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RIO DE JANEIRO
JULHO – 2015
O “HOMEM DOS PEDALINHOS”
[VERSÃO CORRIGIDA]
RIO DE JANEIRO
JULHO - 2015
2
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada por:
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MEMBROS SUPLENTES
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5
RESUMO
6
ABSTRACT
The main objective of the present study is to determine how the Brazilian government
authorities handled the first major public case of an alleged Nazi war criminal in Brazil
during the postwar years: the Cukurs’ Case. This work also has the objective of under-
standing the specific contexts, the social and political-institutional actors implicated in
this case. In mass culture and media, the immigration and the presence of the Latvian
Herberts Cukurs in Brazil has been taken very often as an example of the supposed pro-
tection given to Nazi war criminals by the Brazilian government in the postwar years. In
addition, the case has been analyzed from comparative perspective, alongside other such
cases, in Brazil and abroad. This work also intends to investigate to what extent this
analysis finds or doesn’t find collaboration and support in the documents. Among the
main authorities focused in this thesis are the Ministry of Justice and Internal Affairs,
the Ministry of Foreign Affairs and the Israeli Federation of Rio de Janeiro.
7
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
HICEM – HIAS-CIA-EMIGDIRECT
8
NBC – National Broadcasting Company
RSHA – Reichssicherheitshauptam
SD – Sicherheitsdienst
SS – Schutzstaffel
UH – Última Hora
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 13: Cukurs entre outros pilotos da Divisão de Aviação Letã...................... 100
10
Imagem 21: Imagem do Gueto de Riga.................................................................... 109
11
Imagem 41: Defende-se o Homem dos Pedalinhos – Revista da Semana................ 170
Imagem 50: Carrasco nazista quer ser judeu, diz Diário da Noite............................ 242
Imagem 53: Agentes da Polícia de São Paulo protegem família Cukurs.................. 253
Imagem 57: Imprensa diz ter recomeçada a caça a Cukurs no Brasil....................... 282
Imagem 58: Baú em que o corpo de Cukurs foi deixado após morto....................... 299
12
QUADROS E TABELAS
13
AGRADECIMENTOS
Você só descobre realmente que uma tese de doutorado é um trabalho coletivo quando
chega aos agradecimentos. Muita gente boa me ajudou a elaborar este trabalho. Muita
gente mesmo: no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília, em Montevidéu, em Riga,
em Nova York, em Lisboa, em Berlim, em Israel e em Londres. Ufa! Se essa tese foi
concluída é porque pessoas queridas se importaram comigo nos últimos quatro anos em
todos esses lugares incríveis. A tarefa é difícil, mas vou tentar lembrar de todos.
Aos professores Luis Edmundo de Souza Moraes e Fabio Koifman, também tenho uma
dívida de gratidão e tanto. E não digo isso apenas pelo nosso encontro na qualificação,
mas pelos encontros anteriores e posteriores a ela, formais e informais, combinados e
fortuitos. Vocês me acompanharam em vários momentos importantes, sempre atentos e
solícitos aos meus dilemas. Sou superfã de vocês. Aos professores Francisco Carlos
Teixeira da Silva e Jeffrey Lesser, agradeço muito por estarem comigo na defesa. É uma
honra contar com vocês nesse momento tão importante da minha carreira. Não tenho a
menor dúvida de que escolhi as pessoas certas para avaliarem meu trabalho.
Agradeço aos meus colegas de NIEJ/UFRJ: Leonel Caraciki, Felipe de Menezes Silva,
Bruna Rodrigues, Leonardo Perin Vichi, Fernanda Pissurno e, especialmente, a Michel
Gherman por traduções, contatos, dicas e sugestões. Dos meus alunos na graduação,
agradeço a Carol Mendes pela valiosa ajuda na Biblioteca Nacional. Não posso esque-
cer também dos amigos de PPGHIS/UFRJ, turma 2011, que compartilharam comigo
muitos bons momentos nesses últimos anos. Um especial obrigado ao amigo, consultor,
companheiro de viagens, festas e jogos do Mengão no Maracanã, Zózimo Trabuco. E
que eu não me esqueça de outros queridos historiadores e historiadoras espalhados por
aí e com os quais dividi sofrimentos, expectativas e, principalmente, muitas alegrias:
14
Felipe Teixeira, João Teófilo, Renata Brotto, Mariana Damasco, Rodrigo Maia e Letícia
Pumar. Obrigado pelos almoços, cervejas, conversas, festas e tudo mais.
15
Pessoas a quem devo agradecer por me ajudarem de mil e uma formas: Taís Campelo,
Jurandir Malerba, Carlos Fico, Andrea Casa Nova Maia, Manolo Florentino, Samuel
Scolnicov, Hugo Wizenberg, Gabriela Costa, Ilana Strozenberg, Aivars Stranga, Maris
Goldmanis, Marcos Chor Maio.
Um muito obrigado ao CNPq pela bolsa que me foi concedida. É muito bom contar com
um país que investe em seus pesquisadores. Não há avanços sem ciência e tecnologia.
Agradeço à família que ganhei nos últimos anos: Ruth, “Comandante” Jonathas, Xonso
(tá me ouvindo?), Biancão, Tito Teté, Tia Kátia, Ingrid, David e Vovó Maria. Toda essa
turma acompanhou em cada momento dessa tese, sobretudo os difíceis. Todo dia torce-
ram por mim e entenderam as minhas eventuais ausências. Valeu, galera. Acabou!
Agradeço aos meus pais por terem feito de tudo para que eu chegasse até onde eu che-
guei. Acho que ninguém em nossa família se tornou doutor. Nada mau para aquele me-
nino que foi reprovado duas vezes seguidas na antiga quinta série, não acham? Obrigado
a você, Regina, e a você, Serafim, pelos sacrifícios que só nós sabemos: do suco de gro-
selha na escolinha ao curso pré-vestibular. Um obrigado também ao meu irmão Fábio
Leal, sujeito talentoso e que, tal como eu, possui um milhão de inquietações. Um beijo
para minha avó e minha tia, pessoas que se foram durante essa jornada, mas que ainda
enchem meu coração de felicidade. Dedico essa tese também a vocês duas.
Finalmente, agradeço ao amor da minha vida, Ana Paula. Você esteve comigo em cada
segundo. Nossa, como precisei de você nesse doutorado! Você leu cada linha que escre-
vi. Sugeriu estruturas, debateu conteúdo, fez revisão editorial. Acalmou nosso Xurupi
quando ele tentava arrancar as teclas do meu teclado como se não houvesse amanhã (ele
fazia de tudo para chamar minha atenção). Além de tudo isso, você foi a pessoa que
soube me acalmar, que teve paciência nos meus momentos de fraqueza, de desespero,
de solidão, a pessoa que cuidou de tudo. Obrigado por compreender o doutorando que
habitou nossa casa entre 2010 e 2015. Essa tese não seria possível sem a sua ajuda. Vo-
cê foi incrível. Obrigado por ser quem você é e por me permitir ser quem eu sou.
16
Este trabalho é dedicado à minha mãe, Regina,
meu pai, Serafim, meu irmão, Fabio, e minha
esposa, Ana Paula.
17
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................. 22
18
3.3. Expulsão e extradição: duas possibilidades....................................................... 172
3.13. Foreign Office: “os brasileiros estão batendo na porta errada”....................... 218
19
4.6. Autoridades judaicas: conversas sobre extradição............................................. 270
Conclusão................................................................................................................. 303
Fontes........................................................................................................................ 318
20
Se não obstante, a história só pudesse justificar-se pela sua
sedução, quase universalmente sentida; se apenas fosse,
em suma, um aprazível passatempo, como o bridge ou a
pesca à linha, valeria ela o trabalho que nos dá escrevê-la?
Marc Bloch1
1
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965. p.15
21
INTRODUÇÃO
Durante minha pesquisa no mestrado, quando trabalhei com discursos de memória
sobre os 60 anos da libertação dos campos de extermínio, 1 acabei me deparando, oca-
sionalmente, com reportagens que afirmavam que o governo brasileiro, a exemplo do
argentino, protegera criminosos nazistas no pós-guerra e que o Brasil, muito em fun-
ção disso, havia se transformado em um verdadeiro paraíso nazista. Eu já tinha escu-
tado esse tipo de enunciado antes, mas pela primeira vez pensei nele como um pode-
roso discurso de memória. Na época, criminosos nazistas não eram o tema da minha
pesquisa, mas acabei guardando aquele material para, em breve, voltar a ele.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Lembrar ou repetir: práticas discursivas da imprensa e a cons-
trução da memória do Holocausto. Dissertação. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS), 2009.
2
Esse debate teve início em 1987 quando a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro defendeu sua tese
de doutorado, O Antissemitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. O trabalho representou um
22
gem do Estado, desta vez no pós-guerra, também não deveria ser relativizada?
Com base nessas inquietações, elaborei um projeto de doutorado que tinha o obje-
tivo de analisar como o Estado brasileiro se posicionou diante dos quatro maiores ca-
sos públicos de criminosos nazistas no Brasil. O primeiro desses casos refere-se a
Herberts Cukurs, colaboracionista na Letônia ocupada, denunciado como criminoso
de guerra no Rio de Janeiro, em meados de 1950; o segundo, a Franz Paul Stangl,
comandante dos campos de extermínio de Treblinka e de Sobibor, preso em São Pau-
lo, em 1967; o terceiro, a Gustav Franz Wagner, subcomandante de Stangl em
Treblinka, preso também em São Paulo, em 1978; e o quarto, finalmente, a Josef
Mengele, autor de experimentos com prisioneiros de Auschwitz, encontrado morto
em São Paulo, em 1985. O projeto foi aprovado e, assim, ingressei como doutorando
no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, em março de 2011.
Nos primeiros meses de pesquisa, notei, contudo, que seria necessário ajustar o
meu objeto de estudo. Em primeiro lugar, porque os quatro anos do doutorado se re-
velaram insuficientes para dar conta de todos os casos que eu tinha selecionado. Isso
ficou muito claro quando me deparei com a real extensão das fontes primárias. Eu não
esperava encontrar tão vasto material. Em segundo lugar, porque descobri que tais
casos tinham naturezas muito distintas entre si. Isso poderia comprometer o trabalho
de uma análise comparada. Levando em conta esse cenário, fiz um novo recorte: foca-
ria minha investigação no “Caso Cukurs”.
23
no Brasil. Até então, as autoridades brasileiras não tinham se confrontado de forma
tão direta com a questão dos crimes de guerra nazistas. Em segundo lugar, pelo que
pude depreender da minha pesquisa inicial, tal caso foi o que mais gerou críticas ao
governo brasileiro. E isso em um período extenso: do imediato pós-guerra ao debate
da prescrição dos crimes nazistas na Alemanha. Em terceiro, mesmo hoje, passados
50 anos de sua morte, Cukurs ainda é tomado em diversas narrativas como exemplo
de proteção que o governo brasileiro teria dado a criminosos nazistas.3 Portanto, tor-
nou-se uma espécie de índice para se tratar do assunto e se reforçar a imagem a ser
investigada. E, finalmente, o Caso Cukurs mobilizou diversos setores da sociedade
brasileira, além de organismos governamentais e não governamentais estrangeiros.
Neste sentido, a pergunta que orienta esta tese é: como as autoridades brasileiras se
posicionaram diante do primeiro grande caso público de um estrangeiro acusado de
crimes nazistas no Brasil, o Caso Cukurs?
Essa pergunta se desdobra em outras: o que o Caso Cukurs pode nos dizer a respei-
to das imagens correntes sobre criminosos nazistas criadas e disseminadas no pós-
guerra pela mídia e pela cultura de massa? As autoridades brasileiras protegeram Cu-
kurs? Que tipo de mobilização um colaboracionista conseguiu provocar em um país
aparentemente tão distante dos crimes do nacional-socialismo? Em que medida a for-
ma como o governo se posicionou diante deste caso se relaciona com a conjuntura
política internacional do pós-guerra? Ao responder a essas perguntas, minha intenção
é iluminar um campo de estudos importante, mas ainda praticamente inexplorado pela
historiografia: a presença de criminosos nazistas no Brasil.
O Caso Cukurs
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Folha de S. Paulo, “Polícia brasileira protegeu nazista acusado de crimes de guerra”, 06/08/2006. C1.
24
Para todos os efeitos, o proprietário dos pedalinhos da Lagoa era um refugiado dos
horrores do pós-guerra e da perseguição comunista. Cukurs era um símbolo do imi-
grante que, depois de escolher o Brasil para recomeçar sua vida, alcançou a tranquili-
dade e a bonança. Cukurs era um símbolo do Brasil como pátria acolhedora.
O Caso Cukurs teve uma enorme exposição midiática. Em grande medida, isso se
deu por conta de seu ineditismo. Como vimos há pouco, até então o governo brasilei-
ro não tinha se deparado com a questão de criminosos nazistas em seu território. Mas
também é verdade que os elementos “fantásticos” que gravitavam em torno de seu
protagonista contribuíram para isso: além de ser o proprietário dos pedalinhos da La-
goa Cukurs – o que por si só já era suficiente para provocar um escândalo de propor-
ções públicas –, Cukurs tinha lutado na Guerra de Independência da Letônia e vencera
diversos prêmios internacionais na aviação civil na década de 1930. E o que dizer da
informação praticamente desconhecida ainda hoje de que Herberts Cukurs imigrou
para o Brasil acompanhado de uma jovem judia letã cuja vida ele salvou dos nazistas?
Em termos de recorte temporal, o Caso Cukurs destaca-se por sua longa duração.
Ele começa em dezembro de 1945, quando o Ministério das Relações Exteriores
(MRE), no Rio de Janeiro, concede o visto permanente a Cukurs, e termina em março
de 1965, data em que a imprensa internacional anuncia seu falecimento. Sua morte, a
25
propósito, como todo o caso, está imersa em polêmica: Cukurs foi assassinado por
agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, durante uma aparente viagem de ne-
gócios ao Uruguai, o que se confirmou anos depois, em 2004, com a publicação de
um livro relatando os detalhes da operação escrito pelos responsáveis por sua morte.
É importante sublinhar que este trabalho não é uma biografia de Cukurs, muito
embora ao tratarmos do posicionamento do Estado brasileiro no caso seja inevitável
recuperar parte fundamental de sua trajetória até o Brasil. Esse trabalho também não
quer responder se Herberts Cukurs cometeu ou não cometeu todos os crimes que a
Federação acima mencionada lhe atribuiu. Esta é certamente uma questão historiográ-
fica relevante, mas deixo-a aos cuidados dos historiadores letões. Por fim, entendo
que os resultados advindos desta pesquisa não explicam a posição do Estado brasilei-
ro em outros casos. O que eu pretendo mostrar aqui, ao contrário, é a necessidade de
se evitar fórmulas, generalizações e esquemas preestabelecidos para se pensar a ques-
tão dos criminosos nazistas no Brasil. O que vale para um caso não vale necessaria-
mente para os demais.
Lacunas e referências
Surpreende o fato de a historiografia ter ignorado durante tanto tempo o caso Cu-
kurs e o tema dos criminosos nazistas no Brasil. Durante a elaboração do projeto desta
tese, escutei de colegas historiadores que este era um tema menor para a historiogra-
fia, pouco substancial, servindo mais ao apetite de jornalistas sensacionalistas do que
a pesquisadores acadêmicos. Mas a partir de quais referências tal questão seria consi-
derada “menor”? Se o nacional-socialismo e os crimes cometidos em seu nome foram
um dos acontecimentos mais importantes da história contemporânea, como podería-
mos desprezar o lugar que aqueles que cometeram tais crimes tiveram em nosso país?
26
Ao discutir a legitimidade das questões na história, Antoine Prost sublinha que “a
definição do campo variável das questões legítimas constitui um desafio de poder no
interior da profissão de historiador; com efeito, os detentores das posições de poder
são quem decide os questionamentos pertinentes”. Para Prost é preciso desnaturalizar
a ideia de que certas questões são mais ou menos valiosas do que outras: “com que
direito poderíamos afirmar que as paixões de Madame de Pompadour ou o assassinato
do almirante e colaboracionista F. Darlan são questões fúteis, ao passo que se justifica
a elaboração da história relativa aos mineiros de Carmaux (R. Trenpé), à representa-
ção do litoral (A. Corbin) ou ao livro no século XVIII? ”4
Lucien Febvre afirmou, certa vez, que uma das partes mais apaixonantes do traba-
lho do historiador consiste em levar as coisas silenciosas a se tornarem expressivas.5
Um dos meus objetivos com esse trabalho é justamente mostrar a expressividade do
Caso Cukurs e da questão dos criminosos nazistas no Brasil. Tal questão é parte cons-
titutiva da história do país e reflete, ao mesmo tempo, os mais recentes e renovadores
movimentos historiográficos. Entendo esse trabalho como tributário da chamada nova
história política, que recuperou as temporalidades de curto prazo, o estudo de indiví-
duos, de casos, de incidentes, mas não como objetos que iluminam só a si mesmos,
mas daquilo que está ao seu redor: governos, sociedades, instituições, políticas, etc.
Como apontei há pouco, quando iniciei essa pesquisa, cinco anos atrás, os historia-
dores não tinham se debruçado diretamente sobre a questão dos criminosos nazistas
no Brasil. Durante a elaboração desta tese, porém, foram concluídas duas dissertações
que ajudam a diminuir as lacunas na área e nos servem de referência historiográfica.
A primeira se intitula Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz
Stangl e Gustav Wagner em uma análise histórico-jurídica, de Felipe Cittolin Abal,
defendida em 2012, na Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.6 O traba-
lho, como o próprio título revela, se ocupa do julgamento dos pedidos de extradição
de Franz Stangl (extraditado) e Gustav Wagner (não extraditado) pelo Supremo Tri-
bunal Federal (STF). A segunda dissertação a qual me refiro se intitula O Imaginário
da formação do IV Reich na América Latina após a Segunda Guerra Mundial, de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.81
5
FEBVRE apud PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.77
6
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico-jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH), 2012.
27
Marcos Eduardo Meinerz, defendida na Universidade Federal do Paraná em 2013.7 O
objetivo de Meinerz neste trabalho é estudar as condições de produção de discursos
sobre a formação de um IV Reich na América Latina, tão difundidos em livros e re-
portagens nas décadas de 1960 e 1970. Meinerz refere-se a esses discursos como um
“novo perigo alemão”, uma referência direta ao “perigo alemão” estudado pelo histo-
riador René Gertz.8 Se o “perigo alemão” de Gertz refere-se à paranoia – difundida na
segunda metade do século XIX e início do XX – de que os imigrantes e descendentes
alemães residentes no sul do país faziam parte de um plano expansionista da Alema-
nha na região sul da América Latina, o “novo perigo alemão” de Meinerz refere-se
especificamente a um suposto plano nazista de formação do IV Reich no pós-guerra.9
Salvo essas duas dissertações, vale mencionar que há algumas referências ao Brasil
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
MEINERZ, Marcos Eduardo. O imaginário da formação do IV Reich na América Latina após a Se-
gunda Guerra Mundial (1960-1970). Dissertação. Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-
Graduação em História (PPGHIS), 2013.
8
GERTZ, René Ernaini. O perigo alemão. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade, 1991.
9
MEINERZ, op. cit., p.33.
10
Ibidem, p.47.
28
em obras que examinam a questão dos criminosos nazistas no contexto latino-
americano. Entre os trabalhos de maior qualidade estão El genocidio ante la historia y
la naturaleza humana, organizado por Beatriz Gurevich e Carlos Escudé;11 Nazis on
the Run, de Gerald Steinacher;12 Hunting Evil, de Guy Walters;13 e Nazi-Jagd: Süd-
amerikas Diktaturen und die Ahndung von NS-Verbrechen, de Daniel Stahl.14 Contu-
do, dada a perspectiva ampla dessas obras, as análises sobre o Brasil são limitadas.
As obras historiográficas que mencionam Cukurs são ainda mais escassas. No Bra-
sil, pude encontrar apenas três trabalhos. O primeiro é a anteriormente citada disserta-
ção de Felipe Cittolin Abal. Trata-se de uma citação curta. O autor afirma que Gustav
Wagner, logo depois de descoberto no Brasil, estaria temeroso em ser sequestrado e
levado para Israel, como Eichmann, ou executado, como Cukurs.15 O segundo traba-
lho é Intolerância e resistência – a saga dos judeus comunistas entre a Polônia, a Pa-
lestina e o Brasil (1935-1975), de Zilda Márcia Grícoli Iokoi. Nesta obra, Cukurs é
mencionado ainda mais brevemente. Ikoi refere-se a ele apenas como o motivo de um
protesto realizado por judeus de esquerda em 1950.16 O terceiro é o livro Cidadão do
Mundo, de Maria Luiza Tucci Carneiro. Aqui, Cukurs é citado ao lado de Martin
Bormann, Adolf Eichmann, Franz Stangl, entre outros que teriam chegado à América
Latina via “rota dos ratos”, nome dado às rotas usadas por criminosos nazistas.17 Nes-
te caso, no entanto, a autora não problematiza o fato de que, ao contrário das outras
figuras citadas ao seu lado, Cukurs nunca fora de fato réu e tampouco condenado.
Os historiadores letões costumam citar Cukurs com mais frequência que os brasi-
leiros. Mas, nestes casos, o pano de fundo é a sua participação no extermínio dos ju-
deus na Letônia e não os seus anos no Brasil. Em The Holocaust in Latvia, 1941-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
GUREVICH, Beatriz; ESCUDÉ, Carlos. El genocidio ante la historia y la naturaleza humana.
Buenos Aires: Latinoamericano S.R.L, 1994.
12
STEINACHER, Gerald. Nazis on the run: how Hitler's henchmen fled justice. Nova Iorque: Oxford
University Press Inc., 2011.
13
WALTERS, Guy. Hunting Evil: the Nazi war criminals who escaped and the quest to bring them to
justice. Nova Iorque: Broadway Books, 2010.
14
STAHL, Daniel. Nazi-Jagd: Südamerikas Diktaturen und die Ahndung von NS-Verbrechen. Düssel-
dorf: Wallstein Verlag, 2013.
15
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico-jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, 2012, p. 42.
16
IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Intolerância e resistência: a saga dos judeus comunistas entre a Polô-
nia, a Palestina e o Brasil (1935-1975). São Paulo: Editora Humanitas, 2004, p. 328.
17
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus
refugiados do nazifascismo (1933-1948). São Paulo: FAPESP, 2010, p. 92.
29
1944: the missing center, de Andrew Ezergailis, são mencionados vários depoimentos
de sobreviventes do Holocausto na Letônia que relacionam Herberts Cukurs com o
Comando Arājs, unidade da polícia da Letônia controlada pela SD (Sicherheitsdienst)
e liderada pelo colaboracionista Viktors Arājs, julgado e condenado em 1979. 18 Esses
depoimentos também aparecem em outro livro, Nazi-Soviet – Disinformation about
the Holocaust in Nazi-occupied Latvia. Daugavas Vanagi: Who are they? – Revisited,
dos historiadores E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Petersons e A. Ezergailis.19
Em obras não acadêmicas, Cukurs já é bem mais mencionado. O mais antigo regis-
tro que se tem conhecimento é Churbn Lettland: the destruction of the Jews of Latvia,
de Max Kaufmann, publicado em 1947.20 Kaufmann, ao contar a história sobre o
Gueto de Riga, ele próprio um sobrevivente, descreve Cukurs como “assassino”. Cer-
ta vez, escreve o autor, Cukurs desceu armado de seu carro e deu várias instruções aos
guardas letões que se encontravam dentro do Gueto.21 Outro desses registros memori-
alísticos, mas bem mais recente, é The boxer’s story – fighting for my life in the Nazi
camps, de Nathan Shapow, judeu letão, também sobrevivente do Gueto de Riga. No
livro, publicado em 2013, Shapow enumera diversos crimes que Cukurs teria cometi-
do sob supervisão da SS. Shapow diz que Cukurs merece atenção especial, uma vez
que ele “talvez seja o mais brutal criminoso de guerra letão”.22
Dentre os trabalhos não acadêmicos, contudo, há dois títulos que merecem maior
atenção. O primeiro deles foi lançado em 2004. Trata-se de The execution of the
Hangman of Riga – the only execution of a Nazi war criminal by the Mossad, escrito
pelo jornalista israelense Gad Shimron e pelo ex-agente israelense Anton Kuenzle. O
livro explica passo a passo a operação do Mossad que culminou no assassinato de
Cukurs. Pela primeira vez o serviço secreto israelense admitiu a sua participação no
caso. Kuenzle, principal agente da operação, explica não só os detalhes de sua missão,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
EZERGAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. Riga/Washington:
Historical Institute of Latvia, 1996, p.201.
19
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet – disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:
Daugavas vanagi--who are they? – Revisited: E. Avotin̦ š, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005.
20
KAUFMANN, Max. Churbn Lettland: the destruction of the Jews of Latvia. Konstanz: Hartung-
Gorre Verlag, 2010.
21
Ibidem, p.61.
22
SHAPOW, Nathan. The boxer’s story – fighting for my life in the Nazi camps. Londres: The Robson
Press, 2012.
30
mas as razões que levaram o Mossad a executá-la. 23 O segundo livro é El baúl de
Yahvé – el Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay, do advogado uru-
guaio Marcelo Silva. Publicado em novembro de 2010, a obra prioriza os resultados
das investigações policiais que se sucederam à morte de Cukurs.24
Este trabalho é composto por quatro capítulos. No primeiro, meu principal objetivo
é traçar um breve panorama da questão dos criminosos nazistas no Brasil do pós-
guerra: quais casos foram mais importantes, quais são as imagens predominantes, que
meios foram responsáveis pela construção e difusão dessas imagens, além de procurar
evidenciar o(s) lugar(es) que o Caso Cukurs teve dentro deste contexto. Embora as
imagens do Brasil como paraíso nazista possam parecer “naturais”, elas possuem uma
historicidade. Até onde eu sei, esse esforço de sistematização, ainda que breve, jamais
foi realizado. Neste capítulo, vale sublinhar, levanto, ainda que brevemente, casos de
criminosos nazistas que imigraram para o Brasil sobre os quais nada ou muito pouco
se conhece. Sobre estes, espero desenvolvê-los em trabalhos posteriores à tese.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of a
Nazi war criminal by the Mossad. Middlesex: Mitchell Vallentine & Company, 2004.
24
SILVA, Marcelo. El baúl de Yahvé – el Mossad y la Ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Montevidéu: Carlos Alvarez Editor, 2010.
31
exemplo, porque Cukurs escolheu o Brasil como destino (se é que escolheu) e porque
o Itamaraty lhe concedeu um visto permanente. Isso nos levará a examinar, por exem-
plo, a política imigratória do Brasil.
Documentação utilizada
32
1950 pelo Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DEOPS-RJ).
O segundo foi aberto em 1960, em São Paulo, pelo mesmo órgão correspondente na-
quele estado (DEOPS-SP). Ambos encontram-se em seus respectivos arquivos públi-
cos estaduais. Esses documentos se somam a uma vasta pesquisa na imprensa oficial.
Analisei, nos últimos anos, dezenas de páginas do Diário Oficial da União (DOU), da
Câmara e do Senado Federal, uma vez que muitas foram as casas legislativas que se
manifestaram contra a permanência de Cukurs em território brasileiro.
Para escrever essa tese, também consultei os acervos do American Jewish Archives
e da Central de Inteligência Americana (CIA). Pesquisei ainda mais de 20 jornais e
revistas, boa parte deles no Brasil – com a ajuda imprescindível da Hemeroteca Digi-
tal da Biblioteca Nacional –, mas também no exterior, especialmente na Biblioteca
Nacional do Uruguai. Também fiz pesquisas no Arquivo Histórico Judaico Brasileiro
(AHJB), em São Paulo, e na Biblioteca Israelita Sholem (BIBSA), no Rio de Janeiro.
Por fim, foram realizadas para esta tese seis entrevistas que totalizam quase 10 horas
33
de conversa. Após a conclusão, o item “fontes” detalha outros documentos que não
têm conexão direta com Cukurs, mas que também foram aqui consultados e usados.
Experiência pessoal
Esta foi uma tese de muitos documentos, mas também de muitos encontros, lugares
e experiências. Tudo isso moldou minha maneira de pensar e compreender o tema.
Assim que comecei a pesquisa, me vi encantado com a história da Letônia. Li tudo o
que pude sobre o país. Aprendi aspectos sobre sua história, cultura, economia, mitos e
personagens. Em 2013, movido por esse interesse, embarquei sozinho e muito entusi-
asmado numa viagem até Riga, capital do país. Lá, conversei com pesquisadores e
visitei museus importantes para a pesquisa, entre eles o Museu Judaico e o Museu da
Ocupação. Estive em lugares históricos que me ajudaram a entender melhor um país
que até então eu só conhecia através dos livros. Nunca me esquecerei quando o Bom-
bardier Q400 recém-lançado da Air Baltic tocou o asfalto liso do RIX, o aeroporto
internacional de Riga. Eu nunca tinha ido tão longe na vida.
Outro país que visitei em função da pesquisa foi o Uruguai, mais especificamente
sua bela capital, Montevidéu. Eu já conhecia a cidade, mas voltar lá a trabalho foi
uma experiência totalmente diferente. No país, fui muito bem recebido pelas institui-
ções onde pesquisei, com destaque para a Biblioteca Nacional do Uruguai, o Depar-
tamento de Polícia e o Ministério do Interior e Justiça. Mas se algo me marcou nesta
viagem foi a acolhida que tive do pesquisador Marcelo Silva, advogado uruguaio que
pesquisou o assassinato de Cukurs e que sobre ele produziu um excelente livro, citado
algumas páginas atrás. Silva – talvez o único pesquisador no mundo com quem eu
consiga conversar por horas e horas sobre Cukurs – se revelou um amigo solícito e
generoso. Levou-me a diversos lugares relacionados à curta (e trágica) passagem de
Herberts Cukurs por Montevidéu e compartilhou comigo informações e documentos
34
fundamentais para a pesquisa. Foi ele quem me levou à sede da polícia da capital uru-
guaia, onde pude ver o baú de madeira maciça onde o corpo de Cukurs foi colocado, e
quem me apresentou ao comissário de polícia Alejandro Otero, o primeiro a chegar à
cena do crime em 1965 e quem se tornou lá o encarregado das investigações.
Minha última viagem internacional também foi bastante especial. Em Nova Iorque,
em dezembro de 2014, conheci Helga Fischer, brasileira que vive há mais de vinte
anos nos Estados Unidos. Helga é filha da jovem judia que Cukurs salvou do nazismo
e trouxe para o Brasil. Meu contato com Helga começou em 2012 e foi revelador, tan-
to para mim quanto para ela. Lembro que meu primeiro contato se deu através de um
e-mail no qual procurei explicar (com muito cuidado) minha pesquisa e a intenção
que tinha de conversar a respeito. Eu não sabia como Helga reagiria àquilo. Afinal de
contas, como tocar num assunto familiar tão delicado? Pouco mais de vinte minutos
após o envio do e-mail, quando eu estava prestes a sair de casa para um compromisso
social, o telefone de minha casa tocou. Era Helga. Ficamos quase duas horas ao tele-
fone. Seu interesse naquele longínquo passado era enorme, sincero e contagiante.
Helga revelou que a relação entre Cukurs e sua mãe lhe era até ali totalmente desco-
nhecida. Helga tinha escutado muito pouco sobre o passado da mãe na Letônia. Cu-
kurs era um nome que não lhe fazia sentido. Dali em diante, antes mesmo de nos co-
nhecermos pessoalmente, em Nova Iorque, nos falamos muitas outras vezes. Também
devo mencionar que alguns documentos aqui utilizados são de seu acervo pessoal.
De frustração, fica apenas o fato de não ter conseguido escutar a família Cukurs
como gostaria. Meu primeiro contato com alguém da família aconteceu via internet
quando eu ainda escrevia o projeto do doutorado. Escrevi para o que entendi ser um
sobrinho-neto de Cukurs. Não tive, porém, nenhuma resposta. Em um segundo mo-
mento, já durante a pesquisa, fiz uma nova tentativa e fui mais bem-sucedido. Escrevi
para uma neta de Cukurs, residente em São Paulo. Expliquei que eu não estava inte-
ressado em defender ou acusar Cukurs, mas sim em compreender o caso. Ela enten-
deu e nossa conversa avançou. Chegamos a nos falar algumas vezes por telefone.
Minha ideia era entrevistar Antinea, filha do meio de Cukurs, atualmente com pouco
mais de 80 anos. Cheguei a elaborar uma lista de perguntas. A entrevista, infelizmen-
te, nunca chegou a acontecer. Antinea preferiu não seguir adiante. Sua sobrinha disse
que a tia esperava “outro nível de questionamento”. Além disso, fui informado que
Antinea estava bastante ocupada com traduções do livro de Cukurs. “Quem sabe ali
35
teremos muitas respostas”, ela disse. A neta de Cukurs me disse ainda que a família
não queria abordar assuntos como o Holocausto e o nazismo. “Nosso foco é a história
da aviação e os feitos de Herberts Cukurs como aviador, construtor de aviões, enge-
nheiro, jornalista, pesquisador e acima de tudo....ele era um humanista”. Eu lamentei e
agradeci pelos esclarecimentos. A pesquisa seguiu o seu rumo. De qualquer forma,
espero que a família de Cukurs possa ler este trabalho e conhecer uma dimensão do
caso que talvez lhe seja bastante desconhecida.
36
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO
A questão dos criminosos nazistas no
1 Brasil do pós-guerra: um panorama
1. 1. Punição e fuga
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
KOCHAVI, Arieh J. Prelude to Nuremberg – Allied War Crimes Policy and the Question of Punish-
ment. Carolina do Norte: The University of North Carolina Press, 1993. p.3.
2
Conferência de Moscou de 1943, “Declaração sobre atrocidades”, 30 de outubro de 1943.
37
CAPÍTULO 1
As punições, no entanto, não precisaram esperar pelo fim das hostilidades e nem se
limitaram à programação do Alto Comando Aliado. À medida que os países iam sen-
do libertados do julgo nazista, avolumaram-se episódios de justiçamentos extraoficiais
de nazistas e de pessoas que colaboraram com nazistas durante os anos de ocupação.
Esses tribunais de exceção eram conduzidos por grupos populares ou por movimentos
de resistência. Foram, em geral, rápidos, violentos e movidos por um profundo ressen-
timento. No verão de 1943, na cidade russa de Krasnodar, por exemplo, oito colabo-
racionistas russos foram executados sumariamente em praça pública diante de 30 mil
pessoas. 3 “Acertos de contas” desse tipo foram bastante comuns nos territórios sovié-
ticos, mas também aconteceram na Europa Central e Ocidental. Na Itália, represálias e
punições extraoficiais resultaram em cerca de 15 mil mortes nos últimos meses da
guerra.4 E embora em proporções menores, o mesmo tipo de coisa ocorreu na Bélgica,
na Grécia e na Holanda.5 Em algumas ocasiões, observou-se ainda a humilhação pú-
blica dos considerados traidores da pátria. Na Holanda, sublinha Tony Judt, diversas
mulheres foram acusadas de “colaboração horizontal” – ter mantido relações sexuais
com alemães. A pena para essas mulheres tinha conotação vexatória: eram lambuza-
das de alcatrão e cobertas de penas.6 Enquanto isso, na França, outras tantas mulheres
acusadas de ajudar o inimigo tiveram seus cabelos raspados em praça pública e, em
seguida, submetidas a vaias de multidões enfurecidas.7
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
GOLDENSHON, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Cia das Letras, 2005. pp.11-12.
4
JUDT, Tony. Pós-Guerra. Uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p.56.
5
Ibidem, pp.56-57.
6
Ibidem.
7
VIRGILI, Fabrice. Shorn Women: Gender and Punishment in Liberation France. Oxford: Berg, 2002.
38
CAPÍTULO 1
Apesar dos esforços consideráveis para se levar a julgamento o maior número pos-
sível de indivíduos acusados de crimes de guerra – além de genocídio, crimes contra a
paz e crimes contra a humanidade– muitos conseguiram escapar da justiça. 10 A de-
sordem generalizada surgida no imediato pós-guerra contribuiu bastante para isso. Ao
fim das hostilidades, além de cidades destruídas, da escassez de produtos básicos nas
principais cidades da Europa e do caos político, as forças aliadas ainda tiveram que
lidar com milhões de refugiados e deslocados de guerra. Calcula-se que 50 milhões de
pessoas se encontravam fora de seus países de origem quando a Alemanha assinou a
capitulação.11 No meio deste enorme contingente populacional, encontravam-se lide-
ranças nazistas e colaboracionistas de várias nacionalidades e patentes. Alguns foram
reconhecidos, colocados sob custódia e julgados. Muitos, entretanto, conseguiram se
passar por vítimas do Reich e desaparecer. Houve ainda o caso daqueles que mesmo
presos, conseguiram escapar das precárias prisões improvisadas por americanos, in-
gleses e soviéticos. Uma vez fora delas, foram favorecidos por uma rede ilegal de aju-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Na década de 1960, por exemplo, foram julgados os guardas do campo de concentração de Aus-
chwitz. Na década de 1970, foi a vez dos julgamentos do principal carrasco do Gueto de Riga, Viktors
Arājs. Arājs foi o líder do Comando Arājs, nome dado a organização fascista letã que, em colaboração
com as forças nazistas, coordenou o assassinato de milhares de judeus na Letônia ocupada (1941-45).
9
No momento em que escrevo este capítulo, a justiça alemã anuncia que em 21 de abril de 2015 vai
iniciar o julgamento de um ex-membro da SS de 93 anos (nome não revelado), suspeito de colaborar
com os nazistas no assassinato de ao menos 300 mil pessoas em Auschwitz, na Polônia, em 1944. O
Ministério Público alemão também investiga Hilde Michina, também de 93 anos. Michina é suspeito de
estar entre aqueles que obrigaram prisioneiros dos campos de concentração Bergen-Belsen e Gross-
Rosen a marchar até o campo de Guben, na Polônia, em 1945. Cf. Folha Online, “Alemão de 93 anos
suspeito de crimes nazistas será julgado em abril”, 02/02/2015, 09h01. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1583934-alemao-de-93-anos-suspeito-de-crimes-
nazistas-sera-julgado-em-abril.shtml>. Acesso: 02/02/2015.
10
A dimensão dos crimes cometidos pelo nazismo foi tão grande, que além da categoria “crimes de
guerra”, outras duas categorias jurídicas foram criadas para julgar os antigos membros do Eixo: “cri-
mes contra a paz” e “crimes contra a humanidade”. Em 1944, criou-se também um terceiro conceito:
“genocídio”. Seu criador foi o jurista judeu Raphael Lemkin.
11
Dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ANCUR). Disponível em:
<http://www.acnur.org>. Acesso em:02/02/2015.
39
CAPÍTULO 1
Imagem&1:&Tirol!do!Sul!–!essa!região!da!Itália,!que!faz!fronteira!com!a!Áustria!e!a!Suíça,!foi!bastante!procu?
rada!por!criminosos!de!guerra.!Foto:!The!Guardian.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
SANFILIPPO, Matteo. Los papeles de Hudal como fuente para la historia de la migración de alema-
nes y nazis después de la Segunda Guerra Mundial. Estudios migratorios latinoamericanos, 1999.
13
Em 2010, o The New York Times revelou um documento do Departamento de Justiça americano de
mais de 600 páginas que indicava a ajuda que o governo americano havia dado a vários nazistas notó-
rios após a guerra. Muitos foram levados para os Estados Unidos para trabalhar em indústrias e centros
de pesquisa, através da chamada “Operação Clipe de Papel”. The New York Times, “Nazis Were Giv-
en ‘Safe Haven’ in U.S., Report Says”, 13/11/ 2010. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2010/11/14/us/14nazis.html>. Acesso em: 29/08/2014. Além disso, apenas
para citar outro exemplo, a CEANA, uma comissão criada pelo governo argentino em 1997 para inves-
tigar o “passado nazista” do país, concluiu que dezenas de criminosos já condenados entraram em terri-
tório argentino no decorrer do pós-guerra, principalmente durante o governo de Perón.
40
CAPÍTULO 1
Talvez nenhuma outra região do mundo no pós-guerra tenha se tornado tão conhe-
cida como destino de criminosos nazistas quanto a América Latina. Segundo Matteo
Sanfilippo, relatos sobre a fuga de criminosos nazistas da Europa central e oriental
para países latino-americanos podem ser vistos na imprensa europeia e em relatórios
diplomáticos já nos primeiros momentos após o fim da Segunda Guerra Mundial. De
acordo com esses relatos, o esquema que retirava nazistas e colaboracionistas do con-
tinente europeu tinha como epicentro a Itália, mais particularmente a região fronteiri-
ça de Tirol do Sul (ou Província autônoma de Bolzano), e envolvia uma ampla e intri-
cada rede que ia desde governos latino-americanos pró-fascistas até entidades supra-
nacionais, tais como o Vaticano e a Cruz Vermelha. Em geral, essas rotas de fuga fi-
caram conhecidas como ratlines (em português, “rota dos ratos”). Sanfilippo nos dá
alguns exemplos de como essas ratlines foram relatadas num tempo em que uma parte
nada desprezível da Europa já se encontrava sob controle dos aliados:
Com o tempo, relatos deste tipo foram revelando sua vocação para o superlativo:
tornaram-se maiores, mais complexos, mais conhecidos e mais fantásticos. A questão
das rotas de fuga, que deixou em situação constrangedora as forças aliadas de ocupa-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
SANFILIPPO, Matteo. Ratlines and Unholy Trinities: A Review-essay on (Recent) Literature Con-
cerning Nazi and Collaborators Smuggling Operations out of Italy. In: Unitos DSpace (Università De-
gli Studi della Tuscia), 2003. Disponível em:
<http://dspace.unitus.it/bitstream/2067/24/1/sanfilippo_ratlines.htm>. Acesso em: 23/12/2013. [Origi-
nal: “In 1947, Vincent La Vista reported to the U.S. State Department that the Red Cross was granting
passports without screening – thus helping the illegal emigration from and through Italy of former Na-
zis – and that a group of priests was instrumental into it. (...) Meanwhile, on 6 December 1949, the
German Agency Nord Press announced that Bishop Alois Hudal, rector of the German College of S.
Maria dell Anima, ‘was a well-known pro-Nazis prelate in Rome and that he received from 60 to 100
Germans daily who were looking for tickets and visas to Latin America.’”]
41
CAPÍTULO 1
42
CAPÍTULO 1
Em 1971, Barbie, que também era conhecido como “o açougueiro de Lyon”, foi
identificado pelo casal Serge e Beate Klarsfeld, dois famosos “caçadores de nazistas”,
e um pedido de extradição foi emitido pelo governo francês. Após dois anos de apre-
ciação do pedido, a Suprema Corte da Bolívia, na época sob ditadura militar, recusou
o pedido. Apenas em 1982, quando já estava em curso o processo de transição demo-
crática do país, os franceses emitiram um novo pedido, então acatado pela Bolívia. Só
aí, Barbie, aos 69 anos, foi extraditado, julgado e condenado na França.20
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Cf. FARÍAS, Víctor. Los nazis en Chile. Barcelona: Editorial Seix Barral, 2000. pp. 447-453.
18
Haaretz, “In the service of the Jewish state”, 29/03/2007. Disponível em
http://www.haaretz.com/weekend/magazine/in-the-service-of-the-jewish-state. Acesso em: 27/11/2013.
19
Perfil de Klaus Barbie, Shoah Resource Center, Yad Vaed. Disponível em: <www.yadvashem.org>.
20
BEIGBEDER, Yves. Judging War Crimes and Torture - French Justice and International and
Commissions (1940-2005). Leiden: Martinus Nijhoff Publishers and VSP, 2006. pp.204-208.
43
CAPÍTULO 1
Imagem&3:!Klaus!Barbie!em!julgamento!na!França,!anos!1980.!Fonte:!Mubi.com.
44
CAPÍTULO 1
mércio.23 O objetivo deste documento – exagerado, como se soube depois – era deses-
tabilizar politicamente o principal candidato no processo eleitoral, Juan Domingo Pe-
rón, representante do grupo militar antiamericanista que governava o país desde o
golpe de 1943 e que tentava, então, chegar ao poder por meio eleitoral.24
45
CAPÍTULO 1
Imagem&4:&Repercussão!do!"Livro!Azul"!no!Brasil.!Fonte:!O!Globo,!19/02/1946.!p.1.
A ligação argentina com criminosos nazistas, porém, esteve longe de ser uma cria-
ção política dos americanos e da oposição a Perón. Da década de 1960 a de 1990, di-
versos criminosos nazistas foram localizados no país. Esses casos tiveram o efeito de
reforçar as denúncias (ainda que exageradas e não-comprovadas) que vinham sendo
ventiladas desde o final da guerra por pessoas como Santander e Taborda. Entre os
principais casos estão o de Erich Priebke, homem forte da Gestapo em Roma, respon-
sável pelo massacre das Fossas Ardeatinas; de Eduard Roschmann, membro da SS,
comandante do Gueto de Riga; de Gerhard Bohne, médico encarregado da supervisão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
SANTANDER, Silvano. Técnica de una traición. Juan D. Perón y Eva Duarte, agentes del nazismo
en la Argentina. Buenos Aires: Edición del autor, 1955.
28
TABORDA, Raúl Damonte. O Caso Perón: uma conspiração continental. Porto Alegre: Editora
Globo, 1954.
46
CAPÍTULO 1
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
MAXIMIANO, César Campiani; GONÇALVES, José. Irmãos de Armas: Um Pelotão da FEB na II
Guerra Mundial. São Paulo: Códex, 2005. p.82.
47
CAPÍTULO 1
Entre 1946 e 1947, o Tribuna Popular voltou outras vezes ao assunto, dizendo que
o governo brasileiro tinha aberto as portas do país para imigrantes “fascistas”, “mer-
cenários”, “terroristas”, “desclassificados sociais”, “colaboracionistas”, “assassinos da
Gestapo”. Mas em poucas ocasiões empregou o termo “criminosos de guerra” para se
referir aos selecionados pela política imigratória brasileira. E nem teve tempo. Em
maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral, pressionado politicamente, cancelou
mais uma vez o registro do PCB e o jornal, por extensão, também deixou de existir.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Tribuna Popular, “Abertas as comportas da imigração à escória...” 11/12/1946, p.8.
48
CAPÍTULO 1
ram a presença de Kapos no Rio de Janeiro. Kapos era como se chamavam os prisio-
neiros de campos de concentração e extermínio que os nazistas escolhiam para reali-
zar trabalhos ligados a administração ou segurança destes campos. Podiam ser judeus
ou não. Em geral, eram violentos, alguns sendo tão odiados quanto os próprios nazis-
tas. Entres os Kapos identificados no Brasil estavam os irmãos Lejbusz e Abraham
Zajfman, antigos detentos do campo de extermínio de Auschwitz. Os dois foram re-
conhecidos em Petrópolis e incluídos em uma lista de criminosos de guerra da Agên-
cia Judaica Polonesa. 31 Essa mesma agência alertou ainda para um terceiro Kapo no
Rio, chamado Chaskila Rosenberg, suposto colaborador da Gestapo.32 Por fim, o Jor-
nal de Notícias noticiou que Abraham Icek Kerbel, polonês naturalizado tcheco, co-
nhecido como Marian Kargul, também se encontrava no Distrito Federal da época.
Ele era acusado de colaboração com a Gestapo e de maus tratos a judeus.33
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
A notícia foi publicada em vários jornais: Tribuna Popular (11/03/1947), Jornal Pequeno
(11/05/1949) e Diário de Notícias (06/03/1947).
32
JTA – The Global Jewish News Source Jewish. “Agency Pressing Charges Against 30 Nazi War
Criminals Before U.N. Commission”. 09/06/ 1947. Disponível em:
<http://www.jta.org/1947/06/09/archive/jewish-agency-pressing-charges-against-30-nazi-war-
criminals-before-u-n-commission>. Acesso em: 25/09/2014.
33
Jornal de Notícias, “Criminoso de guerra no Rio”, 23/07/1947, p.2; Diário do Paraná, “Falsa cidada-
nia de um criminoso de guerra”, 12/03/1947, p.8.
34
Os casos de Kapos no Brasil estão sendo pesquisados pelo autor desta tese.
49
CAPÍTULO 1
O dia 30 de junho de 1950 é uma data-chave para se pensar a questão dos crimino-
sos nazistas no Brasil. Nesta data, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro reuniu-se com a imprensa carioca e responsabilizou o imigrante letão Herberts
Cukurs, proprietário dos “pedalinhos” da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janei-
ro, pela morte de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Cukurs, de
50 anos de idade, tinha imigrado com a família para o Brasil em fevereiro de 1946,
pouco mais de um ano depois de ter colaborado com os alemães durante a ocupação
nazista da Letônia. A denúncia da entidade judaica surpreendeu a todos no Rio de Ja-
neiro. A população da cidade e a imprensa tinham se acostumado nos últimos anos a
ver Cukurs como o simpático “homem dos pedalinhos”. Começava o Caso Cukurs.
O primeiro veículo a noticiar as denúncias contra Cukurs foi a Folha do Rio. A re-
portagem era assinada por Edmar Morel, já na época um dos mais renomados jornalis-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Revista da Semana, “Serão mesmo brasileiros esses recém-chegados...”, 07/02/1948, p.4.
36
A MMBB está sendo pesquisada pelo autor desta tese.
50
CAPÍTULO 1
tas brasileiros, e ocupava boa parte da primeira página. Nela, podia-se ler em letras
garrafais: “Famoso matador de gente”. 37 No texto, Morel destacava que Cukurs, co-
mo muitos outros famosos criminosos de guerra que tinham conseguido escapar do
Tribunal de Nuremberg, encontrava-se solto no Rio de Janeiro, “acobertado por pa-
drinhos importantes”. Para Morel, “todos, sem exceção, estão lépidos e faceiros no
Rio e em São Paulo”. Ao lado de Cukurs, o jornalista incluiu os irmãos Zajfman, Ker-
bel e dois pilotos da força aérea alemã que haviam imigrado para o Brasil. Todos
eram vistos por Morel a partir de uma mesma perspectiva, isto é, como parte de uma
política de proteção de criminosos nazistas refugiados por parte do Estado brasileiro.
Ao final da reportagem, Morel usou uma frase que seria repetida quase como um
mantra dali em diante pela imprensa: “O Brasil é sem dúvida a terra predileta dos
criminosos de guerra”.38
Imagem&5:&Ficha!Consular!de!Herberts!Cukurs!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search/Arquivo!Nacional.
A ligação de Morel com temas relacionados ao nazismo não era nova. Em 1942,
trabalhando para a Agência Meridional, dos Diários Associados, o jornalista investi-
gou o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães e relatou em várias
reportagens a atuação de espiões nazistas no Brasil. Em suas memórias, Morel afirma
que aqui “a espionagem nazista era feita sem subterfúgio, ante a conivência de autori-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p.1.
38
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p.1.
51
CAPÍTULO 1
A crítica explícita ao Estado não se limitou aos textos de Morel. Em O Radical, di-
ário de grande prestígio popular, o jornalista e escritor Manuel José Gondin da Fonse-
ca, em sua coluna diária, Imprensa em Revista, foi ainda mais acintoso em suas críti-
cas. Para ele, a proteção de um criminoso de guerra como Cukurs deveria ser credita-
da ao então Ministro das Relações Exteriores, o diplomata veterano, Raúl Fernandes:
Mas sabem por que cargas d’água esse malfeitor conseguiu proteção
entre nós? Vamos contar. O Raul Borocochô Fernandes, Chanceler
da Rua Larga, 24, tem um enteado romeno. Segundo nos informam
esse enteado foi também criminoso de guerra e conseguiu, graças ao
padrasto, estabelecer-se livremente no Brasil. Cukurs, seu colega, sa-
bendo disso, fez chantagem: - Ou comem todos, ou haja moralidade!
Se me perseguem aqui, boto a boca no mundo. Raul Borocochô Fer-
nandes capitulou. E assim Cukurs obteve tudo quanto quis e tornou-
se milionário graças às facilidades que lhe foram concedidas para ex-
plorar incautos na Lagoa Rodrigo de Freitas. Que desmoralização!40
Osório Borba, do Diário de Notícias, foi outro que aproveitou o Caso Cukurs para
criticar o governo. Borba ressaltou que a política imigratória brasileira desenhada pelo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39
MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.103.
40
O Radical, “Imprensa em revista”, 22/08/1950, p.3.
41
Tribuna da Imprensa, “Indesejáveis”, 13/07/1950, p.4.
42
Tribuna da Imprensa, “Prezado leitor”, 20/06/1950, p.1.
52
CAPÍTULO 1
A posição de Borba foi reforçada dias depois por um editorial do Diário de Notí-
cias que chamava a atenção dos leitores para a “complacência com que as nossas au-
toridades deixam em liberdade no Brasil um criminoso condenado em Nuremberg”:
A opinião pública está sendo despertada para reprovar o ato das auto-
ridades brasileiras que permitiram a entrada de criminosos de guerra
no país, enquanto dificultavam, por todos os modos, a vinda de refu-
giados e imigrantes, deslocados na Europa pela ação do mesmo gru-
po político a que pertencia Cukurs e cujo desejo de dominar o mundo
se exercia através de chacinadores como ele.44
O Correio da Manhã, por sua vez, também em editorial sobre o tema, destacou que
Cukurs, mesmo tendo matado “milhares de pessoas e sendo procurado pela justiça
internacional, conseguiu das nossas autoridades a permissão de emigrar para o Brasil,
vivendo agora pacatamente no Rio de Janeiro”. O jornal lembrou ainda que aquele
caso já tinha sido devidamente comentado por outros jornais tendo em vista “as sim-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 07/07/1950, p.4.
44
Diário de Notícias, “Criminosos de Guerra”, 18/08/1950, p.4.
53
CAPÍTULO 1
patias brasileiras pelo nazismo sobrevivente” e que Herberts Cukurs “desfruta atual-
mente os benefícios da nazofilia de certas repartições brasileiras”. 45 Entendimento
este muito parecido com o que fora expresso, na mesma época, pelo Diário Carioca,
que classificou a entrada de Cukurs no país como uma “acolhida benévola”.46
54
CAPÍTULO 1
contudo, não era uma criação inteiramente original. Ela estava inscrita em uma cadeia
de sentidos bastante conhecida pelo senso comum: a de que o Brasil sempre fora des-
tino de bandidos de toda estirpe. Na tradição francesa de análise de discurso, essa re-
cuperação do passado para atribuir um significado a um acontecimento no presente é
chamada de memória discursiva. Karla Regina Macena Pereira Patriota e Alessandra
Naves Turton explicam que “tal conceito diz respeito à recorrência de enunciados,
separando e elegendo aquilo que, de fato, dentro de uma contingência histórica espe-
cífica, pode surgir sendo atualizado no discurso ou rejeitado em um novo contexto
discursivo”.50 Na época em que Cukurs foi noticiado, a comparação mais recorrente
traçada pelos jornalistas foi entre os criminosos de guerra nazistas e os degredados da
metrópole, como eram chamados aqueles indivíduos que no Brasil Colônia, especial-
mente no século XVI, eram enviados para o Brasil e outras colônias do Império Ul-
tramarino português como pena por crimes cometidos na metrópole.51 Podemos ver
essa comparação no trecho abaixo, retirado do jornal carioca A Notícia:
A comparação foi feita uma segunda vez pelo jornal alguns dias depois:
Isto aqui continua sendo para elementos dessa ordem o que o Brasil
de 1500 foi para Pedro Álvares Cabral: uma terra sem dono (...). Para
que se veja, porém, como esses criminosos de guerra se sentem à
vontade, basta acentuar que, tendo se deixado ficar ostensivamente
na capital do país, nem sequer se preocupou em trocar de nome. E o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
PATRIOTA, Karla Regina Macena Pereira; TURTONC, Alessandra Navaes. Memória discursiva:
sentidos e significações nos discursos religiosos da TV. In: Ciências e Cognição/Science and Cogni-
tion, v. 1, 2009. p.15.
51
Cf. COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. Revista
de História da USP. Ano VII, No.27, Vol.XIII, jul. /set.1956; PIERONI, Geraldo. No purgatório, mas
o olhar no Paraíso: o degredado inquisitorial para o Brasil Colônia. Revista Textos de História, Brasília,
vol. 6, n.º 1 e 2, 1998. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1994. COATES, Timothy. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela Coroa no
império português. 1550-1755. Lisboa: CNCDP, 1998.
52
A Notícia, “O Paraíso Brasileiro”, 08/07/1950, p.2.
55
CAPÍTULO 1
Além de Cukurs, outro caso se tornou conhecido naquele ano de 1950: Jacques
Charles Noel Dugé de Bernonville. O “Conde de Bernonville” – como era mais co-
nhecido – fora um típico colaboracionista francês. Integrante da “Milícia Francesa”,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
A Notícia, “Nazista protegido”, 15/08/1950, p.1.
56
CAPÍTULO 1
Imagem&6:&Ficha!Consular!de!Jacques!de!Bernonville.!Fonte:!Family!Search/!Arquivo!Nacional.!
57
CAPÍTULO 1
Nos primeiros dias no Brasil, Bernonville permaneceu anônimo. Era como se ele
simplesmente tivesse desaparecido. O sumiço durou pouco tempo, porém. Alguns di-
as depois, repórteres do jornal Última Hora acabaram descobrindo que o conde estava
instalado no Mosteiro de Santo Antônio, no Largo da Carioca, no centro do Rio de
Janeiro. Depois de descoberto, a polícia regularizou sua situação no país e, diante do
alvoroço da mídia, colocou policiais para fazer a sua proteção. Nos jornais, circulou a
notícia de que Bernonville contava com a ajuda da família imperial brasileira.56
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
56
Última Hora (RJ), “No encalço do colaboracionista”, 24/08/1951, p.5.
57
Repórteres do jornal Última Hora localizaram Bernonville hospedado no Mosteiro de Santo Antônio,
no Largo da Carioca. Desde sua saída da França, o conde vinha sendo ajudado por autoridades católi-
cas, sobretudo beneditinas, que o hospedaram em diversos monastérios. Quanto à família real brasileira
(ramo Orleans e Bragança), as famílias tinham relações por conta de um casamento.
58
Última Hora, “No encalço do colaboracionista”, 24/08/1951, p.5.
58
CAPÍTULO 1
qualquer tribunal. Isso não impediu, no entanto, que os jornais traçassem paralelos
entre os dois. Para o UH, por exemplo, tanto Bernonville quanto Cukurs estariam no
Brasil “sob a proteção de pessoas influentes na sociedade e na indústria”. 59 Essa rela-
ção de equivalência entre diferentes casos, a propósito, se tornaria dali em diante uma
marca do discurso da imprensa em notícias e reportagens sobre o tema dos criminosos
nazistas. Esses casos passarão a ser vistos como parte de um mesmo fenômeno, com-
partilhando características, e serão explicados, via de regra, a partir das mesmas refe-
rências.
Apesar das muitas perguntas sem respostas que envolviam a presença de Bernon-
ville no Brasil, os jornalistas foram gradativamente se desinteressando pelo caso. Ber-
nonville teve um papel fundamental para que isso acontecesse. Em diversas declara-
ções à imprensa, o conde acusou o governo francês de perseguição política. Ele admi-
tiu – com certo orgulho nacionalista – que tinha sido um dos homens de confiança do
Marechal Philippe Pétain.60 Porém, segundo declarou, isso não fazia dele um crimino-
so de guerra. Afinal de contas, conforme sublinhou, ele tinha permanecido fiel a um
governo francês legal. Sua condenação à morte no pós-guerra, neste sentido, seria
uma retaliação de comunistas que agora ocupavam cargos importantes no Estado
francês. 61 Sua estratégia era induzir a imprensa, a opinião pública e as autoridades
brasileiras a vê-lo como criminoso político e não como criminoso de guerra. Essa tô-
nica já tinha funcionado anos antes no Canadá, quando Bernonville conseguiu o apoio
de boa parte da população de Québec, a parte francófona-nacionalista. 62
O caráter político do Caso Bernonville acabou sendo reforçado nos anos seguintes
no campo jurídico. Em 1952, a França solicitou a extradição de Bernonville para o
Brasil. As autoridades francesas, porém, não anexaram ao processo evidências de
crimes comuns, conforme lhe eram atribuídos. O pedido de extradição apontava Ber-
nonville antes de tudo como “traidor” da pátria. Daí derivavam dois grandes proble-
mas de ordem técnica. Em primeiro lugar, a legislação brasileira não permitia extradi-
ção por crime político, mas apenas por crime comum. Em segundo lugar, Bernonville,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
Última Hora, “Negada naturalização a Herberts Cukurs…”, 28/08/1951, p. 4.
60
Jornais como o Imprensa Popular acusaram a polícia e o Itamaraty de favorecimento, além de ativar
a imagem do Brasil como “paraíso para fascistas”. Essa leitura, contudo, não foi hegemônica nos de-
mais veículos de imprensa do país. Cf. Imprensa Popular, “Bernonville”, 26/08/1951, p.3.
61
Última Hora, “O conde nega as acusações que o condenaram à morte”, 29/08/1951, p.5.
62
YVES, Lavertu. The Bernonville Affaire: A French War Criminal in Post-WWII Québec. Robert Da-
vies, 1995.
59
CAPÍTULO 1
uma vez que tinha sido condenado à morte, não poderia ser extraditado para a França.
A legislação brasileira somente autorizava extradições quando a legislação penal do
país requerente se adequasse à brasileira. Portanto, pena de morte e prisão perpétua,
inexistentes no código penal brasileiro, impediriam o processo, salvo se a França co-
mutasse a pena de Bernonville para outra prevista pela lei brasileira. Assim, em 1956,
o Supremo Tribunal Federal, entendendo estar diante de um crime político e não co-
mum, indeferiu o pedido francês. Bernonville permaneceu no Brasil até 1972, quando
foi assassinado na Lapa, em circunstâncias até hoje mal explicadas.63
60
CAPÍTULO 1
Imagem&7:&Ficha!Consular!de!Roberts!Stiglics.!Fonte:!Family!Search/!Arquivo!Nacional.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a84. http://www.foia.cia.gov.
68
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.
61
CAPÍTULO 1
do para ele antes da Segunda Guerra Mundial. Estas pessoas tinham sido recrutadas
para combater a URSS e muitos ainda estavam vivendo em Moscou.69
A inteligência americana tinha a intenção de pagar dois mil cruzeiros por mês a
Stiglics, podendo aumentar esse salário em mil cruzeiros depois de três meses. Porém,
os serviços de Stiglics pareciam disputados na época, como podemos notar:
Ezergailis escreve que Stiglics morreu no Brasil, nos anos 1950. 73 Mas essa infor-
mação está errada. Segundo apontam os registros de segurança social dos Estados
Unidos, Stiglics e Pauline, sua esposa, imigraram para aquele país no início de 1961.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.
70
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.[Original: “This Latvian has had many years of
experience in intelligence work and, while he is newly arrived in Brazil, there is every reason to believe
that he will eventually do a creditable job among the Baltic colony. However, while awaiting opera-
tional clearance from Washington, Alleycat-14 was hired by the Political Police at CR$3,000 per
month. It is hoped that at least some of his reports will be made available to us through them. It is
planned to use his services on a spot information basis when the occasion arises”.]
71
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a81. http://www.foia.cia.gov.
72
EZERGAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. Riga/Washington:
Historical Institute of Latvia, 1996. p.332.
73
Ibidem.
62
CAPÍTULO 1
Além de Cukurs, outro nome que se tornou recorrente na imprensa nos anos 1960
foi o de Martin Borman78, antigo secretário particular de Hitler e vice-presidente da
NSDAP. Todos os indícios no pós-guerra indicavam que Bormann tinha morrido al-
guns dias depois da chegada dos soviéticos a Berlim. A imprensa brasileira, contudo,
tinha outras versões para o que teria ocorrido. O Tribuna da Imprensa, por exemplo,
noticiou em sua primeira página que Borman estava vivendo em Santa Catarina. O
jornal reproduzia informações que um “agente especial israelense” teria passado a um
jornalista do veículo inglês Daily Maily em Munique. De acordo com esse agente, o
“herdeiro de Hitler” tinha residido inicialmente na Bahia com o nome de José Posea,
mas desde 1952 tinha “formado um reduto nazista no Estado de Santa Catarina”.79
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a83. http://www.foia.cia.gov;
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a8a. http://www.foia.cia.gov;
75
"United States Social Security Death Index," index, FamilySearch
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JBST-2MG: accessed 7 June 2015), Robert Stiglics, Oct 1972;
citing U.S. Social Security Administration, Death Master File, database (Alexandria, Virginia: Nation-
al Technical Information Service, ongoing).
76
"United States Social Security Death Index," index, FamilySearch
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JBST-2Z6: accessed 7 June 2015), Pauline Stiglics, Dec 1976;
citing U.S. Social Security Administration, Death Master File, database (Alexandria, Virginia: Nation-
al Technical Information Service, ongoing).
77
Diário de Notícias, “Nazista receia ser raptado”, 07/06/1960, p.1.
78
Em 1998, análises de DNA confirmaram que Bormann morreu em 1945, em Berlim.
79
Tribuna da Imprensa, "Martin Bormann, herdeiro de Hitler, vive em Santa Catarina", 27/05/1960, p.1
63
CAPÍTULO 1
No dia primeiro de junho de 1961, o Última Hora, anunciou que uma notícia tinha
caído como uma bomba na redação do jornal: Bormann fora visto diversas vezes pe-
rambulando pelas imediações de Vicente de Carvalho, no Guarujá. Geni Masceno da
Silva, a “Dona Geni”, uma viúva de 46 anos residente do bairro, era a informante do
jornal. “Dona Geni” contou que conheceu o homem que ela acreditava ser Bormann
em janeiro de 1960. Ele estava com fome e cansado. Tinha vindo a pé do Paraná. O
Bormann de “Dona Geni” revelou que estava fugindo de seus compatriotas e que não
poderia regressar ao seu país de origem por ter ocupado cargos muito importantes no
regime nazista. A testemunha teria se encontrado com ele várias vezes desde então.
Em uma das visitas, ele teria dito: “a que ponto chegou Martin, pedindo esmolas”. 81
Nos anos 1960, houve uma verdadeira epidemia de notícias de pessoas que afirma-
vam ter visto ou travado contato direto com Martin Bormann no Brasil. Os jornais
pareciam não se importar se as fontes aparentavam ser pouco fidedignas. No afã do
tão almejado furo jornalístico e da alavancagem das vendas, simplesmente publica-
vam qualquer informação que chegasse à redação. Os jornais mais populares eram os
que mais recorriam a este tipo de expediente. Visando à espetacularização da realida-
de, davam voz à “Dona Geni” e muitos outros que tivessem uma história curiosa para
contar sobre criminosos nazistas. Isso se tornou ainda mais comum após o início do
julgamento de Eichmann, em abril de 1961. No dia 20 de março de 1964, mesmo o
Brasil vivendo momentos políticos turbulentos, a poucos dias do golpe civil-militar, o
Última Hora ainda encontrava espaço para falar sobre Bormann. Na edição daquele
dia o UH divulgou na primeira página que o antigo chefe do NSDAP estava vivendo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
Diário Carioca, "Agentes de Israel em Minas: polícia observa", 20/05/1961, p.10.
81
Última Hora, "Carrasco-fantasma em Santos está faminto e maltrapilho", 01/07/1960. p.2.
64
CAPÍTULO 1
em Mato Grosso. 82 Em 1966, a ideia de que o braço direito de Hitler tinha mesmo
vindo para o Brasil inspirou o filme italiano “Borman”, que contava a história de um
agente secreto americano cuja missão era parar um perigoso movimento neonazista
liderado por um antigo líder nazista (Bormann) que planejava dominar o mundo. 83
Imagem&8:&Bormann!“caçado”!no!Brasil.!Fonte:!Última!Hora,!28/05/1960.!!p.1.!
Essas histórias nos permitem perceber uma mudança de perspectiva relevante neste
período: as fantasias, as excentricidades, a imaginação, o conspiratório e especialmen-
te a especulação vão cada vez mais se fazer presentes no discurso da imprensa sobre a
questão dos criminosos nazistas no Brasil. Se na década anterior esses discursos ti-
nham sido plasmados em casos concretos, a partir de agora, o hipotético e o especula-
tivo também passariam a ser elementos importantes nas formulações da imprensa.
É também na década de 1960 que o cotejamento de casos diferentes passa a ser fei-
to com mais frequência. Casos ocorridos no Brasil são comparados e compreendidos à
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
82
Última Hora, "Homiziado em Mato Grosso o braço direito de Hitler", 20/03/1964, p.1.
83
Tribuna da Imprensa, "Cinema", 11/10/1966, p.3 e IMDB, disponível em:
<http://www.imdb.com/title/tt0158509/?ref_=nm_flmg_act_11>. Acesso em: 03/07/2015. Um infor-
mação importante: no final dos anos 1990, exames clínicos forenses confirmaram que Bormann morreu
em 1945. Seu corpo foi encontrado em um subterrâneo de Berlim.
65
CAPÍTULO 1
Essa mesma lógica foi capaz de associar, por exemplo, Cukurs ao médico-
torturador de Auschwitz, Josef Mengele. É o que vamos ler na reportagem “Na pista
dos carrascos nazistas”, publicado em O Globo na edição de sete de março de 1967:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
Correio da Manhã, “Asilos”, 14/02/ 1963, p.6.
85
Correio da Manhã, “Asilos”, 14/02/ 1963, p.6.
66
CAPÍTULO 1
O Brasil vivia, então, uma ditadura militar. É difícil dizer até que ponto o clima de
repressão vigente no país já afetava as redações jornalísticas a ponto de escamotear
críticas ao governo. Essa pesquisa revelou, porém, que as autoridades brasileiras não
se viram totalmente livres delas no Caso Stangl. Isso aconteceu principalmente nos
primeiros momentos, enquanto o austríaco esteve preso em Brasília aguardando o jul-
gamento do STF. O experiente Joel Silveira, ex-correspondente na Segunda Guerra
Mundial, disse em tom de ironia no Diário de Notícias que o austríaco já tinha engor-
dado mais de cinco quilos na prisão. “Bons ares, comida farta e na hora certa, pelotões
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
O Globo, “História que começa na queda de Berlim”, 07/03/1967, p.7.
87
O Globo, “História que começa na queda de Berlim”, 07/03/1967, p.7.
88
SERENY, Gitta. Into that darkness: An examination of conscience. London: Vintage, 2011.
67
CAPÍTULO 1
de guardas cuidando de sua tranquilidade e de sua integridade física – ele que é feliz”.
Ironia também foi o recurso empregado no editorial do jornal, que comparou o trata-
mento dado a Stangl com aquele que era dado aos adversários do regime militar: “é
estranho o cuidado, o amor que os donos do poder têm pelo nazista Stangl. Matam
brasileiros – principalmente os que não estiverem de acordo com a situação atual –,
mas defendem um homem que matou milhares e milhares de judeus”. 89
Fora do Brasil, o caso se tornou conhecido, de modo que havia grande expectativa
em torno da decisão da corte brasileira. Nos Estados Unidos, ao ser informado da si-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Diário de Notícias, “Coisas da Vida“, 18 /05/1967, 2a seção/sem página.
90
Jornal do Brasil “Justiça”, 04/03/1967, p.2.
68
CAPÍTULO 1
Imagem&9:&Ficha!Consular!de!Franz!Stangl!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search!/!Arquivo!Nacional.!
O STF não demorou a se pronunciar. Três meses depois da captura de Stangl, o ór-
gão anunciou que iria acatar os pedidos de Alemanha e Áustria. O pedido da Polônia
foi recusado, pois havia pena de morte no país, o que era incompatível com o direito
brasileiro. Stangl foi enviado para a Alemanha Federal em 1969. Antes de deixar o
Brasil, declarou a imprensa que um dia voltaria ao país. Mas isso nunca aconteceria.
Stangl morreu na prisão, em 1971, de causas naturais. Hoje, o STF considera do Caso
Stangl como um de seus “julgamentos históricos”.92
A prisão de Stangl pela polícia paulista e sua rápida extradição podem explicar a
ausência de uma crítica mais dura em relação ao governo brasileiro. Ainda assim, a
enorme repercussão acabou associando, mais uma vez, a imagem do Brasil a crimino-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
Diário de Notícias, "Polônia exige Stangl: lá tem pena de morte", 18/03/1967, p.6.
92
Os julgamentos considerados históricos pelo Supremo Tribunal Federal estão disponíveis em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico.
Acesso em: 08/07/2015.
69
CAPÍTULO 1
sos nazistas. Os jornais pareciam mais do que nunca convictos de que os países sul-
americanos haviam se transformado em um refúgio para criminosos nazistas.
Nessa mesma época, muito por conta do Caso Stangl, mas não apenas em função
dele, o imaginário político em torno da presença de criminosos nazistas no Brasil se
desenvolveu ainda mais. Além das facilidades na imigração, do “clima favorável” na
região sul do país e das ditas regalias oferecidas pelas autoridades locais, começou a
se difundir também a noção de que os criminosos nazistas contavam na América Lati-
na com a colaboração inestimável de uma poderosa organização secreta nazista. Fer-
nando Levisky, na sua coluna opinativa no Diário de Notícias, explicou que essa or-
ganização estaria por trás dos nomes de Herberts Cukurs e Franz Stangl:
Mas a ideia de uma organização secreta de ajuda a nazistas, rica, onipresente, po-
derosa e quase invisível, não era uma elucubração apenas de jornalistas. Seu principal
articulador era Simon Wiesenthal. Nascido na Galícia, em 1908, Wiesenthal estudou
arquitetura em Praga e estava vivendo em Lvov, Polônia, quando a Segunda Guerra
Mundial começou. Ele foi preso com sua família e passou o resto do conflito em di-
versos campos de concentração e trabalho. Em cinco de maio de 1945, depois de per-
der quase todos os familiares, Wiesenthal foi libertado do campo de Mauthausen por
tropas americanas. Uma vez em liberdade, dedicou-se a encontrar criminosos nazistas
e levá-los à justiça. Em 1947, ele fundou o Centro Judaico de Documentação Históri-
ca, na Áustria. No pós-guerra, foi o responsável por reunir informações sobre diversos
criminosos nazistas. Stangl, está nesta lista. Foi ele quem avisou as autoridades brasi-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Diário de Notícias, “Neofascismos”, 07/02/1968, p.3.
70
CAPÍTULO 1
leiras da presença de Stangl em São Paulo. Wiesenthal costumava dizer aos jornalistas
e em seus livros que seu trabalho não consistia em vingança, mas em fazer justiça.94
A ODESSA, não obstante, estava longe de ser a única rede nazista a aparecer na
imprensa naqueles anos.. Em novembro de 1967, o Diário de Notícias afirmava ape-
nas que os “herdeiros de Hitler” tinham armado uma “rede” no país.96 Não dava nome
a ela. O Luta Democrática, por sua vez, explicou que, além da ODESSA, outra rede
formada por nazistas agia livremente no continente, inclusive no Brasil. Ela se chama-
ria CISNE. 97 No Senado Federal, o deputado Marcos Kertzmann chegou a falar em
uma “Internacional Nazista”,98 enquanto que Fernando Leviski, então diretor da Fede-
ração Israelita de São Paulo, declarou ao Correio da Manhã:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
94
Perfil de Simon Wiesenthal no Yad Vashem. Disponível em:
<http://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206667.pdf> Acesso em:
09/07/2015.
95
O Globo, “Acusação sem base a Padres Romanos”, 05/04/1961, p.12.
96
Diário de Notícias, “Herdeiros de Hitler armaram rede no Brasil”, 17/11/1967, p.6.
97
Luta Democrática, “Arca de Noé”, 05/03/1967, p.3.
98
Diário do Congresso Nacional, 28/04/1967, p.1756.
71
CAPÍTULO 1
72
CAPÍTULO 1
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
101
Cf. NOVICK, Peter. The Holocaust in American Life. Nova York: Mariner Books, 1999.
102
Correio da Manhã, “Caçador de Nazistas nega morte de Bormann”, 1971, p.3.
103
Correio da Manhã, “‘Caçador de nazistas’ nega a morte de Bormann” 1971, p.13.
104
O Globo, “Com Cukurs e Stangl, caça desloca-se para o Brasil”, 22/11/1974, p.25
73
CAPÍTULO 1
Além de Bormann, outras imagens já vistas por nós aqui coexistiam no discurso da
imprensa. A relação do governo brasileiro com criminosos nazistas é uma delas. O
jornalista Edmar Morel, responsável por várias matérias sobre o tema nos anos 1950,
continuava escrevendo a respeito do tema. Em 1972, na revista Politika, Morel afir-
mou que Bernonville, Stangl e Cukurs eram exemplos de como “durante anos, o Bra-
sil foi o paraíso dos nazistas, que aqui encontraram proteção por parte das autorida-
des”. 105 Complementando tal teoria, naquele mesmo ano, o Luta Democrática afir-
mou que por trás de Stangl e Cukurs, entre outros nazistas que tinham parado no país,
existiam poderosas organizações secretas de orientação nazista”. 106
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
105
Politika, “Fugindo do Canadá...”, 22-28/05/1972, p.8.
106
Luta Democrática, “Teias da Ordem Negra protegem os nazistas”, 05/05/1972, p.8.
107
Jornal do Brasil, “Israelense aponta criminosos...”, 22/02/1978, p.13.
108
O Globo, “Brasil, segundo maior refúgio de ex-nazistas”, 25/04/1978, p.8.
74
CAPÍTULO 1
nazista responsável pela morte de milhares de judeus que ainda anda à solta. O repór-
ter investiga e descobre, então, a perigosa e conspiratória ODESSA.109
O Dossiê Odessa é um romance. Forsyth, no entanto, indicou várias vezes que sua
obra tinha inspiração em fatos reais. No prefácio – algo nada comum para livros de
ficção – o autor explica ao leitor o que é a ODESSA, como ela se estrutura, qual o seu
objetivo e como opera. Forsyth conta, inclusive, sobre um “maço de documentos” a
respeito da organização que teria chegado recentemente de forma inesperada e anô-
nima ao Ministério da Justiça em Bonn, na Alemanha. Além disso, a própria trama
contribui para borrar os limites entre o real e a imaginação. Alguns personagens são
pessoas de verdade, conhecidas publicamente, como Simon Wiesenthal, enquanto ou-
tros são inventados pelo autor, caso do protagonista. Em uma das edições americanas,
o editor dá uma justificativa para essa linha tênue entre o real e o inventado. Para ele,
a dúvida seria fundamental para despertar a “perplexidade do leitor”.110
O Dossiê Odessa fez tanto sucesso que quatro anos depois de lançado, o livro ga-
nhou uma versão igualmente bem-sucedida para o cinema, dirigida pelo britânico Ro-
nald Neame (na época, um dos mais destacados cineastas de Hollywood, diretor de O
Destino de Poseidon) e com Jon Voight (de Perdidos na noite) na pele do protagonis-
ta. Nessa época, a realidade e a fantasia tinham se combinado completamente. Em
1975, quando o filme estreou no grande circuito brasileiro, O Globo publicou uma
matéria no suplemento cultural Rio Show intitulada “Os segredos da Odessa ou de
como influentes nazistas atuam por aí”, que reforçou ainda mais a ideia de que o filme
realmente se baseou em fatos reais:
Outro romance do gênero, também de grande sucesso, foi Meninos do Brasil, pu-
blicado em 1976. Escrito por Ira Levin, o livro conta a história de Josef Mengele, o
“médico-monstro” de Auschwitz, desde sua saída da Europa até o exílio no anonima-
to, no Paraguai, onde passa a planejar o nascimento o IV Reich. Para isso, Mengele
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
FORSYTH, Frederick. O Dossiê Odessa. Rio de Janeiro: Record, s/ano.
110
FORSYTH, Frederick. The Odessa File. Random House, 2011.
111
O Globo, “Os Segredos de Odessa, ou de como influentes...”, 26 /03/1975, p. 41.
75
CAPÍTULO 1
O tema dos criminosos nazistas prosperou, quer na ficção, quer na não ficção. Em
alguns casos, os livros mencionavam o Brasil. Em outros, falavam apenas de conspi-
rações nazistas no pós-guerra, contribuindo ainda que indiretamente para as histórias
que brotavam livremente em países como Argentina e Brasil. Na literatura estrangei-
ra, além dos livros de Levin e Forsyth, podemos destacar obras como: The Bormann
Brotherhood. A New Investigation of the Escape and Survival of Nazi War Criminals,
de William Stevenson (1973); The Hunt for Martin Bormann, de Charles Whiting
(1973); Aftermath – Martin Bormann and the Fourth Reich, de Ladislas Farago
(1974); Eles estão de Volta, de Michael Bruckner (1979); 113 Wanted! The Search for
Nazis in America, de Howard Blum (1976); O Quarto Reich: Klaus Barbie e a cone-
xão neonazista, de Magnus Linklater (1985); Contas a pagar, de Harris Green (1984);
114
entre outros que abordavam diferentes aspectos do tema, desde a vida que ilustres
figuras do nazismo derrotado levavam até a criação de um novíssimo IV Reich. 115
No Brasil, não faltaram produções nacionais sobre o tema dos criminosos nazistas.
No cinema, há dois grandes exemplos. Um deles foi Os Carrascos estão entre nós,
lançado ainda no final dos anos 1960, em 1968, e dirigido por Adolpho Chadler. No
enredo, logo após a tomada de Berlim pelos aliados, em 1944, altos dirigentes do Ter-
ceiro Reich se espalharam pelo mundo, tentando reviver o nazismo. Entre eles, estão
Martin Bormann e seus cúmplices, todos chegados ao continente latino-americano em
um submarino. Vinte anos depois da fuga, uma organização que protege e esconde
nazistas é descoberta e tem então iniciada uma busca frenética.116 O outro exemplo é
Aleluia Gretchen, do diretor Silvio Back, lançado em 1976, que conta a saga de uma
família alemã que imigrou para o Brasil durante o Estado Novo e que, nos anos 1950,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
LEVIN, Ira. Meninos do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. 1981.
113
BRUCKNER, Michael. Eles estão de volta. Rio de Janeiro: Record, 1979.
114
GREENE, Harris. Contas a ajustar. Rio de Janeiro: Record, 1984.
115
FARAGO, Ladislas. Aftermath: Martin Bormann and the Fourth Reich. Simon and Schuster, 1974;
STEVENSON, William. The Bormann Brotherhood. Barker, 1973; WHITING, Charles. The Hunt for
Martin Bormann. Ballantine Books, 1973; ERDSTEIN, Erich; BEAN, Barbara. Inside the Fourth
Reich. Londres: St. Martin's Press, 1977.
116
Cinemateca brasileira. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br>. Acesso em: 02/02/2015.
76
CAPÍTULO 1
77
CAPÍTULO 1
Botacini foi uma figura extremamente pitoresca. Além de jornalista, foi membro da
União Brasileira de Escritores, professor primário, contador, ex-jogador de futebol
profissional, proprietário de Editora Combrig e produtor da TV Gazeta.124 Em 1978,
envolveu-se em duas situações inusitadas. Na primeira, preparou um requerimento na
Câmara dos Vereadores que propunha aposentar a mula Menina, após 30 anos de ser-
viços presados à cidade de Ribeirão Pires.125 Na segunda, enviou ao Vaticano sua
candidatura como Papa. Esta ideia lhe ocorreu logo após descobrir que, para ocupar o
posto máxima da Igreja Católica, era necessário apenas que o requerente fosse católi-
co, batizado e crismado. Este episódio lhe rendeu, inclusive, uma aparição no progra-
ma Fantástico, da TV Globo, que passou a acompanhá-lo em sua surreal jornada.126
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
BOTACINI, Roberto. Onde estará Hitler? São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1964;
BOTACINI, Roberto. Nazistas na América. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1964;
BOTACINI, Roberto. A Fuga de Hitler. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1965; BOTACINI,
Roberto. Perón, a volta do Nazismo. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1973; BOTACINI, Roberto. O
Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1977.
123
Roberto. O Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1977, p.90.
124
DUTRA, Reginaldo. UBE, 40 [ie quarenta] anos. Editora Soma, 1982. p.146. O livro Hitler não
morreu em Berlim foi citado pela publicação da União Brasileira dos Escritores como sendo também de
autoria de Botacini. Não encontrei, porém, nenhum exemplar deste livro.
125
Diário do Grande ABC, ““Ela não gosta de política, mas está há 28 anos na Câmara”. 17/03/ 2007.
Disponível em: http://www.dgabc.com.br/Noticia/199866/ela-nao-gosta-de-politica-mas-esta-ha-28-
anos-na-camara-?referencia=navegacao-lateral-detalhe-noticia. Acesso em 17/01/2014.
126
G1.com, “O Homem que queria ser papa”, 30/032008. Disponível em:
http://g1.globo.com/fantastico/especial/bau-do-fantastico/platb/2008/03/30/o-homem-que-queria-ser-
papa/. Acesso em 17 de janeiro de 2014.
78
CAPÍTULO 1
Pode parecer pouco provável que os livros de Botacini pudessem despertar qual-
quer sentimento de crédito ou confiança. Não só pela falta de evidências concretas do
autor, mas principalmente pelos episódios excêntricos que envolveram o nome de Bo-
tacini. Sua excentricidade, porém, parece não ter atrapalhado sua reputação de especi-
alista em criminosos nazistas. Em diversas oportunidades em que o tema veio à tona,
os jornais não recorreram a historiadores acadêmicos para comentá-lo, mas sim ao
“especialista” Roberto Botacini. Ele foi assim apresentado por jornais de alcance na-
cional. Em entrevista para O Globo, por exemplo, o escritor paulista revelou que os
nazistas tinham tanta liberdade de ação no Brasil que podem até realizar um congres-
so. Botacini alertou ainda para o que chamava de “perigo nazista”. Na sua opinião, o
nazismo estava em vias de retornar, já sendo uma força em quase todo o mundo.127
Porque essas história exageradas sobre criminosos nazistas faziam tanto sucesso?
Porque os jornais e o público se interessavam por elas? Não há uma resposta definiti-
va para essas perguntas. Não podemos deixar de considerar, no entanto, o contexto ao
qual estamos aqui nos referindo. A Guerra Fria foi um período prolixo na produção de
histórias que prometiam aventura, mistério, drama e ação. 128 O mercado editorial, o
cinema e o noticiário internacional foram inundados no final dos anos 1960 com rela-
tos de discos voadores, sociedades secretas, novos mundos, realidades paralelas e
agentes secretos. Personagens ficcionais como James Bond, da franquia 007, e Ethan
Hunt, protagonista da série Missão Impossível, não fortuitamente, se tornaram dois
dos grandes ícones daquela geração de heróis do cinema. Conforme já explicou Clau-
de Lévi-Strauss, “não existe limite para uma análise mítica, uma vez que os temas se
desdobram ao infinito”.129 As narrativas mitológicas sobre criminosos nazistas, deste
modo, devem ser compreendidas também como subproduto deste cenário histórico.
Que criminosos nazistas tenham se refugiado no Brasil em outros países latino-
americanos, não há dúvidas. Mas há limites para o que pode ser confirmado. Muito
diferente são as histórias de organizações secretas superpoderosas, de fuga de grandes
hierarcas nazistas, incluindo o próprio Hitler, bem como o IV Reich nas américas,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
G1.com, “O Homem que queria ser papa”, 30/032008. Disponível em:
http://g1.globo.com/fantastico/especial/bau-do-fantastico/platb/2008/03/30/o-homem-que-queria-ser-
papa/. Acesso em 17 de janeiro de 2014.
128
Sobre a força por trás das teorias da conspiração no mundo contemporâneo, conferir: SHERMER,
Michael. Cérebro e crença: De fantasmas e deuses e às conspirações: como o cérebro constrói nossas
crenças e as transforma em verdades. São Paulo: JSN Editora, 2014.
129
LÉVI-STRAUSS, Claude. Apud GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. pp.14-15.
79
CAPÍTULO 1
Essas histórias, conforme vimos, quase sempre são dotadas de exagero e impreci-
sões. Por vezes, destacam-se pela contradição e pela incoerência. Como explicar, en-
tão, a força que detêm? Quem nos oferece auxílio aqui é o historiador Raoul Girardet.
Girardet explica que os mitos e as mitologias políticas que povoam nossa época não
dispõem de um ordenamento lógico convencional. Retomando os ensinamentos de
Claude Lévi-Strauss, Girardet sublinha que a realidade mítica não pode ser decompos-
ta de forma cartesiana, isto é, camada por camada, em partes distintas e numeradas. O
mito político, sublinha o historiador, possui autonomia e respalda a si próprio. “Ele já
não invoca, nessas condições, nenhuma outra legitimidade que não a de sua simples
afirmação, nenhuma outra lógica que não a de seu livre desenvolvimento”.131
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
MEINERZ, Marcos Eduardo. O imaginário da formação do IV Reich na América Latina após a
Segunda Guerra Mundial (1960-1970). Dissertação. Universidade Federal do Paraná, 2013.
131
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo Companhia das Letras, 1987, pp.11-12.
80
CAPÍTULO 1
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo Companhia das Letras, 1987, p.14.
133
Em maio de 1978, Simon Wiesenthal encontrou-se em com Chimanovitch em Viena e disse que
tinha um furo de reportagem para ele: Gustav Wagner, a "Besta de Sobibor", vivia escondido no Brasil.
Wiesenthal tinha, no entanto, apenas uma foto antiga de Wagner. Nenhum endereço. Mário pensou,
então, em uma solução bastante original para tentar localizar Wagner: recentemente, ele tinha feito uma
matéria de moderada repercussão sobre uma reunião ocorrida em um hotel de Itatiaia (Hotel Tyll) para
celebrar os 90 anos de Hitler. Chimanovitch propôs a Wiesenthal que ele "reconhecesse" Wagner entre
os participantes. Em 19 de maio de 1978, Chimanovitch publicou uma foto do encontro e o tal reco-
nhecimento falso de Wiesenthal. Enquanto as autoridades do DEOPS-SP começavam uma caça a
Wagner, algo inusitado aconteceu: Wagner apresentou-se espontaneamente à polícia de Campo Belo,
São Paulo, em 30 de maio de 1978, afirmando ser ele o verdadeiro Wagner e inocente de qualquer acu-
sação de crimes cometidos durante a guerra. Segundo Felipe Cittolin Abal, Wagner estava com medo
de que fosse sequestrado pelo Mossad. Cf. ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos
de extradição de Franz Stangl e Gustav Wagner em uma análise histórico jurídica. Dissertação. Uni-
versidade de Passo Fundo, 2012.
134
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, 2012.
135
Jornal do Brasil, “Embaixada manifesta desapontamento alemão”, 22/09/1979, p.10.
81
CAPÍTULO 1
Imagem&11:&Ficha!Consular!de!Gustav!Wagner!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search!/!Arquivo!Nacional.
82
CAPÍTULO 1
brasileira.141 Enquanto isso, nos Estados Unidos, pouco mais de trinta parlamentares
assinaram um documento protestando contra a decisão do governo brasileiro. O sena-
dor Robert Dorman, um dos signatários, deu uma entrevista ao Jornal do Brasil. Nela,
ele disse em tom de ameaça: “Temos esperanças de obter bons resultados nos enten-
dimentos com o governo brasileiro. Mas, em todo caso, eu e meu colega aqui (Jona-
than Bingham, democrata do Estado de Nova York) estamos dispostos a tornarmo-nos
incômodos políticos, o que pode ser prejudicial às relações entre os dois países”.142
O segundo grande caso ocorrido no período foi o do alemão Josef Mengele. Médi-
co e antropólogo, Mengele filiou-se ao Partido Nazista em 1937. Em junho de 1940,
alistou-se no exército e passou a servir como voluntário médico das Waffen-SS. Ferido
em campanha, foi primeiramente realocado no Instituto Kaiser Wilhelm (KWI) e, em
seguida, promovido a capitão. Assumiu, em 30 de maio de 1943, um dos postos de
médico no campo de extermínio de Auschwitz. Medicina, no entanto, foi algo que ele
não praticou nos anos em que serviu em Auschwitz. Ao invés de salvar vidas, Menge-
le foi o responsável direto por milhares de assassinatos. Era ele quem fazia a seleção
de vida ou morte daqueles que chegavam ao campo. Mengele também se tornou co-
nhecido por realizar experiências macabras em prisioneiros vivos. Geneticista, ele ti-
nha especial interesse em experiências envolvendo irmãos gêmeos. 143 Em depoimento
dado ao Comitê Internacional de Auschwitz, em 1945, o médico italiano Leonardo de
Benedetti, sobrevivente de Auschwitz, denunciou os crimes praticados por Mengele.
Benedetti, que elaborou com Primo Levi o importante “Relatório sobre Auschwitz”,
lembrou que Mengele se apresentava na hora da seleção sempre com um uniforme
impecável, bastante elegante, com botas de cano alto engraxadas e um chicote na
mão. Os prisioneiros perfilavam, segundo conta, todos nus, um a um, diante seus
olhos. “(...) ele indicava com o chicote o grupo para o qual seu juízo infalível designa-
ra o prisioneiro: à esquerda, os condenados, à direita os pouquíssimos afortunados que
ele julgava ainda aptos para o trabalho, pelo menos até a próxima seleção”.144
83
CAPÍTULO 1
O Caso Mengele não despertou muitas críticas diretas ao governo brasileiro. E isso
de certa forma era compreensível, afinal de contas, Mengele entrara no país ilegal-
mente e aqui tinha permanecido longe dos centros urbanos, graças à sua identidade
falsa. O que mais chama mesmo atenção neste caso foi a sua enorme repercussão, fato
que cimentou de vez a imagem que associa criminosos nazistas ao Brasil. A descober-
ta de Mengele foi talvez o acontecimento mais midiático do Brasil em 1985, chegando
a rivalizar com a cobertura da “Nova República”. O Estado de S. Paulo, surpreendido
com a quantidade de repórteres de todo o mundo que afluíram para o país a fim de
cobrir a descoberta, afirmou que o cenário se assemelhava ao que acontecia em Copas
do Mundo, “porém sem o estilo de credenciais penduradas no pescoço”. Em algumas
coletivas de imprensa, conta o jornal, os jornalistas estrangeiros eram tantos que supe-
ravam os jornalistas do próprio Brasil.146 De fato, o país testemunhou naquele ano
uma verdadeira invasão de equipes de televisão e de repórteres de veículos impressos
estrangeiros. Contava-se na casa das centenas os correspondentes de agências de notí-
cias, provenientes principalmente da Europa, mas também dos Estados Unidos, Israel,
América Latina e da África. Uma equipe da rede americana NBC fretou um jato para
chegar mais rápido ao Brasil.147 A exposição nos meios de comunicação era tanta que
chegava a incomodar algumas pessoas. Um leitor escreveu para a Folha de S. Paulo:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
Enciclopédia do Holocausto: Josef Mengele. Disponível em:
<http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007060>. Acesso em 18/05/2014.
146
O Estado de S. Paulo, “A Imprensa como numa Copa”, 11/06/1985, p.12.
147
O Estado de S. Paulo, “De novo, o país atrai a imprensa estrangeira”, 08/06 1985, p.14.
84
CAPÍTULO 1
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
Folha de S. Paulo, “O anjo da morte”, 21/06/85. p.3. Sobre cartas de leitores, há uma outra, bastante
curiosa enviada à revista Veja, uma semana depois que a revista produziu uma capa com o “Caso Men-
gele”. O leitor, descendente de alemães, escreveu: “Fiquei surpreso com o fato de VEJA ter destacado
onze páginas para falar de um cidadão que dizem ser ‘carrasco nazista’. Meus parentes contam que
americanos e ingleses soltavam bombas de brinquedos na Alemanha, durante a II Guerra Mundial.
Desculpem-me os judeus, mas isto que estão fazendo, ao não deixar cicatrizar uma ferida que aconte-
ceu há quarenta anos, não é correto. ” Veja, “Mengele”, 14/07/1985. p.2.
149
Folha de S. Paulo, “Nazistas no Cone no Sul”, 12/06/1985, p. 2.
150
O Estado de S. Paulo, “Aliança não tem sinal de ruptura”, 03/07/1985, p.5.
85
CAPÍTULO 1
escaparam da justiça graças àquela ODESSA, “que ainda durante a guerra preparou o
esquema de fuga para os nazistas que precisariam esconder-se e graças ao seu apoio
financeiro que lhes garantiu os meios de sobrevivência”. Muitos desses criminosos,
apontaram alguns jornais, fugiram para a América Latina e acabaram pagando por
seus crimes, caso de Adolf Eichmann, Herberts Cukurs e Franz Stangl, ao passo que
outros permaneceram durante muito tempo livres e impunes, caso de Barbie e Wag-
ner.151 A comparação entre casos diferentes, a propósito, tornou-se mais uma vez bas-
tante recorrente na imprensa. E é importante que se observe que ao retomar antigos
casos, a imprensa não só os matinha vivos no imaginário político do país como tam-
bém os atualizava. Em 1985, O Estado de S. Paulo fez uma retrospectiva histórica dos
principais casos de criminosos nazistas localizados no Brasil – Cukurs, Stangl, Wag-
ner e Mengele – explicando que todos esses criminosos tinham criado várias organi-
zações entre imigrantes alemães que já viviam na Argentina, na Bolívia e no Brasil.152
Imagem&12:!De!Cukurs!a!Mengele,!uma!visão!global.!Fonte:!O!Estado!de!S.!Paulo,!09/06/1985.!p.22.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
151
O Estado de S. Paulo, “Jamais esqueceremos”, 23/06/1985, p.26.
152
O Estado de S. Paulo, “Brasil, uma opção na fuga de nazistas”, 09/06/1985, p.22.
86
CAPÍTULO 1
Ainda falando sobre a forma como tais casos foram atualizados mediante diferen-
tes contextos históricos, chama bastante atenção uma matéria publicada na imprensa
dos Estados Unidos, em 27 de agosto de 1977. Jack Anderson, autor da reportagem,
reproduzida em vários veículos, levantou a teoria de que Cukurs foi assassinado não
por agentes secretos israelenses, mas por nazistas. Segundo suas fontes, Cukurs co-
nhecia a localização de Mengele e decidiu entregá-lo aos israelenses em troca de uma
quantia de dinheiro. Mengele teria descoberto e Cukurs foi assassinado no Uruguai.153
Cukurs, desta forma, é trazido subitamente para dentro das teorias de redes nazistas
no Brasil e na América Latina que grassavam naquele final dos anos 1970. A circula-
ridade desses casos não é algo estranho ao universo dos mitos políticos. Girardet no-
vamente vem nos ajudar. Ele nos lembra que os mitos políticos são polimorfos, carac-
terizados pela fluidez, pela imprecisão de contornos e pela ambivalência. Para melhor
explicar como isso se dá, o autor recorre a uma analogia entre mito e sonho:
87
CAPÍTULO 1
Setenta anos depois do fim da guerra, chegamos a um panorama sui generis. É cor-
reto afirmar que vários indivíduos envolvidos com crimes nazistas imigraram para o
Brasil. Embora as pesquisas sobre o tema sejam escassas, Cukurs, Bernonville, Sti-
glics, Stangl, Wagner e Mengele, por si só, nos permitem fazer tal afirmação. E é mui-
to provável – esperado, eu diria – que nos próximos anos novas investigações aumen-
tem sensivelmente essa lista. Em 2013, o procurador público alemão Kurt Schrimm e
o comissário de polícia Uwe Steinz visitaram o Brasil como parte de uma ampla in-
vestigação que a Zentrale Stelle der Landesjustizverwaltungen zu Aufklärung von NS-
Verbrechen vem desenvolvendo com o objetivo de encontrar criminosos nazistas que
encontraram refúgio na América Latina. 157 Schrimm e Steinz reuniram-se mais de
uma vez com historiadores do Rio de Janeiro, entre os quais o autor desta tese, no sen-
tido de avançar em suas pesquisas. O método dos dois investigadores, conforme reve-
lado nessas reuniões, é simples, mas, ao mesmo tempo, bastante trabalhoso: uma lista
com todos os indivíduos de cidadania alemã que chegaram ao Brasil desde os momen-
tos finais da Segunda Guerra Mundial é levantada e depois cruzada com uma lista ori-
unda de um banco de dados alemão. Schrimm e Steinz suspeitam que até 50 guardas
de campos de concentração podem ter vindo parar no Brasil. “Por enquanto não en-
contramos ninguém, mas estamos no início e estimamos que teremos milhares de fi-
chas de alemães que chegaram ao Brasil nos anos pós-guerra”, disse Schrimm a um
jornal brasileiro.158 Pode levar algum tempo, mas é muito provável que o escritório
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
BRAVO LÓPEZ, Fernando. Islamofobia y antisemitismo: la construcción discursiva de las amena-
zas islámica y judía. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid. Facultad de Filosofía y Letras. Depar-
tamento de Estudios Árabes y Islámicos y Estudios Orientales. Disertación, 2009. p.474.
157
Em português, Escritório Central para a Investigação dos Crimes do Nacional Socialismo.
158
O Estado de S. Paulo, “Promotores da Alemanha buscam nazistas no Brasil”, 04/05/2013. Disponí-
vel em <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,promotoresdaalemanhabuscamnazistasnobrasil,
88
CAPÍTULO 1
liderado por Schrimm divulgue resultados positivos. E essa é apenas uma das muitas
iniciativas que podem, no futuro próximo, ampliar nossos conhecimentos.159
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1028462>. Acesso em: 02/07/2015.
159
Entrevistas de personagens envolvidos em determinados casos também podem ajudar a ampliar nos-
so conhecimento. Em maio de 2013, por exemplo, José Paulo Bonchristiano, ex-chefe do DOPS-SP,
revelou que o DOPS sabia da presença de Mengele no Brasil. O Estado de S. Paulo, “O DOPS sabia da
presença de Mengele no Brasil”, 04/05/2013. Disponível em:
<http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,odopssabiadapresencademengelenobrasil,
1028459>. Acesso em: 02/07/2015.
160
A ideia de que o Brasil foi um paraíso para bandidos, como vimos, transcende a questão dos crimi-
nosos nazistas. Um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), em 2008, reve-
lou que de um universo de 852 entrevistadas, todos naturais do Rio de Janeiro ou nele residentes, 40%
concordava, totalmente ou em parte, com a afirmação “todo bandido internacional foge para o Rio”. 160
Em seu documentário sobre a representação do Brasil no cinema estrangeiro – Olhar Estrangeiro
(2006) – Lúcia Murat levantou mais de 40 filmes em que os bandidos fogem para o país.
89
CAPÍTULO 1
propriedades nazistas conseguiram dar entrada no país; (c) determinar o impacto que
esses criminosos nazistas e colaboracionistas nazistas tiveram na cultura, na sociedade
e no governo do país.161 Para isso, a comissão contou com o apoio do Estado, especi-
almente para ter acesso aos arquivos, embora fosse um órgão independente.162
Tendo funcionado por seis anos, entre 1997 e 2005, a CEANA produziu três exten-
sos relatórios, além de livros e artigos que acabaram por formar a base de uma histo-
riografia sobre a questão dos criminosos nazistas na Argentina. A CEANA levou os
historiadores a se debruçarem pela primeira vez com atenção e profundidade sobre o
tema, até ali entregue a escritores, jornalistas e pesquisadores independentes. As pes-
quisas não ignoraram o fato de que autoridades argentinas tinham realmente facilitado
a imigração e a permanência de imigrantes com passados suspeitos no país. Uma das
principais revelações dos pesquisadores foi o número de 180 imigrantes acusados de
crimes de guerra nazistas, além de 100 colaboracionistas belgas e franceses que deram
entrada no país, dos quais 40 já haviam sido condenados por tribunais de seus respec-
tivos países. O relatório final da comissão apontou que a Argentina recebeu ouro na-
zista e croata, tendo o primeiro governo Perón facilitado o ingresso e a proteção des-
ses “indesejáveis”, mesmo que isso tenha se dado mais por questões de interesse téc-
nico-científico do que propriamente alinhamento ideológico. Além disso, as investi-
gações indicaram ter havido um “clima fascista e discriminatório em relevantes seto-
res da sociedade”, bem como a relativa influência que antigos sequazes do nazismo,
particularmente austríacos e belgas, tiveram dentro dos quadros governamentais ar-
gentinos do pós-guerra.163 Por outro lado, os pesquisadores da CEANA chamaram a
atenção para o fato de que muitas narrativas que circulavam desde o final da guerra
continham exageros e distorções, especialmente aquelas que mencionam submarinos
alemães chegando às costas argentinas repletos de tesouros e fugitivos nazistas, entre
os quais Bormann e o próprio Hitler. Os pesquisadores descartaram a existência da
ODESSA e a inexistência de uma operação de “resgate em massa” de nazistas. 164
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
161
Informe final da CEANA. Disponível em: archivo.cancilleria.gov.ar/abril. Acesso em: 02/05/2014.
162
Boletin Oficial de La República Argentina, N° 28.644, Buenos Aires, 12/05/1997. p.2.
163
Informe final da CEANA. Disponível em: archivo.cancilleria.gov.ar/abril. Acesso em: 02/05/2014.
164
O governo encampou as descobertas da comissão. Em 2000, durante uma visita aos Estados Unidos,
de posse já dessas primeiras investigações, o então presidente Fernando de La Rúa pediu desculpas
formais à comunidade judaica pela colaboração, no passado, com nazistas e criminosos nazistas. E em
março de 2003, em resposta ao jornal americano The New York Times, que havia publicado um artigo
no qual a Argentina era classificada como um “céu para nazistas”, o então embaixador da Argentina em
90
CAPÍTULO 1
91
CAPÍTULO 1
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
CHESNOFF, Richard Z. Pack of Thieves: How Hitler and Europe Plundered the Jews and Commit-
ted the Greatest Theft in History. Nova York: Anchor, 2011.
170
Apesar do foco na movimentação de patrimônio nazista, em diversas declarações feitas à imprensa
na época, representantes da comissão alegaram que também estava entre os objetivos da comissão de-
terminar quantos nazistas e criminosos nazistas entraram e viveram no país. Embora também tenha sido
dito que a comissão apuraria os governos de Getúlio Vargas, o texto da lei não especificou nenhum
período histórico. Cf. GLOGOWSKI, Márcia. Brasil investigará destino de bens trazidos por nazistas.
05/04/1997, p. A-20; MARQUES, Hugo. Começa caçada ao ouro nazista no Brasil. O Globo. 01/08/
1997, p.31; O Estado de S. Paulo, Brasil tenta localizar contas de nazistas” 01/08/1997, p. A-11.
171
Diário Oficial da União, 22/05/1997, Ano XXXVIII, N.96, pp.1-2.
92
CAPÍTULO 1
atos com o ato de constituição da comissão. 172 Esta, segundo duas palavras,
Vai buscar descobrir o que aconteceu com o patrimônio que se atribui terem
os nazistas trazido a alguns países da América do Sul e, no caso, ao Brasil, e
que é fruto do esbulho, da violência, da tortura, o que não pode ser aceito, um
século depois, dez séculos depois. E, como disse o Rabino Rizovel, não por
que se busque, com isso, reparar materialmente - pode-se até -, mas o propósi-
to é outro. Não é um ato que vai satisfazer à comunidade universal dos judeus
ou àqueles que aqui vivem no Brasil. É um ato para a cidadania toda no Brasil,
porque é uma demonstração de repúdio de todos nós a qualquer forma de vio-
lência e, mais ainda, à violência bárbara que foi a violência nazista. (…) E
quando criamos, portanto, essa comissão, não estamos simplesmente, falando
de nós próprios, dizendo que não queremos ser, pela nossa inação, coniventes
com tais fatos, e também que não pensamos ser esses atos existam só em ou-
tros povos. Nós sabemos que - por sorte, para nós, em escala menor - existem
aqui também. E a mesma repulsa que nos provoca a barbárie lá fora, há de
provocar a violência e transgressão do respeito aos direitos do homem em
qualquer momento, em qualquer região deste nosso país.173
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
172
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.368.
173
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.368-369.!
174
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.374.
93
CAPÍTULO 1
apenas por sete integrantes escolhidos pelo Presidente da República. A segunda dife-
rença refere-se ao tempo de atuação. Na Argentina, a comissão durou seis anos (1997-
2003). No Brasil, apenas dois (1997-1999). A terceira diferença tem a ver com com-
posição. Na CEANA, a maioria dos membros eram historiadores. Na brasileira, dos
sete membros escolhidos por FHC, apenas uma era historiadora.175 A quarta diferença
diz respeito ao contexto das duas comissões. A argentina estava conectada com um
contexto interno, marcado por dois atentados terroristas antissemitas ocorridos no país
e que obrigou as autoridades argentinas a se posicionarem mediante suspeitas de ali-
nhamento ideológico com o nazismo; a brasileira, enquanto isso, estava associada a
um contexto mais internacional, que objetivava mapear os bens de judeus usurpados
pelos nazistas durante a guerra, e também nacional, marcado pelo avanço no debate
da questão dos direitos humanos. Finalmente, a quinta e última diferença: se a
CEANA, mesmo mediante muitas críticas, avançou em termos historiográficos, pro-
duzindo relatórios, livros e artigos, no Brasil, a comissão brasileira foi mais tímida. O
decreto que instituiu a comissão fala apenas na entrega de relatórios semestrais e con-
clusões ao final da comissão que deveriam ser encaminhadas a Presidência da Repú-
blica. Não pude encontrar esse material publicamente. Mas em seu currículo lattes, a
historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sinaliza a conclusão, em 2001, de um projeto
intitulado “nazismo e atividades nazistas no Brasil”, apresentado como parte das ati-
vidades da comissão de que fez parte. Este projeto, segundo Carneiro, teve por foco o
diário de Albert Blume, suspeito de nazismo, e outros documentos guardados no Ban-
co do Brasil após a sua morte. Tal material, indica a historiadora, serviu para a identi-
ficação de centenas de nazistas radicados no Brasil. De qualquer forma, independente
da extensão/disponibilidade dos resultados, a comissão brasileira não produziu uma
historiografia, como no caso argentino, talvez, por não ter um caráter acadêmico.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
Eram os sete integrantes e suas respectivas funções na época da nomeação: Benjamin Benzaquen
Sicsú (administrador de empresas e colaborador do Ministério do Desenvolvimento), Benno Milnitzky
(Presidente Emérito da Confederação Israelita do Brasil), Eduardo Domingos Bottallo (professor de
direito na Universidade de São Paulo), José Carlos da Fonseca Jr. (diplomata), Maria Luiza Tucci Car-
neiro (Professora de História na Universidade de São Paulo) e Henry Sobel (rabino da Congregação
Israelita Paulista).
94
CAPÍTULO 1
Quadro&1:&Quadro!comparativo!entre!as!duas!comissões.
Dentre todos os casos explorados neste capítulo, o Caso Cukurs pode ser visto co-
mo um marco histórico. Cukurs foi o primeiro grande caso público do gênero no país,
aquele que mais provocou críticas ao Estado brasileiro e o que mais tempo durou. Isso
nos permite vê-lo em perspectiva histórica: ele se tornou desde o princípio um exem-
plo de como as autoridades governamentais brasileiras protegeram criminosos nazis-
tas. Em seguida, no decorrer do pós-guerra, Cukurs foi atualizado: além do governo,
redes secretas nazistas teriam lhe ajudado a permanecer no país. Finalmente, tornou-
se objeto de comparação. Foi analisado tendo em vista casos ocorridos no Brasil
(Bernonville, Wagner, Stangl e Mengele) e fora dele (Rauff, Bormann, Eichmann).
Criou-se, assim, uma prerrogativa histórica infalível: conhecer um é conhecer todos.
Cukurs tem sido ainda hoje um caso acionado a partir desta lógica com frequência.
Ele, na verdade, poderíamos dizer, se tornou exemplo de como o senso comum tem
ditado até hoje a maneira de se compreender a questão dos criminosos nazistas no
Brasil. Em dezembro de 2010, por exemplo, a revista Rolling Stones Brasil, publicou
uma reportagem intitulada “Nazismo Tropical – Como o movimento liderado por
Adolf Hitler ganhou força no Brasil e abrigou alguns dos maiores criminosos de todos
os tempos”. Nela, o jornalista Alexandre Duarte cita Cukurs, Wagner, Stangl e Men-
gele como exemplos da conivência do governo brasileiro no pós-guerra:
95
CAPÍTULO 1
Essa perspectiva também pode ser encontrada no livro Cidadão do Mundo, de Ma-
ria Luiza Tucci Carneiro. Ao comentar a política imigratória do governo brasileiro
logo depois da Segunda Guerra Mundial, Carneiro destaca que:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
176
Rolling Stones Brasil, “Nazismo Tropical”, dezembro de 2010. pp.109-114.
177
Aventuras na História, “Carrascos nazistas”, junho de 2007. p.13.
178
CAMARASA, Jorge. Odessa al Sur: la Argentina como refugió de nazis y criminales de guerra.
Buenos Aires: Aguilar, Taurus, Alfaguara, 2012. p.137.
96
CAPÍTULO 1
Haja vista que nem Cukurs e nem nenhum outro caso foi investigado pela historio-
grafia, as narrativas construídas ao longo das últimas décadas proliferaram sem serem
questionadas ou analisadas em profundidade. Muitas questões ainda são compreendi-
das a partir do senso comum. A partir do próximo capítulo, teremos a oportunidade de
começar a examinar o Caso Cukurs. Teria sido Cukurs realmente protegido pelo Esta-
do brasileiro no pós-guerra? Como as autoridades governamentais brasileiras agiram
em relação a Cukurs? As posições adotadas justificam as críticas que foram construí-
das ao longo do caso e que ainda hoje estão presentes nas narrativas sobre o tema? A
conivência do governo seria apenas mais um mito ou correspondeu a realidade? É
possível falar da existência de redes nazistas secretas no Caso Cukurs? O que, enfim,
a análise do Caso Cukurs nos diz a respeito da maneira como o Estado brasileiro atu-
ou nas questão dos criminosos nazistas e como lidou com as pressões oriundas da so-
ciedade? Essas perguntas orientam esta tese a partir do próximo capítulo.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do mundo: o Brasil diante do holocausto e dos judeus
refugiados do nazifascismo (1933-1948). São Paulo: Perspectiva, 2010. p.392.
180
Folha de S.Paulo (Online), “Polícia de SP protegeu carrasco nazista”, 06/08/2006. C.6.
97
CAPÍTULO 2
!
CAPÍTULO
Herberts Cukurs: de imigrante exemplar a
2 imigrante indesejado
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965, banco de dados com imagens, Family Search. Disponível
em: <https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:V13Z-MS3> Acesso em 09/07/ 2015. Herberts Cukurs,
1945; Rio de Janeiro, Brasil, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro; FHL microfilm.
2
Delfi, “Roberts Klimovičs: Kam domāti Brāļu kapi?”, Disponível em:
<http://www.delfi.lv/aculiecinieks/news/sabiedriba/roberts-klimovics-kam-domati-bralu-
kapi.d?id=37971691>. Data: 12/04/2011. Acesso em: 23/10/2013.
98
CAPÍTULO 2
!
Uma vez encerrado o conflito, Cukurs permaneceu no meio militar. Cursou a Esco-
la de Oficiais de Guerra e se tornou piloto de caça, sendo imediatamente incorporado
à recém-fundada Aeronáutica Letã. 3 Na aviação, seu talento não tardou a se manifes-
tar. Aquele jovem de pouco mais de 20 anos, proveniente de uma família de fazendei-
ros, além de piloto, também projetava, construía e fazia a manutenção dos próprios
aviões. A primeira aeronave que construiu, em 1924, o “C-1” (Cukurs-1), dispunha de
um único motor de 12 cavalos, quando a maioria dos modelos da época tinha até qua-
tro vezes mais potência.4 Quanto à sua personalidade, alguns relatos dão conta de um
piloto ousado e exibicionista. Certa vez Cukurs passou com o C-1 por debaixo de uma
ponte em Karosta, bairro ao norte de Liepaja, rente à superfície água. O fato – até hoje
lembrado pela mídia da Letônia – lhe valeu uma suspensão da Aeronáutica. 5
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Jaunais Vēstnesis, “Sabiedrība: Latvietis Herberts Cukurs pasaules debesīs”. Publicado em:
02/02/2010. Disponível em: <http://jvestnesis.lv>. Acesso em: 09/08/2015.
4
Uma história concisa da Letônia pode ser encontrada em: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe
- an introduction to the people, lands, and culture. Vol. I Santa Barbara, California: Abc-Clio, 2005.
5
Kasjauns, “Liepājas Karostas tilts dārdzības ziņā “pārspļauj” Dienvidu tiltu”. Publicado em
27/08/2009. Disponível em: < http://www.kasjauns.lv/lv/zinas/8077/liepajas-karostas-tilts-dardzibas-
zina-parsplauj-dienvidu-tiltu>. Acesso em: 09/08/2015.
99
CAPÍTULO 2
!
– e a segunda nação europeia em livros publicados por habitantes: 82 para cada 100
mil. Segundo o historiador Aldis Purs, o país testemunhou um “Renascimento”.6
Imagem&13.!Pilotos!da!Divisão!de!Aviação!Letã,!em!1925.!Cukurs!está!sentado!com!as!pernas!cruzadas,!com!
um!papel!na!mão!e!com!uma!mão!por!cima!da!outra.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
PURS, Aldis. Latvia. In: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe - an introduction to the people,
lands, and culture. Vol. I, Santa Barbara, California: Abc-Clio, 2005.
7
ROGAINIS, Janis. The emergence of an authoritarian regime in Latvia, 1932-1934. In: Lituanus, v.
17, n.3, pp. 61-85, 1971.
100
CAPÍTULO 2
!
J. Lee, “As medidas repressivas não eram de forma alguma completas e deixaram
uma grande margem de manobra. A imprensa, por exemplo, era menos reprimida do
que em outros lugares e ainda foi capaz de transmitir visões de esquerda. Não houve
qualquer tentativa de introduzir um sistema coorporativo completo e a iniciativa pri-
vada continuou florescendo." 8 Outro historiador, Maris Goldmanis, aponta que
nenhum prisioneiro político foi sentenciado à morte durante o regime Ulmanis,
enquanto que aqueles que foram detidos em seus primeiros momentos acabaram
libertados um ano depois do golpe, em 1935. Goldmanis pontua ainda que embora as
minorias étnicas tenham sofrido restrições em seus direitos, elas não foram alijadas da
vida social pelo regime.9 Finalmente, devemos sublinhar que entre os partidos proibi-
dos naquela época estava o do próprio Presidente Ulmanis, o Partido Agrário, e que
todos os grupos políticos existentes então no país foram oficialmente proibidos de
existir, inclusive o abertamente pró-nazista, Pērkonkrusts.10
101
CAPÍTULO 2
!
de entre os pilotos, cada qual desejando realizar o percurso mais inusitado, mais difí-
cil, mais perigoso. Em 1933, um dos raides mais ousados foi proposto pelos pilotos
Nikolajs Pūliņš e Roberts Celms: ir da Letônia até a Gâmbia. A rota tinha uma justifi-
cativa ufanista: no século XVII, Jacob Kettler, um nobre letão entusiasta do colonia-
lismo, estabeleceu uma colônia na África Ocidental, a chamada “Nova Kurzeme”,
cujo território corresponde atualmente à Gâmbia. A aventura colonial letã chegou a
prosperar no início. Porém, não foi longe. Os suecos atacaram a “Nova Kurzeme” e o
empreendimento, na época do expansionismo, acabou sucumbindo. 12
Imagem&14.!Cukurs!dentro!do!cockpit!de!seu!CI3.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!
O que era para ser um “resgate” do orgulho letão, no entanto, acabou se transfor-
mando em um fiasco. No dia 20 de junho de 1933, duas horas depois de decolar, o
avião de Pūliņš e Celms caiu na Alemanha. Os dois não se feriram, mas os estragos na
aeronave não lhes permitiram continuar a viagem. O constrangimento só não foi
maior porque Cukurs assumiu o desafio. Seu “C-3 “decolou no dia 28 de agosto de
1933. A viagem, entre ida e volta, durou um ano. Cukurs percorreu aproximadamente
20.000 km. A travessia foi amplamente coberta pela mídia letã e internacional.13 Nes-
ta altura, Cukurs encontrava-se licenciado do serviço militar. E isso tinha sido uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
BUTTAR, Prit. Between giants: the battle for the Baltics in World War II. Osprey, 2013. p. 279.
13
GUESLIN, Julien. La France et les petits États Baltes: réalités baltes, perceptions françaises et
ordre européen (1920-1932). Paris: Université de Paris - Panthéon-Sorbonne. 24 de janeiro de 2007.
(Tese de Doutorado.) pp. 574-575. Disponível em: tel.archives-ouvertes.fr. Acesso: 01/04/2013.
102
CAPÍTULO 2
!
decisão dele, já que vinha se dedicando cada vez mais à construção de aviões. Antes
de chegar ao fim da jornada, Cukurs passou por Berlim, Frankfurt, Paris, Valência,
Alicante, Málaga, Casablanca, entre outras, até alcançar, finalmente, Bathurst (que, a
partir de 1973, passou a se chamar Banjul, capital da Gâmbia).14 Em geral, o percurso
foi realizado de forma tranquila. Houve apenas uma grande intempérie, que o genro
de Cukurs, Francisco Rizzoto, contaria a um jornal uruguaio anos depois. Em setem-
bro de 1933, a 60 km de Barcelona, o C-3 sofreu uma pane e Cukurs fez um pouso
forçado no leito de um rio seco. Na ocasião, uma espanhola chamada Antinea Dolo-
res, moradora da região, lhe ajudou. Como agradecimento, Cukurs escolheu o nome
desta mulher para sua filha.15
Imagem&15.!Miniatura!comemorativa!do!raide!LetôniaIGâmbia.!Fonte:!La.lt.!
103
CAPÍTULO 2
!
tiveram ao descobrir que o C-3 funcionava com um motor de oito cilindros e com po-
tência de 80 cavalos, construído em 1916 e comprado de um ferro velho. 16
I
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Imagem&16.!Cukurs!recebido!por!multidão!em!seu!retorno!à!Letônia.!Fonte:!Latvian!Aviation.! !
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O exótico destino da viagem, a extensa cobertura jornalística e o avião construído c
e
pelo próprio piloto foram elementos suficientes para converter Cukurs em uma b cele-
i
bridade nacional. Quando o piloto retornou ao país, em maio de 1934, já sob dcontrole
o
de Ulmanis, milhares de pessoas o aguardavam no aeroporto de Liepaja. Em ! Riga,
p
onde chegou no dia seguinte, o aviador foi recepcionado por uma multidão de o curio-
r
sos, além de representantes do governo e jornalistas que lhe esperavam para dar ! início
m
às cerimônias de condecorações e homenagens.17 Mais tarde, a história desseu voo se-
l
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! t
16
Flight Global, "Airisms from the four winds - A noteworthy Latvian flight". Publicado em: i
04/01/1934. Disponível em: <http://www.flightglobal.com/pdfarchive/view/1934/1934%20- d
%200010.html>. Acesso em: 09/07/2015. p.14. ã
17 o
Latvian Aviation, "Rote Map - May 17, 1934 (Konigsberg - Liepaja)". Sem data de publicação.
! Dis-
e
ponível em: latvianaviation.com/en/?./content/Events/CukursGam1.ssi#Konig. Acesso em: 09/07/2015.
m
!
s 104
e
u
!
CAPÍTULO 2
!
ria relatada em um livro escrito pelo próprio Cukurs, intitulado Mans lidojums uz
Gambiju ("Meu voo para Gâmbia”), uma espécie de “diário de bordo” da viagem.18
Imagens&17&e&18.!À!esquerda,!charge!de!Cukurs!publicada!na!revista!letã!Atpūta,!em!1934;!à!direita,!matéI
ria!produzida!por!Cukurs!publicada!na!mesma!revista.!Fonte:!Periodika.lv.!!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
CUKURS, Herberts. Mans Lidojums uz Gambiju. Riga: Edição do autor, 1934.
19
Latvian Aviation, "Herberts Cukurs' Flight to Tokyo". Sem data de publicação. Disponível em:
<http://latvianaviation.com/Events/CukTokyo.html>. Acesso em: 09/07/2015.
20
Jornal do Brasil, “O momento aeronáutico”, 22/10/1936, p. 13.
105
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
A Águia do Báltico, "O voo épico de Herberts Cukurs de Riga a Gambia, na África". Publicado em:
02/05/2008. Disponível em: <http://herbertscukurs.blogspot.com.br/2008/05/o-voo-epico-de-herberts-
cukurs-para.html>. Acesso em: 09/07/2015.
22
O pacto, também conhecido como “Pacto de Não Agressão”, possuía uma parte secreta que acordava
a divisão do leste da Europa em duas esferas de influência. Letônia, Lituânia, Estônia e Romênia esta-
riam sob influência soviética, enquanto Finlândia e Polônia estariam sob influência alemã.
23
PURS, Aldis. Latvia. In: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe - An introduction to the people,
lands, and culture. Vol. I, Santa Barbara, Califórnia: Abc-Clio, 2005.
24
A deportação ocorrida no dia 14 de junho de 1941 talvez tenha sido a mais traumática. Nesta data,
milhares de letões foram deportados para a Sibéria em trens lotados. Famílias inteiras, com crianças,
mulheres e idosos foram enviados para campos de trabalho forçado. Sobre o episódio, conferir: Latvian
Aviation, "Soviet Mass Deportations of June 14 1941". Publicado em: 14/06/2012. Disponível em:
<http://latvianhistory.com/2012/06/14/soviet-mass-deportations-of-14-june-1941/>. Acesso em:
09/07/2015.
25
KUCK, Jordan. Renewed Latvia. A Case Study of the Transnational Fascism Model. Fascism, v. 2,
n. 2, p. 183-204, 2013.
106
CAPÍTULO 2
!
sovietização da Letônia foi ainda mais rápida. Sua constituição e sistema legal foram
substituídos, enquanto as Forças Armadas foram incorporadas às da URSS.26
Imagem&19.!Vagões!soviéticos!repletos!de!letões!deportados!em!14!de!junho!de!1941.!Fonte:!NOLLENI
DORFS,!Valters!et!al.!The!Three!Occupations!of!Latvia!1940I1991.Soviet!and!Nazi!TakeIovers!and!Their!
Consequences.!Riga:!Occupation!Museum!Foundation,!2005.!p.5.!
!
! Já a segunda ocupação da Letônia começou no dia 1o de julho de 1941. Hitler rom-
107
CAPÍTULO 2
!
Vasara se recorda: “Nós não tínhamos nenhuma afeição particular pelos alemães,
[mas] nós demos boas-vindas [a eles] por causa das deportações de 14 de Junho.”28
Imagem&20.!Letões!recepcionam!soldados!nazistas!em!Riga.!Fonte:!Wikipédia.!
108
CAPÍTULO 2
!
Imagem&21.!Imagem!do!interior!do!Gueto!de!Riga.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the ‘white spots’ of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acesso em: 09/07/2015.
30
O Comando Arajs, liderado pelo colaboracionista Viktor Arājs, foi o principal grupo colaboracionis-
ta letão. O Comando era uma unidade de Polícia Auxiliar, subordinada diretamente a SD. Participou
ativamente da perseguição, prisão e assassinato de judeus. Cf. EZERGAILIS, Andrew. War crimes
evidence from Soviet Latvia. Nationalities Papers, v. 16, n. 2, p. 209-224, 1988.
31
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the "white spots" of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acessado em: 09/07/2015.
109
CAPÍTULO 2
!
Cukurs esteve entre aqueles que colaboraram com a ocupação alemã. Anos mais
tarde, em depoimento ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo
(DEOPS/SP), Cukurs admitira que foi mecânico das unidades de polícia da Letônia
ocupada (Comando Arajs) e que lutou pelos alemães no front soviético. 35 De acordo
com seu testemunho, ele só teria apoiado as forças nazistas porque queria impedir de
qualquer forma o retorno das tropas soviéticos. Cukurs manifestava desprezo pelo
comunismo. Diversos judeus da Letônia que sobreviveram ao Holocausto, porém, ti-
nham uma versão diferente: Cukurs teria participado ativamente das ações de exter-
mínio do Gueto de Riga. Conforme veremos, esses sobreviventes vão relacionar o
aviador aos episódios de extermínio ocorridos entre novembro e dezembro de 1941.
Em meados de 1944, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, Cukurs dei-
xou a Letônia. As tropas soviéticas estavam próximas de recuperar o controle do país
e o fato de ele ter sido colaboracionista, independente do quanto contribuiu para o Ho-
locausto, era uma ameaça a sua segurança. Aos 44 anos, Cukurs saiu do país rumo a
Berlim. Sua família também deixou a Letônia. Na capital da Alemanha, Cukurs esteve
acompanhado de sua esposa, Milda (38), de seus três filhos menores de idade, Gun-
nars (14), Antinea (12) e Herberts Jr. (4), de sua sogra, Made (64), e, surpreendemen-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Rumbula, “Holocaust Overview & Locations”. Sem data de publicação. Disponível em: <
http://www.rumbula.org/holocaust_latvia_overview.shtml>. Acesso: 29/08/2012.
33
STRANGA, Aivars. The Holocaust in Occupied Latvia: 1941-1945. In: The Hidden and Forbidden
History of Latvia under Soviet and Nazi Occupations 1940-1991. Riga: Institute of the History of Lat-
via, 2005, pp. 161-174.
34
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the ‘white spots’ of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acesso em: 09/07/2015.
35
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls. 42-44.
110
CAPÍTULO 2
!
te, de uma jovem judia letã chamada Miriam Kaicners, de 23 anos, recém-integrada à
família e que Cukurs vinha protegendo pessoalmente desde 1941.36
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
A saída de Cukurs da Letônia é narrada pelo próprio Cukurs em seu depoimento ao Departamento de
Ordem Política e Social de São Paulo (ver referência anterior) e confirmada em documentos oficiais.
37
"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," data-base com imagens, Family Search
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:KC6K-3RR : acessado em 24 de outubro 2015), Miriam Kaic-
ners, Imigração; citado 1945, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
111
CAPÍTULO 2
!
Riga no qual ele vivia desde o início da ocupação nazista. Ali, Miriam revela ter per-
manecido algum tempo, limpando a casa e fazendo a própria comida, até que certo dia
Cukurs a levou para a casa de uma família judaica, os Blumenau, com quem ele su-
postamente tinha relações de amizade. Com essa família, Miriam afirma que viveu até
o dia 29 de novembro de 1941. Nesta data, todos foram descobertos pelos nazistas e
enviados ao Gueto de Riga. Antes de serem deportados, Miriam explicou à Federação
das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro que Cukurs veio de novo ao seu auxílio:
Pelo que Miriam descreve, a atitude de Cukurs foi fundamental para salvar sua vi-
da, pois, como sabemos, no dia seguinte a sua prisão, milhares de judeus foram sele-
cionados no Gueto de Riga e sumariamente executados nas imediações da cidade. E
segundo prossegue o depoimento tomado pela Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro, esta não foi a última vez que Cukurs a ajudaria. Após sua saída do
Gueto de Riga, Miriam afirmou que foi levada para a fazenda de Cukurs em Bukaiši.
No início, conta ela, só a esposa de Cukurs sabia de sua presença e de sua real identi-
dade. Para os filhos, a jovem foi apresentada tardiamente e apenas como “Marija”,
professora de inglês e alemão. Ela permaneceu em Bukaiši até 1944, quando Cukurs
preparou, então, a mudança para a Alemanha. Miriam revela que sua saída da Letônia
só foi possível graças a um passaporte falso arranjado por Cukurs. 39
112
CAPÍTULO 2
!
poucos progredindo. Depois de lhe contar o que tinha descoberto, Helga compartilhou
comigo vários documentos antigos de sua mãe. Entre esses documentos estavam di-
versas fotografias tiradas durante o período da guerra, pouco tempo depois da saída de
Miriam do Gueto de Riga. Nestas fotos, Miriam aparece viajando, trabalhando e se
divertindo com a família Cukurs. Outro documento importante deste acervo familiar é
o referido passaporte falso que teria permitido Miriam fugir para a Alemanha. Ele re-
almente existiu. Neste passaporte, Miriam Kaicners é Marija Cukurs, filha mais velha
de Cukurs. A informaçao é surpreendente: Cukurs deixou a Letônia rumo a Berlim,
capital do Terceiro Reich, levando a família e uma judia, cujo passaporte falsificado
alegava ser sua filha. Mesmo para um colaboracionista era um risco. Caso fosse pego,
não só Miriam, mas Cukurs e família poderiam sofrer punições bastante graves. Em
vários países sob ocupação alemã, aqueles que ajudassem judeus a saírem de áreas
judaicas sem autorização prévia eram punidos até mesmo com a morte. Punição
semelhante também era comumente aplicada a pessoas que abrigassem tais judeus e
que lhes fornecesse qualquer tipo de ajuda, o que englobava as coisas mais prosaicas,
tais como fornecer abrigo, transporte, comida, bebidas, informações, etc.40
Imagem&22.!Frente!do!passaporte!falso!de!Miriam!Kaicners.!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
40
Cf. BAUMAN, Janaína. Inverno na manhã. Uma jovem no Gueto de Varsóvia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
113
CAPÍTULO 2
!
Imagem&23.!Passaporte!falso!de!Miriam!Kaicners.!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga.!
Miriam conta que todos permaneceram mais ou menos sete meses em Berlim. Na
cidade, tanto ela quanto Cukurs trabalharam em uma fábrica de aviões. Somente em
duas oportunidades, informa, as autoridades alemãs lhe pediram para examinar os do-
cumentos. Nunca, porém, suspeitaram da fraude. Quando as forças militares soviéti-
cas começaram a se aproximar de Berlim, por volta de fevereiro e março de 1945, Mi-
riam e a família Cukurs teriam se dirigido para a região oeste da Alemanha. Lá, es-
conderam-se em uma floresta perto de Kassel, localizada no estado de Hessen, e de-
pois dirigiram-se para uma zona militar controlada pelo exército norte-americano. Mi-
riam se apresentou ao chefe desta zona pedindo conselhos sobre o que deveria fazer e
para onde ir. Este, por sua vez, sugeriu que ela e a família que a acompanhava fossem
para França. O conselho foi seguido e a viagem, segundo conta Miriam no depoimen-
to dado à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, foi feita no carro de
Cukurs. O automóvel trazia a reboque móveis e outros objetos de valor que Cukurs ia
vendendo para fazer dinheiro. Uma vez na França, instalaram-se num velho hotel, o
Hotel Panorama, em Cassis, no vilarejo de Bouches-du-Rhône, o mesmo que dali a
alguns meses concederia os salvo-condutos à Miriam e aos Cukurs. A indicação, pelo
que diz Miriam, foi feita por uma família polonesa que conheceram no caminho. 41
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.
114
CAPÍTULO 2
!
Imagem&24.!À!esquerda,!na!parte!inferior,!Miriam,!com!os!cabelos!pintados!de!louro,!aparece!em!uma!espéI
cie!de!campo.!Não!é!possível!determinar!a!data!da!foto!ou!as!duas!outras!pessoas!que!estão!nela.!O!que!se!
sabe,!porém!é!que!o!registro!foi!feito!durante!os!anos!em!que!Miriam!esteve!com!os!Cukurs.!Fonte:!Arquivo!
Familiar!de!Helga!Fisher.!!
Imagem&25.!No!fundo!da!foto!podemos!reconhecer!o!filho!mais!velho!de!Cukurs,!Gunnars.!No!primeiro!plaI
no,!vemos!seis!pessoas.!Da!esquerda!para!a!direita:!Milda!(esposa!de!Cukurs),!Miriam!e!Herberts!Cukurs!Jr.!
(no!colo),!um!homem!desconhecido!(seria!ele!o!pai!da!família!polonesa!que!encontraram!na!viagem!até!a!
França?),!uma!mulher!também!desconhecida!e,!finalmente,!Antinea!Dolores!Cukurs.!!Fonte:!Arquivo!FamiliI
ar!de!Helga!Fisher.!!
115
CAPÍTULO 2
!
Imagem&26.!Aqui,!Miriam,!também!com!o!cabelo!louro,!algo!que!teria!feito!para!não!levantar!suspeitas!dos!
nazistas,!aparece!com!aquele!que!muito!provavelmente!é!Herberts!Cukurs!Jr.!A!criança!nasceu!em!Liepaja!
no!dia!dois!de!outubro!de!1941.!Chegou!ao!Brasil!com!cinco!anos!de!idade.!Atualmente,!ele!vive!no!Brasil.!!
Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!!
116
CAPÍTULO 2
!
Imagem&27.!Documento!de!identidade!de!Miriam!expedido!pelas!autoridades!francesas!em!seis!de!outubro!
de!1945!e!válido!até!6!de!janeiro!de!1946.!!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!!
117
CAPÍTULO 2
!
Embora tivesse sido libertada em 1944, a França era, como quase toda a Europa
naquele imediato pós-guerra, um país vilipendiado após seis anos de conflitos inten-
sos. Faltavam alimentos, empregos, moradia e assistência básica. Doenças antes erra-
dicadas ou vencidas com facilidade pela ciência voltavam às ruas e não havia assis-
tência social ou médica suficiente para os doentes. Segundo Tony Judt, os europeus
não tinham motivos para sentir otimismo em relação ao futuro naqueles meses.42 Em
virtude dessas dificuldades – e talvez com medo de possíveis represálias por sua cola-
boração na ocupação nazista da Letônia – Cukurs decidiu deixar a Europa.
Imagem&28.!Documento!das!autoridades!americanas!dando!passe!livre!de!deslocamento!para!Miriam.!DoI
cumento!também!pode!ter!ajudado!a!família!Cukurs.!Fonte:!Codes,!SPMAF/RJ!217178.!Arquivo!Nacional.!!!
O primeiro passo para sair do continente foi reunir todos os documentos necessá-
rios. Da prefeitura de Bouches-du-Rhône, em novembro de 1945, ele adquiriu um sal-
vo-conduto (substitutivo do passaporte) e um visto de saída francês, além de um ates-
tado de bons antecedentes e outro de saúde. Depois disso, precisou de um item igual-
mente importante: o visto de um país que o aceitasse. De acordo com Miriam, Cukurs
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 27.
118
CAPÍTULO 2
!
Com o visto permanente concedido pelo MRE, Cukurs, sua esposa, a sogra, seus
três filhos e Miram Kaicners (na qualidade de “filha adotiva”) embarcaram no vapor
Cabo de Buena Esperanza, em Barcelona, rumo ao Brasil, no dia cinco de fevereiro
de 1946. Viajaram todos de terceira classe. Pertencente à Ybarra y Cía., famosa com-
panhia marítima de Sevilla, o vapor era na época uma das principais linhas que liga-
vam o mediterrâneo ao Cone Sul. Durante a guerra, ele e o seu gêmeo, o Cabo de
Hornos, transportaram toda sorte de pessoas da Europa para a América do Sul.48
Cukurs, portanto, não chegou ao Brasil por meio das chamadas ratlines, como
eram conhecidas as rotas utilizadas por diversos refugiados do nazismo depois da
guerra. Não houve também falsificação de documentos – todos vieram com seus res-
pectivos nomes verdadeiros – e nem ajuda de setores católicos ou da Cruz Vermelha.
Pelo menos isso não aparece em nenhum dos documentos aqui analisados. Sua vinda
para o Brasil seguiu aparentemente todos os trâmites burocráticos da época. Também
não encontrei na documentação indícios de ajuda de redes nazistas a Cukurs.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.
44
AHI-RJ. Consulado Brasileiro em Marselha, 44/6/12: Telegrama 22.
45
AHI-RJ. Consulado Brasileiro em Marselha, 45/5/11: Telegrama 26.
46
AN-RJ. Pedido de visto em passaporte estrangeiro, SPMAF/RJ, N.217180, fl. 12.
47
O HICEM era uma organização criada em 1927 com o objetivo de ajudar judeus europeus a imigrar.
O HICEM era composto por três associação imigratórias judaicas: HIAS (Hebrew Immigrant Aid So-
ciety), ICA (Jewish Colonization Association) e a Emigdirect. Fonte: Yad Vashem, “Hicem”. Disponí-
vel em: <yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206368.pdf>. Acesso em: 10/05/2013.
48
NEWTON, Ronald C. The "Nazi Menace" in Argentina. California: Stanford University Press, 1992,
p. 273.
119
CAPÍTULO 2
!
Imagem&29.!Miriam!e!Cukurs!nas!ruas!de!Marselha,!França,!1946.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo.!
Em uma entrevista dada anos depois para a revista O Cruzeiro, Cukurs disse que a
“escolha” de vir para o Brasil teve a ver com aviação. Um aviador acrobata que esti-
vera no país teria lhe mostrado um álbum de fotografias e lhe contado sobre a existên-
cia de mais de 300 aeródromos no país sul-americano. 49 Pode ser realmente que isso
seja verdade, afinal de contas, o Brasil já tinha uma história famosa dentro da aviação,
não só pelo pioneirismo de Santos Dumont, mas principalmente por empresas como a
Varig e a Panair, que desde os anos 1920 já operavam regulamente no país. Mas é di-
fícil acreditar que Cukurs tenha vindo para o Brasil com base apenas no que lhe disse-
ra um colega aviador. Outros fatores podem ter influenciado o letão. Ele poderia estar
procurando também um país distante, onde a comunidade letã fosse pequena e antiga.
O governo brasileiro pode ainda ter sido o único a ter lhe conferido o visto de entrada,
não restando a Cukurs muitas outras possibilidades. O motivo de vir para o Brasil po-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
49
O Cruzeiro, “Do Báltico ao Brasil”, 24/06/1950, pp. 119-122.
120
CAPÍTULO 2
!
de ter sido uma combinação destes motivos e muitos outros não mencionados aqui.
Talvez nunca saibamos ao certo.
Imagem&30.!Da!esquerda!para!a!direita,!Mirian!Kaicners,!Gunnars!Cukurs,!mulher!não!identificada,!Milda!
Cukurs,!Herberts!Cukurs!Jr.!e!Antinea!Cukurs.!Todos!a!bordo!do!Cabo!de!Buena!Esperanza.!Fonte:!Arquivo!
Familiar!de!Helga!Fisher.!
!
O mais importante, porém, é responder: porque o governo brasileiro permitiu a
imigração de Herberts Cukurs para o Brasil? Como foi possível que um colaboracio-
nista imigrasse para o país sem levantar qualquer tipo de suspeita? Saberiam as auto-
ridades brasileiras em Marselha de suas atividades durante a ocupação nazista na Le-
tônia? Que condições históricas nos permitem compreender a vinda de Cukurs para o
país? Para responder essas perguntas, devemos antes de tudo compreender a política
imigratória do governo brasileiro e algumas características do contexto do pós-guerra.
Desde o final do século XIX, parte da elite brasileira havia aderido à teoria racial
do “branqueamento”. Segundo explica Thomas Skidmore, essa teoria defendia a supe-
rioridade do branco sobre as outras raças e apostava no sistemático desaparecimento
do negro da sociedade brasileira, graças a fatores como a miscigenação e a suposta
baixa taxa de natalidade da população negra. Nesse sentido, a população brasileira iria
121
CAPÍTULO 2
!
122
CAPÍTULO 2
!
diretrizes que pudessem orientar a imigração. Foi com base no Decreto-Lei 3010, a
propósito, que o Itamaraty autorizou o pedido de visto de Cukurs em 1945. 54
Imagem&31.!!Arthur!Hehl!Neiva,!do!Conselho!de!Imigração!e!Colonização!(CIC),!diz!em!entrevista!à!
imprensa!brasileira!que!a!prioridade!do!Brasil!são!os!elementos!brancos.!Nem!sempre,!porém,!essa!
escolha!era!tão!escancarada.!Fonte:!O!Globo,!21/03/1945,!p.!10.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
BRASIL. Lei Nº 3.010, de 20 de agosto de 1938. Regulamenta o Decreto-lei n. 406, de 4 de maio de
1938, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros no território nacional. Diário Oficial [da República
Federativa do Brasil], Rio de Janeiro, DF, 22 de julho de 1938. Seção I, pp. 16792.
55
MOVSCHOWITZ, Jeronymo. Nem negros, nem judeus. A política imigratória de Vargas e Dutra
(1930-1954). (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História. Junho de 2011.
56
MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e
50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, 1999.
123
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
57
MOVSCHOWITZ, Jeronymo. Nem negros, nem judeus. A política imigratória de Vargas e Dutra
(1930-1954). (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História. Junho de 2011, p. 145.
58
Ibidem, pp. 145-146.
124
CAPÍTULO 2
!
No capítulo anterior, assim que o Caso Cukurs veio à tona, vimos que muitos jor-
nais fizeram a seguinte relação: as autoridades brasileiras que restringiam a entrada de
judeus no país eram as mesmas que facilitavam, depois da guerra, a imigração de cri-
minosos nazistas. Essa relação, no entanto, produz distorções de análise. Os judeus
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
HARDING, Thomas. Hanns & Rodolf: o judeu-alemão e a caçada ao Kommandant de Auschwitz.
Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 147.
125
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Existe um amplo debate bibliográfico sobre o tema: KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o em-
baixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002; KOIFMAN,
Fábio. Imigrante ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012; MILGRAM, Avraham. Os judeus do Vaticano: a tentativa de
salvação de católicos não-arianos da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). Rio de
Janeiro: Imago, 1994; MILGRAM, Avraham; GREENWOOD, Naftali. The Jews of Europe from the
Perspective of the Brazilian Foreign Service, 1933–1941. Holocaust and Genocide Studies, v.9, n. 1,
pp. 94-120, 1995; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconcei-
to. Rio de Janeiro: Imago, 1995; KLICH, Ignacio; LESSER, Jeffrey (Ed.). Arab and Jewish immigrants
in Latin America: images and realities. Routledge, 2013; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O antisse-
mitismo na era Vargas: fantasmas de uma geração, 1930-1945. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
126
CAPÍTULO 2
!
127
CAPÍTULO 2
!
Imagem&32.!Miriam!Kaicners!em!sua!Ficha!de!Registro!de!Estrangeiros.!Fonte:!Family!Search.!!
Uma vez no Brasil, Cukurs e Miriam seguiram caminhos diferentes. Era a primeira
vez em cinco anos que isso acontecia. Ele foi morar com a família em um sobrado na
rua São Cristóvão, Zona Norte do Rio de Janeiro, enquanto que ela foi morar com
uma família judaica de nome Chapkosky. Em depoimento, Miriam conta que fez ami-
zade com uma passageira a bordo do Cabo de Buena Esperanza. Esta pessoa, então,
sugeriu que, após o desembarque, ela procurasse pela referida família. Com os Cha-
pkosky, Miriam conta que passou aproximadamente um ano. Até o letão ser acusado
de criminoso de guerra, Miriam diz que continuou vendo os Cukurs com frequência.67
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
AUGRAS, Monique. A Ordem na Desordem. A regulamentação do desfile das escolas de samba e a
exigência de "motivos nacionais". Rev. Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 21, pp. 90-103, fev.
1993.
66
Na verdade, desde 1943, a UNE e a LDN, patrocinadoras do carnaval, haviam criado o “carnaval da
vitória”, como uma forma de mobilizar a população para o esforço de guerra e incentivar os pracinhas
da Força Expedicionária Brasileira. Esta padronização do carnaval se estendeu até 1946, quando, de
fato, o carnaval foi o “Carnaval da Vitória”. Cf. COSTA, Haroldo. Política e religiões no Carnaval.
Rio de Janeiro: Irmãos Vitale Editores, s.d., p. 107.
67
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.
128
CAPÍTULO 2
!
Segundo Richards Cukurs, filho mais novo de Cukurs, as coisas foram gradual-
mente se estabilizando para a família. O primeiro emprego do pai, ele conta, foi como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
68
AN-RJ. Ofício do Crédit Lyonnais de Marseille a Herberts Cukurs, SPMAF/RJ, N.217180, f. 8.
69
AN-RJ, Processo de Naturalização de Izaks Bojarskis, CODES, BR.AN.RIO.A90 PNE: 77983/1949.
70
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 68.
71
A Águia do Báltico, "A Defesa". Data de publicação: 22/05/2008. Disponível em
<http://herbertscukurs.blogspot.com.br/search/label/A%20DEFESA.>. Acesso em: 09/08/2015.
72
Série histórica do salário mínimo no Brasil disponível em:
<http://www5.jfpr.jus.br/ncont/salariomin.pdf>. Acesso em: 09/08/2015.
129
CAPÍTULO 2
!
A partir de agosto de 1948, fica mais fácil acompanhar a trajetória de Cukurs. Nes-
te ano, ele e a esposa reuniram vários documentos a fim de dar entrada na naturaliza-
ção brasileira. Entre os documentos estavam atestados de bons antecedentes emitidos
pela polícia do Rio de Janeiro, uma declaração de bom pagador emitida pela empresa
Thornycroft, uma declaração de idoneidade moral e financeira do banco Moreira Sal-
les S.A., além de certidões emitidas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comér-
cio, que confirmavam que Cukurs e Milda encontravam-se regularizados no país, ten-
do os dois aqui vivido por três anos consecutivos. Um dos documentos mais interes-
santes é uma declaração de Vilis Tomsons, o encarregado de negócios da Legação da
Letônia no Brasil, operando à título extraoficial no Rio de Janeiro desde a ocupação
daquele país pela União Soviética, em 1940. O documento declarava que o cidadão
letão Herberts Cukurs era “pessoa há muito conhecida nesta Legação, bem como na
Letônia, onde foi capitão da aviação militar antes da ocupação russa, e que sempre
gozou do melhor conceito perante as autoridades de seu país e ainda continua mere-
cendo toda a confiança desta Legação”. Nas palavras de Tomsons ainda, Cukurs con-
tinuava sendo uma pessoa dotada de “absoluta idoneidade moral e financeira”.76 Em
12 de julho de 1949, Cukurs e Milda deram entrada oficial em sua naturalização.77
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
A Águia do Báltico, "A Defesa". Data de publicação: 22/05/2008. Disponível em
<http://herbertscukurs.blogspot.com.br/search/label/A%20DEFESA.>. Acesso em: 09/08/2015.
74
Entrevista de Sylvio Kelner ao autor da tese, Rio de Janeiro, 03/05/2013.
75
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fls. 231-232.
76
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fl. 18.
77
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fls. 12-23.
78
BRASIL. Departamento de Concessões. Diário Oficial do Distrito Federal. Dois de dezembro de
1949. Seção 2, p. 440.
130
CAPÍTULO 2
!
ca, construções náuticas e aeronáuticas. Foi a partir desta nova atividade que Cukurs
começou a construir embarcações aquáticas de pequeno porte, movidas por pedais
dianteiros, disponíveis para uma ou duas pessoas. Essas embarcações foram no início
chamadas de “bicicletas aquáticas”, mas logo ficaram conhecidas como “pedalinhos”.
131
CAPÍTULO 2
!
de influência de numerosas famílias” e para qual atrairiam ainda mais crianças e adul-
tos tão logo acabassem as obras de melhoramentos que Cukurs vinha implementando:
Animado cada vez mais pela obra que realizou, com a ajuda de todo
o pessoal de casa, Herberts Cukurs está cuidando agora de organizar
um serviço de skis aquáticos, bem como da instalação de um moder-
no flutuante com capacidade para abrigar um pequeno bar, devida-
mente decorado e com sugestivos aspectos, o que certamente ofere-
cerá maior requinte de beleza, e atrativos outros, àquele lugar. Além
disso, acha-se também empenhado na construção de um 'playground',
nas proximidades de sua 'pequena marítima', a qual daria para entre-
ter um bom número de crianças, isso inteiramente grátis. O
'playground', numa homenagem sincera e espontânea do construtor,
terá o nome da senhora Deborah Mendes de Morais, esposa do pre-
feito do Distrito Federal (...) Quanto ao flutuante em apreço, o mes-
mo terá o nome do comandante Waldemar Mota, também num preito
de reconhecimento e gratidão de Herberts Cukurs e sua família àque-
la autoridade.83
A boa relação com a imprensa sempre acabava voltando de forma positiva através
de novas matérias sobre os pedalinhos. Essas matérias – que divulgavam a empresa
para o grande público – elogiavam as inovações levadas por Cukurs à Lagoa Rodrigo
de Freitas e contribuíam para a construção de um perfil quase mítico de seu proprietá-
rio. Cukurs era, em geral, descrito como um self-made man, um indivíduo que, após
fugir dos horrores do pós-guerra e principalmente da perseguição do comunismo, en-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
A Manhã, “Skis aquáticos e um novo e moderno flutuante”, 14 de setembro de 1949, p.1 e 13.
84
Diário de Notícias, “Desconto de 25 por centro para os jornalistas”, 17/06/1950, p.4.
85
Revista de Copacabana, “Comemorações”, 13/04/1948, p.6.
86
A Manhã, “Skis aquáticos e um novo e moderno flutuante”, 14/09/1949, p.13.
132
CAPÍTULO 2
!
controu a acolhida de um país e de seu povo. Havia também aquelas reportagens que
destacavam seu espírito aventureiro e heroico, como podemos ler no trecho abaixo,
retirado de uma reportagem publicada pelo A Manhã em abril de 1949:
Se algum dia, por este ou aquele motivo, Herberts Cukurs fosse con-
denado à inatividade, isto para ele seria uma verdadeira morte. Mes-
mo com todos os proventos, a ideia de não fazer nada apavora aquele
forte e corpulento letoniano (sic) que fomos encontrar na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, à frente do seu negócio. (…) Herberts Cukurs desde
criança possui o espírito de aventura. Nas suas veias corre o mesmo
sangue dos heróis que estamos acostumados a conhecer nos livros de
ficção. Cresceu, tornou-se homem feito, e sempre com a mesma dis-
posição, com os mesmos propósitos. E foi certamente para dar me-
lhor campo ao seu espírito aventureiro que ele decidiu entrar na avia-
ção. 87
“Dos céus belicosos da Europa às águas mansas da Lagoa”, como se intitulava essa
matéria de A Manhã, também abordou o passado recente de Cukurs, desde seu raide à
África até a conjuntura política que o teria obrigado a deixar a Letônia. Esta narrativa,
que se repete em outras publicações, recorre aos eventos que tornaram Cukurs famoso
na Letônia para construir a imagem de um imigrante heroico e exemplar no Brasil:
133
CAPÍTULO 2
!
magadora superioridade numérica, acabaram por dominar a Letônia
que, até hoje, permanece sob o julgo bolchevista. Para não se subme-
ter ao invasor, Herberts Cukurs, como tantos outros compatriotas,
decidiu imigrar. 88
Cukurs, como se pode ver, não tinha o menor pudor de se expor na mídia. Enquan-
to outros colaboracionistas nazistas no pós-guerra evitavam grandes centros urbanos e
todo tipo de publicidade, ele fazia exatamente o oposto disso. Dava entrevistas, apro-
ximava-se de jornalistas e trabalhava diretamente com o grande público. Não há como
afirmar se fazia isso por excesso de confiança ou porque ele realmente não se consi-
derava um criminoso de guerra. Cukurs certamente sabia, porém, que quanto maior
fosse sua popularidade, maior seria a chance de seus negócios crescerem. E foi justa-
mente isso o que aconteceu. No início de 1950, Cukurs, segundo próprio levantamen-
to, possuía 20 pedalinhos, duas lanchas, cinco caiaques, duas baleeiras para remos,
um barco à vela, três bases flutuantes, um bar, um anfíbio e um hidroavião.89
Imagem&33.&Reportagem!especial!sobre!os!pedalinhos.!Fonte:!A!Manhã,!03/04/1949,!p.14.&
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
88
A Manhã, “Dos céus belicosos da Europa às águas mansas da Lagoa”, 03/04/1949, p. 14.
89
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fl. 252.
134
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Cf. RIBEIRO, Goulart Ana Paula. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Ja-
neiro: e-papers, 2007.
91
O Cruzeiro, “Do Báltico ao Brasil”, 24/06/1950, pp. 119-122.
135
CAPÍTULO 2
!
Imagens&34&e&35:&três!páginas!da!
reportagem!“Do!Báltico!ao!Brasil”.!
Nas!imagens,!podeIse!ver!toda!a!
família!trabalhando!nos!pedalinhos.!
Fonte:!O+Cruzeiro,!24/06/1950.&
O caminho que levou até aquela coletiva de imprensa foi longo. Ele começa ainda
em 1946, pouco tempo depois da chegada de Cukurs ao Brasil. Izaks Bojarskis, o fun-
cionário da Mesbla para quem Cukurs vendeu sua máquina fotográfica, era amigo de
Wolf Vipmans, imigrante lituano, empresário do meio teatral brasileiro e presidente
da Sociedade de Auxílio aos Judeus Letônicos e Lituanos. Bojarskis contou a
Vipmans do seu encontro com Cukurs e de como o ajudara comprando a máquina
Leika. Vipmans, no entanto, desconfiou da história contada por Cukurs e escreveu
para seu primo, Gustav Joffe, sobrevivente do Holocausto na Letônia.92 Joffe, então,
revelou: Cukurs era criminoso de guerra. No dia 23 de maio de 1946, ele e mais um
amigo, também sobrevivente do Holocausto, Anthony Landau, agiram. Em Paris, on-
de viviam, escreveram uma carta denunciando os crimes de Cukurs e apontando sua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 68. Wolf
Vipmans faleceu em 1948. Mas, sua viúva, Zinaida Vipmans, contou essa história em depoimento dado
à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1950, a fim de esclarecer o
Caso Cukurs. As cartas mencionadas por ela, contudo, não aparecem na documentação aqui analisada.
136
CAPÍTULO 2
!
localização no Rio de Janeiro. A carta foi enviada à Associação dos Judeus Bálticos
na Grã-Bretanha. Seu conteúdo era curto, mas objetivo:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.27.
94
O Radical, “O criminoso que a Rússia não quis extraditar”, 18/08/1950, pp. 1 e 4.
137
CAPÍTULO 2
!
para!casos!do!tipo!em!face!ao!emergente!desgaste!na!relação!entre!os!países.!O!
que,! aliás,! tornava! a! situação! mais! temerária.! Uma nova ruptura das relações di-
plomáticas entre os dois países parecia apenas uma questão de tempo. Isso significava
que a viabilidade da extradição de Cukurs tinha o relógio como inimigo. Se Suritz ou
Moscou não mudassem de ideia, a permanência de Cukurs no país poderia ser facili-
tada. E foi exatamente o que acabou acontecendo. Em outubro de 1947, Brasil e Uni-
ão Soviética romperam mais uma vez relações diplomáticas e a janela de extradição
de Cukurs se fechou.
138
CAPÍTULO 2
!
época, a sua única afiliada no país.98 O problema é que o Centro Hebreu Brasileiro
tinha encerrado suas atividades em 1948. 99 Como o Congresso Judaico Mundial não
sabia disso, continuou enviando correspondências ao antigo endereço de sua extinta
afiliada. O mal-entendido só foi percebido quando a entidade abriu a sua própria re-
presentação no Rio de Janeiro, em junho de 1949.100 O encarregado deste escritório,
Vojtech Winterstein, antigo líder da comunidade judaica tcheca, percebeu o erro e
imediatamente transmitiu a informação aos demais escritórios de sua rede. 101
139
CAPÍTULO 2
!
mento, Scolnicov indicou que havia duas correntes de opinião predominantes entre os
judeus leto-lituanos no Brasil: uma delas, mais conservadora, pretendia continuar em
sigilo e reunindo provas contra Cukurs, até que uma conjuntura favorável no país pu-
desse garantir o êxito político, jurídico ou policial no caso; a outra, defendia a imedia-
ta reação no que fosse possível. Scolnicov defendeu a segunda opinião e, neste senti-
do, propôs uma série de medidas simultâneas, das quais destaco quatro: (1) Criar uma
Comissão de Investigação; (2) convocar uma reunião com os redatores-chefes da im-
prensa judaica e com jornalistas judeus da imprensa não judaica; (3) acionar as prin-
cipais autoridades brasileiras; (4) manter contato regular com organizações judaicas
estrangeiras. 103
A leitura de Scolnicov parecia estar bastante alinhada com aquela manifestada pelo
Comitê de Investigações dos Crimes de Guerra Nazistas nos Países Bálticos e pelo
escritório do Congresso Judaico Mundial no Rio de Janeiro. Em trocas de correspon-
dências realizadas alguns meses antes, essas duas instituições pareciam reticentes tan-
to em relação à efetividade dos depoimentos que haviam sido reunidos quanto à pos-
sibilidade de se resolver a questão dentro dos trâmites jurídicos. Afinal de contas, não
havia mais relações diplomáticas entre Brasil e União Soviética e o país ainda neces-
sitava ratificar certos acordos internacionais para permitir a extradição. Ambas con-
cordaram, entretanto, que, por ora, o material que tinham reunido poderia ser utilizado
política e jornalisticamente.105
140
CAPÍTULO 2
!
Para o encontro do dia 30 de junho foram convidados Leon Padilha e Aron Neu-
mann, da revista Aonde Vamos?; o jornalista e escritor alemão Ernest Feder, colabo-
rador do Diário de Notícias; Yvonne Jean, autora da coluna Presença da Mulher, do
Correio da Manhã; Isaac Amar, do jornal O Radical; Nahum Sirotsky, de Diário da
Noite; Renzo Massarani, do Jornal do Brasil; Magalhães Júnior, do Diário de Notí-
cias; Joel Silveira, do Diário de Notícias; João Martins, de O Cruzeiro; Jacob Kutner,
do Jornal Israelita; Murilo Marroquin, de O Jornal; Austregésilo de Athayde, do Di-
ário da Noite; e os diretores do Jornal do Brasil, Nossa Voz e Imprensa Israelita.108
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fls.23-38.
107
Ata da Reunião da Junta Executiva da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, p.58.
108
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN:154. fl.34.
141
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 52-53.
142
CAPÍTULO 2
!
Tukacier encerra seu depoimento dizendo que Cukurs participou dos massacres
ocorridos no final de novembro de 1941, conhecidos como “A Grande Ação”. O de-
poente contou que estava reunido em uma praça do Gueto de Riga com outros 30 mil
judeus, aproximadamente, quando viu Cukurs chegar num automóvel. Era o dia 29 de
novembro de 1941 – o mesmo dia em que Miriam diz ter sido salva por Cukurs. Os
internos que eram capazes de trabalhar foram enviados para o “Gueto Pequeno”, en-
quanto que os demais, não aptos para o trabalho, permaneceram onde estavam. No dia
seguinte, os não aptos para o trabalho foram levados à floresta Bikernieku e fuzilados.
Tukacier conta que Cukurs foi um dos dirigentes da ação. “Vi Cukurs espancar e fuzi-
lar muitos que não podiam manter o passo com o destacamento ou não marchavam
em ordem. Dentre eles havia muitas mulheres e crianças pequenas”.112
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 51-54.
111
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 53.
112
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 54.
143
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 49.
114
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 49.
115
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 50.
144
CAPÍTULO 2
!
no edifício e vinham diretamente trabalhar ali eram quatro, inclusive
eu. Vi muitas vezes Cukurs socar os ouvidos e de outra forma espan-
car os judeus forçados a trabalhar no edifício da Waldemarstrasse. Os
muitos letões, e particularmente os guardas letões que também traba-
lhavam no edifício e lá estavam estacionados, se achavam quase que
exclusivamente sob o comando de Cukurs. Vi repetidas vezes muitos
judeus serem transferidos de suas celas para o interior de carros e
partirem com Cukurs e seus homens. Nós, os da equipe permanente
de trabalho, tínhamos de colocar pás nesses carros e o transporte se-
guia para destino desconhecido de nós. Quando uma vez perguntei a
uma sentinela letã para onde se dirigia a jornada, respondeu-me sor-
rindo e de modo sarcástico que “eles íam caçar coelhos”.116
É importante notar que tanto Tukacier quanto Fiszkin e Shapiro dizem que viram
pessoalmente os crimes cometidos por Cukurs. Ao usar expressões como “testemunha
ocular”, fazem questão de sublinhar que não souberam dos episódios de violência de
Cukurs por terceiros, mas de eventos que os próprios viram ou sofreram. Todos tam-
bém destacaram que Cukurs ocupou uma posição de liderança entre os letões colabo-
racionistas. É neste sentido, a propósito, que Shapiro narra um episódio ocorrido logo
depois de perder seu apartamento e ter sido obrigado a trabalhar para Cukurs:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
116
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 50.
117
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 50-51.
145
CAPÍTULO 2
!
Cukurs sabia que eu tocava piano e certa noite ele me fez entrar no
apartamento, onde eu tive de tocar a noite inteira. No apartamento de
Cukurs estavam reunidos muitos letões, todos dirigentes da Polícia
de Segurança. Depois de todos os letões – e entre eles também Cu-
kurs, naturalmente – estarem bastante embriagados, vi trazer para a
sala uma moça judia que naturalmente fora durante todo o tempo
mantida quer na cozinha, quer no quatro adjacente, começando então
os letões a se divertirem com a mesma. Sentado ao piano, vi como a
despiram e fui testemunha ocular de como a moça foi violentada pe-
los letões, um após outro. Estou informado de que essa moça foi con-
servada trancada por Cukurs no seu apartamento por muitas sema-
nas.118
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
118
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 50-51.
119
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 54-55.
146
CAPÍTULO 2
!
Schub – mesmo sem dizer se presenciara ou não tais episódios – diz também que
Cukurs fez uma viagem a pequenas cidades lituanas em julho e agosto de 1941, du-
rante a qual teria fuzilado e esterilizado judeus. “Em Kuldiga, na Curlandia, ele impe-
liu todos os judeus para o lago de Venta e os forçou a se afogarem. Os que não quise-
ram entrar bastante pela água a dentro foram fuzilados pelos seus assistentes até que a
agua ficou vermelha com o sangue dos 2000 judeus mortos”.120 O depoente, à exem-
plo de Tukacier, Fiszkin e Shapiro, também associou Cukurs aos acontecimentos
ocorridos no Gueto de Riga. O sobrevivente afirmou ter visto Cukurs bêbado várias
vezes com uma arma na mão no Gueto e abrindo covas na floresta de Bikernieku.121
A repercussão das denúncias contra Cukurs foi rápida. O primeiro veículo de co-
municação a publicá-las foi a Folha do Rio. Edmar Morel, conforme vimos no capítu-
lo anterior, não poupou no tom dramático na manchete publicada na primeira página:
“Famoso matador de gente”. A matéria incluiu Cukurs numa longa lista de nazistas e
criminosos nazistas que teriam chegado aos portos brasileiros em busca de refúgio.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 55.
121
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 55.
122
Mais informações sobre as atividades dos Klabin-Lafer, incluindo a influência que exerceram na
política brasileira, Cf: MARGALHO, Maurício Gonçalves. Klabin Irmãos & Cia: os empresários, a
empresa e as estratégias de construção da hegemonia (1930-1945). In: POLIS – Laboratório de História
Econômico-Social. Disponível em: <historia.uff.br/polis/files/texto_8.pdf>. Acesso em: 25/03/2015.
147
CAPÍTULO 2
!
A ideia de que o governo era o responsável pela vinda de criminosos nazistas para
o país, aliás, foi defendida por diversos jornais. Para o Tribuna da Imprensa, o “nazis-
ta dos pedalinhos” ilustrava a “onda de elementos indesejáveis” que as autoridades
brasileiras permitiam que entrassem livremente no país.124 Já para Osório Borba, do
Diário de Notícias, o fato de Cukurs entrar e fixar residência na capital federal ficava
“por conta das responsabilidades do nosso governo, constituído de antigos simpati-
zantes do nazismo, pouco suscetíveis à ojeriza universal pelos malfeitores nazistas”.
125
Os jornais cobravam: “como teria vindo para o Rio esse criminoso de guerra?
Quais as facilidades que encontrou? Como obteve visto permanente? Quem o prote-
geu e acoitou? Eis o que precisa ser esclarecido”, disse R. Magalhães Júnior.126
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p. 1.
124
Tribuna da Imprensa, “Prezado leitor”, 20/06/1950, p. 1.
125
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 07/07/1950, p. 4.
126 o
Diário de Notícias, O criminoso n .17”, 14/07/1950, p. 4.
127
O Jornal, “Responsável pelo extermínio de milhares de judeus...”, 01/07/1950, p. 8.
128
O Cruzeiro, “Culpado ou inocente”, 22/07/1950, p. 40.
129
Diário Carioca, “Um nazista indesejável”, 07/07/1950, p. 10.
148
CAPÍTULO 2
!
Nessas primeiras notícias também não faltaram exageros. Cukurs foi citado como
“servidor devoto da causa de Hitler”130 e como “um dos maiores criminosos na Se-
gunda Guerra Mundial”,131 além de ser apontado como “o único responsável por todas
as chacinas contra israelitas no território da Letônia”.132 A esses excessos se somaram
informações incorretas. Anunciou-se, por exemplo, que Cukurs era “procurado pela
justiça internacional”,133 “foragido do Tribunal de Nuremberg” (o 17o de uma lista de
condenados deste tribunal)134, “comandante chefe das forças de ocupação nazista”135 e
“oficial de alta patente da Gestapo”.136
Vários veículos enviaram equipes à Lagoa Rodrigo de Freitas com o intuito de en-
trevistar Cukurs. A maioria, no entanto, não o encontrou. O Globo foi aparentemente
o único que conseguiu abordá-lo pessoalmente naqueles dias. De acordo com o que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
Correio da Manhã, “Bálticos e outros”, 16/07/1950, p. 2.
131
Diário da Noite, “Herberts Cukurs, ex-capitão das SS de Hitler”, 07/07/1950, p. 2.
132
Diário da Noite, “Herberts Cukurs, ex-capitão das SS de Hitler”, 07/071950, p.2.
133
Correio da Manhã, “Bálticos e Outros”, 16/07/1950, p. 2.
134
Gazeta de Notícias, “Câmera Municipal”, 10//0-7/1950, p.4
135
O Globo, “Quer ser brasileiro o ex-carrasco nazista”, 07/07/1950, p.1/4.
136
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 7/07/1950, p.4.
137
Correio da Manhã, “O Nazista do Báltico”, 01/071950. p.10.
138
A Vanguarda, “Carrasco nazista no Rio de Janeiro”, 23/07/1950, p.2
139
Aonde Vamos? “Assassinou milhares de judeus e vive impune...”, 06/07/1950, p.5/21.
149
CAPÍTULO 2
!
foi reproduzido pelo jornal, Cukurs falou pouco. “Julgo do meu dever justificar-me
primeiro perante as autoridades do Brasil, que me acolheram. Em seguida, farei um
relato de tudo à imprensa, pode ter certeza”. Cukurs disse ainda à reportagem do jor-
nal que tinha documentação suficiente para desmentir as acusações, o que seria feito
logo. E fez uma pergunta inesperada ao repórter: “olhe bem para o meu rosto. Tenho
alguma aparência de quem é autor de milhares de mortes? Tenho cara de carrasco?”140
Imagem&36.!Cukurs!em!grande!destaque!no!Diário!de!Notícias.!Fonte:!Diário!de!Notícias.!!
No final de julho de 1950, a rede política acionada pela Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro também já dava seus primeiros frutos. No dia 25 daquele
mês, o deputado federal Horácio Lafer enviou um requerimento ao MJNI solicitando
três informações: 1) Se Herberts Cukurs, conforme apontava a imprensa, era crimino-
so de guerra; 2) Se os seus documentos de identidade estavam rigorosamente em or-
dem; 3) Se for mesmo criminoso nazista, que providências deveriam ser tomadas no
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
140
O Globo, “Olhe pra mim! Tenho cara de carrasco? ”, 25 de julho de 1950, p.2.
150
CAPÍTULO 2
!
Havia já àquela altura uma grande pressão sobre o governo brasileiro. A própria
Federação, em carta enviada ao Comitê de Investigação dos Crimes de Guerra Nazis-
tas nos Países Bálticos, reconheceu o avanço que se tinha feito até então: “Depois de
ter devidamente estudado o caso, nós conseguimos mobilizar a opinião pública brasi-
leira por meio de uma entrevista coletiva à imprensa. Esta entrevista teve enorme re-
percussão em todo o país. Mais de 30 editoriais sobre o caso foram publicados duran-
te o mês de julho e o caso continua em foco”.142 Porém, um acontecimento viria a
aumentar ainda mais a visibilidade do caso na imprensa, mobilizando ainda mais a
opinião pública e as autoridades brasileiras: a chamada “Batalha dos Barquinhos”,
ocorrida na Lagoa Rodrigo de Freitas, no dia 13 de agosto de 1950.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 2
142
[Original:!“After having studied thoroughly the case, we mobilized the Brazilian public opinion by a
press interview which had the largest repercussion in the whole country. More than 30 editorials about
the case were published during the month of July and the case continues in focus”]. In: Yad Vashem
Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 40.
143
Eram as 14 associações que formavam este comitê: “Centro Israelita Brasileiro de Intercâmbio e
Cultura”, “Biblioteca Israelita Brasileira Scholem Aleichem”, “Departamento Juvenil da BIBSA”, “Po-
lischer Farband Vita Kempner”, “Sociedade dos Amigos do Teatro Idisch Leien Kraizen”, “Clube dos
Cabiras”, “Grêmio Stefan Zweig”, “Centro de Cultura Judaica do Brasil”, “ICUF de Madureira”, “Jo-
vens de Niterói”, “Nossa Voz”, “Polischer Farband”, “Centro Israelita Leopoldina” e “A Voz”.
144
A Rádio Clube do Brasil lançou, inclusive, um programa apenas de júris simulados, feitos por uni-
versitários de direito. Os processos eram emprestados pelo Arquivo do Palácio da Justiça – trocavam-
se apenas os nomes. Cf. Diário de Notícias, “Notícias Diversas”, 08/08/1942, p. 8.
151
CAPÍTULO 2
!
tro João Caetano, no Rio de Janeiro, que julgou e condenou o principal nome do inte-
gralismo no Brasil, Plínio Salgado.145
O júri simulado de Cukurs foi marcado para a noite do dia 12 de agosto de 1950,
no auditório da ABI, no centro do Rio de Janeiro. De acordo com os organizadores, o
ato tinha a função de alertar para o “fortalecimento do antissemitismo” e para a “con-
centração de criminosos de guerra” no Brasil, tudo isso, ao que se dizia, com a “coni-
vência do Itamaraty”. Nas semanas anteriores ao júri, o Comitê publicou anúncios na
imprensa a fim de convocar a comunidade judaica carioca, a Federação das Socieda-
des Israelitas do Rio de Janeiro e o “povo em geral” para se juntarem ao “movimento
unânime” contra Cukurs. 146
Quem nos conta os detalhes daquela noite do dia 12 de agosto de 1950 é o jornalis-
ta Edgar Morel. De acordo com Morel, os presentes superlotaram o auditório da ABI.
Cerca de duas mil pessoas, informa Morel, teriam assistido aos debates, que termina-
ram “pela madrugada”.147 Como outros do tipo, o júri tentava reproduzir todo os as-
pectos de um júri de verdade. Havia um juiz, três advogados de defesa, três de acusa-
ção e até mesmo um escrivão. De acordo com o semanário judaico Nossa Voz – enti-
dade de maior expressão do Comitê Unido –, os advogados de acusação listaram to-
dos os crimes atribuídos ao réu e contextualizaram os problemas e os horrores repre-
sentados pelo nazismo, enquanto que os advogados de defesa se apoiaram na tese de
que Herberts Cukurs, no fundo, era um doente mental, embora isso não significasse a
atenuação de sua responsabilidade nos crimes praticados na Letônia.148
O júri simulado aconteceu em um sábado. Por volta das 16h do dia seguinte, do-
mingo, dia mais movimentado na estação dos pedalinhos, aproximadamente 100 pes-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
Diário Carioca, “Plínio Salgado foi ‘condenado à morte’ pelo Júri Simulado”, 16/05/1943, p. 2.
146
Diário de Notícias, “Pela paz e contra o antissemitismo”, 04/08/1950, 2a Seção, p. 3.
147
Folha do Rio, “Desmoralizada pelo espião, uma portaria...”, 15/08/1950, pp. 1/5.
148
Nossa Voz, “Passeata de repúdio contra o monstro nazi Cukurs”, 17/08/1950, p.10.
149
Nossa Voz, “Passeata de repúdio contra o monstro nazi Cukurs”, 17/08/1950, p.10.Ibidem.
152
CAPÍTULO 2
!
soas, muitas das quais participantes do júri simulado, encontraram-se na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, em frente aos pedalinhos. Portavam cartazes e faixas que pediam a
expulsão de Cukurs, e gritavam palavras de ordem. Em certo momento do protesto, os
manifestantes exigiram que Cukurs aparecesse, o que não aconteceu. Então, alguns
manifestantes atacaram os pedalinhos, além de lanchas e aviões de pequeno porte an-
corados na areia. Segundo relatos publicados na imprensa, alguns manifestantes esta-
vam munidos de machados150 e foram ouvidos, inclusive, disparos de arma de fogo.151
Imagem&37.!Repercussão!do!episódio!ocorrido!na!Lagoa.!Fonte:!Diário!Carioca.!
Durante a pesquisa desta tese, pude localizar quatro pessoas que participaram da
manifestação: Aleksander Laks, que tinha então 22 anos, Marcus Shorr, 18 anos, e o
casal Marcos e Molka Waimberg, 19 e 16 anos, respectivamente. Todos concordaram
que o “quebra-quebra” realizado naquele domingo não fora premeditado. “Foi a raiva
do momento que fez as pessoas avançarem. E se não fossem os cachorros dele, nós
teríamos invadido a casa e quebrado”, lembrou Molka.152 A propósito das motivações
do protesto, Laks sublinhou: “nós queríamos chamar a atenção porque haviam outros
carrascos [no Brasil]. E o governo encobria. (...) Depois da Argentina, era o Brasil. Eu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
150
Jornal do Brasil, “Judeus vingaram-se do antigo nazista”, 15/08/1950, p. 7. Já o jornal O Globo diz
– talvez equivocadamente, mas certamente de forma exagerada – que “muitos judeus estavam armados
de revólveres”. Cf: O Globo, “Audaciosa atitude de estrangeiros no Brasil”, 14/08/1950, p. 2.
151
Diário da Noite, “Grupo de israelitas, enfurecidos, depredam...”, 14/08/1950, p. 2.
152
Molka Waimberg em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 08/05/2013.
153
CAPÍTULO 2
!
me sentia revoltado. Judeus não podiam entrar e nazistas, sim. Um país que mandou o
melhor que tinha, mandou os seus filhos para lutar na guerra. Isso era revoltante”.153
A ideia de que o protesto tinha a ver com a postura do governo brasileiro, também foi
corroborada por Shorr, que na época era editor da revista O Espelho. Perguntado so-
bre a posição das autoridades brasileiras no Caso Cukurs, respondeu:
Enquanto a sede dos pedalinhos era atacada, moradores do entorno da Lagoa Ro-
drigo de Freitas ligaram para a polícia e, algum tempo depois, uma radiopatrulha che-
gou ao local. A maioria dos manifestantes conseguiu se dispersar. Os policiais, contu-
do, conseguiram deter três judeus próximos do local: Uryz Wisenberg, Saul Gornik e
Salomão Bergier. Os três foram encaminhados para a delegacia do 2o Distrito Policial,
onde foram autuados por depredação de patrimônio privado e perturbação da ordem
pública, só deixando a delegacia na manhã seguinte após pagamento de fiança. O de-
legado de plantão instalou um inquérito para apurar o ocorrido. De acordo com Cu-
kurs, seu prejuízo fora de aproximadamente 50 mil cruzeiros.155
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
Aleksander Laks em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 14/06/2011.
154
Marcus Shorr em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 03/01/2012.
155
Jornal do Brasil, “Judeus vingaram-se do antigo nazista”,15/08/1950, p. 7; Diário Carioca, “Depre-
dado o negócio do oficial nazista”, 15/08/1950, pp. 1-2.
154
CAPÍTULO 2
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Diário de Notícias, “Não apoia o júri simulado de Herberts Cukurs”, 09/08/1950, 1a Seção, p. 7.
157
BARTEL, Carlos Eduardo Bartel. Sionismo e Progressismo. Dois projetos para o judaísmo brasilei-
ro. In: Web Mosaica – Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. V.2, n. 2, 2010, p. 84.
158
GHERMAN, Michel. Ecos do Progressismo: história e memória da esquerda judaica no Rio de
Janeiro dos anos 30 e 40. (Monografia). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000,
pp. 62-64.
159
NETO, Sydenham Lourenço. Imigrantes Judeus no Brasil, marcos políticos de identidade. In: Lo-
cus: revista de história, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 226.
155
CAPÍTULO 2
!
de todo o mundo na luta pela criação de um Estado judaico”.160 A criação de uma ins-
tituição nesses moldes, como sublinha Monica Grin, pressupunha a “formalização de
objetivos e estratégias de ação coletiva” de forma a promover um “poder centraliza-
do” em detrimento da “desmobilização de centros de poder, antes autônomos”.161 Em
outras palavras, almejava-se centralizar as tomadas de decisão sobre questões judaicas
nas mãos de uma única entidade.162 As instituições judaicas progressistas não aceita-
ram a ideia de que uma Federação como a do Rio falasse em nome de todos os judeus,
principalmente em nome dos judeus progressistas. Daí a criação do Comitê Unido.
Este, por sua vez, surgiu em março de 1950 em torno de um episódio ocorrido na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Cinco estudantes ju-
deus do curso de engenharia foram expulsos da universidade com a alegação de que
transgrediram o estatuto estudantil organizando “atividades políticas subversivas” no
campus. Na opinião do Comitê Unido, porém, a expulsão foi um ato de discrimina-
ção. Quando o caso Cukurs veio à tona, quatro meses depois do incidente na PUC-RJ,
o Comitê Unido passou a enxergar os dois casos pela mesma ótica, ou seja, como re-
sultado do antissemitismo e da intolerância no país. 163
A discordância sobre qual a melhor maneira de lidar com Cukurs, portanto, não foi
fruto do acaso. E nem era preciso sair da imprensa judaica para perceber o quanto isso
tinha a ver com a cisma entre progressistas e sionistas. Aron Neumann, editor do se-
manário Aonde Vamos?, de orientação sionista, classificou o protesto do Comitê Uni-
do como um “caleidoscópio de uma tolice reverberante”. Segundo Neumann, o “espe-
táculo ridículo” organizado pela entidade mostrava como seus participantes eram an-
tidemocráticos e o quanto suas ações deveriam ser vistas como um “caminho perigo-
so” para a comunidade judaica no Brasil. 164 Visão muito diferente daquela publicada
pelo progressista Nossa Voz, para quem tanto o júri simulado quanto o ato de protesto
na Lagoa tinham sido “duas importantes demonstrações judaicas que honram o Ichuv
judaico de todo o Brasil”. O jornal reagiu à crítica do Aonde Vamos? chamando-o de
“delirante”, “inverídico” e “incoerente”. Não poupando no tom, o Nossa Voz disse
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
GRIN, Monica. Etnicidade judaica e as Armadilhas da Contingência. (Dissertação de Mestrado).
Rio de Janeiro: IUPERJ, 1992, p. 135.
161
Ibidem, p. 142.
162
No plano internacional, a criação do Estado de Israel, em 1948, confirmava essa tendência.
163
GRIN, Monica. Etnicidade judaica e as Armadilhas da Contingência. (Dissertação de Mestrado).
Rio de Janeiro: IUPERJ, 1992, p.142.
164
Aonde Vamos?, “Caleidoscópio de uma tolice reverberante”, 17/08/1950, p. 3.
156
CAPÍTULO 2
!
ainda que o semanário sionista de Nauman trilhava “aquele mesmo caminho que le-
vou organizações e personalidades judaicas, durante a Segunda Guerra Mundial, a
organizarem os judenrat (...) para assim eliminar mais facilmente o Estado-maior ju-
deu da resistência e aplainar o caminho para os fornos crematórios”.165
As ações tomadas pelo Comitê Unido em relação a Cukurs tinham a ver também
com a forma de agir da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro: o gru-
po progressista tinha se surpreendido com a informação sobre a presença do letão no
Rio de Janeiro e achava que aquela entidade tinha omitido da coletividade um assunto
importante demais para ser decidido somente por ela. Além disso, havia uma clara
discordância quanto às estratégias empregadas no caso. A Federação dava ênfase ao
trabalho técnico-jurídico. Procurava, como vimos, alertar a opinião pública e o gover-
no brasileiro sobre Cukurs, empregando sua rede política e recorrendo à imprensa,
sempre evitando criticar o governo brasileiro. Já o Comitê Unido acreditava em uma
estratégia mais combativa, imediata, procurando mobilizar a opinião pública de forma
bem mais direta e incisiva, como, por exemplo, através de protestos. O Comitê Unido
acreditava que o governo protegia criminosos de guerra nazistas, daí sua falta de dis-
posição em negociar com ele. Em certa medida, todas essas disputas devem ser vistas
como parte de um contexto de reorganização da coletividade judaica em cidades co-
mo Rio de Janeiro e São Paulo, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de
vista institucional. O momento do país, que vivia novamente uma democracia, era fa-
vorável. De acordo com o censo demográfico brasileiro, 69.957 pessoas se declararam
“israelitas” no Brasil em 1950.166 Esses dados não computavam aqueles que eram ju-
deus, mas não se declararam desta forma por múltiplos aspectos ou que tinham se
convertido a alguma outra religião. Era um contingente discreto se comparado à popu-
lação brasileira – representava 0,13% desta. Porém, era bastante dinâmica e atuante,
como podemos ver. Mais do que era dez anos antes.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
165
Nossa Voz, “Os tortuosos caminhos do “Aonde Vamos” à luz do Caso Cukurs”?, p. 8.
166
IBGE. Censo Brasileiro, 1950.
157
CAPÍTULO 2
!
recalcados pelas atrocidades sofridas por seus patrícios durante a perseguição germâ-
nica”.167 A Noite classificou a manifestação como uma “explosão de ressentimen-
to”.168 Para o Diário de Notícias, ela tinha a ver com silêncio do governo brasileiro:
(...) a opinião pública está sendo despertada para reprovar o ato das
autoridades brasileiras que permitiram a entrada de um criminoso de
guerra no país, enquanto dificultavam, por todos os modos, a vinda
de refugiados e imigrantes, deslocados da Europa pela ação do mes-
mo grupo político a que pertencia Cukurs e cujo desejo de dominar o
mundo se exercia através de chacinadores como ele. Não devem os
responsáveis pelo governo ouvir com indiferença os protestos que se
erguem, pois além de se originarem no sentimento de justiça diante
do crime, correspondem à profunda vocação do povo brasileiro pelo
respeito à vida e à dignidade da pessoa humana. O Brasil, que elimi-
nou a pena de morte de seu Código Penal, não pode abrigar entre seu
povo um homem que determinou a eliminação sumária de dezenas de
milhares de seres humanos, homens, mulheres, velhos e crianças, e
exerceu a ação destruidora até o instante em que, não era mais possí-
vel continuar matando os seus semelhantes. À falta de uma providên-
cia, de uma palavra oficial, já os que mais diretamente se sentem
atingidos pelo criminoso se movimentaram e depredaram as instala-
ções com que Cukurs veio divertir os cariocas, depois de assassinar
judeus na Europa. Condenável porque significa justiça pelas próprias
mãos, o gesto é explicável pela complacência com que as nossas au-
toridades deixam em liberdade no Brasil, um criminoso condenado
em Nuremberg. O governo brasileiro deve promover os meios neces-
sários para que Herberts Cukurs seja entregue à alçada da Justiça que
o condenou. Não se trata de açular um sentimento de vingança, nem
excitar a paixão de “revanches” naqueles que viram os seus compa-
triotas trucidados pelo indesejável visitante. Trata-se de cobrar a esse
homem a dívida que contraiu para com o mundo, de fazer com que
um culpado não escape à punição do crime que cometeu contra a
humanidade.169
Na Folha do Rio, Edmar Morel também seguiu essa linha. Para ele, os protestos na
Lagoa eram uma resposta às “facilidades governamentais” que permitiam que um
criminoso de guerra vivesse impune no Brasil.170 No dia seguinte ao incidente na La-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
167
Diário da Noite, “Grupos israelitas, enfurecidos, depredam...”, 14/08/1950, p. 2.
168
A Noite, “Conflito no Jardim de Alá”, 14/08/1950, p. 7.
169
Diário de Notícias, “Criminoso de Guerra”, 18/08/1950, 1a.Seção, p. 4.
170
Folha do Rio, “Cukurs escapou...”, 17/08/1950, p. 3.
158
CAPÍTULO 2
!
goa, o jornalista foi extremamente original em sua tentativa de mexer com os brios
das autoridades brasileiras. Morel afirmou que Cukurs havia desmoralizado uma por-
taria do Ministério da Aeronáutica ao permitir que turistas que faziam seus sobrevoos
pela cidade tirassem fotos. Essa portaria, um Decreto-lei do tempo da guerra, proibia
qualquer pessoa de fazer fotos aéreas da cidade. Dramático, Morel disse: “Amanhã, o
Brasil arrastado a um conflito, como o foi na guerra passada, terá todas as suas defe-
sas nas mãos de um aventureiro, o qual poderá vendê-las a quem pagar melhor. 171
Por fim, é interessante citar o popular O Radical, que, fazendo justiça ao seu nome,
foi muito além da defesa dos judeus que participaram do protesto. Em sua coluna se-
manal Imprensa em Revista, o jornalista Godin da Fonseca lamentou de forma infla-
mada que os manifestantes não tivessem feito mais contra Herberts Cukurs:
O Globo foi o jornal que mais destoou. O jornal de Roberto Marinho registrou os
protestos ocorridos na Lagoa em sua primeira página, mas condenou veementemente
a estratégia empregada pelos manifestantes. No alto da capa, lia-se a chamada: “Cri-
minosa tentativa de agitar no Brasil o problema semítico! ”. E na matéria propriamen-
te dita, chamava a atenção não só o título – “Audaciosa atitude de estrangeiros no
Brasil” – como também as fotos, em plano fechado, dos três judeus detidos, artifício
que o jornal geralmente reservava para representar criminosos comuns. O jornal sub-
linhou que compreendia o “sentimento de indignação” que Cukurs despertava entre os
judeus, mas “que vá ao ponto de tentar passar por cima da lei para atingir esse objeti-
vo é o que não devemos tolerar, sob pena de fomentarmos a anarquia e a insegurança
coletivas”. Para O Globo, era preciso agir dentro da lei. “Os judeus, inclusive, devem
para isso, evitar manifestações como a de ontem, que longe de captar simpatias ser-
vem unicamente para despertar suspeitas e gerar antipatias contra uma comunidade
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
Folha do Rio, “Desmoralizada pelo espião uma portaria do Ministério...”, 15/08/1950, p. 1-5.
172
O Radical, “Imprensa em Revista”, 16/08/1950, p. 3.
159
CAPÍTULO 2
!
que, para se abrigar no nosso país, deve, antes de tudo, respeitar as suas leis”. 173 É
difícil dizer o que fez com que o jornal se posicionasse desta forma. Uma das hipóte-
ses poderia ser que o seu diretor de redação, Herbert Moses, judeu, era opositor ao
movimento “progressista”. Uma outra explicação possível diz respeito a uma provável
retaliação pelo fato de O Globo não ter conseguido, alguns meses antes, conforme
vimos, exclusividade no caso Cukurs. O mais provável é que a primeira hipótese seja
a mais correta.
Imagem&38.!Na!imagem!acima,!podemos!ver!as!fotos!dos!judeus!detidos!pela!radiopatrulha!na!Lagoa!RodriI
go!de!Freitas.!O!acontecimento!estampou!a!primeira!página!do!jornal.!Fonte:!O!Globo,!14/08/1950!.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
173
O Globo, “Audaciosa atitude de estrangeiros no Brasil”, 14/08/1950, p. 1.
160
CAPÍTULO 2
!
Lavrador, Álvaro Dias, Nilo Romero, José Junqueira e Lygia Maria Lessa Bastos.174
Apenas um parlamentar não assinou o documento, o vereador Cotrim Neto, represen-
tante do Partido de Representação Popular (ex-Ação Integralista).175 Na ocasião, Neto
justificou sua abstenção dizendo que não havia “elementos seguros para que o fizes-
se”. Defendendo sua escolha, completou: “não é de hoje, vem do começo dos tempos
a vindita, a perseguição, a incriminação, a desforra sobre o inimigo vencido. Vem do
princípio dos anos aquelas ações dos povos vencedores esmagando os vencidos”.176
No dia 28 de agosto de 1950, foi a vez do deputado Hermes Lima fazer um longo
discurso no Congresso Nacional contra a permanência de Cukurs no Brasil. “Não é
possível que o Brasil, com sua tradicional hospitalidade, com sua tradicional doçura
de maneiras, incorpore à sua vida um homem acusado de tais atrocidades e de tais
crimes.” Segundo Lima, que seria anos mais tarde presidente do Supremo Tribunal
Federal, isso nada tinha a ver com a perseguição a um indivíduo, “mas porque a cons-
ciência democrática do país não pode permitir que um criminoso de guerra manche a
vida brasileira com a sua presença”. Cukurs, nas palavras do deputado, deveria ser
“recambiado para a Alemanha” e entregue aos tribunais daquele país, pois “é o na-
zismo que se deseja punir, expulsando da vida brasileira um elemento integrante dos
seus quadros e responsável pelas abominações a que, desta tribuna, me acabo de refe-
rir”. Ao terminar o discurso, Hermes Lima recebeu as palmas dos presentes. 177
161
CAPÍTULO 2
!
Assim, ao final de agosto de 1950, o governo brasileiro se viu interpelado pela im-
prensa, por organizações não governamentais e parlamentares. Todos queriam expli-
cações sobre a entrada de Cukurs no Brasil e permanência em território nacional. Di-
ante desta conjuntura, como se posicionou o governo brasileiro? Que medidas tomou
diante da pressão? O que era possível fazer para esclarecer a presença de uma colabo-
racionista nazista no Brasil? É o que vamos ver a partir do próximo capítulo.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
AHI-RJ. Missão Diplomática Brasileira em Washington, Carta de Robert S. Marcus a Maurício
Nabuco. 49/4/4. [Original: “In view of the foregoing, the World Jewish Congress feels that a continua-
tion of Cukurs’ stay in Brazil, which means ultimate Brazilian citizenship for this heinous criminal,
would not be in keeping with the democratic traditions of your country; while the extension of asylum
to a notorious person of his category would be in contravention of the constitution of the International
Refugee Organization (of whose Council you country is a member) which explicitly excludes war
criminals from the benefits of its provisions. We are certain that an investigation of the circumstances
surrounding Cukurs’ entry will indicate that the background of this man was unknown to the Brazilian
government when he was permitted to enter your country. May we at the same request you understand-
ing of the motives and sentiments of those Jews who were involved in the demonstration against
Cukurs. You will understand, I am sure, the deep bitterness of those who have lost their loved ones
through the hands of the Nazis toward one who participated with them in the extermination of these
innocent victims of Hitler’s sadism. May we hear from you in connection with the above?”]
162
CAPÍTULO 3
!
CAPÍTULO
A primeira medida oficial contra Cukurs ocorreu no âmbito local e afetou direta-
mente o empreendimento dos pedalinhos. No dia 26 de agosto de 1950, o Prefeito do
Rio de Janeiro, Ângelo Mendes de Moraes, comunicou à imprensa que não iria reno-
var a concessão dos pedalinhos, devendo o seu proprietário retirar em até dez dias to-
do o equipamento que se encontrava estacionado na Lagoa Rodrigo de Freitas.1 Cu-
kurs tentou anular essa decisão solicitando com um mandado de segurança. A justiça,
no entanto, deu causa de ganho para a Prefeitura. A licença dos pedalinhos, afinal, era
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Boa parte da imprensa noticiou que o Prefeito Mendes de Moraes tinha cassado o alvará. Na verdade,
o que aconteceu foi um pouco diferente. A empresa Herberts & Cia Ltda. tinha celebrado com a Prefei-
tura do Distrito Federal a exploração do negócio dos pedalinhos em caráter precário – validade de seis
meses – no dia 16 de novembro de 1949. Esse prazo se extinguiu no dia 16 de maio de 1950 e não foi
renovado pela prefeitura. Diário Oficial da União, Seção II, 02/12/1949, p.1440.
163
CAPÍTULO 3
!
do tipo precária, ou seja, válida apenas por seis meses, cabendo somente às autorida-
des municipais decidir a sua renovação.2 No dia 30 de agosto de 1950, antes mesmo
do prazo de dez dias informado à imprensa, os funcionários da prefeitura apreenderam
pedalinhos, barcos, lanchas e enviaram todo o equipamento para um depósito públi-
co.3 O popular negócio de divertimentos de Cukurs chegava ao fim depois de três
anos de sucesso.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Diário de Notícias, “Notícias Forenses”, 06/09/1950. 1a seção, p.5.
3
Folha do Rio, “Recolhidos ao depósito público os pedalinhos da Lagoa”, 31/08/1950, pp.1-2
4
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.4-5.
5
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.4-5.
164
CAPÍTULO 3
!
Imagem&39.&!O!Globo!destaca!o!envolvimento!do!MRE!no!caso.!Fonte:!O!Globo,!07/09/1950,!p.!1.!
165
CAPÍTULO 3
!
Uma vez que o pedido de naturalização de Cukurs fora interrompido, abriu-se es-
paço para uma outra reinvindicação: a sua expulsão do território nacional. Em discur-
so no Congresso Nacional, o deputado federal Hermes Lima (PTB) tentou convencer
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
BRASIL. Lei Nº 8.818, de 18 de setembro de 1949. Regula a aquisição, a perda e a reaquisição da
nacionalidade, e a perda dos direitos políticos. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio
de Janeiro, DF, Ano. LXXXVIII, Nº 216, 18 de setembro de 1949. Seção I, pp.13465-13467.
9
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.32-33.
10
BRASIL, Despachos do Diretor Geral Interino, de 8 de setembro de 1950. Processo S-212-50, Cas-
sação da Carta de Piloto de Recreio Nº.7.127. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio
de Janeiro, DF, Ano. LXXXIX, Nº.210, 12 de setembro de 1950. Seção I, p.13443.
11
Última Hora, “Mensagem através do baião ao aviador beligerante”, 26/09/1957, p.7
12
A Águia do Báltico, “Águias da Letônia em Céus Brasileiros”, 12/07/2008. Disponível em:
http://herbertscukurs.blogspot.com.br/2009/07/aguias-da-letonia-em-ceus-brasileiros.html . Acesso em:
18/04/2015.
166
CAPÍTULO 3
!
seus colegas de tribuna sobre a importância de banir Cukurs do país. “Não é possível
que o Brasil, com sua tradicional hospitalidade, com sua tradicional doçura de manei-
ras, incorpore à sua vida um homem acusado de tais atrocidades e de tais crimes.” Se-
gundo Lima, que assumiria anos mais tarde a presidência do Supremo Tribunal Fede-
ral, isso nada tinha a ver com a perseguição a um indivíduo, “mas porque a consciên-
cia democrática do país não pode permitir que um criminoso de guerra manche a vida
brasileira com a sua presença”. Cukurs, nas palavras do deputado, deveria ser “re-
cambiado para a Alemanha” e entregue aos tribunais daquele país, pois “é o nazismo
que se deseja punir, expulsando da vida brasileira um elemento integrante dos seus
quadros e responsável pelas abominações a que, desta tribuna, me acabo de referir”. 13
Imagem&40.&&A!imprensa!e!a!o!imigrante!“indesejável”.!Fonte:!Diário!de!Notícias,!23/09/1950.!1a!Seção,!p.4
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Diário do Congresso Nacional, 29/08/1950, p.5876.
167
CAPÍTULO 3
!
Cukurs tentou se defender como pôde. Além do mandado de segurança que tentou
impetrar contra a Prefeitura do Rio de Janeiro, ele passou a ser menos refratário em
relação aos jornalistas que o procuravam. Desde seus tempos de aviador-celebridade
na Letônia, Cukurs tinha plena noção da importância da imprensa para a criação de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Diário de Notícias, “Ainda o caso do letoniano Cukurs - Apoio da Associação dos Ex-Combatentes
às manifestações contra o indigitado criminoso de guerra”, 30/08/1950, 2a Seção, p.6.
15
AN- RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.38-40.
16
Nossa Voz, "Ato público do Movimento Israelita-Paulista...", 03/11/1950, p.8.
168
CAPÍTULO 3
!
uma imagem pública positiva. No próprio Brasil, ele já tinha se beneficiado de tal co-
nhecimento, realizando parcerias com diversos jornais para promover os pedalinhos.
Foi personagem de várias reportagens que o ajudaram não só a criar empatia com a
opinião pública quanto a alavancar os seus negócios. Se ele pudesse usar novamente
os repórteres a seu favor, como fizera no passado, talvez a opinião pública voltasse a
estar do seu lado.
A Revista da Semana foi um dos veículos que deram espaço para Cukurs fazer sua
defesa. “São os dogmas por via de regra seguidos: acusação e defesa”, justificou a re-
vista na longa reportagem intitulada Defende-se o “Homem dos Pedalinhos”. A foto
usada na matéria mostrava o quanto Cukurs havia se preparado para a ocasião: ele e a
família aparecem no sofá de casa. Todos estão sorridentes. Cukurs, Milda e sua filha,
Antinea, visivelmente se produziram para fazer a fotografia. Estão muito bem arru-
mados. Já o seu filho mais novo, Herberts Cukurs Júnior, e o seu primogênito, Gun-
nars, aparecem bem mais à vontade, conferindo ar de simplicidade e simpatia ao gru-
po. “Uma família de assassinos. Aqui estão os criminosos perseguidos pelos israeli-
tas”, teria dito Cukurs à equipe de reportagem momentos antes de tirar a chapa.17
169
CAPÍTULO 3
!
desde a fronteira egípcia: Bersebá, Hebron, Belém, Jerusalém, Mar Morto, Jericó, Jaf-
fa, Telavive e outras colônias judaicas”. O repórter, então, perguntou ao “homem dos
pedalinhos” o que significava o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Pa-
íses Bálticos. Procurando colocar em dúvida a autoridade do referido Comitê, respon-
deu: “Não sei. Eles pegam três ou quatro judeus e fazem um Comitê. E é na lista des-
se que eu figuro como o número 17, na ordem alfabética. E não no de Nuremberg.” 18
Imagem&41.&&Os!Cukurs!na!Revista!da!Semana.!Fonte:!Revista!da!Semana,!02/09/1950.!p.5.!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Revista da Semana, “Defende-se o Homem dos Pedalinhos”, 02/09/1950, pp. 5-11.
170
CAPÍTULO 3
!
Em outra matéria, publicada no jornal A Noite, Cukurs seguiu essa mesma linha de
defesa. Em primeiro lugar, explicou que só lutou ao lado dos alemães contra os sovié-
ticos por pensar que estes dariam liberdade à Letônia. Cukurs ponderou que não tinha
como saber que todas as promessas dos nazistas fossem “mentira e traição”. O letão
também exibiu diversos documentos à equipe de reportagem: passaportes, declarações
e outros papéis nos quais constavam assinaturas e vistos de autoridades aliadas. “Ora,
como é possível, se eu sou criminosos de guerra, terem [me] deixado sair as autorida-
des aliadas, com documentos em meu nome?”. Milda concordou: “meu marido foi
oficial aviador, sim, mas jamais derramou sangue humano, a não ser na guerra”. No
final, Cukurs, finalizou seu discurso pedindo a compreensão dos leitores da Revista da
Semana: “Se errei, no passado, são erros perdoáveis pelas circunstâncias. Mas jamais
derramei sangue inocente, friamente. Desejo, sobretudo, construir uma nova vida para
meus filhos. Peço somente que me deem a proteção e a justiça das leis deste país.”19
Na época, Mirian Kaicners poderia ter contribuído para a defesa de Cukurs perante
a opinião pública. Cukurs sabia muito bem disso, tanto que relatou à Revista da Se-
mana ter salvado a vida dela durante a ocupação nazista, cuidado de sua alimentação,
escondendo-a em sua própria casa e pintando-lhe o cabelo.20 Miriam, no entanto, não
deu qualquer declaração pública que viesse a seu auxílio. A postura pode parecer es-
tranha, mas ela não é surpreendente. Miriam ainda bastante jovem, mulher, judia, so-
brevivente do Holocausto, ainda se adaptando ao novo país e à comunidade judaica
brasileira. Revelar sua relação com um alegado criminoso nazista era algo extrema-
mente delicado. A partir do final dos anos 1970, muitos judeus que sobreviveram ao
Holocausto vão sistematicamente registrar suas memórias e experiências em livros,
poesias, documentários, entrevistas e em experimentações artísticas. Mas na década
de 1950, o tema ainda era quase sempre tratado com discrição e até mesmo silenciado
por muitos sobreviventes. Nem todos desejavam revelar seus passados em guetos ou
nos campos. Miriam foi tão cautelosa que mesmo hoje, passados quase 70 anos desde
sua chegada ao Brasil, pouco se sabe a seu respeito durante a guerra, inclusive sua
família.21
171
CAPÍTULO 3
!
ções que pairavam sobre Cukurs. Ela contou que parou de frequentar a família Cukurs
assim que soube dessas acusações. Além disso, Miriam disse que ignorava se Cukurs
tinha feito parte da Pērkonkrusts. Sabia apenas que ele tinha sido oficial, subordinado
a Weiss e a Arajs (Viktor Arajs), além de chefe de garagem da polícia alemã, segundo
o próprio lhe revelou certa vez.22 Um outro depoimento, contudo, complementar a
esse, dado na mesma ocasião por Justina Grinberg, amiga de Miriam, nos ajuda a
compreender um pouco melhor o seu “silêncio” no caso. Depois que os jornais publi-
caram as acusações contra Cukurs, Grinberg disse ter perguntado o que ela achava a
respeito daquilo tudo. Miriam teria respondido que não sabia nada a respeito e que
tinha medo de Cukurs. Grinberg perguntou o porquê. Miriam, então, teria dito que
temia que Cukurs lhe fizesse algum mal por ela não ter defendido o seu “salvador”.23
Caso os crimes atribuídos a Cukurs fossem confirmados pelo Ministério das Rela-
ções Exteriores, o ordenamento jurídico brasileiro da época previa duas formas de ba-
nimento de estrangeiros do território nacional: a extradição e a expulsão. A primeira
estava prevista no Art.101 da Constituição Federal.24 Além disso, havia o Art. II da
“Convenção para prevenção e a repressão do crime do genocídio”, de 1948, que com-
prometia seus signatários – entre eles o Brasil – a extraditar os indivíduos acusados do
crime de genocídio.25 Para ocorrer a extradição era necessário, no entanto, que um
país enviasse um pedido formal às autoridades brasileiras. Esse país precisaria reco-
nhecer os crimes cometidos por Cukurs e demonstrar sua jurisdição sobre tais crimes.
O pedido, então, seria encaminhado para o julgamento do Supremo Tribunal Federal.
Havia um prazo legal para isso. Em geral, os países adotavam o prazo de 20 anos.
Depois disso, os crimes eram prescritos, o que só veio a mudar em 1968, quando uma
resolução da ONU tornou qualquer crime de guerra imprescritível.26 Apenas um man-
dado de prisão poderia interromper a prescrição de um crime. Cukurs, desta forma,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.60-65.
23
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.66-67.
24
BRASIL, Constituição Federal de 1946. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de
Janeiro, DF, Ano. LXXXV, Nº. 214, 19 de setembro de 1946. Seção I, p.13059-13075.
25
UNITED NATIONS, Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide.In:
United Nations Treaty Series, nº 1021, Nova Iorque, 9 de dezembro de 1948.
26
Resolução 2391 da Assembleia Geral em 26 de novembro de 1968. Entrada em vigor: 11 de novem-
bro de 1970.
172
CAPÍTULO 3
!
salvo um pedido de prisão, só poderia ser extraditado até 1965 – data de consenso em
relação aos crimes praticados na Segunda Guerra Mundial.
Além da extradição, a outra opção que o governo brasileiro tinha para banir um es-
trangeiro de seu território era a expulsão, também prevista na Constituição Federal,
mais especificamente em seu Artigo 143. O governo brasileiro, de acordo com este
artigo, poderia expulsar qualquer estrangeiro de seu território desde que este fosse
considerado “nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge for brasileiro, e se tiver
filho brasileiro dependente da economia paterna”.28 Ou seja, caso fosse demonstrado
que Cukurs era nocivo aos interesses nacionais – e o crime de genocídio, caso confir-
mado, era suficiente – as autoridades brasileiras tinham autonomia para forçar sua sa-
ída do país. Essa opção, diferente da extradição, a expulsão não dependia da vontade
ou iniciativa de um governo estrangeiro. Ela dependia exclusivamente do Brasil.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
O Radical, O criminoso que a Rússia não quis extraditar”, 18/08/1950. p. 1/4.
28
BRASIL, Constituição Federal de 1946. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de
Janeiro, DF, Ano. LXXXV, Nº.214, 19 de setembro de 1946. Seção I, p.13059-13075.
173
CAPÍTULO 3
!
rar um dossiê detalhado cujo intuito era convencer o Ministro da Justiça, a expulsar
Cukurs do país. Para reforçar a efetividade deste documento, Scolnicov e Alfred Gar-
tenberg, também membro executivo da federação, enviaram uma carta aos represen-
tantes do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos pedindo
que estes lhes encaminhassem todos os depoimentos originais de Abram Shapiro,
Dawid Fiszkin, Max Tukacier e Raphael Schub. Scolnicov e Gartenberg, que até
aquele momento tinham apenas cópias dos documentos, sublinharam que todos os
quatro testemunhos deveriam estar em papel timbrado daquele comitê e legalizado
por uma autoridade britânica reconhecida ou pelo consulado brasileiro em Londres.29
Brassloff entregou, deste modo, tudo o que a Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro tinha solicitado. Isso, porém, não livrou Scolnicov e Gartenberg de
um profundo mal-estar. Ambos ficaram extremamente frustrados e preocupados com
o material anexado à carta. Os depoimentos originais de Fiszkin, Shapiro e Tukacier
continham apenas o carimbo do Departamento Legal do Comitê Central dos Judeus
Libertados; nenhuma das assinaturas neste documento tinha sido reconhecida por
qualquer autoridade competente. O depoimento de Gerstein estava em situação ainda
pior, pois além de também carecer de assinatura reconhecida, ele sequer tinha um ca-
rimbo institucional. O depoimento de Rafael Schub, por fim, era o mais problemático
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.40-41.
30
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.86-98. No
depoimento, reconhecido por um tabelião público americano, Gertsein disse que Cukurs pertenceu a
Pērkonkrusts, que perseguiu, pilhou, maltratou e executou judeus durante o verão de 1941. “Um núme-
ro considerável de judeus assassinados na liquidação do Gueto de Riga na noite de novembro para de-
zembro de 1941 foi morto pelo bando chefiado por Herberts Cukurs, sendo que este indivíduo bestial
matou pessoalmente a tiros centenas de pessoas. Durante esta ação pereceu toda a minha família”. Es-
se depoimento pode ser visto em: AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.57-58.
174
CAPÍTULO 3
!
do ponto de vista jurídico. Ele estava escrito à mão, em ídiche e em folhas de caderno
escolar, sem carimbo e sem assinatura reconhecida. 31 Em nenhum momento
Scolnicov e Gartenberg duvidaram da autenticidade dos cinco documentos. Muito
menos das palavras dos sobreviventes ou de sua importância. A frustração de ambos
derivava do fato de que tais documentos, da maneira que tinham sido produzidos, não
tinham valor legal. Gartenberg e Scolnicov sabiam que apresentá-los naquele estado
tão pouco formal ao Ministro da Justiça seria correr um risco considerável.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.95-98.
32
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.100-101.
175
CAPÍTULO 3
!
luta por legitimidade e reconhecimento. A entidade existia há menos de três anos. Seu
poder simbólico ainda era muito limitado. O Caso Cukurs era a sua primeira grande
ação com visibilidade pública, envolvendo desde já a imprensa, as autoridades gover-
namentais e a opinião pública. Era ainda a primeira grande causa levantada por uma
instituição judaica no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. Havia, portanto,
muita coisa a perder. Se havia outros criminosos nazistas no Brasil, como se suspeita-
va seriamente na época, como poderia a Federação das Sociedades Israelitas do Rio
de Janeiro exercer algum papel de relevo nestes casos, em um futuro próximo, se sua
reputação no Caso Cukurs fosse comprometida?
Imagem&42.&Depoimento!de!Rafael!Schub.!Fonte:!Yad!Vashem!Archives.!Documentations!about!Trials!of!
War!Crimes:!RG:O.4/FN:154.fls.95X98.
176
CAPÍTULO 3
!
O encontro relatado por Scolnicov e Gartenberg poderia ser um blefe político a fim
de chamar a atenção de Brassloff para a gravidade da situação. Mas não era. Em um
memorando interno, Scolnicov registrou que naquele quatro de setembro de 1950, em
companhia de Leonas Zeigarnikas, também diretor da Federação das Sociedades Isra-
elitas do Rio de Janeiro, ele tinha se encontrado com Lopo Coelho, então Chefe da
Casa Civil da Presidência da República, que substituía Bias Fortes, o Ministro da Jus-
tiça, que estava fora do Rio de Janeiro. A visita, relatou Scolnicov, tinha sido arranja-
da por um conhecido chamado Jacob Scherichlevsky, e a apresentação entre eles fora
feita por Luiz Cantuária Medronha, oficial de gabinete do Chefe de Polícia. Scolnicov
registrou que Coelho, já a par do caso, inteirou-se dos detalhes “e fez-nos sentir o in-
teresse do Ministro da Justiça na expulsão de Cukurs”. Foi neste encontro que Coelho
teria cobrado um memorando acompanhado da documentação pertinente, material que
ele, pessoalmente, faria chegar a Bias Fortes, tão logo este retornasse de viagem.34
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.100. [Orig-
inal: “You imagine, that we were anxious to do all for not handing him over the above captured docu-
ments you sent to us, able to have contra producing effect.”]
34
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fl.100.
177
CAPÍTULO 3
!
Justiça, por intermédio do Chefe da Casa Civil, com a anuência do próprio ministro da
pasta, tinha escutado atentamente as reinvindicações da entidade e sinalizado com a
possibilidade de dar entrada no processo de expulsão de Cukurs. Mais do que isso, os
membros do ministério estavam negociando com os representantes da entidade judai-
ca carioca aquilo que consideravam necessário para abrir o processo de expulsão.
Uma vez decidido que não entregariam os depoimentos originais ao governo brasi-
leiro, Gartenberg e Scolnicov propuseram o seguinte ao Congresso Judaico Mundial:
Conscientes de que seu pedido poderia soar incomum, encerraram a carta com a
mensagem: “por favor, não estranhe o nosso pedido, mas você deve entender que Cu-
kurs não está inativo, desprotegido e nós temos que vencer muitos obstáculos antes de
chegarmos a um bom termo”.37 Em outras palavras, a Federação das Sociedades Israe-
litas do Rio de Janeiro, por intermédio de Scolnicov e Gartenberg, queria consertar a
falta de formalidade dos depoimentos transpondo-os para um papel timbrado!Comitê
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Esse nome, aparentemente uma outra testemunha, não volta a aparecer na documentação sobre Cu-
kurs, sendo provavelmente um equívoco de Scolnicov e Gartenberg.
36
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.101. [Orig-
inal: “Please, send us by next airmail and urgently a letter written on a sheet of the Committee for In-
vestigations of Nazi Crimes in the Baltic Countries (as it would not be advisable to declare here the
extinction of the mentioned committee) in which letter you declare to possess the original statements of
the witnesses Schub, Shapiro, Tukacier, Fiszkin, Gerstein and Kliots, which English translations you
are annexing to the present letter. Please, let the letter signed by Dr. Brasloff and legalize his signature
by a public notary and the Brazilian Consulate. The statements let type on sheets of the Committee for
Investigations of Nazi Crimes in the Baltic Countries and testify the exactitude of the translation and
the legality of the witnesses signatures by Dr. Brasloff.”]
37
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.101. [Orig-
inal: “Please, don’t look queer on our request, but you must understand that Cukurs is not inactive nor
without protection and we have to overcome a lot of obstacles carrying the matter to a good end.”]
178
CAPÍTULO 3
!
de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos e devidamente assinado por
seus representantes. O problema, como vimos, era que tal comitê não existia mais.
Enquanto esse material não chegava, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio
de Janeiro enviou a Lopo Coelho, no dia 26 de setembro de 1950, um memorial sobre
Cukurs contendo um resumo de todos os sobreviventes. Não era aquilo que tinham
prometido ao ministério, mas pareceu uma opção melhor do que atrasar ainda mais o
envio da peça e perder o momento favorável do governo. Nesse dossiê, a entidade
também fez um inventário dos crimes atribuídos a Cukurs e dos principais protestos
publicados nos últimos dois meses pela imprensa e por parlamentares brasileiros. O
intuito era convencer Bias Fortes, Ministro da Justiça, como era “unânime a revolta da
opinião pública brasileira contra o asilo e hospitalidade que goza aqui um assassino de
dezenas de milhares de pessoas.”39 O documento sublinhou ainda que tanto a Consti-
tuição Brasileira quanto a Convenção de Genocídio das Nações Unidas, assinada pelo
Brasil em 1948, proviam o fundamento legal para expulsar Cukurs.40
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.3-4.
39
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.43-62.
40
No depoimento, reconhecido por um tabelião público americano”, Gertsein diz que Cukurs pertenceu
à Pērkonkrusts, que perseguiu, pilhou, maltratou e executou judeus durante o verão de 1941. “Um nú-
mero considerável de judeus assassinados na liquidação do Gueto de Riga na noite de novembro para
dezembro de 1941 foi morto pelo bando chefiado por Herberts Cukurs, sendo que este indivíduo bestial
matou pessoalmente a tiros centenas de pessoas. Durante esta ação pereceu toda a minha família”. AN-
RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.57-58.
179
CAPÍTULO 3
!
Imagem&43.&Imprensa!anuncia!a!chegada!dos!documentos.!Fonte:!Tribuna!da!Imprensa,!03/08/1950,!p.8.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. Fls.49-57.
180
CAPÍTULO 3
!
Após certa hesitação, o Senhor Ministro declarou que ele, pessoal-
mente, não tinha visto os elementos do dossiê, mas sim o Consultor
Jurídico, a quem ele o entregou, tendo este emitido parecer verbal,
opinando pelo pedido de esclarecimento ao Itamaraty. Continuando
a insistir, para obter uma resposta mais concisa quanto às possibili-
dades de expulsão, o Senhor Ministro declarou que, conforme a
opinião expressa pelo Consultor Jurídico, seriam insuficientes as
provas apresentadas para justificar a expulsão. Acrescentou o Se-
nhor Ministro que caso for despachada a ordem de expulsão, Cukurs
poderia entrar com um mandado de segurança, que, se fosse conce-
dido, colocaria o Ministério da Justiça numa delicada situação.
Aconselhou a aguardar os esclarecimentos do Itamaraty.42
Ficava claro, assim, que o Ministro da Justiça tinha delegado a seu staff as primei-
ras análises sobre o caso, como era, aliás, prática comum em todos os ministérios. De-
zenas de assuntos, uns mais urgentes do que outros, chegavam às mãos do Ministro da
Justiça todos os dias, sendo tarefa do consultor jurídico, entre outros funcionários,
realizar pré-avaliações que ajudariam o chefe da pasta a tomar suas decisões em um
momento posterior. Poderia ser frustrante a informação de que o ministro não tinha
lido o material, mas isso não era nada anormal. De todo modo, Bias Fortes continuava
bastante receptivo à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. E o fato
do consultor jurídico já ter apreciado o material também demonstra que o caso conti-
nuava evoluindo. O grande problema, conforme relatado no trecho anterior, era o fato
de que os depoimentos tinham sido interpretados como “insuficientes” para justificar
a abertura de um pedido de expulsão contra Cukurs. Os temores de Scolnicov e Gar-
tenberg tinham se concretizado. Os documentos, embora agora tivessem a chancela de
uma instituição, não eram os originais inicialmente solicitados. Com isso, as investi-
gações capitaneadas pelo Itamaraty ganhavam um peso ainda maior.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.220.
181
CAPÍTULO 3
!
nência de estrangeiros, entre outras questões.43 Ele não tinha a palavra final dentro da
pasta da Justiça, mas era uma divisão com enorme peso nas decisões do ministro e,
consequentemente, nas decisões do Presidente da República. Essa primeira apreciação
foi redigida por Adhemar Marcelino da Silva, oficial administrativo do DIJ:
O texto de Silva foi, em seguida, aprovado por Juracy Costa de Almeida, chefe da
Seção de Permanência e Expulsão de Estrangeiros da Divisão de Assuntos Políticos
do DIJ (DAP), e ratificada por José Vieira Coelho, Diretor-Geral do DIJ. 45 O seu teor
não trazia qualquer novidade. Ele apenas oficializou o que Bias Fortes tinha adiantado
a Zeigarnikas uma semana antes: os depoimentos contra Cukurs não tinham sido sufi-
cientes para justificar a abertura de um pedido de expulsão de Cukurs, devendo-se es-
perar o resultado das diligências do Ministério das Relações Exteriores.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
BRASIL. Lei Nº 5.630, de 29 de junho de 1943. Transforma a Diretoria da Justiça e do Interior, do
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em Departamento do Interior e da Justiça e dá outras pro-
vidências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de Janeiro, DF, Ano. LXXXII,
Nº.151, 1º de julho de 1943. Seção I, p.10083.
44
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712.fls.66-67.
45
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712.fls.68-71.
182
CAPÍTULO 3
!
1930 – tendo convivido e sido discípulo de autores de ideia antissemitas –,46 havia se
transformado nos últimos anos em uma personalidade muito benquista por setores ju-
daicos do Brasil graças a seu apoio a várias “causas judaicas”. Em 1946, por exemplo,
ele fez parte do Comitê Brasileiro Pró-Palestina, organização que reunira políticos,
intelectuais e escritores com a missão de informar a opinião pública do país sobre a
partilha da Palestina e de obter o apoio do Brasil na votação que em breve ocorreria
na ONU sobre a questão.47 O historiador Nachman Falbel conta que, em certa ocasião,
Nogueira foi aclamado por um discurso que fez no Parlamento, “sugerindo que o Bra-
sil apoiasse a proposta do Presidente Truman para que 100.000 judeus refugiados fos-
sem admitidos na Palestina”.48 Em outra oportunidade, na Assembleia Constituinte de
1946, o senador da UDN fez um longo pronunciamento condenando o antissemitismo
disseminado pelo nazismo durante a guerra.49 Desafeto de Vargas, acusou ainda o
Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão de censura intelectual criado pelo
Estado Novo, de ter sido um “porta-voz da Alemanha nazista”.50
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
46
A historiadora Taciana Wiazovski relaciona Nogueira a publicações e posições antissemita dentro do
catolicismo conservador. Cf. WIAZOVSKI, Taciana. O mito do complô judaico-comunista no Brasil:
gênese, difusão e desdobramentos (1907-1954). São Paulo: Editora Humanitas, 2008. pp.94-100.
47
FALBEL, Nachman. Judeus no Brasil: estudos e notas. São Paulo: Humanitas; EDUSP, 2008. p.430.
48
Ibidem. p.419.
49
BRASIL, Pronunciamento de Hamilton Nogueira. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Rio
de Janeiro, DF, 10 de julho de 1946. p.3417.
50
HAMILTON NOGUEIRA (Verbete) Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) da FGV.
51
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.214.
183
CAPÍTULO 3
!
A participação de setores não judaicos tinha muito a ver com a nova concepção so-
ciológica do Brasil. Integração, tensão racial e preconceito eram os principais temas
discutidos por intelectuais, acadêmicos e ensaístas na época. Essa “nova sociologia”,
representada por intelectuais como Florestan Fernandes, Costa Pinto, Guerreiro Ra-
mos, René Ribeiro, entre outros, procurava pensar o Brasil a partir de suas idiossin-
crasias. Buscam perceber no seu passado o início das assimetrias sociais e políticas
que configuravam o presente, sem perder de vista a persistência de estruturas sociais
arcaicas e conservadoras. Muitas destas mazelas, presentes e passadas, tinham como
ponto de injunção questões como o preconceito de cor, gênero, “raça” e classe social.
Essas preocupações ganharam grande impulso no mundo inteiro no imediato pós-
guerra, à luz dos crimes do nacional-socialismo, e no Brasil também, particularmente,
após a divulgação dos resultados da pesquisa patrocinada pela Organização das Na-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.75.O grupo enviou alguns dias depois
um telegrama ao Ministério da Justiça formalizando esse pedido.
53
Nossa Voz, “Ato Público contra o Antissemitismo”, 09/11/1950, p.10.
184
CAPÍTULO 3
!
ções Unidas a respeito das relações raciais no país. Esta pesquisa foi encomendada de
modo a provar o lugar-comum de que o Brasil era um verdadeiro paraíso racial, lugar
onde o racismo não tinha vez e onde o negro tinha as mesmas oportunidades que os
brancos. Os resultados encontrados, porém, ao invés de confirmarem essa até então
hipotética harmonia racial, evidenciaram justamente o seu oposto. Caía um mito.54
Todas essas mudanças sociais e políticas tiveram seu o epicentro no âmbito inte-
lectual, mas também reverberaram no meio público. É o caso, por exemplo, do Centro
Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes ou ainda do Teatro Experimen-
tal do Negro (TEN), fundado em 1944 por Abdias do Nascimento e que contou com a
militância decisiva de Guerreiro Ramos. Racismo e antissemitismo, nesta conjuntura,
encontram-se em perfeita harmonia. Não à toa, a Lei Afonso Arinos, promulgada em
1951, responsável por criminalizar o racismo no Brasil, acabaria sendo interpretada
por muitos judeus e diversas organizações judaicas também como uma conquista que
lhes dizia respeito.55 E não fortuitamente, o movimento contra Cukurs em São Paulo
era chamado de Movimento Israelita Paulista contra o Racismo e o antissemitismo.56
185
CAPÍTULO 3
!
Por mais insuspeitas que sejam para nós as testemunhas com cujos
depoimentos fomentamos as denúncias, e por maior que seja nossa
certeza de estarmos frente a um genocida, não possuímos elementos
juridicamente capazes de lançar sobre alguém a acusação de crimino-
so ou, mais especificamente, criminoso de guerra. Nenhum jurista, e
já não digo nenhum tribunal, condenaria alguém somente à vista da
documentação que possuímos contra Cukurs. Disse “somente”, vale
dizer: completada a documentação ou instruído um processo judicial
com o “dossiê” existente, é possível esperar um veredito condenató-
rio.59
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
58
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.233-239.
59
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.234.
186
CAPÍTULO 3
!
uma vez que: a) não foram prestados perante autoridade judicial; b)
não foram submetidos ao contraditório que deveria, obrigatoriamen-
te, ser facultado ao indiciado. Não se compreende, hoje, uma con-
denação baseada exclusivamente em documentação unilateral. A de-
fesa de qualquer indiciado é princípio inconteste tanto no direito na-
cional, como na esfera do direito internacional. São, pois, compre-
ensíveis, explicáveis, se bem que não totalmente justificáveis, tanto
a reserva por parte do Ministro da Justiça, forte em um parecer de
seu Consultor Jurídico, como a atitude negativa da Chefia de Polí-
cia, em proceder judicialmente contra Cukurs. (...) Sob o ponto de
vista estritamente jurídico e legal estão as autoridades brasileiras “a
cavaleiro” de qualquer censura; a inculpabilidade de Cukurs conti-
nua inabalada.60
Embora cético quanto aos aspectos legais dos depoimentos, Scolnicov disse, por
fim, acreditar que o “lado político” poderia influir decisivamente para um desfecho
favorável do caso. Esse é o momento menos pessimista de seu relatório. Cukurs, afir-
mou, poderia ser considerado indesejável caso se descobrisse algum fato ilegal em sua
entrada no Brasil. Para Scolnicov, o letão não poderia, pelo menos naquele momento,
ser acusado de “mau procedimento no Brasil”, porém, restariam dúvidas quanto à sua
entrada em território nacional, podendo ter induzido as autoridades brasileira ao erro
em relação à sua “personalidade de carrasco”.61 O mais curioso desse trecho é que
Scolnicov se mostrava, ao mesmo tempo, desconfiado das intenções do governo:
Não encontrei durante a presente pesquisa qualquer indício que sugerisse que o
Cônsul Brasileiro em Marselha soubesse da vida pregressa de Cukurs. Como vimos
no capítulo anterior, Cukurs entrou legalmente no país e não era procurado por ne-
nhum tribunal competente. E agora, tanto o governo brasileiro quanto a Federação das
Sociedades Israelitas sabiam disso. Não havia traço visível de ilegalidade em sua imi-
gração. Quanto à “vontade política” do governo brasileiro em expulsar estrangeiros,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.235.
61
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.236.
62
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.237.
187
CAPÍTULO 3
!
essa é uma questão mais complexa. A legislação brasileira era vaga ao sublinhar que o
estrangeiro poderia ser expulso do país caso viesse a “comprometer a segurança naci-
onal, a estrutura das instituições ou a tranquilidade pública”. Esses termos poderiam
muito bem servir ao entendimento de momento do governo federal e/ou da polícia. A
historiografia já demonstrou isso muito bem. Segundo Lená Medeiros de Menezes, as
autoridades policiais e ministeriais brasileiras, nas duas primeiras décadas do século
XX, empregaram o artifício da expulsão com o intuito de exercer o controle sobre
aqueles imigrantes que professavam ideologias contrárias ao status quo, principal-
mente comunistas e anarquistas. Para Menezes, a “questão estrangeira” fazia parte da
chamada “questão social”.63 Isso continuou acontecendo mesmo depois da chegada de
Vargas ao poder, em 1930. De acordo com Maria Izilda Santos de Matos, há casos em
que as autoridades chegaram a iniciar os trâmites de expulsão sem comunicar os inte-
ressados, à revelia, sem direito à defesa, ou seja, de modo ilegal. “A expulsão, como
instrumento de controle social na lógica do Estado autoritário, burlou os entraves, uti-
lizou-se de métodos arbitrários (tanto legais como ilegais), atuando por meio de de-
cretos-leis”, pontua a historiadora.64 Porém, isso não é o mesmo que dizer que as de-
cisões do governo brasileiro eram completamente arbitrárias. A posição do Estado
brasileiro no Caso Cukurs até aquele momento parecia indicar, na verdade, outro tipo
de compreensão. As autoridades governamentais tinham, evidentemente, parâmetros
burocráticos a serem seguidos: leis, tratados, acordos e a constituição. Eram esses dis-
positivos que estavam orientando os passos dados pelo Ministério das Relações Exte-
riores e pelo Ministério da Justiça. Por outro lado, o fator político não estava ausente.
No fundo, ele parecia igualmente importante no Caso Cukurs. Nada tinha sido prova-
do contra o “homem dos pedalinhos”; ainda assim, o Prefeito Mendes de Moraes não
renovou a concessão dos pedalinhos. Cukurs não constava na lista de criminosos na-
zistas procurados e nem tinha contra si nenhum pedido de prisão, expulsão ou extradi-
ção; ainda assim, as duas pastas ministeriais supracitadas tinham iniciado uma série
de averiguações a seu respeito. A política era, assim, determinante no caso. O que é
surpreendente, contudo, é que ela estava sendo determinante não no sentido negativo,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
Menezes, Lena Medeiros de. "Os indesejáveis: desclassificados da modernidade." Protesto, crime e
expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. pp.281-287.
64
MATOS, Maria Izilda Santos. Entre suspeitos, perseguidos e expulsos: São Paulo 1934-1940. In:
VIANNA, Marly de Almeida; SILVA Érica Sarmiento da; GONÇALVES, Leandro Pereira. (Orgs.)
Presos Políticos e perseguidos Estrangeiros na Era Vargas. Rio de Janeiro: Mauad, FAPERJ, 2014.
pp.49-68.
188
CAPÍTULO 3
!
aquele apontado por Scolnicov, mas no sentido mais positivo para a Federação das
Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. Isto é, mesmo com evidências insuficientes,
as autoridades não tinham facilitado para Cukurs. Por fim, cabe lembrar que o período
do qual falamos, isto é, dos primeiros governos do pós-guerra, são politicamente dife-
rentes da primeira metade do século XX. Menezes e Matos referem-se a estes como
momentos da história do Brasil em que o país vivia uma grande instabilidade política,
carente de continuidade democrática e permeado por decisões autoritárias. Já no perí-
odo do Caso Cukurs, ainda que a democracia não fosse plena, as instituições demo-
cráticas encontravam-se bem mais consolidadas e respeitadas.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.238.
66
Nossa Voz, “Ousadia do Criminoso de Guerra Cukurs”, 26/01/1951, p.10.
189
CAPÍTULO 3
!
Apesar dos temores, o desfecho foi novamente negativo para Cukurs. O advogado
de Bergier, Wisenberg e Gornik, Marcos Constantino, impetrou no Tribunal de Justiça
um pedido de habeas-corpus e de anulação do processo, baseado, segundo disse, em
contradições registradas pelo próprio Cukurs nos autos. Constantino alegou que o
movimento na Lagoa Rodrigo de Freitas fora um movimento de massas, não podendo
seus clientes serem responsabilizados pelo ocorrido. Além disso, o advogado defen-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
Nossa Voz, “O Ichuv de Niterói contra Cukurs”, 19/04/1951, p.8; Nossa Voz, “Movimento de Soli-
dariedade aos Processados por Cukurs”, 02/08/1951, p.10; Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão
de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
68
Nossa Voz, “O Ichuv de Niterói contra Cukurs”, 19/04/1951, p.8.
69
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712.fl.86.
70
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712.fl.89.
71
Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
72
Nossa Voz, “Processo indigno contra jovens democratas”, 23/08/1951, p.10.
190
CAPÍTULO 3
!
deu a tese de que não houvera flagrante, já que os três manifestantes foram presos em
local distante da manifestação. Os dois recursos foram aceitos pela 3a Câmara do Tri-
bunal de Justiça, composta pelos desembargadores Adelmar Tavares, Álvaro Mariz e
Barros (relator) e Bulhões Carvalho. O processo contra os três estava anulado. 73
Marcos Constantino, que era membro da junta executiva da Federação das Socie-
dades Israelitas do Rio de Janeiro, vai ser um personagem bastante importante daqui
em diante. Em primeiro lugar porque ele conseguiu derrotar Cukurs no processo que
movia contra os três judeus. E sobre isso, vale fazer uma observação: Constantino fo-
ra designado para defendê-los pela federação, opositora, como sabemos, do Comitê
Unidos e dos demais grupos “progressistas”, o que demonstra que embora progressis-
tas e sionistas vivessem uma polarização político-ideológica, havia momentos em que
essas fronteiras eram bem mais flexíveis e invisíveis. Em segundo lugar, porém mais
importante, porque Marcos Constantino assumiu a liderança do Caso Cukurs, em
substituição a Israel Scolnicov, que deixou a federação no início de 1951.
Do lado do governo, a transição de gestões tinha sido feita no final de janeiro. Du-
tra dera lugar a Vargas, que voltava ao poder depois de seis anos fora do Palácio do
Catete. No Ministério da Justiça, Francisco Bias Fortes deu lugar a Francisco Negrão
de Lima, homem de confiança de Vargas e que já tinha várias vezes assumido a fun-
ção de Ministro da Justiça durante o Estado Novo, nas ocasiões em que o titular da-
quele ministério, Francisco Campos, esteve ausente. Já no Ministério das Relações
Exteriores, Raúl Fernandes foi substituído por João Neves da Fontoura, antigo aliado
de Vargas e que seria responsável nos anos seguintes por defender uma política exter-
na de alinhamento com os Estados Unidos. Este novo governo, passado o período de
transição, prosseguiu com as investigações. No dia 13 de abril de 1951, Negrão de
Lima enviou um novo ofício à Missão Diplomática Brasileira em Bonn, na Alemanha
Federal, desejando saber se esta já tinha conseguido informações sobre Cukurs. No
dia 25 de abril, Heitor Lyra, secretário geral do Ministério das Relações Exteriores
respondeu:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
Última Hora, “Negada naturalização a Herberts Cukurs, o matador de trinta...”, 28/08/1951.p.4.
191
CAPÍTULO 3
!
o Brasil com o auxílio da Organização Internacional de Refugiados
como deslocado. Ajunta ainda a informação que o referido indiví-
duo teria sido detido durante uma manifestação antissemita no Rio
de Janeiro.74
A resposta de Heitor Lyra era curta, incompleta e com muitos problemas. E, como
veremos mais à frente neste capítulo, não correspondia às informações – embora ain-
da baseada em rumores – que os EUA coletavam sobre Cukurs e sua atuação no Co-
mando de Arājs, do qual fez parte. Em primeiro lugar, uma das principais dúvidas do
governo brasileiro continuava não sanada: Cukurs tinha sido ou não condenado pelo
Tribunal de Nuremberg? Em segundo lugar, o texto – cuja fonte os americanos não
revelaram – dizia que Cukurs tinha sido “somente” comandante de Gueto na cidade
de Riga. Isso, entretanto, fazia dele criminoso de guerra? Lyra não respondera, nem os
americanos. Em terceiro lugar, a informação de que Cukurs tinha imigrado para o
Brasil com ajuda da Organização Internacional de Refugiados (OIR) não fazia senti-
do. A OIR só começou a operar em 1947, um ano depois de Cukurs embarcar para o
Brasil. Por fim, também não fazia sentido a informação de que Cukurs tinha sido pre-
so no Rio de Janeiro por participar de atividades antissemitas. De acordo com o in-
quérito feito pela polícia política, Cukurs nunca se envolvera com política e não tinha
passagens pela polícia. Teriam as autoridades norte-americanas se confundido com a
prisão dos três judeus após a manifestação Anti-Cukurs na Lagoa Rodrigo de Freitas?
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.94.
75
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005. p.147.
76
VIKSNE, Rudite. The Arajs Commando Member as Seen in the KGB Trial Files: Social Standing,
Education, Motives for Joining It, and Sentences Received. In: The Issues of the Holocaust Research in
Latvia: Reports of an International Conference 16-17 October 2000. Riga: 350-380.
192
CAPÍTULO 3
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
Ibidem.
78
Ibidem. [Original: Of 352 members of the Arajs Commando, who were punished, 42 enlisted in
1941, 262 in 1942 and 42+6 in 1943/1944.
79
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005. p.147. [Original: “Herberts Cukurs could not have played a command-
ing role in the ghetto, for his name did not show up on the ghetto’s organizational chart. The Hamburg
judiciary, that prosecuted a Riga Ghetto case, would not support Kaufmann’s assertions [NA. isto é,
que Cukurs tinha um papel de liderança no gueto]. The organization authority of the Rumbula massacre
was Jeckeln, and through him the Schutzpolizei. Cukurs was a member of the Arājs Commando, but
among the Latvian murderers, he did not rank very high. In the deposition of Arājs men found in the
KGB archives, he is not mentioned often. An auxiliary of the auxiliary Security Police could not wield
much power in the presence of Germans.”]
193
CAPÍTULO 3
!
kurs não ocupava um posto alto no comando, na verdade, o que Ezergailis nos ajuda a
entender porque é tão difícil encontrar evidências oficias contra Cukurs. Ele não apa-
rece sistematicamente nos arquivos alemães e nem soviéticos porque não era um bu-
rocrata ou um dos líderes do comando. Daí que as provas contra ele fossem majorita-
riamente testemunhais. Elas não poderiam ser diferente neste sentido.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.97.
194
CAPÍTULO 3
!
meio nacional aquela compreensão que é o fundamento sócio-
político das naturalizações. 81
José Vieira Coelho tinha um longo passado de atuação como integralista. Na déca-
da de 1930, fora consultor da Liga Católica Eleitoral (LEC) e ex-presidente da Ação
Católica Brasileira (ACB).82 Teria o seu parecer no Caso Cukurs refletido alguma
animosidade antijudaica ou mesmo antissemita, tão presente nos meios que frequen-
tou? É difícil dizer. Coelho teve uma interpretação desatenta do Caso Cukurs, especi-
almente para alguém que detém um cargo importante no Ministério da Justiça. Ele
deixou passar incólume a informação de que Cukurs imigrara para o Brasil com a aju-
da de uma organização internacional que ainda sequer estava em funcionamento.
Tampouco se perguntou se o Comandante do Gueto de Riga, por força de suas atri-
buições, não seria considerado criminoso de guerra. Coelho, porém, tinha um quadro
geral muito pouco favorável à abertura de um pedido de expulsão de Cukurs. O letão
tinha entrado legalmente no país. Além disso, o Ministério da Justiça ainda não tinha
recebido os depoimentos originais solicitados em agosto de 1950. E, admitindo que a
data de criação da OIR não fosse algo tão simples de perceber, as autoridades ameri-
canas, isto é, uma fonte insuspeita para o governo brasileiro, acabava de declarar que
Cukurs imigrou para o país com ajuda de uma organização oficial.
Tendo em vista tais elementos, Coelho sugeriu ao Ministro da Justiça a sua dupla
solução: arquivar o processo de averiguações sobre Cukurs, uma vez que não tinham
sido provadas ilegalidades em sua entrada no Brasil e nem a autoria de seus crimes, e
sustar o seu pedido de naturalização, já que as informações sobre o passado de Cukurs
continuavam incertas, podendo este ainda ser revelado culpado. Do ponto de vista ju-
rídico, era uma decisão que não comprometia o governo brasileiro. Assim deveria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.97.
82
JUNIOR, Renato Augusto Carneiro. Religião e Política: a Liga Eleitoral Católica e a participação
da Igreja nas eleições. 2000. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná. Essas duas entida-
des tiveram papel bastante relevante na vida política do país. A LEC nasceu em 1932. Era uma associa-
ção civil de âmbito nacional, sediada no Distrito Federal, cujo objetivo era mobilizar o eleitorado cató-
lico para que este apoiasse os candidatos comprometidos com a doutrina social da Igreja nas eleições.
Já a ACB, atuando como órgão paralelo a LEC, surgiu em 1935 como resposta às solicitações do Papa
Pio XI para que fossem fundadas em todo o mundo associações leigas vinculadas à Igreja “com a fina-
lidade de estabelecer o reino universal de Jesus Cristo”. Ver também: LEC e ABC (Verbetes) Dicioná-
rio Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) da FGV.
195
CAPÍTULO 3
!
Imagem&44.&!Charge:!Cukurs!olhando!o!Brasil!de!longe.!Fonte:!Tribuna!da!Imprensa,!19/08/1950,!p.!4.
196
CAPÍTULO 3
!
Na imprensa, o resultado foi amplamente festejado, ainda mais porque ele fora di-
vulgado quase ao mesmo tempo da derrota de Cukurs no processo que movia contra
os três judeus. O jornal A Notícia disse que Cukurs recebeu uma “dupla caqueirada”.85
Já o Tribuna da Imprensa sublinhou que as coisas não andavam bem para ele. “É im-
possível não se lamentar a situação de insegurança em que vive Herberts Cukurs, mas
um homem que faz o que dizem que ele fez, deve estar preparado para essas coisas”.86
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fls.100-101.
85
A Notícia, “Cukurs recebeu uma dupla caqueirada!”, 28/08/1951, p.1.
86
Tribuna da Imprensa, “Devia saber o que fazia”, 29/08/1951, p.6.
87
Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
88
Nossa Voz, “Entregue o memorial pela expulsão de Cukurs do Brasil”, 24/10/1951, p.6.
197
CAPÍTULO 3
!
Imagem&45:&!Constantino!entrega!memorial!a!Café!Filho.!Fonte:!Imprensa!Israelita,!18/09/1950!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Diário da Noite, “Fugiu da Justiça Internacional e vive explorando...”, 07/08/1951, p.5.
90
OENG. Boletim da Organização das Entidades Não-Governamentais do Brasil. Rio de Janeiro. Ano
I, N.1, setembro de 1951. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. p.1.
91
OENG. Boletim da Organização das Entidades Não-Governamentais do Brasil. Rio de Janeiro. Ano
I, N.1, setembro de 1951. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. p. 6.
198
CAPÍTULO 3
!
onde surgiu a ação contra Cukurs), da Comissão Jurídica (que aprovou a ação contra
Cukurs)92 e do Conselho Nacional.93 Em todas, era representada por Constantino.
Já a segunda frente dos esforços da federação para a expulsão de Cukurs foi o diá-
logo direto com o governo, que se manteve constante. Em setembro de 1951, Cons-
tantino elaborou um novo dossiê contra Cukurs. O documento trazia recortes de edito-
riais de jornais que defendiam a expulsão do letão e um breve sumário dos tratados
internacionais e leis que buscavam amparar essa possibilidade. Constantino incluiu
ainda outros três itens ao volume. Eram eles: uma carta assinada por Dumont Stansby,
do escritório da OIR no Brasil, informando que o nome de Herberts Cukurs não cons-
tava no fichário de pessoas que imigraram para o país com a assistência daquela enti-
dade, novamente a tradução para o português do material enviado pelo Congresso Ju-
daico Mundial e um recurso de habeas-corpus impetrado pelo expulsando Curt Wen-
del e negado pelo Supremo Tribunal Federal.94
199
CAPÍTULO 3
!
Imagem&46.&!Repórter!do!UH!e!Anor!Butler!Maciel.!Fonte:!Última!Hora,!12/12/1951.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.173. [Orig-
inal: “The actual Minster of Justice, a real friend of Jews, is deeply affected by the statements and tes-
timonies, he studied on the Cukurs’ dossier, but he fears also the weakness of our evidences, coming
from a private source.” + “Of course, Cukurs, strongly enough supported, and especially his lawyer are
doing their best in order to make the mentioned committee suspicious as a Jewish institution and con-
sequently unreliable and partial.”]
200
CAPÍTULO 3
!
O que nós precisamos agora, urgentemente, é de um certificado emi-
tido por uma autoridade como a UNO, a UNWCC (United Nations
War Criminal Comission) ou o State Department of Justice etc. reco-
nhecendo o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países
Bálticos como uma confiável e idônea organização, encarregada pela
investigação de crimes nazistas. Talvez você possa obter uma decla-
ração informando que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazis-
tas nos Países Bálticos está colaborando com a UNWCC ou alguma
coisa do tipo. (...) Nós tomamos a liberdade de lembrá-los que todas
as assinaturas no certificado devem ser devidamente legalizadas por
autoridades competentes e pelo embaixador brasileiro em Londres.97
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
97
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.174. [Orig-
inal: “What we now need urgently, is a certificate issued by one of the official authorities like the
UNO, the UNWCCC (United Nations War Criminal Commission), or the State Department of Justice,
etc. recognizing the Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries, as reliable and
idoneous organization, fitted for investigations on Nazi crimes. Perhaps you can obtain a declaration,
that the Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries is collaboration with the
UNWCC, or something like that”.]
98
Última Horas, “Genocida não tem asilo no Brasil”, 11/12/1951. p.4.
201
CAPÍTULO 3
!
Nascido em primeiro de maio de 1907, em Porto Alegre, Anor Butler Maciel era
outro funcionário do Ministério da Justiça com uma história de pertencimento a círcu-
los católicos tradicionais e de ideais integralistas. Como boa parte da elite rio-
grandense de sua época, Maciel estudou nos melhores colégios católicos. Na juventu-
de, entre 1925 e 1930, sua vida intelectual e política foi intensa. Formou-se pela Fa-
culdade de Direito de Porto Alegre, fez parte da União dos Moços Católicos e da
Congregação Acadêmica Mater Salvatoris. No início da década de 1930, assumiu a
redação de O Estado do Rio Grande, porta voz do Partido Libertador. 99 Ainda no ca-
tolicismo militante, integrou a Ação Católica Brasileira e participou da organização da
Liga Eleitoral Católica, das quais José Vieira Coelho, Diretor-Geral do DIJ, também
fez parte.100 Segundo Marcelo Vianna, foi nessa época que Maciel desenvolveu posi-
ções antissemitas, anticomunistas e antimaçônicas, posteriormente exacerbadas na
Ação Integralista Brasileira (AIB).101
Em 1934, Anor Butler Maciel fundou o núcleo da AIB do Rio Grande do Sul, na
qual atuou como secretário. Na regional integralista teve a companhia de outros no-
mes importantes da vida política gaúcha, como Dario de Bittencourt, chefe do movi-
mento, e Egon Renner, tesoureiro. Maciel foi ainda diretor do jornal O Integralista e
concorreu ao cargo de Deputado Estadual em 1934. Vianna explica, porém, que devi-
do às distensões internas na AIB, Maciel foi se afastando do movimento, ainda que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
O estado do Rio Grande do Sul, segundo Ericson Flores, deu apoio irrestrito à candidatura de Vargas
no final dos anos 1920, mas depois passou a criticar o governo provisório. In: FLORES, Ericson. O
discurso liberal da imprensa conservadora no início da Era Vargas. Anais do XI Encontro Estadual de
História, 23 a 27 de julho de 2012. Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil.
100
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011. pp. 117-132.
101
Ibidem, p.119.
202
CAPÍTULO 3
!
isso “não tenha significado a abdicação das suas convicções católicas e integralis-
tas.”102
Embora o integralismo tenha sido combatido por Getúlio Vargas no início do Esta-
do Novo, Anor Butler Maciel não sofreu os efeitos dessa repressão. De acordo com
Vianna, isso não aconteceu porque o advogado encontrava-se “afastado por indisci-
plina pelo chefe provincial da AIB, Nestor Contreiras Rodrigues, por discordar do
aparato paramilitar organizado por Gustavo Barroso”.103 Além disso, explica o histo-
riador, ser católico e ter ainda contato com seus antigos colegas de Partido Libertador,
inseridos no novo governo, também devem ter contribuído.104 No período do Estado
Novo, pelo contrário, Maciel galgou posições. Tornou-se um funcionário dedicado à
máquina estatal. Foi presidente da Comissão do Salário Mínimo, membro da Comis-
são de Estudos e Negócios Estaduais do Ministério da Justiça e, em 1939, aos 32
anos, tornou-se o mais jovem bacharel a assumir o cargo de Procurador-Geral do Es-
tado. Em 1947, foi ainda chefe do gabinete do Ministro da Justiça e um ano depois,
em 1948, assumiu o seu atual cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça, que
ocupou até a sua aposentadoria, no final da década de 1960.105
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
102
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011. p.121.
103
Ibidem.
104
Ibidem.
105
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011, p.122.
203
CAPÍTULO 3
!
res, inclusive no Brasil. “Sem que o nosso povo, tão hospitaleiro e sociável, tivesse,
por qualquer forma, repelido do seu convívio os israelitas, estes mantêm vida social
própria, com associações fechadas de caráter cultural, esportivo, recreativo e religio-
so.” Em segundo lugar, os judeus possuiriam um plano secreto para dominar o mundo
e que passava, inexoravelmente, pela destruição das religiões cristãs. O marxismo e o
liberalismo seriam duas vias dessa dominação, não havendo contradição nisso, afinal
de contas, explica Maciel, “Marx proclamava que a ditadura do proletariado tem de
ser precedida pela concentração dos capitais. (...) Milionários e proletários judeus se
dão as mãos na obra de destruição das instituições cristãs.”106
No decorrer do livro, Maciel transparece que a não assimilação dos judeus seria o
item mais preocupante em se tratando da questão judaica no Brasil. Esse pensamento
reflete a concepção que o autor tinha de nação. Diferente de alguns intelectuais de seu
tempo, Maciel rechaçava a ideia de que o conceito de raça fosse o definidor de nação.
“No Brasil”, ele diz, “qualquer conceito estreito de raça se afastará das realidades na-
cionais. Formamos, incontestavelmente, uma Nação, (...) mas não tanto pela unidade
étnica, senão, e principalmente, pela incontestável unidade de cooperação no sentido
do progresso da nacionalidade.”107 Neste sentido, um grupo que não se assimila, e
que, portanto, não faz parte do “caldeamento de raças”, é um ameaça ao desenvolvi-
mento do país. O autor não acredita nem nos judeus que se naturalizam brasileiros e
nem naqueles que já nasceram no Brasil: “a nacionalização dos judeus é uma far-
sa”.108 Quanto à imigração judaica, Maciel defende a necessidade de restrições:
204
CAPÍTULO 3
!
perior de solidariedade humana, há de fazê-los desaparecer. Mas é
preciso que oficialmente se encare esse assunto. Do contrário, se, por
delicadeza, deixarmos de resolver o caso de frente, o povo reivindica-
rá para si essa tarefa. E as manifestações de antissemitismo virão,
talvez, empanar as nossas tradições de alta hospitalidade, que deve-
mos defender a todo o transe.109
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
MACIEL, Anor, Butler. Nacionalismo – o problema judaico no mundo e no Brasil. O nacional-
socialismo. Porto Alegre: O Globo, 1937. pp.141-142.
110
Ibidem, pp.145-148.
111
GERTZ, René. Intelectuais gaúchos e o Estado Novo brasileiro (1937-1945). Revista História: De-
bates e Tendências, v. 13, n. 1, 2013.
112
SILVEIRA, Daniela; VIANNA, Marcelo; OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. O Concurso Público de
1941 - Institucionalização da Carreira do Ministério Público do Rio Grande do Sul. In: Revista do Mi-
nistério Público, N.49, 2003, pp. 34-36.
205
CAPÍTULO 3
!
Sturm foi mesmo assim fazer a prova oral – da qual Maciel era um dos três examina-
dores – e dias depois pleiteou uma audiência com o Interventor Federal para discutir
sua demissão. Maciel chegou a lhe ofereceu um cargo na Diretoria das Prefeituras
Municipais, que ela recusou. Depois de muito persistir, Sturm conseguiu sua perma-
nência na instituição, sendo apenas designada para outra comarca, a de Jaguari.113
Apesar do que diz Gertz, não fica evidente que o fato de ser judia foi a razão para a
demissão de Sturm. O motivo oficial, isto é, ser uma mulher e casada não parece um
engodo. Era obviamente um motivo bastante torpe, mas coerente com o preconceito
generalizado que se tinha na época contra mulheres que deixavam seus lares para tra-
balhar.114 Flavio Heinz também chama a atenção para este fato e, embora ele também
admita a “postura antissemita” de Maciel como um dos motivos para a demissão da
promotora, nos traz ainda novos elementos que ajudam a explicar a decisão do então
Procurador-Geral do Rio Grande do Sul, como a disputa de Maciel com Sólon Mace-
dônia pela chefia institucional do MPRS e “certa impopularidade na promotoria e sua
atuação incisiva, considerada indesejada, contra um militar ligado ao governo”.115
206
CAPÍTULO 3
!
tério das Relações Exteriores) ou no Comitê de Crimes de Guerra das Nações Unidas
(CCGNU), ou ainda por se tratar de um departamento do Congresso Judaico Mundial,
trabalhando nos bastidores. Neste caso, pontuaram, “será necessário emitir uma decla-
ração onde se diga que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países
Bálticos é um departamento do Congresso Judaico Mundial e que assume toda a res-
ponsabilidade pela idoneidade e pela confiabilidade das informações levantadas”. Po-
rém, o mais importante para a federação continuava sendo o reconhecimento oficial
do extinto comitê por autoridades governamentais competentes:
É evidente que embora o CMJ seja bem conhecido nos círculos das
Nações Unidas, ele é desconhecido, pelo menos oficialmente, por
parte do Ministério da Justiça e pelo Ministério das Relações Exterio-
res do Brasil, devendo ser reconhecido por autoridades oficiais como
a ONU, a CCGNU ou similar, credenciamento este que nós acredi-
tamos ser viável de ser conseguido. Como você pode inferir da entre-
vista publicada, o Ministro da Justiça vai indagar ao Ministério das
Relações Exteriores a respeito da existência e idoneidade do Comitê
do Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, sendo ne-
cessário contatar com a maior urgência o seu Foreign Office sobre o
pedido que vai chegar do Brasil, no sentido de evitar uma resposta
negativa.117
O Congresso Judaico Mundial, porém, não teve tempo para agir. No dia 27 de de-
zembro de 1951, Anor Butler Maciel emitiu o parecer número 447 do Ministério da
Justiça, o primeiro dele no caso. Tal parecer tinha como objeto a expulsão de Herberts
Cukurs e como partes interessadas a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, entre outros. Maciel propôs:
207
CAPÍTULO 3
!
de base à informação constante do ofício da folha 94 [N.E.: auxílio
imigratório da OIR e Comandante do Gueto de Riga]; e) Junta do
processo do registro de estrangeiro de Herberts Cukurs.118
Tecnicamente, o parecer de Maciel tinha sido até aquele momento o mais coeren-
te e completo de todos já emitidos pelo Ministério da Justiça no Caso Cukurs. Ironi-
camente, isso partira de um ex-integralista. Maciel organiza boa parte das informa-
ções que seu ministério havia reunido e solicitou informações que, se por um lado são
óbvias, até ali tinham sido negligenciadas. Maciel, por exemplo, solicita ao Ministério
das Relações Exteriores que checasse a atuação do Comitê de Investigações dos Cri-
mes Nazistas nos Países Bálticos. Teria este comitê encaminhado as graves acusações
contra Cukurs a algum tribunal de guerra? Se sim, que resultado tivera? Além disso,
ao pedir que se checassem as informações passadas pelo governo americano, Maciel
reparava o descuido anterior de José Viera Coelho. Por fim, mais uma vez dava mos-
tras de que ainda não confiava no material enviado pela Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro. Maciel queria que essas evidências fossem positivadas e
contrastadas com outras, provenientes de fontes oficiais. O ano de 1951 terminava,
deste modo, com a seguinte perspectiva: a busca da federação em comprovar a ido-
neidade do comitê continuava sendo uma tarefa fundamental. Porém, tão importante
agora eram também eram os resultados que o Itamaraty encontraria em Londres.
208
CAPÍTULO 3
!
não muito animadoras sobre o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Paí-
ses Bálticos. Aquilo que dizia o representante do Congresso Judaico Mundial nos aju-
da a entender por que a documentação recolhida pelo referido comitê tinha tantos
problemas em seus aspectos legais. Além, a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro tinha mais um grave problema em termos políticos para enfrentar:
Esta não foi uma instituição muito importante, sendo formada por ju-
deus bálticos, residentes em Londres, que por legítimo interesse, de-
sejaram demonstrar tanto às autoridades britânicas quanto aos judeus
e ao povo em geral a urgência de descobrir e processar os criminosos
de guerra que cometeram assassinatos em massa no Gueto de Riga. O
Comitê encerrou o seu funcionamento no fim do ano de 1949 e a
nossa seção britânica concordou em colher os autos e continuar com
a atuação do Comitê. Formamos um subcomitê com a finalidade de
demonstrar a continuação da atividade do primitivo Comitê. De acor-
do com as informações recebidas, o Comitê tinha, de fato, conexões
com as autoridades britânicas, particularmente com a Turma de In-
vestigações sobre Crimes de Guerra, que atuou na Alemanha. O Co-
mitê colheu evidências e submeteu-as às autoridades britânicas. En-
tretanto, desde então, muito tempo se passou e as autoridades britâni-
cas deixaram de ter interesse ativo em tais assuntos como o Gueto de
Riga e, de fato, será muito difícil obter uma declaração que implica-
ria no reconhecimento dos serviços prestados pelo extinto Comitê,
particularmente quando uma tal declaração é requerida para o uso por
um governo estrangeiro. Entretanto, temos abordado o assunto junto
ao Foreign Office e estamos nos esforçando para obter a tal declara-
ção e para preparar o terreno, caso o inquérito avisado por vossa ex-
celência seja feito pelas autoridades brasileiras.120
As notícias ruins trazidas por Brassloff não se resumiam ao status “não muito im-
portante” do comitê. Brassloff procurou explicar aos seus interlocutores no Brasil que
o pedido da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro para que se buscas-
se uma declaração de alguma autoridade britânica oficial reconhecendo o extinto co-
mitê não se adequava ao modus operandi das organizações europeias:
Quanto à vossa sugestão, segundo a qual uma tal declaração deve ser
emitida pelas Nações Unidas, ou pela Comissão de Crimes de Guer-
ra, junto às Nações Unidas, ou por outra Comissão de Crimes de
Guerra, junto às Nações Unidas, ou por qualquer outra autoridade in-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.104.
209
CAPÍTULO 3
!
ternacional, que poderá ser usada como espécie de credencial para o
Comitê ou o CMJ, esta não corresponde à linha de conduta adotada
por tais organizações, e, além disso, a Comissão de Crimes de Guer-
ra, junto às Nações Unidas, encerrou a sua atividade há certo tempo.
Não obstante, estamos prontos para fazer uma declaração na qual po-
deremos certificar: a) que o CMJ é uma organização internacional
com status consultivo no Conselho Econômico e Social junto às Na-
ções Unidas; b) que a seção britânica do CMJ tomou em seu poder a
documentação do Comitê de Investigações sobre Crimes de Guerra
nos Países Bálticos [sic], que estabeleceu um subcomitê; c) que as in-
formações sobre os criminosos de guerra bálticos apresentadas pelo
Comitê foram aceitas de boa-fé. Por favor, informe-nos com urgência
se tal declaração será aceitável, e tomaremos as providências para a
sua redação e a subsequente assinatura, bem como o reconhecimento
das firmas pelo Consulado Geral do Brasil.121
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
121
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.104-105.
122
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.100.
210
CAPÍTULO 3
!
“Seja como for agora é tarde para retroceder”. A frase exprimia a enorme frustra-
ção com que Constantino e Zeigarnikas tinham recebido as notícias de Brassloff. Mas
como realmente não era possível voltar atrás na estratégia, os dois dirigentes da Fede-
ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro pediram a Brassloff que este prepa-
rasse uma nova declaração. Esta declaração precisava informar que:
Em oito de março de 1952, a Secretaria de Estado das Relações Exteriores foi atua-
lizada pela Embaixada Brasileira em Londres a respeito das investigações feitas pelo
Foreign Office. Os ingleses informaram que o Comitê de Investigações dos Crimes
Nazistas nos Países Bálticos realmente funcionou na capital inglesa, mas somente a
“título oficioso” e que este Comitê não dispunha de dados sobre Herberts Cukurs. Os
funcionários do Foreign Office, entretanto, informaram que pediram maiores detalhes
sobre Cukurs às autoridades britânicas de ocupação na Alemanha, os quais seriam en-
viados à Embaixada Brasileira tão logo fosse possível.125 No dia 31 de maio, o Itama-
raty repassou os resultados completos ao MJNI:
211
CAPÍTULO 3
!
(OIR), não prestou ela qualquer assistência a Herberts Cukurs, pelo
fato de datar a sua existência de fevereiro de 1947, onze meses, por-
tanto, após a entrada do referido alienígena no Brasil; O Ministério
da Justiça e do Interior da França, por sua vez, comunicou que nada
consta, nas diversas repartições a ele subordinadas, a respeito de Cu-
kurs. Nessas condições, resultaram, infelizmente, infrutíferas as dili-
gências solicitadas por esse Ministério.126
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
126
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.170.
127
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.171.
212
CAPÍTULO 3
!
Brassloff bastante irritado pelo silêncio na comunicação: “Nós estamos altamente sur-
presos pela falta de notícias desde o dia 8 de abril, quando vocês nos advertiram que
estariam enviando a declaração solicitada dentro de alguns dias.”128 Constantino sub-
linhou que desde então já tinham se passado três meses e ele não tinha recebido ne-
nhum documento e nem ouvido nada sobre a questão. “Nós estamos desconcertados
quanto ao que devemos fazer”.129 O advogado completou a reclamação:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
128
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “We are highly surprised to be without you news since April 8, when you advertised us the for-
warding of the requested statement, within the next few days”.]
129
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “Passed 3 months, we whether received the mentioned document, nor we heard about the matter,
so we are completely discomposed about what we have to do”.]
130
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “We suppose you are aware in what disastrous position we should be, if we could not furnish this
statement within the next few days. Our credibility with our authorities would be broken off and we
never more can interfere in whatever similar case”.]
131
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.f.283.
213
CAPÍTULO 3
!
Office, em Bonn, na Alemanha, justificou o atraso dizendo que fora necessário recor-
rer às autoridades alemãs. E Hancock não trazia informações tão relevantes assim. Ele
informou que após “longas investigações” a única coisa que haviam encontrado era
um depoimento juramentado contra um tal de “Zuckurs”, o qual pressupunham ser
Cukurs – muito provavelmente uma cópia de um dos depoimentos que já estavam
com governo brasileiro. De todo modo, não era o documento oficial que as autorida-
des brasileiras estavam esperando encontrar. Hancock também voltou a mencionar
que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos não fora um
corpo oficial e “nem teve ele qualquer ligação especial com qualquer autoridade do
governo britânico”. Além disso, respondendo se um comandante de gueto, como se
supunha ter sido Cukurs, seria a priori um criminoso de guerra, Hancock respondeu:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Confidencial - 918438 Embaixada Brasileira em Lon-
dres. 278/7/(70d)(42)(01)/1952/Anexo. Foreign Office, S.S.1. 29th July, 1952. Confidencial.
C1661/262. [Original: “The short answer to the question whether ghetto commandants were, by reason
of their occupation, considered to be war criminals is that they were note. But the Nuremberg Tribunal
did declare certain organizations to be ‘criminal’. The organizations so condemned were the SS, the
Gestapo and the SD and the Leadership corps of the Nazi party, but the Tribunal’s decision referred not
to these organizations in their entirety but only to certain of the elements comprising them. The exact
position is set forth in the Judgment of International Military Tribunal which was published by Her
Majesty’s Stationery Office as a Command paper in 1946 (Cmd.6964). A member of a criminal organi-
zation was not ipso facto a criminal. He might, however, be tried for the offence of being a member of
a criminal organization with knowledge of its criminal aims and activities. Even if were convicted, it
would be giving an extended meaning of the expression ‘war criminal’ to describe him as such. We
214
CAPÍTULO 3
!
No dia dois de setembro de 1952, Anor Butler Maciel elaborou um novo parecer.
Tendo em vista todas as repostas repassadas pelo Foreign Office ao Itamaraty, parti-
cularmente aquela em que se informava nada constar sobre Cukurs no Comitê de In-
vestigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, o consultor jurídico do Ministé-
rio da Justiça determinou que os depoimentos contra Cukurs fossem enviados ao Mi-
nistério das Relações Exteriores para que este pudesse apurar se os mesmos eram fal-
sos ou se houvera equívoco na informação do governo britânico.134 Chegamos aqui a
um momento bastante importante do Caso Cukurs e, consequentemente, desta tese.
Naquele momento, Maciel poderia ter indicado o arquivamento do pedido de expulsão
e até mesmo recomendado o prosseguimento da naturalização de Cukurs. Essa seria a
oportunidade que esperava um “governo protetor de criminosos nazistas” ou ainda
um funcionário do governo orientado por seu senso antissemita. O Foreign Office,
afinal de contas, uma fonte oficial, tinha desautorizado ainda mais as informações da
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, a ponto de colocar em suspeita
a autenticidade dos depoimentos apresentados por esta entidade ao governo brasileiro.
Ao invés disso, no entanto, Maciel dá sequência às investigações. Ele chega até mes-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
have not been able to confirm whether Cukurs did, in fact, belong to any of these ‘criminal’ organiza-
tions but it is not unlikely that anybody holding a position of authority in a ghetto would have held
some rank in the SS or one of the other criminal organization.”]
133
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Confidencial - 918438 Embaixada Brasileira em Lon-
dres. 278/7/(70d)(42)(01)/1952/Anexo. Foreign Office, S.S.1. 29th July, 1952. Confidencial.
C1661/262.
134
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.173.
215
CAPÍTULO 3
!
Isso não quer dizer, por outro lado, que a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro tenha saído sem nenhum tipo de prejuízo frente às informações forne-
cidas pelo Foreign Office. Um dos aspectos mais curiosos deste segundo parecer de
Maciel diz respeito à última providência solicitada por ele, bem no final do documen-
to: “que se apure a situação da Federação das Sociedades Israelitas de vez que a lei
sobre a sociedade de estrangeiros apenas prevê associação de pessoas físicas.”135 Uma
análise que levasse em consideração apenas o passado integralista de Maciel, poderia
rapidamente taxar esse pedido como uma atitude antissemita. Ou ainda: como de-
monstração de que o governo brasileiro protegia deliberadamente o perpetrador, Cu-
kurs, ao passo que perseguia a vítima, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro, colocando-a como suspeita e desonesta. Porém, isso não está evidente de
forma alguma no parecer quando se conhece o contexto do caso. Há, claro, a possibi-
lidade de que Maciel tenha feito isso com base em algum sentimento antissemita. Po-
rém, tendo em vista todas as idas e vindas do Caso Cukurs, todos os ruídos produzi-
dos durante a investigação, era muito provável que tal solicitação não passasse de um
reflexo da irritação de Maciel a respeito da federação. A julgar apenas pelo que os in-
gleses tinham afirmado, a entidade poderia ter usado material falso para abrir um pro-
cesso de expulsão contra Cukurs. Fosse confirmado que os documentos não eram ver-
dadeiros, a federação teria consumido, despropositadamente, recursos do Estado, ge-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
135
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.173.
216
CAPÍTULO 3
!
rado grande polêmica pública e envolvido governos estrangeiros. E vale dizer: bus-
quei saber se a entidade foi investigada após o parecer: nada encontrei.
217
CAPÍTULO 3
!
Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, tendo tantas
evidências contra Cukurs, deveria ter denunciado ele às autoridades
oficiais e nós deveríamos saber a razão porque o mencionado Comitê
não procedeu desta forma. Por favor, façam a gentileza de nos infor-
mar uma explicação sobre isso assim que possível para que nós a
possamos transmitir ao Consultor Jurídico.138
Desta forma, 1952 chegava ao fim: enquanto a Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro aguardava mais esses esclarecimentos do escritório londrino do
Congresso Judaico Mundial, o Ministério da Justiça aguardava a abordagem do Mi-
nistério das Relações Exteriores junto ao governo britânico.140 O caso, assim, estava
ainda totalmente aberto. Porém, a posição que as autoridades britânicas assumiriam
dali a pouco tempo em nada ajudaria as tentativas de expulsar Cukurs do país.
O primeiro semestre de 1953 transcorreu sem que o Foreign Office desse qualquer
retorno à Embaixada Brasileira em Londres. Nesse tempo, a comunicação entre a Fe-
deração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e o Congresso Judaico Mundial
também parece ter sido interrompida. Nos documentos aqui analisados, não consegui
encontrar a resposta que Brassloff prometera a Constantino no final de 1952. Nesse
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
138
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.107-108.
[Original: “(…) The jurisconsult, obviously not very well intended toward Jews, asked us - and we
confess that the question was quite natural – for what reason the former ‘Committee for Investigations
of Nazi Crimes in Baltic Countries” did not denounce or suite him to the official United Nations War
Crime Commission. Even when Cukurs escaped to Brazil, he should be included in the list of war crim-
inals, as a murder of ten thousands Jews, as many others were included in this list, being out of reach of
the War Crime Court. The Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries, having so
copious evidences against Cukurs should have denounced him to the official authority and we should
like to know the reason why the mentioned committee did not handle the case in this way. Please, be
kind enough to let us have, as soon as possible, your explanation concerning this matter, in order to
transmit your information to the jurisconsult.”]
139
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.282.
140
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.182.
218
CAPÍTULO 3
!
A reforma ministerial realizada por Vargas em 1953 talvez explique o fato do go-
verno brasileiro ter levado tanto tempo sem cobrar suas respostas ao Foreign Office.
O Ministério das Relações Exteriores foi um dos ministérios mais afetados. João Ne-
ves da Fontoura, à frente da pasta desde 31 de janeiro de 1951, deu lugar a Mário de
Pimentel Brandão (interino), em 3 de julho de 1953, e este, por sua vez, deu lugar a
Vicente Rao, em 19 de julho de 1953. No Ministério da Justiça, Francisco Negrão de
Lima deixou o cargo em 26 de julho de 1953 e Tancredo Neves assumiu seu lugar.
Somente no dia quatro de agosto de 1953 vamos observar uma retomada nas inves-
tigações. Nesta data, o recém-empossado Ministro da Justiça, Tancredo Neves, enca-
minhou um ofício ao também recém-empossado Vicente Rao, do Itamaraty, lembran-
do de verificar junto ao Foreign Office as informações solicitadas por Anor Butler
Maciel.141 No dia 22 de agosto de 1953, o Ministério da Justiça foi informado de que
já tinham sido transmitidas à Embaixada do Brasil em Londres os depoimentos contra
Cukurs, estando ainda o Itamaraty aguardando o retorno do Foreign Office.142 O en-
carregado disso em Londres era o embaixador Samuel de Souza Leão Gracie. No dia
30 de setembro, Gracie entregou um memorando confidencial ao Foreign Office pe-
dindo novamente ajuda no Caso Cukurs. O embaixador brasileiro desejava saber se os
documentos do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, en-
tão encaminhados àquele órgão, eram mesmo autênticos. “Ficasse provada a exatidão
deles”, sublinhou Gracie, “lançaria nova luz sobre o caso de Herberts Cukurs”.143
219
CAPÍTULO 3
!
fice, que tinha municiado a Embaixada Brasileira em Londres da primeira vez em que
esta pediu auxílio, concordou com Evans. Porém, ele ainda tentou acionar M.F.P.
Herchenroder, do Office of Legal Advisers U.K. High Commission in Germany, em
Bonn:
Nós ficaríamos (...) muito gratos por qualquer informação nova que
você pudesse obter a fim de nos habilitar a responder aos brasileiros.
Nós ficaríamos gratos por uma resposta rápida, haja vista que da úl-
tima vez que eles entraram em contato conosco sobre esse assunto
nós o fizemos esperar por um longo tempo.145
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 20/10.1963. [Original: “We should l
however, be very grateful for any further information you can obtain which would enable us to reply to
the Brazilians. We should be grateful for an early reply, as the last time they approached us on this sub-
ject we had to keep them waiting rather a long while.”]
146
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 29/10/1953. [Original: “It would be
difficult and very likely impossible for us here to verify whether the statements attributed to the five
witnesses (Fizskin, Shapiro, Tukacier, Gerstein and Schub) were made. We should have to trace and
examine either the witnesses themselves or the member of the various Jewish organizations before
whom the statements are alleged to have been made. Even if this could be done, we could express no
opinion about the truth of the statements (but the Brazilian Embassy may not have this in mind). The
statements are said to have been made, some as far back as 1948 and 1949, one in Wasseralfingen, two
in Munich, one in Canada and one in the USA. It is not clear why the Brazilian Embassy has not ap-
proached Mr. H. Michelson himself. He might know where the witnesses are at present. I very much
220
CAPÍTULO 3
!
Embora dura, a mensagem de Herchenroder tinha algum sentido. Por um lado, se-
ria bastante difícil para Foreign Office encontrar todas as testemunhas ou mesmo aci-
onar cada instituição responsável pela tomada dos depoimentos. E mesmo que isso
pudesse ser feito, como aquele órgão diria que o teor das acusações correspondia à
verdade? Por outro lado, era perfeitamente possível a ele confirmar que o Comitê de
Investigações de Crimes Nazistas nos Países Bálticos, embora não tendo sido um ór-
gão oficial, atuou de modo oficioso junto ao governo britânico, auxiliando nas inves-
tigações sobre crimes de guerra. Essa informação poderia ter sido facilmente confir-
mada após uma consulta do Foreign Office aos arquivos de suas equipes de investiga-
ções de crimes de guerra. Vale a pena ressaltar ainda que o Congresso Judaico Mun-
dial aparentemente não sensibilizou o Foreign Office para o contato das autoridades
brasileiras, como tinha sido solicitado por Constantino, ou não conseguiu a atenção
necessária para o caso em sua tentativa de sensibilização. Por fim, tivesse o Foreign
Office determinado a abordar os alemães novamente, mas desta vez com os depoi-
mentos enviados pela Embaixada Brasileira em Londres, fatalmente seriam informa-
dos de que o material era legítimo, ainda que proveniente de fonte oficiosa. Isso não
aconteceu.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
doubt whether another approach to the German authorities would be wise or useful in view of the an-
swer they gave us in 1952.”] Obs. O estranhamento dos ingleses do Foreign Office é compreensível. A
Embaixada Brasileira em Londres não entrou em contato com Michelson porque eles sequer sabiam de
sua existência. A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro não envolveu o seu nome dire-
tamente nas conversas com o governo brasileiro. Além disso, as autoridades brasileiras estavam inte-
ressadas em uma confirmação que procedesse de fontes oficiais.
147
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 13/11/1953. [Original: “I think the
Brazilians are barking up the wrong tree over this. Cukurs has never been charged with war crimes and
at this stage we cannot possible rake among the ashes to see whether he ought to have been.”]
221
CAPÍTULO 3
!
Eu não estou nem um pouco contente com isso. O fato é que nós não
estamos preparados para tratar deste assunto e nós não deveríamos
dar aos brasileiros a impressão de que nós estamos preparados. (...)
Eu estou inclinado a pensar que a coisa certa seria não fazer nada e
esperar que os brasileiros esqueçam deste caso. Imagino que eles não
estejam familiarizados com tais táticas. Se no futuro os brasileiros
nos lembrarem, então sugiro dizer que isso seria muito difícil e pro-
vavelmente impossível verificar se os depoimentos são verdadeiros e
que nós lamentamos não poder ajudar de outra forma. (...) Nós ape-
nas nos exporíamos se atendêssemos a um novo pedido dos brasilei-
ros, o que é algo que precisamente nós não queremos fazer.148
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 03/12/1953. [Original: “I am not
quite happy about this. The fact is that we are not prepared to pursue this business and we ought not to
give the Brazilians the impression that we are so prepared. (…) I am inclined to think that the right
thing would be to do nothing at all and to hope that the Brazilians will forget about the affaire. I expect
the Brazilians are not unacquainted with such tactics. If at a later date the Brazilians remind us, then I
suggest that we might say that it would be very difficult ad probably impossible to verify the statements
and that we regret therefore that we cannot take the matter any further. (…) We shall only expose our-
selves to a further request from the Brazilians to pursue the matter, which is precisely what we do not
want to do”.]
149
WALTERS, Guy. Hunting Evil: The Nazi War Criminals who escaped and the Quest to Bring Them
to Justice. New York: Broadway Books, 2010, p.321, p.412. [Original: ““Never was British official-
dom’s complete lack of will to see men like Cukurs brought to justice so cynically crystallized. Had
Evans checked, he would have seen that Cukurs could not have been charged, as he had never been in
custody. Furthermore, the matter of confirming the perusal of the files of the War Crimes Group,
which, as we have seen, contained numerous pages of testimony made against Cukurs and his boss
Arajs”.]
222
CAPÍTULO 3
!
Este é um ponto, por sinal, bastante importante aqui. O governo brasileiro, mesmo
com Cukurs fora dos holofotes da mídia e com a desmobilização de vários setores ju-
daicos, não somente tinha continuado suas investigações, como vinha insistindo junto
ao Foreign Office na busca por respostas. O governo britânico, por sua vez, delibera-
damente, decidiu ignorar os pedidos brasileiros. Hancock sequer explicou ao embai-
xador Souza Gracie que nada mais seria feito a respeito. Simplesmente orientou seus
funcionários para que nenhuma reposta fosse dada, esperando que as autoridades bra-
sileiras acabassem se esquecendo do assunto, o que era extremamente condenável não
só do ponto de vista diplomático, mas também do ponto de vista ético.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
150
JUDT, Tony, Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.
76.
223
CAPÍTULO 3
!
A responsabilidade pelo processo de minúcia e de checagem de segu-
rança era fragmentada e sem efetividade. (...) A fiscalização era tão
fraca que, na realidade, ela era útil apenas por questões de relações
públicas, permitindo ao governo rebater as críticas da URSS de que a
Grã-Bretanha aceitava criminosos de guerra como trabalhadores. Em
comunicações internas, diplomatas e oficiais admitiam livremente
que as fiscalizações eram pouco mais do que um processo cosméti-
co.151
De certa forma, o governo brasileiro conhecia bem essa face do governo britânico.
Em fevereiro de 1954, o Embaixador Brasileiro em Londres enviou uma carta-
telegrama à Secretaria de Estado das Relações Exteriores do Brasil onde fazia comen-
tários sobre um artigo publicado no Sunday Times. Esse artigo, criticava a morosidade
do Foreign Office para resolver assuntos diplomáticos britânicos no cenário internaci-
onal, dando como exemplo a longa duração da Conferência de Berlim. O texto termi-
nava afirmando “que na esfera das relações internacionais a política do wait and see
tem consequências fatais”. Gracie nunca soube que o Foreign Office decidiu ignorar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
151
CESARANI, David. Justice delayed. Vintage, 1992, p.4. [Original: “Responsibility for the process
of scrutiny and security checks was fragmented and ineffectual. (…) Screening was so weak that, in
reality it was useful only for public relations purposes, to allow the Government to rebut claims by the
USSR that Britain was accepting war criminals as workers. In private communications diplomats and
officials freely admitted that ‘screenings’ were little more than a cosmetic process”.]
152
BLOXHAM, Donald. British War crimes trial policy in Germany, 1945–1957: implementation and
collapse. The Journal of British Studies, v. 42, n. 01, p. 91-118, 2003. p.114. [Original: “The war crim-
inals issue had become one of the most highly charged diplomatic issues, particularly the matter of the
incarcerated military leaders, who were held up as symbolic of Germany’s degradation at the hands of
others.”]
224
CAPÍTULO 3
!
“solenemente” os seus pedidos de informação sobre Cukurs. Mas ele fora vítima jus-
tamente do wait and see sobre o qual tinha acabado de ler e comentar. 153
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Embaixada Brasileira em Londres. 900.1(60),
949(00), 920. “As decisões lentas do Foreign Office”, de Samuel de Souza-Leão Gracie. 08/02/1954.
154
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.188.
155
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.252.
225
CAPÍTULO 3
!
Em janeiro de 1955, Edmar Morel voltou ao caso em sua coluna “Cidade Alerta”,
publicada semanalmente no Última Hora. Nesta ocasião, Morel recorreu a uma ima-
gem que já tinha sido acionada cinco anos antes no noticiário sobre Cukurs: “O Rio é
o paraíso dos grandes criminosos políticos que fugiram à Justiça”. Para ilustrar essa
imagem, Morel apresentava o caso de um torturador de presos bolivianos, outro en-
volvendo espiões e, finalmente, os criminosos nazistas, citando como exemplo os no-
mes de Herberts Cukurs e do Conde de Bernonville, além de outros tantos nazistas e
colaboracionistas. Recorrendo a um chavão já usado em outra ocasião, Morel afir-
mou: “O Brasil é, sem dúvida, o paraíso dos grandes criminosos. Aqui estão felizes e
tranquilos, facínoras que serviram às ordens de Hitler e de Laval. (...) Toda esta corja
está impune”.156 A matéria de Morel, porém, foi a única naquele período.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Última Hora, “O Rio é o paraíso dos grandes criminosos políticos...”, 27/01/1955, p.9.
157
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.
226
CAPÍTULO 3
!
bos bastante mexidos por ele em função de suas ações no caso, enquanto que Garten-
berg se recordava de três, que continham documentos em várias línguas. 158
O relatório final da Comissão afirmou que os documentos originais devem ter sido
“extraviados” ou “arquivados erradamente”. Dos três membros da Comissão, dois
aprovaram o relatório. Um dos membros, no entanto, discordou, afirmando que “mãos
criminosas tinham subtraído o processo”, embora não tenha indicado quem ou por que
teriam feito isso. Em desacordo, a comissão inteira se demitiu. A Federação das Soci-
edades Israelitas do Rio de Janeiro, no final das contas, em virtude das dificuldades e
principalmente das animosidades encontradas, sugeriu que fosse dada prioridade ape-
nas para a restauração do processo.159 Não se conhece o fim que levou o processo de
restauração – ou dos arquivos iniciais. Porém, o conjunto documental que se encontra
hoje no Yad Vashem, o qual tem sido aqui utilizado amplamente, é bastante vasto,
possuindo centenas de folhas. Além das cópias das várias cartas enviadas pela federa-
ção carioca ao Congresso Judaico Mundial, há os depoimentos originais de Mirian
Kaicners e Justina Grinberg, entre outros. Há ainda vários outros documentos, muitos
dos quais também originais, que permitem traçar linearmente o contato da federação
com o governo brasileiro e com o Congresso Judaico Mundial. Em alguns casos, há
duas versões, cópias e originais. Neste sentido, é possível supor que, no mínimo, parte
do processo original de Cukurs acabou sendo encontrado em algum momento posteri-
or a 1955. O mais importante deste episódio, contudo, é que demonstra que dentro da
federação, o foco do trabalho, ainda que temporariamente, deixou de estar nas ações
contra Cukurs – e que, ao se voltar à atenção para o caso, houve a necessidade de se
realizar investigações e restauração do material –, o que acabou colaborando ainda
mais para que não se avançasse no sentido de expulsar Cukurs do Brasil. De qualquer
forma, a entidade tinha feito o possível no caso antes desse hiato. Se os resultados não
tinham sido plenamente alcançados, isso se devia muito mais à fragilidade do material
que lhe foi passado.
A situação de Cukurs voltava, aos poucos, à normalidade dos tempos dos pedali-
nhos. Ainda em 1955, Cukurs deu um passo decisivo para assegurar sua permanência
no Brasil. No dia 11 de julho, ele teve o seu quarto filho, Richards, o mesmo que anos
mais tarde manteria o blog A Águia do Báltico. De acordo com o Art.143 da Consti-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
158
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.
159
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.
227
CAPÍTULO 3
!
tuição Federal, o estrangeiro não poderia ser expulso do país em caso de ter filho bra-
sileiro. Cukurs tinha 55 anos e sua esposa, 46. Fosse uma estratégia ou não de Cukurs,
sua expulsão era agora, ao menos tecnicamente, inviável. 160
228
CAPÍTULO 3
!
de Herberts Cukurs, foi redigido na data de oito de novembro de 1956. Tendo em vis-
ta que o Foreign Office não tinha atestado a veracidade dos documentos e se eximia
de efetuar outras investigações sobre o caso, Maciel optou pelo arquivamento.166
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.214-216.
167
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I. [Ori-
ginal: “Member of Latvian Nazi organization, belonged to execution command Sondergruppe-A and
was active in Killing Jewish people. Captain in Latvian army”.]
229
CAPÍTULO 3
!
mais fontes. Os dados não necessariamente eram confirmados, podendo ser rumores.
Essa informação durante muitos anos foi a única daquele governo sobre Cukurs.168
Em setembro de 1955, Cukurs, mesmo não tendo direito a passaporte, pelo fato de
não ser brasileiro, solicitou visto para entrar nos Estados Unidos. A Divisão de Segu-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
168
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I.
169
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I. [Ori-
ginal: “Mr.Visson said he thought this would make an interesting story. Although he did not so state, I
got the impression that the motive of the story would be to expose the escape from justice of an alleged
war criminal.]”
170
Vale sublinhar que não encontrei nesta resposta a resposta dos Estados Unidos ao Brasil. Encontrei
apenas um resumo desta resposta enviado pelo MRE ao MJNI.
230
CAPÍTULO 3
!
rança do Departamento de Estado pediu, então, à CIA para verificar informações so-
bre ele. Nesta época, o órgão de inteligência americano já tinha reunido mais infor-
mações sobre Cukurs. Um memorando agora informava sua filiação, data e local de
nascimento, família, além de sua participação na Guerra de Independência da Letônia,
seus feitos na aviação e patente. O memorando também dizia que durante a ocupação
nazista da Letônia Cukurs colaborou com a SD, no Comando Arajs. “Acredita-se que
ele tenha participado na perseguição aos judeus”, dizia tal documento, que ainda des-
tacava as seguintes informações, quase todas inéditas até aqui:
231
CAPÍTULO 3
!
um toque de aventureiro, e bom homem de negócios com pouco es-
crúpulos.171
O dossiê sobre Cukurs elaborado pela inteligência americana continha ainda recor-
tes de jornal, americanos e não americanos, além de documentos que repetiam infor-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
National Archives (NARA). Herberts Cukurs Doc.1 Secret. RG 263, Box 10, Folder I. [Original:
After the war, fled to Sweden and eventually settled down in Brazil, presumably São Paulo. During the
time when the bulk of the former Latvian Legion was in the POW Camp Zedelghem, Belgium (under
the British Administration), the British intelligence looked for H.C. and detained a second lieutenant
fnu Cukurs. They later was able to prove that he is not identic with H.C. by showing the picture of
H.C. in the book “My flight to Gambia”’; also the a/m Capt. BLAUS was able to state that H.C. is in
Sweden because there appeared an add in the Latvian newspaper in Sweden, inviting a woman and two
kids to join father in Sweden and though only the Christian names were mentioned in the ad. Blaus
identified the woman and kids as the wife and children of H.C. (…) Due to this investigation it was
indicated that H.C. was sought because of his activities under the German occupation (his superior,
Major Arajs, was arrested in the a/m POW camp where he had hidden himself under a false name
ABELE). Later it became known that H.C. is in Brazil where he operates a boats-for-rent station at a
lake; he had difficulties because the local Jewish population tried to achieve his expulsion from Brazil
and even destroyed his enterprise; H.C. wrote a letter to the Latvian Veteran’s Organization “Daugavas
Vanagi” in Germany ab. 1950 asking for assistance in his struggle against the Brazilian Jew, viz. he
wanted a letter of recommendation showing that he has not committed any atrocities during the Ger-
man occupation; such a certificate was refused. Recently there was an article in a Latvian newspaper
describing Cukurs’ present life in Brazil, so it seems he has overcome the opposition against him and
probably is running his enterprise in same place. He can be described as a very venturesome person
with a touch of adventurer and good businessman with little scruples”.]
172
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005.
232
CAPÍTULO 3
!
mações no sentido de sistematizá-las para outros órgãos daquele governo.173 Boa parte
das informações vinham de fonte anônimas e de um informante no Brasil cujo nome
foi protegido. Pouca coisa foi repassada ao Brasil, apenas as informações daquele co-
municado à Embaixada Brasileira em 1951 – que mesmo assim, eram equivocadas. Se
essas informações mudariam o posicionamento das autoridades brasileiras no caso,
porém, nunca saberemos.
Em 1957, o ambiente era muito favorável a Cukurs. A imprensa em geral tinha es-
quecido dele. As instituições judaicas não tinham feito mais qualquer tipo de pressão
e o governo brasileiro não tinha seguido adiante com o processo de expulsão. Além
disso, Cukurs era pai e também avô de brasileiros, gozando, assim, do direito de per-
manência no país. No entanto, a extradição ainda era uma opção. Improvável, mas
uma opção. A única forma de inviabilizá-la seria se ele se tornasse brasileiro, uma vez
que um Estado não pode extraditar seus cidadãos. Tendo ou não em mente tal estraté-
gia, Cukurs entrou com um pedido de revalidação do processo de naturalização no dia
17 de março de 1957. Nessa época, ele vivia com a família em Santos, litoral de São
Paulo.174
Tal como em 1949, quando deu entrada pela primeira vez em seu pedido de natura-
lização brasileira, Cukurs juntou vários documentos. Antecipando que as acusações de
crimes de guerra pudessem atrapalhar de novo seu processo, anexou ao pedido de na-
turalização o recorte da seção de perguntas dos leitores da revista O Cruzeiro, de 13
de fevereiro de 1954. O leitor Carlos Lúcio, de Aracaju, escrevera ao veículo pergun-
tando o que tinha acontecido com Cukurs, personagem da revista em 1950. “Ficou
provado ser ele nazista, criminoso de guerra, consoante à acusação que lhe fizeram?”
A revista respondeu Lúcio de maneira amplamente favorável à imagem de Cukurs:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
173
Há apenas uma nova informação: “In march 1945, one Captain Cukurs of Latvian Army was report-
ed to have been a member of the Latvian Nazi organization Perkonkrust. National Archives (NARA).
RG 263, Box 10, Folder I.
174
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.220.
233
CAPÍTULO 3
!
e ainda depois, quando os alemães iniciaram a grande ofensiva. As
acusações contra ele, que entrara no Brasil legalmente, com o seu
nome verdadeiro, partiram do Comitê de Investigações dos Crimes
Nazistas nos Países Bálticos, sediado em Moscou [NE. SIC], através
da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, não se sa-
bendo se tais acusações tinham base ou se eram pretexto para desmo-
ralizar e prender um dos chefes da resistência letã contra os comunis-
tas russos, que ainda dominam aquele pequeno país. Atualmente,
apesar das perseguições dos judeus daqui, continua ele no Brasil,
com permanência legalizada e exercendo atividades profissionais de
maneira digna e útil à sociedade.175
Em sete de julho de 1957, até o Última Hora, que pertencia, ironicamente, ao ju-
deu Samuel Wainer, chegou a publicar um elogio a Cukurs. A matéria – também ane-
xada ao seu pedido de revalidação da naturalização – ocupava quase uma página intei-
ra do jornal e tinha o seguinte título: “Um letão (refugiado) foi o pioneiro da urbani-
zação da Lagoa Rodrigo de Freitas”. A matéria falava sobre o abandono da Lagoa
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.227.
176
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.252-254.
177
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.273.
234
CAPÍTULO 3
!
Rodrigo de Freitas após o “enorme esforço” de revitalização feito por Cukurs no final
dos anos 1940. Ele, segundo a matéria, tinha sido “expulso do fabuloso recanto cario-
ca depois de uma “campanha política”. O saldo só não foi melhor para Cukurs porque,
Edmar Morel, também do Última Hora, furioso com a matéria, publicou um esclare-
cimento bastante direto aos leitores do jornal: “O criminoso N.17 de Nuremberg não é
amigo do Brasil”. Segundo Morel, o UH fora “vítima de lamentável descuido elogi-
ando Herberts Cukurs, o assassino de 40.000 judeus, em Riga”.178
Imagem&47:&Coluna!de!Edmar!Morel!no!Última!Hora.!Fonte:!Última!Hora,!17/07/1957,!p.9.
Nessa mesma época, Milda e Antinea também deram entrada em seus respectivos
pedidos de naturalização. Como se tratavam de três pedidos da mesma família, dentro
de um mesmo processo, alguns documentos sempre ficavam pendentes e isso acabava
fazendo com que o trâmite demorasse mais tempo. Mas, aos poucos, Cukurs ia cum-
prindo todos os requisitos. Ao que tudo indicava, em breve se tornaria brasileiro.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
Última Hora, “O criminosos N.17 de Nuremberg não é amigo do Brasil”, 17/07/1957, p.9.
235
CAPÍTULO 4
!
CAPÍTULO
4 O governo brasileiro e o Caso Cukurs:
Retomada e desfecho (1960-1965)
236
CAPÍTULO 4
!
Imagem&48.&A!imprensa!brasileira!noticia!a!captura!de!Eichmann.!Fonte:!O!Globo,!04/06/1960,!pg.!12.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
REIN, Raanan. Argentina, Israel y Los Judíos: de la partición de Palestina al caso Eichmann (1947-
1962). Buenos Aires: Lumiere, 2007, pp.205-209.
237
CAPÍTULO 4
!
win Schule, tinha enfrentado várias dificuldades até aquele momento, tanto pela falta
de cooperação de testemunhas alemãs quanto pela “pouca disposição” das cortes de
justiça locais em abrir processos contra seus cidadãos.3 O Caso Eichmann mudou esse
panorama, principalmente após a realização do seu julgamento, transmitido de Jerusa-
lém para uma audiência global. Arendt explica em detalhes esse fenômeno:
238
CAPÍTULO 4
!
dispostos a iniciar uma nova jornada. Para esses, com mobilidade limitada, a localiza-
ção e captura por agentes secretos israelenses seria muito mais simples e rápida.
239
CAPÍTULO 4
!
1960, seu então presidente, o advogado gaúcho Aarão Steinbruch, enviou um tele-
grama ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, informando que o autor do processo
de naturalização 27.996/1950 era o “famigerado criminoso de guerra” Herberts Cu-
kurs, “cujo pedido anterior fora denegado pelo ex-Ministro Francisco Negrão de Lima
tendo em vista a documentação apresentada provando atos de genocídio praticados
pelo mesmo”.9 Steinbruch era um nome de peso e isso poderia ajudar no caso: além
de presidente da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, ele também
era deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e gozava de elevada
estima no meio político. Sua luta no campo do trabalhismo, por exemplo, tinha sido
particularmente importante na criação da lei que instituiu o décimo-terceiro salário.10
Imagem&49.&&Naturalização!de!Cukurs!volta!ao!noticiário!brasileiro.!Fonte:!Diário!da!Noite.!21/06/1960.!p.5
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597. DEP.712. fls.326-327.
10
Perfil de Aarão Steinbruch no site da Câmara dos Deputados: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso
em: 02/02/2015.
240
CAPÍTULO 4
!
ado no caso nos anos 1950, anunciou publicamente seu apelo ao Ministro da Justiça,
Armando Falcão, para que este não concedesse a cidadania brasileira a Cukurs. Breno
da Silveira disse, inclusive, que Falcão lhe teria confidenciado que não deferiria o pe-
dido de Cukurs. O deputado petebista comentou a propósito da suposta promessa:
É esperança nossa que isto seja realidade, para que não se perpetre
crimes contra a nacionalidade, permitindo que um homem marcado
por suas atividades antijudaicas, com os crimes mais hediondos – ele
é talvez o genocida mais contundente no que diz respeito aos atos
praticados quando nos seus postos de comando no regime nazista na
Alemanha – adquira cidadania brasileira.11
Pouco a pouco, o caso foi retornando à esfera pública. Nos jornais, as notícias so-
bre Cukurs passaram a ser publicadas lado a lado com as notícias sobre Eichmann,
criando-se assim um nítido espelhamento entre Argentina e Brasil no que dizia respei-
to à questão dos criminosos nazistas. Um editorial do Diário de Notícias afirmou que
embora a Argentina tivesse o triste privilégio de dar guarida a criminosos como Ei-
chmann, no Brasil também viviam outros como ele, citando o nome de Cukurs. Para o
jornal, o caso argentino tinha uma função exemplar: “a captura deste bandido [Eich-
mann] abre perspectivas a revelações de grande importância, e talvez ajude por exem-
plo, no Brasil, a exercer uma ação imediata contra os que aqui se encontram.”17 Já o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, Nº.79, 01/06/1960. Seção I, pp.3693-3694.
12
O Estado de S. Paulo, “Críticas no Senado aos investimentos do Governo”, 08/06/1960, p.4.
13
BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, Nº.15, 23/06/1960. Seção I, p.4199.
14
O Globo, “Protesto”, 31/05/1960, p.16.
15
BRASIL. Discurso de Jair Martins. Diário da Oficial, Brasília, DF, 22/06/1960. Seção II, p.510.
16
BRASIL. Discurso de Jair Martins. Diário da Oficial, Brasília, DF, 22/06/1960. Seção II, p.510.
17
Diário de Notícias, “Captura de Eichmann”, 07/06/1960, p.4.
241
CAPÍTULO 4
!
Última Hora, citando Eichmann, Cukurs, Göring e Bormann, fez uma matéria denun-
ciando a transferência de dinheiro de personalidades nazistas famosas para bancos
sul-americanos, embora não apresentasse qualquer evidência desta operação.18
Imagem&50.!A!suposta!relação!de!Cukurs!com!Martin!Bormann.!Diário!da!Noite,!03/06/1960,!p.13.
242
CAPÍTULO 4
!
Cukurs está no nosso país há muitos anos já e não nos cabe o direito
de o julgar ou de o condenar fora dos limites que as normas de moral
nos condenem. O que, no entanto, se torna inadmissível é encararmos
a sério a possibilidade de vir esse indivíduo a usufruir o privilégio
conferido pela cidadania brasileira. É o mínimo que se pode fazer em
defesa da nossa sociedade e o mínimo que podemos apresentar ao
mundo como garantia de repúdio aos crimes cometidos pelos nazis
durante o último conflito mundial. Seria, igualmente, legítimo pedir,
exigir, do Itamaraty a expulsão de Cukurs do território nacional –
mas encararmos sequer a hipótese de vermos ao nosso lado, cidadão
do Brasil, um criminoso nazista como Cukurs, nunca. Aos persegui-
dos de um regime brutal como o de Trujillo, acusados de revolucio-
nários, concede o Sr. Lafer passaporte de criminosos comuns sujeitos
à extradição. A um opressor, a um homem que está provado ter morto
– pelas próprias mãos ou por ordens de aniquilamento coletivo – mi-
lhares de cidadãos indefesos, dá-lhe o direito de viver no Brasil e co-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Novos Rumos, “Governo protege assassino nazista que vive em S. Paulo”, 17-23/06/1960, p.1.
20
Correio da Manhã, “Em São Paulo”, 02/06/1960, p.4.
243
CAPÍTULO 4
!
gita a possibilidade de lhe conferir cidadania brasileira. Por este ca-
minho, onde irá parar a dignidade nacional?21
Nas duas semanas seguintes, Cukurs retornou três vezes à delegacia. Seu principal
intuito nestas visitas foi registrar em depoimentos aquilo que ele acreditava ser a sua
versão da história. O primeiro desses depoimentos foi tomado na segunda ida ao DE-
OPS-SP no dia seis de junho de 1960, portanto três dias depois da primeira visita.
Nesta ocasião, ele fez um resumo de sua vida durante a ocupação nazista da Letônia:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Estado de S.Paulo, “Asilo a criminoso”, 02/06/1960, p.3.
22
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.50.
23
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.50.
244
CAPÍTULO 4
!
o que fez, por que fez, onde esteve e com quem esteve. Embora todas as acusações da
polêmica envolvendo seu nome na década anterior e as entrevistas que concedera, era
a primeira vez que ele entrava em detalhes sobre sua colaboração com os nazistas.
Cukurs afirmou que durante boa parte da ocupação da Letônia trabalhou como admi-
nistrador de garagens e das oficinas de reparação das unidades letãs. Esse trabalho
teria começado em 25 de julho de 1941, portanto, logo no início da ocupação, e ter-
minado no dia primeiro de abril de 1942, quando aceitou ser o 1o Comandante da 1a
Unidade Voluntária Letã. Cukurs se remete a essa segunda atividade com algum orgu-
lho: seu desempenho como comandante – na luta contra os soviéticos, como ele pro-
cura enfatizar – teria sido tão bom que os nazistas o chamaram de volta a Riga para
organizar e treinar novas unidades, convite este, no entanto, que ele recusou, uma vez
que os alemães, segundo explica, consideravam os soldados letões como mercenários
e não pareciam inclinados a reestabelecer a independência do país. Sua demissão teria
sido pedida em 12 de julho de 1942.24
A visão depreciativa que os alemães tinham dos soldados letões não impediu, con-
tudo, que Cukurs voltasse a trabalhar com os nazistas. Segundo conta, logo depois da
Batalha de Stalingrado, encerrada com derrota alemã em dois de fevereiro de 1943,
ele se tornou parte da “Voluntários da SS”, sendo enviado novamente ao front de ba-
talha, desta vez como Chefe de Observações Aéreas. Cukurs tomou cuidado para ex-
plicar sua adesão como legionário, termo utilizado parar designar os letões que inte-
graram as fileiras estrangeiras da SS nos dois últimos anos da Segunda Guerra Mun-
dial. Segundo disse, ele só aceitou esta função porque não queria se desentender com
o Alto Comando Alemão e, principalmente, com o governo de sua pátria. Neste posto,
combatendo os soviéticos, Cukurs permaneceu até o 25 de junho de 1944, poucas se-
manas antes de deixar para sempre a Letônia e imigrar com a família para Berlim.25
Ao falar da ocupação nazista e de sua colaboração em termos de combate ao comu-
nismo, ele não trata da perseguição aos judeus que acompanhava todas as ocupações
alemãs e que, na Letônia, foi responsável pela morte de XX mil judeus.
Outros três dias se passaram e, no dia nove de junho de 1960, Cukurs forneceu seu
segundo depoimento ao DEOPS-SP. Desta vez, ele não falou de suas atividades na
Letônia, mas sim dos crimes que os judeus da Letônia teriam cometido durante os 13
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.43-44.
25
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.42-43.
245
CAPÍTULO 4
!
meses de ocupação soviética. Cukurs começa sua narrativa contando o que suposta-
mente fora a Letônia antes da chegada do Exército Vermelho: um país democrático,
representativo, sem discriminação de raça ou religião, que dera segurança e cidadania
a todos os “estrangeiros” que viviam no país, inclusive os judeus. Essa idílica Letônia
– que ignora, por exemplo, a ditadura de Ulmanis, em vigor desde 1934, e a existência
de grupos de extrema-direita – foi interrompida, segundo Cukurs, com a chegada dos
soviéticos. Os judeus-letões, afirma, tiveram uma grande participação no triunfo da
URSS sobre a Letônia. A respeito da chegada dos tanques soviéticos a Riga, ele diz:
Cukurs constrói, assim, a ideia de que se alguém tinha cometido crimes na Letônia,
esse alguém não tinha sido ele, mas sim os judeus, logo eles, que tinham sido tão bem
acolhidos. Para Cukurs, os judeus foram os verdadeiros carrascos do povo letão. Du-
rante a ocupação soviética, ele prossegue explicando, a colônia judaica teria gozado
de privilégios, autonomia e de um enorme desenvolvimento cultural. Vários de seus
membros foram nomeados para postos de grande responsabilidade. Ele cita dois ju-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.38-40.
246
CAPÍTULO 4
!
deus como exemplo: um tal Comissário Sustin, que teria sido Ministro da Justiça e
Chefe da Segurança do Estado, e um tal Novyk, Chefe da Polícia Secreta.27
Imagem&51.&!Ida!de!Cukurs!ao!DEOPS/SP!na!imprensa.!Fonte:!O!Estado!de!S.!Paulo,!10/06/1960,!p.9.
A lista de acusações de Cukurs vai longe. Ele atribuiu à colônia judaica: incitação à
violência, comícios, doutrinação comunista de cidadãos e distúrbios contra policiais.
Joffe, apontado como Ministro da Educação da Letônia, e Sustin, o referido Ministro
da Justiça e Chefe da Segurança do Estado, teriam tido grande poder durante a ocupa-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.38-40.
247
CAPÍTULO 4
!
ção, ao passo que outros tantos judeus, ocupando altos cargos na NKVD e em outros
órgãos soviéticos de repressão, teriam iniciado “um período de horrorosas persegui-
ções, prisões e torturas contra os patriotas da Letônia.”28 Nas palavras de Cukurs, em
resumo, “a liquidação da Letônia foi recebida com regozijo pela colônia israelita”. 29
248
CAPÍTULO 4
!
Outros países ocupados – além da própria Alemanha – também sofreram seus efeitos
perniciosos. Porém, no caso da Letônia, ela produziu algumas mitologias específicas.
O historiador enumera quatro desses mitos, todos, sem exceção, presentes no depoi-
mento de Cukurs ao DEOPS-SP: 1) Os judeus deram boas-vindas aos tanques do
Exército Vermelho no início da invasão; 2) os judeus estiveram no controle do apara-
to administrativo e legal da Letônia durante a ocupação soviética; 3) Os judeus tive-
ram um papel especialmente ativo na deportação dos letões ocorridas no dia 14 de ju-
nho de 1941; 4) Os judeus controlaram a Cheka na Letônia, isto é, a polícia política (e
secreta) soviética.31
Imagem&52.&Propaganda!antissemita!na!Letônia!ocupada!pelos!nazistas.!Fonte:!The!Holocaust!in!Latvia,!p.85!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
EZERHAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. The United States
Memorial Museum: Washington, 1996, pp.70-72.
249
CAPÍTULO 4
!
teu os papéis: o letão passou de algoz à vítima. No dia seguinte ao terceiro depoimen-
to, O Globo fez uma provocação: “Os judeus massacraram o povo letão”.32
Cukurs disse ainda que nunca manifestou qualquer tendência antissemita, que não
foi oficial da Gestapo e que nem pertenceu a SS nazista. Se colaborou indireta e even-
tualmente com as autoridades alemãs foi porque estava pensando na independência da
Letônia e em sua libertação do julgo soviético.35 Seguindo esta linha de defesa, voltou
a falar da situação dos legionários: “não era e jamais fora organização nazista. Era,
isto sim, uma organização de letões, preparada para combater pela sobrevivência da
Letônia livre, pela independência, e com este objetivo lutou contra os comunistas,
como por igual lutaria mais tarde contra os alemães”.36 Este último ponto é particu-
larmente interessante. Em um depoimento, Cukurs admite que fez parte da Legião da
SS. Em outro, desmente-se, dizendo que não. Porém, ao mesmo tempo, vê a si mesmo
como legionário. O que aparece num primeiro momento como contradição, na verda-
de, é apenas a maneira como Cukurs constrói a sua identidade enquanto combatente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
O Globo, “Cukurs diz na polícia que os judeus massacraram o povo letão”, 10/06/1960, p.6.
33
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.37.
34
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.32-34.
35
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.32
36
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.32.
250
CAPÍTULO 4
!
letão da Segunda Guerra Mundial. Para entender isso, precisamos fazer uma rápida
contextualização. A Waffen-SS era uma força de elite nazista formada exclusivamente
por “alemães puros”. Nenhum estrangeiro podia fazer parte dela. Mesmo os alemães
que se candidatavam a ela tinham que passar por rigorosos testes de genealogia. Em
fevereiro de 1943, porém, após a derrota alemã na Batalha de Stalingrado, Hitler or-
denou ao chefe da SS, Heinrich Himmler, que criasse legiões estrangeiras de soldados
e que as colocasse sob a supervisão direta da Waffen-SS. Indivíduos de diferentes paí-
ses da Europa, incluindo a Letônia, participaram dessas legiões. No início, a partici-
pação foi voluntária. Cartazes, anúncios e cartas enviadas pelo correio conclamavam
os homens da Letônia para ingressarem na Legião.37 Contudo, o resultado foi frustran-
te. Um número bem abaixo das expectativas tinha atendido à chamada. Himmler, en-
tão, conferiu um caráter quase compulsório ao alistamento. Os letões se alistariam
“voluntariamente” ou seriam enviados para fábricas na Alemanha, para campos de
trabalho forçado ou enviados à prisão.38 A partir daí o número de “voluntários” cres-
ceu significativamente. Isso não significa, no entanto, que os letões conscritos na Le-
gião de Voluntários da SS eram os típicos SS. Segundo Jukka Rislakki, “a Legião Le-
tã era uma unidade SS apenas no nome”.39 Seus soldados não atuaram em campos de
concentração ou em guetos. Somente no front.40 Não tiveram o mesmo treinamento e
nem os mesmos equipamentos que os alemães da Waffen-SS. Também não tinham os
mesmos privilégios, organização, patentes ou emblemas. No campo de batalha eram
quase sempre vistos com desconfiança pelos oficiais alemães.41
Feita esta intervenção, fica mais claro compreender a maneira um tanto ambígua e
contraditória pela qual Cukurs se definia. Essa indefinição, verdade, persiste até os
dias de hoje. Boa parte dos veteranos da Legião Letã não se reconhecem como “ho-
mens da SS”, o que, de fato, está correto. Falar em Legião Voluntária da SS envolve
dois problemas para esses ex-combatentes: a conscrição não foi, na maior parte dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
EZERHAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. The United States
Memorial Museum: Washington, 1996. pp.42-43.
38
A noção de voluntariado era uma estratégia dos nazistas para burlarem a Convenção de Haia, de
1907, que proibia o recrutamento de estrangeiros para combate.
39
RISALAKKI, Jukka. The Case for Latvia – Disinformation Campaigns against a small nation. Four-
teen hard questions and Straight answers about a Baltic Country. Amsterdam/New York, 2008. p.129.
40
EZERHAILIS, op.cit. p.42.
41
Batalhões de Polícia Letã e membros do Comando Arājs, nos momentos finais da guerra, também
foram incorporados à Legião Letã, o que ajudou a tornar a imagem dos legionários menos simpática e
mais confusa, já que estes dois grupos colaboracionistas se envolveram com crimes de guerra.
251
CAPÍTULO 4
!
Em suas falas, Cukurs não menciona Viktor Arājs, comandante condenado pelo
Tribunal de Hamburgo, em 1979, ou explicitamente sobre o Comando Arajs, organi-
zação colaboracionista da qual participou e que foi decisiva no extermínio dos judeus
da Let6onia. Embora Cukurs mencione atos violentos praticados “por alemães contra
judeus”, ele também não explica os letões colaboracionistas e suas milícias também
tomavam parte das rondas e batidas que os nazistas realizavam. Em seus depoimentos,
Cukurs fez questão de separar o comportamento dos alemães do dos letões.
No dia sete de julho de 1960, o delegado Alcides Cintra Bueno Filho intimou dois
judeus sobreviventes do Holocausto na Letônia que residiam na cidade de São Paulo.
A intimação fazia parte dos trâmites de investigação iniciados com os depoimentos de
Cukurs. A primeira pessoa a depor foi Frida Schmuskovits, de 37 anos, nascida em
Liepāja, na Letônia, vivendo no Brasil desde 1953. Schmuskovits disse que Cukurs
tivera atuação destacada na Pērkonkrusts, organização de extrema direita letã, e que
tomou parte nas ações de fuzilamentos em massa de judeus, além de participar do
confisco de propriedades e de objetos de valor. Segundo relatou, as ordens de fuzila-
mento eram dadas por Viktor Arājs e por Cukurs. Schmuskovits, no entanto, declarou
que “a bem da verdade” não assistiu a nenhum ato de fuzilamento, embora, naquela
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Todo o ano, desde a retomada da independência da Letônia, em 1991, os legionários veteranos saem
em marcha pelas ruas de Riga em homenagem aos colegas mortos em combate. O assunto divide os
letões: para alguns, esses veteranos são heróis por combater os soviéticos. Para outros, são vilões por-
que colaboraram para a ocupação nazista. Para organizações judaicas e russos, a marcha é uma afronta
à democracia e fascista. Em 1950, o presidente da Comissão de Deslocados de Guerra dos Estados
Unidos, Harry N. Rosenfield, aprovou uma moção que determinava que os letões que combateram pela
SS deveriam ser diferenciados em termos de propósito, ideologia, atividades e qualificações de seus
membros em relação a SS alemã. Porém, no pós-guerra, a URSS, insistiu no paralelo entre a Legião
Letã e a SS alemã, chegando a produzir panfletos para este fim, distribuídos no exterior, como o famo-
so Daugavas Vanagi – Who Are they?, de autoria da KGB, distribuído nos Estados Unidos. Este pan-
fleto dizia que os antigos legionários, muitos dos quais exilados nos EUA, eram criminosos de guerra.
A ideia foi reproduzida em diversas publicações e ainda hoje molda o imaginário sobre o grupo.
252
CAPÍTULO 4
!
época, fosse “público e notório”, em toda a Letônia, que o extermínio de judeus era
liderado pela Pērkonkrusts, chefiada por Arājs e Cukurs.43
Imagem&53:&Policiais!fazem!a!proteção!da!Casa!de!Cukurs.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo,!06/08/2006,!p.C4.
A outra testemunha ouvida naquele dia foi Josef Gavrowski, de 55 anos, nascido
em Riga. Gavrowski disse que conheceu Cukurs pessoalmente na Sociedade dos Ati-
radores da Letônia. Cukurs tinha ido àquela instituição falar sobre os dois raides que
tinha acabado de fazer. Para o depoente, a história de que os judeus perseguiram a po-
pulação não judaica da Letônia, como Cukurs havia registrado, era “completamente
destituída de fundamento”. Os judeus que fizeram isso, explica, constituíam uma “ab-
soluta minoria”. Os russos, completou, perseguiam, indistintamente, letões e judeus.
Quanto à ocupação nazista, Gavrowski contou que foi um período bastante difícil para
os judeus. Ele mesmo perdeu quase toda a família no Gueto de Riga. Cukurs, nas suas
palavras, teria participado ativamente desses massacres. Tal como Schmuskovits dis-
sera, Gavrowski também diz que o aviador pertenceu a Pērkonkrusts e que vários atos
criminosos cometidos por esta organização tinham sido ordenados por ele. 44
Gavrowski não deixa claro se foi ou não testemunha ocular dos crimes de Cukurs.
Porém, disse que gostaria de deixar bem claro que Cukurs “é o responsável direto pe-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.16.
44
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.13-15.
253
CAPÍTULO 4
!
las matanças e atrocidades praticadas contra os judeus da Letônia”, fato que o faria
acreditar que “as autoridades brasileiras não poderão, de espécie alguma, conferir a
esse grande criminoso de guerra um prêmio, que seria a cidadania brasileira”.45
A Folha de S. Paulo também situa a proteção policial recebida por Cukurs dentro
desta perspectiva. De acordo com o jornal, a polícia política de São Paulo só tinha fei-
to o referido dossiê porque Cukurs havia sido apontado como criminoso de guerra por
dois sobreviventes letões dos Holocausto, os já mencionados Frida Schmuskovits e
Josef Gavrowski. Porém, conforme aponta o jornal, a linha de tempo deste documento
mostra como a polícia paulista estava do lado de Cukurs, beneficiando-o: “o depoi-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.15.
46
Folha de S.Paulo, “Matador de Riga passou pelo Rio e por SP”, 06/08/2006, p.C4.
254
CAPÍTULO 4
!
mento do acusado é tomado antes mesmo de a polícia saber quais eram as acusações
que pesavam contra ele. O DEOPS-SP teria ouvido Cukurs no dia 6 de junho de 1960
e só no dia seguinte teria tomado o depoimento de Frida e Josef.”47 No sentido de le-
gitimar a tese de que Cukurs e outros criminosos nazistas foram amparados pelo Esta-
do brasileiro, o jornal encerra a reportagem com a fala de uma historiadora:
O que temos visto até agora neste trabalho é a desconstrução da tese sustentada em
reportagens como esta. Há uma série de incongruências nos trechos que acabamos de
ler. Não é verdade, por exemplo, que a polícia política não fez nada a respeito da en-
trada e permanência de Cukurs no Brasil. Como vimos, as sindicâncias em torno de
seu nome começaram ainda em julho de 1950, logo depois que a Federação das Soci-
edades Israelitas do Rio de Janeiro acusou Cukurs de cometer crimes nazistas. O De-
partamento Federal de Segurança Pública levantou sua ficha e uma vez carecendo de
mais informações sobre suas atividades na Letônia, orientou o Ministério das Rela-
ções Exteriores a averiguar dados sobre a vida pregressa naquele país. Da mesma
forma, a polícia política de São Paulo também tomou providências no sentido de es-
clarecer os crimes atribuídos a Cukurs, mesmo estando esta matéria já há muito tempo
nas mãos do Ministério da Justiça. Na ocasião, o delegado Alcides Cintra Bueno Filho
pediu a ajuda do delegado chefe da Interpol em São Paulo para checar os depoimentos
contra Cukurs junto a The Wiener Library, em Londres.49 O DEOPS-SP trocou tam-
bém diversas correspondências com setores do Ministério da Justiça, que o atualiza-
ram sobre as investigações em curso e as decisões ministeriais quanto ao caso.50 Em
relação à mencionada “proteção militar” recebida por Cukurs, esta informação não
possui qualquer tipo de sustentação empírica. Para concluir isso, a Folha de S. Paulo
utiliza tão somente uma fala do filho de Cukurs e que, ainda assim, refere-se a “um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Folha de S.Paulo, “Polícia de SP protegeu carrasco”, 06/08/2006, p.C1.
48
Folha de, “Polícia de SP protegeu carrasco nazista”, 06/08/2006, p.C1.
49
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.17-18.
50
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.2-6.
255
CAPÍTULO 4
!
grupo de generais e brigadeiros”. Mesmo que isso fosse comprovado, tal fato não po-
deria se confundido com a posição do Estado no caso. Finalmente, sobre a cronologia
do dossiê, a documentação mostra algo bem diferente. Cukurs, como já sabemos,
compareceu pela primeira vez à polícia paulista no dia três de junho de 1960. E, se-
gundo consta nos autos de seu depoimento, ele só foi à delegacia porque queria prote-
ção. Schmuskovits e Gavrowski, por sua vez, só compareceram a delegacia no dia se-
te de julho e não no dia seis de junho, conforme diz a reportagem. O depoimento de
Gavrowski explica, inclusive, as razões que o fizeram procurar a polícia naquela data:
(...) que o depoente comparece a esta delegacia, por sua livre e espon-
tânea iniciativa, por não se conformar com as mentiras que Cukurs
proclama, em nome de sua defesa; que tem acompanhado, através
dos jornais, a forma aleivosa, decorrente das declarações de Cukurs
nesta especializada, querendo o mesmo, desta forma, embair a boa-fé
do generoso povo brasileiro; que, há poucos dias, numa das estações
de televisão de São Paulo, vendo Cukurs apresentar-se perante os
brasileiros desta capital, ficou o depoente profundamente revoltado,
motivo pelo qual resolveu procurar a digna autoridade que este presi-
de, a fim de esclarecer o que realmente passou-se na Letônia naque-
les negros dias, sob as ordens diretas de Herberts Cukurs.51
É importante que se diga ainda que os guardas que a polícia paulista destacou para
a proteção de Cukurs estavam longe de ser a prova cabal de que o governo brasileiro
protegia ou acobertava criminosos nazistas. Essa proteção policial, na verdade, refle-
tia a preocupação das autoridades brasileiras em evitar que Cukurs, tal como Eich-
mann, fosse sequestrado. Não que necessariamente o governo se importasse com o
bem-estar de Cukurs, mas porque o sequestro de Eichmann tinha tocado em questões
nacionalistas bastante sensíveis para o governo brasileiro. Quando a notícia do se-
questro de espalhou pelo mundo, houve um princípio de crise diplomática entre Israel
e Argentina. O governo argentino ficou tão indignado com a violação de sua sobera-
nia que chegou a dar um ultimato ao governo israelense para que devolvesse Eich-
mann ao país, além de exigir a punição dos responsáveis pelo sequestro, o que sequer
foi cogitado pelo governo de Israel. O assunto chegou a ser levado às Nações Unidas
e, ainda assim, não se solucionou a crise. O clima entre os dois países se deteriorou
rapidamente. Na imprensa israelense, isso era bastante visível. “Os veículos se enche-
ram de referências à Argentina como país que concedeu asilo a numerosos criminosos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
51
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.13.
256
CAPÍTULO 4
!
nazistas e onde fatores da extrema direita logravam impor seus pontos de vista ao Pre-
sidente Frondizi”. 52 Nessa época, a Embaixada Argentina em Tel Aviv recebeu várias
ameaças telefônicas anônimas ameaçando explodir o edifício.53 No final de julho, a
Argentina declarou Arie Levavi, embaixador de Israel no país, persona non grata e o
expulsou da Argentina. 54 Somente em agosto de 1960, os dois governos encerraram a
crise.55 O governo brasileiro acompanhou toda essa movimentação bem de perto. A
Embaixada do Brasil na Argentina manteve Brasília regularmente informada sobre o
desenrolar dos acontecimentos. Tudo que as nossas autoridades queriam evitar na
época era que algo do gênero se repetisse no Brasil.
Imagem&54:&Cukurs!em!destaque!na!Folha!de!S.!Paulo.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo,!06/08/2006.!p.1!
257
CAPÍTULO 4
!
Mesmo quando a matéria parecia caminhar para um desfecho amistoso entre Ar-
gentina e Israel, os diplomatas brasileiros alocados em Buenos Aires ainda achavam
que o governo argentino deveria ser mais enérgico diante das pressões israelenses. A
Embaixada brasileira naquele país avaliou que a resposta dada pelas autoridades ar-
gentinas no âmbito da ONU tinha sido formulada “em termos extremamente modera-
dos”. 58 A restituição de Eichmann, diziam no relatório enviado a Secretaria de Estado
do Itamaraty era a “única reparação satisfatória em face da violência cometida”. 59
Cukurs foi bastante inteligente ao perceber esse tipo de temor e passou ele próprio
a alimentar a ideia de que um sequestro semelhante ao de Eichmann também poderia
ocorrer no Brasil. Em diversas entrevistas à imprensa, Cukurs declarou que temia ser
raptado por judeus. “Tenho motivos para recear a realização, contra mim, de um ato
do gênero daquele praticado contra Eichmann, em Buenos Aires”, disse a O Estado de
S. Paulo.60 Conversando com a reportagem de O Mundo Ilustrado, mostrou-se fatalis-
ta: “talvez tentem me apanhar. À noite isto aqui é escuro e fácil interceptar o caminho.
Mas lutarei com todos os meus recursos. Quem é inocente, tem força moral. Daqui
ninguém me tira. Só sairei morto. Vou morrer aqui. Pedi segurança porque de maneira
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
57
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.5.
58
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.5.
59
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.6.
60
O Estado de S. Paulo, “Policiais vigiam a casa de Cukurs”, 05/06/1960, p.21.
258
CAPÍTULO 4
!
alguma vou deixar que me levem para Israel”. Nas palavras de O Globo, Cukurs esta-
va “apavorado” com a possibilidade do sequestro.61 No dia 10 de junho de 1960, o
Última Hora publicou na primeira página que Cukurs já tinha, inclusive, recebido
uma ameaça de morte. A revelação teria sido feita ao delegado Ítalo Ferrigno pouco
antes de Cukurs dar o seu terceiro depoimento ao DEOPS-SP:
As declarações de Cukurs sobre seu possível rapto não tiveram musculatura sufici-
ente para colocar a opinião pública do seu lado, porém, havia uma atmosfera contra a
violação de soberania nacional que estava a seu favor. O Diário de Notícias anunciou
que um “alto funcionário do Itamaraty” teria revelado à sua equipe de reportagem que
“em hipótese alguma repetir-se-á no Brasil o que houve na Argentina.63 Em editorial,
a Folha de S. Paulo disse que o Brasil era uma terra “isenta de ódios” e que os acusa-
dos como Cukurs, enquanto permanecessem em território brasileiro, mereceriam “ca-
bal proteção, por força de dispositivo constitucional que assegura aos estrangeiros a
mesma segurança pessoal que merecem os brasileiros”.64 Em outro editorial, intitula-
do “Justiça perigosa”, O Globo defendeu ideia semelhante. Também se apoiando no
fato de que no país nunca se medraram ódios, o jornal carioca disse de maneira bas-
tante exagerada que eclodiria uma revolta da população brasileira caso o “sistema de
fazer justiça” do Caso Eichmann fosse aplicado também a Cukurs. O Brasil não admi-
tiria, escreveu, qualquer atentado de tal ordem à sua soberania. “As autoridades estão
no dever de proteger por todos os meios Cukurs e todos os ex-nazistas que estejam no
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
O Globo, “Cukurs teme ser sequestrado”, 04/06/1960, p.6.
62
Última Hora (PR), “Cukurs no DOPS revela ameaça de morte: 4 horas...”, 10/06/1960, p.7.
63
Diário do Paraná, “Brasil não permitirá rapto de Herberts Cukurs”, 10/06/1960, p.2.
64
Folha de S. Paulo, “O Caso Cukurs”, 08/06/1960, p.3.
259
CAPÍTULO 4
!
Brasil e invoquem a proteção das nossas leis, decerto feitas para salvaguardar o que o
Brasil tem de mais caro, o seu espírito cristão de humanidade e de concórdia” 65
Lafer lembrou ainda que, quando era deputado em 1950, foi ele o primeiro a levan-
tar-se, na Câmara dos Deputados, contra o processo de naturalização de Cukurs.67
A tréplica de O Estado de S. Paulo a Lafer foi igualmente dura. O jornal disse que
o ministro tinha optado apenas por uma defesa pessoal em meio a um episódio que
vinha indignando a opinião pública. Lafer, afirmou o jornal, permanecera “surdo e
mudo” em relação às críticas feitas à sua gestão no Ministério das Relações Exterio-
res. Suas repostas, além disso, teriam sido incompletas e nebulosas. Lafer teria agido
como Pilatos, lavando suas mãos e transferindo as responsabilidades à outra autarquia
do governo. Além de conclamar o Ministro a Justiça a prestar informações sobre o
Caso Cukurs, O Estado de S. Paulo completou sua condenação dizendo que “as reti-
cências do Sr. Lafer são denunciadoras da existência, nisso tudo, de algo inconfessá-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
O Globo, “Justiça perigosa”, 07/06/1960, p.1.
66
Correio da Manhã, “Lafer não apoiou a cidadania a Cukurs”, 04/06/1960, p.2.
67
Correio da Manhã, “Lafer não apoiou a cidadania a Cukurs”, 04/06/1960, p.2.
260
CAPÍTULO 4
!
vel. Algo que – assegura o Sr. Lafer – não foi ele quem praticou, mesmo porque as
responsabilidades cabem à pasta política do governo federal...”68
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
68
O Estado de S.Paulo, “Caso H. Cukurs: um pronunciamento ainda incompleto”, 04/06/1960, p.6.
69
Correio da Manhã, “Está na dependência de JK a naturalização do genocida”, 03/06/1960, p.7.
70
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.330.
261
CAPÍTULO 4
!
O que não se compreende é que Herberts Cukurs continue persegui-
do, não pelo Estado brasileiro, caso tivesse razões para fazê-lo, mas
por uma comunidade estranha aos interesses nacionais, que não reluta
em trazer para a terra brasileira os seus ódios milenares e raciais, dos
quais sempre viveram e se alimentaram através das épocas. Aqui pe-
ço vênia, para alertar a quem de direito sobre o que isso representa
para o Brasil. Ainda recentemente, a nossa vizinha Argentina, foi ví-
tima dessa comunidade israelense, que não teve escrúpulo em violar
a soberania daquele país, para capturar em sua terra, um pretenso
criminoso de guerra, levando-o à força, para ser julgado em Israel. É
preciso que as autoridades brasileiras estejam alertas para que tal coi-
sa não se verifique no país. O Brasil, que acolhe em seu seio estran-
geiros de toda natureza, tem obrigação de protegê-los, desde que não
sejam nocivos aos interesses nacionais. Da mesma forma, não pode
tolerar que sociedades desvinculadas de seus objetivos deem vazão
aos seus ódios, agitando com falsos pretextos, a tranquilidade soci-
al.71
262
CAPÍTULO 4
!
Cukurs, por sua vez, continuava se defendendo. E fazia isso de forma bem mais in-
cisiva do que há dez anos. Talvez porque os anos passavam e não surgiam evidências
capazes de convencer o Ministério da Justiça e nem o atingissem de forma incontestá-
vel. Para assegurar o seu direito à nacionalidade brasileira, contratou os serviços do
advogado Lavi Ibsen de Moura. A atuação de Moura no caso seria bastante ativa no
caso naqueles anos. Moura deu entrevistas, redigiu longas cartas de direito de resposta
e desmentiu diversas informações veiculadas na imprensa. No início de julho de 1960,
por exemplo, a Folha de S. Paulo, seguida de outros jornais, noticiou que Cukurs es-
tava foragido de sua casa em Santos. Moura imediatamente pediu um direito de repos-
ta. Em carta enviada ao jornal, informou que a notícia era falsa. Seu cliente apenas
tinha ido ao Rio de Janeiro resolver questões relacionadas ao seu processo de natura-
lização. De acordo com Moura, quem tinha fugido, na verdade, era Marcos Constanti-
no, da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, que não comparecera à
mesa-redonda programada pela TV Tupi para discutir o Caso Cukurs. “Diante de tais
fatos indiscutíveis e incontroversos, qual de nós fala sofisma? Qual de nós faz pilhe-
ria? Qual de nós incide no triste terreno do ridículo? A opinião pública, inteligente-
mente, saberá responder acertadamente, não tenhamos dúvidas”. Moura, no final desta
carta afirmou ainda, capciosamente, que tinha certeza de que “dentro das normas rígi-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
Diário do Paraná, “Legislativo do Estado”, 23/06/1960, p.7.
74
O Semanário, “Carrasco de Hitler que matou 300.000 judeus, quer ser...”, 02-08/07/1960. p.12.
263
CAPÍTULO 4
!
Mesmo tendo a combatividade de Moura a seu lado, Cukurs não deixou de atender
diretamente a imprensa. E isso ocasionava alguns deslizes de sua parte. Em uma de
suas declarações, publicada pelo O Mundo Ilustrado, Cukurs declarou que os judeus
foram “responsáveis pelo massacre de 34.200 letões de todas as classes” durante a
ocupação soviética da Letônia. Em seguida, acaba deixando escapar sua participação
na repressão contra os judeus: “Quando os alemães chegaram, os responsáveis pelos
massacres foram julgados e condenados. Dessa condenação, eu me sinto corresponsá-
vel.” 76 Esta declaração é, no mínimo, reveladora. Cukurs não a faz oficialmente, pe-
rante uma autoridade legal. Mas, pela primeira vez, em entrevista à imprensa, ele re-
conhece ser responsável, ainda que em parte, pela repressão nazista aos judeus que se
encontravam na Letônia. Essa sua fala revela uma espécie de confissão.
Imagem&55.&Notícia!sobre!a!ida!de!Cukurs!em!programa!de!TV.!Fonte:!Diário!da!Noite,!08/09/1960,!p.14.&
264
CAPÍTULO 4
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
RODEGHERO, Carla Simone. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos
e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, pp.463-488.
265
CAPÍTULO 4
!
sileiros, que têm o direito de fazê-lo, em face do disposto no art.17 da
Lei 818, de 18 de setembro de 1949.78
Coelho, desta forma, mantendo-se fiel à sua antiga avaliação do caso, continuava
contrário à naturalização. Seu parecer foi remetido cinco dias depois ao Ministro da
Justiça, Armando Falcão, que concordou com tal exposição dos fatos. Falcão, por sua
vez, escrevendo à consideração do Presidente da República, reforçou que o mérito
sobre as acusações levantadas contra Cukurs permaneciam ainda no “domínio da dú-
vida”. E a dúvida, disse Falcão, “basta, por si só, para negar-lhe a nacionalidade, má-
ximo quando, no caso em tela, a vida pregressa do naturalizando vem sendo suspeita-
da dos mais abomináveis crimes”. O Ministro da Justiça sugeriu a Kubitschek que ne-
gasse a naturalização de Cukurs, de sua esposa e filha, sem tirar, no entanto, o direito
à proteção que a constituição assegurava a qualquer estrangeiro residente no país.79
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.335.
79
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.337-338.
80
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.351.
81
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.352.
82
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.354.
266
CAPÍTULO 4
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
Última Hora, “Nazistas desencadeiam terro em São Paulo: vivas a Hitler”, 10/10/1960, p.2.
84
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.6.
85
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.55.
267
CAPÍTULO 4
!
O jornalista descreve Cukurs como “um homem robusto e musculoso”, que ainda
trajava sua jaqueta de couro e portava sua pistola. Anderson sugere que esses dois
acessórios eram os mesmos que Cukurs usava durante a ocupação nazista da Letônia.
Na conversa que teriam tido, à beira da represa de Guarapiranga, Cukurs teria alegado
inocência, além de lhe apresentar documentos e desmentir sua alegada participação na
Pērkonkrusts. “Eu estava muito ocupado para política e matança de judeus (...) Não
tenho sangue de judeus em minhas mãos”, teria dito.90 Anderson, porém, admite não
acreditar em nada disso. Para ele, Cukurs, assim como muitos outros nazistas, era um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
87
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
88
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
89
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
90
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
268
CAPÍTULO 4
!
homem muito assustado e ardiloso. O jornalista lista uma série de suspeitas que teria
levantado sobre Cukurs. Seus hidroaviões, por exemplo, não levavam apenas turistas
para passeios, mas também transportavam nazistas em fuga para o interior, onde Cu-
kurs tinha duas pequenas fazendas. O jornalista também sugeriu que o filho mais novo
de Cukurs, Richard, nascido em 1955, não era seu filho biológico:
Ele e sua esposa, ambos na casa dos sessenta anos, tiveram um filho brasilei-
ro após os seus outros filhos (dois homens e uma mulher) já estarem cresci-
dos. A suspeita é que Cukurs possa ter tirado esse menino de moradores de
ruas e proclamado que era seu próprio filho. Os brasileiros são muito senti-
mentais e provavelmente se tornariam menos inclinados a extraditar Cukurs
se ele declarasse ter um filho nascido no Brasil.91
269
CAPÍTULO 4
!
de.95 Já a revista Parade era o que se pode chamar de um veículo provedor de infor-
mações. Existente até hoje, a Parade já naquela época possuía um acordo de forneci-
mento de matérias e colunas a dezenas de jornais americanos, especialmente aos do-
mingos. Textos como Criminosos Nazistas na América do Sul eram reproduzidos por
diferentes veículos de todos os Estados Unidos, de costa a costa, acumulando um pú-
blico leitor na casa de dezenas de milhões de pessoas. Alguns jornais da Europa e do
Canadá chegavam a comprar os direitos de reprodução dos textos da revista.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
Em 2005, um ano depois da morte de Jack Anderson, o FBI passou a investigar o arquivo deixado
pelo jornalista, justificando que alguns documentos poderiam ferir os interesses dos Estados Unidos.
Na ocasião, William Carter, porta-voz do FBI, disse que os agentes estavam procurando arquivos rela-
cionados ao caso "AIPAC" (American Israel Public Affairs Committee), sobre lobby israelense na polí-
tica americana. Informações sobre a investigação em:
http://www.democracynow.org/2006/4/26/fbi_seeks_to_seize_control_of. Acesso em: 12/02/2011.
270
CAPÍTULO 4
!
tema tinha voltado às páginas dos jornais e novas manifestações contra aquela situa-
ção tomavam corpo no Brasil. Dothan mencionou que Cukurs tinha medo de ser se-
questrado e que o governo brasileiro, neste sentido, tinha lhe ofertado proteção.96 Da
documentação analisada nesta pesquisa, esta é a primeira vez que o governo israelen-
se menciona o nome de Herberts Cukurs.
271
CAPÍTULO 4
!
O que era possível fazer para levar Cukurs à justiça era uma questão bastante im-
portante e Winterstein não se furtou a pensá-la. Em carta endereçada a um membro da
coletividade judaica de São Paulo que havia indagado sobre providências que estavam
sendo tomadas contra Cukurs, o representante do Congresso Judaico Mundial no Bra-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
100
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fl.48.
101
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fl.48.
102
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.26/56.
103
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:154. fl.6-7/74-81
104
O Jornal, “Sobrevivente do massacre de Riga narra as atrocidades...”, 12/08/1960, p.6.
272
CAPÍTULO 4
!
sil disse que restava muito pouco a fazer pela expulsão, uma vez que Cukurs tinha um
filho brasileiro. Porém, em relação à extradição, Winterstein disse que ainda estava
tentando uma possibilidade, embora difícil: obter o pedido de extradição de Cukurs
por parte da Alemanha Federal. 105
Winterstein foi se tornando cada vez mais convicto desta estratégia. No dia quatro
de novembro de 1960, menos de um mês após Juscelino Kubitschek indeferir o pedi-
do de naturalização de Cukurs, ele enviou uma carta a Nehemiah Robinson, judeu li-
tuano que dirigia o escritório do Congresso Judaico Mundial em Nova York. Nela,
Winterstein comentou que a decisão do Presidente brasileiro em prejuízo da naturali-
zação de Cukurs poderia ser apenas parte da resolução do caso. Na sua avaliação, ne-
gar a cidadania de Cukurs apenas significava que ele não era digno da mesma, mas
em nada reparava os crimes que ele teria cometido. Winterstein manifestou, então, sua
vontade de ir além: “não podemos e nem devemos nos dar por satisfeitos. (...) É ne-
cessário fazer algo que não apenas atrapalhe em seu processo de naturalização”. Ele
explicou pacientemente as possibilidades do caso: expulsão do Brasil, denunciá-lo a
um tribunal brasileiro ou a outros tribunais.106 A primeira possibilidade, comentou,
não seria possível porque agora Cukurs tinha um filho brasileiro. A segunda, por sua
vez, seria igualmente inviável, haja vista que nenhum crime foi cometido em território
brasileiro e nem havia Cukurs nascido naquele país. A única saída possível seria a sua
extradição. E mesmo assim, somente um país poderia fazê-lo do ponto de vista jurídi-
co: a Alemanha. De acordo com Winterstein, a extradição pela justiça alemã não era
“totalmente fora de mão”. Cukurs, afinal de contas, tinha cometido crimes de guerra
em um momento em que a Letônia era controlada pela Alemanha. Winterstein revelou
que estava tentando acionar as autoridades alemães para o caso. Os primeiros conta-
tos, inclusive, já teriam sido travados. Em agosto de 1960, Winterstein tinha pedido a
Brassloff que se dirigisse à promotoria alemã. No dia 14 de dezembro, em resposta, o
Procurador Geral Executivo da Alemanha enviou uma carta para Brassloff que dizia:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
105
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:153. fls.31-32.
106
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.37-38.
273
CAPÍTULO 4
!
denação de dois acusados – SECK e MIGGE – à prisão perpétua. A
grande parte dos acusados não pôde mais ser investigada. Entre ou-
tros, encontrava-se também CUKURS e ARĀJS. De CUKURS, sa-
bia-se somente que este encontrava-se na América do Sul. Posto que
uma extradição, àquela altura, não era mais possível, o juiz de inqué-
rito não reuniu mais provas. Posto que agora o paradeiro de CU-
KURS é conhecido, solicitei a reabertura do inquérito no Tribunal
Regional de Hamburgo. Dado que, pelas razões acima, as provas dis-
poníveis não são suficientes, ficaria muito grato caso o senhor pudes-
se apontar ao juiz de inquérito as testemunhas de acusação. Só então
poderá o mesmo expedir um eventual pedido de extradição.107
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.37-38.
[Original: Auf Ihr wertes Schreiben von 26.8.ds.Jrs. teile ich Ihnen folgendes mit: Bereits im Jahre
1949 führte der Untersuchungsrichter bei dem Landgericht Hamburg eine Voruntersuchung gegen
vierundvierzig Angeschuldigte wegen der Massenerschiessung jüdischer Bürger in Riga. Das Verfah-
ren endete mit der Verurteilung von zwei Angeklagten / SECK und MIGGE / zu lebenslangen Zucht-
haus. Der größte Teil der Angeschuldigten kennte damals nicht ermittelt werden. Unter diesen befan-
den sich auch Cukurs und Arajs. Ven Cukurs war damals lediglich bekannt, dass er sich in Südamerika
aufhielt. Da eine Auslieferung zu dem damaligen Zeitpunkt nicht uoeglicht (sic) war, hat der Untersu-
chungsrichter weiteres Beweismaterial nicht gesammelt. Nachdem nunmehr der Aufenthalt Cukurs
bekannt ist, habe ich am 17.8.1960 bei dem Landgericht Hamburg die Wiedereröffnung der Versunter-
suchung beantragt. Da aus den eben genannten Gründen jedoch ein ausreichendes Beweismaterial noch
nicht vorhanden ist, wäre ich Ihnen sehr dankbar, wenn Sie dem Untersuchungsrichter über die Frags
einer eventuellen Auslieferung entscheiden.]
274
CAPÍTULO 4
!
Imagem&56.!Lista!de!criminoso!de!guerra!que!atuaram!no!Gueto!de!Riga!elaborada!por!Berman:!Cukurs!está!
nela.!Fonte:!Wiener!Library!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
108
Cf. Wiener Library: Document Collections – Committee for the Investigations of Nazi Crimes in
Baltic Countries: Paper, 1948-1971. Disponível em: <www.wienerlibrary.co.uk>. Acesso em:
04/06/2015.
109
Justiz und NS-Verbrechen. Disponível em:
<http://www1.jur.uva.nl/junsv/JuNSVEng/GDRddv05.htm>. Acesso em: 04/06/2015.
275
CAPÍTULO 4
!
O “Caso do Gueto de Riga” foi apenas um dos vários julgamentos referentes aos
crimes de guerra cometidos na Letônia no imediato pós-guerra. Neste período, ocorre-
ram outros quatro na Alemanha Ocidental (todos no Tribunal de Hamburgo) e um na
Alemanha Oriental (no Tribunal de Potsdam). Nestes cinco julgamentos, apenas sete
pessoas foram julgadas, das quais quatro foram condenadas a penas que variavam de
três anos e meio à prisão perpétua. 110 A morosidade nos julgamentos e os severos cri-
térios estatutários adotados pelas cortes alemãs naquele início dos anos 1950 permiti-
ram que vários suspeitos fossem libertados, entre eles Viktor Arājs, somente indicia-
do, capturado (novamente) e condenado no final dos anos 1970. Quando Wiesenthal
alertou Winterstein para que Cukurs não fosse tomado individualmente, ele muito
provavelmente se referia aos esforços de Berman e a outros que, anos antes, tinham se
empenhado para levar diversos colaboracionistas à justiça e fracassaram.111
276
CAPÍTULO 4
!
do governo de não expulsar Cukurs do país.112 O pedido de Moura, não obstante, não
resultou em nada, sendo ignorado pelo chefe da pasta ministerial.
Ironicamente, dois meses depois, as críticas da imprensa judaica pareciam ter sido
escutadas pelo Presidente da República. Em 18 de maio de 1961, o recém-empossado
Jânio Quadros encaminhou um pedido urgente ao Ministério da Justiça para que este
reexaminasse o processo 27.996/1950.113 Não fica claro o porquê de Quadros tomar
essa atitude, mas é provável que a medida tenha surgido pela articulação de forças
entre a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e o Congresso Judaico
Mundial, especialmente através de Winterstein, que apenas alguns meses antes havia
revelado, conforme vimos, a intenção de se conseguir “algo mais” do que o indeferi-
mento da naturalização de Cukurs. Seja como for, o caso estava reaberto e isso mos-
trava mais uma vez como os debates políticos tinham força o bastante para interferir
em seus trâmites. E novamente também, essa força ia contra Cukurs. Chegou-se ao
ponto de se rever a possibilidade de expulsão de Cukurs quando a própria expulsão
tinha deixado de ser juridicamente viável, já que este era pai de filho brasileiro.
277
CAPÍTULO 4
!
nome de Cukurs, sabendo-se que não conseguiu provar suas acusa-
ções. A denúncia que fez a ele se aplica, mudando o nome, a qual-
quer funcionário da Gestapo que ouse alcançar para punir a persegui-
ção sofrida. Não encontramos razão nas acusações para um julga-
mento sério. O referido cidadão não ingressou no país com documen-
to da Organização Internacional de Refugiados, mas com passaporte
regular. Sua entrada no país foi legal e da Espanha não nos chegou
nada contra ele. Todavia, a naturalização é um ato de graça e só o
Presidente da República pode julgar da sua conveniência. Parecendo-
me, portanto, carecer de fundamento as razões apresentadas pela Fe-
deração das Sociedades Israelitas [do Rio de Janeiro], opino pelo ar-
quivamento do pedido de expulsão. Cukurs é inexpulsável por ter fi-
lho brasileiro menor. Parece-me também, deva ser advertida essa Fe-
deração contra o tumulto que vem causando ao processo e na impren-
sa do país.114
278
CAPÍTULO 4
!
tradição. Nenhum pais tinha se manifestado. A decisão, no fundo, era agora até mais
simples: Cukurs não poderia ser expulso porque era pai de filho brasileiro, mas ainda
assim, o caso se mantinha em discussão.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.376.
116
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.377.
117
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.378.
118
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.393.
279
CAPÍTULO 4
!
não tinham sido concedidos por pairarem suspeitas de que o requerente tinha sido
criminoso de guerra. Além disso, “pode, entretanto, o governo denegar a cidadania
brasileira, mesmo sem basear-se em provas concretas”. Fazendo menção ao que disse
o diretor geral do DIJ, Wanderley lembrou que a cidadania brasileira é “matéria de
conveniência política”. Sua avaliação, no entanto, trouxe uma proposição nova:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
119
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.395.
120
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.395.
121
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.396-397.
280
CAPÍTULO 4
!
nhou ao Presidente João Goulart, que o aprovou em março de 1962.122 Pela quarta e
última vez Cukurs teve seu pedido de naturalização indeferido. Novamente, voltava-
se a mesma situação do início dos anos 1950: o governo brasileiro não abriu o proces-
so de expulsão contra Cukurs, mas também não lhe concedeu a nacionalidade brasilei-
ra. Cukurs, assim, continuava desprotegido:, a extradição continuava sendo possível,
dependendo principalmente do pedido de um país com jurisdição para tal.
Entre março de 1962 e março de 1965, muito pouco se falou no Caso Cukurs. No
âmbito judicial, o processo 27.996/1950 encontrava-se arquivado. Nenhuma das par-
tes fez qualquer nova solicitação neste período, nem pela naturalização, nem pela ex-
pulsão. Tampouco chegou ao governo brasileiro qualquer pedido de extradição. No
âmbito policial, Cukurs fez apenas uma nova visita ao DEOPS-SP: em fevereiro de
1963, ele solicitou a renovação do seu porte de arma.123 Motivos para continuar se
sentindo ameaçado não lhe faltavam. Além de não conseguir a cidadania brasileira,
estando sujeito, assim, à extradição, Eichmann fora julgado e condenado à morte em
1961. Não houve qualquer tipo de clemência. No dia primeiro de junho de 1962, na
prisão de Ramala, perto de Tel Aviv, foi morto por enforcamento, sendo a única apli-
cação da pena de morte até hoje na história do país. Ademais, circulavam boatos de
que Cukurs seria o próximo alvo dos israelenses. Em fevereiro de 1962, o Diário da
Noite publicou uma reportagem intitulada “Recomeçou a caça ao nazista Cukurs”. De
acordo com o jornal, agentes internacionais já estariam no Brasil à procura de Cukurs
visando sua captura. Esses agentes, revelou o jornal, estavam procurando Cukurs –
“condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg” – “para que ele, a exemplo do que
ocorreu com Adolf Eichmann, responda pelos crimes que cometeu”.124
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.396-406.
123
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.58.
124
Diário de Noite, “Recomeçou a caça ao nazista Cukurs”, 13/02/19062, p.4.
281
CAPÍTULO 4
!
perpétua, para que este pudesse servir de parâmetros para futuras ações contra Cukurs.
A instrução criminal naquele momento, ele pontuou, se concentrava em outros nomes,
que já se encontravam em prisão preventiva, porém: “Estou desde já bastante disposto
a apoiar o trabalho de vossa instituição”, terminou dizendo o promotor alemão em
uma demonstração de boa vontade com o Yad Vashem.125
Imagem&57.!Cukurs!é!“caçado”!segundo!a!imprensa!carioca.!Fonte:!Diário!de!Noite.!13/02/1962,!p.4.!!
282
CAPÍTULO 4
!
to. Elas contaram com a anuência das forças aliadas. Diversas penas imputadas a réus
dos chamados tribunais subsequentes de Nuremberg, ocorridos entre 1945 e 1951,
foram comutadas para outras mais brandas nos anos 1950. O “Caso 9” (Caso Ein-
satzgruppen) é um bom exemplo disso. Vinte réus foram condenados em 1948. Des-
tes, 15 tiveram as penas diminuídas posteriormente. De 13 condenados à morte, ape-
nas três foram executados.127 Robert Kemper chamou isso de “febre de anistia”. 128
Hillary Earl explica que dois motivos foram preponderantes para que isso ocorres-
se. Em primeiro lugar, está a questão da Guerra Fria. A relação entre Estados Unidos
e União Soviética se deteriorou rapidamente e nenhum dos dois lados queria se indis-
por com os alemães. Portanto, a questão dos crimes de guerra se tornou um assunto
cada vez mais evitado. Em segundo lugar, Earl cita o fortalecimento dos grupos naci-
onalistas alemães. Esses grupos eram formados, em geral, por autoridades católicas,
protestantes e advogados de criminosos nazistas. Apoiados em parte pela direita ale-
mã, defendiam que os julgamentos aliados não tinham sido justos, e que aqueles ho-
mens e mulheres condenados não eram criminosos nazistas, mas soldados que haviam
servido ao país. Na década de 1950, esses grupos exerceram forte pressão política na
Alemanha. Escreveram cartas, organizaram manifestações e fizeram até lobby no
Congresso Americano. Tentaram sensibilizar a opinião pública dizendo que a rigidez
das penas poderia minar a soberania alemã e produzir instabilidade política.129
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
EARL, Hilary. The Nuremberg SS-Einsatzgruppen Trial, 1945-1958. Atrocity, Law, and History.
New York: Cambridge, 2009. p.243.
128
Ibidem, p.13.
129
Ibidem, pp.265-266.
130
PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History, and the Limits
of the Law. New York: Cambridge, 2006. p.15.
283
CAPÍTULO 4
!
aceita diante da força imperativa do “é preciso seguir em frente”, tão preconizado por
Adenauer. Jeffrey Herf chamou essa estratégia de “democratização via integração”.131
A partir daí a Alemanha Federal começou a agir de forma bastante diferente. Co-
meçava “um período dominado por diversos e grandes julgamentos públicos, que vie-
ram formar a imagem pública do nazismo e do Holocausto”.133 O maior desses julga-
mentos começou em 1963: o Tribunal de Auschwitz, realizado em Frankfurt. Desta
vez, não eram as altas figuras do Terceiro Reich que eram julgadas; mas sim guardas
de prisão, vigias, homens e mulheres que tinham ocupado posições baixas na hierar-
quia do Terceiro Reich, mas que contribuíram de alguma forma para a “Solução Fi-
nal”. Os julgamentos de Auschwitz ganharam enorme fama internacional, expondo
com grande intensidade e choque os horrores dos campos de concentração e extermí-
nio. Talvez não coincidentemente, este julgamento começou no mesmo ano em que
Konrad Adenauer deixa o governo alemão, dando lugar a Ludwig Erhard (1963-66).
Tendo em vista este pano de fundo histórico, podemos admitir que o Congresso
Judaico Mundial abordou a justiça alemã em um momento de transição favorável. Ju-
ridicamente, a Alemanha Federal tinha todas as condições necessárias para requisitar
a extradição de Cukurs. A população estava mais sensibilizada, as autoridades públi-
cas constrangidas, a mídia estava ansiosa por acertos de contas do tipo e juridicamente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
HERF apud PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History,
and the Limits of the Law. New York: Cambridge, 2006. p.16.
132
PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History, and the Limits
of the Law. New York: Cambridge, 2006. pp.18-20.
133
Ibidem, p.21.
284
CAPÍTULO 4
!
a medida era justificável. Esse pedido, no entanto, nunca aconteceu. O motivo disso
não ter acontecido não é claro. A documentação aqui analisada – que se encerra em
1963 – não oferece dicas neste sentido. Indica apenas que Cukurs fora investigado e
que seu paradeiro foi informado às autoridades alemã. Isso talvez tenha a ver com o
início do julgamento dos guardas de Auschwitz, que mobilizou imprensa, opinião pú-
blica e o judiciário alemão. Talvez, a justiça alemã estivesse encontrando dificuldades
em montar a instrução jurídica contra Cukurs. Somente pesquisas futuras, porém, po-
derão lançar mais luz sobre tal questão. Ali, contudo, a oportunidade não voltaria.
Em 2004, quase quarenta anos depois de Otero entrar na casa da rua Colômbia, o
livro The Execution of the Hangman of Riga foi publicado com o intuito de contar a
história por trás do assassinato de Cukurs. Nele, os autores confirmaram o que sempre
se desconfiou, isto é, que Cukurs foi executado por um comando do Mossad, o servi-
ço secreto israelense. Rompendo com a discrição que é tão comum às agências de in-
teligência, o Mossad tinha permitido, surpreendentemente, que um de seus antigos
agentes secretos publicasse suas memórias. O livro, publicado em inglês e hebraico,
foi escrito pelo jornalista israelense Gad Shimron e pelo o ex-agente do Mossad, res-
285
CAPÍTULO 4
!
ponsável em campo pela operação que levou Cukurs à morte, Anton Kuenzle, contan-
do ainda com o prefácio de Meir Amit, chefe do Mossad entre 1963 e 1968. 134
The Execution of the Hangman of Riga é narrado em primeira pessoa por Anton
Kuenzle. Este, a propósito, como se descobriu alguns anos após o lançamento do li-
vro, era o codinome usado pelo agente Yaakov Meidad, nascido em 1919, em Bres-
lau, Alemanha (hoje, Polônia). A revelação de seu nome surgiu ao mesmo tempo que
também se conheceu mais de sua biografia. Sua mãe era professora. Seu pai, um mé-
dico veterano da Primeira Guerra Mundial. Em 1934, Meidad, aos 15 anos de idade,
imigrou sozinho para a Palestina, então sob protetorado Britânico. Estudou hebraico
em Haifa e, quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, foi o primeiro do Yishuv a se
voluntariar para servir no Exército Britânico. Seus pais, que nunca abandonaram a
Alemanha, acabaram se tornando vítimas do Holocausto: sua mãe morreu em Aus-
chwitz, enquanto seu pai, em Theresienstadt. No pós-guerra, Meidad não deixou de
ser soldado. Lutou na Guerra de Independência de Israel, em 1948, e foi galgando po-
sições na Israeli Defenses Forces até ser convidado a se unir ao Mossad, em 1955.135
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
134
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004.
135
Haaretz, “Mossad agent who helped abduct Eichmann dies at 93”, 01/07/2012. Disponível em:
http://www.haaretz.com/news/israel/mossad-agent-who-helped-abduct-eichmann-dies-at-93.premium-
1.448068. Acesso: 09/06/2015.
136
KUENZLE, op.cit., p.XIV.
286
CAPÍTULO 4
!
mann no apartamento em que este foi mantido até seguir para Israel.137 O sucesso nes-
ta operação e a sua habilidade para criar disfarces, afora do fato de ter o alemão como
língua nativa, levaram as autoridades do Mossad a colocá-lo na dianteira de uma nova
missão, que também deveria ser realizada na América do Sul e envolvia os tempos de
nazismo: ganhar a confiança de Cukurs e leva-lo até o Uruguai para ser executado.
The Execution of the Hangman of Riga começa narrando como Meidad foi infor-
mado pela primeira vez da operação. Era o dia primeiro de setembro de 1964. Ele ti-
nha sido chamado para uma reunião em um apartamento em Paris por um conhecido
seu chamado “Yoav”, um antigo membro da Palmach, a força de elite da Hagana,
organização judaica paramilitar na Palestina britânica.138 Yoav abriu a reunião dizen-
do: “bom, isso tudo começa com a confirmação final que recebemos sobre um crimi-
noso de guerra que vive em um país sul-americano, com o seu nome real, com a famí-
lia e sob proteção dos serviços de segurança daquele país.”139 No encontro, Yoav não
revelou quando as autoridades israelenses decidiram utilizar o Mossad para resolver o
Caso Cukurs. Entretanto, ele deixa bem claro o porquê:
Em poucos meses, no dia oito de maio de 1965 para ser mais preciso,
o mundo irá celebrar os vinte anos desde a vitória sobre a Alemanha
nazista, que aniquilou quase todos os judeus da Europa. Já há vozes,
não somente na Alemanha, que dizem que chegou o momento para
olhar adiante, que é chegada a hora de riscar os eventos do passado,
de apagar as memórias de todos os horrores, de esquecer os nazistas,
e de aplicar a Lei de Prescrição Penal aos seus crimes.140
287
CAPÍTULO 4
!
nha. O tema era bastante complexo. A lei alemã de prescrição de crimes, criada por
Otto von Bismarck, não tinha sofrido alterações desde o seu aparecimento, no final do
século XIX. Ela não discernia, deste modo, um crime de homicídio comum de um
homicídio nazista. Se essa lei de prescrição fosse realmente aplicada em relação aos
crimes do nacional-socialismo, como estava prevista para acontecer, milhares de in-
vestigações caducariam, ao passo que outras tantas, incontáveis, nunca sequer seriam
iniciadas. Cukurs encaixava-se nesse contexto. A única forma de interromper a pres-
crição de um crime, nazista ou não, de acordo com a lei, era a emissão de um manda-
do de prisão ou a abertura de um pedido de extradição, algo que, por sinal, também
não tinha ocorrido naqueles últimos anos. O Tribunal de Hamburgo, vale lembrar, não
fora capaz de formular um pedido de extradição visando o julgamento de Cukurs.
Todo o debate em torno da prescrição dos crimes nazistas tinha dominado a esfera
pública nos anos 1960. Embora a Alemanha Federal tivesse se tornado mais sensível
quanto à necessidade de indiciar, prender, julgar e punir criminosos de guerra nazis-
tas, essa mudança de perspectiva não se deu de uma hora para outra, mas era um pro-
cesso. O governo de Bonn ainda mantinha certas reticências que obstruíam ou pelo
menos limitavam o “acerto de contas” com o passado nazista. Os investigadores ale-
mães, por exemplo, não tinham nem mesmo permissão para requisitar o mais simples
documento em posse da Alemanha Democrática ou de qualquer outro país da esfera
da URSS, o que era um grande problema, de acordo com Hannfried von Hindernburg:
288
CAPÍTULO 4
!
reconhecimento entre os Estados, argumentou o Ministro da Justi-
ça.141
289
CAPÍTULO 4
!
quisa revelou que somente 14% dos respondentes pensavam que seria melhor não ter
levado Eichmann à julgamento, enquanto que durante o julgamento de Auschwitz,
esse percentual, em apenas um ano, já tinha subido para 39%.146
Quando Yoav se reuniu com os agentes do Mossad em Paris, ele estava, portanto,
bastante pessimista em relação à decisão das autoridades alemãs, apesar de toda pres-
são existente pela revisão da lei de prescrição. Ele disse a Meidad e aos demais agen-
tes em Paris: “parece que o forte impacto do sequestro de Eichmann e os terríveis tes-
temunhos que foram ouvidos naquele tribunal estão perdendo o efeito”.147 Yoav acre-
ditava que se a Alemanha não modificasse os termos de suas leis, os demais países
europeus não se sentiriam inclinados a também mudar os seus respectivos termos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
BERGMANN, Werner; ERB, Rainer. Anti-Semitism in Germany: The Post-Nazi Epoch Since 1945.
Transaction Publishers, 1997. p.17.
147
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. p.8.
148
Ibidem.
149
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.8-9. [Original: If we
!
290
CAPÍTULO 4
!
Conforme relata o agente do Mossad, Cukurs demorou para ganhar sua confiança.
Certa vez, durante uma viagem a Porto Alegre, em outubro de 1964, ele conta que
Cukurs lhe mostrou uma arma que tinha levado na bagagem. Espantado com aquilo,
Kuenzle disse ter perguntado a Cukurs se ele o temia, ao que Cukurs teria respondido:
“Se você tivesse um nariz grande, então eu teria uma boa razão para ter medo. De
qualquer forma, deve-se estar sempre em alerta”. Essas desconfianças eram frequen-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
succeed in the operation we are now preparing, we’ll once again put the fear of death into the hearts of
tens of thousands Nazis war criminals. We’ll do everything in our capacity to make the rest of their
lives miserable. They will fear their own shadow. They will not dare to leave their homes, and will
have continuous nightmares of anonymous assassins, the offspring of their innocent victims, seeking
their revenge, They must not have one single moment of peace and tranquility until their last dying day
one earth! (…) And we’ll make sure that his execution, as well as the record of his past crimes, will
make the headlines of every newspaper in the world. This will not only instill fear in the escaped crim-
inals in hiding but, more importantly, it will sway public opinion to strongly oppose this deplorable
ideia of applying the Statue of Limitation to Nazi war crimes”.]
150
Ibidem, pp.9-11.
151
Ibidem, pp.48-57.
152
Ibidem, pp.76-85.
291
CAPÍTULO 4
!
tas. Certa vez, ambos estavam dentro de uma casa noturna em São Paulo. Ao longo da
conversa, o agente disse ter notado que Cukurs bebia lentamente. Kuenzle acredita
que o letão temia ser dopado ou envenenado. “Ao meu ver”, relatou, “Cukurs estava
sofrendo de um avançado estado de paranoia, o que só aumentava a sua cautela”.153
Nos últimos dois meses de 1964, o agente do Mossad diz ter preparado um longo
relatório. Neste, diz ter recomendado aos seus superiores que Cukurs fosse levado pa-
ra dentro de uma das casas que eles estariam avaliando como possível sede. Uma vez
dentro da casa, uma unidade tática estaria lá dentro, preparada. Depois de imobiliza-
do, leriam um veredito e o executariam. A proposta foi aprovada. Yoav informou que
a unidade teria cinco pessoas. Além de Meidad, encarregado de fazer Cukurs entrar na
casa, seriam os outros agentes escondidos dentro da casa: o próprio Yoav, Oswald
Taussing, Ariel e Dova’le. Além disso, outros dois agentes – Michael e Adi – cuidari-
am da parte mais operacional da missão.155 No dia 31 de dezembro de 1964, Kuenzle
preparou os últimos detalhes. Pediu a Cukurs que tirasse vistos de entrada para Mon-
tevidéu e Chile, os próximos países que visitariam para avançar nos negócios.156
Kuenzle retornou a São Paulo no dia 28 de janeiro de 1965. Assim que saiu da ae-
ronave, foi surpreendido: Cukurs estava no hangar na pista, sorridente, acenando para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.86-97.
154
Ibidem, pp.86-98.
155
Ibidem, pp.99-108.
156
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.99-108.
292
CAPÍTULO 4
!
o amigo austríaco que descia das escadas acopladas ao avião. Em sua mão, Cukurs
carregava uma câmera filmadora 8mm bastante comum na época. O objeto deixou
Kuenzle desorientado: “Eu estava totalmente convencido de que aquele era um outro
mecanismo de segurança de Cukurs, cujo objetivo era testar minhas mais honráveis
intenções”.157 Isso, no entanto, não comprometeu a operação e as coisas prosseguiram
conforme planejadas. Cukurs ainda acabou demorando para conseguiu os vistos de
turista. Mas no final de fevereiro tudo estava pronto para a viagem a Montevidéu.
No dia 23 de fevereiro de 1965, ainda pela manhã, Cukurs chegou ao Uruguai. Ku-
enzle o pegou de carro no aeroporto e fez uma rápida parada no hotel, onde o letão
deixou suas coisas. Depois, ambos seguiram rumo a casa em que supostamente seria
instalado o escritório do grupo. Essa casa ficava em um discreto bairro de Montevi-
déu, conhecido como Shangrilá. Tão logo chegou ao endereço, Kuenzle foi o primei-
ro a deixar o carro. Ele abriu a porta da casa, entrou e deixou que Cukurs fizesse o
mesmo. O agente do Mossad conta, então, o que se passou nos minutos seguintes:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
157
Ibidem, pp.108-109.
293
CAPÍTULO 4
!
pedimos de fazer isso. Nós nos jogamos contra ele. Yoav deixou es-
capar um silencioso gemido de dor. De repente, alguém que tinha um
martelo de construção e com ele acertou o lado direito da cabeça de
Cukurs. O sangue espirrou para todos os lados. O plano original era
imobilizar Cukurs, não matá-lo imediatamente. (...) Mas a tentativa
dele de alcançar sua arma encurtou nosso planejamento. Um de nós
colocou a arma na cabeça de Cukurs e atirou duas vezes. O silencia-
dor e o barulho de nossa luta abafaram completamente o som dos
disparos. As duas balas acabaram com a vida de Cukurs. Era terça-
feira, 23 de fevereiro de 1965, 12h30. 158
De acordo com Meidad, Yoav foi o único agente ferido na luta. Na tentativa de
impedir que Cukurs gritasse, colocou a mão em sua boca e foi fortemente mordido.
Segundo Meidad a mordida foi tão forte que comprometeu o movimento de um dos
dedos do agente de forma permanente. Dentro da jaqueta de Cukurs, os agentes en-
contraram o seu passaporte comparado e uma pistola italiana Beretta, 6.35mm. Seu
corpo foi colocado dentro de um baú de madeira, tendo afixado sob seu peito um pe-
daço de papel com o veredito que seria lido, conforme o plano original. O texto dizia:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
158
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.125-126. [Original: “It
took him a fraction of a second to become accustomed to the semidarkness in the room behind him
with a bang. The members of the team jumped Cukurs. One of them caught him from behind, in order
to execute the single downward blow he had practiced for so long. The others leapt at his sides. Cukurs
reacted very fast. Although he was nearly 65, he was in good shape, and the knowledge that this was a
life-or-death struggle obviously doubled his strength. He was fighting for his life. Despite being out-
numbered, Cukurs made a few swift movements and managed to shake off his attackers and go for the
door. He fought like a wild and wounded animal. He freed one hand, grabbed the door handle, and tried
to pull it open. We leaned against the door, trying to push him into the center of the room. The fear of
death gave him incredible strength. During the struggle, he tore the handle right off the door. ‘Let me
speak’, he yelled. And to this day I wonder why he yelled in German, and not in Latvian or Portuguesa.
These were the only words that reverberated in the room. Otherwise we fought silently, without words.
Cukurs’ thick-rimmed glasses fell on the floor in the mêlée. Despite the four of us trying to hold him
down, Cukurs almost managed to pull the gun out of his pocket. Bu we bet him to it. We threw our-
selves at him, and Yoav let out a quiet cry of pain. Suddenly someone had a builder’s hammer in his
hand, and with it hit the Nazi criminal right on his hand. Blood spurted everywhere. The original plan
had been to overpower Cukurs, but not kill him instantly. (…) But his attempt to reach for his gun
shortened the proceedings. One of us put a gun to Cukurs’ head, and pulled the trigger twice. The si-
lencer and the noise of our struggle completely swallowed the sound of the shots. The two bullets end-
ed Cukurs’s life. It was Tuesday, 23 February, 1965, 12:30 p.m.”]
294
CAPÍTULO 4
!
crimes, nós o condenamos a morte. Ele foi executado no dia 23 de
fevereiro de 1965 por “Aqueles que não esquecerão”.159
Depois disso, explica Meidad, os agentes limparam toda a cena do crime e fecha-
ram a casa. Os cinco deixaram Montevidéu em dois voos diferentes. Uma vez em se-
gurança, Adi fez uma chamada telefônica para várias agências de notícias da Alema-
nha. Anonimamente, relatou que um criminoso de guerra nazista fora liquidado em
Montevidéu por Aqueles que nunca esquecerão como vingança pelos horrores come-
tidos contra os judeus durante o Holocausto.160 Os dias passaram, porém, e os agentes
não viram nenhuma notícia nos jornais. Segundo Meidad, a informação não deve ter
sido levada a sério. Naquela época, afinal, muitos trotes do tipo eram passados rotinei-
ramente aos jornalistas alemães. Eles, então, escreveram um resumo da operação que
matou Cukurs e enviaram para agências de notícias de Düsseldorf, Bonn e Frankfurt.
Para reforçar a mensagem, fizeram ainda novos telefonemas. Desta vez, um editor
alemão da Reuters em Frankfurt levou a informação a sério e notificou um de seus
correspondentes em Montevidéu, no Uruguai. No dia seis de março, a polícia uru-
guaia, liderada pelo Comissário Otero, encontrou o corpo de Cukurs. Assim que en-
traram na casa, os policiais sentiram o cheiro do corpo em decomposição.161
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
159
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.125-126. [Original:
“VEREDICT: Considering the gravity of the crimes of which HERBERTS CUKURS is accused, nota-
bly his personal responsibility in the murder of 30.000 men, women and children, and considering the
terrible cruelty shown by HERBERTS CUKURS in carrying out his crimes, we executed him on 23
February 1965. By: “Those Who Will Never Forget”].
160
Ibidem, p.133.
161
Ibidem, pp. 133-134.
162
The New York Times, “Reports from Abroad”, 14/03/1965.
163
The Guardian, “Wanted war criminal’s body found”, 08/03/1965, p. 11.
295
CAPÍTULO 4
!
No início das investigações, havia mais perguntas do que repostas: quem assassina-
ra Cukurs? O corpo encontrado em Montevidéu era mesmo do aviador letão? Quando
tinha ocorrido a execução? O governo israelense estava por trás? Por que mataram
Cukurs? A falta de repostas logo levou a um sem número de especulações, especial-
mente por parte da imprensa. Muitos jornais, por exemplo, assumiram que Aqueles
que nunca esquecerão era o nome de uma organização antinazista e que a intenção de
seus agentes não era assassinar Cukurs, mas sequestrá-lo.167 Essa ideia foi defendida,
inclusive, pelo Comissário de Polícia de Montevidéu, Alejandro Otero, encarregado
das investigações no país. Otero tinha certeza de que se Cukurs não tivesse resistido
aos agentes, seria levado para Israel, da mesma forma que Eichmann.168 Essa possibi-
lidade, porém, é muito pouco provável. Os agentes que o mataram, como vimos, são
categóricos em afirmar que a execução estava programada desde o princípio. E há bo-
as razões para acreditaram que falavam a verdade. Não só pelo bilhete que foi encon-
trado na cena do crime, como também por todo o contexto histórico em que o caso
está inserido. Embora vários fossem os relatos contra Cukurs, a fragilidade ou a insu-
ficiência dessas evidências, que tanto tinha dificultado a expulsão/extradição de Cu-
kurs, poderia culminar em uma absolvição em caso de se fazer um julgamento. Eich-
mann era alemão e oficial da SS, um burocrata que trabalhou durante anos no seio do
Terceiro Reich. Seu nome estava em incontáveis documentos. Sua condenação era
certa. Com Cukurs, um cidadão letão, as coisas eram completamente diferentes. Ele
era um colaboracionista. Não era o homem que dava as ordens dentro do gueto ou que
assinava documentos. Para além das testemunhas, seria difícil reunir outro tipo de ma-
terial, especialmente pela dificuldade de acesso aos arquivos dos países comunistas.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
164
Diario de Avisos, “Nazis y judíos si chocan en Montevideo”, 11/03/1965, p. 1.
165
L’Express, “Celui qui a payé ses crimes“, 11/03/1965, p. 1.
166
El País, “Hallazgo macabro en el balneario de Shangrilá”, 07/03/1965, p. 1.
167
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p. 6.
168
Em 2012, com a ajuda do pesquisador Marcelo Silva, pude conversar pessoalmente com Otero, em
seu apartamento no bairro de Pocitos, em Montevidéu. Otero, uma figura emblemática da história re-
cente do Uruguai, sustenta a ideia de que havia, inclusive, um navio israelense aguardando o baú com
Cukurs.
296
CAPÍTULO 4
!
Com a morte de Cukurs, o imaginário político de uma rede nazista que conectava
Eichmann, Mengele, Cukurs, Bormann, entre outros, expandiu-se ainda mais. De to-
dos os grandes jornais, o Última Hora teve um papel de destaque na mitigação desta
imagem, escrevendo que Cukurs, ‘forçosamente, manteria contatos com grupos rema-
nescentes nazistas, atuando em diversos países, principalmente na Argentina, com o
grupo Taquara, responsável por atentados terroristas contra judeus”.173 Pinheiro Jú-
nior, também escrevendo pelo Última Hora, escreveu nessa mesma linha:
No dia 26 de março de 1965, três semanas após o corpo de Cukurs ter sido encon-
trado em Montevidéu, e cerca de dois meses antes da data de prescrição, o Bundestag
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
Jornal do Brasil, “Filho de Cukurs vê na trama agentes da URSS”, 09/03/1965, p. 8.
170
Jornal do Brasil, “Advogado do Rio nega que esteja envolvido”, 09/03/1965, p. 8.
171
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p. 6.
172
Última Hora, "Desaparecido outro oficial nazista", 12/03/1965, p. 7.
173
Última Hora, "Mataram Cukurs", 08/03/1965, p. 10.
174
Última Hora, "Até a consumação dos séculos", 11/03/1965, p.8.
297
CAPÍTULO 4
!
aprovou por 364 contra 96 votos o projeto de lei que estendia até 31 de dezembro de
1969 o prazo dentro do qual poderiam ser instaurados processos contra criminosos
nazistas.175 Era uma mudança parcial, mas real. O assassinato de Cukurs não foi cer-
tamente a principal força por trás da decisão das autoridades alemãs, mas também não
podemos descartar a possibilidade de que ele tenha sido levado em consideração. Em
suas memórias, Meidad, por sua vez, tem certeza do peso de sua operação:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
Estado de S.Paulo, “Bonn: extensão do prazo de prescrição dos crimes nazistas”, 27/03/1965, p. 8.
176
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Londres: Mitchell Vallentine & Company, 2004. p.141. [Original:
“The photograph of Cukurs’ corpse, cover in blood and stuck inside a trunk, with the verdict of ‘Those
Who Will Never Forget’ stuck to its chest, was imprinted in the minds of the participants. I have no
doubt that it persuaded some of the floating votes to come down on the side of those who opposed the
implementation of the Statue of Limitations. (…) The world decided, and not least due to the operation
of ‘Those Who Will Never Forget’, that there can be no Statute of Limitation and no clemency for
criminals like Cukurs”.]
177
Jornal do Brasil, “Polícia uruguaia ignora se o corpo achado é de Cukurs, 09/03/1965, p.8.
178
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p.6.
298
CAPÍTULO 4
!
Quanto ao Estado brasileiro, restava quase nada a ser feito a respeito. Cukurs não
tinha conseguido a nacionalidade brasileira e seus crimes não tinham sido cometidos
no Brasil. Seu assassinato havia ocorrido em um país estrangeiro, ele viajara esponta-
neamente e com um passaporte falso. Se o maior medo das autoridades brasileiras era
que uma ação como aquela ocorresse dentro de seu território, não havia motivos para
se preocupar a partir daquele momento. Sua soberania continuava intacta. Cabia ape-
nas ao Uruguai conduzir as investigações. Na época, nem o Ministério da Justiça,
nem o Ministério das Relações Exteriores receberam qualquer pedido de informação.
Imagem&58:&Baú!no!qual!o!corpo!de!Cukurs!foi!deixado,!em!Montevidéu.!Fonte:!acervo!pessoal!do!autor.!
299
CAPÍTULO 4
!
quer menção ao assassinato de Herberts Cukurs. Por outro lado, havia uma quase ob-
sessão em saber o que faziam Goulart e seu principal aliado, Leonel Brizola.179
O que houve ainda em termos oficiais nos dias e semanas seguintes à descoberta da
morte de Cukurs foi a colaboração entre a polícia uruguaia e a brasileira. Como o cri-
me envolvia mais de um país, com repercussão internacional, a Interpol também aca-
bou se envolvendo no caso. A pressão por respostas era grande na época, principal-
mente depois que passaram a circular rumores de que um funcionário da embaixada
israelense no Uruguai, Menahem Barbasch, estava envolvido no crime. Se aquele tipo
de especulação se confirmasse, um incidente diplomático muito mais grave do que o
observado entre Argentina e Israel poderia acontecer agora entre Israel e Uruguai.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
Cf. FERNANDES, Ananda Simões. A ditadura brasileira e a vigilância sobre seu “inimigo interno”
no Uruguai (1964-1967): os órgãos de repressão e de espionagem. IX Encontro Estadual de História.
Associação Nacional de História. Seção Rio Grande do Sul - ANPUH-RS. Vestígios do Passado - a
história e suas fontes. 2008.
180
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Carlos Alvarez Editor, 2010. pp.155-160.
300
CAPÍTULO 4
!
judeus. Porém, disse, tomou parte na morte de traidores, entre os quais encontravam-
se muitos judeus. 181
Imagem 59: Agentes da Interpol no Brasil entrevistam a família Cukurs. Fonte: Última Hora, 1965.
O nome de Anton Kuenzle não demorou a aparecer nos jornais. Quando as autori-
dades policiais conversaram com a família de Cukurs, Kuenzle foi apontado como o
provável executor do crime. Foi questão de pouco tempo para que uma foto de seu
rosto corresse o mundo. Esta foto foi retirada da filmagem em Super 8 que Cukurs
fizera de Kuenzle ao descer do avião, em outubro de 1964. Cukurs entregou o rolo do
filme a Gunnars. Se algo lhe acontecesse! em alguma das viagens, Gunnars deveria
entregar o material à mídia, pois ele acreditava que Kuenzle seria o culpado. Posteri-
ormente, em seu livro Meidad descreveria a desconfiança permanente de Cukurs, que
teria feito o registro propositalmente como forma de se proteger ou de deixar provas
do provável autor se houvesse crime. Assim que a notícia da morte de Cukurs chegou
ao Brasil, Gunnars entregou o filme ao repórter Orlando Criscuolo, do Diário de No-
tícias, de São Paulo. Criscuolo, por sua vez, recorreu a colegas repórteres de O Cru-
zeiro, a fim de que fosse revelado. O laboratório da revista fez a revelação e O Cru-
zeiro, em parceria com o jornal, deu em primeira mão o rosto rechonchudo, calvo e
com óculos de armações pretas que pertenciam ao agente Anton Kuenzle182
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
181
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Carlos Alvarez Editor, 2010. p.168.
182
O Cruzeiro, “Cukurs filma seu assassino”, 20/03/1965 pp-20-33.
301
CAPÍTULO 4
!
Kuenzle, Taussing e nenhum dos outros agentes envolvidos foram presos. Com o
tempo, o assunto foi deixando o noticiário diário. Somente em 2004, com a publica-
ção de The Execution of the Hangman of Riga se soube dos detalhes da operação. O
livro é uma versão oficial do Mossad. Porém, nem tudo foi contado na obra. Mena-
hem Barbasch, funcionário da Embaixada israelense em Montevidéu, por exemplo,
realmente participou da operação, como revela Marcelo Silva. Em 1991, Barbasch
declarou sua participação ao jornal israelense Maariv, afirmando: “O povo judeu de-
cidiu matar esse nazista e para mim foi uma ordem divina. (...) Sua morte não me cus-
tou nenhum problema espiritual e dormi tranquilo depois disso”.186
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
183
Correio da Manhã, “Manifestações antissemitas por Cukurs”, 14/03/1965, p.3
184
Última Hora, "Nazismo renasce firme no Brasil", 02/04/1965, p.1.
185
Jornal do Brasil, “Médicos dizem que Cukurs foi morto a pancadas de martelo”, 10/03/1965,..8
186
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Montevidéu: Carlos Alvarez Editor, 2010, p.168.
302
CONCLUSÃO
O objetivo principal deste trabalho foi compreender como as autoridades governa-
mentais brasileiras se posicionaram diante do Caso Cukurs. O caso foi emblemático,
pois, pela primeira vez no pós-guerra, colocou-se em tela de juízo a capacidade do
Estado brasileiro de tratar uma questão que, mesmo no cenário internacional, engati-
nhava: o desvelamento dos crimes contra a humanidade e o cerco a seus perpetrado-
res.
303
endeu até mesmo a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. A vulnera-
bilidade jurídica de tais materiais no caso – reconhecida pela própria federação e pelo
Congresso Judaico Mundial – fez com que a entidade judaica carioca optasse por não
enviar o material original ao Ministro da Justiça, conforme este havia previamente
solicitado. E este foi apenas um exemplo das muitas dificuldades encontradas pela
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. Seus representantes, apesar de
demonstrarem enorme dedicação, também não conseguiram obter do Foreign Office a
validação do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos. Mais
tarde, em outro episódio que geraria enorme frustração para os dirigentes da Federa-
ção, Friedrich Brassloff, assessor jurídico do Congresso Judaico Mundial em Londres,
informou-lhes que o mencionado comitê tinha durado apenas seis meses, que não fora
um órgão oficial e que não fora tão importante no cenário europeu daquele momento.
304
damentalmente política, o Ministério da Justiça deu procedimento a suas sindicâncias
e contrariou a tese, demasiadamente simples e esquemática, mas ainda hoje muito ar-
rolada, de que Cukurs foi arbitraria e imoralmente protegido pelo governo brasileiro.
Em terceiro lugar, ressalto um outro fator que foi decisivo para deixar as autorida-
des brasileiras ainda mais em dúvida quanto ao passado criminoso de Cukurs: o resul-
to das diligências empreendidas pelo Ministério das Relações Exteriores. Com essas
diligências, o governo brasileiro desejava confirmar o conteúdo das acusações que
eram feitas a Cukurs no Brasil. O resultado, no entanto, foi inconclusivo. As autorida-
des consulares brasileiras no exterior informaram que Cukurs tinha imigrado para o
Brasil legalmente. Tinha seus documentos em ordem e utilizava seu nome verdadeiro
e este não constava em listas oficiais de crimes de guerra. O diálogo com as autorida-
des governamentais estrangeiras é um dado realmente fundamental para a compreen-
são do caso – que foi confuso, sem respostas ou com recebimento de informações
equivocadas. A consulta feita às autoridades francesas, americanas e alemães também
não demonstraram que Cukurs fora criminoso de guerra nazista. No entanto, os ame-
ricanos forneceram informações incompletas, erradas ou não checadas ao governo
brasileiro, o que tornou a apuração brasileira confusa e muito mais lenta. Mais pro-
blemático e decisivo ainda foi o diálogo estabelecido com o Foreign Office. As auto-
ridades britânicas confirmaram que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas
nos Países Bálticos tivera um status não oficial e que nada tinha sido encontrado neste
comitê sobre Herberts Cukurs – o que não era verdade. Além disso, os britânicos ava-
liaram que um comandante de gueto não poderia ser considerado um criminosos de
guerra a priori – coisa que Cukurs nem mesmo tinha sido. Tudo isso fez com que as
autoridades brasileiras redobrassem sua desconfiança frente aos depoimentos contra
Cukurs e frente à própria intenção da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro. Para encerrar a participação britânica no caso, o Foreign Office deixou de
responder, de forma deliberada, o pedido formal de informação do governo brasileiro
sobre Cukurs. O órgão britânico usou, como vimos, uma estratégia chamada wait and
see. Vale destacar, contudo, que tal posicionamento do governo britânico nada têm a
ver com uma estratégia ardilosa para favorecer nazistas, mas espelhava o pouco caso
que este fez quanto ao pedido do Brasil e a sua prioridade naqueles tempos de Guerra
Fria, estando bem mais centrado no combate ao comunismo do que em criminosos
nazistas, em especial, dos países bálticos agora pertencentes à União Soviética.
305
Sobre tal aspecto, devemos ter em mente que a questão dos crimes de guerra e dos
perpetradores nunca foi prioridade na agenda de qualquer governo, principalmente no
imediato pós-guerra. O governo brasileiro não fugiu à regra. Isso tornou o processo de
investigação por vezes demorado e bastante burocratizado, o que talvez explique o
fato do Ministério das Relações Exteriores nunca ter tentado contatar os sobreviventes
do Holocausto que testemunharam contra Cukurs. Atualmente, esta possibilidade cer-
tamente seria cogitada e provavelmente levada à cabo. Mas estamos falando de épo-
cas bastante distintas. Ainda assim, tais investigações ocorreram e não foram arbitrá-
rias. Basearam-se, via de regra, nos limites dos elementos técnicos e políticos.
Aliada a esse aspecto – da não prioridade dos governos com relação à situação dos
criminosos nazistas – analisei ainda a persistência de ideias antissemitas nos pareceres
do Ministério da Justiça. No cargo de Consultor Jurídico, por exemplo, encontramos
Anor Butler Maciel, que na juventude tinha se destacado pela militância católica con-
servadora, integralista e antissemita. Além dele, vimos também o antissemitismo nos
discursos de vários outros funcionários da pasta da justiça. Uma análise pouco cuida-
dosa, feita a partir de documentos isolados ou de trechos “estrategicamente” selecio-
nados de pareceres jurídicos, nos levaria a crer que o antissemitismo foi a força orga-
nizativa e preponderante na entrada e na permanência de Cukurs no Brasil. Contudo,
não podemos dizer que esses fatores foram responsáveis pelo posicionamento do Es-
tado brasileiro no caso em questão. Em primeiro lugar, porque, agora, sabemos o peso
que tiveram os problemas relacionados à construção da instrução jurídica contra Cu-
kurs e do ruído existente na comunicação com autoridades governamentais de outros
países. Em segundo lugar, porque precisamos reconhecer a ambivalência daqueles
funcionários do Ministério da Justiça. O ex-integralista Anor Butler Maciel, por
exemplo, foi responsável em um momento por solicitar uma investigação sobre a situ-
ação da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro (até onde pude apurar,
nunca realizada) quando os retornos do exterior apontavam para a não criminalização
de Cukurs. Em outro, quando o resultado das investigações poderia justificar o arqui-
vamento do caso, orientou seu ministério a prosseguir. Neste sentido, vale mencionar
o que Jeffrey Lesser chama de uma “identidade essencialista”:
306
fala uma coisa racista, preconceituosa, antissemita, então, a pessoa é
racista, preconceituosa, antissemita. Eu, em todos os meus trabalhos,
tenho uma ideia diferente de identidade. Eu não sou “essencialista”.
Em minhas pesquisas, os meus sujeitos sempre possuem muitas iden-
tidades. São filhos em um momento, pais em outro. São estudantes
em um momento, trabalhadores em outro. Eu acho isso supernormal,
super-humano. Então, o fato de alguém falar uma coisa não quer di-
zer que ele é essa coisa. (...) Perguntas como “o governo Vargas é an-
tissemita ou não” é uma pergunta que não funciona. O que quer dizer
o “Governo Vargas”? Se eu definir todo o Governo Vargas como an-
tissemita, quer dizer que até os judeus que nele trabalharam eram an-
tissemitas? Qualquer pessoa, em qualquer setor do governo também
foi? Para mim, esta não é uma pergunta sofisticada.1
Lesser nos faz refletir sobre a grande armadilha que é explicar as ações dos indiví-
duos e das instituições que representam – em nosso caso o Estado ou suas autarquias
– a partir de um conceito de identidade monolítica, inflexível, absoluta, coerente ou
essencialista, como ele próprio denomina. As pessoas, o autor nos lembra, são contra-
ditórias, multifacetadas, nem sempre coerentes. Por isso, aqueles que operam com es-
te conceito de identidade talvez se surpreendam com a decisão final do Ministério da
Justiça em não ter concedido a naturalização de Cukurs. Se a decisão de conceder a
nacionalidade brasileira a um estrangeiro é uma decisão em última instância política,
como um dos funcionários daquele ministério em certo ponto do caso indicou, essa
decisão política certamente não favoreceu Cukurs. E a importância de tal decisão es-
teve em permitir que até o final de sua vida no Brasil o letão estivesse sujeito à um
pedido de extradição, pedido este que nunca chegou, fosse por falta de vontade políti-
ca de representante da União Soviética ou da Alemanha Federal, cujas decisões neste
terreno durante muito tempo foram morosas e submissas à lógica da Guerra Fria.
Mais do que iluminar o próprio caso, acredito que os resultados aqui alcançados
nos permitem reflexões um pouco mais dilatadas. Nas últimas décadas, desde o final
da Segunda Guerra Mundial, se tornou dominante na imprensa, na cultura de massa e
até mesmo em alguns círculos historiográficos a ideia de que o Brasil acobertou indis-
criminadamente criminosos nazistas. O país teria se tornado, logo depois da Argenti-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Entrevista ao Café História. Disponível em: <http://cafehistoria.ning.com/page/entrevista-com-
jeffrey-lesser-identidades-negociadas>. Data: 12/11/2013. Acesso em: 20/07/2015.
307
na, um privilegiado paraíso para esses foragidos da justiça internacional. Essa fórmula
explicativa, que até agora se baseou muito mais em especulações do que em pesquisa,
não dá conta de explicar o Caso Cukurs. E logo aquele que foi o primeiro caso do gê-
nero no Brasil, aquele que mais gerou críticas ao governo e o que mais tempo perma-
neceu na esfera pública. Neste caso, a fórmula simplória, reducionista, denuncista e,
não raro, militante com a qual nos habituamos a pensar o tema no Brasil contrasta
com uma realidade altamente complexa, repleta de nuances, contradições. O Caso
Cukurs é, por fim, exemplar na quantidade de ambuiguidades e forças atuantes. Não
vemos aqui a “proteção” ou “conivência” do governo esquemática e absoluta de que
nos falam jornalistas, cineastas, escritores e historiadores. O Caso Cukurs, em outras
palavras, nos faz desconfiar, questionar e desafiar tal perspectiva. Sua análise sinaliza
para o risco de interpretações generalistas, não raro míticas, além de revelar atores e
contextos geralmente esquecidos ou subestimados deste universo.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2003. pp. 6-7.
308
que valoriza o sujeito, as instituições e o acontecimento como parte da tessitura da
historiografia.
Por fim, gostaria de registrar que este trabalho é uma contribuição que se insere
dento de um campo historiográfico que ainda dá seus primeiros passos. Sabemos ain-
da muito pouco sobre a relação entre o Brasil e criminosos nazistas, entre o Brasil e a
questão dos crimes de guerra. Como vimos, os historiadores permaneceram afastados
durante muito tempo deste tema e deste problema. Assim, encaro o Caso Cukurs co-
mo uma abertura para um campo valioso da história do tempo presente, cujas conclu-
sões ainda são, naturalmente, limitadas. Mas não há como ser diferente neste momen-
to. Em muitos aspectos, esse é um trabalho de mapeamento, de construção de bases,
de levantamento de dados e referências que podem e devem ser confrontados, a fim
de se buscar padrões, tendências, diferenciações. É assim, afinal de contas, que a his-
toriografia se constitui. Acredito que este trabalho, enfim, sirva como um ponto de
partida para novas teses e para despertar o interesse do público em geral pelo tema.
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6.8 Veja
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7.2. A Noite
7.3. A Notícia
7.4. A Vanguarda
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7.16. Gazeta de Notícias
7.24. O Globo
7.25. O Jornal
7.27. O Radical
7.28. O Semanário
8. ENTREVISTAS
9. OUTROS
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