere às instituições, destaca a exportação do
modelo ocidental de democracia para os países árabes. Segundo o autor:
O país que consegue legitimar seu poder aos olhos dos demais encontra menor
resistência para obter o que deseja. Contando este com uma cultura e uma ideologia
atraentes, os outros se mostram mais dispostos a acompanha-lo. Se conseguir
estabelecer regras internacionais compatíveis com sua sociedade, é menos provável
que tenha que mudar. (NYE, 2002, p. 39)
Nye, como ex-Sub-Secretário de Defesa dos EUA na administração Clinton, opina que
conciliar interesses globais através de valores compartilhados e de instituições exemplares não
significa deixar de lado o uso da força, pois se há necessidade, o uso deste se legitima. Contudo,
é fundamental que haja um certo equilíbrio entre ambos os poderes.
O soft power, portanto, será importante na definição da agenda política, ao mostrar que
os valores preconizados pelo núcleo comandante são os certos, sem que para isso se precise
fazer uso da força.
Contudo, Nye alerta que o soft power não se trata apenas daquilo que não seja a
utilização das forças armadas, e ainda, considerando que o seu uso nem mesmo pode ser restrito
8
Since the currency of soft power is attraction based on shared values and the justness and duty of others to
contribute to policies consistent with those shared values, multilateral consultations are more likely to generate
soft power than mere unilateral assertion of the values.
16
aos Estados, menciona que reitores de universidades, por exemplo, têm descobertas que o soft
power americano é superior ao hard power (NYE, 2011).
Atualmente, a crescente importância do soft power torna-se cada vez mais, pauta de
análises nas questões internacionais e, além disto, torna-se bastante significativo no âmbito da
filantropia. Não muito tarde, veremos o soft power eclipsar “o hard power das subvenções e de
outras transações financeiras” [...] Fundações, como a Gates9 e a Ford10 e muitas das outras
grandes instituições filantrópicas, por exemplo, têm muito mais soft power do que hard power
à sua disposição, representado pelos orçamentos que geram suas subvenções (STOCKTON,
2010, p. 33)
Aparentemente o soft power apresenta-se como uma alternativa ao hard power, e,
devido a isso, é explorado com freqüência por estudiosos e analistas políticos. Entretanto, “o
soft power é um conceito mais descritivo que normativo”. Dessa forma, exatamente como
qualquer tipo de poder, o soft power pode ser tanto usado para o mal, quanto para o bem. Por
exemplo, Hitler, Mao e Stalin contavam com um forte soft power que não servia
necessariamente para o bem (NYE, 2011).
Para uma melhor compreensão, Nye caracteriza o soft power de um Estado em três
pilares centrais: sua cultura, seus valores políticos e sua política externa. É muito importante
saber o que o alvo está pensando, pois, tratando-se de soft power, “os alvos importam tanto
quanto os agentes”. Dessa forma, existem condições fundamentais para determinar se os
recursos potenciais de soft power são capazes de influenciar os outros no caminho dos
resultados desejados. Por exemplo, a sua cultura só poderá ser usada em um local onde se
demonstra atrativa; seus valores políticos precisam fazer jus inter e externamente; e, suas
políticas externas precisam de autoridade moral e que aos outros, pareça legítima (NYE, 2011).
O número de conceitos de cultura é quase tão grande quanto o de poder. Geertz define
cultura como “um padrão historicamente transmitido de significados em símbolos”. Para o
autor, estas formas simbólicas são a maneira pela qual os homens se comunicam através do
tempo, e dessa forma, desenvolvem e dão continuidade ao seu conhecimento e suas atitudes
com relação à vida (GEERTZ, 1973). Já para Fiske, a cultura é um conjunto de ideias,
9
A instituição foi criada por Bill Gates e a sua mulher, Melinda Gates. Os fundos desta Organização sem fins
lucrativos proveem de doações de privados. Tem a sua sede em Seattle, Washington, EUA, gerindo cerca de US$
38 bilhões. Seu objetivo central é a melhoria das condições de vida, nomeadamente na saúde, e a luta contra a
pobreza. Nos EUA, a instituição pretende promover a educação e o acesso à tecnologia. Bill & Melinda Gates
Foundation. Disponível em <www.gatesfoundation.org/> Acesso em 20 de abril de 2016.
10
A Fundação Ford é uma entidade sediada na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. Criada para financiar
programas de promoção da democracia e redução da pobreza. Disponível em <www.fordfoundation.org/> Acesso
em 20 de abril de 2016.
17
perspectivas e normas com o objetivo de influenciar os valores das pessoas e suas atitudes. A
cultura popular norte-americana, por exemplo, caracteriza-se pela liberdade, individualismo,
capitalismo e libertação (FISKE, 1989).
A cultura é uma importante ferramenta política devido a sua habilidade de produzir e
encadear sentimentos que podem formar o centro da identidade individual que é a fonte em
potencial para pensamentos e ações políticas. Existem alguns aspectos da cultura da
humanidade que são universais, enquanto outros são nacionais e outros são restritos às classes
sociais ou a pequenos grupos (STREET, 1997).
“A cultura nunca é estпtica, e culturas diferentes interagem de maneiras diferentes”
(NYE, 2011, p 119). Contudo, mais pesquisas precisam ser feitas abordando a relação entre
cultura e comportamento. Por exemplo, a atração cultural ocidental pode reduzir os apelos
extremistas atuais em algumas sociedades muçulmanas de hoje? Alguns veem uma divisão
cultural intransponível, mas se formos analisar, no Irã há muitos jovens sendo atraídos pelas
músicas e vídeos ocidentais. Parafraseando Nye, “atração e persuasão são socialmente
construídas e o soft power é uma dança que exige parceiros” (NYE, 2011, p. 84, 85).
Quando a cultura de um país inclui valores universais e suas políticas promovem
interesses e ideais que outros compartilham, a possibilidade de obter os resultados desejados
aumenta devido à atração do relacionamento e o dever que ele cria (NYE, 2004). No entanto,
são comumente confundidos os recursos culturais com comportamento de atração. Por
exemplo, Niall Ferguson descreve o soft power como “uma força não tradicional tal como
cultura ou bens comerciais” (FERGUSON, 2003, p. 23). É claro que a Coca-Cola e o
McDonald’s não vão necessariamente atrair as pessoas do mundo Islâmico a amar os Estados
Unidos, ou os populares jogos do Pokémon não vão assegurar que o Japão terá sucesso nos seus
desejos políticos. Contudo, isso não necessariamente nega que a cultura é um recurso que
produz soft power, mas que “o efeito de qualquer recurso de poder depende do contexto” (NYE,
2004).
Os valores políticos são definidos pelo autor como uma parte intrínseca do que é a
política externa de um Estado. Valores são simplesmente intangíveis interesses nacionais. Eles
necessitam que sua “política seja vista como valorosa, tanto em seu território, quanto fora dele”.
A política externa de um Estado é considerada por Nye um dos pilares caracterizantes do soft
power de um Estado, pois, se este obtém autoridade moral que aos olhos dos outros pareça
legítima, é também uma maneira de angariar credibilidade, ampliando o seu soft power.
Porém, Nye nos traz a informação de que:
18
Cultura, valores e políticas não são os únicos recursos que produzem soft power. [...]
os recursos econômicos também podem representar comportamento tanto de soft
quanto hard power. Eles podem ser usados para atrair ou coagir 11 (NYE, 2011, p. 85,
tradução nossa).
Joseph Nye aponta que o soft power pode atingir os seus alvos de maneira direta ou
indireta. No primeiro caso, os líderes podem se sentir atraídos e persuadidos pela humanidade,
carisma ou competência de outros líderes, como, por exemplo, o discurso12 do presidente
Barack Obama em uma reunião do G-20 que culminou em um acréscimo de doações de
alimento para as nações africanas (TIMES, 2009). Já o soft power utilizado da maneira indireta
é um modelo de dois passos, onde o público e terceiros são influenciados e, consequentemente,
afetam os líderes de outros Estados. Evidentemente que caso um ator ou ação for entendido
como repulsivo, o soft power cria um ambiente incapacitante. De forma resumida, então,
observamos a figura abaixo:
MODELO 1
EFEITOS DIRETOS
Recursos elites do governo atração decisão da elite e resultado
MODELO 2
EFEITOS INDIRETOS
Recursos públicos atração/repulsão ambiente capacitador ou incapacitante
decisão da elite
11
Culture, values and policies are not the only resources that produce soft power. [...] economic resources can
also produce soft as well as hard power behavior. They can be used to attract as well as coerce.
12
Informação segundo o site do jornal The New York Times. Disponível em
<www.nytimes.com/2009/07/12/world/africa/12prexy.html> Acesso em 29 de março de 2016.
19
Habilidades de Conversão
riqueza, mas também para a reputação e atratividade. Para isto, Nye enumera diversas fontes
de soft power atuais norte-americanos:
Não é somente os EUA a maior economia do mundo, mas quase metade das 500
maiores empresas globais são americanas, cinco vezes mais do que o segundo do
ranking - Japão. Sessenta e duas das maiores marcas globais 100 são americanas, bem
como, oito dos dez maiores “business schools” Além dos negócios, os índices sociais
apresentam um padrão semelhante. Considere o seguinte: os Estados Unidos atraem
cerca de seis vezes o fluxo de imigrantes estrangeiros do que o segundo no ranking –
Alemanha; os Estados Unidos são, de longe maior exportador do mundo de filmes e
programas de televisão, embora a "Bollywood" da Índia produza mais filmes por ano
do que os EUA; entre 1.6 milhões de estudantes matriculados em universidades fora
dos seus próprios países, 28% estão nos Estados Unidos, em comparação com os 14%
que estudam na Inglaterra; mais de 86.000 estudantes estrangeiros estavam na
residência em instituições de ensino em 2002; os EUA produzem mais livros que
qualquer outro país; tem o dobro de músicas vendidas em comparação com o Japão,
segundo do ranking; tem 13x mais de hosts de websites do que o segundo do ranking;
primeiro do ranking em quantidade de Prêmios Nobel de Química, Física e Economia;
publica quase 4x o número de artigos científicos e de revistas do que o segundo do
ranking [...]13 (NYE, 2004, p. 33-34, tradução nossa).
O autor ainda afirma que, mais importante para o poder do que a boa colocação nestes
índices, é o fato de que os recursos potenciais de poder nem sempre se traduzem em alcançar
os resultados desejados. Para que isso aconteça, este recurso potencial de soft power tem de ser
atraente aos olhos de públicos específicos e ainda, esta atração deve influenciar o resultado da
sua política.
13
Not only is America the world's largest economy, but nearly half of the top 500 global companies are American,
five times as many as next-ranked Japan. Sixty-two of the top 100 global brands are American, as well as eight of
the top ten business schools. Social indices show a similar pattern. Consider the following: The United States
attracts nearly six times the inflow of foreign immigrants as second-ranked Germany. The United States is far and
away the world's number one exporter of films and television programs, although India's "Bollywood" actually
produces more movies per year. Of the I.6 million students enrolled in universities outside their own countries, 28
percent are in the United States, compared to the 14 percent who study in Britain. More than 86,000 foreign
scholars were in residence at American educational institutions in 2002. publishes more books than any other
country. Has more than twice as many music sales as next-ranked Japan. Has more than 13 times as many Internet
website hosts as Japan. Ranks first in Nobel prizes for physics, chemistry, and economics. Places a close second
to France for Nobel prizes in literature. Publishes nearly four times as many scientific and journal articles as the
next runner-up, Japan. [...]
21
14
Foi uma organização internacional instituída em 1919, em Versalhes, onde as potências vencedoras da Primeira
Guerra Mundial se reuniram para negociar um acordo de paz.
15
Ou “Grande Depressão”, foi uma depressão econômica que teve início em 1929, e que persistiu ao longo da
década de 1930, terminando apenas com a Segunda Guerra Mundial. Considerada o pior e o mais longo período
de recessão econômica do século XX, com o alto desemprego, quedas drásticas do produto interno bruto e na
produção industrial, preços de ações, e em praticamente todos os indicadores econômicos, em diversos países no
mundo.
16
Equilíbrio de poder que existia na Europa desde o fim das Guerras Napoleônicas de 1815 à 1914 quando eclodiu
a Primeira Guerra Mundial. Seus fundadores foram a Áustria, Prússia, o Império Russo e a Grã-Bretanha, juntos
com os membros da Quádrupla Aliança responsável pela queda do Primeiro Império Francês. Com o tempo, a
França foi aderida como um quinto membro do Concerto.
17
Iniciativa política criada e apresentada pelo governo dos Estados Unidos presidido por Franklin D. Roosevelt
durante a Conferência Panamericana de Montevideo, em dezembro de 1933. Ela se referiu ao período das relações
políticas estadunidenses com os países da América Latina entre 1933 até 1945 - ao final da Segunda Guerra
Mundial e Harry Truman assumindo a presidência do país.
18
O OCIAA efetivou parcerias com os estúdios de Hollywood e investiu de maneira pesada na elaboração de
filmes. Artistas de fama mundial, tais como, Walt Disney, Tyrone Power, Lana Turner e Carmen Miranda, foram
recrutados pelo governo norte-americano e pelo OCIAA na divulgação da Política Externa da Boa Vizinhança
(TOTA, 2000). Além disso, os EUA ofereciam aos países latino-americanos treinamentos, bolsas de estudo,
22
para auxiliar na batalha contra o nazismo e o fascismo, através de revistas, programas de rádio,
cinema e anúncios publicitários, objetivando garantir e expandir os pilares das relações
comerciais entre as Américas e de elaborar e desenvolver projetos de aproximação cultural entre
os EUA e a América Latina (MORAES, 2010).
Com o final da Segunda Guerra Mundial no ano de 1945, o sistema bipolar se
estabeleceu. Os principais vitoriosos da guerra - EUA e a URSS – afloraram-se como
superpotências. Dessa forma, a preocupação norte-americana deixava de ser a disseminação do
nazi-fascismo para a expansão dos soviéticos e do comunismo no cenário internacional. Cada
um dos países procurava propagandear os seus efeitos, seja na área da ciência, aeroespacial,
esportes, economia, e etc., assim, demonstrando sua superioridade em relação ao outro
(MORAES, 2010).
Para aproximar a cultura norte-americana dos demais Estados e promover os ideais do
sistema democrático, dois órgãos, no governo de Dwight D. Eisenhower (1953-1961), foram
fundados: o USIA19 (United States Information Agency) e, posteriormente a USIS (United
States Information Service) a fim de patrocinar escritores para elaboração de conteúdos
favoráveis aos Estados Unidos ao mesmo tempo em que proibia a escrita de algo em favor a
URSS (BLACK, 1977). Em contrapartida, a URSS utilizava-se de seu Comissariado de
Propaganda e o Comissariado de Educação e Cultura20 (Narkompros), incentivando, em
diversos países, bolsas de estudos, cultura russa, assistência científica, médica e esportiva.
Diante disto, cerra-se esta seção da pesquisa tendo-se contextualizado as vontades destas
duas superpotências em disseminar seu soft power pelo mundo, principalmente a cultura, visto
a criação até mesmo de políticas públicas para tal. A seção seguinte trará a análise de dois
longas, de produção norte-americana, que serviram de vetores para a instrumentalização do soft
power do país durante o período da Guerra Fria.
tradução de livros, divulgação de música e filmes norte-americanos, além de uma pesada propaganda anti-
Alemanha, destacando o tema da ameaça nazista (MOURA, 1984).
19
A Agência de Informações dos Estados Unidos (USIA), que existia entre 1953-1999, foi uma agência norte-
americana dedicada à diplomacia pública. Em 1999, as funções de radiodifusão da USIA foram transferidas para
o Conselho de Radiodifusão recém-criado e as funções de informações foram remetidas à recém-criada
subsecretaria de Estado para Diplomacia e Assuntos Públicos do Departamento de Estado dos EUA. A agência era
anteriormente conhecida no exterior como o Serviço de Informação dos Estados Unidos (USIS). Disponível em
<http://fpif.org/united_states_information_agency/.> Acesso em 29 de abril de 2016.
20
O Narkompros ou Comissariado do Povo de Educação (em russo На ы а а в щ я,
На ) foi o departamento soviético responsável pela administração da educação pública e pela maior parte
das matérias relativas à cultura. Em 1946, se tornaria o Ministério de Educação (PISTRAK, 1924).
23
Dentre as inúmeras ferramentas de soft power, acredita-se que o cinema foi um meio
interessante da sua manifestação, seja disseminando uma cultura a ser seguida, seja
demonizando o adversário de certo evento atual ou histórico no contexto global. O cinema faz
parte de uma indústria cultural e como todo produto de massa, tem um lugar significativo na
constituição de um imaginário coletivo. Para tanto, torna-se, com esta capacidade de ilustração
de uma realidade própria ou de uma tentativa de influenciar determinado público a aderir a uma
ideia.
Diante disto, analisaremos se a utilização da indústria cinematográfica norte-americana
foi, de fato, um vetor relevante na derrocada da URSS, a partir do diagnóstico de duas obras de
distintos períodos dentro da Guerra Fria, quais sejam, “Dr. Fantástico” (1964) de Stanley
Kubrick e “Rocky IV” (1985), de Sylvester Stallone, analisando como tais peças
cinematográficas puderam, à sua maneira, influenciar no processo de esfacelamento da União
Soviética, estabelecendo uma contextualização dos eventos que o mundo assistiu à época de
ambas as películas em análise.
No final dos anos 1930, os americanos começam a se sentir mais ameaçados pela
ascensão do totalitarismo21 estrangeiro do que pela recente quebra da bolsa22. Então, uma
cultura fragmentada passou a se unificar e instituir um sistema comum de crenças,
solidificando-se durante a Segunda Guerra Mundial, quando os esforços norte-americanos
apoiaram-se em derrotar as potências do Eixo (MALAND, 1979).
Muito mais do que uma reação aos eventos deste período, este paradigma instituiu o que
o Godfrey Hodgson nomina de “ideologia do consenso liberal”. De acordo com ele, a ideologia
continha dois pressupostos basilares: a de que a estrutura da sociedade americana era
21
Sistema político de governo no qual o Estado, sob o controle de uma única pessoa, facção ou classe social, não
reconhece limites à sua autoridade. Concentrando, assim, todos os poderes do Estado na mão do governante.
22
Ver Nota 15, p. 23.
24
basicamente boa, e que o comunismo era um perigo claro para a sobrevivência dos Estados
Unidos e seus aliados (HODGSON, 1976).
Portanto, a partir dessas duas crenças, evoluiu uma visão amplamente aceita de
“América” Esse ponto de vista argumentou a sua posição desta forma:
O autor ainda salienta que a única ameaça a esta harmonia doméstica é o espectro do
comunismo, afirmando que o "mundo livre", liderado pelos Estados Unidos, deve preparar-se
para uma longa luta contra o comunismo e apoiar-se num sistema de defesa forte. Se a América
aceita esta responsabilidade na luta contra o comunismo, ao mesmo tempo, proclamando as
virtudes da democracia econômica, social e política americana para o resto do mundo, o país
continuará forte e saudável (HODGSON, 1976).
Estes pressupostos guiaram a liderança nacional norte-americana na tentativa de lograr
uma política social numa era de armas nucleares. Depois que a União Soviética anunciou, no
outono de 1949, que tinha explodido com sucesso uma bomba atômica, o presidente Truman
ordenou à Comissão de Energia Atômica para “ir em frente” com o desenvolvimento de uma
bomba de hidrogênio. Ao final de 1952, os Estados Unidos haviam detonado sua primeira
bomba de hidrogênio, esta 700 vezes mais potente que a bomba atômica lançada sobre
Hiroshima. Menos de um ano depois, em agosto de 1953, os soviéticos anunciaram que também
possuíam uma bomba de hidrogênio. A corrida armamentista se iniciava. Em tempo, a Sputnik
124 foi lançada com sucesso em 1957, levando a receios nacionais sobre a qualidade da ciência
e educação americanos, quando alguns intelectuais americanos começaram a refinar uma nova
23
[...] the American economic system has developed, softening the inequities and brutalities of an earlier
capitalism, becoming more democratic, and offering abundance to a wider portion of the population than ever
before. The key to both democracy and abundance is production and technological advance; economic growth
provides the opportunity to meet social needs, to defuse class conflict, and to bring blue-collar workers into the
middle class. Social problems are thus less explosive and can be solved rationally. It is neces- sary only to locate
each problem, design a program to attack it, and provide the experts and technological know-how necessary to
solve the problem.
24
O nome do satélite soviético, na verdade, era “Sputnik 1”, este lançado em outubro de 1957. Ajudou a identificar
as camadas da alta atmosfera terrestre através das mudanças de órbita do satélite.
25
área de investigação: estratégia nuclear. Reconhecendo que as armas nucleares eram uma
realidade, os estrategistas nucleares sentiram que era importante pensar sistematicamente sobre
o seu papel na política de defesa americana:
Este tratamento paradoxal e bizarro de ameaça nuclear pode ser explicado, em parte,
como uma tentativa, por jornalistas da época, de aliviar a ansiedade durante um tempo
em que a Guerra Fria estava se intensificando. Uma série de eventos mundiais de 1960
a 1963 encorajou este congelamento na Guerra Fria. Gary Powers, pilotando um avião
de vigilância U-2, foi abatido sobre a União Soviética, em maio de 1960. Em 1961, o
fiasco da Baía dos Porcos, o presidente Kennedy anunciava uma campanha nacional
na televisão sobre um abrigo nuclear, o Muro de Berlim foi erguido e a União
Soviética anunciou que estava retomando testes atmosféricos de armas nucleares25
(MALAND, 1979, p. 700, tradução nossa).
Face a estes eventos citados, o mais tenso deles foi a Crise dos Mísseis Cubanos (1962),
o qual levou o mundo à beira de uma guerra nuclear de dimensões incalculáveis. Em outubro
de 1962, na ilha de Cuba, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) desafiava a
ordem geopolítica da Guerra Fria ao instalar mísseis nucleares a menos de 100 milhas dos
Estados Unidos, destacando-se sem exageros que foi o momento de maior tensão de toda a
Guerra Fria.
A URSS vinha, desde julho deste ano, enviando esforços militares para Cuba, sendo,
mais de 50 mil militares e 158 ogivas nucleares e diversas bases de mísseis, descobertos através
de fotografias tiradas pelos pilotos dos voos U-226 sobre Cuba. Diante disto, a informação de
que os mísseis tinham alcance de 1600 km, tendo capacidade de atingir grande parte da orla
marítima oriental dos EUA, chegou aos ouvidos do presidente John F. Kennedy, no dia 16 de
outubro daquele ano. Por sua vez, Kennedy convoca uma reunião com seus assessores para
discutir as alternativas que se tinha para aquele momento: invadir Cuba ou realizar um bloqueio
marítimo (DOBBS, 2009). Sendo decidido por este último, o presidente realiza um
pronunciamento aberto na televisão americana, no qual, como ponto principal dentre os que
listou, destacava ampliar a Doutrina Monroe27 para os tempos de Guerra Fria:
25
This paradoxical, bizarre treatment of the nuclear threat can be ex- plained in part as an attempt by journalists
to relieve anxiety during a time when the Cold War was intensifying. A number of events from 1960 to 1963
encouraged this freeze in the Cold War. Gary Powers, piloting a U-2 surveillance plane, was shot down over the
Soviet Union in May 1960. In 1961, the Bay of Pigs fiasco occurred in May, President Kennedy announced a
national fallout shelter campaign on television in July, and in August, the Berlin Wall was erected and the Soviet
Union announced that they were resuming atmospheric testing of nuclear weapons.
26
Avião de alta altitude, utilizado na época, pela Força Aérea Norte-americana com a finalidade de espionagem.
27
Ou “América para os Americanos”, preconizava que todas as nações tinham direito р liberdade, expulsando,
assim, Grã-Bretanha e França das Américas no intuito de apadrinhar estas nações.
26
os EUA, o que requer uma adequada resposta de represália contra a URSS (LILLO;
CASTAÑARES, 1995, p. 547).
O filme tem como tema central a catástrofe nuclear. Stanley Kubrick ilustra muito bem
o medo de uma hecatombe nuclear que pairava sob o mundo há pouco tempo antes do
lançamento do filme. Ao passo em que Lyndon Johsson - presidente dos Estados Unidos da
época - intensificava ainda mais os conflitos na Guerra do Vietnã, as imagens de Hiroshima e
Nagasaki seriam utilizadas de forma estilizada no filme, como uma tentativa de evitar o uso de
armas nucleares novamente. Deste modo, Dr. Fantástico: ou como aprendi a parar de me
preocupar e amar a bomba traz consigo um escopo de denúncia satírica, com vistas a alcançar
um público maior em seus propósitos através do cômico.
28
Diplomata norte-americano em Moscou à época, cientista político e historiador norte-americano, sendo uma
figura central na emergência da Guerra Fria.
29
Conhecido como “The Long Telegram”, enviado pelo diplomata americano em Moscou, G. Kennan, ao
Departamento de Estado norte-americano no ano de 1946.
27
Dr. Fantástico é uma película que sai dos cânones vigentes do cinema norte-americano
da época, pois até então, muitos que detinham um escopo político, criticavam única e
exclusivamente o modo de vida soviético. Isto fica evidente quando a crítica se dá nos alicerces
das duas superpotências, onde demonstra também críticas ao polo capitalista. Assim, o longa
tem sua narrativa polarizada em três diferentes cenários: uma base militar norte-americana; a
sala redonda do Pentágono e o interior de um bombardeiro.
Na trama, o general Jack Ripper – fazendo-se alusão ao Jack, O Estripador - é um oficial
paranoico e traduz o sentimento de grande parte da população norte-americana da época: o
anticomunismo. Ripper trata o comunismo como uma doença e nota-se sua grande preocupação
com a pureza original, ou seja, o modo de vida estadunidense, o qual não deve ser contaminado
pelo comunismo. Diante de suas características, de dentro de uma base da Força Aérea norte-
americana, o general ordena um ataque nuclear em massa contra a União Soviética. No entanto,
um oficial da Força Aérea britânica, Lionel Mandrake que acaba se tornando prisioneiro de
Ripper dentro da base militar, tenta, de todas as formas, convencer o general paranoico a
suspender o ataque e ordenar que os aviões bombardeiros voltem para a base.
Em um destes aviões, na missão de ataque, estão o Major Kong e sua tripulação, os
quais se espantam num primeiro momento quando receberam do general Ripper um aviso
codificado sobre um ataque nuclear em território soviético, e mesmo assim, após a confirmação
da ordem contida na mensagem, se engajam bravamente no cumprimento da missão.
Posteriormente, a aeronave acaba tendo problemas de radiocomunicação com a base central e
por isso não atendem os futuros pedidos para que retornem à base e cessem o bombardeio.
Na sala redonda do pentágono, o presidente norte-americano Merkin Muffley é
chamado com urgência para uma reunião, onde junto do descontrolado general Buck Turgidson,
do embaixador soviético Sadesky e do esquizofrênico Dr. Fantástico, tentam empenhar-se em
impedir os ataques à URSS de qualquer maneira, pois esta ordem não teve o consentimento do
presidente, apenas do general Ripper e de sua própria paranoia. Em relação à personalidade do
personagem, Charles Domingos atenta que:
[...] a figura do presidente dos EUA é uma figura moderada. O personagem lembra
muito Adlai Stevenson, democrata duas vezes derrotado nas eleições presidenciais. E
justamente por ser moderado é visto pelos setores conservadores como fraco, pois não
tem o controle sobre a bomba e está sem possibilidade de intervenção (DOMINGOS,
2014, p. 12).
em vista que ao passo em que o soviético se ofende com facilidade, o americano tenta ter um
comportamento compreensivo. Esta ausência de autonomia e dureza do presidente
estadunidense que Kubrick quis mostrar, fortalece o argumento de que a guerra, ou a hecatombe
nuclear pode ser consequência de atos que escapam ao controle e à razão.
Afinal, se o presidente dos EUA não tem controle sobre as armas nucleares de seu
país (ou se o primeiro-ministro da URSS é retratado como um bêbado, incapaz de
compreender o que se passa ao seu redor) como poderão as populações confiar no
equilíbrio de terror da Guerra Fria? (DOMINGOS, 2014, p. 13)
Mandrake: Não sabe que o Gen. Ripper enlouqueceu e mandou aviões para atacar os
russos?
Oficial: Do que está falando?
Mandrake: Vou ligar com o telefone vermelho para o QG. E espero... Maldição! Não
funciona. Deve ter sido cortado por vocês nesta luta ridícula.
Oficial: Chega. Já perdi muito tempo com você! (DR., 1964)
Oficial: Certo! Tente falar com o Presidente com este telefone. Se tentar um truque,
estouro seus miolos!
Mandrake: Aqui é o Comandante Mandrey da Base Buferson. Faça uma ligação
urgente ao Presidente Merkin Muffley no Pentágono, Washington D.C.
Mandrake: Buferson 39:180.
Mandrake: Isso mesmo, o presidente dos Estados Unidos.
Mandrake: Lamento, não tenho troco suficiente. Pode fazer a cobrar?
Mandrake: Um momento, telefonista.
Mandrake: Não aceitaram. Tem 55 centavos?
29
Figura 3 - Presidente Muffley em uma das frases mais conhecidas do filme: “Senhores,
vocês não podem brigar aqui! Esta é a Sala de Guerra!” 30
30
DR. Fantástico. Direção: Stanley Kubrick. EUA/Reino Unido: Columbia Pictures Corporation. 1964.
30
prosseguiu adentrando em território soviético. Por sua vez, o Presidente Muffley quando soube
disso, impossibilitado de fazê-lo recuar, telefona para o primeiro-ministro da URSS,
desculpando-se pelo incidente e tentando reverter a situação, a qual se agrava quando descobre
que o país que estп atacando possui a “Arma do Juízo Final” – um dispositivo de defesa
automática capaz de aniquilar toda a vida na Terra. Por fim, o ataque à URSS se efetiva e o
dispositivo de defesa soviético é acionado.
Ao fim do filme, certos de que o mundo logo acabarп devido р ativação da “Arma do
Juízo Final”, os membros da reunião do Pentпgono são surpreendidos quando o Dr. Fantástico
revela a existência de um esconderijo em um subsolo impenetrável, desenvolvido por ele. Com
isto, decidem que haverá uma seleção das pessoas que serão abrigadas para que possam, num
período de cem anos, perpetuar a existência da vida humana. Neste momento, talvez um dos
mais vulcânicos e intensos do filme, Dr. Fantástico revela a sua ideologia ao arianismo nazista
e num ato falho, com seu braço direito mecânico, saúda e chama o presidente de führer.
Figura 5 – Personagem “Dr. Fantástico” na cena em que levanta seu braço mecânico para
saudar o presidente.32
31
DR. Fantástico. Direção: Stanley Kubrick. EUA/Reino Unido: Columbia Pictures Corporation. 1964.
32
Ibid.
31
Diante desse contexto, pode-se argumentar que a decisão de selecionar pessoas para
abrigarem-se no esconderijo, estaria relacionada com o fim da relação monogâmica, dentro de
uma perspectiva machista. A proposta foi de que cada homem teria que ficar com dez mulheres
para a manutenção do desenvolvimento da raça humana após a hecatombe nuclear. Ao refletir
sobre o caso em tela e direcionando-se ao âmbito da Teoria Crítica, Domingos nota que não é
a emancipação sexual da mulher que é capaz de originar um novo mundo, pois os personagens
estão interessados verdadeiramente apenas na reprodução. O que desejam Turgidson, o
presidente dos EUA, o embaixador da URSS e o nazista é somente a manutenção do status quo,
incapazes de perceber que esta situação é um produto da corrida armamentista, gerada na
Guerra Fria (DOMINGOS, 2014).
Dr. Fantástico: ou como aprendi a parar de preocupar e amar a bomba, de acordo com
Paul Boyer, é um dos filmes que mais conseguiu captar o momento de sua produção e reproduzi-
lo com certa precisão para a tela do cinema. Obviamente que os acontecimentos com toda sua
meticulosidade, maquiados com humor, referências e sátiras, jamais aconteceram, porém, é um
filme bastante identificável sobre o clima cultural da época. O diretor Stanley Kubrick e seus
co-roteiristas transmitem com precisão a lógica da teoria da dissuasão, a paranoia da Guerra
Fria e o nervosismo nuclear do início da década de 1960 (BOYER, 1995).
Passados dez anos do ápice do temor mundial sobre o possível desencadeamento de uma
Terceira Guerra Mundial – a Crise dos Mísseis de Cuba (1962), o mundo assiste a um primeiro
acordo entre as superpotências para a limitação de armas nucleares, o Acordo de Limitação de
Armamentos Estratégicos33 (SALT). É o SALT que desencadeia o período da Détente (1969-
1979). Todavia, seria inocência acreditar ser ele o responsável pela progressiva diminuição da
produção bélica dos dois países, por exemplo, o que coloca os EUA em um momento de
33
Ressalta-se que anteriormente já haviam sido assinados tratados semelhantes, quais sejam, o TNP (Tratado de
Não-Proliferação de Armas Nucleares), em 1968 e o Tratado de Moscou, em 1963.
32
retração na indústria militar, nada mais foi do que a Crise do Petróleo34, mais precisamente em
sua segunda fase, desencadeada pela Guerra de Yom Kippur35, em 1973.
A Détente garantiu o não-confronto militar, mas ao mesmo tempo, acirrou a rivalidade
política e ideológica de ambos os países, o que culminaria em algumas revoltas sociais e apoios
a revoltas e revoluções na Europa e nos países do “Terceiro Mundo”36.
Como exemplo, é oportuno citar a Invasão soviética ao Afeganistão, em 1979, a qual
foi uma guerra travada entre a URSS e a Resistência Islamista Mujadhideen do Afeganistão,
tendo, estes, o apoio dos Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Paquistão e outras nações
muçulmanas. O fim deste embate se deu no ano de 1989, quando as tropas soviéticas retiraram-
se do território afegão.
A Invasão de Granada, em 1983, comandada pelos Estados Unidos, como resposta a um
golpe de Estado liderado pelo vice-primeiro-ministro Bernard Coard que depôs o então
primeiro-ministro granadino, Maurice Bishop, no intuito de instituir uma nação marxista-
leninista a qual alinhou-se rapidamente com a URSS e Cuba. Porém, as forças norte-americanas
impediram, dando-se desfecho ao conflito. Outro conhecido embate foi a Intervenção soviética
em Praga, ou Primavera de Praga, iniciando-se em 1968 com um período de liberalização
política, democrática e social na Tchecoslováquia, proposta pelo reformista eslovaco Alexander
Dubček, quando chegou ao poder. No entanto, a URSS e os países do Pacto de Varsóvia
tentariam destitui-lo, e esta ação teria sucesso mais tarde, quando Gustáv Husák chegara ao
posto de Presidente do país e desconstituiria todas as propostas de seu antecessor com o apoio
destas nações.
A década de 1980, foi um período marcado pelo que se conhece por “Era Reagan”. O
presidente dos Estados Unidos que exerceria seu mandato duas vezes, até 1989, teve uma
primeira administração na qual adotou medidas que reestabeleceram um clima de tensão com a
União Soviética, denominado por alguns analistas de “Nova Guerra Fria”. A partir de 1981,
Ronald Reagan atualiza o discurso da “contenção” presente na Doutrina Truman, ou seja, é hora
de defender-se novamente do perigo comunista. Dentre essas medidas estão o embargo
econômico à União Soviética, como represália a invasão deste país ao Afeganistão e a tentativa
de uma retomada da corrida armamentista, com o programa Guerra nas Estrelas37, tornando a
34
Crise provocada pelo embargo dos países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
e Golfo Pérsico de distribuição de petróleo para os Estados Unidos e países da Europa.
35
O auxílio dos Estados Unidos a Israel nessa guerra, culminaria na segunda fase da Crise do Petróleo (1973)
(ROSENBERG, 2004).
36
Destaca-se o termo “terceiro-mundo” para caracterizar os países que estavam neutros durante a Guerra Fria.
37
Projeto militar norte-americano que pretendia construir um sistema de defesa com capacidade de impedir um
ataque nuclear contra o território dos Estados Unidos, por meio de um sistema de radares, escudos antimísseis e
33
relação entre as superpotências ainda mais difíceis. A produção que vinha sendo reorientada
desde o mandato de Carter passa a se intensificar cada vez mais, gerando a “militarização da
economia” (CHOMSKY, 2007).
É exatamente neste contexto e clima de tensão mundial que o filme Rocky IV é
produzido e se lança nas telas de cinema mundo afora, no ano de 1985.
Pode-se dizer que Rocky IV é um filme que carrega consigo todo o ambiente social de
sua criação, como o figurino dos personagens, os cortes de cabelo, o deslumbre com a
tecnologia avançada, música e tudo o que configura o que foram os anos 1980.
Ao contrário dos filmes anteriores e posteriores a esta saga, Sylvester Stallone (1985)
traz a política internacional como elemento central. Podendo-se, através disso, perceber como
o ideário capitalista e a vivência da Guerra Fria estavam mais em pauta do que nunca, também,
na indústria cinematográfica. Em contraste ao filme Dr. Fantástico (1964), analisado
anteriormente, em que a denúncia satírica tinha como alvos os governantes falhos, o comunismo
e o capitalismo, e, acima disto, o temor de uma hecatombe nuclear, Rocky IV é puramente uma
ilustração do cenário norte-americano na década de 1980, com o fim da Détente e o início de
um governo que atualizou toda a tensão entre ambas as superpotências, e mais que isso, a ideia
de um inimigo que ainda estava em cheque, qual seja, a URSS.
Fred Halliday, na sua visualização sobre a Guerra Fria, diz que esta não terminou por
causa do equilíbrio de poder, ou de uma exaustão mútua, mas pela prevalência de um bloco
sobre o outro, devido a uma vitória sistêmica. Portanto, acredita-se que a Guerra Fria tenha
início com o discurso do presidente Harry Truman, em 1947, quando afirmou que os EUA não
aceitariam a expansão do socialismo. Desse modo, a justificativa para o início da Guerra Fria
se dá pela Doutrina Truman (HALLIDAY, 2007). Através de uma ideia de “contenção”, os
EUA pretendiam proteger-se da URSS, onde o eixo desta doutrina colocava em jogo dois
sistemas alternativos de vida, sendo que:
Diz-se isso, pois, ao início do filme é mostrada a amizade que Rocky Balboa e Apollo
Creed ao treinar boxe juntos e cenas após, este último é desafiado a lutar com um soviético, no
que seria um evento comemorativo. Na cena da entrevista coletiva que antecede a luta entre
Apollo Creed e Ivan Drago, o filme já traz uma metáfora do próprio início da Guerra Fria:
39
ROCKY IV. Direção: Sylvester Stallone. Estados Unidos: MGM, 1985.
35
Repórter: Apollo, por que você decidiu fazer esta luta de exibição com o Drago?
Apollo: Chame isso de senso de responsabilidade.
Repórter: Responsabilidade? Como?
Apollo: Preciso ensinar esse garoto a boxear no estilo americano.
Repórter: Drago não é um pouco inexperiente para entrar no ringue com você?
Apollo: Algumas pessoas só aprendem na pancada.
Repórter: Alguma previsão de nocaute?
Apollo: Não estou com raiva dele. Só quero mostrar ao mundo que a Rússia não tem
todos os melhores atletas. (ROCKY, 1985)
Diante desse diálogo, pode-se perceber a analogia que o filme põe em Apollo, como
sendo o próprio EUA – ficando ainda mais evidente quando entra no ringue vestido de Tio Sam
- e Ivan Drago como a URSS. Apollo tem a mesma responsabilidade que os Estados Unidos se
intitularam sob a América Latina com a Doutrina Monroe e posterior à Segunda Guerra
Mundial, assumiram perante todo o globo. Em detrimento disto é que se deve “ensinar esse
garoto a boxear no estilo americano”. O garoto é a União Soviética, filho de uma Revolução
(1917), muito mais jovem que a Revolução Americana (1776). Como se não bastasse ensiná-lo
ao estilo americano, Apollo ainda afirma que “algumas pessoas só aprendem na pancada”, numa
clara demonstração da capacidade militar dos EUA e seu uso para subjugar os demais povos do
planeta (DOMINGOS, 2012).
Observa-se que o filme, ao mesmo tempo que enfatiza todo o poderio norte-americano,
projeta os EUA como não sendo portador de ódios. Apenas tem o objetivo de demonstrar que
a URSS não tem todos os melhores atletas da Terra, pois não aceitar a imposição de hegemonia
dos soviéticos no esporte é outra forma de dizer que não se aceita nenhum tipo de hegemonia
da URSS.
Retornando à explanação da Doutrina Truman, visualiza-se que identificar qualquer tipo
de hegemonia soviética de agressão é retornar ao início da Guerra Fria, mais precisamente ao
conclamado por Truman, onde previa-se atacar com objetivo de expansão, porém sob a
justificativa de estar se defendendo (DOMINGOS, 2012). Isto fica evidenciado na continuação
da entrevista coletiva anterior à luta:
A exclamação de Apollo em que diz: “a língua dele não passou na alfсndega” soa como
uma provocação. Trata-se de caracterizar um personagem que não aceita de forma alguma que
um americano perca pela força para um soviético. A partir disso, parte para o ataque verbal, ao
insultar os soviéticos. Logo após, é repreendido e afirma que o malvado não é ele, num jogo de
identidade baseado na oposição “nós contra eles”. Domingos diz que, assim como nas palavras
da Doutrina Truman, na qual os Estados Unidos se colocavam como defensores do “Mundo
Livre” em oposição aos soviéticos, proferidos por Truman como “terroristas, opressores,
controladores e supressores da democracia”, Apollo Creed é quem faz a primeira provocação
dos Estados Unidos no filme (DOMINGOS, 2012).
Após o fim da entrevista, num diálogo entre Apollo e Rocky, a preocupação deste
primeiro está no seu desempenho:
Nota-se que o desempenho pelo qual Apollo está preocupado não é relacionado a sua
performance na luta, visto que esta ainda não ocorreu, mas na provocação aos soviéticos.
Salvo esta passagem do início da película, traz-se agora a apresentação da estrutura do
filme. Para uma melhor visualização, dividiremos o enredo da obra entre os personagens
principais que a compõe: há um inimigo, uma vítima e um mocinho. Não obstante, os elementos
de simbologia e ideologia que o filme carrega são muitos, e com objetivos muito bem definidos.
37
Pode-se ver quando Apollo fala em terceira pessoa, ele está falando do povo americano.
Ele quer lutar para mostrar que este povo é superior e para superar também a si mesmo, visto
que não lutava há 5 anos. Identificando-se, com isto, certo teor de persistência, ou mesmo, de
não-desistência dos seus objetivos. Fala-se “objetivos” tanto no сmbito pessoal de Apollo,
quanto no de representação da sociedade americana.
Cenas anteriores à luta com o soviético, é Rocky Balboa quem enfaixa suas mãos no
“camarim” do evento e num diпlogo curioso entre ambos:
40
A antiga União Soviética não reconhecia os atletas como profissionais. O filme, por sua vez, traceja bem esta
questão ao salientar que o atleta é amador.
38
Visualiza-se, através de Apollo, outra metáfora que faz alusão a um dos símbolos
comunistas e que estampa a bandeira da União Soviética – o martelo.
Figura 8 - Apollo Creed fantasiado de Tio Sam na sua apresentação para a luta com o
soviético.41
41
ROCKY IV. Direção: Sylvester Stallone. Estados Unidos: MGM, 1985.
39
soviéticos em propor uma luta no dia do nascimento de Jesus Cristo – maior ícone da
religiosidade americana.
A simbologia que permeia a película, mostra cenas antecedentes à luta de Rocky e
Drago, no momento em que chegam à casa de madeira em meio ao gelo siberiano, Paulie – um
personagem, não menos importante que os outros, amigo da família Balboa que está
acompanhando os treinamentos – logo ao chegar na União Soviética manifesta-se sobre a
monotonia do lugar como mais uma clara crítica ao modo de vida soviético: “Isto é abaixo do
padrão humano. Não tem nem TV. ” Seguido de: “Não mantemos nossa gente atrás de um muro
com metralhadoras”. Paulie é um amante da liberdade, assim como todo o povo norte-
americano.
O treinamento de Rocky é uma nítida ilustração da honestidade do povo estadunidense.
Ao passo em que utiliza tocos de árvores, pedras e cordas, demonstrando toda a humanização
deste povo, o lutador soviético está repleto de aferidores de frequência cardíaca, gráficos
computadorizados que apontam sua evolução treino após treino, uma equipe de analistas,
equipamentos de musculação de tecnologia avançada e a utilização de anabolizantes,
evidenciando que ele é uma máquina, e por quê não, aos olhos do espectador, um trapaceiro.
Por fim, a luta entre o americano e o soviético acontece. Num ambiente completamente
“soviético” – sem muitas luzes, pouca euforia e aos gritos de “Drago, Drago!” – com uma
estrela vermelha de cinco pontas acima do ringue, se deu um combate semelhante, com ambos
mostrando as suas forças e o resultado dos seus esforços. Como se acima da luta, se estivesse
lutando por um ideal. Uma ilustração nítida da Guerra Fria. Rocky Balboa vence a luta, porém,
sem matar o seu oponente. No discurso final, com um certo teor pacifista e com o público agora
gritando o seu nome, Rocky professa a eles, aos aplausos: “Se eu posso mudar, vocês podem
mudar, todo o mundo pode mudar”. Com isso, entende-se que o filme quis mostrar que a
mudança desejada por Rocky, é a mudança no estatuto da Guerra Fria, na configuração do
Sistema Internacional, através da vitória norte-americana.
40
Vimos no primeiro capítulo a definição de hard power e de soft power, dando mais
ênfase a este último. O ideólogo Joseph Nye, conceituou o hard power como aquele que é
utilizado como ferramenta para lograr objetivos através da coerção e da intimidação, podendo
ser dividido em duas vias: econômica e militar. Assim, sanções econômicas, ameaças,
diplomacia coercitiva e as guerras são vetores que instrumentam o hard power. Por sua vez, o
soft power é definido como um poder pelo qual os países exercem sua força de persuasão e de
atração para conquistarem o que desejam. Segundo o autor, a atração leva à aquiescência e à
imitação. Portanto, este, age através da atratividade da cultura, do ideário político ou de política
públicas (NYE, 2003).
Partindo deste ponto, vimos à primeira seção do trabalho e a contextualização da Guerra
Fria sob a intenção dos Estados Unidos em operar a sua diplomacia cultural. Para tanto, na
segunda seção, foram analisadas duas películas concernentes ao tema e o que o mundo assistia
à época de seus respectivos lançamentos no cinema mundial. Dito isto, este capítulo promoverá
a resolução da problematização do tema, demonstrando se o cinema, como um dos vetores da
indústria cultural, enquanto ferramenta de soft power, direta ou indiretamente, contribuiu para
o esfacelamento do Império Soviético.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, as duas nações vitoriosas – Estados Unidos
e União Soviética - viriam a configurar um sistema bipolar, e anos depois, protagonizar a Guerra
Fria.
Quando discorrido, na primeira seção deste trabalho, o conceito de soft power e a
utilização deste pelos EUA em sua política externa até a sua hegemonia no Sistema
Internacional, não fora mostrado o modo como o poder brando deste país se projetou na Guerra
Fria. Para tanto, um norte importante sobre a tomada de decisões da política externa dos EUA
viria a ser desenhado pelo que ficou conhecido como “The Long Telegram”42.
42
O documento advertia o governo norte-americano sobre possíveis intenções expansionistas da URSS,
posteriormente, servindo como um documento norteador da política externa estadunidense.
41
George Frost Kennan, diplomata americano em Moscou, não estava de acordo com as
políticas adotadas pelo presidente Franklin Roosevelt. Kennan considerava ingênuas as
concessões feitas pelos Estados Unidos a Stalin, pois não acreditava que a política de
cooperação entre os dois sistemas perdurasse por muito tempo. Durante vários meses, Kennan
tentou advertir as lideranças políticas de seu país contra a URSS, por muitas vezes, sem sucesso.
Eis que, quando a União Soviética rejeita a filiação ao Banco Mundial, a Secretaria das Finanças
sondou informações junto à sua embaixada em Moscou. Para tanto, o próprio Kennan ditou o
telegrama de resposta р Secretaria, no dia 22 de fevereiro de 1946. Nalguns excertos da “parte
5” deste documento, visualiza-se o que pode ter configurado a postura da política externa dos
EUA na Guerra Fria:
[...] têm um aparelho bem elaborado para o esforço de sua influência em outros países,
um aparelho de grande flexibilidade e versatilidade, gerido por pessoas com
experiência e habilidade em métodos secretos, presumivelmente sem paralelo na
história44 (KENNAN, George. The Long Telegram, 1946, parte 5, tradução nossa).
Kennan também advertia os EUA sobre a difícil tarefa que seria, em enfrentar o Império
Soviético, julgando como o que seria a maior tarefa que a diplomacia norte-americana já
43
In summary, we have here a political force committed fanatically to the belief that with US there can be no
permanent modus vivendi that it is desirable and necessary that the internal harmony of our society be disrupted,
our traditional way of life be destroyed, the international authority of our state be broken [...] This political force
has complete power of disposition over energies of one of world's greatest peoples and resources of world's richest
national territory, and is borne along by deep and powerful currents of Russian nationalism. Disponível em
<http://nsarchive.gwu.edu/coldwar/documents/episode-1/kennan.htm>. Acesso em 30 de abril de 2016.
44
[...] it has an elaborate and far flung apparatus for exertion of its influence in other countries, an apparatus of
amazing flexibility and versatility, managed by people whose experience and skill in underground methods are
presumably without parallel in history. Disponível em <http://nsarchive.gwu.edu/coldwar/documents/episode-
1/kennan.htm>. Acesso em 30 de abril de 2016.
42
enfrentou e, provavelmente, nunca teria uma maior a enfrentar. Seus alertas devem ser o ponto
de partida sob o qual o trabalho da política externa estadunidense, naquela conjuntura, teria de
proceder, devendo ser abordado com muita cautela no planejamento estratégico, e, se
necessário, sem nenhum esforço militar.
Tendo em vista o intento de expansão ocidental da URSS, Kennan diz que seu sucesso
dependerá do grau de coesão, da firmeza e do vigor que os países ocidentais podem reunir para
frear esses avanços, e ao fim, diz “e este é o fator que estп dentro do nosso poder de influenciar”.
Além de advertências ao governo dos EUA, Kennan também relata sobre a conjuntura
interna da URSS, a qual aponta como sendo o ponto fraco desta nação: “nunca, o povo russo
foi tão emocionalmente distante das doutrinas do Partido Comunista45 como é hoje” e que o
partido deixou de ser uma fonte de inspiração emocional ao povo. Devendo, assim, ser
relativamente fácil de combatê-los, através de um programa inteligente e muito bem construído,
ou seja, o exercício do seu soft power.
A partir das máximas deste telegrama, pode-se visualizar a necessidade da utilização do
soft power pelos Estados Unidos. Possivelmente, este documento pode ter sido considerável
para o que configurou a Doutrina Truman46 e à hipertrofia da ideia de projeção do poder brando
estadunidense, por meio de sua cultura, sendo, a indústria cinematográfica, um vetor desta.
Em 1895, pode-se dizer que surgia o cinema, quando os irmãos Lumiére inventaram um
aparelho que fazia as imagens se moverem – o cinematógrafo. Não há confirmação de que os
irmãos franceses Auguste e Louis Lumiére, de fato, inventaram, ou mesmo, em dizer que foi a
partir deles que a sétima arte teve início, mas a consequência de seu invento tornou o cinema
uma atividade lucrativa, onde ambos negociavam câmeras e filmes (MASCARELLO, 2006).
"A Chegada do Trem na Estação" (1895), foi um dos filmes patrocinados pelos Lumiére
e que estava na primeira sessão de cinema, na cave do Boulevard des Capucines em Paris. Os
filmes desta sessão, eram pequenos, comparados aos de atualmente. Possuíam,
aproximadamente, três minutos cada, sendo apresentados para cerca de 30 pessoas. As
45
Nome usado pela corrente bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) de 1952 a 1991.
Em 1925 passou a chamar-se Partido Comunista da União. Em 1934 tornou-se o Partido Comunista da União
Soviética. Finalmente, em 1952 tornou-se o Partido Comunista da União Soviética.
46
Ver página 34.
43
primeiras plateias de cinema não exigiam que os filmes lhes contassem histórias, mas que
apenas servissem de deslumbre e fascínio da reprodução do movimento de objetos animados e
inanimados.
Não muito tempo depois, a necessidade de um maior entretenimento surgiu e, com ela,
o propósito de contar histórias. Por sua vez, George Meilés revolucionou o cinema através da
adaptação literária. Meilés produziu um curta-metragem baseado na obra de outro francês, sobre
uma viagem até a Lua, fazendo desta obra, a precursora da ficção cinematográfica – “Viagem
à Lua” (1902) (SCHNEIDER, 2010).
Na década de 1910, a organização da indústria cinematográfica norte-americana e
europeia, começou a desenvolver obras que demonstrassem os avanços tecnológicos e de
indústria da época, aumentando a produção, distribuição e exibição dos filmes. Houve, também,
um aumento da duração dos filmes, maior procura de expositores por novos produtos no
mercado, em que exigiu-se a padronização das práticas de produção, bem como um aumento
da divisão de trabalho e codificação das convenções cinematográficas. A ação destes
procedimentos culminou na maximização de lucros no cinema, colocando a indústria numa
base mais estável (PEARSON, 1996).
Com a promoção de uma campanha de expansão internacional e, somada a isso, a crise
das indústrias de cinema da Europa – como consequência do início da Primeira Guerra (1914)
– houve um aumento significativo na distribuição dos filmes estadunidenses, tornando-se os
maiores produtores de filmes no mundo. De acordo com Dias, o sucesso prosseguiu com obras
que, cada vez mais, abriram os olhos da publicidade e contavam com o apoio do governo –
como o caso de "O Nascimento de Uma Nação" (1915), onde a Academia Militar dos Estados
Unidos emprestou canhões, artilharia, soldados e consultoria para as cenas de guerra – fazendo
com que o cinema fosse utilizado como uma potente arma de propaganda de ideias e políticas
de governo (DIAS, 2012).
As décadas de 1930 e 1940 foram consideradas a "Era de Ouro" do cinema americano.
Dada a recuperação da crise de 1929, o cinema foi visto como uma maneira de promover a
reconstituição moral da população, quando várias obras deste período enfatizaram o lado
humanista da sociedade. David Bordwell descreve o filme hollywoodiano clássico dessa época:
São eles: (1) a debilitação narrativa dos filmes, privilegiando o espetáculo e a ação em
detrimento do personagem e da dramaturgia; (2) a patente juvenilização/infantilização
das audiências; e (3) o lançamento por saturação dos blockbusters, reduzindo os
espaços de exibição para o cinema brasileiro e o cinema de arte internacional.
(MASCARELLO, 2006, p. 335)
47
Classical Hollywood film presents psychologically defined individuals who struggle to solve a clear-cut problem
or to attain specific goals. In the course of this struggle, the characters enter into conflict with others or with
external circumstances. The story ends with a clear achievement or nonachievement of the goals. The principal
cause agency is thus the character, a discriminated individual endowed with a consistent batch of evident traits,
qualities, and behaviours. […] the plot consists of an undisturbed stage, the disturbance, the struggle, and the
elimination of the disturbance. Disponível em
<http://faculty.washington.edu/cbehler/teaching/coursenotes/Texts/classHollcin.Bordwell.html> Acesso em 22 de
maio de 2016.
48
Destaque para o sucesso “Cantando na Chuva” (1952), dirigido e coreografado por Gene Kelly e Stanley Donen
e estrelada por Kelly, Donald O'Connor e Debbie Reynolds. O filme se passa nos anos 20 em Hollywood na
transição do cinema mudo para o cinema falado.
49
Conjunto de regras de censura, instituído no ano de 1930 nos Estados Unidos a fim de subordinar as produções
teatrais e de cinema no país a padrões determinados por um grupo de instituições religiosas capitaneado pelo
presbiteriano William H. Hays, que presidia a Motion Picture Association of America (MPAA) (NAZARIO,
2007).
45
A França foi o primeiro país a difundir suas produções cinematográficas pelo mundo,
em 1908, através da produtora Pathé-Ferres, quando esta estabeleceu uma rede de escritórios
para promover as obras dramáticas em áreas que incluíam a Europa Ocidental e Oriental,
Rússia, Índia, Cingapura e os Estados Unidos (VASEY, 1996).
Nesta época, para as produções estadunidenses, as empresas Vitagraph e Edison tinham
seus representantes na Europa, entretanto, seus representantes estavam mais interessados em
importar os filmes europeus para os Estados Unidos do que promover seu próprio produto no
exterior (VASEY, 1996).
Esta exercitação do mercado doméstico norte-americano durante anos anteriores à
Primeira Guerra, com as suas obras que não estavam sendo exportadas, lançou as bases de sua
força econômica. Isto, provavelmente, deve-se à entrada tardia dos americanos no comércio
internacional de cinema, o que pôde ter sido consequência dos altos lucros que apenas o
mercado interno gerava. Em que pese, o mercado de cinema nos Estados Unidos era, e ainda é,
o mais lucrativo do mundo (GOMERY, 1996).
Os rumos do cinema para o mundo se norteariam, basicamente, pelo oligopólio
exclusivo que as grandes empresas cinematográficas lograram para elas, protegendo
coletivamente seus interesses. Em consequência disso, após a década de 1910, as empresas
estrangeiras não tiveram acesso ao mercado americano de exposição (GOMERY, 1996).
Face ao exposto, os produtores norte-americanos acabaram tendo acesso exclusivo ao
seu próprio mercado de maneira excepcionalmente lucrativa, o que possibilitou a criação de
produções com qualidades superiores aos das produtoras europeias (GOMERY, 1996).
46
evidenciou-se que a ostentação de Hollywood vista nos filmes era um fator atraente para o
espectador mundial (VASEY, 1996).
Há registros da participação do governo americano nas ideias e nos temas escolhidos
para as telas. Roteiristas, diretores, executivos, produtores, atores, dentre outros profissionais
da mídia televisiva, publicitária e cinematográfica, receberam convites para treinamentos.
Portanto, visualiza-se todo esse planejamento, por parte dos EUA, como uma ação que
corrobora para a venda de ideias, através da atratividade de seu modo de vida e de sua cultura,
em que apercebeu-se em Hollywood a edificação da identidade nacional americana,
encorpando, assim, o seu soft power (FILHO, 2008).
Milhões de pessoas assistem nos filmes o perfeito retrato do zelo pela paz e pela
disseminação da democracia, os quais são valores que são admirados, passando a ser imitados.
Esse processo de assimilação ocorre como se fosse uma ilusão de que o mundo real é uma
extensão do que se assiste e se descobre no filme (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Tendo em vista o interesse do governo na promoção do cinema para o mundo, sendo
visto neste uma capacidade de desenvolver ideias, valores, propagandas e, mostrando sua
cultura atraente, pode-se visualizar a relevância que a indústria cinematográfica tem, tornando-
se uma ferramenta política, e, consequentemente uma arma de influência na opinião pública.
acata à propaganda estatal. A propaganda política, logo, se torna constante e tende a sensibilizar
os indivíduos e provocar paixões, objetivando assegurar o domínio sobre a emoção e mentes
das massas (CAPELATO, 1998).
A partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o cinema já ganhava destaque nos
meios de comunicação de massa, mesmo que ainda de forma modesta. Muito se deve à falta de
aperfeiçoamento técnico e da tecnologia não tão avançada da época. No entanto, na Segunda
Guerra (1939-1945), produções mais requintadas trouxeram maior fascínio ao espectador, e,
consequentemente, uma maior eficácia naquilo que se propunham a mostrar nas telas.
Lênin, nos tempos de Revolução Russa50, jп afirmava “o cinema é para nós, o
instrumento mais importante de todas as artes”, ainda, relata que as ideologias são mais
facilmente absorvidas nos momentos de lazer (KELLNER, 2001).
Um documentпrio, chamado “Why We Fight” (1942-1945) – série de documentários
encomendados pelo governo norte-americano, tendo como diretor Oscar Frank Capra e
tornando-se um sucesso de bilheteria na época. A produção desta obra era uma resposta às
produções de Leni Riefenstahl, que eram elaboradas para a Alemanha Nazista (SILVER, 2001).
Um veículo privado que cooperava para a propaganda governamental norte-americana
neste período, era a Walt Disney. Na série de Donald Duck, por exemplo, um curta chamado
“The Spirit of ‘43” (1943), explicava a importсncia de pagar impostos, e em “Der Fuhrer’s
Face” (1942), a crítica é direcionada negativamente ao nazismo (DIAS, 2012).
Passada a Segunda Guerra Mundial e iniciada a Guerra Fria, o cinema norte-americano
não poderia deixar de continuar as produções, entretanto, o alvo era outro, e, como o embate
compreendeu muito tempo (1947-1989), a maioria das obras dedicava-se a abordar
especificamente os eventos que circuncidavam sobre determinados períodos dentro da Guerra.
A maneira mais fácil de introduzir uma ideia na mente das pessoas é através do
entretenimento, pois é quando não percebem que estão sendo propagandeadas 51
(KOPPES; BLACK, 1977, p. 64, tradução nossa).
Diante disto, nos primeiros anos de Guerra Fria, a indústria cinematográfica norte-
americana voltou-se a pequenos documentпrios chamados de “newsreel”, exibidos nas salas de
cinema, geralmente antes do filme principal. Estes ilustravam, por meio de notícias e pequenas
histórias, a situação militar e social vivida no pós-Segunda Guerra. A seguir, despontavam os
50
Iniciado em 1917, uma série de conflitos derrubou a autocracia russa e levou ao poder o Partido Bolchevique,
de Vladimir Lênin.
51
The easiest way to inject a propaganda idea into most people's minds is to let it gothrough the medium of an
entertainment picture when they do not realize that they arebeing propagandized.
49
longas metragem, com fortes propagandas anticomunistas, ou mesmo com justificativas sobre
alguma ação do governo (SILVA, 2004).
“Os Boinas Verdes” (1968), por exemplo, foi uma película financiada e diretamente
aprovada pelo presidente americano da época, Lyndon Johnnson, em que objetivava construir
uma imagem heroica e demonstrar a boa índole do americano, frente à manutenção da Guerra
do Vietnã. Outro exemplo é “Rambo 3” (1988), onde o exército americano usa um mercenário
para ajudar o Talibã, no Afeganistão, para expulsar o imperialismo soviético, fazendo utilização
de bases militares, aviões, helicópteros e armamento oficiais nas gravações (DIAS, 2012).
Visualiza-se, portanto, uma clara relação entre o governo norte-americano e as grandes
empresas de cinema de Hollywood. Ao passo em que Hollywood necessitava de recursos
capitais para manter o cinema no mercado, devido à crise do pós-Segunda Guerra, o governo
americano precisava de uma forma de divulgação de sua ideologia perante a configuração
bipolar que se instalava (WAGNLEITNER, 1992).
Sob esta ótica, traz-se o exemplo de Dr. Fantástico (1964), em que versava sobre uma
possível hecatombe nuclear, devido aos ocorridos na Crise dos Mísseis Cubanos e Rocky IV
(1985), onde refere-se ao momento de encaminhamento para o fim do embate, numa abordagem
muito mais ideológica e metafórica, com ilustrações das benesses do capitalismo e os agravos
do socialismo, em que ambos os países, no maior de seu esforço, terminam pacificamente a
Guerra Fria numa luta de boxe, como uma metáfora do real.
Deste modo, sabendo-se que a utilização da indústria cinematográfica como ferramenta
política surtiu efeitos nos objetivos norte-americanos, examina-se, esta, como um vetor de suma
relevância, principalmente na Guerra Fria, onde a ideologia demandava largos esforços.
Quando o sistema internacional deixou de ser bipolar com a derrocada da União Soviética,
entende-se, a partir do que fora analisado dantes, que o fortalecimento do fator cultural
estadunidense durante o conflito, além de tantas outras motivações, pode ter sido indiretamente
fulcral no esfacelamento da nação socialista.
52
Político estadista russo, tendo sido o último líder da União Soviética, entre 1985 e 1991.
51
crítica como “anticomunista”, estampa através das telas, um dos momentos mais tensos já
vividos na história. O temor sobre uma catástrofe nuclear movia o mundo todo no início dos
anos 1960. Para tanto, rememorando a obra: o presidente dos Estados Unidos está
impossibilitado de contatar os aviões da Força Aérea americana, que têm como alvo a URSS.
Posteriormente, um premier soviético o diz que caso o bombardeio ocorra, um contra-ataque
automático será realizado, reduzindo o mundo a cinzas. É provável que este filme não tenha
sido produzido para a grande massa, visto o seu alto teor de humor satírico, com largas críticas
aos dois polos, mas que supostamente seria compreendido por um público mais atento da
geopolítica existente. Nestes termos, Nye salienta que para se obter êxito no exercício do soft
power, deve-se atrair os olhos de públicos específicos e, ainda, esta atração deve influenciar o
resultado da sua política (NYE, 2004).
A outra película analisada - Rocky IV – diferente de Dr. Fantástico, é uma produção
para a grande massa, com uma distribuição muito maior e com um roteiro simples de
compreender. Elenca-se num outro período da Guerra Fria, já encaminhando-se ao fim desta.
No início da década de 1980, a política de Ronald Reagan para a Guerra Fria configurava uma
corrida armamentista entre os dois polos, não com vistas a atacar diretamente um ao outro, mas
a somar e acumular contingentes militares. Em face disto, a obra não desvela-se em retratar o
quadro militar deste período - condenando a ocupação soviética no Afeganistão, por exemplo -
mas incumbe-se, através de diálogos e de uma ampla simbologia, em retratar o excelente estilo
de vida norte-americano em contraste com o soviético, como sendo vítima de um sistema
inviável frente ao mundo globalizado que surgirá. Neste contexto, destaca-se o final do filme,
quando Rocky vence a luta, discursando ao público soviético: “Se eu posso mudar, vocês podem
mudar, todo o mundo pode mudar”. Deduzindo-se, assim, que a mudança desejada pelo norte-
americano é a mudança no estatuto da Guerra Fria, na configuração do Sistema Internacional,
através da vitória dos Estados Unidos, que, na soma de seus esforços – tanto na luta de boxe do
filme, quanto no mundo real – teve, indiscutivelmente, maior êxito.
Portanto, atentando-se ao contexto em tela, vê-se na indústria cinematográfica norte-
americana uma forte ferramenta de soft power na era da Guerra Fria. Diante dos longas-
metragens selecionados para as respectivas análises empíricas desta suposição, visto os seus
distintos períodos de lançamento, porém análogos perante a relação real EUA – URSS, pode-
se inferi-los como impulsores da ideologia e política estadunidense.
Sob a ideia de que o filme é uma força elementar para a formação de opinião, tendo em
vista a incapacidade de percepção que, geralmente, o espectador tem no momento em que o
assiste, observa-se que a mensagem passada pode ser facilmente transmitida e, posteriormente,
52
aceita. Neste contexto, considera-se que os EUA empregaram a sétima arte na Guerra Fria para
propagar, direta ou indiretamente, a sua ideologia através de uma premissa do soft power de
Nye, qual seja, a atratividade da cultura. Por fim, haja vista o soft power estadunidense ter sido
mais efetivo que o soviético, observa-se uma coeficiente contribuição para o fim da Guerra Fria
e ao subsequente esfacelamento da URSS.
53
CONCLUSÃO
mundial: ambos os polos estão nos seus limites e vencerá a Guerra Fria aquele que ainda tiver
uma última reserva de forças. Hipoteticamente, a reserva destas forças é o soft power norte-
americano, o qual mostrou-se muito mais pontual e, na inserção de sua cultura,
excepcionalmente mais atrativo.
Portanto, visualiza-se que o cinema, enquanto vetor desta indústria cultural, colaborou
para o fortalecimento do soft power norte-americano na Guerra Fria, ao passo em que a
influência cultural soviética estava se esvaindo, provavelmente, devendo-se ao fato de que a
pecúnia que lhe restara esteve, por anos, direcionada ao setor militar, descuidando-se de outros
setores não menos importantes, como a sua cultura.
Deu-se o fim da Guerra Fria, em novembro de 1989, historicamente marcado pela queda
do muro de Berlim, com os Estados Unidos vitoriosos e prevalecendo o seu modelo de
democracia livre sobre o modelo socialista, como o mais bem-sucedido do século XX. Dezenas
de situações políticas, sociais e econômicas motivariam a derrocada do Império soviético
(1991), sem embargo, diante do que fora analisado, viu-se que boa parte das obras do cinema
norte-americano, enquanto dilatador do seu soft power, pode ter sido um elemento
indiretamente expressivo para o fim desta nação socialista.
55
REFERÊNCIAS
BLACK, Jan K. United States Penetration of Brazil. Manchester University Press, 1977.
BORDWELL, David. The classical Hollywood cinema: Film style and mode of production
to 1960. New York: Columbia University Press, 1985. Disponível em
<http://faculty.washington.edu/cbehler/teaching/coursenotes/Texts/classHollcin.Bordwell.htm
l> Acesso em 22 de maio de 2016.
BOYER, Paul. “Dr. Strangelove” in Past Imperfect: History according to the Movies. New
York: Henry Holt and Company, 1995.
CHOMSKY, Noam. Rumo a uma nova guerra fria. Política externa dos EUA, do Vietnã a
Reagan. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007.
DIAS, Leandro. Cinema e Agitprop do Sistema (parte 2). Rio Revolta, Rio de Janeiro, 18 nov.
2012. Blog. Disponível em: <http://riorevolta.wordpress.com/2012/11/18/cinema-
eagitprop2/>. Acesso em 6 de maio de 2016.
DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick: Uma denúncia
satírica às forças armadas, à política e ao progresso tecnológico da Guerra Fria. Brasil: Revista
de História e Estudos Culturais, 2014.
DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. Rocky IV: História, Cinema e Esporte na Guerra Fria.
Rio Grande do Sul: Revista de Artes e Humanidades. n. 1, 2013.
FERGUSON, Niall. Hegemony or empire? New York: Foreign Affairs, p. 154-161, 2003.
FERNANDES, Luís. URSS ascensão e queda: a economia política das relações da União
Soviética com o mundo capitalista. São Paulo: Anita Garibaldi, 1992.
GEERTZ, Clifford. The Interpretation of Cultures. Nova York: Basic Books, 1973.
GOMERY, Douglas. The Hollywood Studio System, 1930-49. Hollywood: Critical Concepts
in Media and Cultural Studies, v. 1, 2004.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914 – 1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
HODGSON, Godfrey. The Ideology of the Liberal Consensus. WH Chafe and A. Stikoff, A
History of Our Time: Readings on Post-War America, p. 57-71, 1976.
JOFFE, Josef. The Perils of Soft Power. New York: The New York Times Magazine, v. 14,
2006.
KOPPES, Clayton R.; BLACK, Gregory D. Hollywood Goes to War: How Politics, Profits an
Propaganda Shaped World War II. EUA: University of California Press, 1977.
LILLO, Pedro Antonio Martínez; CASTAÑARES, Juan Carlos Pereira. Documentos básicos
sobre Historia de las Relaciones Internacionales (1815-1991). 1995.
MALAND, Charles. Dr. Strangelove (1964): Nightmare comedy and the ideology of liberal
consensus. Estados Unidos: American Quarterly, v. 31, n. 5, p. 697-717, 1979.
MOURA, Gerson. Tio Sam Chega ao Brasil: A Penetração Cultural Americana. Brasília:
Brasiliense, 1984.
NAZARIO, Luiz. O Outro Cinema. Minas Gerais: Revista de Estudos de Literatura (UFMG),
v. 16, p. 94-109, 2007.
NYE, Joseph S. Bound to lead: The changing nature of American power. New York: Basic
Books, 1990.
____________. Soft power: The Means to Success in World Politics. 1ª. ed. United States:
PublicAffairs, 2004.
____________. The Paradox of American Power: Why the World's Only Superpower Can't
Go it Alone. United States: Oxford University Press, 2003.
____________. Think again: Soft power. Foreign Policy, v. 1, United States, 2006.
Obama wins more food aid but presses African nations on corruption. New York Times.
Disponível em < www.nytimes.com/2009/07/12/world/africa/12prexy.html> Acesso em 29 de
março de 2016.
PEARSON, Roberta. Early Cinema. In: NOWELL-SMITH, Geoffrey (Org.). The Oxford
History of World Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996.
RAMONET, Ignácio. Guerras do Século XXI: Novos Temores e Novas Ameaças. Petrópolis:
Vozes, 2003.
ROSENBERG, Aaron. The Yom Kippur War. New York: The Rosen Publishing Group,
2004.
SCHNEIDER, Steven Jay. 1001 filmes para ver antes de morrer. Rio de Janeiro: Sexante,
2010.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Guerras e cinema: um encontro no tempo presente. Rio de
Janeiro: Tempo, n.16, p. 93-114, 2004.
58
SILVER, Charles. Why We Fight: Frank Capra’s WWII Propaganda Films. In.: The Museum
of Modern Art. Inside/out. New York: 2001. Disponível em:
<www.moma.org/explore/inside_out/2011/06/07/why-we-fight-frank-capras-
wwiipropaganda-films/>. Acesso em: 12 de maio de 2016.
STANNARD-STOCKTON, Sean. Philanthropists “soft power” may trump the hard pull of
purse strings. The Chronicle of Philanthropy, Washington D.C., 2010.
STREET, John. Politics and Popular Culture. New Jersey: Blackwell, 1997.
TARR, David. Nos bastidores da Guerra Fria. Rio de Janeiro: Victor Publicações, 1966.
URICCHIO, William. The First World War and the Crisis in Europe. In: NOWELL-
SMITH, Geoffrey (Org.). The Oxford History of World Cinema. Oxford: Oxford University
Press, 1996. p. 113-128.
VASEY, Ruth. The World-Wide Spread of Cinema. In: NOWELL-SMITH, Geoffrey (Org.).
The Oxford History of World Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 90-113.
WAGNLEITNER, Reinhold. American Cultural Diplomacy, the Cinema, and the Cold War in
Central Europe. Minnesota: Working Paper, v.1, abr-1992, 1992. Disponível em:
<www.cas.umn.edu/assets/pdf/WP924.PDF >. Acesso em 15 de maio de 2016.
Filmografia:
DR. Fantástico. Direção de Stanley Kubrick. Produção de Stanley Kubrick. Columbia Pictures
Corporation, 1964. 1 DVD (93 min). Título Original: Dr. Strangelove: or how I learned to stop
worrying and love the bomb. Estados Unidos/Reino Unido.
ROCKY IV. Direção de Sylvester Stallone. Produção de Sylvester Stallone, Irwin Winkler e
Robert Chartoff. Metro Goldwyn Mayer (MGM), 1985. 1 DVD (91 min). Título Original:
Rocky IV. Estados Unidos.
59
ANEXOS
60
Anexo 1 – Capa de Dr. Fantástico ou: como aprendi a parar de me preocupar e amar a
bomba
61
Anexo 2 – Presidente Muffley e a indignação sobre a ação dos aviões terem saído de seu
controle
Anexo 3 – Suposição de que a água dos americanos teria sido fluoretada pelos soviéticos
62
Anexo 4 – Escritos que decifrariam o código para cessar os aviões bombardeiros à URSS
Anexo 8 – Placa com o lema dos militares americanos (“Paz é Nossa Profissão”), seguido
de cenas de explosões e tiros