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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

O “HOMEM DOS PEDALINHOS”

HERBERTS CUKURS, O ESTADO BRASILEIRO

E A QUESTÃO DOS CRIMINOSOS NAZISTAS NO

BRASIL DO PÓS-GUERRA (1945-1965)

BRUNO LEAL PASTOR DE CARVALHO

RIO DE JANEIRO

JULHO – 2015
O “HOMEM DOS PEDALINHOS”

HERBERTS CUKURS, O ESTADO BRASILEIRO


E A QUESTÃO DOS CRIMINOSOS NAZISTAS NO
BRASIL DO PÓS-GUERRA (1945-1965)

[VERSÃO CORRIGIDA]

BRUNO LEAL PASTOR DE CARVALHO

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Pro-

grama de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos necessários à ob-

tenção do título de doutor em História Social.

Linha de pesquisa: Sociedade e Política

Orientadora: Dra. Monica Grin

RIO DE JANEIRO

JULHO - 2015

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Dou-


torado do Programa de Pós-Graduação em História
Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
UFRJ como parte dos requisitos necessários à obten-
ção do título de doutor em História Social.

Aprovada por:

Profª. Drª. Monica Grin (UFRJ) – Presidente/Orientadora

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Fabio Koifman (UFRRJ)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva (UFRJ)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Jeffrey Lesser (Emory University)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Luis Edmundo de Souza Moraes (UFRRJ)

_____________________________________________________________________

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MEMBROS SUPLENTES

Profª. Drª. Silvia Barbosa (UFRJ)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Michel Gherman (UFRJ)

_____________________________________________________________________

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RESUMO

Este trabalho examina o posicionamento das autoridades governamentais brasileiras


diante do primeiro grande caso público de um alegado criminoso de guerra nazista no
Brasil do pós-guerra, o “Caso Cukurs”. Pretende ainda compreender quais e como de-
terminados contextos, campos políticos, atores sociais e político-institucionais possibili-
taram esse posicionamento. O Caso Cukurs colocou em tela de juízo, pela primeira vez,
já nos primeiros anos do pós-guerra, a capacidade do Estado brasileiro de tratar uma
questão que no cenário internacional ainda engatinhava: o desvelamento dos crimes
contra a humanidade e o cerco a seus perpetradores. Desta maneira, espera-se contribuir
não apenas para o exame de um caso por si só dotado de relevância histórica, mas tam-
bém como ponto de partida para se pensar criticamente as imagens criadas nas últimas
décadas sobre a questão dos criminosos nazistas no Brasil. Entre os personagens sobre
os quais esta tese se debruça estão o Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o Mi-
nistério das Relações Exterior e a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Criminosos Nazistas – Estado brasileiro – Herberts Cukurs.

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ABSTRACT

The main objective of the present study is to determine how the Brazilian government
authorities handled the first major public case of an alleged Nazi war criminal in Brazil
during the postwar years: the Cukurs’ Case. This work also has the objective of under-
standing the specific contexts, the social and political-institutional actors implicated in
this case. In mass culture and media, the immigration and the presence of the Latvian
Herberts Cukurs in Brazil has been taken very often as an example of the supposed pro-
tection given to Nazi war criminals by the Brazilian government in the postwar years. In
addition, the case has been analyzed from comparative perspective, alongside other such
cases, in Brazil and abroad. This work also intends to investigate to what extent this
analysis finds or doesn’t find collaboration and support in the documents. Among the
main authorities focused in this thesis are the Ministry of Justice and Internal Affairs,
the Ministry of Foreign Affairs and the Israeli Federation of Rio de Janeiro.

Keywords: Nazi War Criminals – Brazilian government – Herberts Cukurs

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

ABI – Associação Brasileira de Imprensa

ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

AHI – Arquivo Histórico do Itamaraty

AHJB – Arquivo Histórico Judaico Brasileiro

BIBSA – Instituto Biblioteca Israelita Sholem Aleichem

CAAA – Comisión Investigadora de Actividades Antiargentinas

CEANA – Comisión para el Esclarecimiento de las Actividades Nazis en la Argentina

CIA – Central Intelligence Agency (Agência Central de Inteligência)

CIC – Conselho de Imigração e Colonização

CJM – Congresso Judaico Mundial

DEOPS – Departamento de Ordem Política e Social

DOU – Diário Oficial da União

EUA – Estados Unidos da América

FHC – Fernando Henrique Cardoso

FIERJ – Federação Israelita do Rio de Janeiro

FOIA – Freedom of Information Act

HBO – Home Box Office

HICEM – HIAS-CIA-EMIGDIRECT

IBPS – Instituto Brasileiro de Pesquisa Social

KWI – Kaiser Wilhelm Institute

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MJNI – Ministério da Justiça e Negócios Interiores

MMBB – Missão Militar Brasileira em Berlim

MRE – Ministério das Relações Exteriores

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NBC – National Broadcasting Company

NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei

ODESSA – Organisation der ehemaligen SS-Angehörigen

OENG – Organização das Entidades Não Governamentais

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PSD – Partido Social Democrático

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

RKO – Reichkommisariat Ostland

RSHA – Reichssicherheitshauptam

SD – Sicherheitsdienst

SS – Schutzstaffel

STF – Supremo Tribunal Federal

TMI – Tribunal Militar Internacional

UDN – União Democrática Nacional

UH – Última Hora

URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

UNE – União Nacional dos Estudantes

UNWCC – The United Nations War Crimes Commission

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1: Tirol do Sul............................................................................................. 40

Imagem 2: Judeus questionam demora na extradição da Walter Rauff.................... 42

Imagem 3: Klaus Barbie em julgamento na França................................................. 44

Imagem 4: O Globo repercute a publicação do Livro Azul...................................... 46

Imagem 5: Ficha consular de Herberts Cukurs......................................................... 51

Imagem 6: Ficha consular de Jacques de Bernonville.............................................. 57

Imagem 7: Ficha consular de Robert Stiglics............................................................ 61

Imagem 8: Última Hora anuncia caçada a Martin Bormann no Brasil..................... 65

Imagem 9: Ficha consular de Franz Stangl............................................................... 69

Imagem 10: Capa do livro “O Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich”.................... 77

Imagem 11: Ficha consular de Gustav Wagner........................................................ 82

Imagem 12: Notícia do Estado de S.Paulo sobre criminosos nazistas...................... 86

Imagem 13: Cukurs entre outros pilotos da Divisão de Aviação Letã...................... 100

Imagem 14: Cukurs dentro de seu avião, o C-3........................................................ 102

Imagem 15: Miniatura de avião do voo Letônia-Gâmbia ....................................... 103

Imagem 16: Multidão recebe Cukurs na Letônia...................................................... 104

Imagem 17: Charge de Cukurs em revista letã......................................................... 105

Imagem 18: Fotos de Cukurs durante a viagem à Gâmbia...................................... 105

Imagem 19: Deportação de letões pelos soviéticos................................................... 107

Imagem 20: Letões dão boas-vindas a nazistas......................................................... 108

10
Imagem 21: Imagem do Gueto de Riga.................................................................... 109

Imagem 22: Passaporte falso de Miriam Kaicners.................................................... 113

Imagem 23: Passaporte falso de Miriam Kaicners ................................................. 114

Imagem 24: Miriam Kaicners e a família Cukurs.................................................... 115

Imagem 25: Miriam Kaicners e a família Cukurs.................................................... 115

Imagem 26: Miriam Kaicners e a família Cukurs.................................................... 116

Imagem 27: Documento de identidade de Miriam Kaicners ................................... 117

Imagem 28: Documento de deslocamento de Miriam Kaicners.............................. 118

Imagem 29: Miriam Kaicners e Cukurs em Marselha............................................. 120

Imagem 30: Viagem à bordo do Cabo de Buena Esperanza.................................... 121

Imagem 31: Política imigratória na imprensa........................................................... 123

Imagem 32: Ficha consular de Miriam Kaicners...................................................... 128

Imagem 33: Reportagem sobre os pedalinhos da Lagoa........................................... 134

Imagem 34: Reportagem sobre os pedalinhos da Lagoa.......................................... 136

Imagem 35: Reportagem sobre os pedalinhos da Lagoa.......................................... 136

Imagem 36: Cukurs apontado como criminoso de guerra na imprensa.................... 150

Imagem 37: Notícia da depredação dos pedalinhos.................................................. 153

Imagem 38: Imprensa critica depredação dos pedalinhos......................................... 160

Imagem 39: O Globo destaca intervenção do Itamaraty........................................... 165

Imagem 40: A imprensa pressiona pela “expulsão do indesejável”.......................... 167

11
Imagem 41: Defende-se o Homem dos Pedalinhos – Revista da Semana................ 170

Imagem 42: Depoimento de Rafael Schub................................................................ 176

Imagem 43: Imprensa noticia chegada de provas contra Cukurs.............................. 180

Imagem 44: Charge de Cukurs no Tribuna da Imprensa.......................................... 196

Imagem 45: Constantino entrega material a Café Filho............................................ 198

Imagem 46: Anor Butler Maciel em foto do Última Hora........................................ 200

Imagem 47: Matéria de Edmar Morel contra Cukurs............................................... 235

Imagem 48: Eichmann em O Globo.......................................................................... 237

Imagem 49: !Repúdio a cidadania de Cukurs no jornal Diário da Noite................... 240

Imagem 50: Carrasco nazista quer ser judeu, diz Diário da Noite............................ 242

Imagem 51: O Estado de S.Paulo destaca acusações de Cukurs............................... 247

Imagem 52: Charge antissemita na Letônia............................................................. 249

Imagem 53: Agentes da Polícia de São Paulo protegem família Cukurs.................. 253

Imagem 54: Cukurs é destaque em reportagem da Folha de S.Paulo em 2006........ 257

Imagem 55: Participação de Cukurs na TV é anunciada pela imprensa................... 264

Imagem 56: Lista de criminosos em Cukurs figura.................................................. 275

Imagem 57: Imprensa diz ter recomeçada a caça a Cukurs no Brasil....................... 282

Imagem 58: Baú em que o corpo de Cukurs foi deixado após morto....................... 299

Imagem 59: Agentes da Interpol no Brasil após a morte de Cukurs......................... 301

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QUADROS E TABELAS

Quadro 1: comparação entre CEANA e comissão brasileira sobre nazistas............. 94

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AGRADECIMENTOS
Você só descobre realmente que uma tese de doutorado é um trabalho coletivo quando
chega aos agradecimentos. Muita gente boa me ajudou a elaborar este trabalho. Muita
gente mesmo: no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília, em Montevidéu, em Riga,
em Nova York, em Lisboa, em Berlim, em Israel e em Londres. Ufa! Se essa tese foi
concluída é porque pessoas queridas se importaram comigo nos últimos quatro anos em
todos esses lugares incríveis. A tarefa é difícil, mas vou tentar lembrar de todos.

Inicialmente, agradeço a minha amiga e orientadora, Monica Grin. Aprendi e aprendo


demais com você, Monica. Ao escrever essas palavras, olho para trás, lá para o início do
doutorado, e vejo como cresci profissionalmente neste período. Devo muito disso a vo-
cê, que sempre me incentivou, confiou no meu instinto, corrigiu meus erros, me deu
inúmeras oportunidades. Acredito muito no seu julgamento. Suas intervenções me de-
ram confiança e tranquilidade desde o início da pesquisa. De um mero subtítulo até a
estrutura da redação. Acho que uma boa orientação passa justamente por aí: pela cum-
plicidade, confiança, sinceridade e respeito. Obrigado mesmo, Monica.

Aos professores Luis Edmundo de Souza Moraes e Fabio Koifman, também tenho uma
dívida de gratidão e tanto. E não digo isso apenas pelo nosso encontro na qualificação,
mas pelos encontros anteriores e posteriores a ela, formais e informais, combinados e
fortuitos. Vocês me acompanharam em vários momentos importantes, sempre atentos e
solícitos aos meus dilemas. Sou superfã de vocês. Aos professores Francisco Carlos
Teixeira da Silva e Jeffrey Lesser, agradeço muito por estarem comigo na defesa. É uma
honra contar com vocês nesse momento tão importante da minha carreira. Não tenho a
menor dúvida de que escolhi as pessoas certas para avaliarem meu trabalho.

Agradeço aos meus colegas de NIEJ/UFRJ: Leonel Caraciki, Felipe de Menezes Silva,
Bruna Rodrigues, Leonardo Perin Vichi, Fernanda Pissurno e, especialmente, a Michel
Gherman por traduções, contatos, dicas e sugestões. Dos meus alunos na graduação,
agradeço a Carol Mendes pela valiosa ajuda na Biblioteca Nacional. Não posso esque-
cer também dos amigos de PPGHIS/UFRJ, turma 2011, que compartilharam comigo
muitos bons momentos nesses últimos anos. Um especial obrigado ao amigo, consultor,
companheiro de viagens, festas e jogos do Mengão no Maracanã, Zózimo Trabuco. E
que eu não me esqueça de outros queridos historiadores e historiadoras espalhados por
aí e com os quais dividi sofrimentos, expectativas e, principalmente, muitas alegrias:

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Felipe Teixeira, João Teófilo, Renata Brotto, Mariana Damasco, Rodrigo Maia e Letícia
Pumar. Obrigado pelos almoços, cervejas, conversas, festas e tudo mais.

Algumas pessoas me ajudaram a traduzir documentos de línguas que eu não domino. E


isso me ajudou pra caramba. Nas traduções do alemão, obrigado ao meu grande amigo
Fabio Silveira, companheiro desde dos (bons) tempos de ECO, a Jorge Steimback, do
IH-UFRJ, e a Leonardo Perin Vichi, camarada de NIEJ/UFRJ. Agradeço demais tam-
bém a Henrique Samet pela rápida e incrível tradução da documentação em hebraico.
Todas essas traduções foram muito importantes.

Adoro pesquisar. E nesse doutorado encontrei um objeto que me permitiu explorar o


máximo de várias instituições. Gostaria de agradecer a algumas pessoas que tão bem me
receberam e continuam me recebendo nesses lugares: Johenir Jannotti e Paulo Knauss
do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Lúcia Chermont do Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro (AHJB), Sarita Schafel da Federação Israelita do Rio de
Janeiro (FIERJ) e Rosiane Graça Rigas Martins do Arquivo Histórico do Itamaraty
(AHI-RJ). De uma maneira geral, agradeço aos funcionários do Museu Judaico do Rio
de Janeiro, do Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB), do Arquivo Nacional, da
Biblioteca Nacional, da Federação Israelita de São Paulo e da Associação Scholem
Aleichem (ASA). Devo também meu muito obrigado a Ilya Lensky, do Museum "Jews
in Latvia”. Lensky me alertou para as valiosas fontes do Yad Vashem que uso ampla-
mente nesta tese. No próprio Yad Vashem, devo muito a Avraham Milgram pelo envio
mais do que urgente desse material. Sem essa ajuda, esse trabalho não seria concluído a
tempo. Agradeço ainda a Marcos Meinerz, pelos papos, dicas e trocas de informações, e
a Felipe Cittolin Abal, por me enviar sua dissertação. E para encerrar esse parágrafo, um
obrigado muito especial a Helga, filha de uma das personagens desta tese. Helga com-
partilhou comigo suas dúvidas, interesses, informações, documentos pessoais e me deu,
desde o início de nosso contato, total suporte à realização dessa pesquisa. Adorei nosso
encontro em Nova York, em dezembro de 2014. Espero poder encontrá-la mais vezes.

Um “obrigado” também às pessoas que me deram entrevistas, história viva presente


nesta tese: Sylvio Kelner, Flora Strozenberg, Marcus Shorr, Aleksander Laks, Marcos e
Molka Waimberg. E ainda há aqueles que me acolheram fora do Rio de Janeiro: Igor
Gak em Berlim, Ronaldo Gurgel Pereira em Lisboa, Marcelo Silva em Montevidéu,
Maurício e Larissa em São Paulo, Márcia e Marcos em São Paulo, Kado e Tati em Bra-
sília, Alexandro Busko Valim em Florianópolis.

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Pessoas a quem devo agradecer por me ajudarem de mil e uma formas: Taís Campelo,
Jurandir Malerba, Carlos Fico, Andrea Casa Nova Maia, Manolo Florentino, Samuel
Scolnicov, Hugo Wizenberg, Gabriela Costa, Ilana Strozenberg, Aivars Stranga, Maris
Goldmanis, Marcos Chor Maio.

Um muito obrigado ao CNPq pela bolsa que me foi concedida. É muito bom contar com
um país que investe em seus pesquisadores. Não há avanços sem ciência e tecnologia.

Agradeço à família que ganhei nos últimos anos: Ruth, “Comandante” Jonathas, Xonso
(tá me ouvindo?), Biancão, Tito Teté, Tia Kátia, Ingrid, David e Vovó Maria. Toda essa
turma acompanhou em cada momento dessa tese, sobretudo os difíceis. Todo dia torce-
ram por mim e entenderam as minhas eventuais ausências. Valeu, galera. Acabou!

Agradeço aos meus pais por terem feito de tudo para que eu chegasse até onde eu che-
guei. Acho que ninguém em nossa família se tornou doutor. Nada mau para aquele me-
nino que foi reprovado duas vezes seguidas na antiga quinta série, não acham? Obrigado
a você, Regina, e a você, Serafim, pelos sacrifícios que só nós sabemos: do suco de gro-
selha na escolinha ao curso pré-vestibular. Um obrigado também ao meu irmão Fábio
Leal, sujeito talentoso e que, tal como eu, possui um milhão de inquietações. Um beijo
para minha avó e minha tia, pessoas que se foram durante essa jornada, mas que ainda
enchem meu coração de felicidade. Dedico essa tese também a vocês duas.

Finalmente, agradeço ao amor da minha vida, Ana Paula. Você esteve comigo em cada
segundo. Nossa, como precisei de você nesse doutorado! Você leu cada linha que escre-
vi. Sugeriu estruturas, debateu conteúdo, fez revisão editorial. Acalmou nosso Xurupi
quando ele tentava arrancar as teclas do meu teclado como se não houvesse amanhã (ele
fazia de tudo para chamar minha atenção). Além de tudo isso, você foi a pessoa que
soube me acalmar, que teve paciência nos meus momentos de fraqueza, de desespero,
de solidão, a pessoa que cuidou de tudo. Obrigado por compreender o doutorando que
habitou nossa casa entre 2010 e 2015. Essa tese não seria possível sem a sua ajuda. Vo-
cê foi incrível. Obrigado por ser quem você é e por me permitir ser quem eu sou.

16
Este trabalho é dedicado à minha mãe, Regina,
meu pai, Serafim, meu irmão, Fabio, e minha
esposa, Ana Paula.
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SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................. 22

Capítulo 1. A questão dos criminosos nazistas no pós-guerra: um panorama 37

1.1. Punição e fuga.................................................................................................... 37

1.2. A América Latina vista como refúgio de criminosos nazistas........................... 41

1.3. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1945-1950.................................. 47

1.4. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1950-1959.................................. 50

1.5. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1960-1969.................................. 63

1.6. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1970-1989.................................. 72

1.7. Criminosos nazistas no Brasil: balanços e perspectivas..................................... 88

1.8. O Caso Cukurs: um marco histórico.................................................................. 95

Capítulo 2. Herberts Cukurs: de imigrante exemplar a imigrante indesejado 98

2.1. O aviador herói que terminou como colaboracionista exilado........................... 98

2.2. Imigrante desejado............................................................................................. 121

2.3. Cukurs no Brasil: ascensão e queda................................................................... 126

2.4. As acusações contra Cukurs............................................................................... 136

2.5. O imigrante indesejado, governo pressionado................................................... 147

Capítulo 3. O governo brasileiro diante do Caso Cukurs: pressão, negocia- 163


ção e ruído (1950-1959)

3.1. O fim dos pedalinhos e outras derrotas.............................................................. 163

3.2. O “homem dos pedalinhos” se defende............................................................. 168

18
3.3. Expulsão e extradição: duas possibilidades....................................................... 172

3.4. Problemas e limites da documentação............................................................... 173

3.5. Evidências insuficientes: caso estagnado........................................................... 180

3.6. Pragmatismo jurídico de Scolnicov.................................................................... 185

3.7. Ministério da Justiça: nem expulso, nem brasileiro........................................... 189

3.8. MJNI sinaliza novamente com a abertura do processo de expulsão.................. 197

3.9. Anor Butler Maciel: um ex-integralista no Ministério da Justiça...................... 202

3.10. Parecer de Anor Butler Maciel......................................................................... 206

3.11. Uma questão de idoneidade.............................................................................. 208

3.12. Depoimentos contra Cukurs sob desconfiança................................................. 211

3.13. Foreign Office: “os brasileiros estão batendo na porta errada”....................... 218

3.14. O Caso Cukurs esquecido................................................................................ 225

3.15. Estados Unidos: dossiê sobre Cukurs............................................................... 229

3.16. Cukurs rumo à naturalização brasileira............................................................ 233

Capítulo 4. O governo brasileiro diante do Caso Cukurs: retomada e desfe- 236


cho (1960-1965)

4.1. Efeito Eichmann: O Caso Cukurs volta à tona................................................... 237

4.2. Herberts Cukurs no DEOPS-SP................................................................…..... 244

4.3. Judeus também depõem no DEOPS-SP e proteção policial.............................. 252

4.4. MJNI e MRE se posicionam.............................................................................. 260

4.5. Exposição internacional..................................................................................... 267

19
4.6. Autoridades judaicas: conversas sobre extradição............................................. 270

4.7. Apelo e decisão final.......................................................................................... 276

4.8. Interlúdio: as autoridades alemães e a extradição.............................................. 281

4.9. “Deixem-me falar”: a morte de Cukurs.............................................................. 285

4.10. Caso encerrado................................................................................................. 295

Conclusão................................................................................................................. 303

Referências Bibliográficas...................................................................................... 310

Fontes........................................................................................................................ 318

20
Se não obstante, a história só pudesse justificar-se pela sua
sedução, quase universalmente sentida; se apenas fosse,
em suma, um aprazível passatempo, como o bridge ou a
pesca à linha, valeria ela o trabalho que nos dá escrevê-la?
Marc Bloch1

1
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965. p.15

21
INTRODUÇÃO
Durante minha pesquisa no mestrado, quando trabalhei com discursos de memória
sobre os 60 anos da libertação dos campos de extermínio, 1 acabei me deparando, oca-
sionalmente, com reportagens que afirmavam que o governo brasileiro, a exemplo do
argentino, protegera criminosos nazistas no pós-guerra e que o Brasil, muito em fun-
ção disso, havia se transformado em um verdadeiro paraíso nazista. Eu já tinha escu-
tado esse tipo de enunciado antes, mas pela primeira vez pensei nele como um pode-
roso discurso de memória. Na época, criminosos nazistas não eram o tema da minha
pesquisa, mas acabei guardando aquele material para, em breve, voltar a ele.

Em março de 2010, três meses depois de defender a dissertação e, portanto, livre


de minhas antigas obrigações de mestrando, pude explorar aquele tema mais detalha-
damente. A primeira coisa que descobri, para minha surpresa, foi que os historiadores
brasileiros tinham praticamente ignorado a relação do governo brasileiro com crimi-
nosos nazistas. Não encontrei nenhuma pesquisa dedicada inteiramente à questão.
Havia trabalhos sobre criminosos nazistas na Argentina e nos Estados Unidos, que por
vezes citavam um ou outro episódio ocorrido no Brasil, mas nada voltado especifica-
mente para o contexto brasileiro. Por outro lado, a mídia e a cultura de massa tinham
sido bastante prolixas a este respeito. Eu diria, inclusive, que boa parte do que sabe-
mos atualmente sobre o tema advém, predominantemente, de romances policiais, fil-
mes, reportagens, documentários e do senso comum.

A indiferença da historiografia era algo notável. Mas houve um segundo elemento


que chamou minha atenção. Notei que boa parte do material que eu tinha examinado
se valia com alguma frequência de uma retórica recorrente e autoexplicativa: o Estado
brasileiro – que durante a Segunda Guerra Mundial teria sido essencialmente antisse-
mita, autoritário e germanófilo – teria sido o mesmo que, após a guerra, protegeu cri-
minosos nazistas. A naturalização desta perspectiva continuísta me pareceu problemá-
tica, afinal de contas, se nas últimas duas décadas a historiografia já havia devidamen-
te relativizado o antissemitismo do Governo Vargas, 2 em que medida essa outra ima-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Lembrar ou repetir: práticas discursivas da imprensa e a cons-
trução da memória do Holocausto. Dissertação. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS), 2009.
2
Esse debate teve início em 1987 quando a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro defendeu sua tese
de doutorado, O Antissemitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. O trabalho representou um

22
gem do Estado, desta vez no pós-guerra, também não deveria ser relativizada?

Com base nessas inquietações, elaborei um projeto de doutorado que tinha o obje-
tivo de analisar como o Estado brasileiro se posicionou diante dos quatro maiores ca-
sos públicos de criminosos nazistas no Brasil. O primeiro desses casos refere-se a
Herberts Cukurs, colaboracionista na Letônia ocupada, denunciado como criminoso
de guerra no Rio de Janeiro, em meados de 1950; o segundo, a Franz Paul Stangl,
comandante dos campos de extermínio de Treblinka e de Sobibor, preso em São Pau-
lo, em 1967; o terceiro, a Gustav Franz Wagner, subcomandante de Stangl em
Treblinka, preso também em São Paulo, em 1978; e o quarto, finalmente, a Josef
Mengele, autor de experimentos com prisioneiros de Auschwitz, encontrado morto
em São Paulo, em 1985. O projeto foi aprovado e, assim, ingressei como doutorando
no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, em março de 2011.

Nos primeiros meses de pesquisa, notei, contudo, que seria necessário ajustar o
meu objeto de estudo. Em primeiro lugar, porque os quatro anos do doutorado se re-
velaram insuficientes para dar conta de todos os casos que eu tinha selecionado. Isso
ficou muito claro quando me deparei com a real extensão das fontes primárias. Eu não
esperava encontrar tão vasto material. Em segundo lugar, porque descobri que tais
casos tinham naturezas muito distintas entre si. Isso poderia comprometer o trabalho
de uma análise comparada. Levando em conta esse cenário, fiz um novo recorte: foca-
ria minha investigação no “Caso Cukurs”.

Minha escolha justifica-se pelas características e controvérsias inerentes a ele. A


começar pelo fato de que o Caso Cukurs foi o primeiro grande caso público do gênero
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
marco historiográfico: pela primeira vez as medidas antissemitas tomadas pelo primeiro Governo Var-
gas eram o tema principal de um trabalho acadêmico. Em síntese, a autora defendia que aquele gover-
no, imbuído de um clima antissemita vigente no país, sobretudo nos meios intelectuais e políticos,
montou um aparato antissemita sistemático que, indo da polícia política à legislação imigratória, pas-
sando pelas autoridades de fronteira, restringiu a imigração de judeus para o Brasil. Nos anos seguintes,
esse debate foi ampliado e viu nascer uma corrente historiográfica que propôs uma perspectiva alterna-
tiva à de Tucci Carneiro. Estão identificados com esta corrente Avraham Milgram, Jeffrey Lesser, Fa-
bio Koifman, Jeronymo Movschowitz, entre outros. Estes historiadores reconhecem as atitudes antis-
semitas de Vargas e as restrições nada humanitárias que seu governo elaborou e aplicou, mas relativi-
zam tanto o antissemitismo dos/nos aparatos governamentais quanto a intransponibilidade dessas leis
imigratórias. Cf. KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados
do nazismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica.
Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995; MILGRAM, Avraham. Os judeus
do Vaticano: a tentativa de salvação de católicos – não-arianos – da Alemanha ao Brasil através do
Vaticano (1939-1942). Rio de Janeiro: Imago, 1994; MOVSCHOWITZ, Jeronymo. Nem negros, nem
judeus: a política imigratória de Vargas a Dutra (1930-1954). Dissertação. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) , Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), 2001.

23
no Brasil. Até então, as autoridades brasileiras não tinham se confrontado de forma
tão direta com a questão dos crimes de guerra nazistas. Em segundo lugar, pelo que
pude depreender da minha pesquisa inicial, tal caso foi o que mais gerou críticas ao
governo brasileiro. E isso em um período extenso: do imediato pós-guerra ao debate
da prescrição dos crimes nazistas na Alemanha. Em terceiro, mesmo hoje, passados
50 anos de sua morte, Cukurs ainda é tomado em diversas narrativas como exemplo
de proteção que o governo brasileiro teria dado a criminosos nazistas.3 Portanto, tor-
nou-se uma espécie de índice para se tratar do assunto e se reforçar a imagem a ser
investigada. E, finalmente, o Caso Cukurs mobilizou diversos setores da sociedade
brasileira, além de organismos governamentais e não governamentais estrangeiros.
Neste sentido, a pergunta que orienta esta tese é: como as autoridades brasileiras se
posicionaram diante do primeiro grande caso público de um estrangeiro acusado de
crimes nazistas no Brasil, o Caso Cukurs?

Essa pergunta se desdobra em outras: o que o Caso Cukurs pode nos dizer a respei-
to das imagens correntes sobre criminosos nazistas criadas e disseminadas no pós-
guerra pela mídia e pela cultura de massa? As autoridades brasileiras protegeram Cu-
kurs? Que tipo de mobilização um colaboracionista conseguiu provocar em um país
aparentemente tão distante dos crimes do nacional-socialismo? Em que medida a for-
ma como o governo se posicionou diante deste caso se relaciona com a conjuntura
política internacional do pós-guerra? Ao responder a essas perguntas, minha intenção
é iluminar um campo de estudos importante, mas ainda praticamente inexplorado pela
historiografia: a presença de criminosos nazistas no Brasil.

O Caso Cukurs

Nascido em Liepaja, na Letônia, em 1900, Herberts Cukurs desembarcou no Rio


de Janeiro no dia quatro de março de 1946. Mecânico habilidoso, foi ele quem levou
para a Lagoa Rodrigo de Freitas os “pedalinhos”, como logo se tornaram conhecidas
as pequenas e famosas embarcações náuticas para uma ou duas pessoas que até hoje
enfeitam um dos principais cartões-postais da cidade. Seu empreendedorismo não tar-
dou a chamar a atenção da imprensa. No final dos anos 1940 e início dos anos 1950,
Cukurs foi personagem assíduo de matérias e reportagens de jornais e revistas da en-
tão capital federal. Nada se sabia, então, sobre o seu passado como colaboracionista.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Folha de S. Paulo, “Polícia brasileira protegeu nazista acusado de crimes de guerra”, 06/08/2006. C1.

24
Para todos os efeitos, o proprietário dos pedalinhos da Lagoa era um refugiado dos
horrores do pós-guerra e da perseguição comunista. Cukurs era um símbolo do imi-
grante que, depois de escolher o Brasil para recomeçar sua vida, alcançou a tranquili-
dade e a bonança. Cukurs era um símbolo do Brasil como pátria acolhedora.

A imagem pública positiva de Cukurs, contudo, ruiu no dia 30 de junho de 1950.


Nesta data, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro veio a público
denunciar Cukurs como um criminoso de guerra nazista. A entidade, ainda jovem,
criada há apenas três anos, mas já relevante para a vida comunitária judaica, respon-
sabilizou Cukurs pelo assassinato a sangue frio de aproximadamente 30 mil judeus na
Letônia ocupada pelos nazistas (1941-1945), além de uma lista de outros crimes, tais
como: incêndio de sinagogas, profanação de cemitérios judaicos e desapropriação de
imóveis pertencentes a judeus.

Em poucas semanas, diversas organizações da sociedade civil, judaicas e não ju-


daicas, além da imprensa e de parlamentares, se mobilizaram em torno do caso. Em
primeiro lugar, queriam explicações: como alguém como Cukurs poderia ter imigrado
para o Brasil? Em segundo lugar, exigiam que o governo negasse o pedido de natura-
lização de Cukurs, aberto um ano antes, em julho de 1949, no auge do sucesso dos
pedalinhos. Por último, queriam que Cukurs fosse o quanto antes banido do Brasil.

O Caso Cukurs teve uma enorme exposição midiática. Em grande medida, isso se
deu por conta de seu ineditismo. Como vimos há pouco, até então o governo brasilei-
ro não tinha se deparado com a questão de criminosos nazistas em seu território. Mas
também é verdade que os elementos “fantásticos” que gravitavam em torno de seu
protagonista contribuíram para isso: além de ser o proprietário dos pedalinhos da La-
goa Cukurs – o que por si só já era suficiente para provocar um escândalo de propor-
ções públicas –, Cukurs tinha lutado na Guerra de Independência da Letônia e vencera
diversos prêmios internacionais na aviação civil na década de 1930. E o que dizer da
informação praticamente desconhecida ainda hoje de que Herberts Cukurs imigrou
para o Brasil acompanhado de uma jovem judia letã cuja vida ele salvou dos nazistas?

Em termos de recorte temporal, o Caso Cukurs destaca-se por sua longa duração.
Ele começa em dezembro de 1945, quando o Ministério das Relações Exteriores
(MRE), no Rio de Janeiro, concede o visto permanente a Cukurs, e termina em março
de 1965, data em que a imprensa internacional anuncia seu falecimento. Sua morte, a

25
propósito, como todo o caso, está imersa em polêmica: Cukurs foi assassinado por
agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, durante uma aparente viagem de ne-
gócios ao Uruguai, o que se confirmou anos depois, em 2004, com a publicação de
um livro relatando os detalhes da operação escrito pelos responsáveis por sua morte.

Importantes atores sociais se envolveram direta ou indiretamente com o caso. Entre


as instituições judaicas, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro teve
o papel de maior destaque. Além de ser a autora da denúncia pública contra Cukurs,
foi ela que protocolou o requerimento formal de expulsão do letão junto ao Ministério
da Justiça e Negócios Interiores (MJNI). Foi ela também que, subsidiada com docu-
mentos e informações cedidas pelo Congresso Judaico Mundial (CJM), interpelou de-
putados, jornalistas, entidades não governamentais, ministros e funcionários do go-
verno com o intuito de mobilizá-los contra Cukurs.

É importante sublinhar que este trabalho não é uma biografia de Cukurs, muito
embora ao tratarmos do posicionamento do Estado brasileiro no caso seja inevitável
recuperar parte fundamental de sua trajetória até o Brasil. Esse trabalho também não
quer responder se Herberts Cukurs cometeu ou não cometeu todos os crimes que a
Federação acima mencionada lhe atribuiu. Esta é certamente uma questão historiográ-
fica relevante, mas deixo-a aos cuidados dos historiadores letões. Por fim, entendo
que os resultados advindos desta pesquisa não explicam a posição do Estado brasilei-
ro em outros casos. O que eu pretendo mostrar aqui, ao contrário, é a necessidade de
se evitar fórmulas, generalizações e esquemas preestabelecidos para se pensar a ques-
tão dos criminosos nazistas no Brasil. O que vale para um caso não vale necessaria-
mente para os demais.

Lacunas e referências

Surpreende o fato de a historiografia ter ignorado durante tanto tempo o caso Cu-
kurs e o tema dos criminosos nazistas no Brasil. Durante a elaboração do projeto desta
tese, escutei de colegas historiadores que este era um tema menor para a historiogra-
fia, pouco substancial, servindo mais ao apetite de jornalistas sensacionalistas do que
a pesquisadores acadêmicos. Mas a partir de quais referências tal questão seria consi-
derada “menor”? Se o nacional-socialismo e os crimes cometidos em seu nome foram
um dos acontecimentos mais importantes da história contemporânea, como podería-
mos desprezar o lugar que aqueles que cometeram tais crimes tiveram em nosso país?

26
Ao discutir a legitimidade das questões na história, Antoine Prost sublinha que “a
definição do campo variável das questões legítimas constitui um desafio de poder no
interior da profissão de historiador; com efeito, os detentores das posições de poder
são quem decide os questionamentos pertinentes”. Para Prost é preciso desnaturalizar
a ideia de que certas questões são mais ou menos valiosas do que outras: “com que
direito poderíamos afirmar que as paixões de Madame de Pompadour ou o assassinato
do almirante e colaboracionista F. Darlan são questões fúteis, ao passo que se justifica
a elaboração da história relativa aos mineiros de Carmaux (R. Trenpé), à representa-
ção do litoral (A. Corbin) ou ao livro no século XVIII? ”4

Lucien Febvre afirmou, certa vez, que uma das partes mais apaixonantes do traba-
lho do historiador consiste em levar as coisas silenciosas a se tornarem expressivas.5
Um dos meus objetivos com esse trabalho é justamente mostrar a expressividade do
Caso Cukurs e da questão dos criminosos nazistas no Brasil. Tal questão é parte cons-
titutiva da história do país e reflete, ao mesmo tempo, os mais recentes e renovadores
movimentos historiográficos. Entendo esse trabalho como tributário da chamada nova
história política, que recuperou as temporalidades de curto prazo, o estudo de indiví-
duos, de casos, de incidentes, mas não como objetos que iluminam só a si mesmos,
mas daquilo que está ao seu redor: governos, sociedades, instituições, políticas, etc.

Como apontei há pouco, quando iniciei essa pesquisa, cinco anos atrás, os historia-
dores não tinham se debruçado diretamente sobre a questão dos criminosos nazistas
no Brasil. Durante a elaboração desta tese, porém, foram concluídas duas dissertações
que ajudam a diminuir as lacunas na área e nos servem de referência historiográfica.
A primeira se intitula Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz
Stangl e Gustav Wagner em uma análise histórico-jurídica, de Felipe Cittolin Abal,
defendida em 2012, na Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.6 O traba-
lho, como o próprio título revela, se ocupa do julgamento dos pedidos de extradição
de Franz Stangl (extraditado) e Gustav Wagner (não extraditado) pelo Supremo Tri-
bunal Federal (STF). A segunda dissertação a qual me refiro se intitula O Imaginário
da formação do IV Reich na América Latina após a Segunda Guerra Mundial, de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.81
5
FEBVRE apud PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.77
6
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico-jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH), 2012.

27
Marcos Eduardo Meinerz, defendida na Universidade Federal do Paraná em 2013.7 O
objetivo de Meinerz neste trabalho é estudar as condições de produção de discursos
sobre a formação de um IV Reich na América Latina, tão difundidos em livros e re-
portagens nas décadas de 1960 e 1970. Meinerz refere-se a esses discursos como um
“novo perigo alemão”, uma referência direta ao “perigo alemão” estudado pelo histo-
riador René Gertz.8 Se o “perigo alemão” de Gertz refere-se à paranoia – difundida na
segunda metade do século XIX e início do XX – de que os imigrantes e descendentes
alemães residentes no sul do país faziam parte de um plano expansionista da Alema-
nha na região sul da América Latina, o “novo perigo alemão” de Meinerz refere-se
especificamente a um suposto plano nazista de formação do IV Reich no pós-guerra.9

Ambas as dissertações possuem qualidades e contribuíram para minha pesquisa.


Ao estudar os processos de extradição de Stangl e Wagner, Felipe Cittolin Abal subli-
nha que os ministros do STF ativeram-se somente aos aspectos técnicos dos dois ca-
sos, ignorando questões morais e éticas. No caso de Wagner, conclui Abal, a existên-
cia de pequenas falhas na peça jurídica foi fundamental para o indeferimento da ex-
tradição. Já no trabalho defendido por Meinerz, sobressai-se o esforço do autor para
discutir a questão do “imaginário” a respeito de conspirações nazistas no Brasil – di-
mensão esta que nos ajuda a problematizar mitos e exageros nas narrativas sobre cri-
minosos nazistas que proliferaram no decorrer do pós-guerra. Os dois trabalhos, con-
tudo, acabam tendo um raio de alcance restrito. Abal limita-se a uma análise técnico-
jurídica – como se propõe no título de seu trabalho –, não se preocupando com o mo-
mento histórico. A questão dos criminosos nazistas aparece, assim, descontextualiza-
da, desconectada de sua historicidade. Já Meinerz realizou, por vezes, um trabalho
mais descritivo do que analítico. Além disso, acaba ele sendo vítima da própria mito-
logia que estuda: Meinerz se equivoca ao afirmar, por exemplo, que a ODESSA, a
lendária organização formada por antigos membros da SS, existiu, quando, na verda-
de, nenhum documento conhecido é capaz de sustentar tal afirmação até hoje. 10

Salvo essas duas dissertações, vale mencionar que há algumas referências ao Brasil

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
MEINERZ, Marcos Eduardo. O imaginário da formação do IV Reich na América Latina após a Se-
gunda Guerra Mundial (1960-1970). Dissertação. Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-
Graduação em História (PPGHIS), 2013.
8
GERTZ, René Ernaini. O perigo alemão. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade, 1991.
9
MEINERZ, op. cit., p.33.
10
Ibidem, p.47.

28
em obras que examinam a questão dos criminosos nazistas no contexto latino-
americano. Entre os trabalhos de maior qualidade estão El genocidio ante la historia y
la naturaleza humana, organizado por Beatriz Gurevich e Carlos Escudé;11 Nazis on
the Run, de Gerald Steinacher;12 Hunting Evil, de Guy Walters;13 e Nazi-Jagd: Süd-
amerikas Diktaturen und die Ahndung von NS-Verbrechen, de Daniel Stahl.14 Contu-
do, dada a perspectiva ampla dessas obras, as análises sobre o Brasil são limitadas.

As obras historiográficas que mencionam Cukurs são ainda mais escassas. No Bra-
sil, pude encontrar apenas três trabalhos. O primeiro é a anteriormente citada disserta-
ção de Felipe Cittolin Abal. Trata-se de uma citação curta. O autor afirma que Gustav
Wagner, logo depois de descoberto no Brasil, estaria temeroso em ser sequestrado e
levado para Israel, como Eichmann, ou executado, como Cukurs.15 O segundo traba-
lho é Intolerância e resistência – a saga dos judeus comunistas entre a Polônia, a Pa-
lestina e o Brasil (1935-1975), de Zilda Márcia Grícoli Iokoi. Nesta obra, Cukurs é
mencionado ainda mais brevemente. Ikoi refere-se a ele apenas como o motivo de um
protesto realizado por judeus de esquerda em 1950.16 O terceiro é o livro Cidadão do
Mundo, de Maria Luiza Tucci Carneiro. Aqui, Cukurs é citado ao lado de Martin
Bormann, Adolf Eichmann, Franz Stangl, entre outros que teriam chegado à América
Latina via “rota dos ratos”, nome dado às rotas usadas por criminosos nazistas.17 Nes-
te caso, no entanto, a autora não problematiza o fato de que, ao contrário das outras
figuras citadas ao seu lado, Cukurs nunca fora de fato réu e tampouco condenado.

Os historiadores letões costumam citar Cukurs com mais frequência que os brasi-
leiros. Mas, nestes casos, o pano de fundo é a sua participação no extermínio dos ju-
deus na Letônia e não os seus anos no Brasil. Em The Holocaust in Latvia, 1941-

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11
GUREVICH, Beatriz; ESCUDÉ, Carlos. El genocidio ante la historia y la naturaleza humana.
Buenos Aires: Latinoamericano S.R.L, 1994.
12
STEINACHER, Gerald. Nazis on the run: how Hitler's henchmen fled justice. Nova Iorque: Oxford
University Press Inc., 2011.
13
WALTERS, Guy. Hunting Evil: the Nazi war criminals who escaped and the quest to bring them to
justice. Nova Iorque: Broadway Books, 2010.
14
STAHL, Daniel. Nazi-Jagd: Südamerikas Diktaturen und die Ahndung von NS-Verbrechen. Düssel-
dorf: Wallstein Verlag, 2013.
15
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico-jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, 2012, p. 42.
16
IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Intolerância e resistência: a saga dos judeus comunistas entre a Polô-
nia, a Palestina e o Brasil (1935-1975). São Paulo: Editora Humanitas, 2004, p. 328.
17
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus
refugiados do nazifascismo (1933-1948). São Paulo: FAPESP, 2010, p. 92.

29
1944: the missing center, de Andrew Ezergailis, são mencionados vários depoimentos
de sobreviventes do Holocausto na Letônia que relacionam Herberts Cukurs com o
Comando Arājs, unidade da polícia da Letônia controlada pela SD (Sicherheitsdienst)
e liderada pelo colaboracionista Viktors Arājs, julgado e condenado em 1979. 18 Esses
depoimentos também aparecem em outro livro, Nazi-Soviet – Disinformation about
the Holocaust in Nazi-occupied Latvia. Daugavas Vanagi: Who are they? – Revisited,
dos historiadores E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Petersons e A. Ezergailis.19

Em obras não acadêmicas, Cukurs já é bem mais mencionado. O mais antigo regis-
tro que se tem conhecimento é Churbn Lettland: the destruction of the Jews of Latvia,
de Max Kaufmann, publicado em 1947.20 Kaufmann, ao contar a história sobre o
Gueto de Riga, ele próprio um sobrevivente, descreve Cukurs como “assassino”. Cer-
ta vez, escreve o autor, Cukurs desceu armado de seu carro e deu várias instruções aos
guardas letões que se encontravam dentro do Gueto.21 Outro desses registros memori-
alísticos, mas bem mais recente, é The boxer’s story – fighting for my life in the Nazi
camps, de Nathan Shapow, judeu letão, também sobrevivente do Gueto de Riga. No
livro, publicado em 2013, Shapow enumera diversos crimes que Cukurs teria cometi-
do sob supervisão da SS. Shapow diz que Cukurs merece atenção especial, uma vez
que ele “talvez seja o mais brutal criminoso de guerra letão”.22

Dentre os trabalhos não acadêmicos, contudo, há dois títulos que merecem maior
atenção. O primeiro deles foi lançado em 2004. Trata-se de The execution of the
Hangman of Riga – the only execution of a Nazi war criminal by the Mossad, escrito
pelo jornalista israelense Gad Shimron e pelo ex-agente israelense Anton Kuenzle. O
livro explica passo a passo a operação do Mossad que culminou no assassinato de
Cukurs. Pela primeira vez o serviço secreto israelense admitiu a sua participação no
caso. Kuenzle, principal agente da operação, explica não só os detalhes de sua missão,

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18
EZERGAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. Riga/Washington:
Historical Institute of Latvia, 1996, p.201.
19
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet – disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:
Daugavas vanagi--who are they? – Revisited: E. Avotin̦ š, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005.
20
KAUFMANN, Max. Churbn Lettland: the destruction of the Jews of Latvia. Konstanz: Hartung-
Gorre Verlag, 2010.
21
Ibidem, p.61.
22
SHAPOW, Nathan. The boxer’s story – fighting for my life in the Nazi camps. Londres: The Robson
Press, 2012.

30
mas as razões que levaram o Mossad a executá-la. 23 O segundo livro é El baúl de
Yahvé – el Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay, do advogado uru-
guaio Marcelo Silva. Publicado em novembro de 2010, a obra prioriza os resultados
das investigações policiais que se sucederam à morte de Cukurs.24

Como se divide esta tese

Este trabalho é composto por quatro capítulos. No primeiro, meu principal objetivo
é traçar um breve panorama da questão dos criminosos nazistas no Brasil do pós-
guerra: quais casos foram mais importantes, quais são as imagens predominantes, que
meios foram responsáveis pela construção e difusão dessas imagens, além de procurar
evidenciar o(s) lugar(es) que o Caso Cukurs teve dentro deste contexto. Embora as
imagens do Brasil como paraíso nazista possam parecer “naturais”, elas possuem uma
historicidade. Até onde eu sei, esse esforço de sistematização, ainda que breve, jamais
foi realizado. Neste capítulo, vale sublinhar, levanto, ainda que brevemente, casos de
criminosos nazistas que imigraram para o Brasil sobre os quais nada ou muito pouco
se conhece. Sobre estes, espero desenvolvê-los em trabalhos posteriores à tese.

No segundo capítulo, apresento ao leitor quem foi Herberts Cukurs. A narrativa


começa com a sua vida na Letônia, indo desde sua participação na Guerra de Inde-
pendência do país até o exílio forçado ao final da Segunda Guerra Mundial, passando
pelos raides aéreos que lhe conferiram notoriedade pública na década de 1930. Em
seguida, examino sua chegada ao Brasil, que pode ser dividida em dois momentos:
antes e depois da denúncia pública feita pela Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro, em julho de 1950. Antes, Cukurs era a personificação do refugiado de
guerra, uma figura carismática, adorada pelos jornais e conhecida da população cario-
ca devido à criação dos pedalinhos da Lagoa. Depois, Cukurs tornou-se a imagem do
mal, do criminoso nazista que a todos enganou e que coloca em risco as crianças que
vão à Lagoa se divertir. Também é a partir da denúncia da Federação que tem início o
posicionamento do Estado brasileiro. Esse posicionamento levou mais de uma década
e envolveu vários atores históricos de relevo dos anos 1950 e 1960. Diferente do que
se possa imaginar, no entanto, este não é um capítulo descritivo. Nele discuto, por

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23
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of a
Nazi war criminal by the Mossad. Middlesex: Mitchell Vallentine & Company, 2004.
24
SILVA, Marcelo. El baúl de Yahvé – el Mossad y la Ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Montevidéu: Carlos Alvarez Editor, 2010.

31
exemplo, porque Cukurs escolheu o Brasil como destino (se é que escolheu) e porque
o Itamaraty lhe concedeu um visto permanente. Isso nos levará a examinar, por exem-
plo, a política imigratória do Brasil.

No terceiro capítulo, analiso a maneira como as autoridades brasileiras responde-


ram aos pedidos contra a naturalização de Cukurs e a favor de sua expulsão. Neste
sentido, meu foco está principalmente no posicionamento Ministério da Justiça e do
Ministério das Relações Exteriores, principais órgãos do governo envolvidos no caso.
Também dou grande destaque à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janei-
ro, principal grupo de pressão contra Cukurs, ao Congresso Judaico Mundial e ao po-
sicionamento de governos estrangeiros no caso, principalmente a Inglaterra, por in-
termédio do seu Foreign Office (o equivalente inglês para o Itamaraty).

No quarto e último capítulo, continuo analisando a maneira como o governo brasi-


leiro se posicionou diante de Herberts Cukurs. Agora, porém, o foco está em seus úl-
timos anos de vida, isto é, de 1960 – quando, após a captura de Adolf Eichmann na
Argentina, a questão dos criminosos nazistas na América Latina ganha nova propor-
ção – até o seu assassinato em Montevidéu, em 1965 – quando o caso chega ao fim.

Documentação utilizada

Aproximadamente duas mil páginas de documentação foram utilizadas na elabora-


ção desta tese de doutoramento. No Arquivo Nacional, encontrei a minha principal
fonte: o processo de naturalização de Herberts Cukurs, nº 29.996/1950. Ele possui
mais de 400 folhas, entre ofícios, telegramas, pareceres técnicos, recortes de jornais,
pedidos de informações, moções de protestos, memoriais, cartas, entre outros docu-
mentos que emprestam a esta peça um enorme valor histórico. O Ministério da Justiça
não esteve só, no entanto. Para construir seu posicionamento, este ministério teve que
se articular com o Ministério das Relações Exteriores e este, por sua vez, com suas
embaixadas e organismos estrangeiros no exterior. Por isso, além do processo de na-
turalização que hoje se encontra salvaguardado no Arquivo Nacional, o escopo docu-
mental desta tese também compreende: ofícios, memorandos, telegramas, relatórios e
despachos encontrados tanto no Arquivo Histórico do Itamaraty, quanto em arquivos
no exterior, caso dos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Ainda na esfera governamental, examinei dois prontuários de Herberts Cukurs


produzidos em diferentes momentos pela polícia política. O primeiro foi aberto em

32
1950 pelo Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DEOPS-RJ).
O segundo foi aberto em 1960, em São Paulo, pelo mesmo órgão correspondente na-
quele estado (DEOPS-SP). Ambos encontram-se em seus respectivos arquivos públi-
cos estaduais. Esses documentos se somam a uma vasta pesquisa na imprensa oficial.
Analisei, nos últimos anos, dezenas de páginas do Diário Oficial da União (DOU), da
Câmara e do Senado Federal, uma vez que muitas foram as casas legislativas que se
manifestaram contra a permanência de Cukurs em território brasileiro.

Mencionei há pouco que a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro


foi quem solicitou a expulsão de Cukurs junto ao Ministério da Justiça. Na condição
de principal grupo de pressão, foram analisados diversos livros de atas da instituição –
que deu origem à atual Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ), onde
estão guardados alguns de seus antigos registros. Mas a maior parte dos documentos
sobre tal instituição encontra-se atualmente nos organizados arquivos do Yad
Vashem, em Jerusalém, Israel. Graças a esta entidade, pude ter acesso a centenas de
documentos trocados entre a Federação e organizações judaicas internacionais, como
o Congresso Judaico Mundial e o Centro de Documentação Histórica de Simon Wie-
senthal, em Linz, além de documentos do governo israelense e de outras entidades
judaicas menores, brasileiras e estrangeiras.

Para acusar Cukurs de criminosos nazista, a Federação das Sociedades Israelitas do


Rio de Janeiro se baseou nos depoimentos de cinco sobreviventes do Holocausto no
pós-guerra. Esses depoimentos foram tomados e produzidos por um comitê de curta
duração com sede em Londres formado por antigos prisioneiros de campos de con-
centração, intitulado Comitê de Investigação dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos.
Encontrei os originais desses depoimentos na Wiener Library, biblioteca inglesa de
referência no campo dos estudos sobre o Holocausto que mais se parece com um ar-
quivo, característica inerente a muitas instituições na Europa e nos Estados Unidos.

Para escrever essa tese, também consultei os acervos do American Jewish Archives
e da Central de Inteligência Americana (CIA). Pesquisei ainda mais de 20 jornais e
revistas, boa parte deles no Brasil – com a ajuda imprescindível da Hemeroteca Digi-
tal da Biblioteca Nacional –, mas também no exterior, especialmente na Biblioteca
Nacional do Uruguai. Também fiz pesquisas no Arquivo Histórico Judaico Brasileiro
(AHJB), em São Paulo, e na Biblioteca Israelita Sholem (BIBSA), no Rio de Janeiro.
Por fim, foram realizadas para esta tese seis entrevistas que totalizam quase 10 horas

33
de conversa. Após a conclusão, o item “fontes” detalha outros documentos que não
têm conexão direta com Cukurs, mas que também foram aqui consultados e usados.

Como se pode ver, a documentação aqui examinada está bastante fragmentada,


presente em diversos países e em várias línguas (português, hebraico, inglês, francês e
alemão), o que demandou muitas horas de pesquisa e recursos financeiros. Não foi
fácil reunir tudo isso, tampouco analisar. Mas foi um empreendimento necessário e
fundamental para responder às interrogações deste trabalho. Além do mais, como diz
a epígrafe de Marc Bloch com a qual inicio esta introdução, a história seria tão praze-
rosa se não fosse tão difícil de escrevê-la? Acredito, sinceramente, que não.

Experiência pessoal

Esta foi uma tese de muitos documentos, mas também de muitos encontros, lugares
e experiências. Tudo isso moldou minha maneira de pensar e compreender o tema.
Assim que comecei a pesquisa, me vi encantado com a história da Letônia. Li tudo o
que pude sobre o país. Aprendi aspectos sobre sua história, cultura, economia, mitos e
personagens. Em 2013, movido por esse interesse, embarquei sozinho e muito entusi-
asmado numa viagem até Riga, capital do país. Lá, conversei com pesquisadores e
visitei museus importantes para a pesquisa, entre eles o Museu Judaico e o Museu da
Ocupação. Estive em lugares históricos que me ajudaram a entender melhor um país
que até então eu só conhecia através dos livros. Nunca me esquecerei quando o Bom-
bardier Q400 recém-lançado da Air Baltic tocou o asfalto liso do RIX, o aeroporto
internacional de Riga. Eu nunca tinha ido tão longe na vida.

Outro país que visitei em função da pesquisa foi o Uruguai, mais especificamente
sua bela capital, Montevidéu. Eu já conhecia a cidade, mas voltar lá a trabalho foi
uma experiência totalmente diferente. No país, fui muito bem recebido pelas institui-
ções onde pesquisei, com destaque para a Biblioteca Nacional do Uruguai, o Depar-
tamento de Polícia e o Ministério do Interior e Justiça. Mas se algo me marcou nesta
viagem foi a acolhida que tive do pesquisador Marcelo Silva, advogado uruguaio que
pesquisou o assassinato de Cukurs e que sobre ele produziu um excelente livro, citado
algumas páginas atrás. Silva – talvez o único pesquisador no mundo com quem eu
consiga conversar por horas e horas sobre Cukurs – se revelou um amigo solícito e
generoso. Levou-me a diversos lugares relacionados à curta (e trágica) passagem de
Herberts Cukurs por Montevidéu e compartilhou comigo informações e documentos

34
fundamentais para a pesquisa. Foi ele quem me levou à sede da polícia da capital uru-
guaia, onde pude ver o baú de madeira maciça onde o corpo de Cukurs foi colocado, e
quem me apresentou ao comissário de polícia Alejandro Otero, o primeiro a chegar à
cena do crime em 1965 e quem se tornou lá o encarregado das investigações.

Minha última viagem internacional também foi bastante especial. Em Nova Iorque,
em dezembro de 2014, conheci Helga Fischer, brasileira que vive há mais de vinte
anos nos Estados Unidos. Helga é filha da jovem judia que Cukurs salvou do nazismo
e trouxe para o Brasil. Meu contato com Helga começou em 2012 e foi revelador, tan-
to para mim quanto para ela. Lembro que meu primeiro contato se deu através de um
e-mail no qual procurei explicar (com muito cuidado) minha pesquisa e a intenção
que tinha de conversar a respeito. Eu não sabia como Helga reagiria àquilo. Afinal de
contas, como tocar num assunto familiar tão delicado? Pouco mais de vinte minutos
após o envio do e-mail, quando eu estava prestes a sair de casa para um compromisso
social, o telefone de minha casa tocou. Era Helga. Ficamos quase duas horas ao tele-
fone. Seu interesse naquele longínquo passado era enorme, sincero e contagiante.
Helga revelou que a relação entre Cukurs e sua mãe lhe era até ali totalmente desco-
nhecida. Helga tinha escutado muito pouco sobre o passado da mãe na Letônia. Cu-
kurs era um nome que não lhe fazia sentido. Dali em diante, antes mesmo de nos co-
nhecermos pessoalmente, em Nova Iorque, nos falamos muitas outras vezes. Também
devo mencionar que alguns documentos aqui utilizados são de seu acervo pessoal.

De frustração, fica apenas o fato de não ter conseguido escutar a família Cukurs
como gostaria. Meu primeiro contato com alguém da família aconteceu via internet
quando eu ainda escrevia o projeto do doutorado. Escrevi para o que entendi ser um
sobrinho-neto de Cukurs. Não tive, porém, nenhuma resposta. Em um segundo mo-
mento, já durante a pesquisa, fiz uma nova tentativa e fui mais bem-sucedido. Escrevi
para uma neta de Cukurs, residente em São Paulo. Expliquei que eu não estava inte-
ressado em defender ou acusar Cukurs, mas sim em compreender o caso. Ela enten-
deu e nossa conversa avançou. Chegamos a nos falar algumas vezes por telefone.
Minha ideia era entrevistar Antinea, filha do meio de Cukurs, atualmente com pouco
mais de 80 anos. Cheguei a elaborar uma lista de perguntas. A entrevista, infelizmen-
te, nunca chegou a acontecer. Antinea preferiu não seguir adiante. Sua sobrinha disse
que a tia esperava “outro nível de questionamento”. Além disso, fui informado que
Antinea estava bastante ocupada com traduções do livro de Cukurs. “Quem sabe ali

35
teremos muitas respostas”, ela disse. A neta de Cukurs me disse ainda que a família
não queria abordar assuntos como o Holocausto e o nazismo. “Nosso foco é a história
da aviação e os feitos de Herberts Cukurs como aviador, construtor de aviões, enge-
nheiro, jornalista, pesquisador e acima de tudo....ele era um humanista”. Eu lamentei e
agradeci pelos esclarecimentos. A pesquisa seguiu o seu rumo. De qualquer forma,
espero que a família de Cukurs possa ler este trabalho e conhecer uma dimensão do
caso que talvez lhe seja bastante desconhecida.

Abordar um tema inexplorado pela historiografia é um desafio. Tenho noção das


dificuldades que se depreendem daí. É como um avião que decola em condições me-
teorológicas adversas, operando apenas com a ajuda de instrumentos. A visibilidade é
difícil, parcial, nebulosa, com muitos raios, chuva e trovões. Turbulência pura. Mas
acredito que esta tese, tal como um voo nessas condições, também encontra, transcor-
rido algum tempo, sua estabilidade. Na altitude de cruzeiro, as nuvens se dissipam,
dando lugar ao céu azul. Aos poucos, o controle da aeronave fica bem mais fácil. Nes-
ta tese, senti algo assim acontecendo. No princípio, foi muito difícil reunir fontes, de-
finir minha questão, meu objeto, compor a narrativa e pensar em como resolver pro-
blemas que pareciam ameaçar o meu juízo e a minha inteligência. Depois de algum
tempo, no entanto, a pesquisa foi sendo direcionada, a escrita foi fluindo e tudo mais
se transformou num grande prazer, apesar da dureza e dos espinhos do tema. Espero
que o leitor também desfrute de um “voo” parecido ao fazer a leitura a seguir.

36
CAPÍTULO 1

CAPÍTULO
A questão dos criminosos nazistas no
1 Brasil do pós-guerra: um panorama

DURANTE décadas, os historiadores não se debruçaram sobre a questão dos crimi-


nosos nazistas no Brasil do pós-guerra, o que contribuiu decididamente para que a
cultura de massa criasse e difundisse diversas imagens sobre o tema. Muitas dessas
imagens são acionadas ainda hoje e parecem naturalizadas. Porém, elas possuem uma
história. O objetivo deste capítulo é montar um panorama da questão dos criminosos
nazistas no Brasil, procurando evidenciar quando essas imagens surgiram, a que con-
textos estão conectadas, que acontecimentos foram fundamentais para seu surgimento
e que meios foram centrais para a sua irradiação. Em outras palavras, o que se preten-
de aqui é mostrar quais são as imagens predominantes sobre a referida questão e quais
as condições de suas produções. Conhecer esse panorama – ainda que sinteticamente
– é fundamental para entendermos as principais interpretações do Caso Cukurs.

1. 1. Punição e fuga

Antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, as forças aliadas já discutiam


como iriam punir nazistas e colaboracionistas depois da guerra. De acordo com Arieh
J. Kochavi, o governo polonês no exílio foi o primeiro a trazer a questão à tona, em
1940. O assunto, porém, sublinha o autor, só ganhou realmente relevância após a in-
vasão das primeiras cidades soviéticas, em junho de 1941, quando a extensão dos
crimes nazistas se tornou mais evidente.1 Dali em diante, mesmo mediante calorosos e
infindáveis debates, o assunto não saiu mais da agenda das lideranças aliadas. Em ou-
tubro de 1943, os “três grandes” – Estados Unidos, União Soviética e Inglaterra –
formalizaram pela primeira vez essas intenções. Na chamada “Declaração de Mos-
cou”, prometeram ir “até os confins da Terra” para buscar os responsáveis pelas atro-
cidades e entregá-los aos acusadores para que a justiça fosse feita.2

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
KOCHAVI, Arieh J. Prelude to Nuremberg – Allied War Crimes Policy and the Question of Punish-
ment. Carolina do Norte: The University of North Carolina Press, 1993. p.3.
2
Conferência de Moscou de 1943, “Declaração sobre atrocidades”, 30 de outubro de 1943.

37
CAPÍTULO 1

As punições, no entanto, não precisaram esperar pelo fim das hostilidades e nem se
limitaram à programação do Alto Comando Aliado. À medida que os países iam sen-
do libertados do julgo nazista, avolumaram-se episódios de justiçamentos extraoficiais
de nazistas e de pessoas que colaboraram com nazistas durante os anos de ocupação.
Esses tribunais de exceção eram conduzidos por grupos populares ou por movimentos
de resistência. Foram, em geral, rápidos, violentos e movidos por um profundo ressen-
timento. No verão de 1943, na cidade russa de Krasnodar, por exemplo, oito colabo-
racionistas russos foram executados sumariamente em praça pública diante de 30 mil
pessoas. 3 “Acertos de contas” desse tipo foram bastante comuns nos territórios sovié-
ticos, mas também aconteceram na Europa Central e Ocidental. Na Itália, represálias e
punições extraoficiais resultaram em cerca de 15 mil mortes nos últimos meses da
guerra.4 E embora em proporções menores, o mesmo tipo de coisa ocorreu na Bélgica,
na Grécia e na Holanda.5 Em algumas ocasiões, observou-se ainda a humilhação pú-
blica dos considerados traidores da pátria. Na Holanda, sublinha Tony Judt, diversas
mulheres foram acusadas de “colaboração horizontal” – ter mantido relações sexuais
com alemães. A pena para essas mulheres tinha conotação vexatória: eram lambuza-
das de alcatrão e cobertas de penas.6 Enquanto isso, na França, outras tantas mulheres
acusadas de ajudar o inimigo tiveram seus cabelos raspados em praça pública e, em
seguida, submetidas a vaias de multidões enfurecidas.7

Quando o conflito terminou, em maio de 1945, essas grandes “depurações” – ter-


mo que se tornou emblemático na França – continuaram acontecendo por toda a Eu-
ropa, contando, inclusive, em alguns casos, com o beneplácito das autoridades. Mas
chegara finalmente a vez das forças aliadas de ocupação realizarem os julgamentos
oficiais. O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg (TMI), mais conhecido como
“Tribunal de Nuremberg” (novembro de 1945 a outubro de 1946), foi o principal sím-
bolo dessa justiça do pós-guerra, cabendo a ele julgar as mais altas autoridades do
derrotado Terceiro Reich. No total, foram decretadas 12 sentenças de morte, três pri-
sões perpétuas, entre outras penas de caráter mais brando. A ele, seguiram-se ainda os
Tribunais de Tóquio e os Tribunais Subsequentes de Nuremberg, em 1946 e 1948,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
GOLDENSHON, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Cia das Letras, 2005. pp.11-12.
4
JUDT, Tony. Pós-Guerra. Uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p.56.
5
Ibidem, pp.56-57.
6
Ibidem.
7
VIRGILI, Fabrice. Shorn Women: Gender and Punishment in Liberation France. Oxford: Berg, 2002.

38
CAPÍTULO 1

respectivamente, além de outros, menores e realizados mais tardiamente, nas décadas


de 1960, 1970 e 1980, muitos dos quais famosos por levarem à justiça membros do
baixo e médio escalão nazista.8 Ainda hoje, tendo em vista a imprescritibilidade dos
crimes de guerra nazistas, indivíduos octogenários e nonagenários continuam sendo
levados à justiça na Europa.9

Apesar dos esforços consideráveis para se levar a julgamento o maior número pos-
sível de indivíduos acusados de crimes de guerra – além de genocídio, crimes contra a
paz e crimes contra a humanidade– muitos conseguiram escapar da justiça. 10 A de-
sordem generalizada surgida no imediato pós-guerra contribuiu bastante para isso. Ao
fim das hostilidades, além de cidades destruídas, da escassez de produtos básicos nas
principais cidades da Europa e do caos político, as forças aliadas ainda tiveram que
lidar com milhões de refugiados e deslocados de guerra. Calcula-se que 50 milhões de
pessoas se encontravam fora de seus países de origem quando a Alemanha assinou a
capitulação.11 No meio deste enorme contingente populacional, encontravam-se lide-
ranças nazistas e colaboracionistas de várias nacionalidades e patentes. Alguns foram
reconhecidos, colocados sob custódia e julgados. Muitos, entretanto, conseguiram se
passar por vítimas do Reich e desaparecer. Houve ainda o caso daqueles que mesmo
presos, conseguiram escapar das precárias prisões improvisadas por americanos, in-
gleses e soviéticos. Uma vez fora delas, foram favorecidos por uma rede ilegal de aju-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Na década de 1960, por exemplo, foram julgados os guardas do campo de concentração de Aus-
chwitz. Na década de 1970, foi a vez dos julgamentos do principal carrasco do Gueto de Riga, Viktors
Arājs. Arājs foi o líder do Comando Arājs, nome dado a organização fascista letã que, em colaboração
com as forças nazistas, coordenou o assassinato de milhares de judeus na Letônia ocupada (1941-45).
9
No momento em que escrevo este capítulo, a justiça alemã anuncia que em 21 de abril de 2015 vai
iniciar o julgamento de um ex-membro da SS de 93 anos (nome não revelado), suspeito de colaborar
com os nazistas no assassinato de ao menos 300 mil pessoas em Auschwitz, na Polônia, em 1944. O
Ministério Público alemão também investiga Hilde Michina, também de 93 anos. Michina é suspeito de
estar entre aqueles que obrigaram prisioneiros dos campos de concentração Bergen-Belsen e Gross-
Rosen a marchar até o campo de Guben, na Polônia, em 1945. Cf. Folha Online, “Alemão de 93 anos
suspeito de crimes nazistas será julgado em abril”, 02/02/2015, 09h01. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1583934-alemao-de-93-anos-suspeito-de-crimes-
nazistas-sera-julgado-em-abril.shtml>. Acesso: 02/02/2015.
10
A dimensão dos crimes cometidos pelo nazismo foi tão grande, que além da categoria “crimes de
guerra”, outras duas categorias jurídicas foram criadas para julgar os antigos membros do Eixo: “cri-
mes contra a paz” e “crimes contra a humanidade”. Em 1944, criou-se também um terceiro conceito:
“genocídio”. Seu criador foi o jurista judeu Raphael Lemkin.
11
Dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ANCUR). Disponível em:
<http://www.acnur.org>. Acesso em:02/02/2015.

39
CAPÍTULO 1

da que providenciava documentos falsos, transporte, abrigo e, principalmente, rotas de


fuga da Europa, com destaque para a Espanha e a Itália.12

Imagem&1:&Tirol!do!Sul!–!essa!região!da!Itália,!que!faz!fronteira!com!a!Áustria!e!a!Suíça,!foi!bastante!procu?
rada!por!criminosos!de!guerra.!Foto:!The!Guardian.!

Os criminosos de guerra que não permaneceram escondidos na Europa, imigraram


para os mais diversos cantos do mundo, da Síria ao Canadá, dos Estados Unidos à Ar-
gentina.13 Muitos imigraram mesmo já tendo sido oficialmente condenados. Outros,
fugiram antes de serem acusados, indiciados ou condenados. Enquanto uns imigraram
com as suas famílias, outros seguiram esses caminhos sozinhos. Parte conseguiu
transferir dinheiro para o exterior, parte teve uma margem de manobra menor e dei-
xou a Europa com quase nada. Outrora peça de uma estrutura poderosa, todos tinham
sido, agora, reduzidos à condição de refugo de um regime derrotado e criminoso.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
SANFILIPPO, Matteo. Los papeles de Hudal como fuente para la historia de la migración de alema-
nes y nazis después de la Segunda Guerra Mundial. Estudios migratorios latinoamericanos, 1999.
13
Em 2010, o The New York Times revelou um documento do Departamento de Justiça americano de
mais de 600 páginas que indicava a ajuda que o governo americano havia dado a vários nazistas notó-
rios após a guerra. Muitos foram levados para os Estados Unidos para trabalhar em indústrias e centros
de pesquisa, através da chamada “Operação Clipe de Papel”. The New York Times, “Nazis Were Giv-
en ‘Safe Haven’ in U.S., Report Says”, 13/11/ 2010. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2010/11/14/us/14nazis.html>. Acesso em: 29/08/2014. Além disso, apenas
para citar outro exemplo, a CEANA, uma comissão criada pelo governo argentino em 1997 para inves-
tigar o “passado nazista” do país, concluiu que dezenas de criminosos já condenados entraram em terri-
tório argentino no decorrer do pós-guerra, principalmente durante o governo de Perón.

40
CAPÍTULO 1

1. 2. A América Latina vista como refúgio de criminosos nazistas

Talvez nenhuma outra região do mundo no pós-guerra tenha se tornado tão conhe-
cida como destino de criminosos nazistas quanto a América Latina. Segundo Matteo
Sanfilippo, relatos sobre a fuga de criminosos nazistas da Europa central e oriental
para países latino-americanos podem ser vistos na imprensa europeia e em relatórios
diplomáticos já nos primeiros momentos após o fim da Segunda Guerra Mundial. De
acordo com esses relatos, o esquema que retirava nazistas e colaboracionistas do con-
tinente europeu tinha como epicentro a Itália, mais particularmente a região fronteiri-
ça de Tirol do Sul (ou Província autônoma de Bolzano), e envolvia uma ampla e intri-
cada rede que ia desde governos latino-americanos pró-fascistas até entidades supra-
nacionais, tais como o Vaticano e a Cruz Vermelha. Em geral, essas rotas de fuga fi-
caram conhecidas como ratlines (em português, “rota dos ratos”). Sanfilippo nos dá
alguns exemplos de como essas ratlines foram relatadas num tempo em que uma parte
nada desprezível da Europa já se encontrava sob controle dos aliados:

Em 1947, Vicent La Vista informou ao Departamento de Estado dos


Estados Unidos que a Cruz Vermelha estava concedendo passaportes
sem qualquer tipo de triagem – portanto, ajudando a emigração ilegal
de antigos nazistas através da Itália – e que um grupo de padres teve
papel importante nessa situação. (...) Enquanto isso, em 6 de dezem-
bro de 1949, a agência de notícias Nord Press anunciou que o Bispo
Alois Hudal, reitor da Universidade Germânica de S. Maria
dell’Anima, era um conhecido prelado pró-nazista em Roma e que
ele recebia diariamente de 60 a 100 alemães que procuravam por pas-
sagens e vistos para a América Latina.14

Com o tempo, relatos deste tipo foram revelando sua vocação para o superlativo:
tornaram-se maiores, mais complexos, mais conhecidos e mais fantásticos. A questão
das rotas de fuga, que deixou em situação constrangedora as forças aliadas de ocupa-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
SANFILIPPO, Matteo. Ratlines and Unholy Trinities: A Review-essay on (Recent) Literature Con-
cerning Nazi and Collaborators Smuggling Operations out of Italy. In: Unitos DSpace (Università De-
gli Studi della Tuscia), 2003. Disponível em:
<http://dspace.unitus.it/bitstream/2067/24/1/sanfilippo_ratlines.htm>. Acesso em: 23/12/2013. [Origi-
nal: “In 1947, Vincent La Vista reported to the U.S. State Department that the Red Cross was granting
passports without screening – thus helping the illegal emigration from and through Italy of former Na-
zis – and that a group of priests was instrumental into it. (...) Meanwhile, on 6 December 1949, the
German Agency Nord Press announced that Bishop Alois Hudal, rector of the German College of S.
Maria dell Anima, ‘was a well-known pro-Nazis prelate in Rome and that he received from 60 to 100
Germans daily who were looking for tickets and visas to Latin America.’”]

41
CAPÍTULO 1

ção e os governos europeus recém-reestruturados, não chegou a sair de cena, mas o


foco deslocou-se dela para a questão dos países acusados de oferecer refúgio para
criminosos de guerra. Alguns casos despertaram enorme atenção da mídia internacio-
nal para o problema. No Chile, um exemplo bastante conhecido é o de Walter Rauff.

Natural de Köthen, na Alemanha,


Rauff atuou no Serviço de Segurança
do Partido Nazista (SD) e no setor de
inteligência da Schutzstaffel (SS), a
tropa de elite nazista, o que lhe per-
mitiu alcançar rapidamente o cargo
de chefe da seção de questões técni-
cas do Serviço Central de Segurança
do Reich, o temido RSHA, liderado
por Reinhard Heydrich. No RSHA,
Rauff foi um dos responsáveis pelo
desenvolvimento e implementação de
caminhões que jogavam gás carbôni-
co para dentro de suas carrocerias. A
“novidade” foi utilizada para matar
por asfixia cerca de 200 mil pessoas
Imagem&2:&Judeus!chilenos!questionam!demora!de!Pino? consideradas inimigas do Reich, fun-
chet!para!expulsar!Rauff.!Fonte:!Ciper!Chile.
cionando ainda como preâmbulo pa-
ra as câmaras de gás que seriam em breve instaladas nos campos de extermínio. Após
a Guerra, Rauff foi capturado e mantido em um campo de prisioneiros, de onde esca-
pou em 1946. Permaneceu escondido por um ano e meio em um monastério de Roma
antes de imigrar para o Chile. Em dezembro de 1962, foi preso em Punta Arenas.15

Na época, a Alemanha Ocidental apresentou um pedido formal de extradição ao


governo chileno. A Suprema Corte de Justiça do Chile, no entanto, indeferiu por seis
votos a um o pedido alemão. Segundo a justiça chilena, os crimes do antigo SS havi-
am prescritos.16 O fato gerou uma grande desconfiança por parte da opinião pública
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Perfil de Walter Rauff, Shoah Resource Center, Yad Vashem. Disponível em:
<www.yadvashem.org>. Acesso em: 02/02/2015.
16
Cf. MUNHÕZ, Heraldo. La Política Exterior de Chile: La Crisis Continúa. In: MUNHÕZ, Heraldo
(Org.) Las Políticas Exteriores Frente a la Crisis. Buenos Aires: Grupo Latinoamericano, 1985.

42
CAPÍTULO 1

ocidental e das chancelarias de governos europeus em relação às autoridades chilenas.


Dez anos depois, essa desconfiança foi reforçada. Em 1972, Simon Wiesenthal, so-
brevivente de vários campos de concentração e extermínio, escreveu uma carta ao en-
tão presidente do Chile, Salvador Allende, pedindo que este reconsiderasse a decisão
da justiça de seu país. Allende, em resposta a Wiesenthal, disse condenar os crimes
cometidos pelo nacional-socialismo, mas alegou, por outro lado, não poder atender
seu pedido porque “ao Presidente da República está vetado, em virtude da lei, exercer
funções judiciais, arrogar-se de causas pendentes ou reabrir processos findos”.17 Rauff
viveu no Chile até a sua morte, de causas naturais, em 14 de maio de 1984, poucas
semanas após o governo israelense emitir um novo pedido de extradição.18

Outro episódio que comprometeu a imagem da América Latina envolveu a Bolívia


e o SS Klaus Barbie. Nascido em 1913, na Alemanha, Barbie entrou para o Partido
Nazista em 1932 e três anos depois já fazia parte da SS. Em 1942, visto como um ser-
vidor fiel, assumiu o cargo de chefe da Gestapo em Lyon. Na cidade francesa, pren-
deu, torturou, deportou e matou centenas de judeus e membros da resistência. No
imediato pós-guerra, deixou a França e foi cooptado pelo serviço de contra-
inteligência americana, com o qual cooperou como “expert” em comunismo. Nos Es-
tados Unidos, permaneceu até 1951, ano em que os americanos deixaram de apoiá-lo
e ele imigrou para a Bolívia.19 Em seu novo país, Barbie viveu com o nome falso de
Klaus Altmann (judeu), obteve a cidadania boliviana e trabalhou diretamente com go-
vernos de extrema direita, novamente como especialista na luta contra o comunismo.

Em 1971, Barbie, que também era conhecido como “o açougueiro de Lyon”, foi
identificado pelo casal Serge e Beate Klarsfeld, dois famosos “caçadores de nazistas”,
e um pedido de extradição foi emitido pelo governo francês. Após dois anos de apre-
ciação do pedido, a Suprema Corte da Bolívia, na época sob ditadura militar, recusou
o pedido. Apenas em 1982, quando já estava em curso o processo de transição demo-
crática do país, os franceses emitiram um novo pedido, então acatado pela Bolívia. Só
aí, Barbie, aos 69 anos, foi extraditado, julgado e condenado na França.20

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Cf. FARÍAS, Víctor. Los nazis en Chile. Barcelona: Editorial Seix Barral, 2000. pp. 447-453.
18
Haaretz, “In the service of the Jewish state”, 29/03/2007. Disponível em
http://www.haaretz.com/weekend/magazine/in-the-service-of-the-jewish-state. Acesso em: 27/11/2013.
19
Perfil de Klaus Barbie, Shoah Resource Center, Yad Vaed. Disponível em: <www.yadvashem.org>.
20
BEIGBEDER, Yves. Judging War Crimes and Torture - French Justice and International and
Commissions (1940-2005). Leiden: Martinus Nijhoff Publishers and VSP, 2006. pp.204-208.

43
CAPÍTULO 1

No Paraguai, Alfredo Stroessner (1954-1989), filho de um imigrante alemão da


Baviera com uma paraguaia, também sempre foi visto com desconfiança. Em 1964, a
revista alemã Der Spiegel publicou uma longa reportagem na qual acusou a ditadura
de Stroessner de proteger criminosos nazistas. De acordo com o jornalista Herbert
John, o embaixador alemão em Assunção, Ekart Briest, teria dito temer que o terrível
Josef Mengele fosse encontrado no país. John afirmou que Mengele não só estava no
país, como havia também se naturalizado paraguaio em 1959. 21 Em meados dos anos
1980, a passagem de Mengele pelo Paraguai foi documentalmente comprovada.22

Imagem&3:!Klaus!Barbie!em!julgamento!na!França,!anos!1980.!Fonte:!Mubi.com.

De todos os países latino-americanos, o mais associado a criminosos nazistas no


pós-guerra foi a Argentina. E no país, o tema foi desde cedo politicamente energizado.
Quem primeiro se utilizou dessas denúncias foi o Departamento de Estado dos Esta-
dos Unidos. Às vésperas das eleições presidenciais argentinas, em fevereiro de 1946,
o órgão americano responsável pela política externa da Casa Branca publicou o cha-
mado Libro Azul (Blue Book), um relatório que visava convencer os eleitores argenti-
nos de que Perón tinha sido um íntimo aliado do recém-derrotado fascismo e que os
alemães que viviam no país controlavam setores-chave da economia, indústria e co-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Correio do Paraná, “Paraguai acusado de proteger nazistas”, 30/09/1964, p.1.
22
Cf. POSNER, Gerald L.; WARE, John. Mengele: The complete story. Cooper Square Press, 2000.

44
CAPÍTULO 1

mércio.23 O objetivo deste documento – exagerado, como se soube depois – era deses-
tabilizar politicamente o principal candidato no processo eleitoral, Juan Domingo Pe-
rón, representante do grupo militar antiamericanista que governava o país desde o
golpe de 1943 e que tentava, então, chegar ao poder por meio eleitoral.24

Embora a manobra americana não tenha sido bem-sucedida – Perón venceu as


eleições – a associação da Argentina com o nazismo continuou sendo explorada. De-
pois da Casa Branca, foi a vez de parlamentares argentinos de oposição recorrerem a
este expediente como instrumento de pressão política. Duas figuras, neste sentido, são
de grande importância para nós: Silvano Santander e Raul Damonte Taborda. Os dois
haviam sido deputados pelo Partido Radical em Buenos Aires e criaram, em 1941, no
âmbito da Câmara dos Deputados, uma comissão para investigar (já naquela época)
denúncias de penetração da ideologia nazista no país, a Comissão Investigadora de
Atividades Antiargentinas (CAAA).25 Em 1943, no entanto, após o golpe militar ocor-
rido no país, a CAAA foi extinta e os seus participantes perderam seus mandatos.
Santander e Taborda, principais nomes da comissão, se exilaram no vizinho Uruguai.

Da capital uruguaia, os dois políticos deram continuidade à sua militância contra a


Casa Rosada. O primeiro ataque ocorreu em julho de 1949. Santander denunciou à
imprensa americana que Perón estava recebendo e empregando dezenas de alemães
em diferentes escalões do governo, entre os quais antigos oficiais nazistas especialis-
tas em aviação.26 Quatro anos depois, em 1953, ocorreu uma nova investida. Santan-
der publicou o livro Técnica de una traición: Juan D. Perón y Eva Duarte, agentes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
REIN, Raanan. Argentina, Israel y los judíos. De la partición de Palestina al caso Eichmann. Bue-
nos Aires: Lumiere, 2007. p.48.
24
A hostilidade de Washington (EUA) em relação à Argentina vinha desde os tempos da guerra. A
neutralidade mantida pela Casa Rosada durante quase todo o conflito irritou os americanos, que viam
nela uma clara demonstração de afinidade ideológica com o nazifascismo. Começava aí uma longa
série de pressões políticas. Em 1942, os Estados Unidos se aproximaram de vez do Brasil ao realizar,
no Rio de Janeiro, a Reunião de Chanceleres Americanos. Em 1944, chegaram a enviar efetivo militar
ao Rio da Prata. O governo argentino só declarou guerra à Alemanha em março de 1945, dois meses
antes do fim do conflito. Cf. GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a criação da ONU – O Sexto mem-
bro permanente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011. pp.121-127.
25
Em um primeiro momento, a CAAA teve como presidente Raúl Damonte Taborda e, depois, Juan A.
Solar. Cf. SENKMAN, Leonardo. El nacionalismo y el campo liberal argentinos ante el neutralismo:
1939-1943. Estudios interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, v. 6, n. 1, 1995. Disponível
em: <http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view&id=747&Itemid=285>.
Acesso em: 12/01/2014. Ver também: Historia General de las Relaciones Exteriores de la República
Argentina: La agenda política. Disponível em: <http://www.argentina-rree.com/9/9-028.htm>. Acesso
em: 12/01/2014.
26
The New York Times, “Perón regime accused”, 22/07/1949, s/p.

45
CAPÍTULO 1

del nazismo en la Argentina. Nele, o ex-deputado afirmava que submarinos alemães


haviam aportado no litoral argentino após a derrota nazista repletos de autoridades do
Reich e carregados de “riquezas invaloráveis”, denominadas apenas como “el tesouro
nazi”.27 Nos anos 1950, essas ideias ganhariam o reforço de dois outros livros de Raúl
Taborda, O Caso Perón: uma conspiração continental (publicado em português, no
Brasil, pela editora Globo) e Ayer Fue San Perón – 12 años de humillación Argentina,
publicados respectivamente em 1954 e 1955.28

Imagem&4:&Repercussão!do!"Livro!Azul"!no!Brasil.!Fonte:!O!Globo,!19/02/1946.!p.1.

A ligação argentina com criminosos nazistas, porém, esteve longe de ser uma cria-
ção política dos americanos e da oposição a Perón. Da década de 1960 a de 1990, di-
versos criminosos nazistas foram localizados no país. Esses casos tiveram o efeito de
reforçar as denúncias (ainda que exageradas e não-comprovadas) que vinham sendo
ventiladas desde o final da guerra por pessoas como Santander e Taborda. Entre os
principais casos estão o de Erich Priebke, homem forte da Gestapo em Roma, respon-
sável pelo massacre das Fossas Ardeatinas; de Eduard Roschmann, membro da SS,
comandante do Gueto de Riga; de Gerhard Bohne, médico encarregado da supervisão

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
SANTANDER, Silvano. Técnica de una traición. Juan D. Perón y Eva Duarte, agentes del nazismo
en la Argentina. Buenos Aires: Edición del autor, 1955.
28
TABORDA, Raúl Damonte. O Caso Perón: uma conspiração continental. Porto Alegre: Editora
Globo, 1954.

46
CAPÍTULO 1

do programa de eutanásia de Hitler, o Aktion T4; de Josef Schwammberger, membro


da SS, comandante de vários campos de trabalho forçado na Cracóvia e, o principal
deles, Adolf Eichmann, membro da SS e chefe do escritório IV B4 do RSHA, que
cuidava da logística das populações judaicas dos países ocupados pelo Reich, peça-
chave para a chamada “Solução Final” da “questão judaica”.

1. 3. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1945-1950

Se o governo argentino se viu desde cedo acusado de proteger criminosos nazistas,


no Brasil, o cenário foi significativamente diferente. No imediato pós-guerra, o país
manteve-se afastado desse tipo de polêmica. Isso não quer dizer, contudo, que o go-
verno brasileiro tivesse passado ao largo da associação com o nazismo derrotado. Crí-
ticas do gênero existiram, mas salvo raríssimas exceções, elas não falavam na prote-
ção de criminosos de guerra nazistas. Genericamente, elas se referiam às facilidades
que seriam oferecidas à imigração de “fascistas” e “nazistas”. Essas duas categorias
são bastante amplas, podendo incluir desde antigos ex-combatentes até membros do
Partido Nazista, além, é claro, daqueles indivíduos que cometeram crimes de guerra.
Vale lembrar, por exemplo, que todo funcionário público na Itália, durante a égide de
Mussolini, era obrigado, por lei, a se filiar ao Partido Fascista. Como nos lembra José
Gonçalves e César Campiani Maximiano, “até mesmo as crianças eram obrigadas a
participar da Gioventù Italiana di Littorio, um grupo de doutrinação infantil de caráter
paramilitar”. Desta forma, “qualquer um podia ser acusado de fascista”.29

Ainda assim, mesmo as críticas contra a “imigração nazifascista” eram rarefeitas,


restritas a alguns poucos veículos. O Tribuna Popular, então principal porta-voz do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi quem mais se valeu do expediente. Em de-
zembro de 1946, o jornal explicou da seguinte forma o fenômeno:

Tudo o quanto de reacionário e fascista vem sendo expelido da Euro-


pa pelo movimento democrático está afluindo, neste momento, ao
nosso país. Quando um Pereira Lira fala de uma batalha contra as
instituições democráticas em nossa terra, ele propositalmente esconde
o plano do seu grupelho que abre as comportas da imigração para es-
sa escória das populações europeias. (...) Já nos princípios de 1945,
Prestes advertia aos homens de governo e aos brasileiros em geral

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
MAXIMIANO, César Campiani; GONÇALVES, José. Irmãos de Armas: Um Pelotão da FEB na II
Guerra Mundial. São Paulo: Códex, 2005. p.82.

47
CAPÍTULO 1

sobre a grave ameaça representada por esses suspeitíssimos imigran-


tes, que aqui aportavam com a máscara de “agricultores”. Que agri-
cultores são esses que fogem dos países onde a reforma agrária vito-
riosa abre o caminho do desenvolvimento impetuoso da agricultura?
(...) Ao invés de elementos produtivos para as nossas fainas agríco-
las, de técnicos para as nossas indústrias, o que o grupelho reacioná-
rio e fascista dos Alcio Souto, Pereira Lira, Macedo Soares, Oliveira
Sobrinho e companhia está mandando despachar para o Brasil são es-
ses antigos serviçais de Hitler e Mussolini, que vão desde o “quis-
ling” mandado buscar a Lisboa, até os perigosíssimos elementos on-
tem desembarcados.30

Os indivíduos citados neste trecho fizeram parte do que se convencionou chamar,


não sem alguma generalização, de ala “germanófila” do Estado Novo, em oposição à
ala “americanófila”. Muitos destes “germanófilos” tinham permanecido no governo
após a Segunda Guerra Mundial. Álcio Souto era um deles. Comandante da Escola
Militar de Realengo, Souto atuava, então, como Chefe de Gabinete Militar do governo
Dutra. José Pereira Lima era outro que tinha uma boa colocação no governo, lotado
como Ministro chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Ambos represen-
taram setores políticos de oposição ferrenha ao comunismo. Consideravam que o
PCB, recém-legalizado, não passava de um instrumento soviético no Brasil. Deste
modo, as críticas feitas pelo Tribuna Popular – independente de terem ou não um
fundo de verdade – possuíam conotação política. Para o PCB, a associação do novo
governo (Dutra) com o velho (Vargas) e com o fascismo, ambos derrotados, era uma
forma de questionar sua legitimidade e, ao mesmo tempo, a herança de Vargas.

Entre 1946 e 1947, o Tribuna Popular voltou outras vezes ao assunto, dizendo que
o governo brasileiro tinha aberto as portas do país para imigrantes “fascistas”, “mer-
cenários”, “terroristas”, “desclassificados sociais”, “colaboracionistas”, “assassinos da
Gestapo”. Mas em poucas ocasiões empregou o termo “criminosos de guerra” para se
referir aos selecionados pela política imigratória brasileira. E nem teve tempo. Em
maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral, pressionado politicamente, cancelou
mais uma vez o registro do PCB e o jornal, por extensão, também deixou de existir.

Depois do fechamento do Tribuna Popular, as referências a criminosos de guerra


no Brasil foram quase nulas. Em 1947, alguns veículos da imprensa carioca noticia-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Tribuna Popular, “Abertas as comportas da imigração à escória...” 11/12/1946, p.8.

48
CAPÍTULO 1

ram a presença de Kapos no Rio de Janeiro. Kapos era como se chamavam os prisio-
neiros de campos de concentração e extermínio que os nazistas escolhiam para reali-
zar trabalhos ligados a administração ou segurança destes campos. Podiam ser judeus
ou não. Em geral, eram violentos, alguns sendo tão odiados quanto os próprios nazis-
tas. Entres os Kapos identificados no Brasil estavam os irmãos Lejbusz e Abraham
Zajfman, antigos detentos do campo de extermínio de Auschwitz. Os dois foram re-
conhecidos em Petrópolis e incluídos em uma lista de criminosos de guerra da Agên-
cia Judaica Polonesa. 31 Essa mesma agência alertou ainda para um terceiro Kapo no
Rio, chamado Chaskila Rosenberg, suposto colaborador da Gestapo.32 Por fim, o Jor-
nal de Notícias noticiou que Abraham Icek Kerbel, polonês naturalizado tcheco, co-
nhecido como Marian Kargul, também se encontrava no Distrito Federal da época.
Ele era acusado de colaboração com a Gestapo e de maus tratos a judeus.33

Essas notícias, porém, chamaram pouca atenção da imprensa e, consequentemente,


pouco mobilizaram a opinião pública. Isso talvez se explique pelas enormes dificul-
dades de compreensão em torno do status dos Kapos, especialmente os de origem ju-
daica. Eram os Kapos judeus invariavelmente criminosos de guerra? Eles sempre fo-
ram coagidos a assumir tal função ou era uma escolha consciente para aumentar as
chances de sobrevivência ou conseguir algum tipo de vantagem? Se hoje, o tema con-
tinua sendo em muitos aspectos tabu, em 1947, sabia-se menos ainda o que se pensar
ou como proceder. Além disso, nem todos os nomes antes mencionados tinham sido
confirmados. Kargul realmente esteve no Rio de Janeiro, mas deixou o país pouco
tempo depois, sendo, em seguida, preso na Polônia, mas por crimes financeiros. Já os
irmãos Zajfman, esses realmente confirmados, causaram celeuma, mas restrita à pró-
pria comunidade judaica. Ambos foram excomungados da religião judaica.34

Ainda no imediato pós-guerra, alguns veículos de imprensa levantaram suspeitas a


respeito do trabalho da Missão Militar Brasileira em Berlim (MMBB), encarregada de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
A notícia foi publicada em vários jornais: Tribuna Popular (11/03/1947), Jornal Pequeno
(11/05/1949) e Diário de Notícias (06/03/1947).
32
JTA – The Global Jewish News Source Jewish. “Agency Pressing Charges Against 30 Nazi War
Criminals Before U.N. Commission”. 09/06/ 1947. Disponível em:
<http://www.jta.org/1947/06/09/archive/jewish-agency-pressing-charges-against-30-nazi-war-
criminals-before-u-n-commission>. Acesso em: 25/09/2014.
33
Jornal de Notícias, “Criminoso de guerra no Rio”, 23/07/1947, p.2; Diário do Paraná, “Falsa cidada-
nia de um criminoso de guerra”, 12/03/1947, p.8.
34
Os casos de Kapos no Brasil estão sendo pesquisados pelo autor desta tese.

49
CAPÍTULO 1

representar diplomaticamente o Brasil na Alemanha ocupada. Seu principal objetivo


era ajudar brasileiros em solo alemão a retornar para o país. Em editorial de fevereiro
de 1948, a Revista da Semana questionou a verdadeira identidade dos passageiros se-
lecionados pela MMBB. Sobre um grupo a bordo do navio Santarém em viagem para
os estados do sul do Brasil, o editorial perguntava: “Serão mesmo brasileiros esses
recém-chegados da Alemanha?” Para a Revista da Semana, tendo em vista que o Bra-
sil anos antes recebera alemães “disfarçados do nazismo”, era preciso deixar o senti-
mentalismo de lado (algo que “temos em excesso”) e investigar “direitinho as ideias e
os planos dessas centenas de alemães”, especialmente porque o “fascismo brasileiro”
já contava com “redutos poderosos” em cidades como Joinville e Blumenau, “onde os
alemães fazem maioria da população”.35 Essas suspeitas, no entanto, não tiveram
maiores consequências e logo desapareceram do noticiário.36

1.4. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1950-1959

O dia 30 de junho de 1950 é uma data-chave para se pensar a questão dos crimino-
sos nazistas no Brasil. Nesta data, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro reuniu-se com a imprensa carioca e responsabilizou o imigrante letão Herberts
Cukurs, proprietário dos “pedalinhos” da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janei-
ro, pela morte de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Cukurs, de
50 anos de idade, tinha imigrado com a família para o Brasil em fevereiro de 1946,
pouco mais de um ano depois de ter colaborado com os alemães durante a ocupação
nazista da Letônia. A denúncia da entidade judaica surpreendeu a todos no Rio de Ja-
neiro. A população da cidade e a imprensa tinham se acostumado nos últimos anos a
ver Cukurs como o simpático “homem dos pedalinhos”. Começava o Caso Cukurs.

A notícia colocava as coisas em outra perspectiva. Não se tratava mais de um Ka-


po, de um fascista ou de um nome suspeito em uma lista de bordo. Cukurs era acusa-
do de crimes de guerra. Ele era uma “ameaça” real. Tinha nome, sobrenome e vivia
num dos lugares mais aprazíveis da capital federal. Oferecia serviços de divertimentos
aos “desavisados” moradores da cidade. As críticas ao governo logo aparecerem.

O primeiro veículo a noticiar as denúncias contra Cukurs foi a Folha do Rio. A re-
portagem era assinada por Edmar Morel, já na época um dos mais renomados jornalis-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Revista da Semana, “Serão mesmo brasileiros esses recém-chegados...”, 07/02/1948, p.4.
36
A MMBB está sendo pesquisada pelo autor desta tese.

50
CAPÍTULO 1

tas brasileiros, e ocupava boa parte da primeira página. Nela, podia-se ler em letras
garrafais: “Famoso matador de gente”. 37 No texto, Morel destacava que Cukurs, co-
mo muitos outros famosos criminosos de guerra que tinham conseguido escapar do
Tribunal de Nuremberg, encontrava-se solto no Rio de Janeiro, “acobertado por pa-
drinhos importantes”. Para Morel, “todos, sem exceção, estão lépidos e faceiros no
Rio e em São Paulo”. Ao lado de Cukurs, o jornalista incluiu os irmãos Zajfman, Ker-
bel e dois pilotos da força aérea alemã que haviam imigrado para o Brasil. Todos
eram vistos por Morel a partir de uma mesma perspectiva, isto é, como parte de uma
política de proteção de criminosos nazistas refugiados por parte do Estado brasileiro.
Ao final da reportagem, Morel usou uma frase que seria repetida quase como um
mantra dali em diante pela imprensa: “O Brasil é sem dúvida a terra predileta dos
criminosos de guerra”.38

Imagem&5:&Ficha!Consular!de!Herberts!Cukurs!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search/Arquivo!Nacional.

A ligação de Morel com temas relacionados ao nazismo não era nova. Em 1942,
trabalhando para a Agência Meridional, dos Diários Associados, o jornalista investi-
gou o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães e relatou em várias
reportagens a atuação de espiões nazistas no Brasil. Em suas memórias, Morel afirma
que aqui “a espionagem nazista era feita sem subterfúgio, ante a conivência de autori-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p.1.
38
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p.1.

51
CAPÍTULO 1

dades simpatizantes do Eixo”.39 Deste modo, as denúncias de que criminosos nazistas


chegavam agora ao Rio de Janeiro não lhe pareciam surpreendentes: elas faziam todo
sentido. Havia, no modo de ver de Morel, uma clara linha de continuidade entre o Es-
tado Novo e o governo Dutra. Saíam os espiões e entravam os criminosos nazistas.

A crítica explícita ao Estado não se limitou aos textos de Morel. Em O Radical, di-
ário de grande prestígio popular, o jornalista e escritor Manuel José Gondin da Fonse-
ca, em sua coluna diária, Imprensa em Revista, foi ainda mais acintoso em suas críti-
cas. Para ele, a proteção de um criminoso de guerra como Cukurs deveria ser credita-
da ao então Ministro das Relações Exteriores, o diplomata veterano, Raúl Fernandes:

Mas sabem por que cargas d’água esse malfeitor conseguiu proteção
entre nós? Vamos contar. O Raul Borocochô Fernandes, Chanceler
da Rua Larga, 24, tem um enteado romeno. Segundo nos informam
esse enteado foi também criminoso de guerra e conseguiu, graças ao
padrasto, estabelecer-se livremente no Brasil. Cukurs, seu colega, sa-
bendo disso, fez chantagem: - Ou comem todos, ou haja moralidade!
Se me perseguem aqui, boto a boca no mundo. Raul Borocochô Fer-
nandes capitulou. E assim Cukurs obteve tudo quanto quis e tornou-
se milionário graças às facilidades que lhe foram concedidas para ex-
plorar incautos na Lagoa Rodrigo de Freitas. Que desmoralização!40

Já o Tribuna da Imprensa, criado pelo jornalista Carlos Lacerda, preferiu concen-


trar suas críticas na política imigratória brasileira. De acordo com o editorial do jor-
nal, um dos mais influentes na vida política do país, as autoridades brasileiras vinham
desde o Estado Novo permitindo que vários elementos indesejáveis, prejudiciais à so-
ciedade, entrassem livremente no Brasil. Para o Tribuna, a “onda que extravasou o
velho mundo trouxe muito do seu rebotalho para cá”, como bem ilustrava o caso do
“nazista dos pedalinhos”.41 O jornal declarava ser um absurdo a permanência de Cu-
kurs no Brasil, bem como a conivência do governo brasileiro com tal situação. Para
ele, “os que serviram o nazismo devem ser punidos e não agasalhados”.42

Osório Borba, do Diário de Notícias, foi outro que aproveitou o Caso Cukurs para
criticar o governo. Borba ressaltou que a política imigratória brasileira desenhada pelo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39
MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.103.
40
O Radical, “Imprensa em revista”, 22/08/1950, p.3.
41
Tribuna da Imprensa, “Indesejáveis”, 13/07/1950, p.4.
42
Tribuna da Imprensa, “Prezado leitor”, 20/06/1950, p.1.

52
CAPÍTULO 1

Itamaraty preferia selecionar verdugos de Hitler a imigrantes judeus. O jornalista ex-


plicou da seguinte maneira tal escolha:

(…) o fato de haver o verdugo hitlerista [Cukurs] conseguido entrar e


fixar-se no Brasil fica por conta das responsabilidades do nosso go-
verno, constituído de antigos simpatizantes do nazismo, poucos sus-
cetíveis à ojeriza universal pelos malfeitores nazistas. (…). Faltou
muita gente em Nuremberg, decerto. Em muitos países faltou mesmo
um Nuremberg. Como no Brasil, onde uma cópia medíocre, mas não
menos ignóbil de “Führer” ficou impune dos seus torpes crimes e até
premiado. O fato da tranquila existência que leva no Brasil um dos
monstros sádicos do nazismo não passa de um detalhe do fato geral
da incompleta apuração dos hediondos crimes do hitlerismo. (...) O
governo brasileiro exerce praticamente um verdadeiro arbítrio na
aceitação ou recusa de migrantes. É notório que o Itamaraty já tem,
através de suas famosas instruções reservadas, recomendado às auto-
ridades diplomáticas no exterior a rejeição de imigrantes simples-
mente por sua condição de judeus. Mas (há, aliás, uma certa e triste
coerência nessa diversidade de tratamento) aceitamos e oferecemos
permanência e segurança no Brasil a criminosos nazistas, a réus de
crimes hediondos, do extermínio de populações judaicas inteiras.
Significativamente matança de judeus”.43

A posição de Borba foi reforçada dias depois por um editorial do Diário de Notí-
cias que chamava a atenção dos leitores para a “complacência com que as nossas au-
toridades deixam em liberdade no Brasil um criminoso condenado em Nuremberg”:

A opinião pública está sendo despertada para reprovar o ato das auto-
ridades brasileiras que permitiram a entrada de criminosos de guerra
no país, enquanto dificultavam, por todos os modos, a vinda de refu-
giados e imigrantes, deslocados na Europa pela ação do mesmo gru-
po político a que pertencia Cukurs e cujo desejo de dominar o mundo
se exercia através de chacinadores como ele.44

O Correio da Manhã, por sua vez, também em editorial sobre o tema, destacou que
Cukurs, mesmo tendo matado “milhares de pessoas e sendo procurado pela justiça
internacional, conseguiu das nossas autoridades a permissão de emigrar para o Brasil,
vivendo agora pacatamente no Rio de Janeiro”. O jornal lembrou ainda que aquele
caso já tinha sido devidamente comentado por outros jornais tendo em vista “as sim-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 07/07/1950, p.4.
44
Diário de Notícias, “Criminosos de Guerra”, 18/08/1950, p.4.

53
CAPÍTULO 1

patias brasileiras pelo nazismo sobrevivente” e que Herberts Cukurs “desfruta atual-
mente os benefícios da nazofilia de certas repartições brasileiras”. 45 Entendimento
este muito parecido com o que fora expresso, na mesma época, pelo Diário Carioca,
que classificou a entrada de Cukurs no país como uma “acolhida benévola”.46

O tom de denúncia contra o governo esteve presente em diversos jornais da época,


dos grandes aos pequenos, dos populares aos esquerdistas. O Imprensa Popular, vin-
culado ao PCB, por exemplo, voltou-se para o Presidente da República. O jornal afir-
mou em suas páginas que o presidente Dutra e “sua camarilha fascista” facilitavam a
entrada e a residência no Brasil de diversos criminosos nazistas como Cukurs.47
Mesma perspectiva adotada pelo jornal Voz Operária, também de esquerda e também
ligado ao PCB (agora na ilegalidade). Em editorial publicado em julho de 1950, este
último jornal afirmou que a entrada e permanência de Cukurs no país deveria ser en-
tendida como fruto de um “governo fascista no Brasil”, incluindo aí o Ministro da
Justiça, Francisco Negrão de Lima, o prefeito do Rio de Janeiro, Mendes de Morais, e
o presidente Eurico Gaspar Dutra, que vinham há bastante tempo, segundo o veículo,
ajudando nazistas e criminosos nazistas com vistas à interesses ideológicos e financei-
ros.48 Em editorial publicado em setembro de 1950, o Voz Operária resumiu:

O que se dá é que esse monstro repelente, como tantos outros, encon-


trou em nossa terra apoio nos fascistas nativos. E Negrão é um des-
tes. Para Negrão, se Göring aqui se refugiasse não haveria provas
contra ele. Mas Negrão, não somente por sua ideologia como por
questão de interesse, nada poderia dizer contra Cukurs. É suspeito.
Seus amigos se especializaram em trazer para o Brasil o rebotalho de
guerra, quando Negrão era chefe do gabinete de Francisco Campos.
Com isso ganharam rios de dinheiro. Uma agência operava com esse
fim em Lisboa. A matriz era no Ministério da Justiça. Pelo visto, Ne-
grão de Lima não tem autoridade para barrar nenhum criminoso de
guerra. Poderia estar dificultando a vida de um cliente de seus amigos
e associados e depois ser forçado a voltar atrás.49

“Paraíso”, “abrigo”, “refúgio”. Todos esses termos foram amplamente empregados


para descrever o Brasil diante de criminosos nazistas como Cukurs. Essa enunciação,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Correio da Manhã, “Báltico e outros”, 14/07/1950, p.2.
46
Diário Carioca, “Um nazista indesejável”, 07/07/1950, p.4.
47
Imprensa Popular, “Apelo aos amigos de M.Neiberg”, 03/01/1951, p.4.
48
Voz Operária, “Repulsa ao carrasco”, 19/05/1950, p.3.
49
Voz Operária, “Negrão e Cukurs”, 22/09/1951, p.3.

54
CAPÍTULO 1

contudo, não era uma criação inteiramente original. Ela estava inscrita em uma cadeia
de sentidos bastante conhecida pelo senso comum: a de que o Brasil sempre fora des-
tino de bandidos de toda estirpe. Na tradição francesa de análise de discurso, essa re-
cuperação do passado para atribuir um significado a um acontecimento no presente é
chamada de memória discursiva. Karla Regina Macena Pereira Patriota e Alessandra
Naves Turton explicam que “tal conceito diz respeito à recorrência de enunciados,
separando e elegendo aquilo que, de fato, dentro de uma contingência histórica espe-
cífica, pode surgir sendo atualizado no discurso ou rejeitado em um novo contexto
discursivo”.50 Na época em que Cukurs foi noticiado, a comparação mais recorrente
traçada pelos jornalistas foi entre os criminosos de guerra nazistas e os degredados da
metrópole, como eram chamados aqueles indivíduos que no Brasil Colônia, especial-
mente no século XVI, eram enviados para o Brasil e outras colônias do Império Ul-
tramarino português como pena por crimes cometidos na metrópole.51 Podemos ver
essa comparação no trecho abaixo, retirado do jornal carioca A Notícia:

Esta terra é, sem dúvida, um Éden para o rebotalho do mundo. Não


indagamos da procedência e da folha corrida dos que se apresentam
com ares de anjos e não passam de feras. Bem poderíamos alterar o
conceito do clássico Francisco Manoel de Melo: “Brasil, inferno dos
brancos, purgatório dos pretos e paraíso dos mulatos” para este que
seria rigorosamente verdadeiro: “inferno dos brasileiros, purgatório
dos bons e paraíso dos patifes internacionais”. Este caso é mais uma
prova de que os réprobos aqui viram santos. 52

A comparação foi feita uma segunda vez pelo jornal alguns dias depois:

Isto aqui continua sendo para elementos dessa ordem o que o Brasil
de 1500 foi para Pedro Álvares Cabral: uma terra sem dono (...). Para
que se veja, porém, como esses criminosos de guerra se sentem à
vontade, basta acentuar que, tendo se deixado ficar ostensivamente
na capital do país, nem sequer se preocupou em trocar de nome. E o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
PATRIOTA, Karla Regina Macena Pereira; TURTONC, Alessandra Navaes. Memória discursiva:
sentidos e significações nos discursos religiosos da TV. In: Ciências e Cognição/Science and Cogni-
tion, v. 1, 2009. p.15.
51
Cf. COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. Revista
de História da USP. Ano VII, No.27, Vol.XIII, jul. /set.1956; PIERONI, Geraldo. No purgatório, mas
o olhar no Paraíso: o degredado inquisitorial para o Brasil Colônia. Revista Textos de História, Brasília,
vol. 6, n.º 1 e 2, 1998. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1994. COATES, Timothy. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela Coroa no
império português. 1550-1755. Lisboa: CNCDP, 1998.
52
A Notícia, “O Paraíso Brasileiro”, 08/07/1950, p.2.

55
CAPÍTULO 1

governo da República, a quem foi denunciada a presença do desal-


mado nazista, reagiu com indiferença de quem não estava ouvindo
qualquer novidade. Sentir-se-á talvez honrado em ter como hóspede
um dos piores criminosos de guerra. Diante de tamanha afronta aos
sentimentos gerais de um povo que, inclusive, derramou sangue na
luta contra o nazismo, a reação verificada domingo último, por parte
de algumas dezenas de israelitas, foi até benevolente demais.53

O ataque da imprensa ao governo brasileiro, misturando críticas às administrações


Vargas e Dutra, expressava muito bem o espírito daqueles primeiros anos após a guer-
ra. Durante o Estado Novo, a imprensa fora sistematicamente controlada por apare-
lhos e autarquias estatais com o intuito de censurar e coibir o questionamento político
de jornais e revistas. Diversos jornalistas foram presos por tentar furar esse bloqueio.
As empresas jornalísticas agonizaram com a restrição ao acesso ao papel (que era im-
portado). No início da década de 1950, terminado o Estado Novo, a imprensa gozava
novamente de liberdade. Quando Getúlio Vargas anunciou seus planos para voltar ao
Catete, porém, essas críticas se tornaram ainda mais frequentes. Havia o medo do re-
torno do velho “ditador”. Cukurs foi apenas um dos vetores dessas críticas. Isso foi o
suficiente, no entanto, para colocar a questão dos criminosos nazistas sob um prisma
diferente. Aquele não era mais um tema distante do Brasil, abstrato ou desconexo.

O nome de Cukurs permaneceu em alta no noticiário durante todo os ano de 1950.


Durante esse período, o governo recebeu várias críticas. Essas críticas – e isso é real-
mente digno de atenção – são provenientes de diferentes setores ideológicos da im-
prensa, de veículos ora situados mais à esquerda, ora situados mais à direita. Depois,
acabou sumindo das manchetes, reaparecendo, no entanto, em outros momentos, co-
mo no início dos anos 1960. Vale dizer que não há nenhuma estranheza nessa oscila-
ção, que é bastante própria, por sinal, do discurso jornalístico. No fundo, o fato do Ca-
so Cukurs retornar de tempos em tempos aos jornais – e isso vai acontecer sobretudo
quando o tema dos criminosos nazistas é acionado – demonstra que o caso e os crimi-
nosos nazistas em geral se tornara relevante. Com Cukurs, a questão ganhou o seu
marco inaugural, uma referência a qual quase sempre se recorre ainda hoje.

Além de Cukurs, outro caso se tornou conhecido naquele ano de 1950: Jacques
Charles Noel Dugé de Bernonville. O “Conde de Bernonville” – como era mais co-
nhecido – fora um típico colaboracionista francês. Integrante da “Milícia Francesa”,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
A Notícia, “Nazista protegido”, 15/08/1950, p.1.

56
CAPÍTULO 1

combateu partisans e participou de ações antissemitas pelo governo fantoche de


Vichy. No imediato pós-guerra, Bernonville, católico tradicional e monarquista fervo-
roso, acionou sua rede de contatos a fim de escapar da justiça francesa. Passou pela
Espanha (1945), esteve nos Estados Unidos (1946) e imigrou para o Canadá (1946).
Em 1948, foi descoberto e sua extradição acabou se tornando uma questão de tempo.
O conde, afinal, não era apenas um suspeito. Ele já tinha sido julgado e condenado à
morte duas vezes in absentia. A primeira condenação data de 4 de junho de 1946,
quando a Corte de Justiça de Dijon o considerou culpado por atrocidades cometidas
em Vercors e Châlons; a segunda, em 1947, pela Corte de Toulouse.54

Imagem&6:&Ficha!Consular!de!Jacques!de!Bernonville.!Fonte:!Family!Search/!Arquivo!Nacional.!

Em agosto de 1951, após as autoridades canadenses sinalizarem sua entrega à jus-


tiça francesa, Bernonville escapou para o Rio de Janeiro. 55 O francês só pôde deixar o
Canadá graças a um salvo-conduto conseguido em Porto de Espanha, capital de Trini-
dad e Tobago, e a um visto permanente emitido pelo cônsul brasileiro em Montreal, o
ex-integralista João Severino da Fonseca Hermes Júnior. Seu voo chegou ao aeroporto
internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, no dia 18 de agosto de 1951.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
YVES, Lavertu. The Bernonville Affaire: A French War Criminal in Post-WWII. Québec: Robert
Davies, 1995.
55
HELLMAN, John. Monasteries, Miliciens, War Criminals: Vichy France/Quebec, 1940-50. Journal
of Contemporary History. London: Thousands Oaks, CA and New Délhi, Vol. 32 (4), 539-554, 1997.

57
CAPÍTULO 1

Nos primeiros dias no Brasil, Bernonville permaneceu anônimo. Era como se ele
simplesmente tivesse desaparecido. O sumiço durou pouco tempo, porém. Alguns di-
as depois, repórteres do jornal Última Hora acabaram descobrindo que o conde estava
instalado no Mosteiro de Santo Antônio, no Largo da Carioca, no centro do Rio de
Janeiro. Depois de descoberto, a polícia regularizou sua situação no país e, diante do
alvoroço da mídia, colocou policiais para fazer a sua proteção. Nos jornais, circulou a
notícia de que Bernonville contava com a ajuda da família imperial brasileira.56

O caso chama a atenção por suas peculiaridades: Bernonville era um condenado à


morte, obteve (mesmo assim) visto permanente do Itamaraty, recebeu proteção polici-
al, contou com a colaboração de membros da Igreja Católica e, talvez, segundo se
ventilou na imprensa, com o suporte de membros da família real brasileira.57 No iní-
cio do caso, o interesse da imprensa foi considerável. O Última Hora – que permane-
ceu o tempo inteiro em seu encalço – fez várias extensas reportagens sobre a sua pre-
sença no Brasil. Em uma delas, o UH escreveu que a história envolvendo o conde era
estranha e que as “forças poderosas” que tinham agido na França, permitindo que ele
deixasse o país após a guerra, também agiam, agora, dentro do Brasil:

O primeiro mistério dessa história é a própria saída de Bernonville da


França, onde deveria permanecer em face de sua condição de conde-
nado por crime de alta traição. Já daí se depreende que, por trás da
figura de aristocrata gaulês, se movem forças ponderáveis dentro de
sua pátria. E a maneira como conseguiu legalizar seus papéis para en-
trar no Brasil é uma prova da extensão da ramificação dessas mesmas
forças, vencidas com o armistício de maio de 1945, mas não total-
mente esmagadas.58

Tanto Bernonville quanto Cukurs tinham sido colaboracionistas durante a Segunda


Guerra Mundial e imigraram para o Brasil após o conflito. As semelhanças entre os
dois, contudo, não iam longe. Cukurs e Bernonville nunca se conheceram. Tinham
origens diferentes, chegaram ao país em datas diferentes e por meios diferentes. Ber-
nonville já tinha sido duas vezes condenado a morte. Cukurs não era procurado por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
56
Última Hora (RJ), “No encalço do colaboracionista”, 24/08/1951, p.5.
57
Repórteres do jornal Última Hora localizaram Bernonville hospedado no Mosteiro de Santo Antônio,
no Largo da Carioca. Desde sua saída da França, o conde vinha sendo ajudado por autoridades católi-
cas, sobretudo beneditinas, que o hospedaram em diversos monastérios. Quanto à família real brasileira
(ramo Orleans e Bragança), as famílias tinham relações por conta de um casamento.
58
Última Hora, “No encalço do colaboracionista”, 24/08/1951, p.5.

58
CAPÍTULO 1

qualquer tribunal. Isso não impediu, no entanto, que os jornais traçassem paralelos
entre os dois. Para o UH, por exemplo, tanto Bernonville quanto Cukurs estariam no
Brasil “sob a proteção de pessoas influentes na sociedade e na indústria”. 59 Essa rela-
ção de equivalência entre diferentes casos, a propósito, se tornaria dali em diante uma
marca do discurso da imprensa em notícias e reportagens sobre o tema dos criminosos
nazistas. Esses casos passarão a ser vistos como parte de um mesmo fenômeno, com-
partilhando características, e serão explicados, via de regra, a partir das mesmas refe-
rências.

Apesar das muitas perguntas sem respostas que envolviam a presença de Bernon-
ville no Brasil, os jornalistas foram gradativamente se desinteressando pelo caso. Ber-
nonville teve um papel fundamental para que isso acontecesse. Em diversas declara-
ções à imprensa, o conde acusou o governo francês de perseguição política. Ele admi-
tiu – com certo orgulho nacionalista – que tinha sido um dos homens de confiança do
Marechal Philippe Pétain.60 Porém, segundo declarou, isso não fazia dele um crimino-
so de guerra. Afinal de contas, conforme sublinhou, ele tinha permanecido fiel a um
governo francês legal. Sua condenação à morte no pós-guerra, neste sentido, seria
uma retaliação de comunistas que agora ocupavam cargos importantes no Estado
francês. 61 Sua estratégia era induzir a imprensa, a opinião pública e as autoridades
brasileiras a vê-lo como criminoso político e não como criminoso de guerra. Essa tô-
nica já tinha funcionado anos antes no Canadá, quando Bernonville conseguiu o apoio
de boa parte da população de Québec, a parte francófona-nacionalista. 62

O caráter político do Caso Bernonville acabou sendo reforçado nos anos seguintes
no campo jurídico. Em 1952, a França solicitou a extradição de Bernonville para o
Brasil. As autoridades francesas, porém, não anexaram ao processo evidências de
crimes comuns, conforme lhe eram atribuídos. O pedido de extradição apontava Ber-
nonville antes de tudo como “traidor” da pátria. Daí derivavam dois grandes proble-
mas de ordem técnica. Em primeiro lugar, a legislação brasileira não permitia extradi-
ção por crime político, mas apenas por crime comum. Em segundo lugar, Bernonville,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
Última Hora, “Negada naturalização a Herberts Cukurs…”, 28/08/1951, p. 4.
60
Jornais como o Imprensa Popular acusaram a polícia e o Itamaraty de favorecimento, além de ativar
a imagem do Brasil como “paraíso para fascistas”. Essa leitura, contudo, não foi hegemônica nos de-
mais veículos de imprensa do país. Cf. Imprensa Popular, “Bernonville”, 26/08/1951, p.3.
61
Última Hora, “O conde nega as acusações que o condenaram à morte”, 29/08/1951, p.5.
62
YVES, Lavertu. The Bernonville Affaire: A French War Criminal in Post-WWII Québec. Robert Da-
vies, 1995.

59
CAPÍTULO 1

uma vez que tinha sido condenado à morte, não poderia ser extraditado para a França.
A legislação brasileira somente autorizava extradições quando a legislação penal do
país requerente se adequasse à brasileira. Portanto, pena de morte e prisão perpétua,
inexistentes no código penal brasileiro, impediriam o processo, salvo se a França co-
mutasse a pena de Bernonville para outra prevista pela lei brasileira. Assim, em 1956,
o Supremo Tribunal Federal, entendendo estar diante de um crime político e não co-
mum, indeferiu o pedido francês. Bernonville permaneceu no Brasil até 1972, quando
foi assassinado na Lapa, em circunstâncias até hoje mal explicadas.63

Durante esta pesquisa deparei-me ainda com um terceiro colaboracionista no país:


Roberts Stiglics, antigo chefe da polícia de Riga durante a ocupação nazista. Nas pa-
lavras de Andrew Ezergailis, Stiglics foi “o mais proeminente colaborador da SD”.64
Stiglics entrou no Brasil como agricultor e com um visto permanente, concedido a ele
no dia cinco de janeiro de 1949 por Fernando Paulo Simas Magalhães, então vice-
cônsul do Brasil em Glasgow, na Escócia. Veio acompanhado com sua esposa, Pauli-
ne. Seu passaporte foi expedido por autoridades do Consulado da Letônia em Lon-
dres, no dia 26 de abril de 1948.65 Essas informações constam em sua ficha consular.
Quanto à sua vida no Brasil, muito pouco se sabe. Stiglics não esteve presente na im-
prensa, exceto por uma rápida menção do jornal judaico Nossa Voz, em 1962. 66

Um dossiê recém-aberto ao público pela Central de Inteligência Americana (CIA),


porém, revela aspectos interessantes da passagem de Stiglics pelo Brasil. Trata-se de
um material ainda totalmente inexplorado por historiadores. Stiglics, de acordo com
tais documentos, viveu em uma casa no bairro do Humaitá, zona sul do Rio de Janei-
ro, entre 1949 e 1950. Nessa época, começou a negociar com a CIA sua contratação
como informante. Não é possível determinar se a CIA o procurou ou se o que se deu
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
Bernonville foi encontrado morto, estrangulado, no dia 27 de abril de 1972, no quarto onde morava,
na Lapa, centro do Rio de Janeiro. Wilson Francisco de Oliveira, filho de sua empregada, foi apontado
como o principal suspeito. O julgamento de Oliveira ocorreu em 1979. Durou mais de 16 horas e reu-
niu cerca de 20 pessoas, entre advogados e estagiários de direito. No fim, Oliveira foi absolvido. O
detetive particular Bechara Jalkh, que investigou o crime, depôs no julgamento. Na sua opinião, o as-
sassinato de Bernonville foi obra de "comandos internacionais de caça a nazistas". Cf. O Globo, "Júri
absolve acusado da morte do conde francês", 26/04/1979, p.13.
64
EZERGAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. Riga/Washington:
Historical Institute of Latvia, 1996.
65
"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," data-base with images, Family Search
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:KXQF-W1Z : accessed 3 July 2015), Roberts Stiglics, 1949;
citing Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (National Archives, Rio
de Janeiro); FHL microfilm.
66
Nossa Voz, “Nunca Mais”, 27/12/1962, p.9.

60
CAPÍTULO 1

foi o contrário. De qualquer forma, Stiglics estava interessado em trabalhar para os


americanos e vice-versa. O interessa da CIA era em sua expertise em comunismo. Se-
gundo explicou aos agentes americanos na época, ele combatia comunistas desde
1923, quando assumiu o cargo do Escritório de Informações da Polícia Política Letã.
Sua principal tarefa em tal escritório era “dirigir a luta anticomunista contra a III In-
ternacional, o Partido Comunista da Letônia e espiões soviéticos”. Permaneceu neste
cargo durante 15 anos, período no qual também ministrou um curso de contraespiona-
gem e métodos de combate a comunistas. Quando os soviéticos invadiram a Letônia,
exilou-se na Finlândia. Em 1941, iniciada a ocupação nazista, retornou ao país. 67

Imagem&7:&Ficha!Consular!de!Roberts!Stiglics.!Fonte:!Family!Search/!Arquivo!Nacional.!

Seu codinome nas comunicações com a inteligência americana era Alleycat-14


(“Gato de Rua 14”). A troca de informações entre ele e a sua contraparte era feita por
um intermediário (cut-out, na linguagem da espionagem).68 Stiglics parecia bastante
disposto a vender o know-how acumulado na Europa. Ele afirmou que tinha construí-
do uma rede de aproximadamente 200 pessoas – entre agentes e policiais – trabalhan-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a84. http://www.foia.cia.gov.
68
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.

61
CAPÍTULO 1

do para ele antes da Segunda Guerra Mundial. Estas pessoas tinham sido recrutadas
para combater a URSS e muitos ainda estavam vivendo em Moscou.69

A inteligência americana tinha a intenção de pagar dois mil cruzeiros por mês a
Stiglics, podendo aumentar esse salário em mil cruzeiros depois de três meses. Porém,
os serviços de Stiglics pareciam disputados na época, como podemos notar:

Esse letão possui muitos anos de experiência no trabalho de inteli-


gência, e enquanto ele é recém-chegado no Brasil, há muitas razões
para acreditamos que ele eventualmente fará um trabalho merecedor
de crédito entre a colônia báltica. Contudo, enquanto nós esperamos
o aval operacional de Washington, Alleycat-14 foi contratado pela
Polícia Política por Cr$ 3.000 por mês. Espera-se que pelo menos al-
guns de seus relatórios sejam disponibilizados para nós através dela.
Prevê-se utilizar seus serviços como base de informação local quando
a ocasião surgir.70

Em 17 de julho de 1950, um memorando americano informou que o projeto Al-


leycat-14 tinha sido finalizado.71 Não há explicações sobre o porquê desse cancela-
mento e nem sabemos se Stiglics chegou a trabalhar efetivamente para os americanos.
Ezergailis sublinha que em certo ponto dos anos 1950, Stiglics demonstrou interesse
em visitar os Estados Unidos. Naquela ocasião, afirma o historiador, “Ozolins”, o ex-
chefe da Polícia Criminal Letã, teria alertado aos amigos de Stiglics que se ele fosse
aos Estados Unidos, ele seria denunciado. Stiglics, então, teria cancelado a viagem. 72

Ezergailis escreve que Stiglics morreu no Brasil, nos anos 1950. 73 Mas essa infor-
mação está errada. Segundo apontam os registros de segurança social dos Estados
Unidos, Stiglics e Pauline, sua esposa, imigraram para aquele país no início de 1961.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.
70
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a80. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov>. Acesso em: 02/02/2015.[Original: “This Latvian has had many years of
experience in intelligence work and, while he is newly arrived in Brazil, there is every reason to believe
that he will eventually do a creditable job among the Baltic colony. However, while awaiting opera-
tional clearance from Washington, Alleycat-14 was hired by the Political Police at CR$3,000 per
month. It is hoped that at least some of his reports will be made available to us through them. It is
planned to use his services on a spot information basis when the occasion arises”.]
71
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a81. http://www.foia.cia.gov.
72
EZERGAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. Riga/Washington:
Historical Institute of Latvia, 1996. p.332.
73
Ibidem.

62
CAPÍTULO 1

Em 1967, solicitaram nacionalidade americana. 74 Residiram o resto de seus dias em


Los Angeles. Ele faleceu em outubro de 197275 e ela em dezembro de 1976. 76

1.5. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1960-1969

Em maio de 1960, um acontecimento de enorme envergadura internacional teve


um impacto direto nos discursos sobre a questão dos criminosos nazistas no Brasil: a
captura e julgamento de Adolf Eichmann. Assim que o governo israelense anunciou
ao mundo que um dos principais responsáveis pela Solução Final se encontrava em
Jerusalém aguardando julgamento, a imprensa brasileira imediatamente trouxe de vol-
ta o nome de Herberts Cukurs para os noticiários. Foi como se os jornais simplesmen-
te tivessem se lembrado que o país tinha o seu “próprio Eichmann”. Os dois casos,
então, passaram a ser tratados nas mesmas páginas e editorias. Alguns veículos notici-
aram que Cukurs poderia ser a qualquer momento sequestrado e levado a Israel.77 No
Capítulo 4, veremos com mais detalhes o retorno de Cukurs às manchetes.

Além de Cukurs, outro nome que se tornou recorrente na imprensa nos anos 1960
foi o de Martin Borman78, antigo secretário particular de Hitler e vice-presidente da
NSDAP. Todos os indícios no pós-guerra indicavam que Bormann tinha morrido al-
guns dias depois da chegada dos soviéticos a Berlim. A imprensa brasileira, contudo,
tinha outras versões para o que teria ocorrido. O Tribuna da Imprensa, por exemplo,
noticiou em sua primeira página que Borman estava vivendo em Santa Catarina. O
jornal reproduzia informações que um “agente especial israelense” teria passado a um
jornalista do veículo inglês Daily Maily em Munique. De acordo com esse agente, o
“herdeiro de Hitler” tinha residido inicialmente na Bahia com o nome de José Posea,
mas desde 1952 tinha “formado um reduto nazista no Estado de Santa Catarina”.79

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a83. http://www.foia.cia.gov;
Central Intelligence Agency (FOIA), DN: 519bded2993294098d514a8a. http://www.foia.cia.gov;
75
"United States Social Security Death Index," index, FamilySearch
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JBST-2MG: accessed 7 June 2015), Robert Stiglics, Oct 1972;
citing U.S. Social Security Administration, Death Master File, database (Alexandria, Virginia: Nation-
al Technical Information Service, ongoing).
76
"United States Social Security Death Index," index, FamilySearch
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JBST-2Z6: accessed 7 June 2015), Pauline Stiglics, Dec 1976;
citing U.S. Social Security Administration, Death Master File, database (Alexandria, Virginia: Nation-
al Technical Information Service, ongoing).
77
Diário de Notícias, “Nazista receia ser raptado”, 07/06/1960, p.1.
78
Em 1998, análises de DNA confirmaram que Bormann morreu em 1945, em Berlim.
79
Tribuna da Imprensa, "Martin Bormann, herdeiro de Hitler, vive em Santa Catarina", 27/05/1960, p.1

63
CAPÍTULO 1

Já o Diário Carioca, no dia 27 de maio de 1960, publicou uma informação diferen-


te: tanto Bormann quanto Mengele estavam em Minas Gerais. Policiais israelenses,
inclusive, estariam próximos de capturá-los. Segundo o jornal, a Secretaria de Segu-
rança do estado tinha uma hipótese para explicar o desembarque dos agentes israelen-
ses no Brasil: “eles teriam desembarcado do submarino visto há dias em águas do lito-
ral baiano, onde guias previamente avisados fizeram com que eles se internassem no
país e finalmente chegassem ao local onde suspeitam estarem os dois ex-chefes de
campos de concentração nazistas”. O Diário Carioca não revelou, porém, sua fonte.80

No dia primeiro de junho de 1961, o Última Hora, anunciou que uma notícia tinha
caído como uma bomba na redação do jornal: Bormann fora visto diversas vezes pe-
rambulando pelas imediações de Vicente de Carvalho, no Guarujá. Geni Masceno da
Silva, a “Dona Geni”, uma viúva de 46 anos residente do bairro, era a informante do
jornal. “Dona Geni” contou que conheceu o homem que ela acreditava ser Bormann
em janeiro de 1960. Ele estava com fome e cansado. Tinha vindo a pé do Paraná. O
Bormann de “Dona Geni” revelou que estava fugindo de seus compatriotas e que não
poderia regressar ao seu país de origem por ter ocupado cargos muito importantes no
regime nazista. A testemunha teria se encontrado com ele várias vezes desde então.
Em uma das visitas, ele teria dito: “a que ponto chegou Martin, pedindo esmolas”. 81

Nos anos 1960, houve uma verdadeira epidemia de notícias de pessoas que afirma-
vam ter visto ou travado contato direto com Martin Bormann no Brasil. Os jornais
pareciam não se importar se as fontes aparentavam ser pouco fidedignas. No afã do
tão almejado furo jornalístico e da alavancagem das vendas, simplesmente publica-
vam qualquer informação que chegasse à redação. Os jornais mais populares eram os
que mais recorriam a este tipo de expediente. Visando à espetacularização da realida-
de, davam voz à “Dona Geni” e muitos outros que tivessem uma história curiosa para
contar sobre criminosos nazistas. Isso se tornou ainda mais comum após o início do
julgamento de Eichmann, em abril de 1961. No dia 20 de março de 1964, mesmo o
Brasil vivendo momentos políticos turbulentos, a poucos dias do golpe civil-militar, o
Última Hora ainda encontrava espaço para falar sobre Bormann. Na edição daquele
dia o UH divulgou na primeira página que o antigo chefe do NSDAP estava vivendo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
Diário Carioca, "Agentes de Israel em Minas: polícia observa", 20/05/1961, p.10.
81
Última Hora, "Carrasco-fantasma em Santos está faminto e maltrapilho", 01/07/1960. p.2.

64
CAPÍTULO 1

em Mato Grosso. 82 Em 1966, a ideia de que o braço direito de Hitler tinha mesmo
vindo para o Brasil inspirou o filme italiano “Borman”, que contava a história de um
agente secreto americano cuja missão era parar um perigoso movimento neonazista
liderado por um antigo líder nazista (Bormann) que planejava dominar o mundo. 83

Imagem&8:&Bormann!“caçado”!no!Brasil.!Fonte:!Última!Hora,!28/05/1960.!!p.1.!

Essas histórias nos permitem perceber uma mudança de perspectiva relevante neste
período: as fantasias, as excentricidades, a imaginação, o conspiratório e especialmen-
te a especulação vão cada vez mais se fazer presentes no discurso da imprensa sobre a
questão dos criminosos nazistas no Brasil. Se na década anterior esses discursos ti-
nham sido plasmados em casos concretos, a partir de agora, o hipotético e o especula-
tivo também passariam a ser elementos importantes nas formulações da imprensa.

É também na década de 1960 que o cotejamento de casos diferentes passa a ser fei-
to com mais frequência. Casos ocorridos no Brasil são comparados e compreendidos à

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
82
Última Hora, "Homiziado em Mato Grosso o braço direito de Hitler", 20/03/1964, p.1.
83
Tribuna da Imprensa, "Cinema", 11/10/1966, p.3 e IMDB, disponível em:
<http://www.imdb.com/title/tt0158509/?ref_=nm_flmg_act_11>. Acesso em: 03/07/2015. Um infor-
mação importante: no final dos anos 1990, exames clínicos forenses confirmaram que Bormann morreu
em 1945. Seu corpo foi encontrado em um subterrâneo de Berlim.

65
CAPÍTULO 1

luz de outros casos, ocorridos em outros países latino-americanos, especialmente Chi-


le e Argentina. Em fevereiro de 1963, ao refletir sobre o Caso Rauff, no Chile, o escri-
tor Otto Maria Carpeaux publicou um artigo intitulado “Asilos” no Correio Manhã.
Nele, Carpeaux, de ascendência judaica,, austríaco, refugiado do nazismo, explica a
decisão da corte de justiça chilena em não extraditar Rauff como resultado das “sim-
patias das autoridades latino-americanas com o nazismo”84:

(...) Como conseguiram imigrar aqui, justamente numa época em que


a legislação imigratória se tornou cada vez mais rigorosa? É por te-
rem encontrado na América Latina simpatias, inclusive nas autorida-
des. No Brasil, a opinião pública continua até hoje muito mal infor-
mada sobre o terrorismo nazista porque este coincidiu com o tempo
da censura germanófila estadonovista. (...). Quando nos romances po-
liciais o criminoso consegue fugir, sempre é para Buenos Aires, capi-
tal da Argentina, ou para o Rio de Janeiro, capital do Brasil; às vezes
para Buenos Aires, capital do Brasil, ou para o Rio de Janeiro, capital
da Argentina. Pois os europeus continuam conhecendo pouco a Amé-
rica Latina; e hoje a conhecem como o continente em que se asilaram
tantos criminosos do nazismo e fascismo.85

Essa mesma lógica foi capaz de associar, por exemplo, Cukurs ao médico-
torturador de Auschwitz, Josef Mengele. É o que vamos ler na reportagem “Na pista
dos carrascos nazistas”, publicado em O Globo na edição de sete de março de 1967:

Os responsáveis pelo genocídio, prevendo a possível vingança dos


sobreviventes dos campos e dos povos subjugados, prepararam sua
fuga com antecedência. Falsas identidades foram preparadas. Cada
um dos responsáveis portava várias delas. Os destinos eram diversos.
E os ratos abandonaram o navio. Comandantes de campo, organiza-
dores da morte, especialistas em remoção de prisioneiros, médicos
que faziam experiências em judeus, torturadores, todos, enfim, que
durante vários anos infligiram os maiores castigos a inocentes, refu-
giaram-se em outros países. Adolf Eichmann, Joseph Mengele, Hein-
rich Müller, Herberts Cukurs e outros mais, simplesmente desapare-
ceram. Anos após, notícias principiaram a circular, indicando as suas
presenças no Brasil e em outros países da América do Sul. A Argen-
tina e o Paraguai foram os mais apontados. Em maio de 1960, na Ar-
gentina, o ‘SS’ ‘obersturmbannführer’ 45326, Karl Adolf Eichmann,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
Correio da Manhã, “Asilos”, 14/02/ 1963, p.6.
85
Correio da Manhã, “Asilos”, 14/02/ 1963, p.6.

66
CAPÍTULO 1

ao sair de uma indústria onde trabalhava, foi preso por um comando


judeu. Em fevereiro de 1965, o ex-oficial letoniano Herberts Cukurs,
que residia na capital paulista, foi assassinado no Uruguai.86

Ainda nesta reportagem, especulou-se que várias personalidades do governo nazis-


ta estariam no Peru, Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. Essas lideranças teriam
preferido a América Latina “pelos privilégios e facilidades de trabalho e locomoção”.
Além disso, segundo o jornal, as condições climáticas da Argentina e do sul do Brasil
seriam o principal atrativo para esses nazistas e criminosos nazistas no pós-guerra.87

Se na primeira metade da década de 1960, Eichmann foi o evento responsável por


trazer de volta o tema dos criminosos nazistas ao noticiário brasileiro, na segunda me-
tade, a captura do nazista Franz Stangl em São Paulo foi responsável por mantê-lo em
evidência. Nascido na Áustria, em 1908, Stangl participou do programa de Eutanásia
de Hitler, o chamado T4, e foi um dos comandantes dos campos de extermínio de
Treblinka e de Sobibor, na Polônia, onde foram assassinados cerca de 870 mil judeus.
Após a guerra, em 1945, Stangl foi detido pelo exército americano e enviado para um
campo de prisioneiros de guerra na Áustria. Em 1947, enquanto aguardava a conclu-
são das investigações, conseguiu escapar. Saiu da Europa via Roma, em direção a Sí-
ria, onde permaneceu até em 1951, quando, finalmente, imigrou para o Brasil. Em
maio de 1967, quando voltava de seu trabalho, numa fábrica da Volkswagen, em São
Bernardo do Campo, foi preso por agentes da Polícia Federal. Stangl e família viviam
há anos em São Paulo. Algumas semanas depois de sua captura, Áustria, Alemanha e
Polônia já tinham solicitado sua extradição ao governo brasileiro.88

O Brasil vivia, então, uma ditadura militar. É difícil dizer até que ponto o clima de
repressão vigente no país já afetava as redações jornalísticas a ponto de escamotear
críticas ao governo. Essa pesquisa revelou, porém, que as autoridades brasileiras não
se viram totalmente livres delas no Caso Stangl. Isso aconteceu principalmente nos
primeiros momentos, enquanto o austríaco esteve preso em Brasília aguardando o jul-
gamento do STF. O experiente Joel Silveira, ex-correspondente na Segunda Guerra
Mundial, disse em tom de ironia no Diário de Notícias que o austríaco já tinha engor-
dado mais de cinco quilos na prisão. “Bons ares, comida farta e na hora certa, pelotões

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
O Globo, “História que começa na queda de Berlim”, 07/03/1967, p.7.
87
O Globo, “História que começa na queda de Berlim”, 07/03/1967, p.7.
88
SERENY, Gitta. Into that darkness: An examination of conscience. London: Vintage, 2011.

67
CAPÍTULO 1

de guardas cuidando de sua tranquilidade e de sua integridade física – ele que é feliz”.
Ironia também foi o recurso empregado no editorial do jornal, que comparou o trata-
mento dado a Stangl com aquele que era dado aos adversários do regime militar: “é
estranho o cuidado, o amor que os donos do poder têm pelo nazista Stangl. Matam
brasileiros – principalmente os que não estiverem de acordo com a situação atual –,
mas defendem um homem que matou milhares e milhares de judeus”. 89

A “seletividade” do aparato policial brasileiro também foi sublinhada pelo editorial


do Jornal do Brasil. Mas o JB foi além na sua análise ao inserir o Brasil no contexto
latino-americano de receptividade aos criminosos nazistas. Assim escreveu:

(...) impõe-se que as nossas autoridades não confundam tolerância e


espírito cristão com sentimentalismo conivente. Já é negativo para o
país que aqui tenham aportado criminosos de guerra, numa escolha
suspeita de esconderijo que pelo menos entremostra a esperança da
guarida e da impunidade (...). Esses fugitivos da justiça – não da jus-
tiça de uma nação ou de um povo, mas de toda a humanidade – cer-
tamente estiveram apoiados em informações que davam conta da
ambivalência do Governo brasileiro no momento de decidir entre a
agressão nazista e a causa da democracia. Para aqui vieram, como
outros buscaram a Argentina de Perón e o Paraguai de Stroessner,
guiados pelo fato da similitude totalitária. O processo de redemocra-
tização nacional, vale registrar, não erradicou da atividade política e
de todo tipo de influência aqueles que serviram ao Estado Novo, en-
tre os quais se incluíam notórios simpatizantes de Hitler. (...) A maté-
ria exige mesmo um enforcamento segundo critérios especialíssimos,
em que se empenhe a honra do governo brasileiro. Do contrário, ofe-
receríamos ao mundo um espetáculo melancólico, ampliando a nossa
fama de refúgio preferido da delinquência internacional, tantos têm
sido os criminosos de toda natureza que aqui se abrigam para burlar a
justiça dos respectivos países. (...). Estranha-se, por fim, que o geno-
cida nazista haja conseguido introduzir-se no Brasil com a maior fa-
cilidade, sem querer se dar ao trabalho de mudar de nome, sabido que
nem sempre o aparelho policial brasileiro – sobretudo quando lhe
convém aos interesses – costuma ser tão apático.90

Fora do Brasil, o caso se tornou conhecido, de modo que havia grande expectativa
em torno da decisão da corte brasileira. Nos Estados Unidos, ao ser informado da si-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Diário de Notícias, “Coisas da Vida“, 18 /05/1967, 2a seção/sem página.
90
Jornal do Brasil “Justiça”, 04/03/1967, p.2.

68
CAPÍTULO 1

tuação do ex-nazista austríaco, o senador democrata Robert Kennedy declarou à mídia


americana que não esperava outra ação do Brasil que não a extradição, enquanto que
de Viena, na Áustria, Simon Wiesenthal, que vinha dedicando sua vida a levar crimi-
nosos nazistas à justiça, enviou um telegrama ao governo brasileiro lembrando que ele
“sustentava uma grande responsabilidade neste assunto”, devendo, assim, tomar cui-
dado para não “aparecer como defensor de criminosos de guerra”.91

Imagem&9:&Ficha!Consular!de!Franz!Stangl!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search!/!Arquivo!Nacional.!

O STF não demorou a se pronunciar. Três meses depois da captura de Stangl, o ór-
gão anunciou que iria acatar os pedidos de Alemanha e Áustria. O pedido da Polônia
foi recusado, pois havia pena de morte no país, o que era incompatível com o direito
brasileiro. Stangl foi enviado para a Alemanha Federal em 1969. Antes de deixar o
Brasil, declarou a imprensa que um dia voltaria ao país. Mas isso nunca aconteceria.
Stangl morreu na prisão, em 1971, de causas naturais. Hoje, o STF considera do Caso
Stangl como um de seus “julgamentos históricos”.92

A prisão de Stangl pela polícia paulista e sua rápida extradição podem explicar a
ausência de uma crítica mais dura em relação ao governo brasileiro. Ainda assim, a
enorme repercussão acabou associando, mais uma vez, a imagem do Brasil a crimino-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
Diário de Notícias, "Polônia exige Stangl: lá tem pena de morte", 18/03/1967, p.6.
92
Os julgamentos considerados históricos pelo Supremo Tribunal Federal estão disponíveis em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico.
Acesso em: 08/07/2015.

69
CAPÍTULO 1

sos nazistas. Os jornais pareciam mais do que nunca convictos de que os países sul-
americanos haviam se transformado em um refúgio para criminosos nazistas.

Nessa mesma época, muito por conta do Caso Stangl, mas não apenas em função
dele, o imaginário político em torno da presença de criminosos nazistas no Brasil se
desenvolveu ainda mais. Além das facilidades na imigração, do “clima favorável” na
região sul do país e das ditas regalias oferecidas pelas autoridades locais, começou a
se difundir também a noção de que os criminosos nazistas contavam na América Lati-
na com a colaboração inestimável de uma poderosa organização secreta nazista. Fer-
nando Levisky, na sua coluna opinativa no Diário de Notícias, explicou que essa or-
ganização estaria por trás dos nomes de Herberts Cukurs e Franz Stangl:

É sabido que existe uma organização internacional de ajuda recíproca


entre os nazistas, apoiada no dinheiro obtido pelos dentes de ouro,
cabelos, ossos triturados para adubo, epiderme para encadernações,
arrancados das seis milhões de vítimas trucidadas e asfixiadas nos
campos de concentrações. Franz Stangl, recentemente extraditado,
residiu durante quinze anos e com nome próprio em São Paulo, Cu-
kurs, assassinado em Montevidéu, provavelmente por um comparsa,
só teve como castigo o impedimento de sua naturalização, tendo tra-
balhado normalmente tanto no Rio, como em São Paulo.93

Mas a ideia de uma organização secreta de ajuda a nazistas, rica, onipresente, po-
derosa e quase invisível, não era uma elucubração apenas de jornalistas. Seu principal
articulador era Simon Wiesenthal. Nascido na Galícia, em 1908, Wiesenthal estudou
arquitetura em Praga e estava vivendo em Lvov, Polônia, quando a Segunda Guerra
Mundial começou. Ele foi preso com sua família e passou o resto do conflito em di-
versos campos de concentração e trabalho. Em cinco de maio de 1945, depois de per-
der quase todos os familiares, Wiesenthal foi libertado do campo de Mauthausen por
tropas americanas. Uma vez em liberdade, dedicou-se a encontrar criminosos nazistas
e levá-los à justiça. Em 1947, ele fundou o Centro Judaico de Documentação Históri-
ca, na Áustria. No pós-guerra, foi o responsável por reunir informações sobre diversos
criminosos nazistas. Stangl, está nesta lista. Foi ele quem avisou as autoridades brasi-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Diário de Notícias, “Neofascismos”, 07/02/1968, p.3.

70
CAPÍTULO 1

leiras da presença de Stangl em São Paulo. Wiesenthal costumava dizer aos jornalistas
e em seus livros que seu trabalho não consistia em vingança, mas em fazer justiça.94

Um mês após a captura de Stangl, em 1968, Wiesenthal lançou The Murderers


Among Us: The Simon Wiesenthal Memoirs. Neste livro, o austríaco “caçador da na-
zistas”, conforme alcunha dada pela imprensa, passou a alardear a informação de que
existia uma organização secreta formada por antigos membros da SS nazista com o
intuito de proteger seus camaradas no exílio e ajudar a fundar um novo Reich. Essa
organização se chamaria ODESSA, anagrama de Organisation der ehemaligen SS-
Angehörigen ("Organização de antigos membros da SS") e atuaria em diversos países,
principalmente na América Latina. Não era a primeira vez que Wiesenthal falava na
ODESSA. Em 1961, ele tinha mencionado essa rede a jornalistas ao explicar um es-
quema montado logo após a guerra onde padres romanos teriam facilitado a fuga de
Eichmann para a Argentina. Porém, somente no final daquela década, após ao escân-
dalo envolvendo Stangl, a ODESSA passou a receber mais atenção. 95 Wiesenthal
nunca apresentou evidências relevantes da existência desta organização, mas a mídia,
já bastante pré-disposta a aceitar narrativas do gênero, multiplicaria a história. Na
verdade, a incapacidade de demonstrar a materialidade da ODESSA passou a ser vis-
ta, curiosamente, como a prova cabal de sua força e de seus tentáculos.

A ODESSA, não obstante, estava longe de ser a única rede nazista a aparecer na
imprensa naqueles anos.. Em novembro de 1967, o Diário de Notícias afirmava ape-
nas que os “herdeiros de Hitler” tinham armado uma “rede” no país.96 Não dava nome
a ela. O Luta Democrática, por sua vez, explicou que, além da ODESSA, outra rede
formada por nazistas agia livremente no continente, inclusive no Brasil. Ela se chama-
ria CISNE. 97 No Senado Federal, o deputado Marcos Kertzmann chegou a falar em
uma “Internacional Nazista”,98 enquanto que Fernando Leviski, então diretor da Fede-
ração Israelita de São Paulo, declarou ao Correio da Manhã:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
94
Perfil de Simon Wiesenthal no Yad Vashem. Disponível em:
<http://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206667.pdf> Acesso em:
09/07/2015.
95
O Globo, “Acusação sem base a Padres Romanos”, 05/04/1961, p.12.
96
Diário de Notícias, “Herdeiros de Hitler armaram rede no Brasil”, 17/11/1967, p.6.
97
Luta Democrática, “Arca de Noé”, 05/03/1967, p.3.
98
Diário do Congresso Nacional, 28/04/1967, p.1756.

71
CAPÍTULO 1

Não há dúvidas que, juntamente com numerosos nazistas submersos


no Brasil, existem fortunas em ouro, trazidas de além-mar. Nos der-
radeiros dias do avanço aliado em Berlim, caixotes com tesouros,
contendo ouro, platina, prata, brilhantes, foram transportados por vá-
rios chefes e subchefes. Muita indústria na América do Sul foi mon-
tada com o dinheiro e joias roubados dos asfixiados. (...) Há na Amé-
rica do Sul muitos criminosos de guerra. Argentina (Bariloche) pos-
sui até uma colônia dos refugiados do conflito mundial. Paraguai,
Chile, Uruguai, Peru, também contam com alguns nazistas, hoje, in-
dustriais ou altos funcionários de fábricas montadas com ouro obtido
pelo massacre”.99

No final da década de 1960, a questão dos criminosos nazistas tinha encontrado o


seu espaço na esfera pública brasileira. A imprensa continuou sendo a principal pro-
dutora de sentidos. Mas a literatura de Simon Wiesenthal, além do cinema, também já
começavam a dar suas contribuições. Agora, além das autoridades governamentais, os
foragidos do regime nazista contavam com o apoio de poderosas redes secretas. No-
mes como Cukurs, Mengele, Eichmann, Rauff ou Stangl eram entrelaçados, compará-
veis, explicados a partir das mesmas chaves. Faziam parte de uma narrativa universal.

1.6. A questão dos criminosos nazistas no Brasil: 1970-1989

Ao se referirem a imagem da Argentina como paraíso nazista no pós-guerra, Igna-


cio Klich e Cristian Buchrucker sublinham que essa noção deriva, em grande medida,
de uma tendência demasiadamente humana: a de considerar que tudo aquilo que nos
pertence ou está próximo de nós, nosso país, por exemplo, não pode ser menos do que
o centro do universo.100 Nas décadas de 1970 e 1980, a imprensa brasileira parecia
acometida por essa inusitada vaidade. A exemplo do que já acontecia no final dos
anos 1960, os jornais continuaram dando amplo espaço para o tema dos criminosos
nazistas no Brasil. O interesse por essas histórias, na verdade, parecia ainda maior.
Vários acontecimentos recentes vinham contribuindo para isso. Em 11 de novembro
de 1970, por exemplo, entrou em vigor a resolução 2391 da Assembleia Geral das
Nações Unidas, que tornava imprescritível os crimes contra a humanidade. Naquele
mesmo ano, Franz Stangl foi sentenciado à prisão perpétua na Alemanha, vindo a fa-
lecer no ano seguinte. Outro fato importante para se compreender a atenção dada à
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
Correio da Manhã, “Massacre judeu enriqueceu Stangl e outros nazistas”, 04/03/1967, p.10.
100
KLICH, Ignacio; BUCHRUCKER, Cristian. Argentina y la Europa del Nazismo: sus secuelas. Bue-
nos Aires: Siglo XXI, 2009. p.18.

72
CAPÍTULO 1

questão dos crimes nazistas foi o amadurecimento de uma consciência histórica do


Holocausto. Conforme nos explica Peter Novick, a Guerra do Yom Kippur (1973),
entre Israel e uma coalização de Estados árabes, teve um papel essencial neste proces-
so, bem como a “americanização” do Holocausto, que atingiu o seu ápice nos anos
1980.101 Não que o genocídio dos judeus estivesse até ali fora do que consideramos
história ou que fosse pouco conhecido das pessoas, mas foi a partir de tais eventos que
ele começou a preencher os diversos espaços sociais e culturais, passando a estar pre-
sente em um número cada vez maior de romances, filmes, peças de teatro, documentá-
rios, testemunhos, biografias, poesias, discursos públicos, monumentos, memoriais,
museus, etc. Naturalmente, cresceu o interesse em torno daqueles que cometeram tais
crimes. O que aconteceu com eles após a guerra? Para onde foram? Foram punidos?

O enredo dessas histórias continuava essencialmente o mesmo. O Brasil permane-


ceu sendo apontado como o destino final de Bormann no pós-guerra. Em 1971, Simon
Wiesenthal – agora bem mais famoso – afirmou à imprensa europeia e americana que
depois de fazer uma cirurgia plástica, Bormann vivia dividindo-se entre Brasil, Para-
guai e Chile. “Possivelmente por razões de segurança”, explicou.102 Os jornalistas
também continuavam se importando muito pouco com as fontes de suas notícias. Pa-
recia não haver nenhuma apuração quando o tema era criminosos nazistas. O Correio
da Manhã demonstra isso muito claramente em uma nota publicada no dia 23 de ja-
neiro em 1971, em que diz: “Hans, alemão, chegou à cidade de Ibirubá, no Rio Gran-
de do Sul, de surpresa. Fez amizades com muita gente e pediu muitos favores. Hoje
dizem que ele era Martin Bormann, carrasco nazista. Quem desmente?103 Na década
de 1960, o nome Martin Borman foi citado em 63 ocasiões no Correio da Manhã. Na
década seguinte, esse número subiu para 81. Crescimento similar ao observado em
ambos os períodos no Jornal do Brasil. No JB, Bormann foi citado 67 vezes na déca-
da de 1960 e 87 vezes na década subsequente. E Bormann foi apenas um entre uma
longa lista de nomes evocados pela imprensa nesta última década. Em 22 de novem-
bro de 1974, o jornal O Globo anunciava que, após Herberts Cukurs e Franz Stangl, a
caça aos nazistas tinha se deslocado da Argentina para o Brasil. A reportagem – parte
de um especial sobre o nazismo – ocupava uma página inteira. 104

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
101
Cf. NOVICK, Peter. The Holocaust in American Life. Nova York: Mariner Books, 1999.
102
Correio da Manhã, “Caçador de Nazistas nega morte de Bormann”, 1971, p.3.
103
Correio da Manhã, “‘Caçador de nazistas’ nega a morte de Bormann” 1971, p.13.
104
O Globo, “Com Cukurs e Stangl, caça desloca-se para o Brasil”, 22/11/1974, p.25

73
CAPÍTULO 1

Além de Bormann, outras imagens já vistas por nós aqui coexistiam no discurso da
imprensa. A relação do governo brasileiro com criminosos nazistas é uma delas. O
jornalista Edmar Morel, responsável por várias matérias sobre o tema nos anos 1950,
continuava escrevendo a respeito do tema. Em 1972, na revista Politika, Morel afir-
mou que Bernonville, Stangl e Cukurs eram exemplos de como “durante anos, o Bra-
sil foi o paraíso dos nazistas, que aqui encontraram proteção por parte das autorida-
des”. 105 Complementando tal teoria, naquele mesmo ano, o Luta Democrática afir-
mou que por trás de Stangl e Cukurs, entre outros nazistas que tinham parado no país,
existiam poderosas organizações secretas de orientação nazista”. 106

As redes secretas nazistas, a propósito, atingiram o auge de sua popularidade nos


anos 1970. Em fevereiro de 1978, o Jornal do Brasil, reproduziu o alerta de um repre-
sentante do Yad Vashem que afirmou que criminosos nazistas de várias nacionalida-
des tinham escolhido o Brasil como refúgio, usando nomes falsos, recebendo a prote-
ção tanto do governo quanto de poderosas organizações clandestinas formadas por
antigos nazistas (Odessa, Os Camaradas e A Aranha). Dizia a matéria “(...) a exemplo
de todo o continente, há uma virtual falta de interesse por parte das autoridades brasi-
leiras em investigar o assunto”, completou o jornal.107 Em abril do mesmo ano, O
Globo afirmou haver “centenas de fatos” que faziam crer que a região se tornara um
refúgio de ex-nazistas e criminosos de guerra foragidos da justiça dos aliados. 108

A imprensa, como podemos ver, continuou tendo um papel de destaque na produ-


ção do imaginário político sobre os criminosos nazistas no Brasil. Mas é preciso dizer
que nos anos 1970 e 1980, a literatura e o cinema foram outras duas forças poderosas
a atuar na conformação desse imaginário. A cultura de massa deve ser vista aqui co-
mo um ponto de injunção de narrativas reais e concretas com narrativas ficcionais e
especulativas. Neste sentido, 1972 é um ano marcante. Nele, o escritor inglês Frede-
rick Forsyth, já famoso por O Dia do Chacal (1971), publicou O Dossiê Odessa. O
livro rapidamente se tornou um sucesso comercial e também entre a crítica especiali-
zada. A obra se passa em 1963 e conta a história de um jornalista alemão que recebe o
diário de um velho judeu suicida. Neste diário, há informações sobre um criminoso

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
105
Politika, “Fugindo do Canadá...”, 22-28/05/1972, p.8.
106
Luta Democrática, “Teias da Ordem Negra protegem os nazistas”, 05/05/1972, p.8.
107
Jornal do Brasil, “Israelense aponta criminosos...”, 22/02/1978, p.13.
108
O Globo, “Brasil, segundo maior refúgio de ex-nazistas”, 25/04/1978, p.8.

74
CAPÍTULO 1

nazista responsável pela morte de milhares de judeus que ainda anda à solta. O repór-
ter investiga e descobre, então, a perigosa e conspiratória ODESSA.109

O Dossiê Odessa é um romance. Forsyth, no entanto, indicou várias vezes que sua
obra tinha inspiração em fatos reais. No prefácio – algo nada comum para livros de
ficção – o autor explica ao leitor o que é a ODESSA, como ela se estrutura, qual o seu
objetivo e como opera. Forsyth conta, inclusive, sobre um “maço de documentos” a
respeito da organização que teria chegado recentemente de forma inesperada e anô-
nima ao Ministério da Justiça em Bonn, na Alemanha. Além disso, a própria trama
contribui para borrar os limites entre o real e a imaginação. Alguns personagens são
pessoas de verdade, conhecidas publicamente, como Simon Wiesenthal, enquanto ou-
tros são inventados pelo autor, caso do protagonista. Em uma das edições americanas,
o editor dá uma justificativa para essa linha tênue entre o real e o inventado. Para ele,
a dúvida seria fundamental para despertar a “perplexidade do leitor”.110

O Dossiê Odessa fez tanto sucesso que quatro anos depois de lançado, o livro ga-
nhou uma versão igualmente bem-sucedida para o cinema, dirigida pelo britânico Ro-
nald Neame (na época, um dos mais destacados cineastas de Hollywood, diretor de O
Destino de Poseidon) e com Jon Voight (de Perdidos na noite) na pele do protagonis-
ta. Nessa época, a realidade e a fantasia tinham se combinado completamente. Em
1975, quando o filme estreou no grande circuito brasileiro, O Globo publicou uma
matéria no suplemento cultural Rio Show intitulada “Os segredos da Odessa ou de
como influentes nazistas atuam por aí”, que reforçou ainda mais a ideia de que o filme
realmente se baseou em fatos reais:

Tanto Frederick Forsyth quanto o produtor John Woolf, o diretor Ne-


ame e também seus intérpretes Schell e Voigh consideram que O
Dossiê Odessa é mais que um filme de aventura e espionagem – para
eles, é isto sim, mas é principalmente uma denúncia cuja importância
não deve ser desprezada ou esquecida.111

Outro romance do gênero, também de grande sucesso, foi Meninos do Brasil, pu-
blicado em 1976. Escrito por Ira Levin, o livro conta a história de Josef Mengele, o
“médico-monstro” de Auschwitz, desde sua saída da Europa até o exílio no anonima-
to, no Paraguai, onde passa a planejar o nascimento o IV Reich. Para isso, Mengele
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
FORSYTH, Frederick. O Dossiê Odessa. Rio de Janeiro: Record, s/ano.
110
FORSYTH, Frederick. The Odessa File. Random House, 2011.
111
O Globo, “Os Segredos de Odessa, ou de como influentes...”, 26 /03/1975, p. 41.

75
CAPÍTULO 1

conduz experiências genéticas que levam à produção de clones de Hitler. A busca de


Mengele somente é freada quando um caçador de nazistas descobre seu plano. 112 Dois
anos depois de lançado, o livro também virou filme, um thriller político dirigido por
Franklin J. Schaffner, famoso por filmes como O Planeta dos Macacos (1968).

O tema dos criminosos nazistas prosperou, quer na ficção, quer na não ficção. Em
alguns casos, os livros mencionavam o Brasil. Em outros, falavam apenas de conspi-
rações nazistas no pós-guerra, contribuindo ainda que indiretamente para as histórias
que brotavam livremente em países como Argentina e Brasil. Na literatura estrangei-
ra, além dos livros de Levin e Forsyth, podemos destacar obras como: The Bormann
Brotherhood. A New Investigation of the Escape and Survival of Nazi War Criminals,
de William Stevenson (1973); The Hunt for Martin Bormann, de Charles Whiting
(1973); Aftermath – Martin Bormann and the Fourth Reich, de Ladislas Farago
(1974); Eles estão de Volta, de Michael Bruckner (1979); 113 Wanted! The Search for
Nazis in America, de Howard Blum (1976); O Quarto Reich: Klaus Barbie e a cone-
xão neonazista, de Magnus Linklater (1985); Contas a pagar, de Harris Green (1984);
114
entre outros que abordavam diferentes aspectos do tema, desde a vida que ilustres
figuras do nazismo derrotado levavam até a criação de um novíssimo IV Reich. 115

No Brasil, não faltaram produções nacionais sobre o tema dos criminosos nazistas.
No cinema, há dois grandes exemplos. Um deles foi Os Carrascos estão entre nós,
lançado ainda no final dos anos 1960, em 1968, e dirigido por Adolpho Chadler. No
enredo, logo após a tomada de Berlim pelos aliados, em 1944, altos dirigentes do Ter-
ceiro Reich se espalharam pelo mundo, tentando reviver o nazismo. Entre eles, estão
Martin Bormann e seus cúmplices, todos chegados ao continente latino-americano em
um submarino. Vinte anos depois da fuga, uma organização que protege e esconde
nazistas é descoberta e tem então iniciada uma busca frenética.116 O outro exemplo é
Aleluia Gretchen, do diretor Silvio Back, lançado em 1976, que conta a saga de uma
família alemã que imigrou para o Brasil durante o Estado Novo e que, nos anos 1950,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
LEVIN, Ira. Meninos do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. 1981.
113
BRUCKNER, Michael. Eles estão de volta. Rio de Janeiro: Record, 1979.
114
GREENE, Harris. Contas a ajustar. Rio de Janeiro: Record, 1984.
115
FARAGO, Ladislas. Aftermath: Martin Bormann and the Fourth Reich. Simon and Schuster, 1974;
STEVENSON, William. The Bormann Brotherhood. Barker, 1973; WHITING, Charles. The Hunt for
Martin Bormann. Ballantine Books, 1973; ERDSTEIN, Erich; BEAN, Barbara. Inside the Fourth
Reich. Londres: St. Martin's Press, 1977.
116
Cinemateca brasileira. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br>. Acesso em: 02/02/2015.

76
CAPÍTULO 1

se envolveu com criminosos nazistas. Já na literatura, podemos citar O Anjo da Morte


– Dossiê Mengele, de Ben Abraham, publicado em 1985;117 Os mortos estão vivos, de
Flávio Moreira de Castro, publicado em 1984;118 ou ainda Mengele – A Natureza do
Mal, de José Nêumanne Pinto, publicado em 1985.119 Porém, em se tratando de livros,
dois autores merecem atenção especial, devido ao impacto e longevidade de suas
obras. Um deles é Erich Erdestein, que ao lado da escritora Barbara Bean, escreveu
Inside the Fourth Reich: The Real Story of the Nazis in Brazil by the Hunter they
Feared Most, publicado originalmente em inglês, em 1977,120 e que em português re-
cebeu o sugestivo título Renascimento da Suástica no Brasil. Escrito em primeira pes-
soa, o livro narra a saga de Erdestein à procura de nazistas na região sul do país. Er-
destein, judeu então vivendo no Brasil, ba-
seou-se em suas investigações como agen-
te policial do Departamento de Ordem Po-
lítica e Social de Curitiba no Paraná, nos
anos 1960, para escrever o livro. Essas in-
vestigações, altamente carregadas de este-
reótipos antigermânicos, levaram o autor a
concluir que criminosos nazistas e suas
organizações secretas no Sul do Brasil
contavam com a força da colônia alemã
para fazer ressurgir um novo Reich nazista,
o IV Reich.121

O segundo autor que devemos olhar


com cuidado é o brasileiro Roberto Bota-
cini. Nascido em 17 de novembro de 1935,
Imagem&10:&Capa!de!um!dos!livros!de!Botacini.
em Ribeirão Pires, São Paulo. Botacini foi
o escritor brasileiro que mais publicou livros sobre criminosos nazistas no pós-guerra.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
ABRAHAM, Ben. O Anjo da Morte – O Dossiê Mengele. São Paulo: Sherit Hapleita, 1985.
118
COSTA, Flávio Moreira da. Os mortos estão vivos. Rio de Janeiro: Record, 1984.
119
PINTO, José Nêumanne. Mengele: a natureza do mal. São Paulo: EMX Editores, 1985.
120
ERDSTEIN, Erich; BEAN, Barbara. Inside the Fourth Reich. Londres: St. Martin's Press, 1977.
121
No final dos anos 1960, as investigações conduzidas por Erdestein deram origem a um dossiê intitu-
lado “Criminosos de guerra no Brasil: sua localização e atividades no Estado do Paraná”. O relatório
serviu não apenas como base para o livro lançado em 1977, mas também para uma série de reportagens
publicada no jornal Estado do Paraná, em dezembro de 1967, chamada “Mini-Reich opera no Brasil”,
republicada no ano seguinte, em alemão, na revista Neue Revue.

77
CAPÍTULO 1

Em 13 anos, Botacini lançou seis obras dedicadas exclusivamente ao assunto: Onde


estará Hitler? (1964), Nazistas na América (1964), A Fuga de Hitler (1966), Hitler
não morreu em Berlim (1967) Perón, a volta do Nazismo (1973) e O Nazismo sobre-
vive ao Terceiro Reich (1977).122 Em sua abordagem, contudo, Botacini trouxe muito
pouco conteúdo original para quem já conhecia os livros dos deputados argentinos
Taborda e Santander. Além disso, seus livros não eram dotados de qualquer rigor me-
todológico. Suas fontes beiravam quase sempre o caricato e o risível. Em mais de uma
ocasião, por exemplo, Botacini cita um alemão chamado Enrico Stainer, que ele co-
nheceu pessoalmente em seus “tempos de futebolista do C. A. Juventus em São Pau-
lo”, entre 1953 e 1955. Steiner, que “dizia ser natural de um lugarejo nas margens do
Danúbio e que servira como simples soldado nos exércitos alemães”, contou a Bota-
cini várias histórias de fuga por parte de altos membros da hierarquia nazista.123 Essas
histórias, além daquelas contadas por Taborda e Santander, dão forma aos seus livros.

Botacini foi uma figura extremamente pitoresca. Além de jornalista, foi membro da
União Brasileira de Escritores, professor primário, contador, ex-jogador de futebol
profissional, proprietário de Editora Combrig e produtor da TV Gazeta.124 Em 1978,
envolveu-se em duas situações inusitadas. Na primeira, preparou um requerimento na
Câmara dos Vereadores que propunha aposentar a mula Menina, após 30 anos de ser-
viços presados à cidade de Ribeirão Pires.125 Na segunda, enviou ao Vaticano sua
candidatura como Papa. Esta ideia lhe ocorreu logo após descobrir que, para ocupar o
posto máxima da Igreja Católica, era necessário apenas que o requerente fosse católi-
co, batizado e crismado. Este episódio lhe rendeu, inclusive, uma aparição no progra-
ma Fantástico, da TV Globo, que passou a acompanhá-lo em sua surreal jornada.126

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
BOTACINI, Roberto. Onde estará Hitler? São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1964;
BOTACINI, Roberto. Nazistas na América. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1964;
BOTACINI, Roberto. A Fuga de Hitler. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1965; BOTACINI,
Roberto. Perón, a volta do Nazismo. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1973; BOTACINI, Roberto. O
Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1977.
123
Roberto. O Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich. Ribeirão Pires: Editora Combrig, 1977, p.90.
124
DUTRA, Reginaldo. UBE, 40 [ie quarenta] anos. Editora Soma, 1982. p.146. O livro Hitler não
morreu em Berlim foi citado pela publicação da União Brasileira dos Escritores como sendo também de
autoria de Botacini. Não encontrei, porém, nenhum exemplar deste livro.
125
Diário do Grande ABC, ““Ela não gosta de política, mas está há 28 anos na Câmara”. 17/03/ 2007.
Disponível em: http://www.dgabc.com.br/Noticia/199866/ela-nao-gosta-de-politica-mas-esta-ha-28-
anos-na-camara-?referencia=navegacao-lateral-detalhe-noticia. Acesso em 17/01/2014.
126
G1.com, “O Homem que queria ser papa”, 30/032008. Disponível em:
http://g1.globo.com/fantastico/especial/bau-do-fantastico/platb/2008/03/30/o-homem-que-queria-ser-
papa/. Acesso em 17 de janeiro de 2014.

78
CAPÍTULO 1

Pode parecer pouco provável que os livros de Botacini pudessem despertar qual-
quer sentimento de crédito ou confiança. Não só pela falta de evidências concretas do
autor, mas principalmente pelos episódios excêntricos que envolveram o nome de Bo-
tacini. Sua excentricidade, porém, parece não ter atrapalhado sua reputação de especi-
alista em criminosos nazistas. Em diversas oportunidades em que o tema veio à tona,
os jornais não recorreram a historiadores acadêmicos para comentá-lo, mas sim ao
“especialista” Roberto Botacini. Ele foi assim apresentado por jornais de alcance na-
cional. Em entrevista para O Globo, por exemplo, o escritor paulista revelou que os
nazistas tinham tanta liberdade de ação no Brasil que podem até realizar um congres-
so. Botacini alertou ainda para o que chamava de “perigo nazista”. Na sua opinião, o
nazismo estava em vias de retornar, já sendo uma força em quase todo o mundo.127

Porque essas história exageradas sobre criminosos nazistas faziam tanto sucesso?
Porque os jornais e o público se interessavam por elas? Não há uma resposta definiti-
va para essas perguntas. Não podemos deixar de considerar, no entanto, o contexto ao
qual estamos aqui nos referindo. A Guerra Fria foi um período prolixo na produção de
histórias que prometiam aventura, mistério, drama e ação. 128 O mercado editorial, o
cinema e o noticiário internacional foram inundados no final dos anos 1960 com rela-
tos de discos voadores, sociedades secretas, novos mundos, realidades paralelas e
agentes secretos. Personagens ficcionais como James Bond, da franquia 007, e Ethan
Hunt, protagonista da série Missão Impossível, não fortuitamente, se tornaram dois
dos grandes ícones daquela geração de heróis do cinema. Conforme já explicou Clau-
de Lévi-Strauss, “não existe limite para uma análise mítica, uma vez que os temas se
desdobram ao infinito”.129 As narrativas mitológicas sobre criminosos nazistas, deste
modo, devem ser compreendidas também como subproduto deste cenário histórico.
Que criminosos nazistas tenham se refugiado no Brasil em outros países latino-
americanos, não há dúvidas. Mas há limites para o que pode ser confirmado. Muito
diferente são as histórias de organizações secretas superpoderosas, de fuga de grandes
hierarcas nazistas, incluindo o próprio Hitler, bem como o IV Reich nas américas,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
G1.com, “O Homem que queria ser papa”, 30/032008. Disponível em:
http://g1.globo.com/fantastico/especial/bau-do-fantastico/platb/2008/03/30/o-homem-que-queria-ser-
papa/. Acesso em 17 de janeiro de 2014.
128
Sobre a força por trás das teorias da conspiração no mundo contemporâneo, conferir: SHERMER,
Michael. Cérebro e crença: De fantasmas e deuses e às conspirações: como o cérebro constrói nossas
crenças e as transforma em verdades. São Paulo: JSN Editora, 2014.
129
LÉVI-STRAUSS, Claude. Apud GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. pp.14-15.

79
CAPÍTULO 1

como bem explorou Marcos Meinerz em seu trabalho sobre o imaginário de um IV


Reich nazista no coração da América Latina nos anos 1960 e 1970.130

Em última instância, esse poder fantasmagórico do nazismo no pós-guerra – capaz


de surpreender um leitor que não soubesse que foram os nazistas os derrotados na Se-
gunda Guerra Mundial – atesta o sucesso da máquina de propaganda nazista criada
por Joseph Goebbels, pois, de certa forma, a figura do nazista foragido, que dribla a
justiça internacional, que é acolhido por governos latino-americano corruptíveis, que
costura novo “ovo da serpente” com a ajuda de seus comparsas em armas, surge como
a realização, ainda que fantasmagórica, atrasada, trôpega e imperfeita da promessa do
Reich de mil anos. Esse criminoso nazista presente nos livros, filmes e jornais sobre-
vive porque, antes de tudo, o que sobrevive é a velha ideia do nazismo indestrutível.

Essas histórias, conforme vimos, quase sempre são dotadas de exagero e impreci-
sões. Por vezes, destacam-se pela contradição e pela incoerência. Como explicar, en-
tão, a força que detêm? Quem nos oferece auxílio aqui é o historiador Raoul Girardet.
Girardet explica que os mitos e as mitologias políticas que povoam nossa época não
dispõem de um ordenamento lógico convencional. Retomando os ensinamentos de
Claude Lévi-Strauss, Girardet sublinha que a realidade mítica não pode ser decompos-
ta de forma cartesiana, isto é, camada por camada, em partes distintas e numeradas. O
mito político, sublinha o historiador, possui autonomia e respalda a si próprio. “Ele já
não invoca, nessas condições, nenhuma outra legitimidade que não a de sua simples
afirmação, nenhuma outra lógica que não a de seu livre desenvolvimento”.131

Seriam, então, os criminosos nazistas no Brasil fábulas completamente ilógicas e


descoladas da realidade? De forma alguma. O mito político não deve ser visto como
uma simples fabulação ou como antítese de uma realidade objetiva. O mito político
tem contato direto com a realidade. Ele vive dela. A ideia de que Bormann estava vi-
vendo no Brasil não seria tão sedutora, mobilizadora e possível se não houvesse antes
a concretude dos casos Cukurs e Bernonville. Esses dois casos, além de outros ocorri-
dos em países vizinhos, como Eichmann na Argentina ou Rauff no Chile, apenas em-
poderam e autorizam o desenvolvimento da mitologia política que vemos frutificar no
Brasil a partir do final dos anos 1960. A materialidade de um caso permite dizer que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
MEINERZ, Marcos Eduardo. O imaginário da formação do IV Reich na América Latina após a
Segunda Guerra Mundial (1960-1970). Dissertação. Universidade Federal do Paraná, 2013.
131
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo Companhia das Letras, 1987, pp.11-12.

80
CAPÍTULO 1

todas as demais histórias de criminosos nazistas no país são possivelmente verdadei-


ras. O mito político, como bem indica Girardet, também é um caso de deformação.132

Nas décadas de 1970 e 1980, o imaginário político em torno da presença de crimi-


nosos nazistas no Brasil contou com o reforço de mais dois casos concretos. O primei-
ro refere-se ao austríaco Gustav Wagner, subcomandante de Sobibor. Wagner foi de-
tido pela polícia de São Paulo em 1978 depois de um criativo ardil montado por Si-
mon Wiesenthal e pelo correspondente do Jornal do Brasil em Tel-Aviv, em Israel,
Mario Chimanovitch.133 Na ocasião, quatro países pediram a extradição de Wagner:
Polônia, Alemanha, Áustria e Israel. As semelhanças com o Caso Stangl, ocorrido dez
anos antes, eram enormes. O seu desfecho, no entanto, foi totalmente diferente. O tri-
bunal indeferiu todos os quatro pedidos. No caso do pedido israelense, o STF enten-
deu que não havia base jurídica, uma vez que o Estado de Israel não existia na época
em que os crimes de Wagner foram cometidos. Já no caso da Polônia e da Áustria, a
justiça brasileira alegou que os crimes de Wagner tinham prescrito. Por fim, no tocan-
te à Alemanha, o pedido foi derrotado por oito votos a dois. Os ministros que votaram
contra o pedido da justiça alemã apontaram erros técnicos na montagem do processo.
Wagner foi solto e dois anos depois cometeu suicídio.134

A decisão do STF em benefício de Wagner causou profundo mal-estar internacio-


nal. Sepp Binder, porta-voz do governo da Alemanha Federal, classificou a decisão do
STF como “lamentável” e “incompreensível”.135 O governo alemão elaborou um re-
lease – reproduzido em quase todos os jornais de grande circulação do Brasil – decla-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo Companhia das Letras, 1987, p.14.
133
Em maio de 1978, Simon Wiesenthal encontrou-se em com Chimanovitch em Viena e disse que
tinha um furo de reportagem para ele: Gustav Wagner, a "Besta de Sobibor", vivia escondido no Brasil.
Wiesenthal tinha, no entanto, apenas uma foto antiga de Wagner. Nenhum endereço. Mário pensou,
então, em uma solução bastante original para tentar localizar Wagner: recentemente, ele tinha feito uma
matéria de moderada repercussão sobre uma reunião ocorrida em um hotel de Itatiaia (Hotel Tyll) para
celebrar os 90 anos de Hitler. Chimanovitch propôs a Wiesenthal que ele "reconhecesse" Wagner entre
os participantes. Em 19 de maio de 1978, Chimanovitch publicou uma foto do encontro e o tal reco-
nhecimento falso de Wiesenthal. Enquanto as autoridades do DEOPS-SP começavam uma caça a
Wagner, algo inusitado aconteceu: Wagner apresentou-se espontaneamente à polícia de Campo Belo,
São Paulo, em 30 de maio de 1978, afirmando ser ele o verdadeiro Wagner e inocente de qualquer acu-
sação de crimes cometidos durante a guerra. Segundo Felipe Cittolin Abal, Wagner estava com medo
de que fosse sequestrado pelo Mossad. Cf. ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos
de extradição de Franz Stangl e Gustav Wagner em uma análise histórico jurídica. Dissertação. Uni-
versidade de Passo Fundo, 2012.
134
ABAL, Felipe Cittolin. Visitantes Indesejados: os pedidos de extradição de Franz Stangl e Gustav
Wagner em uma análise histórico jurídica. Dissertação. Universidade de Passo Fundo, 2012.
135
Jornal do Brasil, “Embaixada manifesta desapontamento alemão”, 22/09/1979, p.10.

81
CAPÍTULO 1

rando que a decisão do governo brasileiro enchia as autoridades alemãs de “muita


preocupação” e que era “lamentável o fato de que [o Brasil] tinha dificultado o efici-
ente combate aos crimes nazistas”.136 O então Ministro da Justiça de Israel, Shmuel
Tamir, taxou a recusa das autoridades de justiça do Brasil de “dolorosa, para não dizer
cruel”.137 O líder judeu Heinz Galinski acusou o Brasil de apoiar um suspeito de ter
cometido assassinatos em massa nos campos de extermínio da Polônia.138 Em Lon-
dres, o popular jornal The Sun, escreveu que a ação das autoridades brasileiras era
“indigna de qualquer governo que queira ser considerado civilizado”.139 Já Simon Wi-
esenthal entregou uma carta endereçada ao presidente João Figueiredo revelando
“profunda preocupação” diante da decisão do STF.140

Imagem&11:&Ficha!Consular!de!Gustav!Wagner!no!Brasil.!Fonte:!Family!Search!/!Arquivo!Nacional.

A não extradição de Wagner chegou a causar manifestações bastante fortes no ex-


terior. O embaixador do Brasil em Tel-Aviv, Vasco Mariz, teve que receber proteção
da polícia israelense após receber vários tipos de ameaças anônimas por telefone. Ele
foi intimidado com promessas de sequestro e até mesmo de assassinato. A embaixada
brasileira em Israel, por sua vez, foi pichada em protesto contra a decisão da justiça
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
136
Jornal do Brasil, “Decisão do Brasil de não extraditar…”, 22/09/1979. p.9.
137
O Globo, “Caso Wagner: Israel acha decisão ‘dolorosa’”, 22/06/1979, p.1.
138
O Globo, “Caçador de nazistas diz que comando...”, 22/06/1979, p.8.
139
Veja, “Mengele cassado”, 08/08/1979, p.40.
140
Jornal do Brasil, “Parlamentares dos EUA querem que Brasil...”, 28/09/1979, p. 28.

82
CAPÍTULO 1

brasileira.141 Enquanto isso, nos Estados Unidos, pouco mais de trinta parlamentares
assinaram um documento protestando contra a decisão do governo brasileiro. O sena-
dor Robert Dorman, um dos signatários, deu uma entrevista ao Jornal do Brasil. Nela,
ele disse em tom de ameaça: “Temos esperanças de obter bons resultados nos enten-
dimentos com o governo brasileiro. Mas, em todo caso, eu e meu colega aqui (Jona-
than Bingham, democrata do Estado de Nova York) estamos dispostos a tornarmo-nos
incômodos políticos, o que pode ser prejudicial às relações entre os dois países”.142

O segundo grande caso ocorrido no período foi o do alemão Josef Mengele. Médi-
co e antropólogo, Mengele filiou-se ao Partido Nazista em 1937. Em junho de 1940,
alistou-se no exército e passou a servir como voluntário médico das Waffen-SS. Ferido
em campanha, foi primeiramente realocado no Instituto Kaiser Wilhelm (KWI) e, em
seguida, promovido a capitão. Assumiu, em 30 de maio de 1943, um dos postos de
médico no campo de extermínio de Auschwitz. Medicina, no entanto, foi algo que ele
não praticou nos anos em que serviu em Auschwitz. Ao invés de salvar vidas, Menge-
le foi o responsável direto por milhares de assassinatos. Era ele quem fazia a seleção
de vida ou morte daqueles que chegavam ao campo. Mengele também se tornou co-
nhecido por realizar experiências macabras em prisioneiros vivos. Geneticista, ele ti-
nha especial interesse em experiências envolvendo irmãos gêmeos. 143 Em depoimento
dado ao Comitê Internacional de Auschwitz, em 1945, o médico italiano Leonardo de
Benedetti, sobrevivente de Auschwitz, denunciou os crimes praticados por Mengele.
Benedetti, que elaborou com Primo Levi o importante “Relatório sobre Auschwitz”,
lembrou que Mengele se apresentava na hora da seleção sempre com um uniforme
impecável, bastante elegante, com botas de cano alto engraxadas e um chicote na
mão. Os prisioneiros perfilavam, segundo conta, todos nus, um a um, diante seus
olhos. “(...) ele indicava com o chicote o grupo para o qual seu juízo infalível designa-
ra o prisioneiro: à esquerda, os condenados, à direita os pouquíssimos afortunados que
ele julgava ainda aptos para o trabalho, pelo menos até a próxima seleção”.144

Depois da derrota alemã, Mengele foi colocado sob custódia norte-americana. Os


oficiais responsáveis por seu encarceramento, porém, não sabendo que seu nome figu-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
Diário de Pernambuco, “Embaixador brasileiro recebe ameaça de morte”, 23/06/1979, p.A-18.
142
Diário de Pernambuco, “Embaixador brasileiro recebe ameaça de morte”, 23/06/1979, p.A-18.
143
Enciclopédia do Holocausto: Josef Mengele. Disponível em:
<http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007060>. Acesso em: 18/05/2014.
144
LEVI, Primo; BENEDETTI, Leonardo de. Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2015. p.70.

83
CAPÍTULO 1

rava na lista de criminosos nazistas procurados, colocaram-no em liberdade. O erro


foi determinante para a sua perene impunidade. Mengele viveu durante quatro anos na
Alemanha com o auxílio de uma identidade falsa. Em 1949, com o cerco se fechando
na Europa, imigrou para a Argentina. Em 1960, amedrontado por uma ordem de pri-
são e outra de extradição emitidas pela Alemanha Federal, Mengele mudou-se para o
Paraguai. Quando investigadores começaram a procurar por ele também no país de
Strossner, atravessou a fronteira e veio viver no Brasil. Em 1979, Mengele sofreu um
derrame enquanto nadava em uma praia de Bertioga, litoral paulista, e morreu afoga-
do. Na época, ele usava a identidade falsa com o nome de Wolfgang Gerhard. Seis
anos depois, em 1985, a polícia alemã descobriu sua sepultura. O corpo foi exumado
e, posteriormente, exames laboratoriais confirmaram que era o “anjo da morte”.145

O Caso Mengele não despertou muitas críticas diretas ao governo brasileiro. E isso
de certa forma era compreensível, afinal de contas, Mengele entrara no país ilegal-
mente e aqui tinha permanecido longe dos centros urbanos, graças à sua identidade
falsa. O que mais chama mesmo atenção neste caso foi a sua enorme repercussão, fato
que cimentou de vez a imagem que associa criminosos nazistas ao Brasil. A descober-
ta de Mengele foi talvez o acontecimento mais midiático do Brasil em 1985, chegando
a rivalizar com a cobertura da “Nova República”. O Estado de S. Paulo, surpreendido
com a quantidade de repórteres de todo o mundo que afluíram para o país a fim de
cobrir a descoberta, afirmou que o cenário se assemelhava ao que acontecia em Copas
do Mundo, “porém sem o estilo de credenciais penduradas no pescoço”. Em algumas
coletivas de imprensa, conta o jornal, os jornalistas estrangeiros eram tantos que supe-
ravam os jornalistas do próprio Brasil.146 De fato, o país testemunhou naquele ano
uma verdadeira invasão de equipes de televisão e de repórteres de veículos impressos
estrangeiros. Contava-se na casa das centenas os correspondentes de agências de notí-
cias, provenientes principalmente da Europa, mas também dos Estados Unidos, Israel,
América Latina e da África. Uma equipe da rede americana NBC fretou um jato para
chegar mais rápido ao Brasil.147 A exposição nos meios de comunicação era tanta que
chegava a incomodar algumas pessoas. Um leitor escreveu para a Folha de S. Paulo:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
Enciclopédia do Holocausto: Josef Mengele. Disponível em:
<http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007060>. Acesso em 18/05/2014.
146
O Estado de S. Paulo, “A Imprensa como numa Copa”, 11/06/1985, p.12.
147
O Estado de S. Paulo, “De novo, o país atrai a imprensa estrangeira”, 08/06 1985, p.14.

84
CAPÍTULO 1

Estou realmente abismado com a incrível parafernália armada em


torno do caso Mengele. Espaços enormes em todos os canais de co-
municação, horas e horas por dia são dedicadas à terrível pergunta: é
ou não é o carrasco nazista? Em tempo e espaço, acredito que Men-
gele está merecendo dos meios de divulgação, proporcionalmente,
muito mais em importância que o drama e a morte de Tancredo. Por
que tudo isso? É realmente tão importante para nós, brasileiros, que
se trata ou não de Mengele? Muda alguma coisa?148

Em junho de 1985, a Folha de S. Paulo procurou explicar a descoberta do corpo de


Mengele no país caso lembrando que a “América do Sul sempre foi considerada refú-
gio seguro para oficiais nazistas, que puderam encontrar amparo em países como Bo-
lívia, Argentina, Paraguai e Brasil”. De acordo ainda com o jornal, os governos auto-
ritários desses países colaboraram diretamente para isso. 149 A polêmica foi tão grande
que chegou ao então Presidente da República, José Sarney. Em entrevista coletiva
concedida a jornalistas estrangeiros, um repórter do London Daily Express perguntou
ao presidente brasileiro o que o seu governo pretendia fazer em relação aos crimino-
sos nazistas, já que nos últimos anos vários tinham sido encontrados no país. Sarney,
em uma das raras vezes em que um chefe de estado brasileiro comentou publicamente
sobre criminosos nazistas, disse ao repórter inglês:

Esse é um caso de polícia que, naturalmente, deve ser endereçado à


área respectiva de São Paulo e é lamentável que nós tenhamos ainda
hoje no mundo manifestações desta natureza. Ao caso do Brasil, eu,
como Presidente do Brasil, lamento profundamente que tenhamos ti-
do em nosso país, sem que nenhum de nós soubesse, porque se sou-
béssemos aqui naturalmente não ficaria um homem que prestou tanto
mal a Humanidade. E nós esperamos que já tivemos o desconforto de
tê-lo em vida, que não tenhamos os seus ossos.150

As declarações de Sarney pareceram ser insuficientes para a imprensa. Os jornais


continuaram publicando reportagens sobre como o Brasil tinha sido um paraíso para
nazistas. O Estado de S. Paulo explicou dias depois que muitos criminosos nazistas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
Folha de S. Paulo, “O anjo da morte”, 21/06/85. p.3. Sobre cartas de leitores, há uma outra, bastante
curiosa enviada à revista Veja, uma semana depois que a revista produziu uma capa com o “Caso Men-
gele”. O leitor, descendente de alemães, escreveu: “Fiquei surpreso com o fato de VEJA ter destacado
onze páginas para falar de um cidadão que dizem ser ‘carrasco nazista’. Meus parentes contam que
americanos e ingleses soltavam bombas de brinquedos na Alemanha, durante a II Guerra Mundial.
Desculpem-me os judeus, mas isto que estão fazendo, ao não deixar cicatrizar uma ferida que aconte-
ceu há quarenta anos, não é correto. ” Veja, “Mengele”, 14/07/1985. p.2.
149
Folha de S. Paulo, “Nazistas no Cone no Sul”, 12/06/1985, p. 2.
150
O Estado de S. Paulo, “Aliança não tem sinal de ruptura”, 03/07/1985, p.5.

85
CAPÍTULO 1

escaparam da justiça graças àquela ODESSA, “que ainda durante a guerra preparou o
esquema de fuga para os nazistas que precisariam esconder-se e graças ao seu apoio
financeiro que lhes garantiu os meios de sobrevivência”. Muitos desses criminosos,
apontaram alguns jornais, fugiram para a América Latina e acabaram pagando por
seus crimes, caso de Adolf Eichmann, Herberts Cukurs e Franz Stangl, ao passo que
outros permaneceram durante muito tempo livres e impunes, caso de Barbie e Wag-
ner.151 A comparação entre casos diferentes, a propósito, tornou-se mais uma vez bas-
tante recorrente na imprensa. E é importante que se observe que ao retomar antigos
casos, a imprensa não só os matinha vivos no imaginário político do país como tam-
bém os atualizava. Em 1985, O Estado de S. Paulo fez uma retrospectiva histórica dos
principais casos de criminosos nazistas localizados no Brasil – Cukurs, Stangl, Wag-
ner e Mengele – explicando que todos esses criminosos tinham criado várias organi-
zações entre imigrantes alemães que já viviam na Argentina, na Bolívia e no Brasil.152

Imagem&12:!De!Cukurs!a!Mengele,!uma!visão!global.!Fonte:!O!Estado!de!S.!Paulo,!09/06/1985.!p.22.!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
151
O Estado de S. Paulo, “Jamais esqueceremos”, 23/06/1985, p.26.
152
O Estado de S. Paulo, “Brasil, uma opção na fuga de nazistas”, 09/06/1985, p.22.

86
CAPÍTULO 1

Ainda falando sobre a forma como tais casos foram atualizados mediante diferen-
tes contextos históricos, chama bastante atenção uma matéria publicada na imprensa
dos Estados Unidos, em 27 de agosto de 1977. Jack Anderson, autor da reportagem,
reproduzida em vários veículos, levantou a teoria de que Cukurs foi assassinado não
por agentes secretos israelenses, mas por nazistas. Segundo suas fontes, Cukurs co-
nhecia a localização de Mengele e decidiu entregá-lo aos israelenses em troca de uma
quantia de dinheiro. Mengele teria descoberto e Cukurs foi assassinado no Uruguai.153
Cukurs, desta forma, é trazido subitamente para dentro das teorias de redes nazistas
no Brasil e na América Latina que grassavam naquele final dos anos 1970. A circula-
ridade desses casos não é algo estranho ao universo dos mitos políticos. Girardet no-
vamente vem nos ajudar. Ele nos lembra que os mitos políticos são polimorfos, carac-
terizados pela fluidez, pela imprecisão de contornos e pela ambivalência. Para melhor
explicar como isso se dá, o autor recorre a uma analogia entre mito e sonho:

Como o sonho, o mito se organiza em uma sucessão, seria melhor di-


zer em uma dinâmica de imagens e, não mais que para o sonho, não
poderia ser questão de dissociar as frações dessa dinâmica: estas se
encadeiam, nascem uma da outra, chamam uma à outra, respondem-
se e confundem-se; por um jogo complexo das associações visuais, o
mesmo movimento que as faz aparecer, leva-as para uma direção
muito outra. Como o sonho ainda, o mito não pode ser abarcado, de-
finido, encerrado em contornos precisos senão em consequência de
uma operação conceitualmente, obrigatoriamente redutora, que sem-
pre se arrisca a traí-lo ou a dele dar apenas uma versão empobrecida,
mutilada, destituída de sua riqueza e de sua complexidade.154

É curioso notar como as mitologias políticas sobre conspirações nazistas do pós-


guerra assemelhem-se às mitologias políticas antissemitas disseminadas desde o sécu-
lo XIX, especialmente àquela dos Protocolos dos Sábios de Sião, isto é, do mito mi-
lenar que acredita em um complô judaico de dominação do mudo. As ideias envol-
vendo conspirações, complôs e conluios são repetitivas em seus enredos. Diz Girardet
que “o poder de renovação da criatividade mítica é, de fato, muito mais restrito do que
as aparências poderiam fazer crer”.155 Uma tese recentemente defendida na Universi-
dade Autônoma de Madrid mostra muito bem a atualidade dessa afirmação. Em Isla-
mofobia y Antisemitismo: la construcción discursiva de las amenazas islámica e ju-
día, Fernando Bravo López defende a ideia de que, para compreendermos a islamofo-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
The Ledger, “Angel of Extermination Waving His Wand?”, 27/08/1977, p.9.
154
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.14.
155
Ibidem, p.17.

87
CAPÍTULO 1

bia na Europa contemporânea e os mitos políticos que surgem em torno do medo e da


ignorância do que é o Islã, devemos compreender a conformação do antissemitismo
moderno, aquele dos séculos XIX e XX, pois haveria entre os dois preconceitos uma
linha-mestra. Nas palavras de López, “las condiciones contemporáneas en las que ju-
díos e musulmanes viven hoy no interesan a los islamófabos y antisemitas, o sólo in-
teresan cuando encuentran casos que les permiten reafirmar su visón y legitimar el
presupuesto de partida: el islam y/o el judaísmo no cambian”.156

1.7. Criminosos nazistas no Brasil: balanços e perspectivas

Setenta anos depois do fim da guerra, chegamos a um panorama sui generis. É cor-
reto afirmar que vários indivíduos envolvidos com crimes nazistas imigraram para o
Brasil. Embora as pesquisas sobre o tema sejam escassas, Cukurs, Bernonville, Sti-
glics, Stangl, Wagner e Mengele, por si só, nos permitem fazer tal afirmação. E é mui-
to provável – esperado, eu diria – que nos próximos anos novas investigações aumen-
tem sensivelmente essa lista. Em 2013, o procurador público alemão Kurt Schrimm e
o comissário de polícia Uwe Steinz visitaram o Brasil como parte de uma ampla in-
vestigação que a Zentrale Stelle der Landesjustizverwaltungen zu Aufklärung von NS-
Verbrechen vem desenvolvendo com o objetivo de encontrar criminosos nazistas que
encontraram refúgio na América Latina. 157 Schrimm e Steinz reuniram-se mais de
uma vez com historiadores do Rio de Janeiro, entre os quais o autor desta tese, no sen-
tido de avançar em suas pesquisas. O método dos dois investigadores, conforme reve-
lado nessas reuniões, é simples, mas, ao mesmo tempo, bastante trabalhoso: uma lista
com todos os indivíduos de cidadania alemã que chegaram ao Brasil desde os momen-
tos finais da Segunda Guerra Mundial é levantada e depois cruzada com uma lista ori-
unda de um banco de dados alemão. Schrimm e Steinz suspeitam que até 50 guardas
de campos de concentração podem ter vindo parar no Brasil. “Por enquanto não en-
contramos ninguém, mas estamos no início e estimamos que teremos milhares de fi-
chas de alemães que chegaram ao Brasil nos anos pós-guerra”, disse Schrimm a um
jornal brasileiro.158 Pode levar algum tempo, mas é muito provável que o escritório

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
BRAVO LÓPEZ, Fernando. Islamofobia y antisemitismo: la construcción discursiva de las amena-
zas islámica y judía. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid. Facultad de Filosofía y Letras. Depar-
tamento de Estudios Árabes y Islámicos y Estudios Orientales. Disertación, 2009. p.474.
157
Em português, Escritório Central para a Investigação dos Crimes do Nacional Socialismo.
158
O Estado de S. Paulo, “Promotores da Alemanha buscam nazistas no Brasil”, 04/05/2013. Disponí-
vel em <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,promotoresdaalemanhabuscamnazistasnobrasil,

88
CAPÍTULO 1

liderado por Schrimm divulgue resultados positivos. E essa é apenas uma das muitas
iniciativas que podem, no futuro próximo, ampliar nossos conhecimentos.159

Por outro lado, vimos surgir e se desenvolver no pós-guerra um verdadeiro caldei-


rão de narrativas míticas a respeito dos criminosos nazistas no Brasil. Essas narrati-
vas, que sobrevivem ainda hoje, foram produzidas pela imprensa, pela literatura e pe-
lo cinema, e entrelaçam, como vimos, ficção e realidade, além de criar chaves expli-
cativas universais para casos ocorridos em diferentes locais e épocas.160 As especifici-
dades e contextos de cada situação, desta forma, acabaram sendo escamoteados em
nome de teorias e especulações a-históricas de amplíssimo alcance. Como a historio-
grafia não produziu nada a respeito até o final anos 2010, muitas dessas narrativas en-
contraram terreno livre para frutificar. Com muitas fronteiras borradas, diversas per-
guntas permanecem abertas do ponto de visto historiográfico: se Bernonville, por
exemplo, contou com a ajuda de terceiros para deixar o Canadá e imigrar para o Brasil
com um visto permanente, isso significa dizer que a ODESSA realmente existiu? Ou
ainda: o fato de Cukurs e Wagner nunca terem sido expulsos ou extraditados do Brasil
significa dizer que o governo brasileiro os protegeu da justiça do pós-guerra?

Em anos recentes, foram registrados alguns avanços historiográficos quanto à pre-


sença de criminosos nazistas na América Latina. A Argentina é o maior exemplo. Em
1997, o então presidente, Carlos Menem (1989-1999), criou a Comissão para o Es-
clarecimento das Atividades do Nazismo na Argentina, a CEANA. Foi a primeira e a
maior iniciativa do gênero no continente. A CEANA era composta por pesquisadores
– em sua maioria historiadores – de vários países, distribuídos em painéis e comitê
assessores, tendo três objetivos básicos: (a) determinar quantos criminosos nazistas
imigraram para a Argentina e porque isso aconteceu; (b) investigar que tipos de bens e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1028462>. Acesso em: 02/07/2015.
159
Entrevistas de personagens envolvidos em determinados casos também podem ajudar a ampliar nos-
so conhecimento. Em maio de 2013, por exemplo, José Paulo Bonchristiano, ex-chefe do DOPS-SP,
revelou que o DOPS sabia da presença de Mengele no Brasil. O Estado de S. Paulo, “O DOPS sabia da
presença de Mengele no Brasil”, 04/05/2013. Disponível em:
<http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,odopssabiadapresencademengelenobrasil,
1028459>. Acesso em: 02/07/2015.
160
A ideia de que o Brasil foi um paraíso para bandidos, como vimos, transcende a questão dos crimi-
nosos nazistas. Um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), em 2008, reve-
lou que de um universo de 852 entrevistadas, todos naturais do Rio de Janeiro ou nele residentes, 40%
concordava, totalmente ou em parte, com a afirmação “todo bandido internacional foge para o Rio”. 160
Em seu documentário sobre a representação do Brasil no cinema estrangeiro – Olhar Estrangeiro
(2006) – Lúcia Murat levantou mais de 40 filmes em que os bandidos fogem para o país.

89
CAPÍTULO 1

propriedades nazistas conseguiram dar entrada no país; (c) determinar o impacto que
esses criminosos nazistas e colaboracionistas nazistas tiveram na cultura, na sociedade
e no governo do país.161 Para isso, a comissão contou com o apoio do Estado, especi-
almente para ter acesso aos arquivos, embora fosse um órgão independente.162

Tendo funcionado por seis anos, entre 1997 e 2005, a CEANA produziu três exten-
sos relatórios, além de livros e artigos que acabaram por formar a base de uma histo-
riografia sobre a questão dos criminosos nazistas na Argentina. A CEANA levou os
historiadores a se debruçarem pela primeira vez com atenção e profundidade sobre o
tema, até ali entregue a escritores, jornalistas e pesquisadores independentes. As pes-
quisas não ignoraram o fato de que autoridades argentinas tinham realmente facilitado
a imigração e a permanência de imigrantes com passados suspeitos no país. Uma das
principais revelações dos pesquisadores foi o número de 180 imigrantes acusados de
crimes de guerra nazistas, além de 100 colaboracionistas belgas e franceses que deram
entrada no país, dos quais 40 já haviam sido condenados por tribunais de seus respec-
tivos países. O relatório final da comissão apontou que a Argentina recebeu ouro na-
zista e croata, tendo o primeiro governo Perón facilitado o ingresso e a proteção des-
ses “indesejáveis”, mesmo que isso tenha se dado mais por questões de interesse téc-
nico-científico do que propriamente alinhamento ideológico. Além disso, as investi-
gações indicaram ter havido um “clima fascista e discriminatório em relevantes seto-
res da sociedade”, bem como a relativa influência que antigos sequazes do nazismo,
particularmente austríacos e belgas, tiveram dentro dos quadros governamentais ar-
gentinos do pós-guerra.163 Por outro lado, os pesquisadores da CEANA chamaram a
atenção para o fato de que muitas narrativas que circulavam desde o final da guerra
continham exageros e distorções, especialmente aquelas que mencionam submarinos
alemães chegando às costas argentinas repletos de tesouros e fugitivos nazistas, entre
os quais Bormann e o próprio Hitler. Os pesquisadores descartaram a existência da
ODESSA e a inexistência de uma operação de “resgate em massa” de nazistas. 164

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
161
Informe final da CEANA. Disponível em: archivo.cancilleria.gov.ar/abril. Acesso em: 02/05/2014.
162
Boletin Oficial de La República Argentina, N° 28.644, Buenos Aires, 12/05/1997. p.2.
163
Informe final da CEANA. Disponível em: archivo.cancilleria.gov.ar/abril. Acesso em: 02/05/2014.
164
O governo encampou as descobertas da comissão. Em 2000, durante uma visita aos Estados Unidos,
de posse já dessas primeiras investigações, o então presidente Fernando de La Rúa pediu desculpas
formais à comunidade judaica pela colaboração, no passado, com nazistas e criminosos nazistas. E em
março de 2003, em resposta ao jornal americano The New York Times, que havia publicado um artigo
no qual a Argentina era classificada como um “céu para nazistas”, o então embaixador da Argentina em

90
CAPÍTULO 1

O trabalho não foi uma unanimidade. Muitos jornalistas publicaram os resultados


de pesquisas independentes que iam na contramão daquilo que fora divulgado pela
CEANA. Esses jornalistas diferem quanto à sofisticação de escrita e pesquisa. Alguns
são bem toscos, caso de Abel Basti, que defende a tese de que Hitler e sua esposa, Eva
Braun, viveram seus últimos dias em Bariloche. Basti chegou a publicar um guia tu-
rístico do nacional-socialismo na cidade andina.165 Outros autores preferiram uma
abordagem menos espetacular, mas igualmente carente de métodos e já superada pela
historiografia, como Jorge Camarassa, autor de livros como Odessa al Sur,166 ou co-
mo Juan Salinas e Carlo de Napoli, autores de Ultramar Sul.167 Tanto Camarassa
quanto Salinas e Napoli retomaram ou apenas reaqueceram imagens criadas por San-
tander e Taborda nos anos 1940 e 1950. Há ainda o caso de obras bem mais sofistica-
das, baseadas em pesquisas documentais respeitadas, como é o caso de Uki Goñi,
principal contestador da CEANA. Em seu A Verdadeira Odessa, Goñi procura mos-
trar que Perón aparelhou o Estado argentino com o intuito de salvar criminosos nazis-
tas em larga escala. Goñi descarta a dimensão mítica da ODESSA, pelo menos aquela
que nos conta Wiesenthal, mas afirma que Perón fez de tudo ao seu alcance para pro-
teger o maior número possível de criminosos de guerra nazistas, contando para isso
com apoio de setores da Cruz Vermelha e do Vaticano. 168

Enquanto Menem, na Argentina, em 1997, criava a CEANA, Fernando Henrique


Cardoso (FHC,1994-2002), no Brasil, anunciava, quase ao mesmo tempo, a criação da
Comissão Especial de Apuração de Patrimônios Nazistas. A medida, a última de Nél-
son Jobim no cargo de Ministro da Justiça, era inédita. Pela primeira vez na história
um governo brasileiro formava uma comissão oficial com o intuito de examinar a pre-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Washington, Eduardo Amadeo, esclareceu que nos últimos anos, desde 1983, com o fim da ditadura, o
país vinha se esforçando para esclarecer seus vínculos com criminosos nazistas, o que ficava patente
com a abertura dos arquivos em 1992, a criação da CEANA em 1997 e o pedido de desculpas formal
do presidente em 2003. In: The New York Times, “Argentina and the Nazis”, 15/03/2003. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/2003/03/15/opinion/l-argentina-and-the-nazis-780758.html>. Acesso
em: 02/05/2014; Los Angeles Times, “President of Argentina Apologizes for Nation’s Role as Haven
for Nazis”, 14/07/2000. Disponível em: <http://articles.latimes.com/2000/jun/14/news/mn-40884>.
Acesso em: 02/05/2014.
165
BASTI, Abel. Bariloche nazi. SC de Bariloche: edição do autor, 2003.
166
CAMARASA, Jorge. Odessa al Sur: la Argentina como refugió de nazis y criminales de guerra.
Buenos Aires: Aguilar, Taurus, Alfaguara, 2012.
167
DE NAPOLI, Carlos; SALINA, Juan. Ultramar Sul: a última operação secreta do
Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
168
GOÑI, Uki. A Verdadeira Odessa – O contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Rio de
Janeiro: Record, 2004. p.132.

91
CAPÍTULO 1

sença nazista no passado do país. Ela surgia em um contexto internacional no qual as


principais nações europeias discutiam a questão do patrimônio judaico expropriados
durante pelos nazistas e sua restituição. 169 Eram duas as suas atribuições principais: I.
Apurar o ingresso e a existência, no Brasil, de patrimônio ilicitamente confiscado das
vítimas do regime nazista; II. Identificar seus valores, origem e destino,170 sendo que
em entrevistas à imprensa, membros da comissão revelaram que também procurariam
apurar a entrada e permanência de criminosos nazistas no país. 171

A comissão, no contexto nacional, também tinha a ver com o interesse do governo


federal avançar no campo dos Direitos Humanos. E isso tinha uma razão de acontecer
naquele momento. Exatamente um ano antes, em abril de 1996, o Brasil testemunhava
o “Massacre de Eldorado dos Carajás”, como ficou conhecido o choque entre traba-
lhadores sem-terra e a polícia do estado do Pará por conta de um protesto contra a
demora da desapropriação de terras naquele estado. Dezenove sem-terra foram mortos
no confronto. Em abril de 1997, FHC, nesse âmbito, tinha criado não só a Comissão
Especial de Apuração de Patrimônios Nazistas, mas também a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República. Havia um evidente desejo de dar algum tipo
de prestar contas a sociedade. Na cerimônia de assinatura do decreto que criou a co-
missão, o presidente brasileiro indicou, literalmente, que as duas criações - a comissão
e a secretaria - faziam parte de um mesmo movimento em prol dos Direitos Humanos.
A preocupação em mostrar avanços concretos neste campo era notória. Em seu dis-
curso, FHC lembrou que naquele dia mesmo que o país tinha dado um “passo além do
símbolo” ao tipificar o crime de tortura. “Não podemos nos conformar, simplesmente,
com a nossa pouca capacidade de ação diante, muitas vezes, da violência, dos des-
mandos”, disse, completando em seguida que é por isso que valia apenas juntas esses

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
CHESNOFF, Richard Z. Pack of Thieves: How Hitler and Europe Plundered the Jews and Commit-
ted the Greatest Theft in History. Nova York: Anchor, 2011.
170
Apesar do foco na movimentação de patrimônio nazista, em diversas declarações feitas à imprensa
na época, representantes da comissão alegaram que também estava entre os objetivos da comissão de-
terminar quantos nazistas e criminosos nazistas entraram e viveram no país. Embora também tenha sido
dito que a comissão apuraria os governos de Getúlio Vargas, o texto da lei não especificou nenhum
período histórico. Cf. GLOGOWSKI, Márcia. Brasil investigará destino de bens trazidos por nazistas.
05/04/1997, p. A-20; MARQUES, Hugo. Começa caçada ao ouro nazista no Brasil. O Globo. 01/08/
1997, p.31; O Estado de S. Paulo, Brasil tenta localizar contas de nazistas” 01/08/1997, p. A-11.
171
Diário Oficial da União, 22/05/1997, Ano XXXVIII, N.96, pp.1-2.

92
CAPÍTULO 1

atos com o ato de constituição da comissão. 172 Esta, segundo duas palavras,

Vai buscar descobrir o que aconteceu com o patrimônio que se atribui terem
os nazistas trazido a alguns países da América do Sul e, no caso, ao Brasil, e
que é fruto do esbulho, da violência, da tortura, o que não pode ser aceito, um
século depois, dez séculos depois. E, como disse o Rabino Rizovel, não por
que se busque, com isso, reparar materialmente - pode-se até -, mas o propósi-
to é outro. Não é um ato que vai satisfazer à comunidade universal dos judeus
ou àqueles que aqui vivem no Brasil. É um ato para a cidadania toda no Brasil,
porque é uma demonstração de repúdio de todos nós a qualquer forma de vio-
lência e, mais ainda, à violência bárbara que foi a violência nazista. (…) E
quando criamos, portanto, essa comissão, não estamos simplesmente, falando
de nós próprios, dizendo que não queremos ser, pela nossa inação, coniventes
com tais fatos, e também que não pensamos ser esses atos existam só em ou-
tros povos. Nós sabemos que - por sorte, para nós, em escala menor - existem
aqui também. E a mesma repulsa que nos provoca a barbárie lá fora, há de
provocar a violência e transgressão do respeito aos direitos do homem em
qualquer momento, em qualquer região deste nosso país.173

No final de seu discurso, citando a violência ocorrida em El Dourado dos Carajás,


FHC confirmou a teia de sentidos em que a comissão se inseria. A busca por avanços
na área de Direitos Humanos, após um episódio gravíssimo desses direitos, tornou
possível ao Estado brasileiro rever não só o seu presente, como também o seu passa-
do. “Tenham a certeza de que, nesta tarde de hoje, tão plena, como disse, de significa-
do simbólico, nós estamos dando um passo para reafirmar este rumo.”174 Como no
plano internacional discutia-se amplamente a questão dos bens judeus espoliados pe-
los nazistas, a ocasião parecia perfeita para incluir o Brasil naquele movimento.

Em muitos aspectos, a comissão brasileira realmente lembrava a da vizinha Argen-


tina. Ambas foram iniciativas do governo, surgiram na mesma época e visavam eluci-
dar o passado nazista de seus países. Porém, com o tempo, as diferenças entre as duas
foram se revelando. Podemos citar cinco diferenças principais. A primeira diz respeito
ao formato. Se a argentina era formada por um painel internacional, um comitê asses-
sor e outro acadêmico, a brasileira era bem mais modesta em sua estrutura, formada

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
172
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.368.
173
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.368-369.!
174
Biblioteca da Presidência da República - Fernando Henrique Cardoso, Discurso proferido por ocasi-
ão da cerimônia da assinatura do Decreto que cria a Comissão Especial para Apuração de Patrimônios
Nazistas. Palácio do Planalto, Brasília, DF, 7 de abril de 1991. p.374.

93
CAPÍTULO 1

apenas por sete integrantes escolhidos pelo Presidente da República. A segunda dife-
rença refere-se ao tempo de atuação. Na Argentina, a comissão durou seis anos (1997-
2003). No Brasil, apenas dois (1997-1999). A terceira diferença tem a ver com com-
posição. Na CEANA, a maioria dos membros eram historiadores. Na brasileira, dos
sete membros escolhidos por FHC, apenas uma era historiadora.175 A quarta diferença
diz respeito ao contexto das duas comissões. A argentina estava conectada com um
contexto interno, marcado por dois atentados terroristas antissemitas ocorridos no país
e que obrigou as autoridades argentinas a se posicionarem mediante suspeitas de ali-
nhamento ideológico com o nazismo; a brasileira, enquanto isso, estava associada a
um contexto mais internacional, que objetivava mapear os bens de judeus usurpados
pelos nazistas durante a guerra, e também nacional, marcado pelo avanço no debate
da questão dos direitos humanos. Finalmente, a quinta e última diferença: se a
CEANA, mesmo mediante muitas críticas, avançou em termos historiográficos, pro-
duzindo relatórios, livros e artigos, no Brasil, a comissão brasileira foi mais tímida. O
decreto que instituiu a comissão fala apenas na entrega de relatórios semestrais e con-
clusões ao final da comissão que deveriam ser encaminhadas a Presidência da Repú-
blica. Não pude encontrar esse material publicamente. Mas em seu currículo lattes, a
historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sinaliza a conclusão, em 2001, de um projeto
intitulado “nazismo e atividades nazistas no Brasil”, apresentado como parte das ati-
vidades da comissão de que fez parte. Este projeto, segundo Carneiro, teve por foco o
diário de Albert Blume, suspeito de nazismo, e outros documentos guardados no Ban-
co do Brasil após a sua morte. Tal material, indica a historiadora, serviu para a identi-
ficação de centenas de nazistas radicados no Brasil. De qualquer forma, independente
da extensão/disponibilidade dos resultados, a comissão brasileira não produziu uma
historiografia, como no caso argentino, talvez, por não ter um caráter acadêmico.

Item em perspectiva Comissão de Esclarecimento Comissão Especial de Apura-


das Atividades do Nazismo na ção de Patrimônios Nazistas
Argentina (Brasil)
Formato Robusto: painel internacional, co- Enxuto: sete membros escolhidos
mitê assessor e comitê acadêmico. pelo presidente da República.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
Eram os sete integrantes e suas respectivas funções na época da nomeação: Benjamin Benzaquen
Sicsú (administrador de empresas e colaborador do Ministério do Desenvolvimento), Benno Milnitzky
(Presidente Emérito da Confederação Israelita do Brasil), Eduardo Domingos Bottallo (professor de
direito na Universidade de São Paulo), José Carlos da Fonseca Jr. (diplomata), Maria Luiza Tucci Car-
neiro (Professora de História na Universidade de São Paulo) e Henry Sobel (rabino da Congregação
Israelita Paulista).

94
CAPÍTULO 1

Duração Seis anos (1997-2003). Dois anos (1997-1999).


Composição Argentinos e estrangeiros: formado Apenas brasileiros, exceto um rabi-
principalmente por historiadores. no norte-americano. Corpo bastante
homogêneo. Apenas um historia-
dor.
Contexto Nacional: clima de “direito à verda- Internacional (movimento de repa-
de” (pós-ditadura) e episódios de ração do espólio judaico) e nacional
antissemitismo. (avanço dos direitos humanos no
Brasil)
Resultados Publicação de três informes, des- Projeto de pesquisa concluído em
membramento em livros e artigos 2001. Não produziu historiografia.
acadêmicos.

Quadro&1:&Quadro!comparativo!entre!as!duas!comissões.

1.8. O Caso Cukurs: um marco histórico

Dentre todos os casos explorados neste capítulo, o Caso Cukurs pode ser visto co-
mo um marco histórico. Cukurs foi o primeiro grande caso público do gênero no país,
aquele que mais provocou críticas ao Estado brasileiro e o que mais tempo durou. Isso
nos permite vê-lo em perspectiva histórica: ele se tornou desde o princípio um exem-
plo de como as autoridades governamentais brasileiras protegeram criminosos nazis-
tas. Em seguida, no decorrer do pós-guerra, Cukurs foi atualizado: além do governo,
redes secretas nazistas teriam lhe ajudado a permanecer no país. Finalmente, tornou-
se objeto de comparação. Foi analisado tendo em vista casos ocorridos no Brasil
(Bernonville, Wagner, Stangl e Mengele) e fora dele (Rauff, Bormann, Eichmann).
Criou-se, assim, uma prerrogativa histórica infalível: conhecer um é conhecer todos.

Cukurs tem sido ainda hoje um caso acionado a partir desta lógica com frequência.
Ele, na verdade, poderíamos dizer, se tornou exemplo de como o senso comum tem
ditado até hoje a maneira de se compreender a questão dos criminosos nazistas no
Brasil. Em dezembro de 2010, por exemplo, a revista Rolling Stones Brasil, publicou
uma reportagem intitulada “Nazismo Tropical – Como o movimento liderado por
Adolf Hitler ganhou força no Brasil e abrigou alguns dos maiores criminosos de todos
os tempos”. Nela, o jornalista Alexandre Duarte cita Cukurs, Wagner, Stangl e Men-
gele como exemplos da conivência do governo brasileiro no pós-guerra:

O maior país do continente tinha um governo que parecia não se im-


portar muito com a conivência com esses criminosos. Isso permitiu
que no Brasil vivessem, e em alguns casos trabalhassem e criassem
suas famílias, quatro homens que juntos são acusados da morte de
mais de 1,5 milhão de seres humanos. O Cristo Redentor havia rece-

95
CAPÍTULO 1

bido de braços abertos Herberts Cukurs, Gustav Wagner, Franz


Stangl e, o mais procurado deles, Josef Mengele.176

Essa perspectiva é encontrada desde uma revista dedicada a música e a variedades,


caso da Rolling Stones Brasil, até veículos segmentados de história, como Aventuras
na História. Na edição de julho de 2007, a revista da Editora Abril voltada para o
grande público interessado em história publicou uma matéria chamada “Carrascos na-
zistas: Felizes para sempre”. Ao citar os mesmos casos, a matéria também concluía:

No Brasil, a presença de criminosos nazistas também foi grande. (...)


Um problema ainda maior que a falta de controle na entrada teria si-
do a falta de disposição para prender e extraditar os criminosos des-
cobertos por aqui. A tolerância do governo brasileiro logo ficou co-
nhecida e intensificou a vinda de nazistas.177

Em vários casos a relação de Cukurs com as redes secretas nazistas é o elemento


em destaque. No livro América Nazi, o jornalista Jorge Camarasa defende a ideia de
que houve um padrão na entrada de criminosos nazistas nos países latino-americanos:
“los fugitivos arriban a Buenos Aires, tomaban contacto con las redes preparadas para
recibirlos, como la Comisión Peralto o los remanentes de la vieja E-Dienst, y al tiem-
po de legar se los relocalizaba en los destinos que ya estaban previstos”. Herberts Cu-
kurs, ainda segundo o autor argentino, “fue de los primeros en utilizar esa puerta”,
seguido por Walter Kutschmann, Constantin von Groman, François Riocord, Erich
Priebke, entre outros. Em outro livro, Odessa al sur, Camarasa sublinha que Cukurs
“não difere do resto de seus camaradas que conseguiram fugir”. 178

Essa perspectiva também pode ser encontrada no livro Cidadão do Mundo, de Ma-
ria Luiza Tucci Carneiro. Ao comentar a política imigratória do governo brasileiro
logo depois da Segunda Guerra Mundial, Carneiro destaca que:

Ao mesmo tempo [em que se restringia a entrada de judeus no Bra-


sil], um grupo de refugiados políticos deu início a uma outra corrente
migratória em direção à América Latina, caminho este que metafori-
camente denomino de a “rota dos ratos”. Era a vez dos nazistas que,
perseguidos por crimes praticados contra a humanidade, buscavam
um esconderijo nos trópicos. Alguns, autoridades renomadas no con-
texto de ascensão do Terceiro Reich, foram condenados a viver es-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
176
Rolling Stones Brasil, “Nazismo Tropical”, dezembro de 2010. pp.109-114.
177
Aventuras na História, “Carrascos nazistas”, junho de 2007. p.13.
178
CAMARASA, Jorge. Odessa al Sur: la Argentina como refugió de nazis y criminales de guerra.
Buenos Aires: Aguilar, Taurus, Alfaguara, 2012. p.137.

96
CAPÍTULO 1

condidos, como aconteceu com Adolf Eichmann, Walter Kutsch-


mann, Erick Priebke, Friedrich Rusch, Eduard Roschmann, Erich
Muller, Dinko Sakie, Josef Mengele, Gustav Wagner, Herbert Cu-
kurs e Franz Stangl, dentre outros. Vivendo sob falsa identidade, nem
sempre conseguiram escapar do olhar vigilante daqueles que sobrevi-
veram à Solução Final. Outros tiveram seus próprios nomes e ende-
reços de destino ocultos pelas "leis do esquecimento", que, além de
inibirem o acesso aos documentos ditos sigilosos, garantem a sobre-
vivência da História Oficial.179

O trecho é significativo de como certa mitologia política já penetra em algumas


análises historiográficas produzidas no Brasil. “Viver escondidos”, “corrente migrató-
ria”, “falsa identidade” e “história oficial”: essas expressões sinalizam, ainda que in-
voluntariamente, com uma noção conspiracionista e denuncista da história pode mais
prejudicar do ajudar na compreensão da questão dos criminosos nazistas no Brasil. E
esta não foi a primeira vez que tal perspectiva esteve presente em uma fala da histori-
adora. Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 2006, ao comentar um suposto favore-
cimento dado pelo DEOPS-SP a Cukurs, Carneiro afirmara: “Os sobreviventes rela-
tam os crimes e a polícia não faz nada. Houve acobertamento do governo brasileiro
em relação aos nazistas que durou de 1946 até o fim da ditadura militar, em 1985”.180

Haja vista que nem Cukurs e nem nenhum outro caso foi investigado pela historio-
grafia, as narrativas construídas ao longo das últimas décadas proliferaram sem serem
questionadas ou analisadas em profundidade. Muitas questões ainda são compreendi-
das a partir do senso comum. A partir do próximo capítulo, teremos a oportunidade de
começar a examinar o Caso Cukurs. Teria sido Cukurs realmente protegido pelo Esta-
do brasileiro no pós-guerra? Como as autoridades governamentais brasileiras agiram
em relação a Cukurs? As posições adotadas justificam as críticas que foram construí-
das ao longo do caso e que ainda hoje estão presentes nas narrativas sobre o tema? A
conivência do governo seria apenas mais um mito ou correspondeu a realidade? É
possível falar da existência de redes nazistas secretas no Caso Cukurs? O que, enfim,
a análise do Caso Cukurs nos diz a respeito da maneira como o Estado brasileiro atu-
ou nas questão dos criminosos nazistas e como lidou com as pressões oriundas da so-
ciedade? Essas perguntas orientam esta tese a partir do próximo capítulo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do mundo: o Brasil diante do holocausto e dos judeus
refugiados do nazifascismo (1933-1948). São Paulo: Perspectiva, 2010. p.392.
180
Folha de S.Paulo (Online), “Polícia de SP protegeu carrasco nazista”, 06/08/2006. C.6.

97
CAPÍTULO 2
!

CAPÍTULO
Herberts Cukurs: de imigrante exemplar a
2 imigrante indesejado

HERBERTS Cukurs chegou ao Brasil no dia quatro de março de 1946. Portava um


visto permanente expedido pelo Ministério das Relações Exteriores em dezembro de
1945. Quatro anos depois de sua chegada ao país, a Federação das Sociedades Israeli-
tas do Rio de Janeiro anunciou publicamente que Cukurs era um criminoso de guerra
nazista. O objetivo deste capítulo é examinar os primeiros momentos do Caso Cukurs,
desde os motivos que o levaram a deixar a Letônia, seu país natal, e imigrar para o
Brasil, até a acusação da entidade judaica carioca. Buscarei explicar ainda nas próxi-
mas páginas porque as autoridades brasileiras concederam um visto permanente a Cu-
kurs, apesar de seu passado de colaboração com os nazistas. Por fim, discuto também
a formação de forças judaicas e não judaicas que vão exigir sua expulsão, e faço uma
exposição dos principais depoimentos de sobreviventes contra Cukurs

2.1. O aviador herói que terminou como colaboracionista exilado

Herberts Cukurs nasceu em 17 de maio de 1900, na cidade de Liepaja, ao sul do


que hoje conhecemos como Letônia. Ele era um dos quatro filhos do casal de agricul-
tores Jānis Cukurs e Anna Scudra.1 De sua juventude, dispomos de uma quantidade
bastante limitada de informações. Ao certo, sabemos apenas que lutou na Guerra de
Independência da Letônia (1918-1920).2 Quando isso aconteceu, Cukurs era muito
jovem, recém-entrado na vida adulta, o que nos leva a crer que ele não deveria ser tão
diferente dos demais soldados letões de sua geração. Estes, embebidos dos ideais na-
cionalistas típicos daquele início de século, não hesitaram, em sua maioria, a pegar
em armas para garantir o nascimento de seu país. Era o momento imediatamente pos-
terior a desintegração dos antigos impérios europeus, ideal, portanto, para que peque-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965, banco de dados com imagens, Family Search. Disponível
em: <https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:V13Z-MS3> Acesso em 09/07/ 2015. Herberts Cukurs,
1945; Rio de Janeiro, Brasil, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro; FHL microfilm.
2
Delfi, “Roberts Klimovičs: Kam domāti Brāļu kapi?”, Disponível em:
<http://www.delfi.lv/aculiecinieks/news/sabiedriba/roberts-klimovics-kam-domati-bralu-
kapi.d?id=37971691>. Data: 12/04/2011. Acesso em: 23/10/2013.

98
CAPÍTULO 2
!

nas nações como a Letônia concretizassem o sonho da soberania. No caso letão, o


desfecho foi positivo. Em 1920, após duros combates contra tropas alemãs e soviéti-
cas, os letões finalmente sagraram-se vitoriosos e proclamaram a independência do
Estado. Pela primeira vez na história, a Letônia passava a figurar no mapa da Europa
como uma nação independente.

Uma vez encerrado o conflito, Cukurs permaneceu no meio militar. Cursou a Esco-
la de Oficiais de Guerra e se tornou piloto de caça, sendo imediatamente incorporado
à recém-fundada Aeronáutica Letã. 3 Na aviação, seu talento não tardou a se manifes-
tar. Aquele jovem de pouco mais de 20 anos, proveniente de uma família de fazendei-
ros, além de piloto, também projetava, construía e fazia a manutenção dos próprios
aviões. A primeira aeronave que construiu, em 1924, o “C-1” (Cukurs-1), dispunha de
um único motor de 12 cavalos, quando a maioria dos modelos da época tinha até qua-
tro vezes mais potência.4 Quanto à sua personalidade, alguns relatos dão conta de um
piloto ousado e exibicionista. Certa vez Cukurs passou com o C-1 por debaixo de uma
ponte em Karosta, bairro ao norte de Liepaja, rente à superfície água. O fato – até hoje
lembrado pela mídia da Letônia – lhe valeu uma suspensão da Aeronáutica. 5

Esses primeiros voos de Cukurs coincidem com um período bastante dinâmico na


história da Letônia. Depois de vencer russos e alemães e conquistar sua independên-
cia, o país organizou-se na forma de uma República Parlamentarista, adotou uma
constituição democrática, elegeu uma câmara legislativa unicameral (Saeima) e pro-
moveu uma série de reformas políticas e econômicas que diversificaram sua econo-
mia. Do Parlamento, vieram leis sociais bastante avançadas para a época, como as que
protegiam os direitos das minorias étnicas e as que proporcionavam saúde e segurança
para a população. No plano educacional, os avanços da Letônia também foram notó-
rios. No período que vai de 1920 a 1940, o país chegou a ser o segundo entre os paí-
ses europeus no número de estudantes universitários por habitantes: 30 para cada 10
mil. Foi ainda o primeiro no número de mulheres estudantes (39%) – que já votavam

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Jaunais Vēstnesis, “Sabiedrība: Latvietis Herberts Cukurs pasaules debesīs”. Publicado em:
02/02/2010. Disponível em: <http://jvestnesis.lv>. Acesso em: 09/08/2015.
4
Uma história concisa da Letônia pode ser encontrada em: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe
- an introduction to the people, lands, and culture. Vol. I Santa Barbara, California: Abc-Clio, 2005.
5
Kasjauns, “Liepājas Karostas tilts dārdzības ziņā “pārspļauj” Dienvidu tiltu”. Publicado em
27/08/2009. Disponível em: < http://www.kasjauns.lv/lv/zinas/8077/liepajas-karostas-tilts-dardzibas-
zina-parsplauj-dienvidu-tiltu>. Acesso em: 09/08/2015.

99
CAPÍTULO 2
!

– e a segunda nação europeia em livros publicados por habitantes: 82 para cada 100
mil. Segundo o historiador Aldis Purs, o país testemunhou um “Renascimento”.6

Imagem&13.!Pilotos!da!Divisão!de!Aviação!Letã,!em!1925.!Cukurs!está!sentado!com!as!pernas!cruzadas,!com!
um!papel!na!mão!e!com!uma!mão!por!cima!da!outra.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!

No início da década de 1930, a exemplo do que ocorria em grande parte da Europa,


a Letônia foi afetada pelo crash financeiro e observou o nacionalismo recrudescer e
surgir como resposta para as crises das democracias liberais. Em maio de 1934, Kārlis
Ulmanis, Primeiro Ministro do governo provisório (1918-1920), liderou um golpe de
Estado e, uma vez no poder, inaugurou o que alguns historiadores chamam de “Se-
gunda Fase da Primeira República Letã”, a fase ditatorial. Espelhando-se na Itália fas-
cista, o novo governo letão dissolveu o Parlamento, prendeu opositores, demitiu fun-
cionários, reorganizou a economia em moldes corporativistas, fechou jornais, censu-
rou os que permaneceram funcionando e proibiu todos os partidos políticos. 7

Alguns historiadores, no entanto, indicam que a ditadura de Ulmanis teve diferen-


ças significativas em relação às demais ditaduras existentes naquele momento na Eu-
ropa. A questão da violência, por exemplo, destoava. Segundo o historiador Stephen

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
PURS, Aldis. Latvia. In: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe - an introduction to the people,
lands, and culture. Vol. I, Santa Barbara, California: Abc-Clio, 2005.
7
ROGAINIS, Janis. The emergence of an authoritarian regime in Latvia, 1932-1934. In: Lituanus, v.
17, n.3, pp. 61-85, 1971.

100
CAPÍTULO 2
!

J. Lee, “As medidas repressivas não eram de forma alguma completas e deixaram
uma grande margem de manobra. A imprensa, por exemplo, era menos reprimida do
que em outros lugares e ainda foi capaz de transmitir visões de esquerda. Não houve
qualquer tentativa de introduzir um sistema coorporativo completo e a iniciativa pri-
vada continuou florescendo." 8 Outro historiador, Maris Goldmanis, aponta que
nenhum prisioneiro político foi sentenciado à morte durante o regime Ulmanis,
enquanto que aqueles que foram detidos em seus primeiros momentos acabaram
libertados um ano depois do golpe, em 1935. Goldmanis pontua ainda que embora as
minorias étnicas tenham sofrido restrições em seus direitos, elas não foram alijadas da
vida social pelo regime.9 Finalmente, devemos sublinhar que entre os partidos proibi-
dos naquela época estava o do próprio Presidente Ulmanis, o Partido Agrário, e que
todos os grupos políticos existentes então no país foram oficialmente proibidos de
existir, inclusive o abertamente pró-nazista, Pērkonkrusts.10

De acordo com Michael Paris, nos anos do entreguerras, enquanto sentimentos de


desilusão e incerteza econômica proliferavam e acusações de incompetência eram tro-
cadas entre a maioria dos governos, a aviação vai despontar como uma espécie de
válvula de escape. O progresso aeronáutico de uma nação, explica o autor, passou a
ser uma maneira de estimular e manter vivo o orgulho nacional, além de se converter
em índice de progresso e realização de um Estado. “Assim, durante todo o período, a
maioria das nações avançadas tecnicamente destinou alguma atenção à aviação: fosse
nos 'heróis do ar', na realização técnica, nos voos épicos, nas quebras de recordes ou
na excelência geral da sua indústria aérea”.11 O que Paris nos conta aqui explica per-
feitamente uma das principais características da Letônia nacionalista nos anos 1930: o
boom da aviação civil. Nesta década, foram organizados vários shows aéreos e voos
de longa distância, os chamados raides, que não raro geravam enorme competitivida-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
LEE, Stephen J. European Dictatorships, 1918-1945. Routledge, 2008, p. 316. [Original: “the repres-
sive measures were by no means complete and left considerable room for maneuver. The press, for
example, was less constrained than elsewhere and was still able to convey left-wing views. There was
no attempt to introduce a complete corporate system and private enterprise continued to flourish.”]
9
Latvian History, Kārlis Ulmanis authoritarian regime 1934-1940. Publicado em: 20/06/2013, 09:56.
Disponível em: <http://latvianhistory.com/2013/06/20/karlis-ulmanis-authoritarian-regime-1934-
1940/>. Acesso em: 09/07/2015.
10
PLAKANS, Andrejs. Historical dictionary of Latvia. Scarecrow Press, 2008. p. 123.
11
PARIS, Michael. From the Wright brothers to top gun: aviation, nationalism, and popular cinema.
Manchester University Press, 1995, p. 88. [Original: “Thus, throughout the period, most of the techni-
cally advanced nations focused at least some attention on aviation: on the ‘heroes of the air’, on tech-
nical achievement, on epic and record breaking flights or on the general excellence of their aero indus-
try.”]

101
CAPÍTULO 2
!

de entre os pilotos, cada qual desejando realizar o percurso mais inusitado, mais difí-
cil, mais perigoso. Em 1933, um dos raides mais ousados foi proposto pelos pilotos
Nikolajs Pūliņš e Roberts Celms: ir da Letônia até a Gâmbia. A rota tinha uma justifi-
cativa ufanista: no século XVII, Jacob Kettler, um nobre letão entusiasta do colonia-
lismo, estabeleceu uma colônia na África Ocidental, a chamada “Nova Kurzeme”,
cujo território corresponde atualmente à Gâmbia. A aventura colonial letã chegou a
prosperar no início. Porém, não foi longe. Os suecos atacaram a “Nova Kurzeme” e o
empreendimento, na época do expansionismo, acabou sucumbindo. 12

Imagem&14.!Cukurs!dentro!do!cockpit!de!seu!CI3.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!

O que era para ser um “resgate” do orgulho letão, no entanto, acabou se transfor-
mando em um fiasco. No dia 20 de junho de 1933, duas horas depois de decolar, o
avião de Pūliņš e Celms caiu na Alemanha. Os dois não se feriram, mas os estragos na
aeronave não lhes permitiram continuar a viagem. O constrangimento só não foi
maior porque Cukurs assumiu o desafio. Seu “C-3 “decolou no dia 28 de agosto de
1933. A viagem, entre ida e volta, durou um ano. Cukurs percorreu aproximadamente
20.000 km. A travessia foi amplamente coberta pela mídia letã e internacional.13 Nes-
ta altura, Cukurs encontrava-se licenciado do serviço militar. E isso tinha sido uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
BUTTAR, Prit. Between giants: the battle for the Baltics in World War II. Osprey, 2013. p. 279.
13
GUESLIN, Julien. La France et les petits États Baltes: réalités baltes, perceptions françaises et
ordre européen (1920-1932). Paris: Université de Paris - Panthéon-Sorbonne. 24 de janeiro de 2007.
(Tese de Doutorado.) pp. 574-575. Disponível em: tel.archives-ouvertes.fr. Acesso: 01/04/2013.

102
CAPÍTULO 2
!

decisão dele, já que vinha se dedicando cada vez mais à construção de aviões. Antes
de chegar ao fim da jornada, Cukurs passou por Berlim, Frankfurt, Paris, Valência,
Alicante, Málaga, Casablanca, entre outras, até alcançar, finalmente, Bathurst (que, a
partir de 1973, passou a se chamar Banjul, capital da Gâmbia).14 Em geral, o percurso
foi realizado de forma tranquila. Houve apenas uma grande intempérie, que o genro
de Cukurs, Francisco Rizzoto, contaria a um jornal uruguaio anos depois. Em setem-
bro de 1933, a 60 km de Barcelona, o C-3 sofreu uma pane e Cukurs fez um pouso
forçado no leito de um rio seco. Na ocasião, uma espanhola chamada Antinea Dolo-
res, moradora da região, lhe ajudou. Como agradecimento, Cukurs escolheu o nome
desta mulher para sua filha.15

Imagem&15.!Miniatura!comemorativa!do!raide!LetôniaIGâmbia.!Fonte:!La.lt.!

A travessia inédita de Cukurs chamou a atenção dos especialistas em aviação. Não


só pela dificuldade em si daquele raide aéreo, extremamente perigoso, mas pela aero-
nave utilizada por Cukurs. Em sua edição de janeiro de 1934, a revista inglesa Flight,
relatou, por exemplo, o espanto que os engenheiros da montadora francesa Renault
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Latvian Aviation, "Herberts Cukurs ‘Flight to Gambia". Sem data de publicação. Disponível em:
<http://latvianaviation.com/Events/E1934_05_25.html>. Acessado em: 09/07/2015.
15
El País, “El yerno de Cukurs afirma que el Letón no era criminal de guerra”, 15/03/1965, p. 6. Rizzo-
to diz que no mesmo dia em que Cukurs sofreu a queda com o avião, recebeu, coincidentemente, a no-
tícia do nascimento de sua filha, Antinea. No entanto, as datas não batem. Antinea nasceu em
28/04/1934, oito meses depois do acidente do pai. Provavelmente quis dizer que Cukurs deu o nome
não no dia do nascimento, mas sim no dia em que ficou sabendo que seria pai novamente.

103
CAPÍTULO 2
!

tiveram ao descobrir que o C-3 funcionava com um motor de oito cilindros e com po-
tência de 80 cavalos, construído em 1916 e comprado de um ferro velho. 16

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Imagem&16.!Cukurs!recebido!por!multidão!em!seu!retorno!à!Letônia.!Fonte:!Latvian!Aviation.! !
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O exótico destino da viagem, a extensa cobertura jornalística e o avião construído c
e
pelo próprio piloto foram elementos suficientes para converter Cukurs em uma b cele-
i
bridade nacional. Quando o piloto retornou ao país, em maio de 1934, já sob dcontrole
o
de Ulmanis, milhares de pessoas o aguardavam no aeroporto de Liepaja. Em ! Riga,
p
onde chegou no dia seguinte, o aviador foi recepcionado por uma multidão de o curio-
r
sos, além de representantes do governo e jornalistas que lhe esperavam para dar ! início
m
às cerimônias de condecorações e homenagens.17 Mais tarde, a história desseu voo se-
l
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! t
16
Flight Global, "Airisms from the four winds - A noteworthy Latvian flight". Publicado em: i
04/01/1934. Disponível em: <http://www.flightglobal.com/pdfarchive/view/1934/1934%20- d
%200010.html>. Acesso em: 09/07/2015. p.14. ã
17 o
Latvian Aviation, "Rote Map - May 17, 1934 (Konigsberg - Liepaja)". Sem data de publicação.
! Dis-
e
ponível em: latvianaviation.com/en/?./content/Events/CukursGam1.ssi#Konig. Acesso em: 09/07/2015.
m
!
s 104
e
u
!
CAPÍTULO 2
!

ria relatada em um livro escrito pelo próprio Cukurs, intitulado Mans lidojums uz
Gambiju ("Meu voo para Gâmbia”), uma espécie de “diário de bordo” da viagem.18

A carreira de aviador-celebridade de Cukurs teve ainda um segundo capítulo. Suas


histórias na Gâmbia tinham rodado o mundo e o governo japonês, em 1936, propôs
que ele fizesse um novo raide, desta vez indo de Riga até Tóquio. Cukurs aceitou. O
novo percurso foi duas vezes mais extenso que o primeiro: 40.000 km separavam os
dois países. No trajeto, também realizado com sucesso, Cukurs atravessou a Lituânia,
a Alemanha, a Índia, a China, o Vietnã e a Coréia, até chegar ao Japão.19 Um dado
curioso sobre o voo até Tóquio é que ele resultou na primeira menção de Cukurs na
imprensa brasileira. Isso aconteceu em 22 de outubro de 1936. Nesta data, o Jornal do
Brasil publicou uma pequena nota sobre a sua chegada à Danzig, um dia depois de
deixar Riga. Nesta sua primeira parada, Cukurs conversou com os jornalistas e lhes
contou que tudo corria bem, exceto pela dificuldade em conseguir autorização da
URSS para sobrevoar seu espaço aéreo – segundo Cukurs, aquele tinha sido até ali o
único país a lhe negar autorização entre os vinte e dois pelos quais teria que passar.20

Imagens&17&e&18.!À!esquerda,!charge!de!Cukurs!publicada!na!revista!letã!Atpūta,!em!1934;!à!direita,!matéI
ria!produzida!por!Cukurs!publicada!na!mesma!revista.!Fonte:!Periodika.lv.!!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
CUKURS, Herberts. Mans Lidojums uz Gambiju. Riga: Edição do autor, 1934.
19
Latvian Aviation, "Herberts Cukurs' Flight to Tokyo". Sem data de publicação. Disponível em:
<http://latvianaviation.com/Events/CukTokyo.html>. Acesso em: 09/07/2015.
20
Jornal do Brasil, “O momento aeronáutico”, 22/10/1936, p. 13.

105
CAPÍTULO 2
!

Juntos, os raides à Gâmbia e ao Japão lhe valeram reconhecimento e prêmios. Cu-


kurs ganhou o Troféu Harmon, um dos mais importantes da aviação, e foi eleito
membro honorário da Liga Internacional dos Aviadores, passando a figurar ao lado de
duas emblemáticas figuras da aviação mundial: Santos Dumont e Charles Lindbergh.
Da imprensa internacional, Cukurs recebeu as alcunhas de The Latvian Lindbergh e
de The Baltic Lindbergh. Do governo da Letônia, de acordo com o blog A Águia Do
Báltico, editado por um dos filhos de Cukurs, o aviador ganhou uma fazenda, no mu-
nicípio de Bukaiši, a 85 km de Riga, além da patente de Capitão da Força Aérea.21

Na década de 1940, os shows aéreos e raides transatlânticos foram interrompidos


pelo início da Segunda Guerra Mundial. Mais do que isso, a Letônia sucumbiu com-
pletamente como país livre. Entre 1940 e 1945, o país foi ocupado três vezes. A pri-
meira ocupação, da URSS, teve início no dia 17 de junho de 1940, decorrente da assi-
natura do Pacto Ribbentrop-Molotov. 22 Em pouco mais de um ano, as forças soviéti-
cas nacionalizaram bancos, empresas, propriedades e igrejas. Para evitar focos de re-
sistência dentro do Estado, Moscou exonerou milhares de funcionários públicos, sen-
do convocados para os seus “lugares ociosos” centenas de cidadãos russos.23

Vários políticos, artistas, intelectuais e funcionários do governo letão foram perse-


guidos, presos ou mortos. Observou-se várias ondas de deportações: calcula-se que a
polícia secreta soviética tenha deportado mais de 35 mil pessoas só no primeiro mês
de ocupação.24 Ulmanis esteve entre os deportados. O deposto presidente da Letônia
foi enviado para uma prisão onde hoje é o Turquemenistão. Especula-se que morreu
nela em 1942. 25 Depois de se tornar a 15a República Soviética, em agosto de 1940, a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
A Águia do Báltico, "O voo épico de Herberts Cukurs de Riga a Gambia, na África". Publicado em:
02/05/2008. Disponível em: <http://herbertscukurs.blogspot.com.br/2008/05/o-voo-epico-de-herberts-
cukurs-para.html>. Acesso em: 09/07/2015.
22
O pacto, também conhecido como “Pacto de Não Agressão”, possuía uma parte secreta que acordava
a divisão do leste da Europa em duas esferas de influência. Letônia, Lituânia, Estônia e Romênia esta-
riam sob influência soviética, enquanto Finlândia e Polônia estariam sob influência alemã.
23
PURS, Aldis. Latvia. In: FRUCHT, Richard (Edit.). Eastern Europe - An introduction to the people,
lands, and culture. Vol. I, Santa Barbara, Califórnia: Abc-Clio, 2005.
24
A deportação ocorrida no dia 14 de junho de 1941 talvez tenha sido a mais traumática. Nesta data,
milhares de letões foram deportados para a Sibéria em trens lotados. Famílias inteiras, com crianças,
mulheres e idosos foram enviados para campos de trabalho forçado. Sobre o episódio, conferir: Latvian
Aviation, "Soviet Mass Deportations of June 14 1941". Publicado em: 14/06/2012. Disponível em:
<http://latvianhistory.com/2012/06/14/soviet-mass-deportations-of-14-june-1941/>. Acesso em:
09/07/2015.
25
KUCK, Jordan. Renewed Latvia. A Case Study of the Transnational Fascism Model. Fascism, v. 2,
n. 2, p. 183-204, 2013.

106
CAPÍTULO 2
!

sovietização da Letônia foi ainda mais rápida. Sua constituição e sistema legal foram
substituídos, enquanto as Forças Armadas foram incorporadas às da URSS.26

Imagem&19.!Vagões!soviéticos!repletos!de!letões!deportados!em!14!de!junho!de!1941.!Fonte:!NOLLENI
DORFS,!Valters!et!al.!The!Three!Occupations!of!Latvia!1940I1991.Soviet!and!Nazi!TakeIovers!and!Their!
Consequences.!Riga:!Occupation!Museum!Foundation,!2005.!p.5.!
!
! Já a segunda ocupação da Letônia começou no dia 1o de julho de 1941. Hitler rom-

peu o Pacto Ribbentrop-Molotov e passou a ocupar vários territórios soviéticos, entre


eles, a Letônia. Surpreendidos, os soldados soviéticos fugiram. Ocorre aí um fato cu-
rioso: quando os tanques alemães entraram em Riga, muitos letões interpretaram o
momento positivamente. Acreditaram que a Letônia não só estava sendo libertada do
julgo soviético como também logo recuperaria a independência. Os alemães jamais
prometeram esse tipo de coisa. Contudo, o modelo de ocupação nazista acabou ali-
mentando essa expectativa. Diferentemente dos soviéticos, os novos ocupantes permi-
tiram a volta de letões a alguns postos da gestão pública, liberaram o uso de símbolos
nacionais, toleraram práticas religiosas banidas e organizações sociais e culturais dis-
solvidas pelos antigos ocupantes foram restauradas.27 A interrupção das deportações
em massa para lugares como a Sibéria também ajudou a criar tal sensação. Emilija
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
NOLLENDORFS, Valters et al. The Three Occupations of Latvia 1940-1991.Soviet and Nazi Take-
overs and Their Consequences. Riga: Occupation Museum Foundation, 2005. p.5.
27
KASEKAMP, Andres. A History of the Baltic States. Nova York: Palgrave, 2010. Pos. 2740.

107
CAPÍTULO 2
!

Vasara se recorda: “Nós não tínhamos nenhuma afeição particular pelos alemães,
[mas] nós demos boas-vindas [a eles] por causa das deportações de 14 de Junho.”28

Imagem&20.!Letões!recepcionam!soldados!nazistas!em!Riga.!Fonte:!Wikipédia.!

A Letônia passou a fazer parte do chamado Reich Commissariat Ostland, sob


comando direito de Alfred Rosenberg, teórico estoniano do nacional-socialismo. O
controle do país, porém, apenas foi possível com a participação de colaboracionistas.
Esses grupos eram bastante diversos, indo desde unidades policiais até soldados
voluntários ou recrutados para combater pela Alemanha no front soviético. Os judeus
– que representavam cerca de 8% da população letã – foram os mais afetados pelo
novo regime. Era o início do Holocausto na Letônia. De acordo com Margers Vester-
manis, é possível dividir o extermínio em massa de judeus no país em duas fases. A
primeira vai de julho a agosto de 1941. Neste período, as mortes em massa ocorreram
de forma aleatória nas zonas rurais, principalmente em áreas de florestas e de forma
seletiva nas cidades: apenas homens, sobretudo dentro das prisões. Calcula-se que
mais de 35 mil judeus foram assassinados neste período. As ações neste momento
eram em parte descentralizadas, conduzidas por esquadrões móveis do exército ale-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
WINGFIELD, Nancy; BUCUR, Maria. Gender war in twentieth-century. Eastern Europe. Indiana-
Michigan: Indiana University Press, 2006, p.139.

108
CAPÍTULO 2
!

mão, os chamados Einsatzgruppen-SS, e por comandos policiais formados por colabo-


racionistas. 29 Dentre este segundo grupo, teve destaque o chamado Comando Arajs.30

Imagem&21.!Imagem!do!interior!do!Gueto!de!Riga.!Fonte:!Yad!Vashem,!Instituto!Cultural!Google.!!!

A segunda fase do Holocausto vai de novembro a dezembro de 1941. Desta vez, as


ações foram centralizadas, levadas a cabo pela alta esfera da SS e por lideranças poli-
ciais locais, seguindo orientações diretas de Berlim. O alemão Friedrich Jecklen, ofi-
cial da SS, foi o principal responsável por esta fase do extermínio. Chefe das unidades
policiais nos territórios ocupados da URSS, Jecklen, com apoio de membros do Co-
mando Arajs, coordenou uma grande operação que, nos dias 30 de novembro e 8 de
dezembro, culminou com a morte de milhares de pessoas. Nestes dois dias, aproxima-
damente 25 mil judeus foram escolhidos no Gueto de Riga, levados para a região de
Rumbula, próxima de Riga, e executados. O massacre é considerado um dos eventos
mais traumáticos da história moderna e contemporânea da Letônia. 31

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the ‘white spots’ of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acesso em: 09/07/2015.
30
O Comando Arajs, liderado pelo colaboracionista Viktor Arājs, foi o principal grupo colaboracionis-
ta letão. O Comando era uma unidade de Polícia Auxiliar, subordinada diretamente a SD. Participou
ativamente da perseguição, prisão e assassinato de judeus. Cf. EZERGAILIS, Andrew. War crimes
evidence from Soviet Latvia. Nationalities Papers, v. 16, n. 2, p. 209-224, 1988.
31
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the "white spots" of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acessado em: 09/07/2015.

109
CAPÍTULO 2
!

Ainda como parte da política de extermínio, existiram nove campos de


concentração na Letônia, Riga-Salispils, Riga-Kaiserwald, Dundaga, Eleje-Meitenes,
Jungfernhof, Lenta, Manor of Strazdu, Poperwahlen e Spilwe, além de três guetos: o
Gueto de Riga, o de Dvinsk e o de Liepaja.32 Nesses locais, viviam judeus do próprio
país e estrangeiros, que chegavam de vários pontos da Europa. Para o território letão,
foram transportados mais de 20 mil judeus de países pertencentes ao Terceiro Reich,
além de um grupo de judias da Hungria e de mil judeus lituanos.33 Calcula-se que ao
final da Guerra, em 1945, 70% dos judeus letões tenham sido exterminados. 34

Cukurs esteve entre aqueles que colaboraram com a ocupação alemã. Anos mais
tarde, em depoimento ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo
(DEOPS/SP), Cukurs admitira que foi mecânico das unidades de polícia da Letônia
ocupada (Comando Arajs) e que lutou pelos alemães no front soviético. 35 De acordo
com seu testemunho, ele só teria apoiado as forças nazistas porque queria impedir de
qualquer forma o retorno das tropas soviéticos. Cukurs manifestava desprezo pelo
comunismo. Diversos judeus da Letônia que sobreviveram ao Holocausto, porém, ti-
nham uma versão diferente: Cukurs teria participado ativamente das ações de exter-
mínio do Gueto de Riga. Conforme veremos, esses sobreviventes vão relacionar o
aviador aos episódios de extermínio ocorridos entre novembro e dezembro de 1941.

Em meados de 1944, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, Cukurs dei-
xou a Letônia. As tropas soviéticas estavam próximas de recuperar o controle do país
e o fato de ele ter sido colaboracionista, independente do quanto contribuiu para o Ho-
locausto, era uma ameaça a sua segurança. Aos 44 anos, Cukurs saiu do país rumo a
Berlim. Sua família também deixou a Letônia. Na capital da Alemanha, Cukurs esteve
acompanhado de sua esposa, Milda (38), de seus três filhos menores de idade, Gun-
nars (14), Antinea (12) e Herberts Jr. (4), de sua sogra, Made (64), e, surpreendemen-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Rumbula, “Holocaust Overview & Locations”. Sem data de publicação. Disponível em: <
http://www.rumbula.org/holocaust_latvia_overview.shtml>. Acesso: 29/08/2012.
33
STRANGA, Aivars. The Holocaust in Occupied Latvia: 1941-1945. In: The Hidden and Forbidden
History of Latvia under Soviet and Nazi Occupations 1940-1991. Riga: Institute of the History of Lat-
via, 2005, pp. 161-174.
34
Crimes against humanity, "Extermination of the Latvian Jews in 1941 - Remarks on the time periods
of the history of Holocaust and on the ‘white spots’ of historiography". Sem data de publicação. Dis-
ponível em: <http://lpra.vip.lv/vestermanis.htm>. Acesso em: 09/07/2015.
35
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls. 42-44.

110
CAPÍTULO 2
!

te, de uma jovem judia letã chamada Miriam Kaicners, de 23 anos, recém-integrada à
família e que Cukurs vinha protegendo pessoalmente desde 1941.36

A história de Miriam Kaicners ainda é muito pouco conhecida atualmente. Mesmo


no início dos anos 1950, quando seu nome foi associado ao de Cukurs, as informações
a seu respeito eram ínfimas. Miriam praticamente não concedeu entrevistas. Sua vida
no Brasil foi discreta. Poucos são os livros e reportagens que mencionam o seu nome.
Assim, não parece estranho que tantas perguntas permaneceram abertas sobre sua vi-
da: quem era Miriam Kaicners? Qual a sua relação com Cukurs? O que sabia sobre o
seu passado colaboracionista? Por que imigrou para o Brasil com um homem acusado
de crimes de guerra nazistas? Durante a pesquisa desta tese, contudo, localizei alguns
documentos que nos ajudam a iluminar um pouco mais sua trajetória, desde Riga até o
Rio de Janeiro. O primeiro desses documentos é a sua ficha consular de qualificação,
entregue à Polícia Marítima brasileira e as demais autoridades de imigração. Miriam
Kaicners, informa tal documento, nasceu na cidade letã de Berzpils, no dia primeiro
de abril de 1920. Era filha de Schneiers Kaicners e Beila Schwulbe. Seu visto perma-
nente para o Brasil foi concedido no mesmo dia em que Cukurs também recebeu o
dele: 18 de dezembro de 1945. Miriam também portava o mesmo salvo conduto de
Cukurs, emitido pelas autoridades municipais de Bouches du Rhône, na França.37

É um segundo documento, no entanto, que nos traz informações mais substantivas


sobre Miriam. Trata-se do depoimento que ela forneceu à Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro, em 14 de agosto de 1950. Nele, Miriam conta que vivia
sozinha em Riga quando os alemães invadiram o país. Nesta época, ela contava então
com 20 anos de idade. Judia, foi rapidamente presa pelos nazistas e enviada para o
número 19 da rua Waldemar. Neste endereço, funcionava o principal centro de inter-
rogatório, prisão e tortura de judeus e oponentes políticos do nazismo na Letônia. Cer-
to dia, Miriam limpava o pátio interno deste prédio quando Cukurs a reconheceu. Os
dois tinham sido vizinhos em Riga, ela conta. Além disso, Cukurs tinha ido a sua es-
cola alguns anos antes para dar uma palestra sobre as suas viagens à Gâmbia. Infor-
mado da situação, Cukurs retirou Miriam do prédio e a levou para um apartamento em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
A saída de Cukurs da Letônia é narrada pelo próprio Cukurs em seu depoimento ao Departamento de
Ordem Política e Social de São Paulo (ver referência anterior) e confirmada em documentos oficiais.
37
"Brasil, Cartões de Imigração, 1900-1965," data-base com imagens, Family Search
(https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:KC6K-3RR : acessado em 24 de outubro 2015), Miriam Kaic-
ners, Imigração; citado 1945, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

111
CAPÍTULO 2
!

Riga no qual ele vivia desde o início da ocupação nazista. Ali, Miriam revela ter per-
manecido algum tempo, limpando a casa e fazendo a própria comida, até que certo dia
Cukurs a levou para a casa de uma família judaica, os Blumenau, com quem ele su-
postamente tinha relações de amizade. Com essa família, Miriam afirma que viveu até
o dia 29 de novembro de 1941. Nesta data, todos foram descobertos pelos nazistas e
enviados ao Gueto de Riga. Antes de serem deportados, Miriam explicou à Federação
das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro que Cukurs veio de novo ao seu auxílio:

(...) No dia seguinte, muito cedo, o Sr. Cukurs lá veio e dirigiu-se


ao Sr. Blumenau e explicou que poderia ficar com sua filha e a de-
poente [Miram], ao que o Sr. Blumenau replicou que iria consultar
sua senhora quanto a sua filha, pois a declarante já tinha decidido
ficar, pois partiu dela mesma o pedido a Cukurs para que a salvasse
e a deixasse em sua companhia; que a filha do Sr. Blumenau cha-
mava-se Shelly; que o Sr. Blumenau não deixou sua filha ficar, ten-
do mesmo sua senhora se agarrado a filha; mas que o Sr. Cukurs lhe
indicou o lugar em que estava parado, sendo certo que era um carro
marca Cadillac de cor verde-oliva, que tinha um grande porta-malas
no qual mandou a depoente esconder-se e fechar a sua porta.38

Pelo que Miriam descreve, a atitude de Cukurs foi fundamental para salvar sua vi-
da, pois, como sabemos, no dia seguinte a sua prisão, milhares de judeus foram sele-
cionados no Gueto de Riga e sumariamente executados nas imediações da cidade. E
segundo prossegue o depoimento tomado pela Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro, esta não foi a última vez que Cukurs a ajudaria. Após sua saída do
Gueto de Riga, Miriam afirmou que foi levada para a fazenda de Cukurs em Bukaiši.
No início, conta ela, só a esposa de Cukurs sabia de sua presença e de sua real identi-
dade. Para os filhos, a jovem foi apresentada tardiamente e apenas como “Marija”,
professora de inglês e alemão. Ela permaneceu em Bukaiši até 1944, quando Cukurs
preparou, então, a mudança para a Alemanha. Miriam revela que sua saída da Letônia
só foi possível graças a um passaporte falso arranjado por Cukurs. 39

Em novembro de 2012, consegui localizar Helga Fisher, filha de Miriam. Helga,


que reside desde os anos 1980 em Nova York, Estados Unidos, nunca tinha ouvido
falar no nome de Cukurs. Segundo explicou, sua mãe, falecida no Rio de Janeiro em
1996, sempre falou muito pouco sobre os tempos de Letônia. Nossa conversa foi aos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 62.
39
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 63.

112
CAPÍTULO 2
!

poucos progredindo. Depois de lhe contar o que tinha descoberto, Helga compartilhou
comigo vários documentos antigos de sua mãe. Entre esses documentos estavam di-
versas fotografias tiradas durante o período da guerra, pouco tempo depois da saída de
Miriam do Gueto de Riga. Nestas fotos, Miriam aparece viajando, trabalhando e se
divertindo com a família Cukurs. Outro documento importante deste acervo familiar é
o referido passaporte falso que teria permitido Miriam fugir para a Alemanha. Ele re-
almente existiu. Neste passaporte, Miriam Kaicners é Marija Cukurs, filha mais velha
de Cukurs. A informaçao é surpreendente: Cukurs deixou a Letônia rumo a Berlim,
capital do Terceiro Reich, levando a família e uma judia, cujo passaporte falsificado
alegava ser sua filha. Mesmo para um colaboracionista era um risco. Caso fosse pego,
não só Miriam, mas Cukurs e família poderiam sofrer punições bastante graves. Em
vários países sob ocupação alemã, aqueles que ajudassem judeus a saírem de áreas
judaicas sem autorização prévia eram punidos até mesmo com a morte. Punição
semelhante também era comumente aplicada a pessoas que abrigassem tais judeus e
que lhes fornecesse qualquer tipo de ajuda, o que englobava as coisas mais prosaicas,
tais como fornecer abrigo, transporte, comida, bebidas, informações, etc.40

Imagem&22.!Frente!do!passaporte!falso!de!Miriam!Kaicners.!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
40
Cf. BAUMAN, Janaína. Inverno na manhã. Uma jovem no Gueto de Varsóvia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.

113
CAPÍTULO 2
!

Imagem&23.!Passaporte!falso!de!Miriam!Kaicners.!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga.!

Miriam conta que todos permaneceram mais ou menos sete meses em Berlim. Na
cidade, tanto ela quanto Cukurs trabalharam em uma fábrica de aviões. Somente em
duas oportunidades, informa, as autoridades alemãs lhe pediram para examinar os do-
cumentos. Nunca, porém, suspeitaram da fraude. Quando as forças militares soviéti-
cas começaram a se aproximar de Berlim, por volta de fevereiro e março de 1945, Mi-
riam e a família Cukurs teriam se dirigido para a região oeste da Alemanha. Lá, es-
conderam-se em uma floresta perto de Kassel, localizada no estado de Hessen, e de-
pois dirigiram-se para uma zona militar controlada pelo exército norte-americano. Mi-
riam se apresentou ao chefe desta zona pedindo conselhos sobre o que deveria fazer e
para onde ir. Este, por sua vez, sugeriu que ela e a família que a acompanhava fossem
para França. O conselho foi seguido e a viagem, segundo conta Miriam no depoimen-
to dado à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, foi feita no carro de
Cukurs. O automóvel trazia a reboque móveis e outros objetos de valor que Cukurs ia
vendendo para fazer dinheiro. Uma vez na França, instalaram-se num velho hotel, o
Hotel Panorama, em Cassis, no vilarejo de Bouches-du-Rhône, o mesmo que dali a
alguns meses concederia os salvo-condutos à Miriam e aos Cukurs. A indicação, pelo
que diz Miriam, foi feita por uma família polonesa que conheceram no caminho. 41

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.

114
CAPÍTULO 2
!

Imagem&24.!À!esquerda,!na!parte!inferior,!Miriam,!com!os!cabelos!pintados!de!louro,!aparece!em!uma!espéI
cie!de!campo.!Não!é!possível!determinar!a!data!da!foto!ou!as!duas!outras!pessoas!que!estão!nela.!O!que!se!
sabe,!porém!é!que!o!registro!foi!feito!durante!os!anos!em!que!Miriam!esteve!com!os!Cukurs.!Fonte:!Arquivo!
Familiar!de!Helga!Fisher.!!

Imagem&25.!No!fundo!da!foto!podemos!reconhecer!o!filho!mais!velho!de!Cukurs,!Gunnars.!No!primeiro!plaI
no,!vemos!seis!pessoas.!Da!esquerda!para!a!direita:!Milda!(esposa!de!Cukurs),!Miriam!e!Herberts!Cukurs!Jr.!
(no!colo),!um!homem!desconhecido!(seria!ele!o!pai!da!família!polonesa!que!encontraram!na!viagem!até!a!
França?),!uma!mulher!também!desconhecida!e,!finalmente,!Antinea!Dolores!Cukurs.!!Fonte:!Arquivo!FamiliI
ar!de!Helga!Fisher.!!

115
CAPÍTULO 2
!

Imagem&26.!Aqui,!Miriam,!também!com!o!cabelo!louro,!algo!que!teria!feito!para!não!levantar!suspeitas!dos!
nazistas,!aparece!com!aquele!que!muito!provavelmente!é!Herberts!Cukurs!Jr.!A!criança!nasceu!em!Liepaja!
no!dia!dois!de!outubro!de!1941.!Chegou!ao!Brasil!com!cinco!anos!de!idade.!Atualmente,!ele!vive!no!Brasil.!!
Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!!

116
CAPÍTULO 2
!

Imagem&27.!Documento!de!identidade!de!Miriam!expedido!pelas!autoridades!francesas!em!seis!de!outubro!
de!1945!e!válido!até!6!de!janeiro!de!1946.!!Fonte:!Arquivo!Familiar!de!Helga!Fisher.!!

117
CAPÍTULO 2
!

Embora tivesse sido libertada em 1944, a França era, como quase toda a Europa
naquele imediato pós-guerra, um país vilipendiado após seis anos de conflitos inten-
sos. Faltavam alimentos, empregos, moradia e assistência básica. Doenças antes erra-
dicadas ou vencidas com facilidade pela ciência voltavam às ruas e não havia assis-
tência social ou médica suficiente para os doentes. Segundo Tony Judt, os europeus
não tinham motivos para sentir otimismo em relação ao futuro naqueles meses.42 Em
virtude dessas dificuldades – e talvez com medo de possíveis represálias por sua cola-
boração na ocupação nazista da Letônia – Cukurs decidiu deixar a Europa.

Imagem&28.!Documento!das!autoridades!americanas!dando!passe!livre!de!deslocamento!para!Miriam.!DoI
cumento!também!pode!ter!ajudado!a!família!Cukurs.!Fonte:!Codes,!SPMAF/RJ!217178.!Arquivo!Nacional.!!!

O primeiro passo para sair do continente foi reunir todos os documentos necessá-
rios. Da prefeitura de Bouches-du-Rhône, em novembro de 1945, ele adquiriu um sal-
vo-conduto (substitutivo do passaporte) e um visto de saída francês, além de um ates-
tado de bons antecedentes e outro de saúde. Depois disso, precisou de um item igual-
mente importante: o visto de um país que o aceitasse. De acordo com Miriam, Cukurs
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 27.

118
CAPÍTULO 2
!

visitou consulados de vários países sul-americanos. O consulado brasileiro em Marse-


lha foi um deles. 43 O cônsul brasileiro na época, Mario Wright Pacheco, transmitiu o
pedido de Cukurs ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) no dia 20 de novem-
bro de 1945. No telegrama, Pacheco referiu-se a Cukurs como “refugiado político”,
“apátrida” e “construtor de aviões”. Ele ainda informou ao Itamaraty que a família
possuía recursos iniciais de subsistência e que desejava trabalhar e residir no Brasil.44
A Secretaria de Estado das Relações Exteriores, respondeu a Pacheco dois dias depois
autorizando a vinda da família.45 Cukurs recebeu o seu visto permanente para o Brasil
– extensivo automaticamente a toda sua família – em 18 de dezembro de 1945.46 Mi-
riam, por sua vez, foi aconselhada pelo HIAS-CIA-EMIGDIRECT (HICEM), entidade
filantrópica de ajuda a judeus imigrantes, a seguir com os Cukurs para o Brasil. 47

Com o visto permanente concedido pelo MRE, Cukurs, sua esposa, a sogra, seus
três filhos e Miram Kaicners (na qualidade de “filha adotiva”) embarcaram no vapor
Cabo de Buena Esperanza, em Barcelona, rumo ao Brasil, no dia cinco de fevereiro
de 1946. Viajaram todos de terceira classe. Pertencente à Ybarra y Cía., famosa com-
panhia marítima de Sevilla, o vapor era na época uma das principais linhas que liga-
vam o mediterrâneo ao Cone Sul. Durante a guerra, ele e o seu gêmeo, o Cabo de
Hornos, transportaram toda sorte de pessoas da Europa para a América do Sul.48

Cukurs, portanto, não chegou ao Brasil por meio das chamadas ratlines, como
eram conhecidas as rotas utilizadas por diversos refugiados do nazismo depois da
guerra. Não houve também falsificação de documentos – todos vieram com seus res-
pectivos nomes verdadeiros – e nem ajuda de setores católicos ou da Cruz Vermelha.
Pelo menos isso não aparece em nenhum dos documentos aqui analisados. Sua vinda
para o Brasil seguiu aparentemente todos os trâmites burocráticos da época. Também
não encontrei na documentação indícios de ajuda de redes nazistas a Cukurs.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.
44
AHI-RJ. Consulado Brasileiro em Marselha, 44/6/12: Telegrama 22.
45
AHI-RJ. Consulado Brasileiro em Marselha, 45/5/11: Telegrama 26.
46
AN-RJ. Pedido de visto em passaporte estrangeiro, SPMAF/RJ, N.217180, fl. 12.
47
O HICEM era uma organização criada em 1927 com o objetivo de ajudar judeus europeus a imigrar.
O HICEM era composto por três associação imigratórias judaicas: HIAS (Hebrew Immigrant Aid So-
ciety), ICA (Jewish Colonization Association) e a Emigdirect. Fonte: Yad Vashem, “Hicem”. Disponí-
vel em: <yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206368.pdf>. Acesso em: 10/05/2013.
48
NEWTON, Ronald C. The "Nazi Menace" in Argentina. California: Stanford University Press, 1992,
p. 273.

119
CAPÍTULO 2
!

Imagem&29.!Miriam!e!Cukurs!nas!ruas!de!Marselha,!França,!1946.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo.!

Em uma entrevista dada anos depois para a revista O Cruzeiro, Cukurs disse que a
“escolha” de vir para o Brasil teve a ver com aviação. Um aviador acrobata que esti-
vera no país teria lhe mostrado um álbum de fotografias e lhe contado sobre a existên-
cia de mais de 300 aeródromos no país sul-americano. 49 Pode ser realmente que isso
seja verdade, afinal de contas, o Brasil já tinha uma história famosa dentro da aviação,
não só pelo pioneirismo de Santos Dumont, mas principalmente por empresas como a
Varig e a Panair, que desde os anos 1920 já operavam regulamente no país. Mas é di-
fícil acreditar que Cukurs tenha vindo para o Brasil com base apenas no que lhe disse-
ra um colega aviador. Outros fatores podem ter influenciado o letão. Ele poderia estar
procurando também um país distante, onde a comunidade letã fosse pequena e antiga.
O governo brasileiro pode ainda ter sido o único a ter lhe conferido o visto de entrada,
não restando a Cukurs muitas outras possibilidades. O motivo de vir para o Brasil po-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
49
O Cruzeiro, “Do Báltico ao Brasil”, 24/06/1950, pp. 119-122.

120
CAPÍTULO 2
!

de ter sido uma combinação destes motivos e muitos outros não mencionados aqui.
Talvez nunca saibamos ao certo.

Imagem&30.!Da!esquerda!para!a!direita,!Mirian!Kaicners,!Gunnars!Cukurs,!mulher!não!identificada,!Milda!
Cukurs,!Herberts!Cukurs!Jr.!e!Antinea!Cukurs.!Todos!a!bordo!do!Cabo!de!Buena!Esperanza.!Fonte:!Arquivo!
Familiar!de!Helga!Fisher.!
!
O mais importante, porém, é responder: porque o governo brasileiro permitiu a
imigração de Herberts Cukurs para o Brasil? Como foi possível que um colaboracio-
nista imigrasse para o país sem levantar qualquer tipo de suspeita? Saberiam as auto-
ridades brasileiras em Marselha de suas atividades durante a ocupação nazista na Le-
tônia? Que condições históricas nos permitem compreender a vinda de Cukurs para o
país? Para responder essas perguntas, devemos antes de tudo compreender a política
imigratória do governo brasileiro e algumas características do contexto do pós-guerra.

2.2. Imigrante desejado

Desde o final do século XIX, parte da elite brasileira havia aderido à teoria racial
do “branqueamento”. Segundo explica Thomas Skidmore, essa teoria defendia a supe-
rioridade do branco sobre as outras raças e apostava no sistemático desaparecimento
do negro da sociedade brasileira, graças a fatores como a miscigenação e a suposta
baixa taxa de natalidade da população negra. Nesse sentido, a população brasileira iria

121
CAPÍTULO 2
!

fatalmente clarear e se desenvolver. 50 A imigração aparece nesse contexto como um


catalizador do branqueamento: quanto mais elementos brancos fossem introduzidos
no país, mais rapidamente aconteceria o branqueamento da população brasileira. Tal
ideia era defendida até mesmo por líderes abolicionistas, em geral mais liberais, como
é o caso de Joaquim Nabuco. Em 1883, Nabuco explicou que seu movimento queria
um país “onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nos-
so regime, a imigração europeia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de
sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo”.51

A teoria do branqueamento sobreviveu à virada do século, absorveu as ideias eu-


gênicas que grassavam na Europa no início do século XX e foi transformada em um
dos pilares da política imigratória oficial do Estado brasileiro após a chegada de Getú-
lio Vargas ao poder (1930). A Constituição de 1934, em seu Art.121, estabeleceu, por
exemplo, que a corrente imigratória de cada nação não poderia exceder, anualmente, o
limite de dois por cento sobre o número dos respectivos nacionais fixados no Brasil
durante os últimos 50 anos, medida esta que não fortuitamente favorecia a imigração
de portugueses, italianos e espanhóis ao mesmo tempo que dificultava correntes imi-
gratórias tidas como indesejadas na época, como a japonesa e a judaica, consideradas
não brancas e de difícil assimilação social.52 Segundo Fabio Koifman, “Vargas e parte
das elites brasileiras estavam convencidos de que a composição étnica ‘não branca’ de
boa parte dos brasileiros explicaria o atraso e as dificuldades do país”.53

Durante o Estado Novo, o projeto de branqueamento da população brasileira conti-


nuou sendo o norte da política imigratória brasileira. Mas havia novas variáveis em
jogo. O Decreto-Lei 3010, de 20 de agosto de 1938, além de valorizar o imigrante
branco-europeu, tornou prioritária a vinda de agricultores e técnicos especializados. A
imigração tornou-se tão estratégica e seletiva que esse mesmo Decreto-Lei determi-
nou a criação do Conselho de Imigração e Colonização, o CIC, órgão subordinado
diretamente à Presidência da República e que tinha como objetivo supervisionar, ori-
entar e coordenar a política imigratória brasileira, bem como tecer estudos e fornecer
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 81.
51
Ibidem, p.40.
52
BRASIL, Constituição Federal de 1934. Diário do Poder Legislativo [dos Estados Unidos do Brasil],
Rio de Janeiro, DF, Ano. II, Nº.198, 19 de dezembro de 1935.
53
KOIFMAN, Fábio. Imigrante ideal: o ministério da justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil
(1941-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 35.

122
CAPÍTULO 2
!

diretrizes que pudessem orientar a imigração. Foi com base no Decreto-Lei 3010, a
propósito, que o Itamaraty autorizou o pedido de visto de Cukurs em 1945. 54

No imediato pós-guerra, o perfil do imigrante desejável não se alterou em sua es-


sência. Em um importante trabalho que compara a política imigratória brasileira dos
regimes Vargas e Dutra (1930-1954), Jeronymo Movschowitz mostrou muito clara-
mente que mesmo depois da derrota do Eixo e do escândalo da eugenia do nacional-
socialismo, o Estado brasileiro continuou adepto do “branqueamento”, procurando
imigrantes compatíveis com o “perfil brasileiro”, isto é, cristãos, europeus, agriculto-
res e técnicos que pudessem acelerar o desenvolvimento agrícola e industrial do pa-
ís.55 Essa preferência era feita, no entanto, sempre com muita discrição. As restrições,
via de regra, apareciam apenas em circulares diplomáticas. Na esfera pública, parado-
xalmente, o Brasil era visto como um país sem preconceitos, de elogiável miscigena-
ção, um país cuja integração racial era tão fantástica e harmoniosa a ponto de suscitar
estudos de envergadura internacional da Organização das Nações Unidas.56

Imagem&31.!!Arthur!Hehl!Neiva,!do!Conselho!de!Imigração!e!Colonização!(CIC),!diz!em!entrevista!à!
imprensa!brasileira!que!a!prioridade!do!Brasil!são!os!elementos!brancos.!Nem!sempre,!porém,!essa!
escolha!era!tão!escancarada.!Fonte:!O!Globo,!21/03/1945,!p.!10.!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
BRASIL. Lei Nº 3.010, de 20 de agosto de 1938. Regulamenta o Decreto-lei n. 406, de 4 de maio de
1938, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros no território nacional. Diário Oficial [da República
Federativa do Brasil], Rio de Janeiro, DF, 22 de julho de 1938. Seção I, pp. 16792.
55
MOVSCHOWITZ, Jeronymo. Nem negros, nem judeus. A política imigratória de Vargas e Dutra
(1930-1954). (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História. Junho de 2011.
56
MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e
50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, 1999.

123
CAPÍTULO 2
!

Com o término da Segunda Guerra Mundial, as autoridades brasileiras tinham um


bom motivo para renovar o seu interesse no restabelecimento do fluxo imigratório:
com a Europa destruída, milhares de trabalhadores com excelente qualificação, sobre-
tudo cientistas e técnicos industriais, estariam forçosamente desempregados. Não só o
Brasil, mas vários países do Ocidente iniciaram, então, uma corrida contra o tempo
para cooptar esses valiosos imigrantes. Conforme aponta Movschowitz, em 15 de
maio de 1945, só uma semana após a rendição alemã, o presidente do CIC enviou um
ofício para o Secretário Geral Interino do MRE informando as linhas gerais da nova
política imigratória submetida a Vargas. Segundo a autoridade máxima do órgão, a
proposta – que não tinha nada de nova – deveria atrair operários especializados, agri-
cultores e técnicos. O intuito era suprir as necessidades da indústria e da lavoura bra-
sileiras. O presidente do CIC também não deixou de sublinhar outro aspecto: “foi
também preocupação do Conselho, encarar a imigração sob o ponto de vista étnico,
econômico e político”. 57 Segundo Movschowitz, se havia alguma dúvida quanto ao
emprego do conceito de etnia, o parágrafo seguinte do ofício é completamente claro e
objetivo:

(...) não é demais esclarecer que, embora os nossos interesses co-


merciais, os nossos tratados internacionais e o respeito a uma fonte
corrente da opinião pública não tenham permitido fazer em lei dis-
criminação de raças, ao nosso país só interessa a imigração de raças
de origem europeia, por esse motivo ser o único modo de aumentar o
coeficiente de brancos na formação do nosso tipo étnico.58

É neste contexto que a imigração de Cukurs deve ser localizada e compreendida.


Cukurs era branco, europeu, cristão, agricultor e especializado em mecânica. Atendia,
assim, a todos os requisitos técnicos e eugênicos da política imigratória brasileira.
Além disso, devemos sublinhar que na época em que seu visto foi emitido, seu nome
não constava em nenhuma lista oficial de criminosos de guerra nazistas. Também não
havia contra ele nenhum pedido de prisão. Cukurs, além disso, tinha um salvo-
conduto emitido pelas autoridades francesas. Portanto, não havia motivos para que o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
57
MOVSCHOWITZ, Jeronymo. Nem negros, nem judeus. A política imigratória de Vargas e Dutra
(1930-1954). (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História. Junho de 2011, p. 145.
58
Ibidem, pp. 145-146.

124
CAPÍTULO 2
!

cônsul brasileiro em Marselha ou mesmo o Ministério das Relações Exteriores não o


considerassem como o imigrante que a política imigratória brasileira tanto desejava.

Nos documentos analisados neste trabalho, não encontrei nenhuma recomendação


do governo brasileiro a seu consulado em Marselha a respeito de cuidados quanto a
possíveis criminosos nazistas em busca de vistos. Atualmente, isso pode parecer um
desleixo. Mas a verdade é que naquele imediato pós-guerra as medidas diplomáticas a
serem tomadas em relação aos criminosos nazistas ainda eram muito tímidas. Há pou-
co mais de um ano a The United Nations War Crimes Commission (UNWCC), criada
no âmbito das Nações Unidas, vinha trabalhando para compilar uma lista de crimino-
sos de guerra. O grupo, contudo, contava com pouquíssimos recursos e era demasia-
damente desorganizado. Em agosto de 1944, sublinha Thomas Harding, seus repre-
sentantes chegaram a ficar constrangidos em sua primeira entrevista à imprensa. Na
ocasião, os jornalistas perguntaram qual era o tamanho da lista e se Hitler estava nela.
Cecil Hurst, então diretor da UNWCC, admitiu aos repórteres que a lista era curta e
que não sabia dizer se o Führer figurava entre os nomes. Além disso, segundo explica
Harding, questões práticas ainda não tinham sido bem resolvidas. Não existia, por
exemplo, uma definição consensual para o que seria “crime de guerra”, quais (e quan-
tos) indivíduos poderiam ser levados à julgamento, onde isso deveria ser feito ou
quem deveria cuidar de tais procedimentos. 59 Ou seja, tanto o governo brasileiro
quanto os organismos internacionais criados exclusivamente para lidar com aquele
problema estavam pouco equipados para lidar com a questão dos criminosos de guer-
ra. Não havia ainda um banco de dados integrado, finalizado ou disponível às autori-
dades diplomáticas. Na Alemanha ocupada era possível perceber algo do tipo. Toda
missão militar no país, antes de autorizar a saída de seus nacionais, deveria submeter
os nomes dos possíveis emigrantes ao Alto Comando Aliado. Se esses nomes constas-
sem em lista de criminosos procurados ou de desnazificação, a saída era vetada. Mas
fora da Alemanha era tecnicamente quase impossível repetir esse esquema.

No capítulo anterior, assim que o Caso Cukurs veio à tona, vimos que muitos jor-
nais fizeram a seguinte relação: as autoridades brasileiras que restringiam a entrada de
judeus no país eram as mesmas que facilitavam, depois da guerra, a imigração de cri-
minosos nazistas. Essa relação, no entanto, produz distorções de análise. Os judeus

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
HARDING, Thomas. Hanns & Rodolf: o judeu-alemão e a caçada ao Kommandant de Auschwitz.
Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 147.

125
CAPÍTULO 2
!

realmente encontraram enormes dificuldades em imigrar para o Brasil. Os obstáculos


começaram no início da década de 1930 e sobreviveram ao fim da guerra, chegando
até meados da década de 1950. Isso aconteceu porque eram, em geral, enquadrados
em um estereótipo antissemita: não assimilável, desagregador, conspirador, traiçoeiro,
explorador.60 O contraponto a tal realidade, não obstante, não é o de que o governo
brasileiro privilegiou a imigração de criminosos nazistas. Em contraposição aos ju-
deus, na verdade, o governo facilitava a imigração do português, do alemão, do italia-
no, do letão, do sueco, enfim, do nacional europeu que se enquadrava no estereótipo
que a política imigratória brasileira buscava: assimilável, trabalhador, branco, cristão
e leal. Em outras palavras, o que quero dizer é: se imigrantes envolvidos em crimes de
guerra entraram no Brasil isso não necessariamente aconteceu por uma questão ideo-
lógica, ou seja, porque o Brasil era antissemita e, automaticamente, protetor dos refu-
giados do nazismo, mas sim porque esses imigrantes encaixavam-se num modelo de
imigrante ideal construído pelo governo brasileiro desde a chagada de Vargas ao po-
der. Foi com base nesse estereótipo que Cukurs foi aceito pelo governo brasileiro e
que, provavelmente, muitos outros colaboracionistas e nazistas também conseguiram
entrar no país. Eles se valeram de um estereótipo que se sobrepunha a qualquer outra
preocupação ideológica. O risco de assumir a correlação que a imprensa estabelece a
partir do Caso Cukurs é aceitar, inequivocamente, que o antissemitismo que justificou
a restrição à imigração de judeus é o outro lado da moeda de um pró-nazismo que
permitiu a entrada de criminosos de guerra. Isso não pode escamotear, naturalmente, a
reponsabilidade que o governo por permitir que indivíduos envolvidos em acusações
de crimes de guerra entrassem e vivessem livremente no país, mas ajuda a colocar a
questão de uma perspectiva menos mecanizada.

2.3. Cukurs no Brasil: ascensão e queda

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Existe um amplo debate bibliográfico sobre o tema: KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o em-
baixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002; KOIFMAN,
Fábio. Imigrante ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012; MILGRAM, Avraham. Os judeus do Vaticano: a tentativa de
salvação de católicos não-arianos da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). Rio de
Janeiro: Imago, 1994; MILGRAM, Avraham; GREENWOOD, Naftali. The Jews of Europe from the
Perspective of the Brazilian Foreign Service, 1933–1941. Holocaust and Genocide Studies, v.9, n. 1,
pp. 94-120, 1995; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconcei-
to. Rio de Janeiro: Imago, 1995; KLICH, Ignacio; LESSER, Jeffrey (Ed.). Arab and Jewish immigrants
in Latin America: images and realities. Routledge, 2013; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O antisse-
mitismo na era Vargas: fantasmas de uma geração, 1930-1945. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

126
CAPÍTULO 2
!

Após uma rápida parada em Funchal, em 10 de fevereiro de 1946, e alguns inci-


dentes acumulados ao longo do caminho, do choque com o Cabo de Hornos, em Cu-
raçau, a greves de estivadores nos portos brasileiros, o Cabo de Buena Esperanza
aportou na Baía de Guanabara no dia quatro de março de 1946, por volta das 13 ho-
ras.61 Ele transportava um total de 128 passageiros, dos quais 91 tinham visto perma-
nente.62 Em terra, o navio era ansiosamente aguardado por fileiras de jornalistas e por
agentes da Polícia Marítima: a bordo daquele vapor havia um passageiro que teria “ín-
timas ligações com Hitler”.63 Esse homem, no entanto, não era Herberts Cukurs, mas
o diplomata espanhol Eduardo Aunós, de 51 anos, nomeado por Franco para ser o
embaixador da Espanha no Brasil. O motivo para tamanha balbúrdia era simples: en-
quanto o navio cruzava o Oceano Atlântico, o Departamento de Estado dos Estados
Unidos publicou o aqui já citado Blue Book. Nele, Aunós foi acusado pelos america-
nos de ter intermediado a compra de armas entre a Argentina e o Reich com o intuito
de se voltar contra o Brasil. A revelação fez com que o governo brasileiro cancelasse
o combinado entre os dois países e o declarasse persona non grata.64

A despeito das expectativas que giravam em torno da chegada do Cabo de Buena


Esperanza ao porto do Rio de Janeiro, Cukurs desembarcou discretamente e sem im-
pedimentos de qualquer espécie. No país, encontrou uma realidade bastante diferente
daquela que havia deixado para trás. O Brasil atravessava um momento de renovação
política. O Estado Novo tinha acabado há alguns meses e pela primeira vez em muito
tempo foram convocadas eleições diretas para a Presidência da República, vencidas
em janeiro daquele novo ano pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra. A censura e a per-
seguição dos tempos de autoritarismo tinham dado lugar ao pluripartidarismo e a uma
nova Constituição. Até o Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve sua licença legali-
zada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O país vivia um clima de otimismo.

O desembarque de Cukurs não ocorreu em uma data qualquer. Aquele quatro de


março de 1946 era uma segunda-feira de carnaval. Os blocos carnavalescos arrasta-
vam milhares de foliões para as ruas, avenidas e praças da cidade. Até o desfile das
escolas de samba tinha inovado. Naquele ano, comemorando a derrota do Eixo, a
União Nacional dos Estudantes e a Liga de Defesa Nacional, em acordo com o poder
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
O Globo, “Reveladas todas as atividades de Eduardo Aunós ...”, 21 de fevereiro de 1946, p. 1.
62
AN-RJ. Lista de Bordo do Cabo de Buena Esperanza, PV.PRJ.33919.
63
O Globo, “Reveladas todas as atividades de Eduardo Aunós...,” 21 de fevereiro de 1946, p. 1.
64
O Globo, “Reveladas todas as atividades de Eduardo Aunós...,” 21 de fevereiro de 1946, p. 1.

127
CAPÍTULO 2
!

público e com as entidades promotoras do carnaval, prepararam o que ficou conheci-


do como o “Carnaval da Vitória”.65 De acordo com o regulamento da competição, to-
das as agremiações cariocas deveriam naquele ano exaltar a vitória dos aliados.66

Imagem&32.!Miriam!Kaicners!em!sua!Ficha!de!Registro!de!Estrangeiros.!Fonte:!Family!Search.!!

Uma vez no Brasil, Cukurs e Miriam seguiram caminhos diferentes. Era a primeira
vez em cinco anos que isso acontecia. Ele foi morar com a família em um sobrado na
rua São Cristóvão, Zona Norte do Rio de Janeiro, enquanto que ela foi morar com
uma família judaica de nome Chapkosky. Em depoimento, Miriam conta que fez ami-
zade com uma passageira a bordo do Cabo de Buena Esperanza. Esta pessoa, então,
sugeriu que, após o desembarque, ela procurasse pela referida família. Com os Cha-
pkosky, Miriam conta que passou aproximadamente um ano. Até o letão ser acusado
de criminoso de guerra, Miriam diz que continuou vendo os Cukurs com frequência.67

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
AUGRAS, Monique. A Ordem na Desordem. A regulamentação do desfile das escolas de samba e a
exigência de "motivos nacionais". Rev. Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 21, pp. 90-103, fev.
1993.
66
Na verdade, desde 1943, a UNE e a LDN, patrocinadoras do carnaval, haviam criado o “carnaval da
vitória”, como uma forma de mobilizar a população para o esforço de guerra e incentivar os pracinhas
da Força Expedicionária Brasileira. Esta padronização do carnaval se estendeu até 1946, quando, de
fato, o carnaval foi o “Carnaval da Vitória”. Cf. COSTA, Haroldo. Política e religiões no Carnaval.
Rio de Janeiro: Irmãos Vitale Editores, s.d., p. 107.
67
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 64.

128
CAPÍTULO 2
!

Não é possível determinar as reais condições financeiras de Cukurs ao desembar-


car no Rio de Janeiro. Na França, quando vivia em Marselha, Cukurs apresentou ao
consulado brasileiro como prova de meios de subsistência um pedido de transferência
de créditos feito ao banco francês Crédit Lyonnais. Cukurs tentava transferir para o
Brasil uma quantia entre 150 e 200 mil marcos. Não sabemos, entretanto, se a opera-
ção foi realizada. Na resposta, o banco apenas disse que o pedido estava sob análise. 68
Por outro lado, sabemos que Cukurs veio de terceira classe para o Brasil – usada em
geral por pessoas com poucos recursos financeiros – e que, pouco tempo depois de ter
desembarcado no país, procurou ajuda da comunidade letã que vivia no Distrito Fede-
ral. Ele tinha uma máquina fotográfica Leika e queria vendê-la. Não sabemos quem
ele procurou primeiramente, mas lhe foi sugerido que procurasse um judeu-letão
chamado Izaks Bojarskis, que trabalhava no departamento fotográfico da loja de de-
partamentos Mesbla. Bojarskis era alguns anos mais velho que Cukurs. Tinha 56 anos
e havia chegado ao Brasil, proveniente de Riga, no dia 25 de maio de 1935. O Cukurs
que Bojarskis conhecia, portanto, não era o Cukurs colaboracionista nazista, mas o
Cukurs aviador, celebridade nacional. Bojarskis sensibilizou-se com as necessidades
do antigo “herói” compatriota e comprou sua máquina.69 Anos mais tarde, Bojarskis
confirmou o negócio e disse que Cukurs tinha chegado até ele por um amigo em co-
mum.70 Segundo Cukurs, a venda lhe rendeu Cr$8.500.71 Para a época, essa era uma
quantia razoável. Em 1950, o salário mínimo era de Cr$ 380,00.72 Ou seja, a venda da
Leika rendeu a Cukurs mais ou menos 22 salários mínimos. Em julho de 2015, isso
corresponde a pouco mais de 17 mil reais. Se quisermos usar o dólar para compara-
ção, que na época comprava Cr$ 18,72, Cukurs conseguiu levantar cerca de 454 dóla-
res. Tal montante, portanto, era compatível com o sustento de uma família de seis
pessoas como a dele por algum tempo, embora, certamente, não permitisse uma vida
com muitos luxos e supérfluos.

Segundo Richards Cukurs, filho mais novo de Cukurs, as coisas foram gradual-
mente se estabilizando para a família. O primeiro emprego do pai, ele conta, foi como

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
68
AN-RJ. Ofício do Crédit Lyonnais de Marseille a Herberts Cukurs, SPMAF/RJ, N.217180, f. 8.
69
AN-RJ, Processo de Naturalização de Izaks Bojarskis, CODES, BR.AN.RIO.A90 PNE: 77983/1949.
70
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 68.
71
A Águia do Báltico, "A Defesa". Data de publicação: 22/05/2008. Disponível em
<http://herbertscukurs.blogspot.com.br/search/label/A%20DEFESA.>. Acesso em: 09/08/2015.
72
Série histórica do salário mínimo no Brasil disponível em:
<http://www5.jfpr.jus.br/ncont/salariomin.pdf>. Acesso em: 09/08/2015.

129
CAPÍTULO 2
!

projetista na Companhia Nacional de Navegação Aérea, do empresário Henrique La-


ge. Em 1947, depois da fábrica de Lage encerrar suas atividades, Cukurs teria traba-
lhado ainda para o Aeroclube do Brasil, reformando aviões.73 A relação de Cukurs
com o Aeroclube do Brasil é confirmada pelo advogado pernambucano Sylvio Kel-
ner, que em entrevista ao autor afirmou ter visto Cukurs no local, naquele início dos
anos 1950, empurrando um avião,74 e por documentos oficiais emitidos dos pelo pró-
prio Aeroclube do Brasil.75 Nesta época, a família Cukurs morava Niterói.

A partir de agosto de 1948, fica mais fácil acompanhar a trajetória de Cukurs. Nes-
te ano, ele e a esposa reuniram vários documentos a fim de dar entrada na naturaliza-
ção brasileira. Entre os documentos estavam atestados de bons antecedentes emitidos
pela polícia do Rio de Janeiro, uma declaração de bom pagador emitida pela empresa
Thornycroft, uma declaração de idoneidade moral e financeira do banco Moreira Sal-
les S.A., além de certidões emitidas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comér-
cio, que confirmavam que Cukurs e Milda encontravam-se regularizados no país, ten-
do os dois aqui vivido por três anos consecutivos. Um dos documentos mais interes-
santes é uma declaração de Vilis Tomsons, o encarregado de negócios da Legação da
Letônia no Brasil, operando à título extraoficial no Rio de Janeiro desde a ocupação
daquele país pela União Soviética, em 1940. O documento declarava que o cidadão
letão Herberts Cukurs era “pessoa há muito conhecida nesta Legação, bem como na
Letônia, onde foi capitão da aviação militar antes da ocupação russa, e que sempre
gozou do melhor conceito perante as autoridades de seu país e ainda continua mere-
cendo toda a confiança desta Legação”. Nas palavras de Tomsons ainda, Cukurs con-
tinuava sendo uma pessoa dotada de “absoluta idoneidade moral e financeira”.76 Em
12 de julho de 1949, Cukurs e Milda deram entrada oficial em sua naturalização.77

O futuro no Brasil parecia promissor, não só pela perspectiva de tornarem-se brasi-


leiros, mas porque também em 1949 Cukurs abriu sua própria empresa, a Herberts
Cia. Ltda., com sede em Niterói.78 A empresa tinha como atividades: oficina mecâni-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
A Águia do Báltico, "A Defesa". Data de publicação: 22/05/2008. Disponível em
<http://herbertscukurs.blogspot.com.br/search/label/A%20DEFESA.>. Acesso em: 09/08/2015.
74
Entrevista de Sylvio Kelner ao autor da tese, Rio de Janeiro, 03/05/2013.
75
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fls. 231-232.
76
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fl. 18.
77
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fls. 12-23.
78
BRASIL. Departamento de Concessões. Diário Oficial do Distrito Federal. Dois de dezembro de
1949. Seção 2, p. 440.

130
CAPÍTULO 2
!

ca, construções náuticas e aeronáuticas. Foi a partir desta nova atividade que Cukurs
começou a construir embarcações aquáticas de pequeno porte, movidas por pedais
dianteiros, disponíveis para uma ou duas pessoas. Essas embarcações foram no início
chamadas de “bicicletas aquáticas”, mas logo ficaram conhecidas como “pedalinhos”.

No começo, os pedalinhos eram alugados aos banhistas das regiões oceânicas de


Niterói. Mas a empresa rapidamente se expandiu. Em 16 de novembro de 1949, o De-
partamento de Concessões da Secretaria Geral de Viação e Obras da Prefeitura do
Distrito Federal aprovou um pedido da Herberts Cia. Ltda. para oferecer o mesmo
tipo de serviço na cidade do Rio de Janeiro. A licença para o “serviço de exploração
de diversões públicas aquáticas” tinha caráter provisório de seis meses, podendo ser
renovada, não previa privilégio ou exclusividade, e autorizava seu proprietário a tra-
balhar nas enseadas da Urca, Copacabana, Ilha de Paquetá e Lagoa Rodrigo de Frei-
tas.79 Na Lagoa, ao lado do Clube Caiçaras, Cukurs montou a sede dos pedalinhos,
além de uma residência e um restaurante flutuante. Nessa época, revela a família, Cu-
kurs teve a ajuda de um amigo, o Comandante Waldemar de Araújo Motta, que desde
fevereiro de 1950 detinha o cargo de capitão dos portos do Distrito Federal.80

Os pedalinhos não eram exatamente uma invenção de Cukurs. Essas bicicletas


aquáticas, inspiradas, em parte, nos antigos barcos a vapor com rodas bastante usados
no século XIX, já eram conhecidas há muito tempo. Nos Estados Unidos e Inglaterra,
eram conhecidos como pedal boats. Mas se Cukurs não os inventara, teve o mérito de
montar um negócio de divertimentos financeiramente acessível a quase todas as clas-
ses sociais, o que chamava a atenção em uma cidade onde o custo de vida já era ele-
vado. Nos finais de semana, os pais levavam seus filhos para se divertirem nos pe-
quenos barquinhos, enquanto os casais iam para lá para namorar.81 Na “Lagoa dos
Pedalinhos”, ocorriam diversos torneios, com provas para moças, rapazes e casais.82

No final da década de 1940, os pedalinhos tinham transformado Cukurs em uma


personalidade conhecida por parte da população. Muitas reportagens foram feitas so-
bre o negócio. O Correio da Manhã descreveu a sede dos pedalinhos como um “re-
canto pitoresco da Lagoa” que, fincando raízes ao lado do Caiçaras, tornou-se “ponto
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
79
BRASIL. Departamento de Concessões. Diário Oficial do Distrito Federal. Dois de dezembro de
1949. Seção 2, p. 440.
80
A Manhã, “Ministério da Marinha”, 25/02/1950, p. 11.
81
Correio da Manhã, “A um recanto pitoresco da Lagoa...”,13/10/1949, p. 3.
82
Revista de Copacabana, “Regatas Pedal na Lagoa Rodrigo de Freitas...”, jun./ago. 1948.

131
CAPÍTULO 2
!

de influência de numerosas famílias” e para qual atrairiam ainda mais crianças e adul-
tos tão logo acabassem as obras de melhoramentos que Cukurs vinha implementando:

Animado cada vez mais pela obra que realizou, com a ajuda de todo
o pessoal de casa, Herberts Cukurs está cuidando agora de organizar
um serviço de skis aquáticos, bem como da instalação de um moder-
no flutuante com capacidade para abrigar um pequeno bar, devida-
mente decorado e com sugestivos aspectos, o que certamente ofere-
cerá maior requinte de beleza, e atrativos outros, àquele lugar. Além
disso, acha-se também empenhado na construção de um 'playground',
nas proximidades de sua 'pequena marítima', a qual daria para entre-
ter um bom número de crianças, isso inteiramente grátis. O
'playground', numa homenagem sincera e espontânea do construtor,
terá o nome da senhora Deborah Mendes de Morais, esposa do pre-
feito do Distrito Federal (...) Quanto ao flutuante em apreço, o mes-
mo terá o nome do comandante Waldemar Mota, também num preito
de reconhecimento e gratidão de Herberts Cukurs e sua família àque-
la autoridade.83

As homenagens rendidas ao Capitão Waldemar Mota e à esposa do Prefeito do Rio


de Janeiro, Deborah Mendes de Moraes, mostravam que Cukurs sabia cultivar muito
bem relações sociais. Habilidade semelhante ele tinha também com os jornalistas. Nos
finais de semana, Cukurs costumava oferecer descontos de 25% a profissionais da
imprensa que desejassem alugar os seus pedalinhos.84 Certa vez, ele chegou a home-
nagear os jornalistas da cidade com uma peixada.85 E quando inaugurou os inovadores
skis aquáticos, os jornais A Manhã e Folha Carioca se tornaram os patrocinadores de
uma “atraente competição” na Lagoa Rodrigo de Freitas feita em homenagem conjun-
ta ao Prefeito do Distrito Federal, Mendes de Morais.86

A boa relação com a imprensa sempre acabava voltando de forma positiva através
de novas matérias sobre os pedalinhos. Essas matérias – que divulgavam a empresa
para o grande público – elogiavam as inovações levadas por Cukurs à Lagoa Rodrigo
de Freitas e contribuíam para a construção de um perfil quase mítico de seu proprietá-
rio. Cukurs era, em geral, descrito como um self-made man, um indivíduo que, após
fugir dos horrores do pós-guerra e principalmente da perseguição do comunismo, en-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
A Manhã, “Skis aquáticos e um novo e moderno flutuante”, 14 de setembro de 1949, p.1 e 13.
84
Diário de Notícias, “Desconto de 25 por centro para os jornalistas”, 17/06/1950, p.4.
85
Revista de Copacabana, “Comemorações”, 13/04/1948, p.6.
86
A Manhã, “Skis aquáticos e um novo e moderno flutuante”, 14/09/1949, p.13.

132
CAPÍTULO 2
!

controu a acolhida de um país e de seu povo. Havia também aquelas reportagens que
destacavam seu espírito aventureiro e heroico, como podemos ler no trecho abaixo,
retirado de uma reportagem publicada pelo A Manhã em abril de 1949:

Se algum dia, por este ou aquele motivo, Herberts Cukurs fosse con-
denado à inatividade, isto para ele seria uma verdadeira morte. Mes-
mo com todos os proventos, a ideia de não fazer nada apavora aquele
forte e corpulento letoniano (sic) que fomos encontrar na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, à frente do seu negócio. (…) Herberts Cukurs desde
criança possui o espírito de aventura. Nas suas veias corre o mesmo
sangue dos heróis que estamos acostumados a conhecer nos livros de
ficção. Cresceu, tornou-se homem feito, e sempre com a mesma dis-
posição, com os mesmos propósitos. E foi certamente para dar me-
lhor campo ao seu espírito aventureiro que ele decidiu entrar na avia-
ção. 87

“Dos céus belicosos da Europa às águas mansas da Lagoa”, como se intitulava essa
matéria de A Manhã, também abordou o passado recente de Cukurs, desde seu raide à
África até a conjuntura política que o teria obrigado a deixar a Letônia. Esta narrativa,
que se repete em outras publicações, recorre aos eventos que tornaram Cukurs famoso
na Letônia para construir a imagem de um imigrante heroico e exemplar no Brasil:

Começou como piloto civil. Especializou-se nos “loopings”. As suas


acrobacias deixavam muita gente boquiaberta, Como piloto civil,
correu meio mundo. Conheceu a Europa de ponta a ponta. Esteve na
Ásia e deu um salto à África. Reunindo impressões de viagem escre-
veu uma série de artigos para os jornais da Estônia. Chamado para
prestar serviços à pátria, escolheu a arma aérea. Estava no seu ele-
mento e, além disso, naquela época, poucos tinham coragem de en-
trar num avião. Era a época dos pioneiros. A aviação ensaiava os
primeiros passos. O seu concurso à aeronáutica era assim de grande
valor. Por isso mesmo, Herberts foi conquistando postos com facili-
dades. E depois de ter participado do conflito de 1914, a segunda
guerra mundial o foi encontrar no posto de capitão-aviador. Lutou
muito. Correu mil perigos nos céus da Letônia, dando combate ao in-
vasor soviético. Mas sempre escapava. Pelo menos saía com vida,
embora muitas vezes tivesse que fazer descidas forçadas, aterrissa-
gens milagrosas e outras tantas proezas que exigiam perícia, arrojo e
sangue frio. Todo o esforço, porém, se não foi vão, porque não é em
vão que se luta pela pátria – resultou inútil, pois os russos, com es-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
87
A Manhã, “Dos céus belicosos da Europa às águas mansas da Lagoa”, 03/04/1949, p. 14.

133
CAPÍTULO 2
!
magadora superioridade numérica, acabaram por dominar a Letônia
que, até hoje, permanece sob o julgo bolchevista. Para não se subme-
ter ao invasor, Herberts Cukurs, como tantos outros compatriotas,
decidiu imigrar. 88

Cukurs, como se pode ver, não tinha o menor pudor de se expor na mídia. Enquan-
to outros colaboracionistas nazistas no pós-guerra evitavam grandes centros urbanos e
todo tipo de publicidade, ele fazia exatamente o oposto disso. Dava entrevistas, apro-
ximava-se de jornalistas e trabalhava diretamente com o grande público. Não há como
afirmar se fazia isso por excesso de confiança ou porque ele realmente não se consi-
derava um criminoso de guerra. Cukurs certamente sabia, porém, que quanto maior
fosse sua popularidade, maior seria a chance de seus negócios crescerem. E foi justa-
mente isso o que aconteceu. No início de 1950, Cukurs, segundo próprio levantamen-
to, possuía 20 pedalinhos, duas lanchas, cinco caiaques, duas baleeiras para remos,
um barco à vela, três bases flutuantes, um bar, um anfíbio e um hidroavião.89

Imagem&33.&Reportagem!especial!sobre!os!pedalinhos.!Fonte:!A!Manhã,!03/04/1949,!p.14.&

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
88
A Manhã, “Dos céus belicosos da Europa às águas mansas da Lagoa”, 03/04/1949, p. 14.
89
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fl. 252.

134
CAPÍTULO 2
!

A maior publicidade dos pedalinhos ocorreu em uma grande reportagem de O Cru-


zeiro, publicada na edição do dia 24 de junho de 1950. Foi a maior exposição de Cu-
kurs na mídia até então. O Cruzeiro era líder na segmentação de revistas, um dos pou-
cos veículos que na época se podia dizer nacional, ultrapassando a marca das 800 mil
cópias, distribuídas em boa parte do território nacional.90 A matéria em questão tinha
o título "Do Báltico ao Brasil" e contava com textos e fotos do jornalista João Mar-
tins. Nela, Martins repetiu a já conhecida narrativa de superação de Cukurs, desde a
perseguição comunista na Letônia até a volta por cima no Rio de Janeiro. Enfatizou
“as noites dormidas na praia ou em bancos de praças” e após mostrar como todas as
dificuldades foram superadas, encerrou com uma mensagem de otimismo aos leitores:

Essa é a história de um homem que teve que reconstruir a existência


inteira aos quarenta e seis anos de idade, com toda a família, numa
terra estranha, com língua, hábitos e clima estranhos. Como essa, há
muitas outras por aí, de gente que viu esborar-se tudo o que pensava
firme e sagrado. E essa história, como todas as outras semelhantes e
talvez mais sensacionais, redundam numa grande lição de otimismo e
esperança. Quando tudo parece perdido, a espécie humana pode en-
contrar dentro de si mesma energias e capacidade bastantes para
olhar para a frente, esquecer o passado e reerguer o seu próprio desti-
no. Em vez de desânimo e lamentações, força de vontade e trabalho.
Esse é o apanágio da humanidade. E é isso, decerto, que a salvará de
todos os impasses, de todas as catástrofes, de todos os sofrimentos,
na sua marcha para um futuro melhor, para um mundo pacífico e fe-
liz. 91

A reportagem de O Cruzeiro foi a última do gênero sobre Cukurs naqueles anos.


Na semana seguinte, no dia 30 de junho de 1950, a Federação das Sociedades Israeli-
tas do Rio de Janeiro convocou uma coletiva com jornalistas da cidade, onde declarou
o que então parecia inacreditável: o proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de
Freitas, diferente do que publicava a imprensa daquela capital, era, na verdade, um
criminoso de guerra nazista responsável pela morte de cerca de 30 mil judeus durante
a ocupação nazista da Letônia. Seus crimes, segundo a entidade, incluíam ainda o in-
cêndio da maior sinagoga da Letônia, com judeus vivos dentro ela, além de afoga-
mentos, execução de crianças, mulheres e idosos, entre outros.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Cf. RIBEIRO, Goulart Ana Paula. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Ja-
neiro: e-papers, 2007.
91
O Cruzeiro, “Do Báltico ao Brasil”, 24/06/1950, pp. 119-122.

135
CAPÍTULO 2
!

Imagens&34&e&35:&três!páginas!da!
reportagem!“Do!Báltico!ao!Brasil”.!
Nas!imagens,!podeIse!ver!toda!a!
família!trabalhando!nos!pedalinhos.!
Fonte:!O+Cruzeiro,!24/06/1950.&

2.4. Cukurs no Brasil: ascensão e queda

O caminho que levou até aquela coletiva de imprensa foi longo. Ele começa ainda
em 1946, pouco tempo depois da chegada de Cukurs ao Brasil. Izaks Bojarskis, o fun-
cionário da Mesbla para quem Cukurs vendeu sua máquina fotográfica, era amigo de
Wolf Vipmans, imigrante lituano, empresário do meio teatral brasileiro e presidente
da Sociedade de Auxílio aos Judeus Letônicos e Lituanos. Bojarskis contou a
Vipmans do seu encontro com Cukurs e de como o ajudara comprando a máquina
Leika. Vipmans, no entanto, desconfiou da história contada por Cukurs e escreveu
para seu primo, Gustav Joffe, sobrevivente do Holocausto na Letônia.92 Joffe, então,
revelou: Cukurs era criminoso de guerra. No dia 23 de maio de 1946, ele e mais um
amigo, também sobrevivente do Holocausto, Anthony Landau, agiram. Em Paris, on-
de viviam, escreveram uma carta denunciando os crimes de Cukurs e apontando sua

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 68. Wolf
Vipmans faleceu em 1948. Mas, sua viúva, Zinaida Vipmans, contou essa história em depoimento dado
à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1950, a fim de esclarecer o
Caso Cukurs. As cartas mencionadas por ela, contudo, não aparecem na documentação aqui analisada.

136
CAPÍTULO 2
!

localização no Rio de Janeiro. A carta foi enviada à Associação dos Judeus Bálticos
na Grã-Bretanha. Seu conteúdo era curto, mas objetivo:

O Obersturmführer da SS Herberts Cukurs, de nacionalidade letã, está atual-


mente no Brasil, no Rio de Janeiro. Chegou ali com toda a sua família e com
uma jovem judia, que ele alega ter salvo. Antigo oficial-aviador na Letônia,
conhecido por seu voo à África, foi um dos exterminadores de judeus na Le-
tônia. Sob seu comando, milhares de vítimas foram assassinadas nas provín-
cias da Estônia; foi ele também um dos organizadores e executores na época
da liquidação do Gueto de Riga. Tendo ingressado nos serviços alemães como
Sonderführer (líder especial), tornou-se oficial na Gestapo, com a patente de
SS-Obersturmführer. Aproveitando-se do fato de não haver sobreviventes dos
que foram deportados aos Estados bálticos, faz o papel de benfeitor dos opri-
midos durante o regime nazista. Queiram tornar conhecido no Brasil o quanto
antes o papel verdadeiro desempenhado pelo SS-Obersturmführer Herberts
Cukurs; e também tomem todas as medidas necessárias para conseguir sua de-
tenção e castigo como criminoso de guerra.93

No Brasil, enquanto isso, os judeus de origem báltica continuavam cuidando do ca-


so. Pelo que pude depreender da documentação aqui analisada, essa movimentação foi
cercada de cautela, discrição e, principalmente, sigilo. Ao que tudo indica, era grande
o temor de que Cukurs pudesse se evadir do país ou prejudicar o andamento das in-
vestigações. Moses Hoff, que se tornaria membro da Federação das Sociedades Israe-
litas de São Paulo, foi um nome importante neste momento. Hoff era estoniano, mas
vivia em Riga até imigrar para o Brasil, em 1940. De acordo com diversos relatos,
Hoff foi até o embaixador soviético no Brasil, Jacob Suritz, coincidentemente um ci-
dadão letão, para informar que Cukurs estava no Brasil e indagar se o governo sovié-
tico poderia emitir um pedido de extradição em seu nome. Como a Letônia não era
mais um país independente, a jurisdição dos cidadãos letões cabia antes de tudo à
União Soviética. Suritz, no entanto, prontamente afastou qualquer possibilidade de
extradição. O embaixador teria alegado “que Cukurs não era o único criminoso de
guerra aqui aportado e que o melhor era não revolver velhos ódios”. 94 Uma resposta
no mínimo curiosa, já que Cukurs tinha colaborado diretamente com os nazistas na
luta contra a União Soviética. Não! é! possível! saber! ao! certo! quais! os! motivos! de!
esta!ter!sido!a!resposta!de!Suritz,!porém!uma!hipótese!seria!a!falta!de!prioridade!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.27.
94
O Radical, “O criminoso que a Rússia não quis extraditar”, 18/08/1950, pp. 1 e 4.

137
CAPÍTULO 2
!

para!casos!do!tipo!em!face!ao!emergente!desgaste!na!relação!entre!os!países.!O!
que,! aliás,! tornava! a! situação! mais! temerária.! Uma nova ruptura das relações di-
plomáticas entre os dois países parecia apenas uma questão de tempo. Isso significava
que a viabilidade da extradição de Cukurs tinha o relógio como inimigo. Se Suritz ou
Moscou não mudassem de ideia, a permanência de Cukurs no país poderia ser facili-
tada. E foi exatamente o que acabou acontecendo. Em outubro de 1947, Brasil e Uni-
ão Soviética romperam mais uma vez relações diplomáticas e a janela de extradição
de Cukurs se fechou.

A negativa soviética em pedir a extradição de Cukurs ao governo brasileiro exigiu


uma nova estratégia no caso. As organizações judaicas criadas no imediato pós-guerra
vão exercer a partir daí um papel fundamental. O Centro de Documentação Histórica
Judaica, em Viena, criado por Simon Wiesenthal, em 1947, para procurar criminosos
nazistas e coletar evidências contra eles, tomou conhecimento da presença de Cukurs
no Brasil e, imediatamente, acionou duas entidades judaicas na Alemanha a fim de
reunir depoimentos: o Comitê dos Judeus Libertados e a Federação dos Judeus Letões
Libertados, ambas sediadas em Munique. Atuando como intermediário, o Centro de
Wiesenthal conseguiu reunir quatro testemunhos contra Cukurs.95 Eles foram forneci-
dos pelos sobreviventes do Holocausto na Letônia David Fischkin, Max Tukacier,
Abram Shapiro e Rafael Schub. Tukacier, Fischkin e Shapiro deram seus depoimentos
ao departamento legal do Comitê dos Judeus Libertados em 23 de setembro de 1948,
10 de outubro de 1948 e 19 de dezembro de 1948, respectivamente. Já Schub forne-
ceu seu depoimento em dezembro de 1949, na cidade de Toronto, no Canadá, sem dia
específico ou autoridade indicada. Todos os documentos foram entregues e referenda-
dos ao Comitê de Investigações dos Crimes de Guerra Nazistas nos Países Bálticos,
entidade formada por ex-prisioneiros dos campos de Riga e Buchenwald e que atuou
durante um curto período em Londres (1949) auxiliando o governo britânico em suas
investigações sobre crimes de guerra.96

Em meados de 1949, a seção londrina do Congresso Judaico Mundial foi municia-


da com os depoimentos contra Cukurs e entrou em contato com o Centro Hebreu Bra-
sileiro a fim de tomar as devidas providências.97 Esta organização brasileira era, na
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
Yad Vashem Archives. War Criminals’ Section, Legal Department at the Central Committee of Lib-
erated Jews, Munich: RG: M.21/FN: 584. fls. 2-29.!
96
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP. 712. fls. 49-57.
97
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fls. 3-4.

138
CAPÍTULO 2
!

época, a sua única afiliada no país.98 O problema é que o Centro Hebreu Brasileiro
tinha encerrado suas atividades em 1948. 99 Como o Congresso Judaico Mundial não
sabia disso, continuou enviando correspondências ao antigo endereço de sua extinta
afiliada. O mal-entendido só foi percebido quando a entidade abriu a sua própria re-
presentação no Rio de Janeiro, em junho de 1949.100 O encarregado deste escritório,
Vojtech Winterstein, antigo líder da comunidade judaica tcheca, percebeu o erro e
imediatamente transmitiu a informação aos demais escritórios de sua rede. 101

Durante o segundo semestre de 1949 e início de 1950, Winterstein trabalhou inten-


samente com Simon Wiesenthal e com os escritórios do Congresso Judaico Mundial
de Londres e Nova Iorque a fim de desfazer o ruído na comunicação. Em 24 de março
de 1950, foi Winterstein quem informou pela primeira vez à Federação das Socieda-
des Israelitas do Rio de Janeiro (que veio a substituir o Centro Hebreu Brasileiro co-
mo afiliada do Congresso Judaico Mundial no Brasil) sobre a presença de Cukurs no
Rio de Janeiro, além de encaminhar à instituição uma cópia dos testemunhos que o
acusavam de crimes de guerra nazistas.102 Tinham se passado três anos desde que ju-
deus de origem báltica residentes no Brasil tinham descoberto Cukurs. Por que tanta
demora antes de agir? Em primeiro lugar, era preciso recolher evidências contra Cu-
kurs. Foi exatamente o que foi feio naqueles anos. Enquanto isso, esses judeus de ori-
gem báltica guardaram muito bem a informação. Pode parecer estranho que uma enti-
dade judaica importante como a Federação não soubesse da presença de Cukurs. Po-
rém, precisamos lembrar que esta entidade só foi criada em 1947. Por fim, vale a pena
mencionar que os judeus bálticos perderam nesse meio tempo uma liderança impor-
tante: Wolf Vipmans, o articulador da denúncia contra Cukurs, faleceu em 1948.

Desde o primeiro momento, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janei-


ro tratou o caso como uma de suas prioridades. Um mês depois de receber a carta de
Winterstein, Israel Scolnicov, advogado e membro da junta executiva da instituição,
apresentou um relatório detalhado sobre o assunto aos demais diretores. Neste docu-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
98
World Jewish Congress, Report of the World Jewish Congress Organization Department. August
1949-August 1951. New York: 1951.
99
The Wiener Library, MF Doc 54/ Reel 14, Frames 661-662; 665-668; 676; 679-785; 827-848.
100
World Jewish Congress, Report of the World Jewish Congress Organization Department. August
1949-August 1951. New York: 1951.
101
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 6.
102
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 2.

139
CAPÍTULO 2
!

mento, Scolnicov indicou que havia duas correntes de opinião predominantes entre os
judeus leto-lituanos no Brasil: uma delas, mais conservadora, pretendia continuar em
sigilo e reunindo provas contra Cukurs, até que uma conjuntura favorável no país pu-
desse garantir o êxito político, jurídico ou policial no caso; a outra, defendia a imedia-
ta reação no que fosse possível. Scolnicov defendeu a segunda opinião e, neste senti-
do, propôs uma série de medidas simultâneas, das quais destaco quatro: (1) Criar uma
Comissão de Investigação; (2) convocar uma reunião com os redatores-chefes da im-
prensa judaica e com jornalistas judeus da imprensa não judaica; (3) acionar as prin-
cipais autoridades brasileiras; (4) manter contato regular com organizações judaicas
estrangeiras. 103

Na opinião de Scolnicov, o mais importante naquele momento era alertar a opinião


pública brasileira para os crimes cometidos por Cukurs e para o absurdo de sua pre-
sença no Brasil. Nenhum procedimento judicial, no entanto, deveria ser tentado en-
quanto Cukurs estivesse sob jurisdição do governo brasileiro. O Brasil, explicou, não
tinha firmado convenções sobre julgamento e punição de criminosos de guerra. Além
disso, Cukurs havia praticado seus crimes na Letônia – não podendo a justiça brasilei-
ra julgá-los – e até então nenhum país tinha solicitado sua extradição, algo que por si
só já seria de uma “exequibilidade problemática”. 104

A leitura de Scolnicov parecia estar bastante alinhada com aquela manifestada pelo
Comitê de Investigações dos Crimes de Guerra Nazistas nos Países Bálticos e pelo
escritório do Congresso Judaico Mundial no Rio de Janeiro. Em trocas de correspon-
dências realizadas alguns meses antes, essas duas instituições pareciam reticentes tan-
to em relação à efetividade dos depoimentos que haviam sido reunidos quanto à pos-
sibilidade de se resolver a questão dentro dos trâmites jurídicos. Afinal de contas, não
havia mais relações diplomáticas entre Brasil e União Soviética e o país ainda neces-
sitava ratificar certos acordos internacionais para permitir a extradição. Ambas con-
cordaram, entretanto, que, por ora, o material que tinham reunido poderia ser utilizado
política e jornalisticamente.105

A diretoria da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro acatou prati-


camente todas as sugestões contidas no relatório feito por Scolnicov. O primeiro pas-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fls.17-20.
104
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fls.17-20.
105
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fls.17-20.

140
CAPÍTULO 2
!

so foi a criação da Comissão Especial de Investigação. Essa comissão teve Scolnicov


como presidente e relator, além de contar com outros membros da junta executiva e
jurídica da entidade. O segundo passo foi marcar uma reunião com a imprensa. Num
primeiro momento, a entidade tentou agendar o encontro com os jornalistas para o dia
24 de maio de 1950, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Não
conseguindo o local, a reunião foi agendada para o dia 30 de junho, às 16h, nas de-
pendências do Centro Israelita Brasileiro.106 Ao tomar conhecimento da presença de
Cukurs no Brasil, José Maria de Melo, de O Globo, chegou a propor a Scolnicov uma
“ampla reportagem” sobre Cukurs, esperando com isso receber em troca exclusivida-
de no caso. No dia 28 de maior de 1950, Scolnicov ainda levou a proposta do jornalis-
ta à reunião da junta executiva de sua Federação. Mas, embora a questão tenha sido
“amplamente discutida”, ficou resolvido continuar com a resolução inicial, isto é,
apresentar a notícia aos jornalistas em uma entrevista coletiva.107

Para o encontro do dia 30 de junho foram convidados Leon Padilha e Aron Neu-
mann, da revista Aonde Vamos?; o jornalista e escritor alemão Ernest Feder, colabo-
rador do Diário de Notícias; Yvonne Jean, autora da coluna Presença da Mulher, do
Correio da Manhã; Isaac Amar, do jornal O Radical; Nahum Sirotsky, de Diário da
Noite; Renzo Massarani, do Jornal do Brasil; Magalhães Júnior, do Diário de Notí-
cias; Joel Silveira, do Diário de Notícias; João Martins, de O Cruzeiro; Jacob Kutner,
do Jornal Israelita; Murilo Marroquin, de O Jornal; Austregésilo de Athayde, do Di-
ário da Noite; e os diretores do Jornal do Brasil, Nossa Voz e Imprensa Israelita.108

Na reunião com os jornalistas, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Ja-


neiro apresentou cópias dos depoimentos de Fiszkin, Shapiro, Tukacier e Schub. O
conteúdo desses depoimentos era bastante forte e chocou os jornalistas que compare-
ceram ao Centro Israelita Brasileiro. Afinal de contas, as acusações ali averbadas re-
velavam uma face completamente diferente do homem que nos últimos dois anos vi-
nha aparecendo nos jornais como vítima da guerra e benfeitor da Lagoa Rodrigo de
Freitas. O primeiro depoimento pertence a Max Tukacier. Nascido em 1o de maio de
1902, em Riga, Tukacier contou que depois da invasão nazista, Cukurs “tornou-se
imediatamente uma das personalidades dirigentes do Batalhão Letão dos Caveiras

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fls.23-38.
107
Ata da Reunião da Junta Executiva da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, p.58.
108
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN:154. fl.34.

141
CAPÍTULO 2
!

(Pērkonkrusts)” tendo, durante a ocupação alemã, maltratado, espancado, roubado e


prendido diversos judeus. Em 15 de julho de 1941, o próprio Tukacier foi preso e en-
viado à rua Waldemar, onde Miriam Kaicners também estivera. Tukacier conta os
horrores daquela época com as seguintes palavras:

Lá estávamos sob as ordens de Cukurs e seus colegas (cerca de 20


homens). Grupos de 10 homens de cada vez eram escolhidos por Cu-
kurs no porão e espancados ao serem impelidos escadas acima. Do
porão, ouvimos aquela gente ser espancada e fuzilada lá em cima. O
mesmo fato ocorreu repetidas vezes; a cada 15 ou 20 minutos mais
10 homens eram levados para cima para serem fuzilados. Depois de
seis desses grupos terem sido arrancados do nosso meio, chegou a
minha vez. Cukurs e seus camaradas tornaram a descer ao porão e eu
fui impelido para cima com o grupo seguinte. Fomos para uma gran-
de sala onde vimos roupas e calçados espalhados pelo chão. Fomos
terrivelmente espancados pelos letões. Vi que Cukurs era o chefe
desse grupo. Tomou ele parte ativa nos maus tratos. Como os demais,
ele batia nos judeus, na cabeça e noutros pontos do corpo com a co-
ronha de sua arma. Eu mesmo recebi golpes horríveis de Cukurs, que
fez saltar quase todos os meus dentes da frente com a coronha. Uso
agora uma dentadura. Em seguida, Cukurs deu uma ordem que nos
despíssemos. Enquanto o fazíamos veio outra ordem para que nos vi-
rássemos para a parede. Nesse momento Cukurs notou que havia 11
homens no nosso grupo ao invés de 10. Ordenou a um de seus ho-
mens que levasse um de nós para baixo. Como eu estava em pé junto
à parede externa mais próxima do porão, os letões me agarraram e
me fizeram voltar ao porão vibrando-me golpes. Nesse momento,
ouvi muitos tiros. Ao cabo de cerca de meia hora, o sanguinolento
Cukurs, digo, o sanguinário Cukurs e seus asseclas voltaram para o
porão. Cukurs ordenou: “Todo mundo para cima” e contou os pri-
meiros 20 homens; os outros ficaram no porão. Eu estava entre os 20.
Primeiro fomos empurrados para a mesma sala, onde tivemos de pôr
em ordem as roupas dos homens que tinham sido fuzilados. Os SS le-
tões trouxeram alguns baldes de água e nós tivemos que lavar as pa-
redes e o chão sujos de sangue. Depois fomos levados para o pátio.109

Além de espancamentos e execuções sumárias, Tukacier também relatou que du-


rante o tempo que trabalhou na rua Waldemar foi obrigado a realizar trabalhos força-
dos e que testemunhou o acúmulo de corpos de judeus mortos, lançados por prisionei-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 52-53.

142
CAPÍTULO 2
!

ros pelas janelas, seguindo orientações de Cukurs.110 Um episódio em particular cha-


ma sua atenção devido ao grau de sadismo contra um judeu idoso e uma jovem judia:

Cukurs chamou um judeu barbado e idoso para junto dele e ordenou-


lhe que se despisse. Colocou o homem nu a poucos metros de distân-
cia de nós. A seguir, escolheu uma moça judia de cerca de 20 anos e
ordenou que ela se despisse. Cukurs empurrou a moça nua para junto
do homem nu e ordenou a este que forçasse a moça a ter relações se-
xuais com ele. O judeu velho, não querendo ou não podendo fazer,
foi chutado abaixo da cintura por Cukurs. Depois de um comparsa de
Cukurs ter segregado [sic] algo no ouvido, Cukurs ordenou ao ho-
mem que beijasse a moça em todas as partes do corpo. O velho teve
de beijar a moça nua na presença e sob o risco dos SS letões, nos
seios, na região abdominal, nas nádegas, debaixo dos braços, nos pés
e assim por diante e a repetir a mesma coisa sempre a seguir por di-
ante por um longo período. (...) Qualquer um de nós, judeus presen-
tes, que se virasse no intuito de evitar aquele espetáculo ou cobrisse
seus olhos com as mãos era sanguinária e até mesmo fatalmente es-
pancado por Cukurs com a coronha de sua arma. Mulheres que cho-
ravam ou desmaiavam eram também mortas assim por Cukurs. Cu-
kurs chacinou desse modo de 10 a 15 pessoas. Fui testemunha ocular
dessas ocorrências.111

Tukacier encerra seu depoimento dizendo que Cukurs participou dos massacres
ocorridos no final de novembro de 1941, conhecidos como “A Grande Ação”. O de-
poente contou que estava reunido em uma praça do Gueto de Riga com outros 30 mil
judeus, aproximadamente, quando viu Cukurs chegar num automóvel. Era o dia 29 de
novembro de 1941 – o mesmo dia em que Miriam diz ter sido salva por Cukurs. Os
internos que eram capazes de trabalhar foram enviados para o “Gueto Pequeno”, en-
quanto que os demais, não aptos para o trabalho, permaneceram onde estavam. No dia
seguinte, os não aptos para o trabalho foram levados à floresta Bikernieku e fuzilados.
Tukacier conta que Cukurs foi um dos dirigentes da ação. “Vi Cukurs espancar e fuzi-
lar muitos que não podiam manter o passo com o destacamento ou não marchavam
em ordem. Dentre eles havia muitas mulheres e crianças pequenas”.112

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 51-54.
111
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 53.
112
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 54.

143
CAPÍTULO 2
!

O segundo depoimento – o mais curto – pertence a Dawid Fiszkin, nascido em 1o


de fevereiro de 1922, em Riga. Fiszkin declarou que conhecia pessoalmente Herberts
Cukurs porque estava no Gueto de Riga no dia 30 de novembro de 1941. “Posso, por
isso, declarar que ele foi um grande criminoso de guerra e sadista, tendo causado a
morte de várias centenas de judeus”.113 Fiszkin declarou sob juramento um único epi-
sódio, que coincide em muitos aspectos com o depoimento há pouco relatado por Tu-
kacier:

Em 30 de novembro de 1941 foi levada a efeito uma grande “ação”


no Gueto de Riga; cerca de 16.000 judeus foram selecionados, leva-
dos para as florestas e lá fuzilados. A escolha dos judeus foi feita pe-
los alemães; Cukurs acompanhou o transporte até a floresta e partici-
pou dos fuzilamentos. Muitos judeus não logravam manter o passo.
Cukurs, que estava sempre na retaguarda, atirou naquela gente sem
explicação nem motivo, quando uma criança chorou ele a tirou da
mãe e fuzilou no local. Eu vi pessoalmente como ele fuzilou dez cri-
anças. Observei pessoalmente Cukurs acompanhar os transportes oito
vezes e nessas ocasiões matar muitos judeus ainda dentro dos limites
do Gueto; eu pessoalmente vi cerca de 500 judeus serem mortos as-
sim por Cukurs no dia em apreço, isto é, em 30 de novembro de
1941, quando estava ainda no Gueto, antes dos transportes partirem a
fim de serem levados às florestas onde os indivíduos eram abati-
dos.114

O terceiro depoimento é de Abram Shapiro, nascido em Riga, em 20 de dezembro


de 1924. Shapiro diz que tinha doze anos e que morava com o pai e a mãe quando Ri-
ga foi ocupada pelos nazistas. No dia seguinte à invasão, segundo conta, voluntários
letões liderados por Cukurs foram distribuídos em apartamentos pertencentes a judeus
e os homens em idade adulta que residiam nesses apartamentos foram levados embo-
ra. Seu pai foi um deles e seu apartamento passou a ser ocupado por Cukurs.115 Shapi-
ro conta que, certo dia, Cukurs o obrigou a fazer trabalhos manuais na sede da Polícia
de Segurança Letã. O trabalho durou cerca de uma semana e ali ele testemunhou vá-
rias atrocidades cometidas por Cukurs ou por ele ordenadas:

No porão dos escritórios da sede central, havia centenas de judeus.


(...) Os únicos trabalhadores que podiam se movimentar livremente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 49.
114
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 49.
115
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 50.

144
CAPÍTULO 2
!
no edifício e vinham diretamente trabalhar ali eram quatro, inclusive
eu. Vi muitas vezes Cukurs socar os ouvidos e de outra forma espan-
car os judeus forçados a trabalhar no edifício da Waldemarstrasse. Os
muitos letões, e particularmente os guardas letões que também traba-
lhavam no edifício e lá estavam estacionados, se achavam quase que
exclusivamente sob o comando de Cukurs. Vi repetidas vezes muitos
judeus serem transferidos de suas celas para o interior de carros e
partirem com Cukurs e seus homens. Nós, os da equipe permanente
de trabalho, tínhamos de colocar pás nesses carros e o transporte se-
guia para destino desconhecido de nós. Quando uma vez perguntei a
uma sentinela letã para onde se dirigia a jornada, respondeu-me sor-
rindo e de modo sarcástico que “eles íam caçar coelhos”.116

É importante notar que tanto Tukacier quanto Fiszkin e Shapiro dizem que viram
pessoalmente os crimes cometidos por Cukurs. Ao usar expressões como “testemunha
ocular”, fazem questão de sublinhar que não souberam dos episódios de violência de
Cukurs por terceiros, mas de eventos que os próprios viram ou sofreram. Todos tam-
bém destacaram que Cukurs ocupou uma posição de liderança entre os letões colabo-
racionistas. É neste sentido, a propósito, que Shapiro narra um episódio ocorrido logo
depois de perder seu apartamento e ter sido obrigado a trabalhar para Cukurs:

Estava eu justamente trabalhando com um judeu chamado Lutrin no


alpendre dos carros de Cukurs. Nesse dia os judeus foram tirados das
celas para uma chamada e a ordem foi de que todos deveriam compa-
recer. Dois outros homens do nosso grupo de trabalho esconderam-se
no alpendre conosco e vimos os homens que estavam enfileirados se-
rem metidos nos carros sob tremendos golpes e maus tratos e levados
embora. Uma sentinela comunicou que o nosso grupo não compare-
cera à chamada. Cukurs ordenou-nos que déssemos um passo à frente
e explicou que eu e o meu colega Lutrin estávamos excluídos, por es-
tarmos trabalhando no carro dele. Os dois outros – um certo Leit-
mann e um outro de cujo nome não me lembro – foram horrivelmen-
te espancados por um guarda letão por ordem de Cukurs. Finalmente,
vi Cukurs sacar da arma e a sangue frio matar aqueles dois judeus
que pertenciam ao nosso grupo de trabalho. Desde esse dia não voltei
mais ao trabalho, por sentir perigo de morte iminente.117

O último episódio narrado por Shapiro ocorreu no apartamento de seus pais:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
116
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 50.
117
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 50-51.

145
CAPÍTULO 2
!
Cukurs sabia que eu tocava piano e certa noite ele me fez entrar no
apartamento, onde eu tive de tocar a noite inteira. No apartamento de
Cukurs estavam reunidos muitos letões, todos dirigentes da Polícia
de Segurança. Depois de todos os letões – e entre eles também Cu-
kurs, naturalmente – estarem bastante embriagados, vi trazer para a
sala uma moça judia que naturalmente fora durante todo o tempo
mantida quer na cozinha, quer no quatro adjacente, começando então
os letões a se divertirem com a mesma. Sentado ao piano, vi como a
despiram e fui testemunha ocular de como a moça foi violentada pe-
los letões, um após outro. Estou informado de que essa moça foi con-
servada trancada por Cukurs no seu apartamento por muitas sema-
nas.118

O quarto e último depoimento apresentado pela Federação das Sociedades Israeli-


tas do Rio de Janeiro aos jornalistas do Rio de Janeiro pertence a Rafael Schub. Nas-
cido em Riga, em 1913, Schub afirmou que pouco após a ocupação nazista de Riga,
Cukurs e o Pērkonkrusts já tinham dado início ao extermínio dos judeus que viviam
na Letônia. Ele relata, então, como isso aconteceu:

Cukurs queimou vivos em 2 de julho de 1941, no cemitério novo, 8


pessoas, a saber o porteiro (“Chammus”) da Sinagoga Feldheim, sua
mulher e quatro filhos, bem como o locutor Mintz e sua mulher. Na
madrugada de 4 de julho Cukurs pôs fogo na grande Sinagoga da
Gogolstrasse, em Riga. Na sala do 1o andar estavam reunidos cerca
de 300 judeus lituanos que tinham fugido de Liyk para Riga e haviam
encontrado asilo na Sinagoga. O Capitão Cukurs e seus assistentes
fizeram esses judeus descer para a Sinagoga, forçaram-nos a desenro-
lar os santos pergaminhos no chão e quando os judeus se recusaram a
fazê-lo ele os espancou de modo terrível. Em seguida, Cukurs orde-
nou a seus auxiliares que rolassem um tambor de gasolina que havi-
am trazido com eles no carro para dentro da Sinagoga. O conteúdo do
mesmo foi derramado no chão. A seguir Cukurs colocou sentinelas
diante da sala e dos portões da Sinagoga e ordenou a seus homens
que atirassem granadas de mão na Sinagoga, para com isto pô-la em
chamas. Os judeus começaram a correr para as portas e janelas, mas
as sentinelas colocadas do lado de fora começaram a atirar neles. To-
dos os trezentos foram queimados vivos; dentre eles muitas crian-
ças.119

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
118
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 50-51.
119
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls. 54-55.

146
CAPÍTULO 2
!

Schub – mesmo sem dizer se presenciara ou não tais episódios – diz também que
Cukurs fez uma viagem a pequenas cidades lituanas em julho e agosto de 1941, du-
rante a qual teria fuzilado e esterilizado judeus. “Em Kuldiga, na Curlandia, ele impe-
liu todos os judeus para o lago de Venta e os forçou a se afogarem. Os que não quise-
ram entrar bastante pela água a dentro foram fuzilados pelos seus assistentes até que a
agua ficou vermelha com o sangue dos 2000 judeus mortos”.120 O depoente, à exem-
plo de Tukacier, Fiszkin e Shapiro, também associou Cukurs aos acontecimentos
ocorridos no Gueto de Riga. O sobrevivente afirmou ter visto Cukurs bêbado várias
vezes com uma arma na mão no Gueto e abrindo covas na floresta de Bikernieku.121

Poucos dias depois da coletiva de imprensa, a Federação das Sociedades Israelitas


do Rio de Janeiro deu início ainda a uma outra recomendação de Scolnicov: acionar
as autoridades brasileiras. Para isso, a entidade lançou mão de sua rede política. Wolff
Klabin, empresário influente, próximo de figuras políticas importantes da época como
o ex-Presidente Getúlio Vargas, inteirou-se do assunto e repassou ao deputado federal
Horácio Lafer (PSD) os documentos que a entidade tinha recebido de Winterstein.
Lafer era primo de Klabin e as duas famílias vinham da Lituânia. O primeiro tinha
nascido naquele país, enquanto que o segundo, nascido em São Paulo, era filho de
Miguel Lafer, lituano. No Brasil, os Klabin-Lafer fundaram a holding Klabin Irmãos
e Cia, a KIC, líder no ramo da celulose.122 Outro contato acionado neste momento foi
Nicim Benemond, que deveria atuar como intermediário entre a Federação e a banca-
da de seu partido, o Partido Social Trabalhista. Benemond, publicaria ainda nos meses
seguintes diversos artigos na imprensa brasileira pedindo a expulsão de Cukurs.

2.5. O imigrante indesejado, governo pressionado

A repercussão das denúncias contra Cukurs foi rápida. O primeiro veículo de co-
municação a publicá-las foi a Folha do Rio. Edmar Morel, conforme vimos no capítu-
lo anterior, não poupou no tom dramático na manchete publicada na primeira página:
“Famoso matador de gente”. A matéria incluiu Cukurs numa longa lista de nazistas e
criminosos nazistas que teriam chegado aos portos brasileiros em busca de refúgio.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 55.
121
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 55.
122
Mais informações sobre as atividades dos Klabin-Lafer, incluindo a influência que exerceram na
política brasileira, Cf: MARGALHO, Maurício Gonçalves. Klabin Irmãos & Cia: os empresários, a
empresa e as estratégias de construção da hegemonia (1930-1945). In: POLIS – Laboratório de História
Econômico-Social. Disponível em: <historia.uff.br/polis/files/texto_8.pdf>. Acesso em: 25/03/2015.

147
CAPÍTULO 2
!

Esses criminosos, explicou o jornalista, contavam com a conivência do governo brasi-


leiro e levavam uma vida fácil e próspera em cidades como Rio e São Paulo.123

A ideia de que o governo era o responsável pela vinda de criminosos nazistas para
o país, aliás, foi defendida por diversos jornais. Para o Tribuna da Imprensa, o “nazis-
ta dos pedalinhos” ilustrava a “onda de elementos indesejáveis” que as autoridades
brasileiras permitiam que entrassem livremente no país.124 Já para Osório Borba, do
Diário de Notícias, o fato de Cukurs entrar e fixar residência na capital federal ficava
“por conta das responsabilidades do nosso governo, constituído de antigos simpati-
zantes do nazismo, pouco suscetíveis à ojeriza universal pelos malfeitores nazistas”.
125
Os jornais cobravam: “como teria vindo para o Rio esse criminoso de guerra?
Quais as facilidades que encontrou? Como obteve visto permanente? Quem o prote-
geu e acoitou? Eis o que precisa ser esclarecido”, disse R. Magalhães Júnior.126

Observando o noticiário nas primeiras semanas após a denúncia contra Cukurs


percebe-se que muitos jornais e revistas se mostraram antes de tudo furiosos por te-
rem se enganado quanto ao proprietário dos pedalinhos. Segundo resumiu O Jornal, o
homem que todos tinham acreditado ser uma “vítima do nazismo” era, na verdade, um
“fanático nazista” cujos bolsos “transbordavam de dinheiro e de joias roubadas dos
judeus”. 127 João Martins, repórter de O Cruzeiro, que há apenas algumas semanas
havia feito a enaltecedora reportagem “Do Báltico ao Brasil”, publicou no final de
julho de 1950 um novo texto em que se defendeu perante seus leitores: “como suspei-
tar de um emigrado que estava no nosso país há quatro anos, que aqui chegara legal-
mente com uma permissão do governo, que vivia inteiramente às claras (...) que traba-
lhava honestamente em seu negócio despretensioso?”128 Se a história contada meses
antes aos jornalistas tinha funcionado, explicou Maurício de Medeiros, do Diário Ca-
rioca, é porque Cukurs soube forjar um “romance” que mexeu com a “nossa simpatia
sentimental latina, que reservamos para os que se esforçam na construção de uma no-
va vida, depois de tudo perderem”.129

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
Folha do Rio, “Famoso matador de gente”, 30/06/1950, p. 1.
124
Tribuna da Imprensa, “Prezado leitor”, 20/06/1950, p. 1.
125
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 07/07/1950, p. 4.
126 o
Diário de Notícias, O criminoso n .17”, 14/07/1950, p. 4.
127
O Jornal, “Responsável pelo extermínio de milhares de judeus...”, 01/07/1950, p. 8.
128
O Cruzeiro, “Culpado ou inocente”, 22/07/1950, p. 40.
129
Diário Carioca, “Um nazista indesejável”, 07/07/1950, p. 10.

148
CAPÍTULO 2
!

Nessas primeiras notícias também não faltaram exageros. Cukurs foi citado como
“servidor devoto da causa de Hitler”130 e como “um dos maiores criminosos na Se-
gunda Guerra Mundial”,131 além de ser apontado como “o único responsável por todas
as chacinas contra israelitas no território da Letônia”.132 A esses excessos se somaram
informações incorretas. Anunciou-se, por exemplo, que Cukurs era “procurado pela
justiça internacional”,133 “foragido do Tribunal de Nuremberg” (o 17o de uma lista de
condenados deste tribunal)134, “comandante chefe das forças de ocupação nazista”135 e
“oficial de alta patente da Gestapo”.136

Cukurs transformou-se em uma ameaça social, sobretudo às crianças. Yvonne Je-


an, judia belga, refugiada do nazismo, escritora de livros infantis e autora da coluna
“Presença da Mulher”, publicada semanalmente no Correio da Manhã, foi uma das
mais empenhadas em mostrar que a família brasileira corria perigo. Em várias de suas
colunas, a jornalista alertou as mães que levavam seus filhos para passear nos pedali-
nhos sobre os perigos que corriam estando próximas do Obersturmführer Herberts
Cukurs: “não acredito que tenham vontade de apertar a mão deste homem, nem lhe
dar o seu dinheiro, nem de lhe confiar seus filhos! Entretanto é o que estão fazendo!
Inconscientemente, é bem verdade. E é por isso que chamo a sua atenção.”137 Na
mesma linha, escreveu A Vanguarda, para quem o “carrasco, ainda com sangue na
boca, vivia entre as crianças que frequentavam seu negócio como se fosse um risonho
e bondoso patriarca”138, e também a revista judaica Aonde Vamos?: “Cukurs vive en-
tre as crianças do Brasil com as mãos ainda tintas de sangue, sem remorsos, como se
fosse um cidadão respeitável, e não um dos monstros gerados pelo nazismo”. 139

Vários veículos enviaram equipes à Lagoa Rodrigo de Freitas com o intuito de en-
trevistar Cukurs. A maioria, no entanto, não o encontrou. O Globo foi aparentemente
o único que conseguiu abordá-lo pessoalmente naqueles dias. De acordo com o que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
Correio da Manhã, “Bálticos e outros”, 16/07/1950, p. 2.
131
Diário da Noite, “Herberts Cukurs, ex-capitão das SS de Hitler”, 07/07/1950, p. 2.
132
Diário da Noite, “Herberts Cukurs, ex-capitão das SS de Hitler”, 07/071950, p.2.
133
Correio da Manhã, “Bálticos e Outros”, 16/07/1950, p. 2.
134
Gazeta de Notícias, “Câmera Municipal”, 10//0-7/1950, p.4
135
O Globo, “Quer ser brasileiro o ex-carrasco nazista”, 07/07/1950, p.1/4.
136
Diário de Notícias, “Falência de Nuremberg”, 7/07/1950, p.4.
137
Correio da Manhã, “O Nazista do Báltico”, 01/071950. p.10.
138
A Vanguarda, “Carrasco nazista no Rio de Janeiro”, 23/07/1950, p.2
139
Aonde Vamos? “Assassinou milhares de judeus e vive impune...”, 06/07/1950, p.5/21.

149
CAPÍTULO 2
!

foi reproduzido pelo jornal, Cukurs falou pouco. “Julgo do meu dever justificar-me
primeiro perante as autoridades do Brasil, que me acolheram. Em seguida, farei um
relato de tudo à imprensa, pode ter certeza”. Cukurs disse ainda à reportagem do jor-
nal que tinha documentação suficiente para desmentir as acusações, o que seria feito
logo. E fez uma pergunta inesperada ao repórter: “olhe bem para o meu rosto. Tenho
alguma aparência de quem é autor de milhares de mortes? Tenho cara de carrasco?”140

Imagem&36.!Cukurs!em!grande!destaque!no!Diário!de!Notícias.!Fonte:!Diário!de!Notícias.!!

No final de julho de 1950, a rede política acionada pela Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro também já dava seus primeiros frutos. No dia 25 daquele
mês, o deputado federal Horácio Lafer enviou um requerimento ao MJNI solicitando
três informações: 1) Se Herberts Cukurs, conforme apontava a imprensa, era crimino-
so de guerra; 2) Se os seus documentos de identidade estavam rigorosamente em or-
dem; 3) Se for mesmo criminoso nazista, que providências deveriam ser tomadas no

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
140
O Globo, “Olhe pra mim! Tenho cara de carrasco? ”, 25 de julho de 1950, p.2.

150
CAPÍTULO 2
!

sentido de sua não permanência no Brasil. O requerimento de Lafer foi a primeira


abordagem oficial ao governo brasileiro. 141

Havia já àquela altura uma grande pressão sobre o governo brasileiro. A própria
Federação, em carta enviada ao Comitê de Investigação dos Crimes de Guerra Nazis-
tas nos Países Bálticos, reconheceu o avanço que se tinha feito até então: “Depois de
ter devidamente estudado o caso, nós conseguimos mobilizar a opinião pública brasi-
leira por meio de uma entrevista coletiva à imprensa. Esta entrevista teve enorme re-
percussão em todo o país. Mais de 30 editoriais sobre o caso foram publicados duran-
te o mês de julho e o caso continua em foco”.142 Porém, um acontecimento viria a
aumentar ainda mais a visibilidade do caso na imprensa, mobilizando ainda mais a
opinião pública e as autoridades brasileiras: a chamada “Batalha dos Barquinhos”,
ocorrida na Lagoa Rodrigo de Freitas, no dia 13 de agosto de 1950.

No final de julho de 1950, um grupo formado por 14 associações judaicas autointi-


tulado Comitê Unido, quase todas sem vínculo com a Federação das Sociedades Israe-
litas do Rio de Janeiro, iniciou os preparativos de um alardeado júri simulado de Her-
berts Cukurs. O Comitê Unido era uma entidade nova, fundada há apenas quatro me-
ses e que reunia várias entidades judaicas de esquerda do Rio de Janeiro e algumas de
São Paulo. Eram clubes, bibliotecas, jornais, centros de cultura e teatro.143 A prática
de realizar júris simulados era comum entre agremiações políticas da época, especi-
almente aquelas formadas por participantes jovens. Os estudantes das faculdades de
direito recorriam a esses júris com frequência.144 A União Nacional do Estudantes
também. Em 1943, por exemplo, a UNE realizou um pomposo júri simulado no Tea-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl. 2
142
[Original:!“After having studied thoroughly the case, we mobilized the Brazilian public opinion by a
press interview which had the largest repercussion in the whole country. More than 30 editorials about
the case were published during the month of July and the case continues in focus”]. In: Yad Vashem
Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG: O.4/FN: 154. fl. 40.
143
Eram as 14 associações que formavam este comitê: “Centro Israelita Brasileiro de Intercâmbio e
Cultura”, “Biblioteca Israelita Brasileira Scholem Aleichem”, “Departamento Juvenil da BIBSA”, “Po-
lischer Farband Vita Kempner”, “Sociedade dos Amigos do Teatro Idisch Leien Kraizen”, “Clube dos
Cabiras”, “Grêmio Stefan Zweig”, “Centro de Cultura Judaica do Brasil”, “ICUF de Madureira”, “Jo-
vens de Niterói”, “Nossa Voz”, “Polischer Farband”, “Centro Israelita Leopoldina” e “A Voz”.
144
A Rádio Clube do Brasil lançou, inclusive, um programa apenas de júris simulados, feitos por uni-
versitários de direito. Os processos eram emprestados pelo Arquivo do Palácio da Justiça – trocavam-
se apenas os nomes. Cf. Diário de Notícias, “Notícias Diversas”, 08/08/1942, p. 8.

151
CAPÍTULO 2
!

tro João Caetano, no Rio de Janeiro, que julgou e condenou o principal nome do inte-
gralismo no Brasil, Plínio Salgado.145

O júri simulado de Cukurs foi marcado para a noite do dia 12 de agosto de 1950,
no auditório da ABI, no centro do Rio de Janeiro. De acordo com os organizadores, o
ato tinha a função de alertar para o “fortalecimento do antissemitismo” e para a “con-
centração de criminosos de guerra” no Brasil, tudo isso, ao que se dizia, com a “coni-
vência do Itamaraty”. Nas semanas anteriores ao júri, o Comitê publicou anúncios na
imprensa a fim de convocar a comunidade judaica carioca, a Federação das Socieda-
des Israelitas do Rio de Janeiro e o “povo em geral” para se juntarem ao “movimento
unânime” contra Cukurs. 146

Quem nos conta os detalhes daquela noite do dia 12 de agosto de 1950 é o jornalis-
ta Edgar Morel. De acordo com Morel, os presentes superlotaram o auditório da ABI.
Cerca de duas mil pessoas, informa Morel, teriam assistido aos debates, que termina-
ram “pela madrugada”.147 Como outros do tipo, o júri tentava reproduzir todo os as-
pectos de um júri de verdade. Havia um juiz, três advogados de defesa, três de acusa-
ção e até mesmo um escrivão. De acordo com o semanário judaico Nossa Voz – enti-
dade de maior expressão do Comitê Unido –, os advogados de acusação listaram to-
dos os crimes atribuídos ao réu e contextualizaram os problemas e os horrores repre-
sentados pelo nazismo, enquanto que os advogados de defesa se apoiaram na tese de
que Herberts Cukurs, no fundo, era um doente mental, embora isso não significasse a
atenuação de sua responsabilidade nos crimes praticados na Letônia.148

Concluídas as deliberações e debates, o júri encerrou o julgamento com a leitura da


condenação unânime de Herberts Cukurs à pena máxima – como era de se esperar – e
com uma recomendação ao governo brasileiro: a expulsão do “condenado” do país,
tendo em vista que sua presença em território nacional era um “ultraje” para os judeus
do Brasil e para a “honra e lembrança de nossos pracinhas mortos em Pistóia”.149

O júri simulado aconteceu em um sábado. Por volta das 16h do dia seguinte, do-
mingo, dia mais movimentado na estação dos pedalinhos, aproximadamente 100 pes-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
Diário Carioca, “Plínio Salgado foi ‘condenado à morte’ pelo Júri Simulado”, 16/05/1943, p. 2.
146
Diário de Notícias, “Pela paz e contra o antissemitismo”, 04/08/1950, 2a Seção, p. 3.
147
Folha do Rio, “Desmoralizada pelo espião, uma portaria...”, 15/08/1950, pp. 1/5.
148
Nossa Voz, “Passeata de repúdio contra o monstro nazi Cukurs”, 17/08/1950, p.10.
149
Nossa Voz, “Passeata de repúdio contra o monstro nazi Cukurs”, 17/08/1950, p.10.Ibidem.

152
CAPÍTULO 2
!

soas, muitas das quais participantes do júri simulado, encontraram-se na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, em frente aos pedalinhos. Portavam cartazes e faixas que pediam a
expulsão de Cukurs, e gritavam palavras de ordem. Em certo momento do protesto, os
manifestantes exigiram que Cukurs aparecesse, o que não aconteceu. Então, alguns
manifestantes atacaram os pedalinhos, além de lanchas e aviões de pequeno porte an-
corados na areia. Segundo relatos publicados na imprensa, alguns manifestantes esta-
vam munidos de machados150 e foram ouvidos, inclusive, disparos de arma de fogo.151

Imagem&37.!Repercussão!do!episódio!ocorrido!na!Lagoa.!Fonte:!Diário!Carioca.!

Durante a pesquisa desta tese, pude localizar quatro pessoas que participaram da
manifestação: Aleksander Laks, que tinha então 22 anos, Marcus Shorr, 18 anos, e o
casal Marcos e Molka Waimberg, 19 e 16 anos, respectivamente. Todos concordaram
que o “quebra-quebra” realizado naquele domingo não fora premeditado. “Foi a raiva
do momento que fez as pessoas avançarem. E se não fossem os cachorros dele, nós
teríamos invadido a casa e quebrado”, lembrou Molka.152 A propósito das motivações
do protesto, Laks sublinhou: “nós queríamos chamar a atenção porque haviam outros
carrascos [no Brasil]. E o governo encobria. (...) Depois da Argentina, era o Brasil. Eu

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
150
Jornal do Brasil, “Judeus vingaram-se do antigo nazista”, 15/08/1950, p. 7. Já o jornal O Globo diz
– talvez equivocadamente, mas certamente de forma exagerada – que “muitos judeus estavam armados
de revólveres”. Cf: O Globo, “Audaciosa atitude de estrangeiros no Brasil”, 14/08/1950, p. 2.
151
Diário da Noite, “Grupo de israelitas, enfurecidos, depredam...”, 14/08/1950, p. 2.
152
Molka Waimberg em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 08/05/2013.

153
CAPÍTULO 2
!

me sentia revoltado. Judeus não podiam entrar e nazistas, sim. Um país que mandou o
melhor que tinha, mandou os seus filhos para lutar na guerra. Isso era revoltante”.153
A ideia de que o protesto tinha a ver com a postura do governo brasileiro, também foi
corroborada por Shorr, que na época era editor da revista O Espelho. Perguntado so-
bre a posição das autoridades brasileiras no Caso Cukurs, respondeu:

Não agiram adequadamente. E não só no Caso Cukurs. Outros nazis-


tas vieram parar no Brasil. E houve uma certa aquiescência do go-
verno brasileiro. Como eles entraram aqui e como se instalaram aqui?
(…). Eles favoreciam os nazistas. É o seguinte: se a gente vai fazer
uma análise política maior, Getúlio era favorável ao nazismo. Getúlio
só mudou de opinião com o movimento popular de esquerda. Quando
eu era criança, eu participei de movimentos contra o nazismo. Getú-
lio se viu forçado a entrar na guerra contra a Alemanha. Dutra era li-
gado a Mussolini e Getúlio, a Hitler. E os dois eram ligados a Fran-
co.154

Enquanto a sede dos pedalinhos era atacada, moradores do entorno da Lagoa Ro-
drigo de Freitas ligaram para a polícia e, algum tempo depois, uma radiopatrulha che-
gou ao local. A maioria dos manifestantes conseguiu se dispersar. Os policiais, contu-
do, conseguiram deter três judeus próximos do local: Uryz Wisenberg, Saul Gornik e
Salomão Bergier. Os três foram encaminhados para a delegacia do 2o Distrito Policial,
onde foram autuados por depredação de patrimônio privado e perturbação da ordem
pública, só deixando a delegacia na manhã seguinte após pagamento de fiança. O de-
legado de plantão instalou um inquérito para apurar o ocorrido. De acordo com Cu-
kurs, seu prejuízo fora de aproximadamente 50 mil cruzeiros.155

Embora as manifestações daquele final de semana tivessem sido organizadas por


judeus, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro não “aprovou” o que
tinha acontecido. Dias antes da realização do júri simulado, a entidade – que se consi-
derava a “única representante legal das sociedades israelitas” – já tinha feito questão
de ir a público afirmar que não se identificava com aquele evento. “O Comitê Unido
não representa o Ichuv e a Federação desaconselha a realização desse júri uma vez

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
Aleksander Laks em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 14/06/2011.
154
Marcus Shorr em entrevista ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 03/01/2012.
155
Jornal do Brasil, “Judeus vingaram-se do antigo nazista”,15/08/1950, p. 7; Diário Carioca, “Depre-
dado o negócio do oficial nazista”, 15/08/1950, pp. 1-2.

154
CAPÍTULO 2
!

que aguarda as providências sobre o assassino Cukurs”.156 Na semana seguinte à rea-


lização do júri e da manifestação na Lagoa, a desaprovação da Federação foi ainda
mais enfática, com Israel Scolnicov dizendo à imprensa que reprovava os métodos do
Comitê Unido e que a Federação não tinha “autorizado” a realização de nenhum dos
dois eventos. Como podemos entender essa tensão?

O embate entre Comitê Unido e Federação extrapolava a mera divergência de mé-


todos. Tratava-se de um antagonismo mais antigo, inscrito em um cenário de disputas
políticas que vinha formatando, desde o início do século XX, a dinâmica comunitária
judaica no Brasil: o embate entre “sionistas” e “progressistas”. De acordo com Carlos
Eduardo Bartel, os sionistas, grosso modo, representavam o grupo de judeus identifi-
cados com a criação e a centralidade do Estado de Israel nos rumos do judaísmo, con-
forme a proposta de Theodor Herzl, inclusive como forma de erradicação do proble-
ma do antissemitismo e de referência para a construção de uma nova identidade judai-
ca. Já os progressistas, também grosso modo, representavam aqueles que se opunham
ao projeto sionista, defendendo a assimilação, o internacionalismo e a diáspora como
lugar de estabelecimento e atuação dos judeus.157 Em geral, os sionistas estavam as-
sociados a pautas políticas mais liberais, enquanto que os progressistas, a movimentos
e ideias de esquerda, conhecidos também como “judeus vermelhos”, embora, como
nos lembra Michel Gherman, esse grupo sempre tenha sido bastante heterogêneo,
reunindo desde judeus marxistas até judeus de esquerda defensores do sionismo.158
Essas duas categorias etiquetavam os principais aspectos sociais da vida judaica na
primeira metade do século XX. Eram capazes de orientar, de acordo com Sydenham
Lourenço Neto, “definições sobre qual escola, biblioteca ou clube frequentar e, prin-
cipalmente, quais livros e revistas ler”. 159

O nascimento da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, em setem-


bro de 1947, apenas fortaleceu essa polarização. Ela surge reunindo 42 entidades ju-
daicas brasileiras. Entre os seus principais pilares, estava “a mobilização dos judeus

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Diário de Notícias, “Não apoia o júri simulado de Herberts Cukurs”, 09/08/1950, 1a Seção, p. 7.
157
BARTEL, Carlos Eduardo Bartel. Sionismo e Progressismo. Dois projetos para o judaísmo brasilei-
ro. In: Web Mosaica – Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. V.2, n. 2, 2010, p. 84.
158
GHERMAN, Michel. Ecos do Progressismo: história e memória da esquerda judaica no Rio de
Janeiro dos anos 30 e 40. (Monografia). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000,
pp. 62-64.
159
NETO, Sydenham Lourenço. Imigrantes Judeus no Brasil, marcos políticos de identidade. In: Lo-
cus: revista de história, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 226.

155
CAPÍTULO 2
!

de todo o mundo na luta pela criação de um Estado judaico”.160 A criação de uma ins-
tituição nesses moldes, como sublinha Monica Grin, pressupunha a “formalização de
objetivos e estratégias de ação coletiva” de forma a promover um “poder centraliza-
do” em detrimento da “desmobilização de centros de poder, antes autônomos”.161 Em
outras palavras, almejava-se centralizar as tomadas de decisão sobre questões judaicas
nas mãos de uma única entidade.162 As instituições judaicas progressistas não aceita-
ram a ideia de que uma Federação como a do Rio falasse em nome de todos os judeus,
principalmente em nome dos judeus progressistas. Daí a criação do Comitê Unido.
Este, por sua vez, surgiu em março de 1950 em torno de um episódio ocorrido na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Cinco estudantes ju-
deus do curso de engenharia foram expulsos da universidade com a alegação de que
transgrediram o estatuto estudantil organizando “atividades políticas subversivas” no
campus. Na opinião do Comitê Unido, porém, a expulsão foi um ato de discrimina-
ção. Quando o caso Cukurs veio à tona, quatro meses depois do incidente na PUC-RJ,
o Comitê Unido passou a enxergar os dois casos pela mesma ótica, ou seja, como re-
sultado do antissemitismo e da intolerância no país. 163

A discordância sobre qual a melhor maneira de lidar com Cukurs, portanto, não foi
fruto do acaso. E nem era preciso sair da imprensa judaica para perceber o quanto isso
tinha a ver com a cisma entre progressistas e sionistas. Aron Neumann, editor do se-
manário Aonde Vamos?, de orientação sionista, classificou o protesto do Comitê Uni-
do como um “caleidoscópio de uma tolice reverberante”. Segundo Neumann, o “espe-
táculo ridículo” organizado pela entidade mostrava como seus participantes eram an-
tidemocráticos e o quanto suas ações deveriam ser vistas como um “caminho perigo-
so” para a comunidade judaica no Brasil. 164 Visão muito diferente daquela publicada
pelo progressista Nossa Voz, para quem tanto o júri simulado quanto o ato de protesto
na Lagoa tinham sido “duas importantes demonstrações judaicas que honram o Ichuv
judaico de todo o Brasil”. O jornal reagiu à crítica do Aonde Vamos? chamando-o de
“delirante”, “inverídico” e “incoerente”. Não poupando no tom, o Nossa Voz disse
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
GRIN, Monica. Etnicidade judaica e as Armadilhas da Contingência. (Dissertação de Mestrado).
Rio de Janeiro: IUPERJ, 1992, p. 135.
161
Ibidem, p. 142.
162
No plano internacional, a criação do Estado de Israel, em 1948, confirmava essa tendência.
163
GRIN, Monica. Etnicidade judaica e as Armadilhas da Contingência. (Dissertação de Mestrado).
Rio de Janeiro: IUPERJ, 1992, p.142.
164
Aonde Vamos?, “Caleidoscópio de uma tolice reverberante”, 17/08/1950, p. 3.

156
CAPÍTULO 2
!

ainda que o semanário sionista de Nauman trilhava “aquele mesmo caminho que le-
vou organizações e personalidades judaicas, durante a Segunda Guerra Mundial, a
organizarem os judenrat (...) para assim eliminar mais facilmente o Estado-maior ju-
deu da resistência e aplainar o caminho para os fornos crematórios”.165

As ações tomadas pelo Comitê Unido em relação a Cukurs tinham a ver também
com a forma de agir da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro: o gru-
po progressista tinha se surpreendido com a informação sobre a presença do letão no
Rio de Janeiro e achava que aquela entidade tinha omitido da coletividade um assunto
importante demais para ser decidido somente por ela. Além disso, havia uma clara
discordância quanto às estratégias empregadas no caso. A Federação dava ênfase ao
trabalho técnico-jurídico. Procurava, como vimos, alertar a opinião pública e o gover-
no brasileiro sobre Cukurs, empregando sua rede política e recorrendo à imprensa,
sempre evitando criticar o governo brasileiro. Já o Comitê Unido acreditava em uma
estratégia mais combativa, imediata, procurando mobilizar a opinião pública de forma
bem mais direta e incisiva, como, por exemplo, através de protestos. O Comitê Unido
acreditava que o governo protegia criminosos de guerra nazistas, daí sua falta de dis-
posição em negociar com ele. Em certa medida, todas essas disputas devem ser vistas
como parte de um contexto de reorganização da coletividade judaica em cidades co-
mo Rio de Janeiro e São Paulo, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de
vista institucional. O momento do país, que vivia novamente uma democracia, era fa-
vorável. De acordo com o censo demográfico brasileiro, 69.957 pessoas se declararam
“israelitas” no Brasil em 1950.166 Esses dados não computavam aqueles que eram ju-
deus, mas não se declararam desta forma por múltiplos aspectos ou que tinham se
convertido a alguma outra religião. Era um contingente discreto se comparado à popu-
lação brasileira – representava 0,13% desta. Porém, era bastante dinâmica e atuante,
como podemos ver. Mais do que era dez anos antes.

Apesar das discordâncias evidentes entre Federação e Comitê Unido, os eventos


ocorridos em 14 de agosto de 1950, na sede dos pedalinhos, foram bem-sucedidos em
pelo menos um aspecto: chamar novamente a atenção da imprensa e de setores da so-
ciedade civil para a presença de Cukurs no Rio de Janeiro. Para o Diário da Noite, os
manifestantes do Comitê Unido tinham sido “resultado da explosão de sentimentos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
165
Nossa Voz, “Os tortuosos caminhos do “Aonde Vamos” à luz do Caso Cukurs”?, p. 8.
166
IBGE. Censo Brasileiro, 1950.

157
CAPÍTULO 2
!

recalcados pelas atrocidades sofridas por seus patrícios durante a perseguição germâ-
nica”.167 A Noite classificou a manifestação como uma “explosão de ressentimen-
to”.168 Para o Diário de Notícias, ela tinha a ver com silêncio do governo brasileiro:

(...) a opinião pública está sendo despertada para reprovar o ato das
autoridades brasileiras que permitiram a entrada de um criminoso de
guerra no país, enquanto dificultavam, por todos os modos, a vinda
de refugiados e imigrantes, deslocados da Europa pela ação do mes-
mo grupo político a que pertencia Cukurs e cujo desejo de dominar o
mundo se exercia através de chacinadores como ele. Não devem os
responsáveis pelo governo ouvir com indiferença os protestos que se
erguem, pois além de se originarem no sentimento de justiça diante
do crime, correspondem à profunda vocação do povo brasileiro pelo
respeito à vida e à dignidade da pessoa humana. O Brasil, que elimi-
nou a pena de morte de seu Código Penal, não pode abrigar entre seu
povo um homem que determinou a eliminação sumária de dezenas de
milhares de seres humanos, homens, mulheres, velhos e crianças, e
exerceu a ação destruidora até o instante em que, não era mais possí-
vel continuar matando os seus semelhantes. À falta de uma providên-
cia, de uma palavra oficial, já os que mais diretamente se sentem
atingidos pelo criminoso se movimentaram e depredaram as instala-
ções com que Cukurs veio divertir os cariocas, depois de assassinar
judeus na Europa. Condenável porque significa justiça pelas próprias
mãos, o gesto é explicável pela complacência com que as nossas au-
toridades deixam em liberdade no Brasil, um criminoso condenado
em Nuremberg. O governo brasileiro deve promover os meios neces-
sários para que Herberts Cukurs seja entregue à alçada da Justiça que
o condenou. Não se trata de açular um sentimento de vingança, nem
excitar a paixão de “revanches” naqueles que viram os seus compa-
triotas trucidados pelo indesejável visitante. Trata-se de cobrar a esse
homem a dívida que contraiu para com o mundo, de fazer com que
um culpado não escape à punição do crime que cometeu contra a
humanidade.169

Na Folha do Rio, Edmar Morel também seguiu essa linha. Para ele, os protestos na
Lagoa eram uma resposta às “facilidades governamentais” que permitiam que um
criminoso de guerra vivesse impune no Brasil.170 No dia seguinte ao incidente na La-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
167
Diário da Noite, “Grupos israelitas, enfurecidos, depredam...”, 14/08/1950, p. 2.
168
A Noite, “Conflito no Jardim de Alá”, 14/08/1950, p. 7.
169
Diário de Notícias, “Criminoso de Guerra”, 18/08/1950, 1a.Seção, p. 4.
170
Folha do Rio, “Cukurs escapou...”, 17/08/1950, p. 3.

158
CAPÍTULO 2
!

goa, o jornalista foi extremamente original em sua tentativa de mexer com os brios
das autoridades brasileiras. Morel afirmou que Cukurs havia desmoralizado uma por-
taria do Ministério da Aeronáutica ao permitir que turistas que faziam seus sobrevoos
pela cidade tirassem fotos. Essa portaria, um Decreto-lei do tempo da guerra, proibia
qualquer pessoa de fazer fotos aéreas da cidade. Dramático, Morel disse: “Amanhã, o
Brasil arrastado a um conflito, como o foi na guerra passada, terá todas as suas defe-
sas nas mãos de um aventureiro, o qual poderá vendê-las a quem pagar melhor. 171

Por fim, é interessante citar o popular O Radical, que, fazendo justiça ao seu nome,
foi muito além da defesa dos judeus que participaram do protesto. Em sua coluna se-
manal Imprensa em Revista, o jornalista Godin da Fonseca lamentou de forma infla-
mada que os manifestantes não tivessem feito mais contra Herberts Cukurs:

Custa a crer que as nossas autoridades dessem permissão a este patife


para ingressar no Brasil. (...) Beneméritos israelitas foram lá e reben-
taram tudo. Infelizmente não encontraram Cukurs para lhe amarra-
rem uma pedra ao pescoço e jogarem na água. (...) Cukurs, membro
do Fascitern e colega de Plinio Tombolá von Nuremberg, merece ser
tratado da mesma forma como tratou nos países bálticos os nossos
irmãos.172

O Globo foi o jornal que mais destoou. O jornal de Roberto Marinho registrou os
protestos ocorridos na Lagoa em sua primeira página, mas condenou veementemente
a estratégia empregada pelos manifestantes. No alto da capa, lia-se a chamada: “Cri-
minosa tentativa de agitar no Brasil o problema semítico! ”. E na matéria propriamen-
te dita, chamava a atenção não só o título – “Audaciosa atitude de estrangeiros no
Brasil” – como também as fotos, em plano fechado, dos três judeus detidos, artifício
que o jornal geralmente reservava para representar criminosos comuns. O jornal sub-
linhou que compreendia o “sentimento de indignação” que Cukurs despertava entre os
judeus, mas “que vá ao ponto de tentar passar por cima da lei para atingir esse objeti-
vo é o que não devemos tolerar, sob pena de fomentarmos a anarquia e a insegurança
coletivas”. Para O Globo, era preciso agir dentro da lei. “Os judeus, inclusive, devem
para isso, evitar manifestações como a de ontem, que longe de captar simpatias ser-
vem unicamente para despertar suspeitas e gerar antipatias contra uma comunidade

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
Folha do Rio, “Desmoralizada pelo espião uma portaria do Ministério...”, 15/08/1950, p. 1-5.
172
O Radical, “Imprensa em Revista”, 16/08/1950, p. 3.

159
CAPÍTULO 2
!

que, para se abrigar no nosso país, deve, antes de tudo, respeitar as suas leis”. 173 É
difícil dizer o que fez com que o jornal se posicionasse desta forma. Uma das hipóte-
ses poderia ser que o seu diretor de redação, Herbert Moses, judeu, era opositor ao
movimento “progressista”. Uma outra explicação possível diz respeito a uma provável
retaliação pelo fato de O Globo não ter conseguido, alguns meses antes, conforme
vimos, exclusividade no caso Cukurs. O mais provável é que a primeira hipótese seja
a mais correta.

Imagem&38.!Na!imagem!acima,!podemos!ver!as!fotos!dos!judeus!detidos!pela!radiopatrulha!na!Lagoa!RodriI
go!de!Freitas.!O!acontecimento!estampou!a!primeira!página!do!jornal.!Fonte:!O!Globo,!14/08/1950!.!

Além da imprensa, os novos acontecimentos sensibilizaram diversos políticos e


suas respectivas casas legislativas. Na semana seguinte ao protesto da Lagoa, o verea-
dor Breno da Silveira, da Câmara Municipal do Distrito Federal, aprovou uma moção
de protesto contra a permanência de Cukurs em solo nacional. O documento, enviado
ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, foi assinado por 22 vereadores, entre
os quais figuras ilustres da política do Rio de Janeiro, tais como Gama Filho, Murilo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
173
O Globo, “Audaciosa atitude de estrangeiros no Brasil”, 14/08/1950, p. 1.

160
CAPÍTULO 2
!

Lavrador, Álvaro Dias, Nilo Romero, José Junqueira e Lygia Maria Lessa Bastos.174
Apenas um parlamentar não assinou o documento, o vereador Cotrim Neto, represen-
tante do Partido de Representação Popular (ex-Ação Integralista).175 Na ocasião, Neto
justificou sua abstenção dizendo que não havia “elementos seguros para que o fizes-
se”. Defendendo sua escolha, completou: “não é de hoje, vem do começo dos tempos
a vindita, a perseguição, a incriminação, a desforra sobre o inimigo vencido. Vem do
princípio dos anos aquelas ações dos povos vencedores esmagando os vencidos”.176

No dia 28 de agosto de 1950, foi a vez do deputado Hermes Lima fazer um longo
discurso no Congresso Nacional contra a permanência de Cukurs no Brasil. “Não é
possível que o Brasil, com sua tradicional hospitalidade, com sua tradicional doçura
de maneiras, incorpore à sua vida um homem acusado de tais atrocidades e de tais
crimes.” Segundo Lima, que seria anos mais tarde presidente do Supremo Tribunal
Federal, isso nada tinha a ver com a perseguição a um indivíduo, “mas porque a cons-
ciência democrática do país não pode permitir que um criminoso de guerra manche a
vida brasileira com a sua presença”. Cukurs, nas palavras do deputado, deveria ser
“recambiado para a Alemanha” e entregue aos tribunais daquele país, pois “é o na-
zismo que se deseja punir, expulsando da vida brasileira um elemento integrante dos
seus quadros e responsável pelas abominações a que, desta tribuna, me acabo de refe-
rir”. Ao terminar o discurso, Hermes Lima recebeu as palmas dos presentes. 177

Do exterior, as organizações judaicas também começaram a procurar representan-


tes do governo brasileiro em busca de posicionamento. No dia 22 de agosto de 1950,
Robert Marcus, diretor político do Congresso Judaico Mundial no Hemisfério Ociden-
tal, entregou uma carta ao embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Maurício Nabu-
co. A organização mostrava-se preocupada tanto com a prisão dos três judeus no Rio
de Janeiro quanto com a permanência de Cukurs no Brasil. Procurando mostrar como
as coisas estavam interligadas, Marcus disse que os eventos ocorridos na Lagoa ti-
nham sido um “protesto contra a recusa do governo brasileiro em expulsar Cukurs do
país”. Além disso, ele chamou a atenção do embaixador Nabuco para o fato de que
Cukurs, “conforme atestavam publicações que poderiam ser enviadas a qualquer mo-
mento às autoridades brasileiras, fora oficial da Gestapo e líder do ‘Partido Nazista
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
174
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.7-9.
175
Tribuna da Imprensa, “Vereador integralista não forma contra o nazista”, 25/08/1950, p.1.
176
Tribuna da Imprensa, “O vereador integralista solidário com Cukurs”, 08/09/1950, p.6.
177
Diário do Congresso Nacional, 29/08/1950, p.5876.

161
CAPÍTULO 2
!

Letão’, responsável pela morte de milhares de judeus na Letônia”. Visando sensibili-


zar o governo brasileiro para a questão, Marcus recorreu às “tradições democráticas”
do Brasil e aos sentimentos daqueles que perderam parentes durante a guerra:

Em vista do exposto, o Congresso Judaico Mundial sente que a per-


manência de Cukurs no Brasil - o que significaria em última instân-
cia dar-lhe a cidadania brasileira para este criminoso hediondo - não
estaria de acordo com as tradições democráticas do seu país; Além
disso, a extensão do direito de asilo a uma pessoa notória de sua ca-
tegoria seria uma violação da Constituição da Organização Internaci-
onal do Refugiados (de cujo Conselho o seu país é membro), a qual
exclui explicitamente os criminosos de guerra dos benefícios de suas
disposições. Estamos certos de que uma investigação das circunstân-
cias que cercam a entrada Cukurs no Brasil indicará que o passado
deste homem era desconhecido para o governo brasileiro. Pedimos
ainda a compreensão dos motivos e dos sentimentos daqueles judeus
que se envolveram na manifestação contra Cukurs. Você vai enten-
der, eu tenho certeza, a profunda amargura daqueles que perderam
seus entes queridos através das mãos dos nazistas frente a um ele-
mento que participou do extermínio destas vítimas inocentes do sa-
dismo de Hitler. Podemos ouvir/aguardar de você uma resposta sobre
o que acabamos de relatar?178

Assim, ao final de agosto de 1950, o governo brasileiro se viu interpelado pela im-
prensa, por organizações não governamentais e parlamentares. Todos queriam expli-
cações sobre a entrada de Cukurs no Brasil e permanência em território nacional. Di-
ante desta conjuntura, como se posicionou o governo brasileiro? Que medidas tomou
diante da pressão? O que era possível fazer para esclarecer a presença de uma colabo-
racionista nazista no Brasil? É o que vamos ver a partir do próximo capítulo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
AHI-RJ. Missão Diplomática Brasileira em Washington, Carta de Robert S. Marcus a Maurício
Nabuco. 49/4/4. [Original: “In view of the foregoing, the World Jewish Congress feels that a continua-
tion of Cukurs’ stay in Brazil, which means ultimate Brazilian citizenship for this heinous criminal,
would not be in keeping with the democratic traditions of your country; while the extension of asylum
to a notorious person of his category would be in contravention of the constitution of the International
Refugee Organization (of whose Council you country is a member) which explicitly excludes war
criminals from the benefits of its provisions. We are certain that an investigation of the circumstances
surrounding Cukurs’ entry will indicate that the background of this man was unknown to the Brazilian
government when he was permitted to enter your country. May we at the same request you understand-
ing of the motives and sentiments of those Jews who were involved in the demonstration against
Cukurs. You will understand, I am sure, the deep bitterness of those who have lost their loved ones
through the hands of the Nazis toward one who participated with them in the extermination of these
innocent victims of Hitler’s sadism. May we hear from you in connection with the above?”]

162
CAPÍTULO 3
!

CAPÍTULO

3 O governo brasileiro diante do Caso Cukurs:


pressão, ruído e negociação (1950-59)
O OBJETIVO deste capítulo é examinar como o governo brasileiro se posicionou
diante do Caso Cukurs. Teriam as autoridades governamentais expulsado o “homem
dos pedalinhos”? Seu pedido de naturalização seria aceito? Houve conivência do Es-
tado brasileiro? Todas essas decisões, conforme veremos, seriam tomadas fundamen-
talmente pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, encarregado da permanên-
cia de estrangeiros no Brasil, e pelo Ministério das Relações Exteriores, responsável
por selecionar e autorizar a entrada desses estrangeiros, além de ser o órgão consulti-
vo do país junto às autoridades internacionais. Os setores governamentais, contudo,
não são os únicos protagonistas nas próximas páginas. A presença de Cukurs no Bra-
sil gerou reações de diversos segmentos da sociedade brasileira. Por isso, vamos
acompanhar também a atuação de vários indivíduos e instituições. A Federação das
Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro terá grande destaque neste capítulo. A entida-
de foi a principal voz no Brasil a pressionar do governo federal pela expulsão de Cu-
kurs. Este capítulo aborda, por fim, a participação de órgãos governamentais estran-
geiros, da imprensa, de intelectuais, de setores parlamentares e de outras associações
da coletividade judaica, especialmente aquelas ligadas à esquerda.

3.1. O fim dos pedalinhos e outras derrotas

A primeira medida oficial contra Cukurs ocorreu no âmbito local e afetou direta-
mente o empreendimento dos pedalinhos. No dia 26 de agosto de 1950, o Prefeito do
Rio de Janeiro, Ângelo Mendes de Moraes, comunicou à imprensa que não iria reno-
var a concessão dos pedalinhos, devendo o seu proprietário retirar em até dez dias to-
do o equipamento que se encontrava estacionado na Lagoa Rodrigo de Freitas.1 Cu-
kurs tentou anular essa decisão solicitando com um mandado de segurança. A justiça,
no entanto, deu causa de ganho para a Prefeitura. A licença dos pedalinhos, afinal, era

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Boa parte da imprensa noticiou que o Prefeito Mendes de Moraes tinha cassado o alvará. Na verdade,
o que aconteceu foi um pouco diferente. A empresa Herberts & Cia Ltda. tinha celebrado com a Prefei-
tura do Distrito Federal a exploração do negócio dos pedalinhos em caráter precário – validade de seis
meses – no dia 16 de novembro de 1949. Esse prazo se extinguiu no dia 16 de maio de 1950 e não foi
renovado pela prefeitura. Diário Oficial da União, Seção II, 02/12/1949, p.1440.

163
CAPÍTULO 3
!

do tipo precária, ou seja, válida apenas por seis meses, cabendo somente às autorida-
des municipais decidir a sua renovação.2 No dia 30 de agosto de 1950, antes mesmo
do prazo de dez dias informado à imprensa, os funcionários da prefeitura apreenderam
pedalinhos, barcos, lanchas e enviaram todo o equipamento para um depósito públi-
co.3 O popular negócio de divertimentos de Cukurs chegava ao fim depois de três
anos de sucesso.

No dia 28 de agosto de 1950, enquanto a Prefeitura decidia o futuro dos pedali-


nhos, o Ministério da Justiça recebeu o resultado de uma sindicância feita pelo Depar-
tamento Federal de Segurança Pública (DFSP). A investigação tinha sido iniciada por
força do requerimento de informações que o Deputado Federal Horácio Lafer enca-
minhara ao governo um mês antes. O Major Adauto Esmeraldo, então diretor da Divi-
são de Polícia Política e Social (DPS), subordinado à DFSP, foi o encarregado da
ação. De acordo com o seu relatório, uma vez consultadas várias fontes, sua divisão
nada tinha encontrado oficialmente contra Cukurs. O investigado, de acordo com o
policial, encontrava-se legalmente registrado no país e nunca se envolvera com ativi-
dades políticas. Porém, com relação às acusações de crimes de guerra, Esmeraldo ad-
mitiu que sua equipe se encontrava em “situação difícil para poder julgar a veracidade
ou não com relação às mesmas, não só por falta absoluta de informações, como tam-
bém pelo local em que teriam sido os crimes cometidos”4. O major sugeriu ao Minis-
tério da Justiça acionar o Itamaraty para obter dados mais precisos sobre o passado de
Cukurs, principalmente para confirmar se o letão fora mesmo mencionado pelo Tri-
bunal de Nuremberg, como alguns veículos de imprensa tinham alegado. 5

A sugestão de Esmeraldo foi imediatamente acatada pelo Ministério da Justiça. No


dia dois de setembro de 1950, o então Ministro da Justiça, José Francisco de Bias For-
tes, enviou um ofício ao Ministro das Relações Exteriores, Raúl Fernandes, informan-
do que Cukurs tinha entrado legalmente no país, mas que recentemente a imprensa do
Distrito Federal e “outras vozes de grande repercussão no âmbito político” tinham le-
vantado contra Cukurs as acusações de condenado de guerra e autor de atrocidades e
crimes contra a humanidade. Bias Fortes, assim, pedia àquele ministério ajuda no le-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Diário de Notícias, “Notícias Forenses”, 06/09/1950. 1a seção, p.5.
3
Folha do Rio, “Recolhidos ao depósito público os pedalinhos da Lagoa”, 31/08/1950, pp.1-2
4
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.4-5.
5
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.4-5.

164
CAPÍTULO 3
!

vantamento de informações sobre Cukurs. 6 A Secretaria de Estado das Relações Exte-


riores, por sua vez, transmitiu, no dia 12 de setembro de 1950, duas cartas-telegramas
ao exterior pedindo auxílio. Uma para o consulado brasileiro de Marselha (que dera o
visto a Cukurs) e outra à representação brasileira junto à alta comissão aliada na Re-
pública Federal da Alemanha (agência supranacional que controlava informações sen-
síveis sobre crimes de guerra nazistas). Conforme explicou aquela secretaria, “o refe-
rido indivíduo, que pretende naturalizar-se brasileiro, figura, segundo parece, no rol
dos criminosos de guerra condenados pelo Tribunal de Nuremberg, por ter praticado
crimes que atentam contra a humanidade e punidos pelo Direito Internacional”.7

Imagem&39.&!O!Globo!destaca!o!envolvimento!do!MRE!no!caso.!Fonte:!O!Globo,!07/09/1950,!p.!1.!

Nessa mesma época, o pedido de naturalização 27.996/1950, aberto um ano antes


por Cukurs e sua esposa, chegou finalmente às mãos dos funcionários do Ministério
da Justiça. De acordo com a legislação vigente, eram sete as condições para um es-
trangeiro se tornar brasileiro: I) capacidade civil segundo a lei brasileira; II) residência
contínua no território nacional pelo prazo mínimo de cinco anos, imediatamente ante-
riores ao pedido de naturalização; III) ler e escrever em língua portuguesa; IV) bom
procedimento; VI) ausência de pronúncia ou condenação no Brasil e VII) sanidade
física. Se Cukurs e Milda atendessem a todos esses requisitos, seus pedidos seriam
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.35-36.
7
AHI-RJ. Missão Diplomática Brasileira em Bonn: Carta Telegrama 41; AHI-RJ. Consulado Brasileiro
em Marselha: Carta Telegrama 35.

165
CAPÍTULO 3
!

protocolados, analisados por outros setores do ministério e encaminhados ao Presi-


dente da República, a quem competia a palavra final sobre pedidos de naturalização.8

Os dois pedidos não passaram sequer da primeira instância. O oficial administrati-


vo que checou a documentação de Cukurs e Milda registrou que a instrução do pro-
cesso estava incompleta. O material não estava devidamente selado, faltavam cópias
das carteiras de identidade, prova de profissão, atestado de sanidade mental, atestado
de sanidade física e sindicância policial. No entanto, esses documentos seriam o me-
nor dos problemas para os dois naturalizandos: bastaria apresentá-los ao Ministério da
Justiça para dar prosseguimento ao pedido. Isso porque o oficial percebeu que ne-
nhum dos dois imigrantes tinha os cinco anos de residência contínua no país. Tendo
chegado ao Brasil no dia 4 de março de 1946, eles tinham apenas 4 anos e seis meses.
Ou seja: eles deveriam esperar mais seis meses caso quisessem pedir novamente a na-
turalização, além de providenciar os documentos faltantes.9

No início de setembro de 1950, Cukurs sofreu um novo revés, o terceiro em menos


de um mês. No dia oito daquele mês, o Ministério da Aeronáutica cassou sua carta de
piloto de recreio.10 Segundo os militares, a aeronave que Cukurs usava para oferecer o
serviço de táxi-aéreo no Rio de Janeiro não se encontrava devidamente regularizada.
O irônico neste caso é que o referido avião estava registrado no nome de Alberto Mar-
tins Torres, antigo comandante da Força Expedicionária Brasileira, condecorado pelos
governos brasileiro e americano por sua atuação na Segunda Guerra Mundial.11 Se-
gundo afirma A Águia do Báltico, nome do blog editado pelo filho de Cukurs, Torres
era amigo da família e tinha vendido o avião para Cukurs alguns anos antes12.

Uma vez que o pedido de naturalização de Cukurs fora interrompido, abriu-se es-
paço para uma outra reinvindicação: a sua expulsão do território nacional. Em discur-
so no Congresso Nacional, o deputado federal Hermes Lima (PTB) tentou convencer

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
BRASIL. Lei Nº 8.818, de 18 de setembro de 1949. Regula a aquisição, a perda e a reaquisição da
nacionalidade, e a perda dos direitos políticos. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio
de Janeiro, DF, Ano. LXXXVIII, Nº 216, 18 de setembro de 1949. Seção I, pp.13465-13467.
9
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.32-33.
10
BRASIL, Despachos do Diretor Geral Interino, de 8 de setembro de 1950. Processo S-212-50, Cas-
sação da Carta de Piloto de Recreio Nº.7.127. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio
de Janeiro, DF, Ano. LXXXIX, Nº.210, 12 de setembro de 1950. Seção I, p.13443.
11
Última Hora, “Mensagem através do baião ao aviador beligerante”, 26/09/1957, p.7
12
A Águia do Báltico, “Águias da Letônia em Céus Brasileiros”, 12/07/2008. Disponível em:
http://herbertscukurs.blogspot.com.br/2009/07/aguias-da-letonia-em-ceus-brasileiros.html . Acesso em:
18/04/2015.

166
CAPÍTULO 3
!

seus colegas de tribuna sobre a importância de banir Cukurs do país. “Não é possível
que o Brasil, com sua tradicional hospitalidade, com sua tradicional doçura de manei-
ras, incorpore à sua vida um homem acusado de tais atrocidades e de tais crimes.” Se-
gundo Lima, que assumiria anos mais tarde a presidência do Supremo Tribunal Fede-
ral, isso nada tinha a ver com a perseguição a um indivíduo, “mas porque a consciên-
cia democrática do país não pode permitir que um criminoso de guerra manche a vida
brasileira com a sua presença”. Cukurs, nas palavras do deputado, deveria ser “re-
cambiado para a Alemanha” e entregue aos tribunais daquele país, pois “é o nazismo
que se deseja punir, expulsando da vida brasileira um elemento integrante dos seus
quadros e responsável pelas abominações a que, desta tribuna, me acabo de referir”. 13

Imagem&40.&&A!imprensa!e!a!o!imigrante!“indesejável”.!Fonte:!Diário!de!Notícias,!23/09/1950.!1a!Seção,!p.4

Algumas entidades da sociedade civil organizadas também pediram o mesmo. No


dia 30 de agosto de 1950, o Coronel João Carlos Gross, presidente da Associação dos
Ex-Combatentes, seção do Distrito Federal, publicou no Diário de Notícias uma carta
expressando estar inteiramente de acordo com a ideia de se empregar todos os meios
necessários para levar Cukurs à justiça, além de deixar saber que os seus membros

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Diário do Congresso Nacional, 29/08/1950, p.5876.

167
CAPÍTULO 3
!

continuavam “contrários a toda e qualquer espécie de totalitarismo e prontos a comba-


tê-lo com a mesma energia com que já o fizeram na 2a Grande Guerra”.14

Fora do Rio de Janeiro, o assunto também começou a ser debatido. No dia 15 de


setembro de 1950, a Assembleia Legislativa de Porto Alegre, através de seu presiden-
te, o vereador Ataliba de F. Paz, aprovou em sessão plenária a Indicação no. 12/50,
encaminhada ao então Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, solicitando “a
expulsão do território nacional e encaminhamento ao seu país de origem do criminoso
de guerra letão, Herberts Cukurs”.15 Em São Paulo, o Movimento Paulista-Israelita
Contra o Racismo e o Antissemitismo, idealizado por organizações judaicas paulistas
progressistas, organizaram um grande ato público no Clube Pinheiros para protestar
contra a presença de Cukurs no Brasil e outros episódios antissemitas ocorridos no
país, como a expulsão dos quatro estudantes judeus da PUC-RJ. O evento acabou
cancelado na última hora. Mas isso só inflamou ainda mais os ânimos dos participan-
tes, que marcaram um novo ato para o dia 13 de novembro no Cineteatro Royal.16

Em setembro de 1950, o cenário era, desta forma, claramente desfavorável para a


Cukurs: a Prefeitura do Rio de Janeiro não renovou o alvará de licença dos pedali-
nhos, o Ministério da Justiça não deu prosseguimento ao seu pedido de naturalização
e o Ministério da Aeronáutica, após constatar uma irregularidade em seu negócio de
táxi-aéreo, cassou o seu brevê. Além disso, as acusações sustentadas pela Federação
das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, amplamente reverberadas pela imprensa,
tinham suscitado uma investigação oficial e pedidos de expulsão oriundos de setores
parlamentares e entidades da sociedade civil. A interpretação socialmente difundida
de que Cukurs era protegido das autoridades governamentais brasileiras, pelo menos
nesse primeiro momento do caso, parecia bastante distante da realidade.

3.2. O “homem dos pedalinhos” se defende

Cukurs tentou se defender como pôde. Além do mandado de segurança que tentou
impetrar contra a Prefeitura do Rio de Janeiro, ele passou a ser menos refratário em
relação aos jornalistas que o procuravam. Desde seus tempos de aviador-celebridade
na Letônia, Cukurs tinha plena noção da importância da imprensa para a criação de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Diário de Notícias, “Ainda o caso do letoniano Cukurs - Apoio da Associação dos Ex-Combatentes
às manifestações contra o indigitado criminoso de guerra”, 30/08/1950, 2a Seção, p.6.
15
AN- RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.38-40.
16
Nossa Voz, "Ato público do Movimento Israelita-Paulista...", 03/11/1950, p.8.

168
CAPÍTULO 3
!

uma imagem pública positiva. No próprio Brasil, ele já tinha se beneficiado de tal co-
nhecimento, realizando parcerias com diversos jornais para promover os pedalinhos.
Foi personagem de várias reportagens que o ajudaram não só a criar empatia com a
opinião pública quanto a alavancar os seus negócios. Se ele pudesse usar novamente
os repórteres a seu favor, como fizera no passado, talvez a opinião pública voltasse a
estar do seu lado.

A Revista da Semana foi um dos veículos que deram espaço para Cukurs fazer sua
defesa. “São os dogmas por via de regra seguidos: acusação e defesa”, justificou a re-
vista na longa reportagem intitulada Defende-se o “Homem dos Pedalinhos”. A foto
usada na matéria mostrava o quanto Cukurs havia se preparado para a ocasião: ele e a
família aparecem no sofá de casa. Todos estão sorridentes. Cukurs, Milda e sua filha,
Antinea, visivelmente se produziram para fazer a fotografia. Estão muito bem arru-
mados. Já o seu filho mais novo, Herberts Cukurs Júnior, e o seu primogênito, Gun-
nars, aparecem bem mais à vontade, conferindo ar de simplicidade e simpatia ao gru-
po. “Uma família de assassinos. Aqui estão os criminosos perseguidos pelos israeli-
tas”, teria dito Cukurs à equipe de reportagem momentos antes de tirar a chapa.17

Cukurs contou ao repórter Carlos Tenório, autor da reportagem, que pertenceu ao


exército da Letônia e que combateu os russos pela libertação de seu país. Porém, sub-
linhou que não pertencera a SA ou a Pērkonkrusts, e que jamais fora chefe de campos
de concentração. “Eu nunca fui nazista. Nem coisa alguma. Lutei (...) contra os russos
pela minha pátria. Depois, desgostoso, pedi demissão de meu posto e fui trabalhar
numa fábrica de aviões em Berlim, donde saí em 28 de março, e da Alemanha, em 15
de maio de 1945”. Cukurs reconheceu ainda que durante a ocupação nazista da Letô-
nia andava realmente armado, como havia sido relatado por Rafael Schub em um dos
depoimentos divulgados pela Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro.
Mas isso, segundo explicou, teria uma explicação óbvia: “Eu fui do exército (...) Que
eu estivesse armado, é natural. Estávamos em guerra e eu, como oficial, tinha que an-
dar armado.” Quanto às acusações de antissemitismo, Cukurs contou que em 1939
fizera uma longa viagem com sua esposa Milda à Palestina, durante suas férias do
exército letão. Durante esta viagem, disse que escreveu várias reportagens para um
jornal turco nas quais defendeu os judeus. “Nada tenho de rancoroso aos judeus. (...)
Conheço bem esse povo e nada tenho contra ele. Viajei pelo Saara, toda a Palestina,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Revista da Semana, “Defende-se o Homem dos Pedalinhos”, 02/09/1950, pp. 5-11.

169
CAPÍTULO 3
!

desde a fronteira egípcia: Bersebá, Hebron, Belém, Jerusalém, Mar Morto, Jericó, Jaf-
fa, Telavive e outras colônias judaicas”. O repórter, então, perguntou ao “homem dos
pedalinhos” o que significava o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Pa-
íses Bálticos. Procurando colocar em dúvida a autoridade do referido Comitê, respon-
deu: “Não sei. Eles pegam três ou quatro judeus e fazem um Comitê. E é na lista des-
se que eu figuro como o número 17, na ordem alfabética. E não no de Nuremberg.” 18

Imagem&41.&&Os!Cukurs!na!Revista!da!Semana.!Fonte:!Revista!da!Semana,!02/09/1950.!p.5.!!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Revista da Semana, “Defende-se o Homem dos Pedalinhos”, 02/09/1950, pp. 5-11.

170
CAPÍTULO 3
!

Em outra matéria, publicada no jornal A Noite, Cukurs seguiu essa mesma linha de
defesa. Em primeiro lugar, explicou que só lutou ao lado dos alemães contra os sovié-
ticos por pensar que estes dariam liberdade à Letônia. Cukurs ponderou que não tinha
como saber que todas as promessas dos nazistas fossem “mentira e traição”. O letão
também exibiu diversos documentos à equipe de reportagem: passaportes, declarações
e outros papéis nos quais constavam assinaturas e vistos de autoridades aliadas. “Ora,
como é possível, se eu sou criminosos de guerra, terem [me] deixado sair as autorida-
des aliadas, com documentos em meu nome?”. Milda concordou: “meu marido foi
oficial aviador, sim, mas jamais derramou sangue humano, a não ser na guerra”. No
final, Cukurs, finalizou seu discurso pedindo a compreensão dos leitores da Revista da
Semana: “Se errei, no passado, são erros perdoáveis pelas circunstâncias. Mas jamais
derramei sangue inocente, friamente. Desejo, sobretudo, construir uma nova vida para
meus filhos. Peço somente que me deem a proteção e a justiça das leis deste país.”19

Na época, Mirian Kaicners poderia ter contribuído para a defesa de Cukurs perante
a opinião pública. Cukurs sabia muito bem disso, tanto que relatou à Revista da Se-
mana ter salvado a vida dela durante a ocupação nazista, cuidado de sua alimentação,
escondendo-a em sua própria casa e pintando-lhe o cabelo.20 Miriam, no entanto, não
deu qualquer declaração pública que viesse a seu auxílio. A postura pode parecer es-
tranha, mas ela não é surpreendente. Miriam ainda bastante jovem, mulher, judia, so-
brevivente do Holocausto, ainda se adaptando ao novo país e à comunidade judaica
brasileira. Revelar sua relação com um alegado criminoso nazista era algo extrema-
mente delicado. A partir do final dos anos 1970, muitos judeus que sobreviveram ao
Holocausto vão sistematicamente registrar suas memórias e experiências em livros,
poesias, documentários, entrevistas e em experimentações artísticas. Mas na década
de 1950, o tema ainda era quase sempre tratado com discrição e até mesmo silenciado
por muitos sobreviventes. Nem todos desejavam revelar seus passados em guetos ou
nos campos. Miriam foi tão cautelosa que mesmo hoje, passados quase 70 anos desde
sua chegada ao Brasil, pouco se sabe a seu respeito durante a guerra, inclusive sua
família.21

No depoimento que deu à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro,


Miriam falou muito pouco sobre o que tinha acontecido depois de descobrir as acusa-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
A Noite, “Fala Cukurs...”, 12/09/1950, pp. 24-25.
20
Revista da Semana, “Defende-se o Homem dos Pedalinhos”, 02/09/1950, pp. 5-11.
21
Troca de e-mails com o autor desta tese.

171
CAPÍTULO 3
!

ções que pairavam sobre Cukurs. Ela contou que parou de frequentar a família Cukurs
assim que soube dessas acusações. Além disso, Miriam disse que ignorava se Cukurs
tinha feito parte da Pērkonkrusts. Sabia apenas que ele tinha sido oficial, subordinado
a Weiss e a Arajs (Viktor Arajs), além de chefe de garagem da polícia alemã, segundo
o próprio lhe revelou certa vez.22 Um outro depoimento, contudo, complementar a
esse, dado na mesma ocasião por Justina Grinberg, amiga de Miriam, nos ajuda a
compreender um pouco melhor o seu “silêncio” no caso. Depois que os jornais publi-
caram as acusações contra Cukurs, Grinberg disse ter perguntado o que ela achava a
respeito daquilo tudo. Miriam teria respondido que não sabia nada a respeito e que
tinha medo de Cukurs. Grinberg perguntou o porquê. Miriam, então, teria dito que
temia que Cukurs lhe fizesse algum mal por ela não ter defendido o seu “salvador”.23

3.3. Expulsão e extradição: duas possibilidades

Caso os crimes atribuídos a Cukurs fossem confirmados pelo Ministério das Rela-
ções Exteriores, o ordenamento jurídico brasileiro da época previa duas formas de ba-
nimento de estrangeiros do território nacional: a extradição e a expulsão. A primeira
estava prevista no Art.101 da Constituição Federal.24 Além disso, havia o Art. II da
“Convenção para prevenção e a repressão do crime do genocídio”, de 1948, que com-
prometia seus signatários – entre eles o Brasil – a extraditar os indivíduos acusados do
crime de genocídio.25 Para ocorrer a extradição era necessário, no entanto, que um
país enviasse um pedido formal às autoridades brasileiras. Esse país precisaria reco-
nhecer os crimes cometidos por Cukurs e demonstrar sua jurisdição sobre tais crimes.
O pedido, então, seria encaminhado para o julgamento do Supremo Tribunal Federal.
Havia um prazo legal para isso. Em geral, os países adotavam o prazo de 20 anos.
Depois disso, os crimes eram prescritos, o que só veio a mudar em 1968, quando uma
resolução da ONU tornou qualquer crime de guerra imprescritível.26 Apenas um man-
dado de prisão poderia interromper a prescrição de um crime. Cukurs, desta forma,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.60-65.
23
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.66-67.
24
BRASIL, Constituição Federal de 1946. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de
Janeiro, DF, Ano. LXXXV, Nº. 214, 19 de setembro de 1946. Seção I, p.13059-13075.
25
UNITED NATIONS, Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide.In:
United Nations Treaty Series, nº 1021, Nova Iorque, 9 de dezembro de 1948.
26
Resolução 2391 da Assembleia Geral em 26 de novembro de 1968. Entrada em vigor: 11 de novem-
bro de 1970.

172
CAPÍTULO 3
!

salvo um pedido de prisão, só poderia ser extraditado até 1965 – data de consenso em
relação aos crimes praticados na Segunda Guerra Mundial.

A Letônia, naturalmente, seria a principal interessada na extradição de Cukurs. O


país, contudo, encontrava-se sob julgo soviético. Sua soberania não existia. Ela não
tinha mais representação diplomática oficial e nem sistema de justiça. A União Sovié-
tica, por extensão, poderia reclamar a extradição em seu lugar. Cukurs, afinal de con-
tas, teria se transformado em cidadão soviético. Mas aí entramos em mais um proble-
ma de ordem legal. Como vimos no capítulo passado, o Brasil tinha cortado suas rela-
ções diplomáticas com a União Soviética. E ainda assim, mesmo no curto período em
que essas relações existiam, o embaixador soviético no Brasil afastou essa possibili-
dade.27 Por fim, havia uma terceira opção: a Alemanha. Ainda que Cukurs não fosse
cidadão alemão, ele era acusado de cometer crimes em territórios então administrados
pelo governo alemão. Essa perspectiva fazia sentido. Seria ela, inclusive, que permiti-
ria mais tarde que o austríaco Franz Stangl fosse extraditado para a Alemanha. Porém,
nunca houve tal solicitação por parte do governo Alemão em relação a Cukurs.

Além da extradição, a outra opção que o governo brasileiro tinha para banir um es-
trangeiro de seu território era a expulsão, também prevista na Constituição Federal,
mais especificamente em seu Artigo 143. O governo brasileiro, de acordo com este
artigo, poderia expulsar qualquer estrangeiro de seu território desde que este fosse
considerado “nocivo à ordem pública, salvo se o seu cônjuge for brasileiro, e se tiver
filho brasileiro dependente da economia paterna”.28 Ou seja, caso fosse demonstrado
que Cukurs era nocivo aos interesses nacionais – e o crime de genocídio, caso confir-
mado, era suficiente – as autoridades brasileiras tinham autonomia para forçar sua sa-
ída do país. Essa opção, diferente da extradição, a expulsão não dependia da vontade
ou iniciativa de um governo estrangeiro. Ela dependia exclusivamente do Brasil.

3.4. Problemas e limites da documentação

Enquanto a pressão sobre o governo brasileiro aumentava, a Federação das Socie-


dades Israelitas do Rio de Janeiro tentava levar adiante as estratégias sugeridas por
Israel Scolnicov. Na primeira semana de agosto de 1950, a entidade começou a prepa-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
O Radical, O criminoso que a Rússia não quis extraditar”, 18/08/1950. p. 1/4.
28
BRASIL, Constituição Federal de 1946. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de
Janeiro, DF, Ano. LXXXV, Nº.214, 19 de setembro de 1946. Seção I, p.13059-13075.

173
CAPÍTULO 3
!

rar um dossiê detalhado cujo intuito era convencer o Ministro da Justiça, a expulsar
Cukurs do país. Para reforçar a efetividade deste documento, Scolnicov e Alfred Gar-
tenberg, também membro executivo da federação, enviaram uma carta aos represen-
tantes do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos pedindo
que estes lhes encaminhassem todos os depoimentos originais de Abram Shapiro,
Dawid Fiszkin, Max Tukacier e Raphael Schub. Scolnicov e Gartenberg, que até
aquele momento tinham apenas cópias dos documentos, sublinharam que todos os
quatro testemunhos deveriam estar em papel timbrado daquele comitê e legalizado
por uma autoridade britânica reconhecida ou pelo consulado brasileiro em Londres.29

No início de setembro de 1950, Scolnicov e Gartenberg receberam uma carta de


Friedrich Brassloff, Assessor Jurídico do Congresso Judaico Mundial de Londres.
Brassloff – que vai se tornar um dos personagens desta tese daqui em diante – expli-
cou aos seus interlocutores brasileiros que o Comitê de Investigações dos Crimes Na-
zistas nos Países Bálticos tinha sido recentemente extinto como uma entidade inde-
pendente. Porém, isso não seria um problema, haja vista que toda sua documentação
tinha sido transferida para o seu escritório. Brassloff, ele mesmo antigo membro do
extinto comitê, anexou à sua carta os quatro depoimentos originais solicitados por
Scolnicov e Gartenberg, além de um quinto depoimento, de Salomão Gerstein, outro
letão sobrevivente do Holocausto, recentemente localizado nos Estados Unidos.30

Brassloff entregou, deste modo, tudo o que a Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro tinha solicitado. Isso, porém, não livrou Scolnicov e Gartenberg de
um profundo mal-estar. Ambos ficaram extremamente frustrados e preocupados com
o material anexado à carta. Os depoimentos originais de Fiszkin, Shapiro e Tukacier
continham apenas o carimbo do Departamento Legal do Comitê Central dos Judeus
Libertados; nenhuma das assinaturas neste documento tinha sido reconhecida por
qualquer autoridade competente. O depoimento de Gerstein estava em situação ainda
pior, pois além de também carecer de assinatura reconhecida, ele sequer tinha um ca-
rimbo institucional. O depoimento de Rafael Schub, por fim, era o mais problemático
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.40-41.
30
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.86-98. No
depoimento, reconhecido por um tabelião público americano, Gertsein disse que Cukurs pertenceu a
Pērkonkrusts, que perseguiu, pilhou, maltratou e executou judeus durante o verão de 1941. “Um núme-
ro considerável de judeus assassinados na liquidação do Gueto de Riga na noite de novembro para de-
zembro de 1941 foi morto pelo bando chefiado por Herberts Cukurs, sendo que este indivíduo bestial
matou pessoalmente a tiros centenas de pessoas. Durante esta ação pereceu toda a minha família”. Es-
se depoimento pode ser visto em: AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.57-58.

174
CAPÍTULO 3
!

do ponto de vista jurídico. Ele estava escrito à mão, em ídiche e em folhas de caderno
escolar, sem carimbo e sem assinatura reconhecida. 31 Em nenhum momento
Scolnicov e Gartenberg duvidaram da autenticidade dos cinco documentos. Muito
menos das palavras dos sobreviventes ou de sua importância. A frustração de ambos
derivava do fato de que tais documentos, da maneira que tinham sido produzidos, não
tinham valor legal. Gartenberg e Scolnicov sabiam que apresentá-los naquele estado
tão pouco formal ao Ministro da Justiça seria correr um risco considerável.

A falta de formalidade não surpreende quando pensamos na estrutura dos comitês e


associações judaicas responsáveis por colher esse tipo de material no imediato pós-
guerra. Essas entidades, em sua maioria eram não-governamentais, fragmentadas,
formadas quase sempre por antigos internos de guetos e campos de concentração.
Eram pessoas que escaparam da morte e agora, uma vez terminada a guerra, investiam
todos os seus recursos, inclusive financeiros, que já eram parcos, para tentar fazer jus-
tiça. O problema é que esse trabalho surgia em meio a um verdadeiro caos e quase
nunca era valorizado pelas forças aliadas. Sem apoio decisivo, essas organizações en-
contravam severas dificuldades para realizar seus trabalhos. Tais dificuldades iam
desde falta de recursos financeiros até a falta do conhecimento necessário para produ-
zir documentos que pudessem mais tarde ser utilizados por tribunais competentes. O
caso das entidades que recolheram os depoimentos contra Cukurs mostram bem isso.

No dia quatro de setembro de 1950, Scolnicov e Gartenberg enviaram uma nova


carta a Brassloff enumerando todas as suas hesitações. Os dois disseram estar bastante
desapontados com a “simplicidade” e a “falta do aspecto legal” dos depoimentos ori-
ginais. Assim escreveram: “Nós esperávamos alguma coisa mais autêntica e mais con-
tundente no que diz respeito à aparência do material, alguma coisa que nós, franca-
mente, pudéssemos submeter às autoridades brasileiras, já envolvidas no caso”.32

A prudência de Scolnicov e Gartenberg era justificada. E isso não tinha em vista


apenas a má impressão que os depoimentos originais certamente causariam no minis-
tro. Fundamentar o pedido de expulsão de Cukurs em documentos sem validade jurí-
dica e, por isso, facilmente questionáveis, poderia colocar em risco a credibilidade da
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, tanto em face às autoridades
brasileiras, quanto no interior da coletividade judaica, onde a entidade travava uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.95-98.
32
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fls.100-101.

175
CAPÍTULO 3
!

luta por legitimidade e reconhecimento. A entidade existia há menos de três anos. Seu
poder simbólico ainda era muito limitado. O Caso Cukurs era a sua primeira grande
ação com visibilidade pública, envolvendo desde já a imprensa, as autoridades gover-
namentais e a opinião pública. Era ainda a primeira grande causa levantada por uma
instituição judaica no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. Havia, portanto,
muita coisa a perder. Se havia outros criminosos nazistas no Brasil, como se suspeita-
va seriamente na época, como poderia a Federação das Sociedades Israelitas do Rio
de Janeiro exercer algum papel de relevo nestes casos, em um futuro próximo, se sua
reputação no Caso Cukurs fosse comprometida?

Imagem&42.&Depoimento!de!Rafael!Schub.!Fonte:!Yad!Vashem!Archives.!Documentations!about!Trials!of!
War!Crimes:!RG:O.4/FN:154.fls.95X98.

176
CAPÍTULO 3
!

Procurando mostrar a Brassloff o quanto aquela situação era grave, Gartenberg e


Scolnicov informaram que naquela manhã em que escreviam, Scolnicov tinha se en-
contrado com o Ministro da Justiça em exercício e este, mostrando a maior boa von-
tade em atendê-los, tinha solicitado mais documentos originais para que se pudesse
dar sequência às investigações e, consequentemente, expulsar Herberts Cukurs do pa-
ís. Com base nisso, escreveram: “Você pode imaginar o quanto nós estávamos ansio-
sos para fazer tudo o que fosse possível, exceto entregar a ele os documentos que ti-
nham sido enviados para nós, uma vez que isso teria um efeito contraproducente”.33

O encontro relatado por Scolnicov e Gartenberg poderia ser um blefe político a fim
de chamar a atenção de Brassloff para a gravidade da situação. Mas não era. Em um
memorando interno, Scolnicov registrou que naquele quatro de setembro de 1950, em
companhia de Leonas Zeigarnikas, também diretor da Federação das Sociedades Isra-
elitas do Rio de Janeiro, ele tinha se encontrado com Lopo Coelho, então Chefe da
Casa Civil da Presidência da República, que substituía Bias Fortes, o Ministro da Jus-
tiça, que estava fora do Rio de Janeiro. A visita, relatou Scolnicov, tinha sido arranja-
da por um conhecido chamado Jacob Scherichlevsky, e a apresentação entre eles fora
feita por Luiz Cantuária Medronha, oficial de gabinete do Chefe de Polícia. Scolnicov
registrou que Coelho, já a par do caso, inteirou-se dos detalhes “e fez-nos sentir o in-
teresse do Ministro da Justiça na expulsão de Cukurs”. Foi neste encontro que Coelho
teria cobrado um memorando acompanhado da documentação pertinente, material que
ele, pessoalmente, faria chegar a Bias Fortes, tão logo este retornasse de viagem.34

O registro destes acontecimentos é muito interessante. Em primeiro lugar, porque a


Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro estava realmente em uma situa-
ção pouco confortável. O governo brasileiro tinha solicitado a documentação original
e esta, como sabemos agora, não tinha qualquer aspecto jurídico-formal. Entregá-la ao
Ministro da Justiça poderia, além de causar constrangimento, inviabilizar a expulsão
de Cukurs. Em segundo lugar, mas não menos importante, esse registro nos mostra
que as relações com o governo não eram distantes, frias ou impessoais. Pelo contrário,
a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro tinha encontrado um canal
direto com as autoridades brasileiras. Parecia haver vontade política. O Ministério da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.100. [Orig-
inal: “You imagine, that we were anxious to do all for not handing him over the above captured docu-
ments you sent to us, able to have contra producing effect.”]
34
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154.fl.100.

177
CAPÍTULO 3
!

Justiça, por intermédio do Chefe da Casa Civil, com a anuência do próprio ministro da
pasta, tinha escutado atentamente as reinvindicações da entidade e sinalizado com a
possibilidade de dar entrada no processo de expulsão de Cukurs. Mais do que isso, os
membros do ministério estavam negociando com os representantes da entidade judai-
ca carioca aquilo que consideravam necessário para abrir o processo de expulsão.

Uma vez decidido que não entregariam os depoimentos originais ao governo brasi-
leiro, Gartenberg e Scolnicov propuseram o seguinte ao Congresso Judaico Mundial:

Por favor, envie-nos, urgentemente, no próximo malote aéreo, uma


carta escrita em papel timbrado do Comitê de Investigações dos
Crimes Nazistas nos Países Bálticos (não sendo aconselhável decla-
rar a extinção deste mencionado comitê) na qual vocês declaram ter
os depoimentos originais de Schub, Shapiro, Tukacier, Fiszkin,
Gerstein e Kliots,35 cujas traduções em inglês vocês incluem como
anexo. Por favor, coloquem a assinatura do Dr. Brassloff nesta carta
e legalize sua assinatura por meio de um tabelião público e pelo
consulado brasileiro. Os depoimentos devem ser datilografados em
papel timbrado do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos
Países Bálticos. Além disso, faça reconhecer a exatidão da tradução
e peça ao Dr. Brassloff que reconheça as assinaturas das testemu-
nhas.36

Conscientes de que seu pedido poderia soar incomum, encerraram a carta com a
mensagem: “por favor, não estranhe o nosso pedido, mas você deve entender que Cu-
kurs não está inativo, desprotegido e nós temos que vencer muitos obstáculos antes de
chegarmos a um bom termo”.37 Em outras palavras, a Federação das Sociedades Israe-
litas do Rio de Janeiro, por intermédio de Scolnicov e Gartenberg, queria consertar a
falta de formalidade dos depoimentos transpondo-os para um papel timbrado!Comitê
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Esse nome, aparentemente uma outra testemunha, não volta a aparecer na documentação sobre Cu-
kurs, sendo provavelmente um equívoco de Scolnicov e Gartenberg.
36
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.101. [Orig-
inal: “Please, send us by next airmail and urgently a letter written on a sheet of the Committee for In-
vestigations of Nazi Crimes in the Baltic Countries (as it would not be advisable to declare here the
extinction of the mentioned committee) in which letter you declare to possess the original statements of
the witnesses Schub, Shapiro, Tukacier, Fiszkin, Gerstein and Kliots, which English translations you
are annexing to the present letter. Please, let the letter signed by Dr. Brasloff and legalize his signature
by a public notary and the Brazilian Consulate. The statements let type on sheets of the Committee for
Investigations of Nazi Crimes in the Baltic Countries and testify the exactitude of the translation and
the legality of the witnesses signatures by Dr. Brasloff.”]
37
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:154. fl.101. [Orig-
inal: “Please, don’t look queer on our request, but you must understand that Cukurs is not inactive nor
without protection and we have to overcome a lot of obstacles carrying the matter to a good end.”]

178
CAPÍTULO 3
!

de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos e devidamente assinado por
seus representantes. O problema, como vimos, era que tal comitê não existia mais.

De qualquer forma, Brassloff estava se revelando até ali um interlocutor esforçado


e sensível às solicitações que lhe chegavam do Brasil. No dia 22 de setembro de 1950,
ele deu mais uma amostra disso ao sinalizar que tudo estava indo bem. O representan-
te do Congresso Judaico Mundial de Londres confirmou a Scolnicov e Gartenberg que
tinha conseguido localizar o antigo chairman da extinta entidade, H. Michelson, e ga-
rantiu-lhes que toda a documentação seria enviada para eles o mais rápido possível.38

Enquanto esse material não chegava, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio
de Janeiro enviou a Lopo Coelho, no dia 26 de setembro de 1950, um memorial sobre
Cukurs contendo um resumo de todos os sobreviventes. Não era aquilo que tinham
prometido ao ministério, mas pareceu uma opção melhor do que atrasar ainda mais o
envio da peça e perder o momento favorável do governo. Nesse dossiê, a entidade
também fez um inventário dos crimes atribuídos a Cukurs e dos principais protestos
publicados nos últimos dois meses pela imprensa e por parlamentares brasileiros. O
intuito era convencer Bias Fortes, Ministro da Justiça, como era “unânime a revolta da
opinião pública brasileira contra o asilo e hospitalidade que goza aqui um assassino de
dezenas de milhares de pessoas.”39 O documento sublinhou ainda que tanto a Consti-
tuição Brasileira quanto a Convenção de Genocídio das Nações Unidas, assinada pelo
Brasil em 1948, proviam o fundamento legal para expulsar Cukurs.40

Os documentos na forma que Scolnicov e Gartenberg tinham pedido a Brassloff


chegaram no dia 25 de outubro de 1950. O Congresso Judaico Mundial de Londres
tinha feito tudo o que foi pedido pelos dois: traduziu os depoimentos do ídiche e do
alemão para o inglês, colocou tudo no papel timbrado do Comitê de Investigações dos
Crimes Nazistas nos Países Bálticos, cada qual assinado por Michelson, com firma
reconhecida por tabelião público e pelo consulado brasileiro. A Federação das Socie-
dades Israelitas do Rio de Janeiro, por sua vez, traduziu o material para o português e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.3-4.
39
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.43-62.
40
No depoimento, reconhecido por um tabelião público americano”, Gertsein diz que Cukurs pertenceu
à Pērkonkrusts, que perseguiu, pilhou, maltratou e executou judeus durante o verão de 1941. “Um nú-
mero considerável de judeus assassinados na liquidação do Gueto de Riga na noite de novembro para
dezembro de 1941 foi morto pelo bando chefiado por Herberts Cukurs, sendo que este indivíduo bestial
matou pessoalmente a tiros centenas de pessoas. Durante esta ação pereceu toda a minha família”. AN-
RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.57-58.

179
CAPÍTULO 3
!

o enviou para apreciação do Ministério da Justiça. 41 Continuava não sendo exatamen-


te o que o Ministro da Justiça tinha pedido, mas foi o que conseguiram de melhor em
curto tempo para sair da difícil situação em que estavam.

Imagem&43.&Imprensa!anuncia!a!chegada!dos!documentos.!Fonte:!Tribuna!da!Imprensa,!03/08/1950,!p.8.!

3.5. Evidências insuficientes: caso estagnado

No dia seis de novembro de 1950, Leonas Zeigarnikas, diretor da Federação das


Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, encontrou-se pessoalmente com Bias Fortes,
Ministro da Justiça. O principal objetivo do encontro era saber se os novos documen-
tos sobre Cukurs tinham sido devidamente entregues ao ministro. Ao se referir ao en-
contro, Zeigarnikas registrou que Bias Fortes tinha se mostrado perfeitamente familia-
rizado com o caso. O ministro comentou ainda que os devidos esclarecimentos já ti-
nham sido solicitados ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Bastava, então,
esperar o resultado daquelas investigações. Zeigarnikas, no entanto, não se contentou
com a resposta e insistiu junto ao Ministro da Justiça. Foi quando, então, Bias Fortes
lhe teria feito uma revelação bastante sincera:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. Fls.49-57.

180
CAPÍTULO 3
!
Após certa hesitação, o Senhor Ministro declarou que ele, pessoal-
mente, não tinha visto os elementos do dossiê, mas sim o Consultor
Jurídico, a quem ele o entregou, tendo este emitido parecer verbal,
opinando pelo pedido de esclarecimento ao Itamaraty. Continuando
a insistir, para obter uma resposta mais concisa quanto às possibili-
dades de expulsão, o Senhor Ministro declarou que, conforme a
opinião expressa pelo Consultor Jurídico, seriam insuficientes as
provas apresentadas para justificar a expulsão. Acrescentou o Se-
nhor Ministro que caso for despachada a ordem de expulsão, Cukurs
poderia entrar com um mandado de segurança, que, se fosse conce-
dido, colocaria o Ministério da Justiça numa delicada situação.
Aconselhou a aguardar os esclarecimentos do Itamaraty.42

Ficava claro, assim, que o Ministro da Justiça tinha delegado a seu staff as primei-
ras análises sobre o caso, como era, aliás, prática comum em todos os ministérios. De-
zenas de assuntos, uns mais urgentes do que outros, chegavam às mãos do Ministro da
Justiça todos os dias, sendo tarefa do consultor jurídico, entre outros funcionários,
realizar pré-avaliações que ajudariam o chefe da pasta a tomar suas decisões em um
momento posterior. Poderia ser frustrante a informação de que o ministro não tinha
lido o material, mas isso não era nada anormal. De todo modo, Bias Fortes continuava
bastante receptivo à Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. E o fato
do consultor jurídico já ter apreciado o material também demonstra que o caso conti-
nuava evoluindo. O grande problema, conforme relatado no trecho anterior, era o fato
de que os depoimentos tinham sido interpretados como “insuficientes” para justificar
a abertura de um pedido de expulsão contra Cukurs. Os temores de Scolnicov e Gar-
tenberg tinham se concretizado. Os documentos, embora agora tivessem a chancela de
uma instituição, não eram os originais inicialmente solicitados. Com isso, as investi-
gações capitaneadas pelo Itamaraty ganhavam um peso ainda maior.

No dia 14 de novembro de 1950, uma semana depois do encontro com Gartenberg,


o Ministério da Justiça emitiu uma primeira apreciação oficial sobre o Caso Cukurs.
Essa apreciação foi feita pelo Departamento de Interior e Justiça. O DIJ, como tam-
bém era conhecido, fora criado pelo decreto-lei nº. 5.630, de 29 de junho de 1943 e
era um órgão subordinado diretamente ao Ministro de Estado, tendo por finalidade
estudar questões relativas à cidadania, nacionalidade, expulsão, extradição e perma-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.220.

181
CAPÍTULO 3
!

nência de estrangeiros, entre outras questões.43 Ele não tinha a palavra final dentro da
pasta da Justiça, mas era uma divisão com enorme peso nas decisões do ministro e,
consequentemente, nas decisões do Presidente da República. Essa primeira apreciação
foi redigida por Adhemar Marcelino da Silva, oficial administrativo do DIJ:

Em que pesem as vozes autorizadas que ecoaram na opinião públi-


ca, fazendo a Herberts Cukurs as mais graves acusações e imputan-
do-lhe os mais abomináveis delitos como genocida e criminoso de
guerra, o fato é que os elementos constantes dos autos não induzem
à convicção de ser aquele alienígena o agente daqueles crimes. (…)
Como se vê, até agora, nada se prova nos autos capaz de caracteri-
zar a nocividade de Herberts Cukurs aos interesses do país e, em
consequência, determinar a sua expulsão do território nacional. Só a
resposta à sindicância dirigida ao Ministério das Relações Exterio-
res habilitará esta Secretaria de Estado a agir com segurança e justi-
ça. Nessas condições, dadas as razões expostas, proponho: a) se
aguarde até a ulterior deliberação, a resposta ao aviso cuja cópia se
acha à folha 34; b) se informe à Câmara dos Deputados do que
ocorre.44

O texto de Silva foi, em seguida, aprovado por Juracy Costa de Almeida, chefe da
Seção de Permanência e Expulsão de Estrangeiros da Divisão de Assuntos Políticos
do DIJ (DAP), e ratificada por José Vieira Coelho, Diretor-Geral do DIJ. 45 O seu teor
não trazia qualquer novidade. Ele apenas oficializou o que Bias Fortes tinha adiantado
a Zeigarnikas uma semana antes: os depoimentos contra Cukurs não tinham sido sufi-
cientes para justificar a abertura de um pedido de expulsão de Cukurs, devendo-se es-
perar o resultado das diligências do Ministério das Relações Exteriores.

Antes de tomar conhecimento do despacho do Ministério da Justiça, mas já ciente


da insuficiência das evidências apresentadas, Scolnicov foi ao gabinete do Senador
Hamilton Nogueira (UDN) em busca de seu apoio para a expulsão de Cukurs. No-
gueira, embora tivesse sido um militante católico bastante conservador na década de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
BRASIL. Lei Nº 5.630, de 29 de junho de 1943. Transforma a Diretoria da Justiça e do Interior, do
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em Departamento do Interior e da Justiça e dá outras pro-
vidências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de Janeiro, DF, Ano. LXXXII,
Nº.151, 1º de julho de 1943. Seção I, p.10083.
44
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712.fls.66-67.
45
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712.fls.68-71.

182
CAPÍTULO 3
!

1930 – tendo convivido e sido discípulo de autores de ideia antissemitas –,46 havia se
transformado nos últimos anos em uma personalidade muito benquista por setores ju-
daicos do Brasil graças a seu apoio a várias “causas judaicas”. Em 1946, por exemplo,
ele fez parte do Comitê Brasileiro Pró-Palestina, organização que reunira políticos,
intelectuais e escritores com a missão de informar a opinião pública do país sobre a
partilha da Palestina e de obter o apoio do Brasil na votação que em breve ocorreria
na ONU sobre a questão.47 O historiador Nachman Falbel conta que, em certa ocasião,
Nogueira foi aclamado por um discurso que fez no Parlamento, “sugerindo que o Bra-
sil apoiasse a proposta do Presidente Truman para que 100.000 judeus refugiados fos-
sem admitidos na Palestina”.48 Em outra oportunidade, na Assembleia Constituinte de
1946, o senador da UDN fez um longo pronunciamento condenando o antissemitismo
disseminado pelo nazismo durante a guerra.49 Desafeto de Vargas, acusou ainda o
Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão de censura intelectual criado pelo
Estado Novo, de ter sido um “porta-voz da Alemanha nazista”.50

No entanto, apesar do histórico de “bons serviços” prestado às “causas judaicas”,


Hamilton Nogueira se mostrou bem pouco sensível ao pedido de Scolnicov. O relator
do Caso Cukurs na federação descreve assim seu encontro com Nogueira:

Hoje, às 10 horas, fui recebido pelo Senador Hamilton Nogueira, em


seu gabinete. Mostrou-se conhecedor do assunto Cukurs e da razão
da minha visita, apresentado que fui, telefonicamente, pelo Sr. Samu-
el Malamud. Declarou-se, formalmente, contrário a qualquer proce-
dimento contra Cukurs, e isso por entender que assim defende melhor
as tradições liberais do Brasil, que a todos deve conceder asilo. Afir-
mou estar convicto da veracidade das acusações que pesam sobre
Cukurs, mas entende que todo homem tem direito a regenerar-se, e
que o Brasil deve favorecer essa oportunidade. Deixei nas mãos do
Dr. Hamilton cópia do memorando entregue ao Ministro Bias Fortes
e um exemplar das traduções dos depoimentos recebidos de Lon-
dres.51

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
46
A historiadora Taciana Wiazovski relaciona Nogueira a publicações e posições antissemita dentro do
catolicismo conservador. Cf. WIAZOVSKI, Taciana. O mito do complô judaico-comunista no Brasil:
gênese, difusão e desdobramentos (1907-1954). São Paulo: Editora Humanitas, 2008. pp.94-100.
47
FALBEL, Nachman. Judeus no Brasil: estudos e notas. São Paulo: Humanitas; EDUSP, 2008. p.430.
48
Ibidem. p.419.
49
BRASIL, Pronunciamento de Hamilton Nogueira. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Rio
de Janeiro, DF, 10 de julho de 1946. p.3417.
50
HAMILTON NOGUEIRA (Verbete) Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) da FGV.
51
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.214.

183
CAPÍTULO 3
!

Em novembro de 1950, o Caso Cukurs encontrava-se estagnado. Os depoimentos


de Shapiro, Tukacier, Schub e Fiszkin não tinham surtido o resultado esperado. Foram
considerados insuficientes. Além disso, Hamilton Nogueira, aliado recente da coleti-
vidade judaica, decidiu não se envolver com a expulsão de Cukurs, ao passo que o
Ministério da Justiça continuava esperando o retorno do Itamaraty antes de tomar
qualquer decisão. Essa situação fez com que a imprensa fosse gradualmente perdendo
interesse no caso. O cenário só não foi pior porque os setores “progressistas” da cole-
tividade judaica do Rio de Janeiro e de São Paulo continuavam mobilizados. O Comi-
tê Unido costurou a adesão de várias instituições judaicas e não judaicas em uma fren-
te única pela expulsão de Cukurs. Em São Paulo, no dia 13 de novembro de 1950, em
frente ao Cineteatro Royal, aconteceu o protesto que fora inicialmente marcado para o
Clube Pinheiros.52 A lista de participantes do ato era grande, reunindo ao todo 17 en-
tidades: Associação Brasileira de Escritores (SP), Associação de Cultura Judaica de
São Paulo, Associação Feminina Vita Kempner, Centro de Cultura e Progresso, Cír-
culo Israelita, Centro Acadêmico XI de Agosto, Departamento da Juventude do
C.C.P., Federação Espírita do Estado de São Paulo, Escola Scholem Aleichem, Insti-
tuto Cultural Israelita Brasileiro, Grêmio Sinai, Sociedade Pró-Estudante, Teatro Ex-
perimental Negro, União Nacional de Estudantes, União Paulista de Estudantes Se-
cundários, União dos Israelitas Poloneses de São Paulo e Sindicato dos Jornalistas.53

A participação de setores não judaicos tinha muito a ver com a nova concepção so-
ciológica do Brasil. Integração, tensão racial e preconceito eram os principais temas
discutidos por intelectuais, acadêmicos e ensaístas na época. Essa “nova sociologia”,
representada por intelectuais como Florestan Fernandes, Costa Pinto, Guerreiro Ra-
mos, René Ribeiro, entre outros, procurava pensar o Brasil a partir de suas idiossin-
crasias. Buscam perceber no seu passado o início das assimetrias sociais e políticas
que configuravam o presente, sem perder de vista a persistência de estruturas sociais
arcaicas e conservadoras. Muitas destas mazelas, presentes e passadas, tinham como
ponto de injunção questões como o preconceito de cor, gênero, “raça” e classe social.
Essas preocupações ganharam grande impulso no mundo inteiro no imediato pós-
guerra, à luz dos crimes do nacional-socialismo, e no Brasil também, particularmente,
após a divulgação dos resultados da pesquisa patrocinada pela Organização das Na-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.75.O grupo enviou alguns dias depois
um telegrama ao Ministério da Justiça formalizando esse pedido.
53
Nossa Voz, “Ato Público contra o Antissemitismo”, 09/11/1950, p.10.

184
CAPÍTULO 3
!

ções Unidas a respeito das relações raciais no país. Esta pesquisa foi encomendada de
modo a provar o lugar-comum de que o Brasil era um verdadeiro paraíso racial, lugar
onde o racismo não tinha vez e onde o negro tinha as mesmas oportunidades que os
brancos. Os resultados encontrados, porém, ao invés de confirmarem essa até então
hipotética harmonia racial, evidenciaram justamente o seu oposto. Caía um mito.54

Todas essas mudanças sociais e políticas tiveram seu o epicentro no âmbito inte-
lectual, mas também reverberaram no meio público. É o caso, por exemplo, do Centro
Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes ou ainda do Teatro Experimen-
tal do Negro (TEN), fundado em 1944 por Abdias do Nascimento e que contou com a
militância decisiva de Guerreiro Ramos. Racismo e antissemitismo, nesta conjuntura,
encontram-se em perfeita harmonia. Não à toa, a Lei Afonso Arinos, promulgada em
1951, responsável por criminalizar o racismo no Brasil, acabaria sendo interpretada
por muitos judeus e diversas organizações judaicas também como uma conquista que
lhes dizia respeito.55 E não fortuitamente, o movimento contra Cukurs em São Paulo
era chamado de Movimento Israelita Paulista contra o Racismo e o antissemitismo.56

3.6. O pragmatismo jurídico de Scolnicov

Em uma reunião da junta executiva da Federação das Sociedades Israelitas do Rio


de Janeiro, realizada no dia 22 de novembro de 1950, Scolnicov apresentou um relató-
rio estritamente confidencial no qual ele fazia um balanço das últimas ações da enti-
dade no Caso Cukurs. 57 Neste relatório, sobressai-se o seu pragmatismo jurídico. Ele
avaliou, por exemplo, que embora Brassloff tivesse conseguido enviar os depoimentos
de uma forma mais aceitável, tal formalidade não existia no Brasil e nem tinha signi-
ficação jurídica. Os depoimentos, completo, tinham sido prestados perante autorida-
des não judiciais, sendo que o depoimento de Salamão Gerstein contava apenas com a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, 1999.
55
BRASIL. Lei Nº 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática de atos
resultantes de preconceitos de raça ou cor. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Rio de
Janeiro, DF, Ano. XC, Nº.156, 10 de julho de 1951. Seção I, p.10217.
56
Sobre o contexto de elaboração e promulgação da lei Afonso Arinos e suas diferentes recepções con-
ferir: GRIN, Monica; MAIO, Marcos Chor. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos
de Melo Franco. Topoi (Rio de Janeiro), v. 14, n. 26, p. 33-45, 2013.
57
Esse relatório foi apresentado na reunião da junta executiva da Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro no próprio dia 22 de novembro de 1950, estando presentes além do presidente da
instituição, Fritz Feigl, os membros Leonas Zeigarnikas, A. Keller, Izydor Silberfeld e Sucher Leder-
man, além do diretor-administrativo, Alfred Gartenberg. Fonte: Ata da Federação das Sociedades Israe-
litas do Rio de Janeiro, Reunião Executiva, 22/11/1950, fls.84-85.

185
CAPÍTULO 3
!

simples chancela de um notário norte-americano. Scolnicov também reclamou da re-


cepção da imprensa que, na sua visão, tinha se desinteressado pelo caso, além das re-
servas manifestadas pelas autoridades. Essas reservas, disse, chocaram a todos.58 Evo-
cando uma análise “à luz objetiva da documentação”, Scolnicov registrou:

Por mais insuspeitas que sejam para nós as testemunhas com cujos
depoimentos fomentamos as denúncias, e por maior que seja nossa
certeza de estarmos frente a um genocida, não possuímos elementos
juridicamente capazes de lançar sobre alguém a acusação de crimino-
so ou, mais especificamente, criminoso de guerra. Nenhum jurista, e
já não digo nenhum tribunal, condenaria alguém somente à vista da
documentação que possuímos contra Cukurs. Disse “somente”, vale
dizer: completada a documentação ou instruído um processo judicial
com o “dossiê” existente, é possível esperar um veredito condenató-
rio.59

É notória a forma como Scolnicov se preocupava com o problema da materialidade


das provas contra Cukurs, então limitadas aos depoimentos. Mas que tipo de provas
seria possível produzir em um caso como aquele, em um momento como aquele, além
da testemunhal? Os testemunhos não eram fracos. Eram fortes. Eles não eram despre-
zíveis. Eram importantes. O grande problema era registrar esses relatos dentro dos
padrões formais que a justiça brasileira pudesse considera-los como tais. A tecnicida-
de jurídica exigia um protocolo mínimo no recolhimento dos mesmos. Estes não ti-
nham sido observados. Portanto, não era uma questão de conteúdo, mas de forma. Se-
ja como for, o dirigente da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, di-
zia basear seu julgamento na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclama-
da pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948, e no que dizia a Cons-
tituição Brasileira. Ambos os documentos asseguravam a qualquer indivíduo o direito
pleno à defesa, sendo cada pessoa presumivelmente inocente até que se provasse o
contrário. Uma vez mais, Scolnicov surpreende pela autocrítica em seu relatório:

Enquanto alguém, na hipótese Cukurs, não for legalmente condena-


do por Tribunal independente, imparcial e competente, ele tem o di-
reito de ser presumido inocente, por mais monstruosos que sejam os
crimes que lhes são imputados. De mais: os depoimentos tal como
foram formulados são juridicamente destituídos de qualquer valor,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
58
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.233-239.
59
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.234.

186
CAPÍTULO 3
!
uma vez que: a) não foram prestados perante autoridade judicial; b)
não foram submetidos ao contraditório que deveria, obrigatoriamen-
te, ser facultado ao indiciado. Não se compreende, hoje, uma con-
denação baseada exclusivamente em documentação unilateral. A de-
fesa de qualquer indiciado é princípio inconteste tanto no direito na-
cional, como na esfera do direito internacional. São, pois, compre-
ensíveis, explicáveis, se bem que não totalmente justificáveis, tanto
a reserva por parte do Ministro da Justiça, forte em um parecer de
seu Consultor Jurídico, como a atitude negativa da Chefia de Polí-
cia, em proceder judicialmente contra Cukurs. (...) Sob o ponto de
vista estritamente jurídico e legal estão as autoridades brasileiras “a
cavaleiro” de qualquer censura; a inculpabilidade de Cukurs conti-
nua inabalada.60

Embora cético quanto aos aspectos legais dos depoimentos, Scolnicov disse, por
fim, acreditar que o “lado político” poderia influir decisivamente para um desfecho
favorável do caso. Esse é o momento menos pessimista de seu relatório. Cukurs, afir-
mou, poderia ser considerado indesejável caso se descobrisse algum fato ilegal em sua
entrada no Brasil. Para Scolnicov, o letão não poderia, pelo menos naquele momento,
ser acusado de “mau procedimento no Brasil”, porém, restariam dúvidas quanto à sua
entrada em território nacional, podendo ter induzido as autoridades brasileira ao erro
em relação à sua “personalidade de carrasco”.61 O mais curioso desse trecho é que
Scolnicov se mostrava, ao mesmo tempo, desconfiado das intenções do governo:

(...) Não tenho a menor dúvida que o governo, ou pelo menos o


Cônsul, conhecia perfeitamente o “curriculum vitae” de Herberts
Cukurs. (...) Uma coisa deve ficar perfeitamente estabilitado [sic]:
sempre que o governo quiser realmente expulsar um estrangeiro do
território nacional, ele encontrará a fundamentação jurídica para tal.
62

Não encontrei durante a presente pesquisa qualquer indício que sugerisse que o
Cônsul Brasileiro em Marselha soubesse da vida pregressa de Cukurs. Como vimos
no capítulo anterior, Cukurs entrou legalmente no país e não era procurado por ne-
nhum tribunal competente. E agora, tanto o governo brasileiro quanto a Federação das
Sociedades Israelitas sabiam disso. Não havia traço visível de ilegalidade em sua imi-
gração. Quanto à “vontade política” do governo brasileiro em expulsar estrangeiros,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.235.
61
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.236.
62
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.237.

187
CAPÍTULO 3
!

essa é uma questão mais complexa. A legislação brasileira era vaga ao sublinhar que o
estrangeiro poderia ser expulso do país caso viesse a “comprometer a segurança naci-
onal, a estrutura das instituições ou a tranquilidade pública”. Esses termos poderiam
muito bem servir ao entendimento de momento do governo federal e/ou da polícia. A
historiografia já demonstrou isso muito bem. Segundo Lená Medeiros de Menezes, as
autoridades policiais e ministeriais brasileiras, nas duas primeiras décadas do século
XX, empregaram o artifício da expulsão com o intuito de exercer o controle sobre
aqueles imigrantes que professavam ideologias contrárias ao status quo, principal-
mente comunistas e anarquistas. Para Menezes, a “questão estrangeira” fazia parte da
chamada “questão social”.63 Isso continuou acontecendo mesmo depois da chegada de
Vargas ao poder, em 1930. De acordo com Maria Izilda Santos de Matos, há casos em
que as autoridades chegaram a iniciar os trâmites de expulsão sem comunicar os inte-
ressados, à revelia, sem direito à defesa, ou seja, de modo ilegal. “A expulsão, como
instrumento de controle social na lógica do Estado autoritário, burlou os entraves, uti-
lizou-se de métodos arbitrários (tanto legais como ilegais), atuando por meio de de-
cretos-leis”, pontua a historiadora.64 Porém, isso não é o mesmo que dizer que as de-
cisões do governo brasileiro eram completamente arbitrárias. A posição do Estado
brasileiro no Caso Cukurs até aquele momento parecia indicar, na verdade, outro tipo
de compreensão. As autoridades governamentais tinham, evidentemente, parâmetros
burocráticos a serem seguidos: leis, tratados, acordos e a constituição. Eram esses dis-
positivos que estavam orientando os passos dados pelo Ministério das Relações Exte-
riores e pelo Ministério da Justiça. Por outro lado, o fator político não estava ausente.
No fundo, ele parecia igualmente importante no Caso Cukurs. Nada tinha sido prova-
do contra o “homem dos pedalinhos”; ainda assim, o Prefeito Mendes de Moraes não
renovou a concessão dos pedalinhos. Cukurs não constava na lista de criminosos na-
zistas procurados e nem tinha contra si nenhum pedido de prisão, expulsão ou extradi-
ção; ainda assim, as duas pastas ministeriais supracitadas tinham iniciado uma série
de averiguações a seu respeito. A política era, assim, determinante no caso. O que é
surpreendente, contudo, é que ela estava sendo determinante não no sentido negativo,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
Menezes, Lena Medeiros de. "Os indesejáveis: desclassificados da modernidade." Protesto, crime e
expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. pp.281-287.
64
MATOS, Maria Izilda Santos. Entre suspeitos, perseguidos e expulsos: São Paulo 1934-1940. In:
VIANNA, Marly de Almeida; SILVA Érica Sarmiento da; GONÇALVES, Leandro Pereira. (Orgs.)
Presos Políticos e perseguidos Estrangeiros na Era Vargas. Rio de Janeiro: Mauad, FAPERJ, 2014.
pp.49-68.

188
CAPÍTULO 3
!

aquele apontado por Scolnicov, mas no sentido mais positivo para a Federação das
Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. Isto é, mesmo com evidências insuficientes,
as autoridades não tinham facilitado para Cukurs. Por fim, cabe lembrar que o período
do qual falamos, isto é, dos primeiros governos do pós-guerra, são politicamente dife-
rentes da primeira metade do século XX. Menezes e Matos referem-se a estes como
momentos da história do Brasil em que o país vivia uma grande instabilidade política,
carente de continuidade democrática e permeado por decisões autoritárias. Já no perí-
odo do Caso Cukurs, ainda que a democracia não fosse plena, as instituições demo-
cráticas encontravam-se bem mais consolidadas e respeitadas.

Tendo em vista as eleições recém-realizadas no Brasil, Scolnicov terminou seu re-


latório sugerindo que a sua entidade aguardasse o início do próximo ano e a formação
de um novo governo para que somente então se tomassem novas medidas oficiais. O
Brasil vivia um turbulento ano de eleições e isso tinha um impacto direto em qualquer
ação da entidade no Caso Cukurs. Nas palavras de Scolnicov “um governo derrotado
não há de querer criar novos casos, com repercussão quiçá internacional, e não seria
de boa política forçar-nos, nas atuais circunstâncias, um pronunciamento definitivo”.
Por ora, ficou definido que a entidade continuaria levantando o clamor público e con-
tando com a ajuda do Congresso Judaico Mundial e de outros colaboradores.65

3.7. Ministério da Justiça: nem expulso, nem brasileiro

No início de 1951, Cukurs estava residindo de novo em Niterói. Devido à enorme


campanha desencadeada no Rio de Janeiro, tinha se tornado insustentável para ele
continuar vivendo e trabalhando na capital. Embora a vida na cidade vizinha lhe tenha
deixado realmente mais longe dos noticiários, seu nome continuava atraindo polêmi-
ca. Nessa época, os setores “progressistas” judaicos estavam indignados com a notícia
de que Cukurs estava processando os três judeus que um ano antes tinham sido deti-
dos pelos protestos ocorridos na Lagoa Rodrigo de Freitas. O promotor da 12a vara
criminal do Rio de Janeiro denunciou Salomão Bergier, Saul Gornik e Uryz Wisen-
berg como incursos nas penas do artigo 163, IV, do Código Penal, que tratava do cri-
me de dano material imputado à vítima. 66

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.238.
66
Nossa Voz, “Ousadia do Criminoso de Guerra Cukurs”, 26/01/1951, p.10.

189
CAPÍTULO 3
!

Diversos comitês judaicos foram formados em Niterói com o intuito de sensibilizar


a opinião pública para o que estava acontecendo. Eles promoveram encontros, distri-
buíram dossiês à imprensa, deputados e personalidades. 67 A mobilização encontrou
eco nos setores não judaicos da sociedade. O presidente da União do Comércio Vare-
jista, por exemplo, Eduardo Luiz Gomes, dirigiu-se ao então prefeito de Niterói, Da-
niel Paz de Almeida, exigindo a cassação da licença de Cukurs para a exploração do
negócio dos pedalinhos na cidade.68 Os setores parlamentares também voltaram a se
manifestar. A Câmara Municipal de São Paulo, através de seu presidente, André Nu-
nes Júnior, solicitou à Getúlio Vargas que investigasse a entrada de Cukurs no país.69
Depois, foi a vez da Assembleia Legislativa Fluminense aprovar um requerimento dos
deputados Saramago Pinheiro e Felipe da Rocha solicitando a expulsão de Cukurs.70

Na véspera do julgamento, houve certa apreensão. Um grupo de 18 judeus da Ba-


hia tinha enviado um telegrama ao juiz Cristóvão Breiner, da 13a Vara Criminal do
Rio de Janeiro e que dali a poucas semanas julgaria o processo, declarando solidarie-
dade aos colegas do Distrito Federal, “ora ameaçados com um processo nada condi-
zente com as tradições democráticas do povo brasileiro”.71 Breiner considerou o ato
“ofensivo à dignidade da justiça” e o encaminhou ao Procurador da República para
que fossem tomadas as devidas providências. O jornal O Momento, da Bahia, estra-
nhou a posição do juiz: “apesar dos protestos dos judeus e democratas brasileiros, ne-
nhuma satisfação foi dada pelo governo, que parece estar protegendo o carniceiro na-
zista. Ao contrário, a orientação do governo é contra os judeus democratas”.72

Apesar dos temores, o desfecho foi novamente negativo para Cukurs. O advogado
de Bergier, Wisenberg e Gornik, Marcos Constantino, impetrou no Tribunal de Justiça
um pedido de habeas-corpus e de anulação do processo, baseado, segundo disse, em
contradições registradas pelo próprio Cukurs nos autos. Constantino alegou que o
movimento na Lagoa Rodrigo de Freitas fora um movimento de massas, não podendo
seus clientes serem responsabilizados pelo ocorrido. Além disso, o advogado defen-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
Nossa Voz, “O Ichuv de Niterói contra Cukurs”, 19/04/1951, p.8; Nossa Voz, “Movimento de Soli-
dariedade aos Processados por Cukurs”, 02/08/1951, p.10; Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão
de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
68
Nossa Voz, “O Ichuv de Niterói contra Cukurs”, 19/04/1951, p.8.
69
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712.fl.86.
70
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712.fl.89.
71
Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
72
Nossa Voz, “Processo indigno contra jovens democratas”, 23/08/1951, p.10.

190
CAPÍTULO 3
!

deu a tese de que não houvera flagrante, já que os três manifestantes foram presos em
local distante da manifestação. Os dois recursos foram aceitos pela 3a Câmara do Tri-
bunal de Justiça, composta pelos desembargadores Adelmar Tavares, Álvaro Mariz e
Barros (relator) e Bulhões Carvalho. O processo contra os três estava anulado. 73

Marcos Constantino, que era membro da junta executiva da Federação das Socie-
dades Israelitas do Rio de Janeiro, vai ser um personagem bastante importante daqui
em diante. Em primeiro lugar porque ele conseguiu derrotar Cukurs no processo que
movia contra os três judeus. E sobre isso, vale fazer uma observação: Constantino fo-
ra designado para defendê-los pela federação, opositora, como sabemos, do Comitê
Unidos e dos demais grupos “progressistas”, o que demonstra que embora progressis-
tas e sionistas vivessem uma polarização político-ideológica, havia momentos em que
essas fronteiras eram bem mais flexíveis e invisíveis. Em segundo lugar, porém mais
importante, porque Marcos Constantino assumiu a liderança do Caso Cukurs, em
substituição a Israel Scolnicov, que deixou a federação no início de 1951.

Do lado do governo, a transição de gestões tinha sido feita no final de janeiro. Du-
tra dera lugar a Vargas, que voltava ao poder depois de seis anos fora do Palácio do
Catete. No Ministério da Justiça, Francisco Bias Fortes deu lugar a Francisco Negrão
de Lima, homem de confiança de Vargas e que já tinha várias vezes assumido a fun-
ção de Ministro da Justiça durante o Estado Novo, nas ocasiões em que o titular da-
quele ministério, Francisco Campos, esteve ausente. Já no Ministério das Relações
Exteriores, Raúl Fernandes foi substituído por João Neves da Fontoura, antigo aliado
de Vargas e que seria responsável nos anos seguintes por defender uma política exter-
na de alinhamento com os Estados Unidos. Este novo governo, passado o período de
transição, prosseguiu com as investigações. No dia 13 de abril de 1951, Negrão de
Lima enviou um novo ofício à Missão Diplomática Brasileira em Bonn, na Alemanha
Federal, desejando saber se esta já tinha conseguido informações sobre Cukurs. No
dia 25 de abril, Heitor Lyra, secretário geral do Ministério das Relações Exteriores
respondeu:

(...) levo ao conhecimento de Vossa Excelência que, segundo co-


municação recebida da Missão Especial Brasileira em Bonn, as au-
toridades americanas de ocupação informaram tão somente que
Herberts Cukurs foi comandante de “gueto” em Riga e emigrou para

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
Última Hora, “Negada naturalização a Herberts Cukurs, o matador de trinta...”, 28/08/1951.p.4.

191
CAPÍTULO 3
!
o Brasil com o auxílio da Organização Internacional de Refugiados
como deslocado. Ajunta ainda a informação que o referido indiví-
duo teria sido detido durante uma manifestação antissemita no Rio
de Janeiro.74

A resposta de Heitor Lyra era curta, incompleta e com muitos problemas. E, como
veremos mais à frente neste capítulo, não correspondia às informações – embora ain-
da baseada em rumores – que os EUA coletavam sobre Cukurs e sua atuação no Co-
mando de Arājs, do qual fez parte. Em primeiro lugar, uma das principais dúvidas do
governo brasileiro continuava não sanada: Cukurs tinha sido ou não condenado pelo
Tribunal de Nuremberg? Em segundo lugar, o texto – cuja fonte os americanos não
revelaram – dizia que Cukurs tinha sido “somente” comandante de Gueto na cidade
de Riga. Isso, entretanto, fazia dele criminoso de guerra? Lyra não respondera, nem os
americanos. Em terceiro lugar, a informação de que Cukurs tinha imigrado para o
Brasil com ajuda da Organização Internacional de Refugiados (OIR) não fazia senti-
do. A OIR só começou a operar em 1947, um ano depois de Cukurs embarcar para o
Brasil. Por fim, também não fazia sentido a informação de que Cukurs tinha sido pre-
so no Rio de Janeiro por participar de atividades antissemitas. De acordo com o in-
quérito feito pela polícia política, Cukurs nunca se envolvera com política e não tinha
passagens pela polícia. Teriam as autoridades norte-americanas se confundido com a
prisão dos três judeus após a manifestação Anti-Cukurs na Lagoa Rodrigo de Freitas?

A propósito do Comando Arājs, os historiadores confirmam, hoje, que Cukurs re-


almente foi um de seus integrantes mais famosos.75 O nome deste comando era uma
referência ao seu líder, o colaboracionista e criminoso de guerra letão, Viktor Arājs,
condenado no final dos anos 1970, em Hamburgo, Alemanha. O nome oficial do co-
mando era Polícia Letã de Segurança Auxiliar. Foi criado em 1941, logo depois que
as tropas alemães chegaram a Riga. Segundo dados da extinta KGB, o comando tinha
entre 1200 e 2000 homens.76 Era o principal grupo colaboracionista da Letônia, tendo
participado ativa e decisivamente para a ocupação da nazista da Letônia e para a per-
seguição e extermínio de judeus. De acordo com Rudite Viksne, o Comando de Arājs

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.94.
75
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005. p.147.
76
VIKSNE, Rudite. The Arajs Commando Member as Seen in the KGB Trial Files: Social Standing,
Education, Motives for Joining It, and Sentences Received. In: The Issues of the Holocaust Research in
Latvia: Reports of an International Conference 16-17 October 2000. Riga: 350-380.

192
CAPÍTULO 3
!

fez a segurança de várias instalações da SD e tomou parte em prisões e extermínio de


civis em Riga e em outros lugares da Letônia. O grupo, no entanto, cumpriu muitas
outras funções, dependendo das necessidades de cada período. Era uma unidade mó-
vel, aponta Viksne.77 O comando durou até 1944. “Dos 342 membros do Comando de
Arājs que foram punidos após a Segunda Guerra Mundial, 42 entraram para o grupo
em 1941, 262 em 1942 e 42 2 + 6, respectivamente, em 1943 e 1944”.78 O lugar de
Cukurs no Comando de Arājs ainda é um tanto nebuloso. Ezergailis afirma:

Herberts Cukurs não poderia ter desempenhado um papel de co-


mando no gueto, uma vez que o seu nome não aparece no organo-
grama do mesmo. O Tribunal de Hamburgo, que comandou os pro-
cessos referentes ao Gueto de Riga não teria como confirmar as
afirmações feitas por Kaufman [NA. Isto é, que Cukurs teve um pa-
pel de liderança não gueto]. A autoridade responsável pela organi-
zação do massacre de Rumbula foi Jeckeln, e através dele a Schu-
tzpolizei. Cukurs era um membro da Arajs Comando, mas entre os
assassinos da Letónia, ele tinha uma patente muito elevada. Nas de-
clarações de homens que pertenceram ao Comando Arajs encontra-
dos nos arquivos da KGB, Cukurs não é mencionado muitas vezes.
Um auxiliar da Polícia auxiliar de Segurança não poderia exercer
tanto poder na presença de alemães.79

Portanto, segundo Ezergailis, Cukurs participou do Comando de Arājs, mas não


era um membro tão elevado deste destacamento colaboracionista. O que não quer di-
zer, necessariamente, que ele não tenha participado dos atos de extermínio contra ju-
deus. Ele fazia parte de uma célula colaboracionista criminosa. Cukurs provavelmente
tinha pena consciência de que judeus estavam sendo mortos em massa na Letônia.
Tanto que salvou Miriam Kaicners do Gueto de Riga. Direta ou indiretamente, mesmo
que ele fosse “apenas” um mecânico e chefe de garagem do comando, conforme dizia,
ele contribuíra para a máquina de extermínio nazista na Letônia. Quando diz que Cu-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
Ibidem.
78
Ibidem. [Original: Of 352 members of the Arajs Commando, who were punished, 42 enlisted in
1941, 262 in 1942 and 42+6 in 1943/1944.
79
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005. p.147. [Original: “Herberts Cukurs could not have played a command-
ing role in the ghetto, for his name did not show up on the ghetto’s organizational chart. The Hamburg
judiciary, that prosecuted a Riga Ghetto case, would not support Kaufmann’s assertions [NA. isto é,
que Cukurs tinha um papel de liderança no gueto]. The organization authority of the Rumbula massacre
was Jeckeln, and through him the Schutzpolizei. Cukurs was a member of the Arājs Commando, but
among the Latvian murderers, he did not rank very high. In the deposition of Arājs men found in the
KGB archives, he is not mentioned often. An auxiliary of the auxiliary Security Police could not wield
much power in the presence of Germans.”]

193
CAPÍTULO 3
!

kurs não ocupava um posto alto no comando, na verdade, o que Ezergailis nos ajuda a
entender porque é tão difícil encontrar evidências oficias contra Cukurs. Ele não apa-
rece sistematicamente nos arquivos alemães e nem soviéticos porque não era um bu-
rocrata ou um dos líderes do comando. Daí que as provas contra ele fossem majorita-
riamente testemunhais. Elas não poderiam ser diferente neste sentido.

Em maio de 1951, Juracy Costa, o chefe da Seção de Permanência e Expulsão de


Estrangeiros, registrou em seu parecer que as informações até ali reunidas pela Minis-
tério da Justiça não pareciam indicar ser Herberts Cukurs um elemento nocivo aos
interesses do país e, portanto, passível de expulsão do território nacional. 80 No dia 23
de junho de 1951, este parecer chegou às mãos de José Vieira Coelho, Diretor-Geral
do DIJ. Coelho manifestou uma opinião um pouco diferente daquela de Costa. Ele
também ainda não via elementos suficientes para abrir um processo de expulsão con-
tra Cukurs. Por outro lado, ao seu ver, a vida pregressa do investigado continuava
sendo duvidosa. Ele encaminhou a seguinte sugestão à consideração do ministro:

À consideração do Senhor Ministro, opinando que, prestadas as in-


formações solicitadas, se determine o arquivamento do processo de
averiguações sobre a permanência de Herberts Cukurs, uma vez
que, salvo o que se lê nas reclamações e protestos da Federação das
Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e indicações de algumas As-
sembleias Estaduais, nada de positivo restou contra a legalidade da
entrada desse estrangeiro no país, por força do visto concedido pelo
Consulado Brasileiro em Marselha. A informação do Ministério do
Exterior [sic], junta aos autos, apenas refere que Herberts Cukurs foi
comandante de “gueto” em Riga e emigrou para o Brasil com o au-
xílio da Organização Internacional de Refugiados. Não ficou prova-
do que o alienígena em questão fosse um criminoso de guerra. Peço
“vênia”, entretanto, ao Senhor Ministro para sugerir que relativa-
mente ao pedido de naturalização seja ele sustado, em virtude da in-
certeza das informações sobre a vida pregressa do naturalizando e
da provável incompatibilidade do mesmo com grande parte da opi-
nião pública brasileira, até que fiquem definitivamente esclarecidos
os motivos do ingresso no Brasil e se esteja seguro da perfeita adap-
tação do estrangeiro ao meio nacional. Acrescente-se que somente à
4 de março deste ano cumpriu-se o prazo legal de sua permanência,
parecendo cedo para se afirmar que já existe entre o alienígena e o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.97.

194
CAPÍTULO 3
!
meio nacional aquela compreensão que é o fundamento sócio-
político das naturalizações. 81

José Vieira Coelho tinha um longo passado de atuação como integralista. Na déca-
da de 1930, fora consultor da Liga Católica Eleitoral (LEC) e ex-presidente da Ação
Católica Brasileira (ACB).82 Teria o seu parecer no Caso Cukurs refletido alguma
animosidade antijudaica ou mesmo antissemita, tão presente nos meios que frequen-
tou? É difícil dizer. Coelho teve uma interpretação desatenta do Caso Cukurs, especi-
almente para alguém que detém um cargo importante no Ministério da Justiça. Ele
deixou passar incólume a informação de que Cukurs imigrara para o Brasil com a aju-
da de uma organização internacional que ainda sequer estava em funcionamento.
Tampouco se perguntou se o Comandante do Gueto de Riga, por força de suas atri-
buições, não seria considerado criminoso de guerra. Coelho, porém, tinha um quadro
geral muito pouco favorável à abertura de um pedido de expulsão de Cukurs. O letão
tinha entrado legalmente no país. Além disso, o Ministério da Justiça ainda não tinha
recebido os depoimentos originais solicitados em agosto de 1950. E, admitindo que a
data de criação da OIR não fosse algo tão simples de perceber, as autoridades ameri-
canas, isto é, uma fonte insuspeita para o governo brasileiro, acabava de declarar que
Cukurs imigrou para o país com ajuda de uma organização oficial.

Tendo em vista tais elementos, Coelho sugeriu ao Ministro da Justiça a sua dupla
solução: arquivar o processo de averiguações sobre Cukurs, uma vez que não tinham
sido provadas ilegalidades em sua entrada no Brasil e nem a autoria de seus crimes, e
sustar o seu pedido de naturalização, já que as informações sobre o passado de Cukurs
continuavam incertas, podendo este ainda ser revelado culpado. Do ponto de vista ju-
rídico, era uma decisão que não comprometia o governo brasileiro. Assim deveria

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fl.97.
82
JUNIOR, Renato Augusto Carneiro. Religião e Política: a Liga Eleitoral Católica e a participação
da Igreja nas eleições. 2000. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná. Essas duas entida-
des tiveram papel bastante relevante na vida política do país. A LEC nasceu em 1932. Era uma associa-
ção civil de âmbito nacional, sediada no Distrito Federal, cujo objetivo era mobilizar o eleitorado cató-
lico para que este apoiasse os candidatos comprometidos com a doutrina social da Igreja nas eleições.
Já a ACB, atuando como órgão paralelo a LEC, surgiu em 1935 como resposta às solicitações do Papa
Pio XI para que fossem fundadas em todo o mundo associações leigas vinculadas à Igreja “com a fina-
lidade de estabelecer o reino universal de Jesus Cristo”. Ver também: LEC e ABC (Verbetes) Dicioná-
rio Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) da FGV.

195
CAPÍTULO 3
!

proceder até que ficassem “definitivamente esclarecidos os motivos do ingresso no


Brasil e se esteja seguro da perfeita adaptação do estrangeiro ao meio nacional”. 83

Imagem&44.&!Charge:!Cukurs!olhando!o!Brasil!de!longe.!Fonte:!Tribuna!da!Imprensa,!19/08/1950,!p.!4.

Em julho de 1951, o Ministro da Justiça, Negrão de Lima, aprovou integralmente


as sugestões de Coelho.84 A decisão tinha um duplo significado para os grupos de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fls.100.

196
CAPÍTULO 3
!

oposição a Cukurs: negativo, porque não se conseguira abrir o pedido de expulsão;


positivo, pois Cukurs, pela segunda vez, não tinha conseguindo se naturalizar, poden-
do ainda ser expulso ou mesmo extraditado. Desta vez ainda, a decisão nada tinha a
ver com o seu tempo de permanência no país. Cukurs não podia naturalizar-se porque
pairavam dúvidas sobre ele. E aí, devemos mais uma vez destacar como a questão po-
lítica era importante, para além do tecnicismo. Cukurs, ainda sem evidência que indi-
casse a materialidade de seus crimes, continuava sem poder se tornar brasileiro.

Na imprensa, o resultado foi amplamente festejado, ainda mais porque ele fora di-
vulgado quase ao mesmo tempo da derrota de Cukurs no processo que movia contra
os três judeus. O jornal A Notícia disse que Cukurs recebeu uma “dupla caqueirada”.85
Já o Tribuna da Imprensa sublinhou que as coisas não andavam bem para ele. “É im-
possível não se lamentar a situação de insegurança em que vive Herberts Cukurs, mas
um homem que faz o que dizem que ele fez, deve estar preparado para essas coisas”.86

3.8. Ministério da Justiça sinaliza abertura do processo de expulsão

Embora os depoimentos originais enviados pelo Congresso Judaico Mundial não


tivessem sido suficientes para provocar a abertura de pedido de expulsão de Cukurs, a
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro percebeu que o cenário não era
mais tão ruim quanto aquele descrito por Scolnicov no final do ano anterior. Cukurs,
afinal de contas, tinha perdido o processo contra os três judeus e o Ministro da Justiça
compreendeu que não era prudente lhe conceder a naturalização brasileira. A entida-
de, então, continuou envidando esforços para conseguir a sua expulsão. Duas frentes
foram abertas neste sentido. A primeira passava pela mobilização de intelectuais e da
sociedade civil. Em agosto de 1951, foi criado para este fim o Comitê Nacional Pró-
Expulsão de Cukurs, composto por intelectuais judeus e não judeus, como Marcos
Constantino, Nicim Benemond, Amorim Pargas, Edmar Morel, Borges do Amaral
Melo e José Aureliano Boff. 87 O referido comitê conseguiu, inclusive, uma audiência
com o então Vice-Presidente da República, Café Filho.88 Na ocasião, Constantino en-
tregou a este um manifesto contra Cukurs. O documento dizia ser injustificável que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
AN-RJ. Processo MJNI 27996/50. Caixa 597, DEP.712. fls.100-101.
85
A Notícia, “Cukurs recebeu uma dupla caqueirada!”, 28/08/1951, p.1.
86
Tribuna da Imprensa, “Devia saber o que fazia”, 29/08/1951, p.6.
87
Nossa Voz, “Comitê Nacional pela expulsão de Cukurs”, 09/08/1951, p.10.
88
Nossa Voz, “Entregue o memorial pela expulsão de Cukurs do Brasil”, 24/10/1951, p.6.

197
CAPÍTULO 3
!

um criminoso de guerra pudesse gozar da hospitalidade brasileira. Destacando conhe-


cerem a vida ilustre de Café Filho, os signatários do documento disseram aguardar,
com confiança plena, a única atitude possível no caso: a expulsão de Cukurs. 89

Imagem&45:&!Constantino!entrega!memorial!a!Café!Filho.!Fonte:!Imprensa!Israelita,!18/09/1950!

Destaca-se também, nesta conjuntura, um pedido de expulsão de Cukurs proposto


pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Entidades Não Governamen-
tais do Brasil (OENG).90 A OENG era um órgão de cooperação da ONU criado em
setembro de 1950 cujo objetivo era auxiliar e divulgar as questões de interesse ONU
no mundo, bem como informar a opinião pública sobre os objetivos e significações da
mesma. Embora jovem, a OENG era politicamente influente, reunindo mais de 143
entidades brasileiras, divididas em dez categorias, além de uma comissão executiva e
nove comissões de estudo.91 A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro
fazia parte da categoria oito (artístico-literária), da Comissão de Direitos Humanos (de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Diário da Noite, “Fugiu da Justiça Internacional e vive explorando...”, 07/08/1951, p.5.
90
OENG. Boletim da Organização das Entidades Não-Governamentais do Brasil. Rio de Janeiro. Ano
I, N.1, setembro de 1951. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. p.1.
91
OENG. Boletim da Organização das Entidades Não-Governamentais do Brasil. Rio de Janeiro. Ano
I, N.1, setembro de 1951. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. p. 6.

198
CAPÍTULO 3
!

onde surgiu a ação contra Cukurs), da Comissão Jurídica (que aprovou a ação contra
Cukurs)92 e do Conselho Nacional.93 Em todas, era representada por Constantino.

Já a segunda frente dos esforços da federação para a expulsão de Cukurs foi o diá-
logo direto com o governo, que se manteve constante. Em setembro de 1951, Cons-
tantino elaborou um novo dossiê contra Cukurs. O documento trazia recortes de edito-
riais de jornais que defendiam a expulsão do letão e um breve sumário dos tratados
internacionais e leis que buscavam amparar essa possibilidade. Constantino incluiu
ainda outros três itens ao volume. Eram eles: uma carta assinada por Dumont Stansby,
do escritório da OIR no Brasil, informando que o nome de Herberts Cukurs não cons-
tava no fichário de pessoas que imigraram para o país com a assistência daquela enti-
dade, novamente a tradução para o português do material enviado pelo Congresso Ju-
daico Mundial e um recurso de habeas-corpus impetrado pelo expulsando Curt Wen-
del e negado pelo Supremo Tribunal Federal.94

No dia dez de dezembro de 1951, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de


Janeiro escreveu à seção londrina do Congresso Judaico Mundial. A última comuni-
cação entre as duas instituições tinha acontecido há pouco mais de um ano. Nesta no-
va correspondência, Zeigarnikas, presidente em exercício da federação, e Nathan Jaf-
fe, secretário, atualizaram seus interlocutores dos avanços feitos naqueles últimos me-
ses, como a anulação do processo contra os judeus e o indeferimento da naturalização
de Cukurs. Neste comunicado, não temos dúvidas quanto ao otimismo dos dirigentes:
“todos esses eventos provam a boa vontade de nosso Departamento de Justiça quanto
aos sentimentos dos judeus e também a muitos não judeus em relação a este monstro”.
95
Zeigarnikas e Jaffe explicaram ainda que tinham se reunido há dois dias com o con-
sultor jurídico do Ministério da Justiça, Anor Butler Maciel. Nesse encontro, eles fica-
ram sabendo porque os depoimentos levantados pelo Comitê de Investigações dos
Crimes Nazistas nos Países Bálticos contra Cukurs, apesar da “calorosa recepção”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Ibidem, p.7.
93
Ibidem, p.9.
94
Ele esperava que a decisão do STF no Caso Wendell pudesse ser tomada como jurisprudência. O
alemão Kurt Wendel chegou ao Brasil em 1925. Foi filiado ao Partido Nazista no Brasil. Em 1939, ele
retorna à Alemanha. Quando volta ao país, depois da guerra, a polícia o acusa de ter trabalhado para a
Rádio Berlim e, nesta função, ter ridicularizado o Brasil. Wendel sofreu processo de expulsão. Em fe-
vereiro de 1949, a expulsão de Wendel se concretizou. Cf. DIETRICH, Ana Maria. A caça às suásti-
cas: O Partido Nazista em São Paulo sob a Mira da Polícia Política. 2001. Tese de Doutorado.
95
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.173. [Orig-
inal: “All these events proof the good willingness of our State Department of Justice, to respect the
feelings of Jewish and also many non-Jewish citizens toward this monster”.]

199
CAPÍTULO 3
!

ministerial, tinham sido insuficientes: Maciel considerou os depoimentos provenientes


de uma fonte privada. E ele não era o único no Ministério da Justiça a pensar daquela
forma. “O atual Ministro da Justiça, um verdadeiro amigo dos judeus, está profunda-
mente sensibilizado pelas declarações e testemunhos, estudou o dossiê sobre Cukurs,
mas também teme pela fraqueza de nossas evidências, já que elas se originam de uma
fonte privada.” O próprio Cukurs, conforme relatado, estava fazendo tudo o que po-
dia, por meio de seus advogados, para “tornar o mencionado comitê suspeito, uma vez
que é uma instituição judaica e, consequentemente, parcial e duvidosa.” 96

Imagem&46.&!Repórter!do!UH!e!Anor!Butler!Maciel.!Fonte:!Última!Hora,!12/12/1951.!

Zeigarnikas e Jaffe sublinharam ainda que diferente do ministro, o consultor jurídi-


co, Anor Butler Maciel, não tinha demonstrado muita sensibilidade. No entanto, dis-
sera-lhes que estava disposto a reconhecer os documentos do comitê como semiofici-
ais desde que uma conhecida organização mundial atestasse a confiança e a idoneida-
de do mesmo. Com base nessa promessa, Zeigarnikas e Jaffe escreveram:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.173. [Orig-
inal: “The actual Minster of Justice, a real friend of Jews, is deeply affected by the statements and tes-
timonies, he studied on the Cukurs’ dossier, but he fears also the weakness of our evidences, coming
from a private source.” + “Of course, Cukurs, strongly enough supported, and especially his lawyer are
doing their best in order to make the mentioned committee suspicious as a Jewish institution and con-
sequently unreliable and partial.”]

200
CAPÍTULO 3
!
O que nós precisamos agora, urgentemente, é de um certificado emi-
tido por uma autoridade como a UNO, a UNWCC (United Nations
War Criminal Comission) ou o State Department of Justice etc. reco-
nhecendo o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países
Bálticos como uma confiável e idônea organização, encarregada pela
investigação de crimes nazistas. Talvez você possa obter uma decla-
ração informando que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazis-
tas nos Países Bálticos está colaborando com a UNWCC ou alguma
coisa do tipo. (...) Nós tomamos a liberdade de lembrá-los que todas
as assinaturas no certificado devem ser devidamente legalizadas por
autoridades competentes e pelo embaixador brasileiro em Londres.97

Um dia depois, no dia 11 de dezembro de 1951, Anor Butler Maciel confirmou à


reportagem do Última Hora o que já tinha adiantado no encontro com Zeigarnikas e
Jaffe. Maciel disse em entrevista ao jornal de Samuel Wainer:

As acusações formuladas na representação contra Herberts Cukurs,


se provadas, poderão determinar o processo de sua expulsão. O pro-
cesso 27.996, de iniciativa da Federação Israelita, contém realmente
informações de grande importância para a apreciação da matéria. To-
davia, é indispensável apurar a idoneidade das organizações interna-
cionais que acusam de genocídio o imigrante da Letônia. As autori-
dades têm que agir com o máximo de cautela em questões de expul-
sões, porque somos um país de imigração e devemos mostrar aos es-
trangeiros que eles estão bem defendidos no Brasil. (...) O genocida –
conceituação nova, que surgiu com o último conflito para designar os
que realizam o extermínio em massa – não tem asilo no Brasil. É o
máximo que eu posso assegurar, assim, de passagem, com relação ao
Caso Cukurs, cujo processo tenho para dar parecer. Aqui estão pelo
menos os elementos indiciários de sua culpabilidade. Vamos ver ago-
ra se os seus antecedentes são de molde a oferecer perigo à ordem
pública do Brasil.98

Deste modo, as negociações com o governo foram retomadas. Havia novamente


uma possibilidade de abertura do pedido de expulsão de Cukurs. Segundo Anor Butler

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
97
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.174. [Orig-
inal: “What we now need urgently, is a certificate issued by one of the official authorities like the
UNO, the UNWCCC (United Nations War Criminal Commission), or the State Department of Justice,
etc. recognizing the Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries, as reliable and
idoneous organization, fitted for investigations on Nazi crimes. Perhaps you can obtain a declaration,
that the Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries is collaboration with the
UNWCC, or something like that”.]
98
Última Horas, “Genocida não tem asilo no Brasil”, 11/12/1951. p.4.

201
CAPÍTULO 3
!

Maciel informou, particularmente, a Zeigarnikas e Jaffe e, depois, publicamente, ao


repórter do Última Hora, isso dependia da Federação das Sociedades Israelitas do Rio
de Janeiro conseguir demonstrar a “idoneidade” do Comitê de Investigações dos Cri-
mes Nazistas nos Países Bálticos. Essa informação era essencial na visão de Maciel.

3.9. Anor Butler Maciel: um ex-integralista no Ministério da Justiça

Nascido em primeiro de maio de 1907, em Porto Alegre, Anor Butler Maciel era
outro funcionário do Ministério da Justiça com uma história de pertencimento a círcu-
los católicos tradicionais e de ideais integralistas. Como boa parte da elite rio-
grandense de sua época, Maciel estudou nos melhores colégios católicos. Na juventu-
de, entre 1925 e 1930, sua vida intelectual e política foi intensa. Formou-se pela Fa-
culdade de Direito de Porto Alegre, fez parte da União dos Moços Católicos e da
Congregação Acadêmica Mater Salvatoris. No início da década de 1930, assumiu a
redação de O Estado do Rio Grande, porta voz do Partido Libertador. 99 Ainda no ca-
tolicismo militante, integrou a Ação Católica Brasileira e participou da organização da
Liga Eleitoral Católica, das quais José Vieira Coelho, Diretor-Geral do DIJ, também
fez parte.100 Segundo Marcelo Vianna, foi nessa época que Maciel desenvolveu posi-
ções antissemitas, anticomunistas e antimaçônicas, posteriormente exacerbadas na
Ação Integralista Brasileira (AIB).101

Em 1934, Anor Butler Maciel fundou o núcleo da AIB do Rio Grande do Sul, na
qual atuou como secretário. Na regional integralista teve a companhia de outros no-
mes importantes da vida política gaúcha, como Dario de Bittencourt, chefe do movi-
mento, e Egon Renner, tesoureiro. Maciel foi ainda diretor do jornal O Integralista e
concorreu ao cargo de Deputado Estadual em 1934. Vianna explica, porém, que devi-
do às distensões internas na AIB, Maciel foi se afastando do movimento, ainda que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
O estado do Rio Grande do Sul, segundo Ericson Flores, deu apoio irrestrito à candidatura de Vargas
no final dos anos 1920, mas depois passou a criticar o governo provisório. In: FLORES, Ericson. O
discurso liberal da imprensa conservadora no início da Era Vargas. Anais do XI Encontro Estadual de
História, 23 a 27 de julho de 2012. Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil.
100
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011. pp. 117-132.
101
Ibidem, p.119.

202
CAPÍTULO 3
!

isso “não tenha significado a abdicação das suas convicções católicas e integralis-
tas.”102

Embora o integralismo tenha sido combatido por Getúlio Vargas no início do Esta-
do Novo, Anor Butler Maciel não sofreu os efeitos dessa repressão. De acordo com
Vianna, isso não aconteceu porque o advogado encontrava-se “afastado por indisci-
plina pelo chefe provincial da AIB, Nestor Contreiras Rodrigues, por discordar do
aparato paramilitar organizado por Gustavo Barroso”.103 Além disso, explica o histo-
riador, ser católico e ter ainda contato com seus antigos colegas de Partido Libertador,
inseridos no novo governo, também devem ter contribuído.104 No período do Estado
Novo, pelo contrário, Maciel galgou posições. Tornou-se um funcionário dedicado à
máquina estatal. Foi presidente da Comissão do Salário Mínimo, membro da Comis-
são de Estudos e Negócios Estaduais do Ministério da Justiça e, em 1939, aos 32
anos, tornou-se o mais jovem bacharel a assumir o cargo de Procurador-Geral do Es-
tado. Em 1947, foi ainda chefe do gabinete do Ministro da Justiça e um ano depois,
em 1948, assumiu o seu atual cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça, que
ocupou até a sua aposentadoria, no final da década de 1960.105

Durante seus anos no movimento integralista, Maciel foi um verdadeiro entusiasta


das ideias antissemitas. Seu maior libelo neste campo é Nacionalismo – o problema
judaico e o nacional-socialismo, publicado em 1936 pela Editora Globo. O livro não
é nada original quando comparado a outras obras antissemitas da época. Nele, Maciel
reflete sobre a emergência da “questão judaica” no Brasil. Para explicar o que seria
esse fenômeno, recorre a dois livros antissemitas recém-publicados no Brasil: o apó-
crifo Os Protocolos dos Sábios de Sião e O Judeu Internacional, de Henry Ford. Com
base nessas referências, Maciel elenca duas características que considera inerente aos
judeus. Em primeiro lugar, os judeus formariam uma raça inassimilável e que se ex-
clui da comunhão nacional. Esse tipo de isolacionismo aconteceria em todos os luga-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
102
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011. p.121.
103
Ibidem.
104
Ibidem.
105
VIANNA, Marcelo. Os Homens do Parque: trajetórias e processo de institucionalização do Minis-
tério Público do Estado do Rio Grande do Sul (1930-1964). Dissertação de Mestrado. Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre,
2011, p.122.

203
CAPÍTULO 3
!

res, inclusive no Brasil. “Sem que o nosso povo, tão hospitaleiro e sociável, tivesse,
por qualquer forma, repelido do seu convívio os israelitas, estes mantêm vida social
própria, com associações fechadas de caráter cultural, esportivo, recreativo e religio-
so.” Em segundo lugar, os judeus possuiriam um plano secreto para dominar o mundo
e que passava, inexoravelmente, pela destruição das religiões cristãs. O marxismo e o
liberalismo seriam duas vias dessa dominação, não havendo contradição nisso, afinal
de contas, explica Maciel, “Marx proclamava que a ditadura do proletariado tem de
ser precedida pela concentração dos capitais. (...) Milionários e proletários judeus se
dão as mãos na obra de destruição das instituições cristãs.”106

No decorrer do livro, Maciel transparece que a não assimilação dos judeus seria o
item mais preocupante em se tratando da questão judaica no Brasil. Esse pensamento
reflete a concepção que o autor tinha de nação. Diferente de alguns intelectuais de seu
tempo, Maciel rechaçava a ideia de que o conceito de raça fosse o definidor de nação.
“No Brasil”, ele diz, “qualquer conceito estreito de raça se afastará das realidades na-
cionais. Formamos, incontestavelmente, uma Nação, (...) mas não tanto pela unidade
étnica, senão, e principalmente, pela incontestável unidade de cooperação no sentido
do progresso da nacionalidade.”107 Neste sentido, um grupo que não se assimila, e
que, portanto, não faz parte do “caldeamento de raças”, é um ameaça ao desenvolvi-
mento do país. O autor não acredita nem nos judeus que se naturalizam brasileiros e
nem naqueles que já nasceram no Brasil: “a nacionalização dos judeus é uma far-
sa”.108 Quanto à imigração judaica, Maciel defende a necessidade de restrições:

Em face de tão concretos argumentos, como admitir-se que aceitamos


os imigrantes sem perguntar de sua origem étnica, se os judeus, sabi-
damente formam uma raça que se mantém, no seio nacional, como
um corpo estranho, formando o ‘enquistamento’, que constitui um
grave problema, como adverte em ‘Raça e Assimilação’ o notável
publicista Oliveira Viana? Vamos, pois, fazer estatísticas completas,
sem nos determos pelos preconceitos tão prejudiciais e que impedem
o cuidado que o magno assunto está a existir. (...) Vamos conceder o
título de nacional somente aos imigrantes que efetivamente estejam
integrados na vida brasileira. E quanto aos ‘enquistados’ que se for-
marem, uma boa política, discreta e bem orientada, num sentido su-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
MACIEL, Anor, Butler. Nacionalismo – o problema judaico no mundo e no Brasil. O nacional-
socialismo. Porto Alegre: O Globo, 1937, pp.14-77.
107
Ibidem, pp.116-117.
108
Ibidem, p.94

204
CAPÍTULO 3
!
perior de solidariedade humana, há de fazê-los desaparecer. Mas é
preciso que oficialmente se encare esse assunto. Do contrário, se, por
delicadeza, deixarmos de resolver o caso de frente, o povo reivindica-
rá para si essa tarefa. E as manifestações de antissemitismo virão,
talvez, empanar as nossas tradições de alta hospitalidade, que deve-
mos defender a todo o transe.109

Maciel, no entanto, não vê nenhum tipo de antissemitismo em tais medidas:

Apontando rumos à política nacionalista, não somos levados pelo an-


tissemitismo. É verdade que aqui transcrevemos o formidável libelo
contra os judeus. Mas era necessário dar ao leitor uma impressão ní-
tida da questão judaica, para assentar o ponto de vista brasileiro, em
face do judaísmo. (...) Porque o nosso nacionalismo não se baseia na
unidade étnica e na sua conservação pela exclusão de outras raças. O
que pretendemos é justamente impedir que se formem e alicercem
núcleos raciais autônomos dentro da nossa pátria, que se está for-
mando pelo caldeamento de muitos sangues. Como permitiremos
que, dentro do nosso território, onde pretendemos irmanar os homens
das regiões da neve eterna, com imigrantes das zonas tórridas da
África, se formem grupos isolados da comunhão nacional pela
transmissão de características raciais próprias?110

Se ideias antissemitas de Maciel se converteram em ações antissemitas é difícil di-


zer. René Gertz afirma que durante sua atuação como Procurador-Geral do Rio Gran-
de do Sul, Maciel teria tomado ao menos uma medida antissemita.111 A situação teria
sido a seguinte: em 1941, visando institucionalizar a carreira, foi realizado o primeiro
concurso para o Ministério Público daquele estado. Vários promotores inscreveram-se
ex-officio para fazer o concurso. A judia Sophia Galanternick Sturm, primeira promo-
tora pública do Rio Grande do Sul, nomeada para a comarca de Carazinho, em 1938,
estava entre os inscritos. Sturm, no entanto, foi informada de sua demissão às véspe-
ras da prova oral do concurso. A justificativa, segundo ofício assinado por Maciel, era
que seria inconveniente que uma mulher casada fosse promotora.112 Inconformada,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
MACIEL, Anor, Butler. Nacionalismo – o problema judaico no mundo e no Brasil. O nacional-
socialismo. Porto Alegre: O Globo, 1937. pp.141-142.
110
Ibidem, pp.145-148.
111
GERTZ, René. Intelectuais gaúchos e o Estado Novo brasileiro (1937-1945). Revista História: De-
bates e Tendências, v. 13, n. 1, 2013.
112
SILVEIRA, Daniela; VIANNA, Marcelo; OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. O Concurso Público de
1941 - Institucionalização da Carreira do Ministério Público do Rio Grande do Sul. In: Revista do Mi-
nistério Público, N.49, 2003, pp. 34-36.

205
CAPÍTULO 3
!

Sturm foi mesmo assim fazer a prova oral – da qual Maciel era um dos três examina-
dores – e dias depois pleiteou uma audiência com o Interventor Federal para discutir
sua demissão. Maciel chegou a lhe ofereceu um cargo na Diretoria das Prefeituras
Municipais, que ela recusou. Depois de muito persistir, Sturm conseguiu sua perma-
nência na instituição, sendo apenas designada para outra comarca, a de Jaguari.113

Apesar do que diz Gertz, não fica evidente que o fato de ser judia foi a razão para a
demissão de Sturm. O motivo oficial, isto é, ser uma mulher e casada não parece um
engodo. Era obviamente um motivo bastante torpe, mas coerente com o preconceito
generalizado que se tinha na época contra mulheres que deixavam seus lares para tra-
balhar.114 Flavio Heinz também chama a atenção para este fato e, embora ele também
admita a “postura antissemita” de Maciel como um dos motivos para a demissão da
promotora, nos traz ainda novos elementos que ajudam a explicar a decisão do então
Procurador-Geral do Rio Grande do Sul, como a disputa de Maciel com Sólon Mace-
dônia pela chefia institucional do MPRS e “certa impopularidade na promotoria e sua
atuação incisiva, considerada indesejada, contra um militar ligado ao governo”.115

3.10. O parecer de Anor Butler Maciel

No dia 12 de dezembro de 1951, Constantino e Zeigarnikas enviaram para Brass-


loff a entrevista, na íntegra, em inglês, que Anor Butler Maciel dera ao jornal Última
Hora. A entrevista, segundo explicaram os dois dirigentes, mostraria por que era ne-
cessário enviar o mais rápido possível o teste de idoneidade do Comitê de Investiga-
ções dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos. “Não só a expulsão de Cukurs está de-
pendendo deste teste, mas a nossa própria confiabilidade está em jogo, haja vista que
a inabilidade para provar a idoneidade de nossas fontes seria uma forte arma nas mãos
de Cukurs”.116 Os dois dirigentes também afirmaram que o pedido do governo brasi-
leiro para que uma autoridade competente britânica reconhecesse o mencionado comi-
tê talvez tivesse a ver com o fato de que este não era muito conhecido no âmbito da
Organização das Nações Unidas, do Foreign Office (o equivalente britânico ao Minis-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
Ibidem.
114
Tanto que o ingresso de mulheres no Ministério Público do Rio Grande do Sul só ocorreria de novo
a partir do concurso público de 1976.
115
HEINZ, Flavio M. História social de elites. Oikos: São Leopoldo, v. 168, 2011. p.86.
116
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.110. [Orig-
inal: “Not only that Cukurs’ expulsion is depending from this test, but also our own reliability is in
game, because inability to proof the idoneity of our information-sources, would be a strong weapon in
the hands of Cukurs.”]

206
CAPÍTULO 3
!

tério das Relações Exteriores) ou no Comitê de Crimes de Guerra das Nações Unidas
(CCGNU), ou ainda por se tratar de um departamento do Congresso Judaico Mundial,
trabalhando nos bastidores. Neste caso, pontuaram, “será necessário emitir uma decla-
ração onde se diga que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países
Bálticos é um departamento do Congresso Judaico Mundial e que assume toda a res-
ponsabilidade pela idoneidade e pela confiabilidade das informações levantadas”. Po-
rém, o mais importante para a federação continuava sendo o reconhecimento oficial
do extinto comitê por autoridades governamentais competentes:

É evidente que embora o CMJ seja bem conhecido nos círculos das
Nações Unidas, ele é desconhecido, pelo menos oficialmente, por
parte do Ministério da Justiça e pelo Ministério das Relações Exterio-
res do Brasil, devendo ser reconhecido por autoridades oficiais como
a ONU, a CCGNU ou similar, credenciamento este que nós acredi-
tamos ser viável de ser conseguido. Como você pode inferir da entre-
vista publicada, o Ministro da Justiça vai indagar ao Ministério das
Relações Exteriores a respeito da existência e idoneidade do Comitê
do Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, sendo ne-
cessário contatar com a maior urgência o seu Foreign Office sobre o
pedido que vai chegar do Brasil, no sentido de evitar uma resposta
negativa.117

O Congresso Judaico Mundial, porém, não teve tempo para agir. No dia 27 de de-
zembro de 1951, Anor Butler Maciel emitiu o parecer número 447 do Ministério da
Justiça, o primeiro dele no caso. Tal parecer tinha como objeto a expulsão de Herberts
Cukurs e como partes interessadas a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, entre outros. Maciel propôs:

a) Solicitação ao Itamaraty para apurar, em Londres, a atitude tomada


pelo Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálti-
cos; se dito Comitê apresentou a documentação colhida a algum Tri-
bunal oficial, e qual a solução que teve a denúncia; b) Solicitação ao
Itamaraty para saber se os comandantes de “gueto”, pelo exercício de
tal função, foram considerados criminosos de guerra; c) Solicitação
ao Itamaraty para saber da Organização Internacional de Refugiados
se prestou assistência a Herberts Cukurs, como deslocado de guerra;
d) Pedido ao Itamaraty dos originais das informações que serviram
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. fl.110. [Orig-
inal: “Of course, the WJC, besides well known in UN circles, but unknown, at least officially by Bra-
zilian Ministry of Justice and Brazilian Foreign Office, must be warranted by official authorities like
UN, UNWCC or similar and we think you should be able obtain such a credence.”]

207
CAPÍTULO 3
!
de base à informação constante do ofício da folha 94 [N.E.: auxílio
imigratório da OIR e Comandante do Gueto de Riga]; e) Junta do
processo do registro de estrangeiro de Herberts Cukurs.118

Justificando suas orientações, Maciel disse:

País em que o estrangeiro deve sentir-se garantido, o Brasil, entretan-


to não pode acolher criminosos de guerra, cuja presença seria nociva
aos interesses nacionais. Preciso é, porém, para que não se cometam
injustiças, que se positivem por documentos idôneos as acusações
formuladas. Somente com tais elementos presentes é que se poderá
abrir o processo de expulsão, facultando, então, a ampla defesa do es-
trangeiro acusado. Evidentemente, a documentação acima referida
precisa ser contrastada com as diligências que tomamos a liberdade
de sugerir, de vez que não provém de órgãos oficiais.119

Tecnicamente, o parecer de Maciel tinha sido até aquele momento o mais coeren-
te e completo de todos já emitidos pelo Ministério da Justiça no Caso Cukurs. Ironi-
camente, isso partira de um ex-integralista. Maciel organiza boa parte das informa-
ções que seu ministério havia reunido e solicitou informações que, se por um lado são
óbvias, até ali tinham sido negligenciadas. Maciel, por exemplo, solicita ao Ministério
das Relações Exteriores que checasse a atuação do Comitê de Investigações dos Cri-
mes Nazistas nos Países Bálticos. Teria este comitê encaminhado as graves acusações
contra Cukurs a algum tribunal de guerra? Se sim, que resultado tivera? Além disso,
ao pedir que se checassem as informações passadas pelo governo americano, Maciel
reparava o descuido anterior de José Viera Coelho. Por fim, mais uma vez dava mos-
tras de que ainda não confiava no material enviado pela Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro. Maciel queria que essas evidências fossem positivadas e
contrastadas com outras, provenientes de fontes oficiais. O ano de 1951 terminava,
deste modo, com a seguinte perspectiva: a busca da federação em comprovar a ido-
neidade do comitê continuava sendo uma tarefa fundamental. Porém, tão importante
agora eram também eram os resultados que o Itamaraty encontraria em Londres.

3.11. Uma questão de idoneidade

No início de 1952, mais precisamente no dia 11 de janeiro, Brassloff escreveu à


Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro compartilhando informações
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
118
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.153.
119
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.153.

208
CAPÍTULO 3
!

não muito animadoras sobre o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Paí-
ses Bálticos. Aquilo que dizia o representante do Congresso Judaico Mundial nos aju-
da a entender por que a documentação recolhida pelo referido comitê tinha tantos
problemas em seus aspectos legais. Além, a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro tinha mais um grave problema em termos políticos para enfrentar:

Esta não foi uma instituição muito importante, sendo formada por ju-
deus bálticos, residentes em Londres, que por legítimo interesse, de-
sejaram demonstrar tanto às autoridades britânicas quanto aos judeus
e ao povo em geral a urgência de descobrir e processar os criminosos
de guerra que cometeram assassinatos em massa no Gueto de Riga. O
Comitê encerrou o seu funcionamento no fim do ano de 1949 e a
nossa seção britânica concordou em colher os autos e continuar com
a atuação do Comitê. Formamos um subcomitê com a finalidade de
demonstrar a continuação da atividade do primitivo Comitê. De acor-
do com as informações recebidas, o Comitê tinha, de fato, conexões
com as autoridades britânicas, particularmente com a Turma de In-
vestigações sobre Crimes de Guerra, que atuou na Alemanha. O Co-
mitê colheu evidências e submeteu-as às autoridades britânicas. En-
tretanto, desde então, muito tempo se passou e as autoridades britâni-
cas deixaram de ter interesse ativo em tais assuntos como o Gueto de
Riga e, de fato, será muito difícil obter uma declaração que implica-
ria no reconhecimento dos serviços prestados pelo extinto Comitê,
particularmente quando uma tal declaração é requerida para o uso por
um governo estrangeiro. Entretanto, temos abordado o assunto junto
ao Foreign Office e estamos nos esforçando para obter a tal declara-
ção e para preparar o terreno, caso o inquérito avisado por vossa ex-
celência seja feito pelas autoridades brasileiras.120

As notícias ruins trazidas por Brassloff não se resumiam ao status “não muito im-
portante” do comitê. Brassloff procurou explicar aos seus interlocutores no Brasil que
o pedido da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro para que se buscas-
se uma declaração de alguma autoridade britânica oficial reconhecendo o extinto co-
mitê não se adequava ao modus operandi das organizações europeias:

Quanto à vossa sugestão, segundo a qual uma tal declaração deve ser
emitida pelas Nações Unidas, ou pela Comissão de Crimes de Guer-
ra, junto às Nações Unidas, ou por outra Comissão de Crimes de
Guerra, junto às Nações Unidas, ou por qualquer outra autoridade in-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.104.

209
CAPÍTULO 3
!
ternacional, que poderá ser usada como espécie de credencial para o
Comitê ou o CMJ, esta não corresponde à linha de conduta adotada
por tais organizações, e, além disso, a Comissão de Crimes de Guer-
ra, junto às Nações Unidas, encerrou a sua atividade há certo tempo.
Não obstante, estamos prontos para fazer uma declaração na qual po-
deremos certificar: a) que o CMJ é uma organização internacional
com status consultivo no Conselho Econômico e Social junto às Na-
ções Unidas; b) que a seção britânica do CMJ tomou em seu poder a
documentação do Comitê de Investigações sobre Crimes de Guerra
nos Países Bálticos [sic], que estabeleceu um subcomitê; c) que as in-
formações sobre os criminosos de guerra bálticos apresentadas pelo
Comitê foram aceitas de boa-fé. Por favor, informe-nos com urgência
se tal declaração será aceitável, e tomaremos as providências para a
sua redação e a subsequente assinatura, bem como o reconhecimento
das firmas pelo Consulado Geral do Brasil.121

Não surpreendentemente, a reposta de Brassloff pegou os diretores da federação


carioca de surpresa. O Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálti-
cos, pelo que acabavam de descobrir, tinha existido somente por seis meses, não fora
uma entidade muito importante e provavelmente não teria a idoneidade confirmada
pelas autoridades britânicas. Mais uma vez, a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro não conseguiria entregar algo importante solicitado pelo Ministério da
Justiça. Brassloff vinha, como vimos, trabalhando em várias frentes para ajudar seus
interlocutores no Rio de Janeiro, mas logo ele, que tinha trabalhado no comitê, demo-
rou dois anos para informar a federação aqueles dados. Constantino e Zeigarnikas não
esconderam sua decepção em carta enviada a Londres em 23 de janeiro de 1952. Am-
bos lamentavam o que tinham descoberto e chamaram a atenção que aquela informa-
ção não tinha sido transmitida a eles quando as conversas sobre o tema começaram:

(...) Ficamos bastante surpreendidos conhecendo a verdadeira impor-


tância do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países
Bálticos. Quando o CMJ se dirigiu a nós pela primeira vez neste as-
sunto, não fomos informados sobre a forma de constituição de uma
fonte semioficial. Por isso, sempre temos realçado a importância des-
te Comitê em nossas entrevistas à imprensa e em nossos memorandos
oficiais. Seja como for agora é tarde para retroceder122

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
121
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.104-105.
122
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.100.

210
CAPÍTULO 3
!

“Seja como for agora é tarde para retroceder”. A frase exprimia a enorme frustra-
ção com que Constantino e Zeigarnikas tinham recebido as notícias de Brassloff. Mas
como realmente não era possível voltar atrás na estratégia, os dois dirigentes da Fede-
ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro pediram a Brassloff que este prepa-
rasse uma nova declaração. Esta declaração precisava informar que:

a) o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálti-


cos manteve relações de cooperação com a Turma de Investigações
sobre Crimes de Guerra, que atuou na Alemanha, colhendo provas
que em seguida foram transmitidas às autoridades britânicas; b) que a
seção britânica do CMJ tomou em seu poder a documentação do
Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos ,
bem que a sua atuação, criando para este fim um subcomitê; c) que o
CMJ é uma organização internacional com status consultivo no Con-
selho Econômico e Social das Nações Unidas.123

Zeigarnikas e Constantino terminaram a carta ainda com uma última solicitação:


que o Congresso Judaico Mundial cuidasse para que o Foreign Office desse uma res-
posta positiva à Embaixada brasileira quando abordado sobre o material do Comitê.124

3.12. Depoimentos contra Cukurs sob desconfiança

Em oito de março de 1952, a Secretaria de Estado das Relações Exteriores foi atua-
lizada pela Embaixada Brasileira em Londres a respeito das investigações feitas pelo
Foreign Office. Os ingleses informaram que o Comitê de Investigações dos Crimes
Nazistas nos Países Bálticos realmente funcionou na capital inglesa, mas somente a
“título oficioso” e que este Comitê não dispunha de dados sobre Herberts Cukurs. Os
funcionários do Foreign Office, entretanto, informaram que pediram maiores detalhes
sobre Cukurs às autoridades britânicas de ocupação na Alemanha, os quais seriam en-
viados à Embaixada Brasileira tão logo fosse possível.125 No dia 31 de maio, o Itama-
raty repassou os resultados completos ao MJNI:

O governo britânico informou que o Comitê de Investigações dos


Crimes Nazistas nos Países Bálticos funcionou efetivamente em
Londres, a título oficioso, mas nele nada constava sobre Herberts
Cukurs; No tocante à Organização Internacional de Refugiados
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.100.
124
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.101.
125
AHI-RJ. Consulado Brasileiro em Londres: Carta Telegrama 62.

211
CAPÍTULO 3
!
(OIR), não prestou ela qualquer assistência a Herberts Cukurs, pelo
fato de datar a sua existência de fevereiro de 1947, onze meses, por-
tanto, após a entrada do referido alienígena no Brasil; O Ministério
da Justiça e do Interior da França, por sua vez, comunicou que nada
consta, nas diversas repartições a ele subordinadas, a respeito de Cu-
kurs. Nessas condições, resultaram, infelizmente, infrutíferas as dili-
gências solicitadas por esse Ministério.126

As informações do Foreign Office esclareciam certas dúvidas do Ministério da Jus-


tiça. A questão envolvendo a Organização Internacional dos Refugiados era uma de-
las: os americanos tinham realmente transmitido uma informação equivocada. Cukurs,
de fato, não chegara ao Brasil com ajuda daquela instituição. Essa informação somen-
te atrapalhou as investigações, gerando ruído e consumindo tempo. Os ingleses tam-
bém confirmaram que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bál-
ticos não tinha sido um órgão oficial. E nenhuma menção tinha sido feita sobre sua
contribuição junto ao governo britânico na investigação de crimes de guerra. Além
disso, mais um governo europeu, o francês, nada tinha encontrado de desabonador
sobre o passado de Herberts Cukurs. O grande problema desta comunicação do Fo-
reign Office, porém, dizia respeito ao fato de que nada teria sido encontrado sobre
Cukurs no Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos. O que as
autoridades inglesas iam contra as informações do Congresso Judaico Mundial – e
eram errôneas, já que o comitê, ainda que oficiosamente, colaborou com as autorida-
des britânicas – e faria o governo brasileiro duvidar ainda mais daquele comitê e das
evidências que tinham sido encaminhadas a ele pela Federação das Sociedades Israeli-
tas do Rio de Janeiro. Era uma notícia bastante prejudicial ao movimento pela expul-
são de Cukurs, podendo até mesmo facilitar sua aquisição de nacionalidade, uma vez
que as dúvidas em relação ao seu passado poderiam se consideradas resolvidas. No
final de junho de 1952, a informação foi recebida pelo governo brasileiro, juntada aos
autos e remetida à Maciel.127

Neste momento, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro continua-


va fazendo tudo o que estava ao seu alcance para reunir as melhores evidências contra
Cukurs. A relação com o Congresso Judaico Mundial de Londres àquela altura tinha
sofrido alguns desgastes. No dia 10 de julho de 1952, Marcos Constantino escreveu a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
126
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.170.
127
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.171.

212
CAPÍTULO 3
!

Brassloff bastante irritado pelo silêncio na comunicação: “Nós estamos altamente sur-
presos pela falta de notícias desde o dia 8 de abril, quando vocês nos advertiram que
estariam enviando a declaração solicitada dentro de alguns dias.”128 Constantino sub-
linhou que desde então já tinham se passado três meses e ele não tinha recebido ne-
nhum documento e nem ouvido nada sobre a questão. “Nós estamos desconcertados
quanto ao que devemos fazer”.129 O advogado completou a reclamação:

Nós entendemos que vocês estão cientes da posição desastrosa que


nós nos encontraremos se nós não apresentarmos essa declaração
dentro de alguns dias. Nossa credibilidade com as autoridades estará
em cheque e nós nunca mais poderemos interferir em qualquer caso
semelhante. (...) Sob tais circunstância, nós somos obrigados a insis-
tir em nossa solicitação para que esse assunto seja concluído com a
máxima urgência. 130

Brassloff respondeu a carta de Constantino no dia 15 de julho de 1952 pedindo


desculpas pelo atraso e explicou que o documento estava prestes a ser assinado pelo
Secretário Geral da seção Britânica do Congresso Judaico Mundial, Siegrified Roth,
quando este teve que viajar subitamente à Viena por conta de um compromisso políti-
co importante.131 Até o momento, Roth estava fora do país, o que explicava o atraso
no envio do material. Brassloff e o Congresso Judaico Mundial de Londres tinham
sido bastante receptivos até aquele momento com relação à Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro. Mas nem todos em Londres, para além de Brassloff, pa-
reciam encarar Cukurs com urgência. Tudo isso diminuía, claro, as chances de êxito.

O Foreign Office também avançava em ritmo lento nas investigações. Apenas no


final de julho de 1952, quatro meses após o envio do último ofício por Maciel, a Em-
baixada Brasileira em Londres recebeu novas informações das autoridades inglesas. O
oficial britânico Patrick Francis Hancock, chefe do Central Department do Foreign

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
128
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “We are highly surprised to be without you news since April 8, when you advertised us the for-
warding of the requested statement, within the next few days”.]
129
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “Passed 3 months, we whether received the mentioned document, nor we heard about the matter,
so we are completely discomposed about what we have to do”.]
130
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153. f.286. [Orig-
inal: “We suppose you are aware in what disastrous position we should be, if we could not furnish this
statement within the next few days. Our credibility with our authorities would be broken off and we
never more can interfere in whatever similar case”.]
131
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.f.283.

213
CAPÍTULO 3
!

Office, em Bonn, na Alemanha, justificou o atraso dizendo que fora necessário recor-
rer às autoridades alemãs. E Hancock não trazia informações tão relevantes assim. Ele
informou que após “longas investigações” a única coisa que haviam encontrado era
um depoimento juramentado contra um tal de “Zuckurs”, o qual pressupunham ser
Cukurs – muito provavelmente uma cópia de um dos depoimentos que já estavam
com governo brasileiro. De todo modo, não era o documento oficial que as autorida-
des brasileiras estavam esperando encontrar. Hancock também voltou a mencionar
que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos não fora um
corpo oficial e “nem teve ele qualquer ligação especial com qualquer autoridade do
governo britânico”. Além disso, respondendo se um comandante de gueto, como se
supunha ter sido Cukurs, seria a priori um criminoso de guerra, Hancock respondeu:

A resposta curta para a questão se comandantes de gueto seriam, em


função de suas atribuições, considerados criminosos de guerra, é que
eles não seriam. Mas o Tribunal de Nuremberg declarou que certas
organizações seriam “criminosas”. As organizações assim considera-
das foram a S.S, a Gestapo, a S.D. e os grupos de lideranças do Parti-
do Nazista, mas a decisão do Tribunal não se referiu a essas organi-
zações em sua totalidade, mas somente a certos elementos que as
compunham. (...) Um membro de uma organização criminosa não era
ipso facto um criminoso. Ele pode, contudo, ser processado pela acu-
sação de ter sido membro de uma organização criminosa com conhe-
cimento de suas atividades e objetivos criminosos. Mesmo se ele fos-
se condenado, teria que se dar um sentido bem mais amplo a expres-
são “criminosos de guerra” para considerá-lo enquanto tal. Nós não
pudemos confirmar se Cukurs pertenceu ou não, de fato, a essas
“criminosas” organizações, mas não é improvável que alguém ocu-
pando uma posição no gueto teria tido alguma posição na S.S. ou em
uma das outras organizações criminosas.132

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Confidencial - 918438 Embaixada Brasileira em Lon-
dres. 278/7/(70d)(42)(01)/1952/Anexo. Foreign Office, S.S.1. 29th July, 1952. Confidencial.
C1661/262. [Original: “The short answer to the question whether ghetto commandants were, by reason
of their occupation, considered to be war criminals is that they were note. But the Nuremberg Tribunal
did declare certain organizations to be ‘criminal’. The organizations so condemned were the SS, the
Gestapo and the SD and the Leadership corps of the Nazi party, but the Tribunal’s decision referred not
to these organizations in their entirety but only to certain of the elements comprising them. The exact
position is set forth in the Judgment of International Military Tribunal which was published by Her
Majesty’s Stationery Office as a Command paper in 1946 (Cmd.6964). A member of a criminal organi-
zation was not ipso facto a criminal. He might, however, be tried for the offence of being a member of
a criminal organization with knowledge of its criminal aims and activities. Even if were convicted, it
would be giving an extended meaning of the expression ‘war criminal’ to describe him as such. We

214
CAPÍTULO 3
!

As informações do Foreign Office tornavam a abertura do processo de expulsão de


Cukurs algo cada vez mais distante. Desta vez, as notícias eram de que as autoridades
alemãs não tinham encontrado nada oficial sobre Cukurs. Além disso, o que era parti-
cularmente mais grave, Hancock disse que Comitê de Investigações dos Crimes Na-
zistas nos Países Bálticos não tivera “qualquer ligação especial com qualquer autori-
dade do governo britânico”.133 Isso colocava em uma posição bastante complicada
tanto o Congresso Judaico Mundial quanto a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro. Anteriormente, eles trabalhavam com a noção de que o mencionado
comitê tinha sido um órgão semioficial. Não eram as condições ideais. Mas era algu-
ma coisa. Agora, a perspectiva tinha se transformado para pior. O comitê sequer tinha
a sua relação semioficial com o governo confirmada. Por fim, o funcionário do Fo-
reign Office julgou que um comandante de gueto não poderia ser considerado, a prio-
ri, criminosos de guerra. Função no gueto, a propósito, que Cukurs nunca teve.

No dia dois de setembro de 1952, Anor Butler Maciel elaborou um novo parecer.
Tendo em vista todas as repostas repassadas pelo Foreign Office ao Itamaraty, parti-
cularmente aquela em que se informava nada constar sobre Cukurs no Comitê de In-
vestigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, o consultor jurídico do Ministé-
rio da Justiça determinou que os depoimentos contra Cukurs fossem enviados ao Mi-
nistério das Relações Exteriores para que este pudesse apurar se os mesmos eram fal-
sos ou se houvera equívoco na informação do governo britânico.134 Chegamos aqui a
um momento bastante importante do Caso Cukurs e, consequentemente, desta tese.
Naquele momento, Maciel poderia ter indicado o arquivamento do pedido de expulsão
e até mesmo recomendado o prosseguimento da naturalização de Cukurs. Essa seria a
oportunidade que esperava um “governo protetor de criminosos nazistas” ou ainda
um funcionário do governo orientado por seu senso antissemita. O Foreign Office,
afinal de contas, uma fonte oficial, tinha desautorizado ainda mais as informações da
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, a ponto de colocar em suspeita
a autenticidade dos depoimentos apresentados por esta entidade ao governo brasileiro.
Ao invés disso, no entanto, Maciel dá sequência às investigações. Ele chega até mes-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
have not been able to confirm whether Cukurs did, in fact, belong to any of these ‘criminal’ organiza-
tions but it is not unlikely that anybody holding a position of authority in a ghetto would have held
some rank in the SS or one of the other criminal organization.”]
133
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Confidencial - 918438 Embaixada Brasileira em Lon-
dres. 278/7/(70d)(42)(01)/1952/Anexo. Foreign Office, S.S.1. 29th July, 1952. Confidencial.
C1661/262.
134
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.173.

215
CAPÍTULO 3
!

mo a colocar em dúvida se não fora o governo britânico a se equivocar em sua respos-


ta. E isso, devemos nos lembrar, ocorre em um momento em que o caso já não mais
estampava os noticiários. Temos aí duas conclusões importantes: 1) as visões social-
mente difundidas sobre um Estado a priori conivente com criminosos nazistas eram
superestimadas; 2) as forças políticas que tinham se levantado naqueles últimos anos
contra Herberts Cukurs, por vezes, se sobrepunham às questões meramente tecnicis-
tas, mesmo quando o indivíduo responsável pelo juízo das ações era um ex-
integralista de passado antissemita. Não que essas forças políticas tivessem a ver com
algo escuso e desonesto ou com conspirações e arbitrariedades, mas sim com a confi-
guração de uma arena política que permitia, pelo menos naquele período, que seus
vários atores sociais tivessem força e voz. Essa é uma perspectiva que certamente tor-
na muito mais complexo o posicionamento do governo brasileiro no Caso Cukurs.

Isso não quer dizer, por outro lado, que a Federação das Sociedades Israelitas do
Rio de Janeiro tenha saído sem nenhum tipo de prejuízo frente às informações forne-
cidas pelo Foreign Office. Um dos aspectos mais curiosos deste segundo parecer de
Maciel diz respeito à última providência solicitada por ele, bem no final do documen-
to: “que se apure a situação da Federação das Sociedades Israelitas de vez que a lei
sobre a sociedade de estrangeiros apenas prevê associação de pessoas físicas.”135 Uma
análise que levasse em consideração apenas o passado integralista de Maciel, poderia
rapidamente taxar esse pedido como uma atitude antissemita. Ou ainda: como de-
monstração de que o governo brasileiro protegia deliberadamente o perpetrador, Cu-
kurs, ao passo que perseguia a vítima, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro, colocando-a como suspeita e desonesta. Porém, isso não está evidente de
forma alguma no parecer quando se conhece o contexto do caso. Há, claro, a possibi-
lidade de que Maciel tenha feito isso com base em algum sentimento antissemita. Po-
rém, tendo em vista todas as idas e vindas do Caso Cukurs, todos os ruídos produzi-
dos durante a investigação, era muito provável que tal solicitação não passasse de um
reflexo da irritação de Maciel a respeito da federação. A julgar apenas pelo que os in-
gleses tinham afirmado, a entidade poderia ter usado material falso para abrir um pro-
cesso de expulsão contra Cukurs. Fosse confirmado que os documentos não eram ver-
dadeiros, a federação teria consumido, despropositadamente, recursos do Estado, ge-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
135
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.173.

216
CAPÍTULO 3
!

rado grande polêmica pública e envolvido governos estrangeiros. E vale dizer: bus-
quei saber se a entidade foi investigada após o parecer: nada encontrei.

A declaração assinada por Roth, Secretário Geral da seção britânica do Congresso


Judaico Mundial, chegou às mãos dos representantes da Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro poucos dias depois da emissão do novo parecer de Maciel,
sendo imediatamente juntada ao processo de Cukurs no Ministério da Justiça.136 Po-
rém, seria pouco provável que o documento tivesse feito diferença caso tivesse che-
gado antes. Não só porque Maciel já tinha recebido os novos dados do Foreign Office
sobre o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, mas porque
a declaração enviada por Brassloff apenas afirmava que o Congresso Judaico Mundial
era uma organização voluntária internacional, tendo sido concedida a ela, em 1947,
um status de organização consultiva junto ao Conselho Econômico e Social das Na-
ções Unidas. Além disso, explicava também que o citado comitê tinha cooperado com
as autoridades britânicas em investigações sobre crimes de guerra – o que contrastava
com a informação do Foreign Office – e que suas funções tinham sido assumidas pelo
Congresso Judaico Mundial logo após seu fim como corpo independente.137

No dia 30 de setembro de 1952, Marcos Constantino enviou uma carta ao Congres-


so Judaico Mundial agradecendo pelo documento enviado, mesmo, segundo disse,
não sabendo qual efeito ele teria na avaliação do consultor jurídico do Ministério da
Justiça, a quem agora ele classificava como “não muito bem-intencionado quanto aos
judeus”. Constantino também fez um novo pedido a Brassloff, pelo que se pôde infe-
rir, motivado por um novo encontro que ele teria com Maciel:

O Consultor Jurídico, obviamente não muito bem-intencionado quan-


to aos judeus, nos perguntou – e nós confessamos que a questão era
bastante natural – por quais razões o antigo Comitê de Investigações
dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos não denunciou ele [Cukurs]
à [organização] oficial Comissão dos Crimes de Guerra das Nações
Unidas. Mesmo quando Cukurs escapou para o Brasil, ele poderia ser
incluído na lista de criminosos nazistas como assassino de milhares
de judeus, tal como muitos outros tinham sido incluídos nesta lista
que estavam fora do alcance da Corte de Crimes de Guerra. Vocês se
lembrarão do caso dos irmãos Zajfman, que estão vivendo no Brasil,
mas seus nomes estão na lista de criminosos nazistas. O Comitê de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
136
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.175-179.
137
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.195-96.

217
CAPÍTULO 3
!
Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, tendo tantas
evidências contra Cukurs, deveria ter denunciado ele às autoridades
oficiais e nós deveríamos saber a razão porque o mencionado Comitê
não procedeu desta forma. Por favor, façam a gentileza de nos infor-
mar uma explicação sobre isso assim que possível para que nós a
possamos transmitir ao Consultor Jurídico.138

Em dezembro de 1952, Brassloff escreveu a Constantino dizendo que realmente


não sabia o porquê do Comitê de Investigações de Crimes Nazistas nos Países Bálti-
cos não ter denunciado Cukurs às autoridades oficiais, lembrando que o Congresso
Judaico Mundial somente havia recebido a documentação da instituição. Brassloff, no
entanto, prometeu fazer a pergunta a H. Michelson, o antigo chairman da entidade,
informando Constantino tão logo tivesse uma resposta.139

Desta forma, 1952 chegava ao fim: enquanto a Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro aguardava mais esses esclarecimentos do escritório londrino do
Congresso Judaico Mundial, o Ministério da Justiça aguardava a abordagem do Mi-
nistério das Relações Exteriores junto ao governo britânico.140 O caso, assim, estava
ainda totalmente aberto. Porém, a posição que as autoridades britânicas assumiriam
dali a pouco tempo em nada ajudaria as tentativas de expulsar Cukurs do país.

3.13. Foreign Office: “Os brasileiros estão batendo na porta errada”

O primeiro semestre de 1953 transcorreu sem que o Foreign Office desse qualquer
retorno à Embaixada Brasileira em Londres. Nesse tempo, a comunicação entre a Fe-
deração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e o Congresso Judaico Mundial
também parece ter sido interrompida. Nos documentos aqui analisados, não consegui
encontrar a resposta que Brassloff prometera a Constantino no final de 1952. Nesse

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
138
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.107-108.
[Original: “(…) The jurisconsult, obviously not very well intended toward Jews, asked us - and we
confess that the question was quite natural – for what reason the former ‘Committee for Investigations
of Nazi Crimes in Baltic Countries” did not denounce or suite him to the official United Nations War
Crime Commission. Even when Cukurs escaped to Brazil, he should be included in the list of war crim-
inals, as a murder of ten thousands Jews, as many others were included in this list, being out of reach of
the War Crime Court. The Committee for Investigations of Nazi Crimes in Baltic Countries, having so
copious evidences against Cukurs should have denounced him to the official authority and we should
like to know the reason why the mentioned committee did not handle the case in this way. Please, be
kind enough to let us have, as soon as possible, your explanation concerning this matter, in order to
transmit your information to the jurisconsult.”]
139
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fl.282.
140
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.182.

218
CAPÍTULO 3
!

período, também não se acrescentou nada ao processo 27.996/1950 de Herberts Cu-


kurs no Ministério da Justiça. Na imprensa, o caso já tinha praticamente desparecido.

A reforma ministerial realizada por Vargas em 1953 talvez explique o fato do go-
verno brasileiro ter levado tanto tempo sem cobrar suas respostas ao Foreign Office.
O Ministério das Relações Exteriores foi um dos ministérios mais afetados. João Ne-
ves da Fontoura, à frente da pasta desde 31 de janeiro de 1951, deu lugar a Mário de
Pimentel Brandão (interino), em 3 de julho de 1953, e este, por sua vez, deu lugar a
Vicente Rao, em 19 de julho de 1953. No Ministério da Justiça, Francisco Negrão de
Lima deixou o cargo em 26 de julho de 1953 e Tancredo Neves assumiu seu lugar.

Somente no dia quatro de agosto de 1953 vamos observar uma retomada nas inves-
tigações. Nesta data, o recém-empossado Ministro da Justiça, Tancredo Neves, enca-
minhou um ofício ao também recém-empossado Vicente Rao, do Itamaraty, lembran-
do de verificar junto ao Foreign Office as informações solicitadas por Anor Butler
Maciel.141 No dia 22 de agosto de 1953, o Ministério da Justiça foi informado de que
já tinham sido transmitidas à Embaixada do Brasil em Londres os depoimentos contra
Cukurs, estando ainda o Itamaraty aguardando o retorno do Foreign Office.142 O en-
carregado disso em Londres era o embaixador Samuel de Souza Leão Gracie. No dia
30 de setembro, Gracie entregou um memorando confidencial ao Foreign Office pe-
dindo novamente ajuda no Caso Cukurs. O embaixador brasileiro desejava saber se os
documentos do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, en-
tão encaminhados àquele órgão, eram mesmo autênticos. “Ficasse provada a exatidão
deles”, sublinhou Gracie, “lançaria nova luz sobre o caso de Herberts Cukurs”.143

H.W. Evans, responsável pelo Foreign Office’s German Political Department, em


Bonn, na Alemanha, foi o primeiro a ser consultado a respeito. Evans, no entanto, pa-
recia muito pouco disposto a colaborar com o governo brasileiro naquele assunto. Na
sua opinião, os alemães já haviam entregado aos britânicos tudo o que tinham contra
Cukurs. Ele registrou em ofício interno do Foreign Office: “Eu tenho muito pouca
esperança que esses últimos documentos obtenham qualquer nova informação dos
alemães”.144 Patrick Francis Hancock, o chefe do Central Department do Foreign Of-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.185.
142
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.186-187.
143
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 30/09/1953.
144
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 13/10/1953. [Original: “I see little
hope that these latest documents will elicit any new information from the Germans”.]

219
CAPÍTULO 3
!

fice, que tinha municiado a Embaixada Brasileira em Londres da primeira vez em que
esta pediu auxílio, concordou com Evans. Porém, ele ainda tentou acionar M.F.P.
Herchenroder, do Office of Legal Advisers U.K. High Commission in Germany, em
Bonn:

Nós ficaríamos (...) muito gratos por qualquer informação nova que
você pudesse obter a fim de nos habilitar a responder aos brasileiros.
Nós ficaríamos gratos por uma resposta rápida, haja vista que da úl-
tima vez que eles entraram em contato conosco sobre esse assunto
nós o fizemos esperar por um longo tempo.145

Herchenroder, no entanto, também foi pouco receptivo ao pedido do governo brasi-


leiro. Alegou que, na sua opinião, não ficava claro o que a Embaixada do Brasil em
Londres queria dizer com “a autenticidade dos documentos”:

Seria muito difícil e, muito provavelmente, impossível para nós


aqui, verificar se os depoimentos atribuídos às cinco testemunhas
(Fiszkin, Shapiro, Tukacier, Gerstein e Schub) foram feitos. Nós te-
ríamos que encontrar e examinar cada testemunha ou membro de
várias organizações judaicas diante das quais os depoimentos supos-
tamente foram tomados. Mesmo se isso pudesse ser feito, nós não
poderíamos expressar nenhuma opinião sobre a verdade desses de-
poimentos (mas a Embaixada Brasileira pode não ter isso em men-
te). Os depoimentos, segundo dizem, foram tomados em 1948 e
1949, um em Wasseralfingen, dois em Munique, um no Canadá e
outro nos Estados Unidos. Não está claro por que a Embaixada Bra-
sileira não abordou o Sr. H. Michelson ela mesma. Ele pode saber
onde as testemunhas estão no presente. Eu acho muito pouco prová-
vel que outra intervenção junto às autoridades alemãs pudesse ser
sensata ou útil, no sentido da reposta que eles nos deram em
1952.146

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
145
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 20/10.1963. [Original: “We should l
however, be very grateful for any further information you can obtain which would enable us to reply to
the Brazilians. We should be grateful for an early reply, as the last time they approached us on this sub-
ject we had to keep them waiting rather a long while.”]
146
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 29/10/1953. [Original: “It would be
difficult and very likely impossible for us here to verify whether the statements attributed to the five
witnesses (Fizskin, Shapiro, Tukacier, Gerstein and Schub) were made. We should have to trace and
examine either the witnesses themselves or the member of the various Jewish organizations before
whom the statements are alleged to have been made. Even if this could be done, we could express no
opinion about the truth of the statements (but the Brazilian Embassy may not have this in mind). The
statements are said to have been made, some as far back as 1948 and 1949, one in Wasseralfingen, two
in Munich, one in Canada and one in the USA. It is not clear why the Brazilian Embassy has not ap-
proached Mr. H. Michelson himself. He might know where the witnesses are at present. I very much

220
CAPÍTULO 3
!

Embora dura, a mensagem de Herchenroder tinha algum sentido. Por um lado, se-
ria bastante difícil para Foreign Office encontrar todas as testemunhas ou mesmo aci-
onar cada instituição responsável pela tomada dos depoimentos. E mesmo que isso
pudesse ser feito, como aquele órgão diria que o teor das acusações correspondia à
verdade? Por outro lado, era perfeitamente possível a ele confirmar que o Comitê de
Investigações de Crimes Nazistas nos Países Bálticos, embora não tendo sido um ór-
gão oficial, atuou de modo oficioso junto ao governo britânico, auxiliando nas inves-
tigações sobre crimes de guerra. Essa informação poderia ter sido facilmente confir-
mada após uma consulta do Foreign Office aos arquivos de suas equipes de investiga-
ções de crimes de guerra. Vale a pena ressaltar ainda que o Congresso Judaico Mun-
dial aparentemente não sensibilizou o Foreign Office para o contato das autoridades
brasileiras, como tinha sido solicitado por Constantino, ou não conseguiu a atenção
necessária para o caso em sua tentativa de sensibilização. Por fim, tivesse o Foreign
Office determinado a abordar os alemães novamente, mas desta vez com os depoi-
mentos enviados pela Embaixada Brasileira em Londres, fatalmente seriam informa-
dos de que o material era legítimo, ainda que proveniente de fonte oficiosa. Isso não
aconteceu.

H.W. Evans, concordou inteiramente com a análise de Herchenroder. Segundo dis-


se, não seria prudente e nem producente abordar os alemães novamente, uma vez que
estes já tinham passado a eles tudo o que tinham contra Cukurs. Evans estava alinha-
do com o clima da Guerra Fria de priorizar a luta contra o nazismo, que deveria ser
deixada no passado e focar no presente da luta contra o comunismo. Além disso, o
Foreign Office, afirmou Evans, não estava em posição de julgar a autenticidade dos
depoimentos e também não lhes cabia julgar se Cukurs cometeu ou não tais crimes.
“Eu acho que os brasileiros estão batendo na porta errada a este respeito. Cukurs nun-
ca foi indiciado por crimes de guerra e a tal respeito nós certamente não podemos de-
senterrar o passado para ver se ele deve ter sido ou não”, registrou o funcionário. 147

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
doubt whether another approach to the German authorities would be wise or useful in view of the an-
swer they gave us in 1952.”] Obs. O estranhamento dos ingleses do Foreign Office é compreensível. A
Embaixada Brasileira em Londres não entrou em contato com Michelson porque eles sequer sabiam de
sua existência. A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro não envolveu o seu nome dire-
tamente nas conversas com o governo brasileiro. Além disso, as autoridades brasileiras estavam inte-
ressadas em uma confirmação que procedesse de fontes oficiais.
147
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 13/11/1953. [Original: “I think the
Brazilians are barking up the wrong tree over this. Cukurs has never been charged with war crimes and
at this stage we cannot possible rake among the ashes to see whether he ought to have been.”]

221
CAPÍTULO 3
!

Em meados de novembro de 1953, após três meses sem resposta, o Embaixador


Brasileiro em Londres, Samuel de Souza Leão Gracie, voltou a cobrar o Foreign Offi-
ce por uma reposta. Hancock não gostou da insistência de Gracie e em três de dezem-
bro daquele ano registrou a seguinte recomendação nas minutas do Foreign Office:

Eu não estou nem um pouco contente com isso. O fato é que nós não
estamos preparados para tratar deste assunto e nós não deveríamos
dar aos brasileiros a impressão de que nós estamos preparados. (...)
Eu estou inclinado a pensar que a coisa certa seria não fazer nada e
esperar que os brasileiros esqueçam deste caso. Imagino que eles não
estejam familiarizados com tais táticas. Se no futuro os brasileiros
nos lembrarem, então sugiro dizer que isso seria muito difícil e pro-
vavelmente impossível verificar se os depoimentos são verdadeiros e
que nós lamentamos não poder ajudar de outra forma. (...) Nós ape-
nas nos exporíamos se atendêssemos a um novo pedido dos brasilei-
ros, o que é algo que precisamente nós não queremos fazer.148

Ao comentar as palavras de Evans o historiador Guy Walters afirma:

Nunca a completa falta de vontade de um burocrata britânico para ver


homens como Cukurs levados à justiça fora tão cinicamente cristali-
zada. Tivesse Evans checado, ele teria visto que Cukurs não poderia
ter sido indiciado, uma vez que ele nunca fora preso. Além disso, a
questão da confirmação da autenticidade dos documentos poderia ser
facilmente feita pela leitura dos arquivos do War Crimes Group, o
qual, como nós vimos, contém numerosas páginas de testemunhos
feitos contra Cukurs e seu chefe, Arajs.149

Estava óbvio que os oficiais do departamento das relações exteriores da Grã-


Bretanha não estavam tão interessados em tentar novos caminhos para ajudar o Brasil.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
The National Archives (TNA-UK): FO 371/104151/1661/183, 03/12/1953. [Original: “I am not
quite happy about this. The fact is that we are not prepared to pursue this business and we ought not to
give the Brazilians the impression that we are so prepared. (…) I am inclined to think that the right
thing would be to do nothing at all and to hope that the Brazilians will forget about the affaire. I expect
the Brazilians are not unacquainted with such tactics. If at a later date the Brazilians remind us, then I
suggest that we might say that it would be very difficult ad probably impossible to verify the statements
and that we regret therefore that we cannot take the matter any further. (…) We shall only expose our-
selves to a further request from the Brazilians to pursue the matter, which is precisely what we do not
want to do”.]
149
WALTERS, Guy. Hunting Evil: The Nazi War Criminals who escaped and the Quest to Bring Them
to Justice. New York: Broadway Books, 2010, p.321, p.412. [Original: ““Never was British official-
dom’s complete lack of will to see men like Cukurs brought to justice so cynically crystallized. Had
Evans checked, he would have seen that Cukurs could not have been charged, as he had never been in
custody. Furthermore, the matter of confirming the perusal of the files of the War Crimes Group,
which, as we have seen, contained numerous pages of testimony made against Cukurs and his boss
Arajs”.]

222
CAPÍTULO 3
!

Este é um ponto, por sinal, bastante importante aqui. O governo brasileiro, mesmo
com Cukurs fora dos holofotes da mídia e com a desmobilização de vários setores ju-
daicos, não somente tinha continuado suas investigações, como vinha insistindo junto
ao Foreign Office na busca por respostas. O governo britânico, por sua vez, delibera-
damente, decidiu ignorar os pedidos brasileiros. Hancock sequer explicou ao embai-
xador Souza Gracie que nada mais seria feito a respeito. Simplesmente orientou seus
funcionários para que nenhuma reposta fosse dada, esperando que as autoridades bra-
sileiras acabassem se esquecendo do assunto, o que era extremamente condenável não
só do ponto de vista diplomático, mas também do ponto de vista ético.

A posição das autoridades britânicas não chega a surpreender. A Grã-Bretanha, tal


como seus antigos aliados na Segunda Guerra Mundial, estava completamente focada
em questões ligadas à Guerra Fria. A Coréia estava em guerra. Os soviéticos já tinham
a bomba atômica. Os relatos de espiões infiltrados nos mais diferentes meios gover-
namentais eram cada vez mais comuns. Insistir junto aos alemães em questões refe-
rentes ao nazismo poderia gerar indisposições bastante indesejáveis naquela conjuntu-
ra histórica. Os alemães eram vistos cada vez mais como aliados e não mais como
criminosos. Essa política, claro, era muito bem-vinda para criminosos de guerra que
se encontravam presos, sob custódia ou foragidos. Tony Judt fala em “amnésia coleti-
va” para se referir às circunstâncias internacionais após 1945. “(...) Num continente
coberto de destroços, era extremamente benéfico agir como se o passado estivesse de
fato morto e enterrado, e uma nova era prestes a se iniciar”.150

O governo britânico foi um dos mais entusiasmados com a superação do passado.


O projeto The European Voluntary Worker (EVW) é um bom exemplo de como isso
aconteceu em termos oficiais. O EVW foi inaugurado em 1947 como uma política de
recrutamento de trabalhadores estrangeiros entre deslocados de guerra. Ainda sentin-
do os efeitos da guerra, as autoridades britânicas estavam desesperadas diante da di-
minuição de mão de obra masculina no país. David Cesarini sublinha que a pressa do
governo foi tão grande que as autoridades responsáveis pelo projeto relaxaram com-
pletamente seus critérios de seleção. Não houve tempo, pessoal e nem instalações para
investigar se os recrutados tinham ficha limpa nos arquivos de guerra. Diz Cesarini:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
150
JUDT, Tony, Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.
76.

223
CAPÍTULO 3
!
A responsabilidade pelo processo de minúcia e de checagem de segu-
rança era fragmentada e sem efetividade. (...) A fiscalização era tão
fraca que, na realidade, ela era útil apenas por questões de relações
públicas, permitindo ao governo rebater as críticas da URSS de que a
Grã-Bretanha aceitava criminosos de guerra como trabalhadores. Em
comunicações internas, diplomatas e oficiais admitiam livremente
que as fiscalizações eram pouco mais do que um processo cosméti-
co.151

Donald Bloxham concorda com Cesarini. De acordo com o historiador, a política


britânica para crimes de guerra foi justamente criticada. Conexões não foram apura-
das, suspeitos não foram devidamente investigados e diversos criminosos de guerra
foram julgados ou tiveram penas pouco severas e/ou comutadas. Em 1951, pontua
Bloxham, quando se propôs a criação do European Defense Community, visando con-
ter a ameaça soviética na Europa, e a necessidade de algum tipo de contribuição mili-
tar da Alemanha se fez evidente, a posição do Foreign Office foi bastante pragmática,
justificando a revisão de várias penas de criminosos nazistas presos. Nesta época, “o
assunto dos criminosos de guerra se tornou uma das mais emblemáticas questões di-
plomáticas, especialmente a questão do encarceramento militar de lideranças, então
tomado como a degradação simbólica da Alemanha nas mãos de terceiros”.152

De certa forma, o governo brasileiro conhecia bem essa face do governo britânico.
Em fevereiro de 1954, o Embaixador Brasileiro em Londres enviou uma carta-
telegrama à Secretaria de Estado das Relações Exteriores do Brasil onde fazia comen-
tários sobre um artigo publicado no Sunday Times. Esse artigo, criticava a morosidade
do Foreign Office para resolver assuntos diplomáticos britânicos no cenário internaci-
onal, dando como exemplo a longa duração da Conferência de Berlim. O texto termi-
nava afirmando “que na esfera das relações internacionais a política do wait and see
tem consequências fatais”. Gracie nunca soube que o Foreign Office decidiu ignorar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
151
CESARANI, David. Justice delayed. Vintage, 1992, p.4. [Original: “Responsibility for the process
of scrutiny and security checks was fragmented and ineffectual. (…) Screening was so weak that, in
reality it was useful only for public relations purposes, to allow the Government to rebut claims by the
USSR that Britain was accepting war criminals as workers. In private communications diplomats and
officials freely admitted that ‘screenings’ were little more than a cosmetic process”.]
152
BLOXHAM, Donald. British War crimes trial policy in Germany, 1945–1957: implementation and
collapse. The Journal of British Studies, v. 42, n. 01, p. 91-118, 2003. p.114. [Original: “The war crim-
inals issue had become one of the most highly charged diplomatic issues, particularly the matter of the
incarcerated military leaders, who were held up as symbolic of Germany’s degradation at the hands of
others.”]

224
CAPÍTULO 3
!

“solenemente” os seus pedidos de informação sobre Cukurs. Mas ele fora vítima jus-
tamente do wait and see sobre o qual tinha acabado de ler e comentar. 153

3.14. O Caso Cukurs esquecido

Diante da conjuntura pouco favorável nos meios governamentais britânicos, as in-


vestigações promovidas pelo governo brasileiro empacaram durante o ano de 1953 e o
mesmo aconteceu no ano seguinte. Em 1954, a crise política no Brasil chegou ao ápi-
ce. Completamente isolado, ameaçado por distensões internas nas Forças Armadas,
com poucos aliados na esfera internacional e bombardeado pela mídia, que denuncia-
va o “mar de lama” em que vivia o governo, Getúlio Vargas cometeu suicídio em sua
residência, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, conferindo ainda mais dramatici-
dade a uma atmosfera política já bastante carregada de tensão. Toda esta sequência de
eventos, iniciada dois anos antes, com o retorno de Vargas ao poder, dominou a esfera
pública e os meios governamentais. Sem Vargas, houve uma nova reforma ministeri-
al. A própria Presidência da República refletia o momento de instabilidade do país.
Entre agosto de 1954, quando Vargas cometeu o suicídio, e 31 de janeiro de 1956, o
Brasil tivera quatro presidentes: Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos e, finalmente,
Juscelino Kubitschek, Presidente eleito. Criminosos nazistas não eram a prioridade
das autoridades governamentais brasileiras.

Em 1954, a única alteração no processo 27.996/1950 foi o requerimento de certi-


dão de desembarque no Brasil para fins de registro como permanente no Serviço de
Registro de Estrangeiros do Distrito Federal, feito por Antinea Dolores Cukurs. Pelo
que consta neste requerimento, Antinea, então com vinte anos, morava no Rio Com-
prido, Zona Norte do Rio de Janeiro, e não mais em Niterói. 154 Neste ano também,
Cukurs abriu uma nova empresa, Herberts, Filhos Companhia Ltda., sediada no bair-
ro de Bonsucesso, Capital Federal. Eram sócios da empresa, além do próprio Cukurs,
sua esposa, Milda, Gunnars e Antinea. Mais uma vez, o endereço do Rio Comprido é
dado como endereço de Cukurs e família. A empresa tinha escopo parecido com a an-
terior, isto é, construções náuticas, aeronáuticas, motores, hélices e outros.155

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Embaixada Brasileira em Londres. 900.1(60),
949(00), 920. “As decisões lentas do Foreign Office”, de Samuel de Souza-Leão Gracie. 08/02/1954.
154
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.188.
155
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.252.

225
CAPÍTULO 3
!

Em janeiro de 1955, Edmar Morel voltou ao caso em sua coluna “Cidade Alerta”,
publicada semanalmente no Última Hora. Nesta ocasião, Morel recorreu a uma ima-
gem que já tinha sido acionada cinco anos antes no noticiário sobre Cukurs: “O Rio é
o paraíso dos grandes criminosos políticos que fugiram à Justiça”. Para ilustrar essa
imagem, Morel apresentava o caso de um torturador de presos bolivianos, outro en-
volvendo espiões e, finalmente, os criminosos nazistas, citando como exemplo os no-
mes de Herberts Cukurs e do Conde de Bernonville, além de outros tantos nazistas e
colaboracionistas. Recorrendo a um chavão já usado em outra ocasião, Morel afir-
mou: “O Brasil é, sem dúvida, o paraíso dos grandes criminosos. Aqui estão felizes e
tranquilos, facínoras que serviram às ordens de Hitler e de Laval. (...) Toda esta corja
está impune”.156 A matéria de Morel, porém, foi a única naquele período.

Em 1955, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro parecia resigna-


da com os resultados alcançados. Se a entidade não conseguira a expulsão de Cukurs,
pelo menos o impedimento de sua naturalização tinha sido uma vitória importante.
Mesmo que parcial, ela deixava o caso em aberto até que novos documentos viessem
à tona ou mesmo uma nova conjuntura política pudesse favorecer uma nova investida
de sua parte. Além do mais, Cukurs continuava suscetível a um pedido de extradição.
Neste ano de 1955, a entidade enfrentou ainda outro tipo de problema relacionado ao
caso. O dossiê original do Caso Cukurs desapareceu, sobrara apenas uma cópia in-
completa do mesmo. Um dos maiores motivos de preocupação dos dirigentes era o
sumiço do depoimento que Mirian Kaicners prestara à Federação no dia 14 de agosto
de 1950. Não só o original tinha desaparecido, mas também da cópia.157 Para tentar
solucionar o problema foi criada em maio de 1955 a Comissão de Investigação de
Restauração do Processo Herberts Cukurs. Esta comissão convocou Scolnicov, Cons-
tantino, Gartenberg e uma antiga secretária da entidade para que ajudassem a esclare-
cer as circunstâncias da perda do material. Os depoimentos, no entanto, não foram
precisos e pouco contribuíram para se saber o que acontecera. Scolnicov dissera que
havia dois volumes, um com documentos e outro com recortes de jornais. A secretária
disse que só conhecia um volume. Constantino, por sua vez, lembrava-se de dois, am-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Última Hora, “O Rio é o paraíso dos grandes criminosos políticos...”, 27/01/1955, p.9.
157
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.

226
CAPÍTULO 3
!

bos bastante mexidos por ele em função de suas ações no caso, enquanto que Garten-
berg se recordava de três, que continham documentos em várias línguas. 158

O relatório final da Comissão afirmou que os documentos originais devem ter sido
“extraviados” ou “arquivados erradamente”. Dos três membros da Comissão, dois
aprovaram o relatório. Um dos membros, no entanto, discordou, afirmando que “mãos
criminosas tinham subtraído o processo”, embora não tenha indicado quem ou por que
teriam feito isso. Em desacordo, a comissão inteira se demitiu. A Federação das Soci-
edades Israelitas do Rio de Janeiro, no final das contas, em virtude das dificuldades e
principalmente das animosidades encontradas, sugeriu que fosse dada prioridade ape-
nas para a restauração do processo.159 Não se conhece o fim que levou o processo de
restauração – ou dos arquivos iniciais. Porém, o conjunto documental que se encontra
hoje no Yad Vashem, o qual tem sido aqui utilizado amplamente, é bastante vasto,
possuindo centenas de folhas. Além das cópias das várias cartas enviadas pela federa-
ção carioca ao Congresso Judaico Mundial, há os depoimentos originais de Mirian
Kaicners e Justina Grinberg, entre outros. Há ainda vários outros documentos, muitos
dos quais também originais, que permitem traçar linearmente o contato da federação
com o governo brasileiro e com o Congresso Judaico Mundial. Em alguns casos, há
duas versões, cópias e originais. Neste sentido, é possível supor que, no mínimo, parte
do processo original de Cukurs acabou sendo encontrado em algum momento posteri-
or a 1955. O mais importante deste episódio, contudo, é que demonstra que dentro da
federação, o foco do trabalho, ainda que temporariamente, deixou de estar nas ações
contra Cukurs – e que, ao se voltar à atenção para o caso, houve a necessidade de se
realizar investigações e restauração do material –, o que acabou colaborando ainda
mais para que não se avançasse no sentido de expulsar Cukurs do Brasil. De qualquer
forma, a entidade tinha feito o possível no caso antes desse hiato. Se os resultados não
tinham sido plenamente alcançados, isso se devia muito mais à fragilidade do material
que lhe foi passado.

A situação de Cukurs voltava, aos poucos, à normalidade dos tempos dos pedali-
nhos. Ainda em 1955, Cukurs deu um passo decisivo para assegurar sua permanência
no Brasil. No dia 11 de julho, ele teve o seu quarto filho, Richards, o mesmo que anos
mais tarde manteria o blog A Águia do Báltico. De acordo com o Art.143 da Consti-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
158
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.
159
Yad Vashem Archives. Documentations about Trials of War Crimes: RG:O.4/FN:153.fls.293-341.

227
CAPÍTULO 3
!

tuição Federal, o estrangeiro não poderia ser expulso do país em caso de ter filho bra-
sileiro. Cukurs tinha 55 anos e sua esposa, 46. Fosse uma estratégia ou não de Cukurs,
sua expulsão era agora, ao menos tecnicamente, inviável. 160

Em 16 abril de 1956, o Ministério da Justiça observou, não sem alguma demora,


que o Itamaraty ainda não havia respondido o pedido de informações feito por Souza
Gracie Leão quase três anos antes. Ou seja, as autoridades brasileiras tinham se es-
quecido do Caso Cukurs, demonstrando praticamente que até ali a tática de wait and
see do Foreign Office tinha funcionado muito bem. 161 Consciente da ausência de res-
postas, José Vieira Coelho solicitou ao Itamaraty o resultado das investigações. Nesta
época, Coelho parecia, de fato, inclinado em consentir a expulsão de Cukurs. Em um
pequeno parecer ajuntado ao processo em 18 de julho de 1956, o Diretor Geral do
DIJ/MJNI sublinhou que nos últimos cinco anos nada havia surgido de fontes oficiais
contra Cukurs, porém, ponderou que “qualquer solução positiva que se venha a obter
dessas sindicâncias [do Ministério das Relações Exteriores com o Foreign Office],
resultará em processo de expulsão do estrangeiro”.162 Isso fez com que algo mais fos-
se tentado em Londres. Gracie, ainda como embaixador, demandado mais uma vez
pelo MRE, voltou a abordar o Foreign Office a respeito da requisição de informações
que ele fizera em setembro de 1953. No dia 23 de agosto de 1956, M.C.G. lhe infor-
mou: “Lamento pelo fato de não ter lhe respondido antes. Eu me debrucei sobre o as-
sunto e cheguei à conclusão de que é virtualmente impossível verificar os depoimen-
tos em questão e, neste sentido, lamento bastante não podermos ajudá-lo de outra
forma.”163 O Foreign Office seguira à risca as determinações de Hancock. Assim que
abordadas novamente, as autoridades britânicas informaram que não poderiam fazer
nada a respeito.

No começo de outubro de 1956, o Ministério da Justiça foi informado dos resulta-


dos passados pelo Foreign Office.164 No final daquele mesmo mês, José Vieira Coelho
encaminhou o processo ao consultor jurídico do ministério, Anor Butler Maciel, suge-
rindo o arquivamento do caso.165 O parecer de Maciel, tendo como objeto a expulsão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.228.
161
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.195-197.
162
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.202.
163
AHI-DF. Ministério das Relações Exteriores. Confidencial. Embaixada Brasileira em Londres.
328/7(70d)(42)01/1956. Foreign Office, S.W.1. 23th August, 1956.
164
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.209.
165
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.213.

228
CAPÍTULO 3
!

de Herberts Cukurs, foi redigido na data de oito de novembro de 1956. Tendo em vis-
ta que o Foreign Office não tinha atestado a veracidade dos documentos e se eximia
de efetuar outras investigações sobre o caso, Maciel optou pelo arquivamento.166

No espaço de dois anos e meio, tudo tinha conspirado a favor da permanência de


Cukurs no Brasil. Em primeiro lugar, o Foreign Office adotou como estratégia ignorar
os pedidos de informação da Embaixada Brasileira em Londres. Em segundo lugar, o
governo brasileiro deixou de abordar o Foreign Office: ou porque realmente o assunto
acabou se perdendo entre dezenas de outras questões ou porque o assunto nunca che-
gou a ser pauta prioritária entre os dois governos. Provavelmente, as duas coisas. Em
terceiro lugar, o Congresso Judaico Mundial não abordou o Foreign Office no sentido
de conseguir uma declaração afirmando ter o Comitê de Investigações dos Crimes
Nazistas nos Países Bálticos colaborado com as investigações de crimes de guerra.
Em quatro lugar, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro cessou sua
comunicação com o Congresso Judaico Mundial e enfrentou uma crise interna relaci-
onada ao desaparecimento dos documentos do Caso Cukurs. Enquanto isso tudo acon-
tecia, Cukurs, teve um filho e acabou com as suas chances de expulsão. Tendo esse
cenário em perspectiva, seria realmente simplório afirmar, como Morel e muitos ou-
tros o faziam, que a permanência de Cukurs se explicava pela simples proteção do
governo brasileiro.

3.15. Estados Unidos: dossiê sobre Cukurs

A inteligência americana acumulou um conhecimento razoável sobre Herberts Cu-


kurs. Dentre um vasto conjunto de documentos sigilosos recém-abertos ao público
pelo Nazi war crimes disclosure act, em 2013, há um dossiê em seu nome. O dossiê
foi aberto em função de rumores de que Cukurs teria imigrado para os Estados Unidos
após a Segunda Guerra Mundial. A primeira informação deste dossiê é um Extract
and Cross-Reference secreto de dez de julho de 1946: “membro da organização nazis-
ta letã, pertenceu ao comando de execução Sondergruppe-A e foi um ativo assassino
de judeus. Capitão no exército letão”. 167 A inteligência americana acumulava vários
extracts deste tipo. Eram em geral textos curtos, biográficos e provenientes de uma ou

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.214-216.
167
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I. [Ori-
ginal: “Member of Latvian Nazi organization, belonged to execution command Sondergruppe-A and
was active in Killing Jewish people. Captain in Latvian army”.]

229
CAPÍTULO 3
!

mais fontes. Os dados não necessariamente eram confirmados, podendo ser rumores.
Essa informação durante muitos anos foi a única daquele governo sobre Cukurs.168

No dia oito de dezembro de 1949, temos uma segunda informação. Herschel V.


Johnson, Embaixador Americano no Rio de Janeiro (1948-1953), enviou um ofício ao
Departamento de Estado, copiando a CIA e outros órgãos do governo americano, di-
zendo que Mr.Visson, correspondente em Washington da revista Time, tinha entrado
em contato com ele naquela manhã em busca de informações sobre “Mr. Cukurs”.
Alguém da Time no Brasil tinha sido informado que Cukurs, um impune criminoso de
guerra, colaboracionista nazista, vivia no Brasil operando um pequeno negócio, e re-
passou a informação. Johnson disse ao jornalista que depois de algumas consultas não
tinha conseguido nenhuma informação sobre aquela pessoa. No final do ofício ao De-
partamento de Estado, afirmou: “O Sr. Visson disse ter achado essa história muito in-
teressante. Embora ele não tenha dito, eu fiquei com a impressão que o que ele queria
com a história era expor a fuga de um alegado criminoso de guerra da justiça”.169

No final de 1950, quando consultado pelo Consulado Brasileiro em Bonn a respei-


to de Cukurs, o Departamento de Estado compartilhou apenas parte de suas informa-
ções. O órgão americano autorizou sua representação diplomática em Frankfurt, na
Alemanha, a informar à Embaixada Brasileira naquela cidade que havia rumores de
que Cukurs era um criminoso nazista impune e que operava um pequeno negócio no
Brasil. Cukurs, além disso, teria colaborado com os nazistas como executor no Gueto
de Riga. De acordo com o Departamento de Estado deveria ser enfatizado, contudo,
que se tratava apenas de rumores e que o mesmo não poderia verificar tais informa-
ções. O que acabou chegando ao Ministério das Relações Exteriores foi diferente,
conforme vimos: o Itamaraty foi informado de que Cukurs tinha sido chefe do Gueto
de Riga, que imigrou para o Brasil com ajuda da OIR e que fora preso no Brasil por
participar de uma manifestação antissemita. Nada fora dito sobre execuções ou sobre
tais informações serem rumores. 170

Em setembro de 1955, Cukurs, mesmo não tendo direito a passaporte, pelo fato de
não ser brasileiro, solicitou visto para entrar nos Estados Unidos. A Divisão de Segu-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
168
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I.
169
National Archives (NARA). Carta de V. Johnson a SY, BI e CIA. RG 263, Box 10, Folder I. [Ori-
ginal: “Mr.Visson said he thought this would make an interesting story. Although he did not so state, I
got the impression that the motive of the story would be to expose the escape from justice of an alleged
war criminal.]”
170
Vale sublinhar que não encontrei nesta resposta a resposta dos Estados Unidos ao Brasil. Encontrei
apenas um resumo desta resposta enviado pelo MRE ao MJNI.

230
CAPÍTULO 3
!

rança do Departamento de Estado pediu, então, à CIA para verificar informações so-
bre ele. Nesta época, o órgão de inteligência americano já tinha reunido mais infor-
mações sobre Cukurs. Um memorando agora informava sua filiação, data e local de
nascimento, família, além de sua participação na Guerra de Independência da Letônia,
seus feitos na aviação e patente. O memorando também dizia que durante a ocupação
nazista da Letônia Cukurs colaborou com a SD, no Comando Arajs. “Acredita-se que
ele tenha participado na perseguição aos judeus”, dizia tal documento, que ainda des-
tacava as seguintes informações, quase todas inéditas até aqui:

Depois da guerra, [Cukurs] fugiu para a Suécia e, eventualmente, es-


tabeleceu-se no Brasil, presumidamente, em São Paulo. Quando boa
parte da antiga Legião Letã estava no campo de prisioneiros de guer-
ra de Zedelgem, na Bélgica (sob a administração britânica), a inteli-
gência britânica procurou por Herberts Cukurs e acabou detendo um
segundo tenente de sobrenome Cukurs, mas cujo primeiro nome era
desconhecido. Este homem foi conseguiu provar que não era o Cu-
kurs procurado ao mostrar uma imagem de Herberts Cukurs no livro
"Meu voo para Gâmbia”. O Capitão Blaus que mencionamos há
pouco também afirmou que Herberts Cukurs estava na Suécia, devi-
do a um anúncio publicado em um jornal letão na Suécia. Este anún-
cio convidava uma mulher e duas crianças para se juntar a ele na
Suécia. Embora apenas os nomes cristãos tivessem sido menciona-
dos, Blaus identificou se tratar da esposa e filhos de Herberts Cukurs.
Devido tal investigação, foi indicado que Herberts Cukurs estava
sendo procurado por causa de suas atividades sob a ocupação alemã
(seu superior, Major Arajs, foi preso no campo de prisioneiros ante-
riormente mencionado, onde ele tinha se escondido sob um nome fal-
so, Abele). Mais tarde, tornou-se saber que Herberts Cukurs estava
no Brasil, onde opera uma estação de barcos de aluguel em um lago.
Ele teve dificuldades porque a população judaica local tentou ocasio-
nar a sua expulsão do país, até mesmo destruindo sua empresa. Her-
berts Cukurs escreveu uma carta a Organização dos Veteranos letão
"Daugavas Vanagi" na Alemanha por volta de 1950 pedindo ajuda
em sua luta contra os judeus brasileiros. Especificamente, ele queria
uma carta de recomendação mostrando que ele não cometera quais-
quer atrocidades durante a ocupação alemã. Esse certificado foi recu-
sado. Recentemente, um artigo em um jornal letão descreveu sua atu-
al via no Brasil. Aparentemente, Cukurs conseguiu vencer seus opo-
sitores e, provavelmente, continua tocando sua empresa, no mesmo
lugar. Ele pode ser descrito como uma pessoa muito virtuosa, com

231
CAPÍTULO 3
!
um toque de aventureiro, e bom homem de negócios com pouco es-
crúpulos.171

A informação de que Cukurs esteve na Suécia depois da guerra é bastante impro-


vável. Há farta documentação provando que ele esteve na França desde meados de
1945, pouco antes de vir para o Brasil, em fevereiro de 1946. O mencionado Capitão
Blaus muito pode ter passado isso aos americanos motivado pelo desejo de se ver o
mais rápido possível fora das investigações britânica. De qualquer forma, importante
mencionar que não pude encontrar no National Archives britânico qualquer referência
a uma busca de Cukurs em campos de prisioneiros políticos, os chamados POWs, de-
vendo essa informação também ser vista com desconfiança. Quanto à correspondência
que teria sido escrita por Cukurs à organização Daugavas Vanagi pedindo uma carta
de recomendação (supostamente recusada) trata-se de algo bem mais factível. O Dau-
gavas Vanagi foi uma rede de apoio mútuo formado por antigos membros da Legião
Letã que se encontraram, depois da guerra, internados em campos de prisioneiros ali-
ados. No pós-guerra, o grupo teve uma força política significativa, atuando como gru-
po de combate ao domínio soviético da Letônia no estrangeiro. Seus membros viviam
na Austrália, na Europa Ocidental, no Canadá, na América do Sul e, principalmente,
nos Estados Unidos, entre outros países. 172

O dossiê sobre Cukurs elaborado pela inteligência americana continha ainda recor-
tes de jornal, americanos e não americanos, além de documentos que repetiam infor-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
National Archives (NARA). Herberts Cukurs Doc.1 Secret. RG 263, Box 10, Folder I. [Original:
After the war, fled to Sweden and eventually settled down in Brazil, presumably São Paulo. During the
time when the bulk of the former Latvian Legion was in the POW Camp Zedelghem, Belgium (under
the British Administration), the British intelligence looked for H.C. and detained a second lieutenant
fnu Cukurs. They later was able to prove that he is not identic with H.C. by showing the picture of
H.C. in the book “My flight to Gambia”’; also the a/m Capt. BLAUS was able to state that H.C. is in
Sweden because there appeared an add in the Latvian newspaper in Sweden, inviting a woman and two
kids to join father in Sweden and though only the Christian names were mentioned in the ad. Blaus
identified the woman and kids as the wife and children of H.C. (…) Due to this investigation it was
indicated that H.C. was sought because of his activities under the German occupation (his superior,
Major Arajs, was arrested in the a/m POW camp where he had hidden himself under a false name
ABELE). Later it became known that H.C. is in Brazil where he operates a boats-for-rent station at a
lake; he had difficulties because the local Jewish population tried to achieve his expulsion from Brazil
and even destroyed his enterprise; H.C. wrote a letter to the Latvian Veteran’s Organization “Daugavas
Vanagi” in Germany ab. 1950 asking for assistance in his struggle against the Brazilian Jew, viz. he
wanted a letter of recommendation showing that he has not committed any atrocities during the Ger-
man occupation; such a certificate was refused. Recently there was an article in a Latvian newspaper
describing Cukurs’ present life in Brazil, so it seems he has overcome the opposition against him and
probably is running his enterprise in same place. He can be described as a very venturesome person
with a touch of adventurer and good businessman with little scruples”.]
172
EZERGAILIS, Andrew. Nazi/Soviet disinformation about the Holocaust in Nazi-occupied Latvia:"
Daugavas vanagi: who are they?" revisited: E. Avotins, J. Dzirkalis, V. Pētersons. Latvijas 50 gadu
okupācijas muzeja fonds, 2005.

232
CAPÍTULO 3
!

mações no sentido de sistematizá-las para outros órgãos daquele governo.173 Boa parte
das informações vinham de fonte anônimas e de um informante no Brasil cujo nome
foi protegido. Pouca coisa foi repassada ao Brasil, apenas as informações daquele co-
municado à Embaixada Brasileira em 1951 – que mesmo assim, eram equivocadas. Se
essas informações mudariam o posicionamento das autoridades brasileiras no caso,
porém, nunca saberemos.

3.16. Cukurs rumo à naturalização brasileira

Em 1957, o ambiente era muito favorável a Cukurs. A imprensa em geral tinha es-
quecido dele. As instituições judaicas não tinham feito mais qualquer tipo de pressão
e o governo brasileiro não tinha seguido adiante com o processo de expulsão. Além
disso, Cukurs era pai e também avô de brasileiros, gozando, assim, do direito de per-
manência no país. No entanto, a extradição ainda era uma opção. Improvável, mas
uma opção. A única forma de inviabilizá-la seria se ele se tornasse brasileiro, uma vez
que um Estado não pode extraditar seus cidadãos. Tendo ou não em mente tal estraté-
gia, Cukurs entrou com um pedido de revalidação do processo de naturalização no dia
17 de março de 1957. Nessa época, ele vivia com a família em Santos, litoral de São
Paulo.174

Tal como em 1949, quando deu entrada pela primeira vez em seu pedido de natura-
lização brasileira, Cukurs juntou vários documentos. Antecipando que as acusações de
crimes de guerra pudessem atrapalhar de novo seu processo, anexou ao pedido de na-
turalização o recorte da seção de perguntas dos leitores da revista O Cruzeiro, de 13
de fevereiro de 1954. O leitor Carlos Lúcio, de Aracaju, escrevera ao veículo pergun-
tando o que tinha acontecido com Cukurs, personagem da revista em 1950. “Ficou
provado ser ele nazista, criminoso de guerra, consoante à acusação que lhe fizeram?”
A revista respondeu Lúcio de maneira amplamente favorável à imagem de Cukurs:

Não. Ele não constava da lista de criminosos de guerra a serem jul-


gados em Nuremberg. As autoridades aliadas nada tinham contra ele.
Em sua terra, a Letônia, foi aviador famoso, herói nacional, cogno-
minado de “Lindbergh Letão”, pelos audaciosos raides feitos à Ásia e
à África. Lutou contra os russos quando estes dominaram a sua Pátria

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
173
Há apenas uma nova informação: “In march 1945, one Captain Cukurs of Latvian Army was report-
ed to have been a member of the Latvian Nazi organization Perkonkrust. National Archives (NARA).
RG 263, Box 10, Folder I.
174
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.220.

233
CAPÍTULO 3
!
e ainda depois, quando os alemães iniciaram a grande ofensiva. As
acusações contra ele, que entrara no Brasil legalmente, com o seu
nome verdadeiro, partiram do Comitê de Investigações dos Crimes
Nazistas nos Países Bálticos, sediado em Moscou [NE. SIC], através
da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, não se sa-
bendo se tais acusações tinham base ou se eram pretexto para desmo-
ralizar e prender um dos chefes da resistência letã contra os comunis-
tas russos, que ainda dominam aquele pequeno país. Atualmente,
apesar das perseguições dos judeus daqui, continua ele no Brasil,
com permanência legalizada e exercendo atividades profissionais de
maneira digna e útil à sociedade.175

Em um memorial enviado ao Ministério da Justiça, Cukurs escreveu:

Depois de várias reportagens na imprensa do Rio de Janeiro, cheias


de elogios e em geral depois da magnífica reportagem de “O Cruzei-
ro”, em 14 de junho de 1950, os meus inimigos políticos e atuais
inimigos do mundo livre, dirigidos diretamente de Moscou via socie-
dades israelitas do Rio de Janeiro, abriram tremenda campanha de
desmoralização, acusando-me de atrocidades praticadas pelos nazis-
tas alemães contra a população judaica na Letônia. A campanha na
imprensa – matéria paga – não deu nenhum resultado graças à firme-
za do Governo Brasileiro em verificar a verdade junto a todos os ali-
ados, os quais nada tinham contra mim.176

O “homem dos pedalinhos” estava procurando atrelar as instituições judaicas ao


comunismo, valendo-se mais uma vez do imaginário anticomunista típico da Guerra
Fria. O delegado Manoel Correa Guimarães, da Delegacia de Ordem Política e Social
de Santos (DEOPS/Santos), ao produzir um “nada consta” de Cukurs, não deixou esse
item passar despercebido, registrando sobre o investigado: “É inimigo ferrenho dos
comunistas”. Guimarães também observou que o letão, durante os dias úteis, se ocu-
pava com sua plantação de bananas (ele comprara uma fazenda em Juquiá) enquanto
que, nos finais de semana, oferecia passeios de hidroavião pela cidade. 177

Em sete de julho de 1957, até o Última Hora, que pertencia, ironicamente, ao ju-
deu Samuel Wainer, chegou a publicar um elogio a Cukurs. A matéria – também ane-
xada ao seu pedido de revalidação da naturalização – ocupava quase uma página intei-
ra do jornal e tinha o seguinte título: “Um letão (refugiado) foi o pioneiro da urbani-
zação da Lagoa Rodrigo de Freitas”. A matéria falava sobre o abandono da Lagoa
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.227.
176
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.252-254.
177
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.273.

234
CAPÍTULO 3
!

Rodrigo de Freitas após o “enorme esforço” de revitalização feito por Cukurs no final
dos anos 1940. Ele, segundo a matéria, tinha sido “expulso do fabuloso recanto cario-
ca depois de uma “campanha política”. O saldo só não foi melhor para Cukurs porque,
Edmar Morel, também do Última Hora, furioso com a matéria, publicou um esclare-
cimento bastante direto aos leitores do jornal: “O criminoso N.17 de Nuremberg não é
amigo do Brasil”. Segundo Morel, o UH fora “vítima de lamentável descuido elogi-
ando Herberts Cukurs, o assassino de 40.000 judeus, em Riga”.178

Imagem&47:&Coluna!de!Edmar!Morel!no!Última!Hora.!Fonte:!Última!Hora,!17/07/1957,!p.9.

Nessa mesma época, Milda e Antinea também deram entrada em seus respectivos
pedidos de naturalização. Como se tratavam de três pedidos da mesma família, dentro
de um mesmo processo, alguns documentos sempre ficavam pendentes e isso acabava
fazendo com que o trâmite demorasse mais tempo. Mas, aos poucos, Cukurs ia cum-
prindo todos os requisitos. Ao que tudo indicava, em breve se tornaria brasileiro.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
Última Hora, “O criminosos N.17 de Nuremberg não é amigo do Brasil”, 17/07/1957, p.9.

235
CAPÍTULO 4
!

CAPÍTULO
4 O governo brasileiro e o Caso Cukurs:
Retomada e desfecho (1960-1965)

DEPOIS de quase uma década e muitos debates, a permanência definitiva de Cukurs


no Brasil estava se tornando cada vez mais certa. O antigo proprietário dos pedalinhos
da Lagoa Rodrigo de Freitas deu um grande passo neste sentido ao ter um filho brasi-
leiro, em julho de 1955. Por lei, a partir daquele momento, sua expulsão era inviável.
Dois anos depois, em 1957, Cukurs deu um outro passo importante nesta direção ao
pedir a revalidação de seu pedido de naturalização. Caso se tornasse brasileiro, a le-
gislação também estaria ao seu lado, impedindo sua extradição. Um evento no início
dos anos 1960, contudo, contribuiu para frustrar definitivamente suas expectativas: a
captura de Adolf Eichmann. O objetivo deste capítulo é examinar aquilo que podemos
chamar de segunda fase do Caso Cukurs. Nesta fase, veremos como ocorreu o retorno
do Caso Cukurs aos noticiários e qual foi o posicionamento das autoridades brasilei-
ras. Teria o Estado, ainda assim, concedido a naturalização? Por fim, veremos a volta
das instituições judaicas na luta contra a permanência de Cukurs e os acontecimentos
que levaram a morte deste em Montevidéu, no Uruguai, em fevereiro de 1965.

4.1 Efeito Eichmann: o Caso Cukurs volta à tona

No dia 23 de maio de 1960, a imprensa internacional noticiou com grande destaque


a captura de um dos criminosos de guerra nazistas mais procurados do mundo: o ex-
tenente da SS Adolf Eichmann. O alarde justificava-se antes de tudo pelo papel que
Eichmann desempenhou no âmbito da “Solução Final”: como chefe do Departamento
da Gestapo IV B4, especializado em judeus, ele organizou e coordenou o transporte
de milhões de pessoas para campos de concentração e extermínio. Em dois meses atu-
ando na Hungria, por exemplo, Eichmann cuidou da liberação de 147 trens com mais
de 400 mil judeus em vagões de carga para fora do país. Segundo Hannah Arendt, Ei-
chmann fez de tudo para tornar final a Solução Final. 1 Mas o frenesi dos jornalistas
também tinha a ver com as circunstâncias espetaculares de sua captura. Eichmann foi
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, pp.157-158.

236
CAPÍTULO 4
!

sequestrado no dia 11 de abril de 1960 em um subúrbio de Buenos Aires quando vol-


tava do trabalho. Agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, colocaram-no à
força dentro de uma van de fuga e dez dias depois estava voando rumo a Jerusalém
em um avião comercial da companhia israelense El Al. A opção pelo sequestro, que
feria a soberania argentina, baseou-se no histórico recente daquele país em negar a
extradição a criminosos nazistas. Além disso, o Estado de Israel temia que se todos os
trâmites burocráticos fossem acionados para se conseguir sua extradição – que sequer
era garantida – Eichmann teria tempo suficiente para fugir e desaparecer de novo. 2

Imagem&48.&A!imprensa!brasileira!noticia!a!captura!de!Eichmann.!Fonte:!O!Globo,!04/06/1960,!pg.!12.

As implicações da captura de Eichmann, porém, foram muito além da enorme re-


verberação na mídia internacional. O caso teve significados políticos importantes a
curto prazo. Segundo Hannah Arendt, ele marcaria o primeiro esforço sério da Ale-
manha para levar a julgamento indivíduos envolvidos diretamente no assassinato em
massa de judeus. Arendt lembra que a Agência Central de Investigações de Crimes
Nazistas, fundada na Alemanha Federal em 1958 e então chefiada pelo promotor Er-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
REIN, Raanan. Argentina, Israel y Los Judíos: de la partición de Palestina al caso Eichmann (1947-
1962). Buenos Aires: Lumiere, 2007, pp.205-209.

237
CAPÍTULO 4
!

win Schule, tinha enfrentado várias dificuldades até aquele momento, tanto pela falta
de cooperação de testemunhas alemãs quanto pela “pouca disposição” das cortes de
justiça locais em abrir processos contra seus cidadãos.3 O Caso Eichmann mudou esse
panorama, principalmente após a realização do seu julgamento, transmitido de Jerusa-
lém para uma audiência global. Arendt explica em detalhes esse fenômeno:

Não que o julgamento em Jerusalém tivesse produzido alguma prova


nova do tipo necessário para descobrir parceiros de Eichmann; mas a
notícia da sensacional captura de Eichmann e de seu iminente julga-
mento teve impacto suficiente para convencer as cortes locais a usar
as descobertas do Sr. Schule e superar a relutância nativa a tomar
providências contra os “assassinos em nosso meio” valendo-se do re-
curso tradicional de oferecer recompensas pela captura de criminosos
conhecidos. O resultado foi surpreendente. Sete meses depois da
chegada de Eichmann a Jerusalém – e quatro meses antes do início
do julgamento – Richard Baer, sucessor de Rudolf Höss no comando
de Auschwitz, foi finalmente preso. Em rápida sucessão, a maioria
dos membros do chamado Comando Eichmann também foi presa –
Franz Kovak, que vivia como gráfico na Áustria; o Dr. Otto Huns-
che, que se estabelecera como advogado na Alemanha Ocidental;
Hermann Krumey, que era farmacêutico; Gustav Richter, ex-
“conselheiro judaico” na Romênia; e Willi Zopf, que ocupara o
mesmo posto em Amsterdã; embora provas contra eles tivessem sido
publicadas na Alemanha anos antes, em livros e artigos de revistas,
nenhum deles achou necessário adotar um nome falso. Pela primeira
vez desde o encerramento da guerra, os jornais alemães estavam re-
pletos de reportagens sobre os julgamentos de criminosos nazistas,
todos assassinos de massa.4

A captura de Eichmann inaugurou, portanto, uma longa série de prisões de crimi-


nosos nazistas. E mesmo aqueles que não tinham sido desentocados de seus respecti-
vos esconderijos e levados a julgamento, sabiam que a partir daquele momento não
estavam mais tão seguros quanto antes. Esse cenário era ainda mais aterrorizante para
aqueles que contavam com poucos recursos financeiros, para os que não tinham bons
contatos políticos e, especialmente, para os que se encontravam plenamente estabele-
cidos onde viviam. Muitos tinham formado família nesses lugares e não estavam mais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, pp.157-158.
4
Ibidem, p.25.

238
CAPÍTULO 4
!

dispostos a iniciar uma nova jornada. Para esses, com mobilidade limitada, a localiza-
ção e captura por agentes secretos israelenses seria muito mais simples e rápida.

No Brasil, a notícia da captura de Eichmann desencadeou uma profusão de infor-


mações sobre a presença de criminosos nazistas transitando pelo país. Nem sempre
essas informações eram confiáveis. Porém, foram sedutoras o suficiente para dar vida
à imaginação dos jornalistas. No dia 28 de maio de 1960, o Última Hora, noticiou que
Martin Bormann, condenado in absentia pelo Tribunal de Nuremberg, era alvo de
uma “formidável caçada” em vários estados brasileiros, principalmente Santa Catarina
e Bahia, onde o “carrasco-fantasma” presumidamente vivia com uma identidade fal-
sa.5 E esse é apenas um exemplo do que aconteceu naquele período. Conforme vimos
no Capítulo 1, passou-se a avistar Bormann nos mais diferentes recantos do Brasil.
Em declaração à imprensa, Luiz Noronha Filho, diretor da Interpol no país, afirmou
que vinha sendo procurado por várias pessoas interessadas em capturar o nazista.6

É neste contexto de desentocamento de criminosos de guerra nazistas que o nome


de Herberts Cukurs volta às manchetes. O momento não poderia ser pior para Cukurs.
Nesta época, ele estava bem próximo de conseguir sua naturalização. A revalidação
de seu processo – que também pedia a nacionalidade brasileira para sua esposa e sua
filha – tinha sido iniciada em 1957. O processo tinha passado por quase todas as eta-
pas. Como seu nome tinha caído numa espécie de esquecimento, o fato passou total-
mente despercebido pela imprensa, pelas autoridades públicas e até mesmo pelas ins-
tituições judaicas. No dia 17 de maio de 1960, a seção de nacionalidade do Ministério
da Justiça informou que faltava apenas um único documento antes de submeter o pe-
dido à apreciação ministerial: um comprovante de imposto de indústria e profissões. 7
Exatamente neste momento, antes que Cukurs pudesse apresentar o documento pen-
dente, Eichmann foi capturado. No Brasil, seu caso voltou à tona e seu pedido de na-
turalização se tornou público. 8

A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, uma vez informada da


investida de Cukurs, tomou novamente a dianteira no caso. No dia 30 de maio de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Última Hora, “Carrasco-fantasma nazistas está sendo caçado no Brasil”, 28/05/1960, p.2.
6
Última Hora, “Desesperada busca aos criminosos nazistas...”, 31/05/1960, p.2.
7
BRASIL. Secretaria de Estado, Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Departamento do Interior
e da Justiça, Divisão de Assuntos Políticos, Seção de Nacionalidade, Despachos do Diretor Geral. Diá-
rio Oficial da União, Brasília, DF, Ano. XCIX, Nº 112, 17 de maio de 1960. Seção I, p.8300.
8
Última Hora, “Carrasco-fantasma nazistas está sendo caçado no Brasil”, 28/05/1960, p.2.

239
CAPÍTULO 4
!

1960, seu então presidente, o advogado gaúcho Aarão Steinbruch, enviou um tele-
grama ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, informando que o autor do processo
de naturalização 27.996/1950 era o “famigerado criminoso de guerra” Herberts Cu-
kurs, “cujo pedido anterior fora denegado pelo ex-Ministro Francisco Negrão de Lima
tendo em vista a documentação apresentada provando atos de genocídio praticados
pelo mesmo”.9 Steinbruch era um nome de peso e isso poderia ajudar no caso: além
de presidente da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, ele também
era deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e gozava de elevada
estima no meio político. Sua luta no campo do trabalhismo, por exemplo, tinha sido
particularmente importante na criação da lei que instituiu o décimo-terceiro salário.10

Imagem&49.&&Naturalização!de!Cukurs!volta!ao!noticiário!brasileiro.!Fonte:!Diário!da!Noite.!21/06/1960.!p.5

Nas câmaras legislativas, também houve pressão. Em discurso proferido na Câma-


ra dos Deputados, Breno da Silveira, Deputado Federal pelo PTB-RJ, que já tinha atu-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597. DEP.712. fls.326-327.
10
Perfil de Aarão Steinbruch no site da Câmara dos Deputados: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso
em: 02/02/2015.

240
CAPÍTULO 4
!

ado no caso nos anos 1950, anunciou publicamente seu apelo ao Ministro da Justiça,
Armando Falcão, para que este não concedesse a cidadania brasileira a Cukurs. Breno
da Silveira disse, inclusive, que Falcão lhe teria confidenciado que não deferiria o pe-
dido de Cukurs. O deputado petebista comentou a propósito da suposta promessa:

É esperança nossa que isto seja realidade, para que não se perpetre
crimes contra a nacionalidade, permitindo que um homem marcado
por suas atividades antijudaicas, com os crimes mais hediondos – ele
é talvez o genocida mais contundente no que diz respeito aos atos
praticados quando nos seus postos de comando no regime nazista na
Alemanha – adquira cidadania brasileira.11

Aos protestos de Breno de Silveira, somaram-se ainda aqueles do Senador Mem de


Sá (PL-RS),12 do Deputado Federal Sérgio Magalhães (PTB-GB)13 e dos vereadores
do Rio de Janeiro Isaac Izeckshon (PSB)14 e Jair Martins (UDN).15 Este último, em
comunicação dirigida ao plenário, saudou o ato do Primeiro-Ministro Israelense, Ben-
Gurion, além do próprio Estado de Israel como um todo, pelo exemplo que davam às
nações que abrigavam criminosos nazistas como Eichmann, responsáveis pelo exter-
mínio de tantos seres humanos. “É lamentável”, disse Martins referindo-se a Cukurs,
“que em território brasileiro viva uma dessas feras humanas”.16

Pouco a pouco, o caso foi retornando à esfera pública. Nos jornais, as notícias so-
bre Cukurs passaram a ser publicadas lado a lado com as notícias sobre Eichmann,
criando-se assim um nítido espelhamento entre Argentina e Brasil no que dizia respei-
to à questão dos criminosos nazistas. Um editorial do Diário de Notícias afirmou que
embora a Argentina tivesse o triste privilégio de dar guarida a criminosos como Ei-
chmann, no Brasil também viviam outros como ele, citando o nome de Cukurs. Para o
jornal, o caso argentino tinha uma função exemplar: “a captura deste bandido [Eich-
mann] abre perspectivas a revelações de grande importância, e talvez ajude por exem-
plo, no Brasil, a exercer uma ação imediata contra os que aqui se encontram.”17 Já o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, Nº.79, 01/06/1960. Seção I, pp.3693-3694.
12
O Estado de S. Paulo, “Críticas no Senado aos investimentos do Governo”, 08/06/1960, p.4.
13
BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, Nº.15, 23/06/1960. Seção I, p.4199.
14
O Globo, “Protesto”, 31/05/1960, p.16.
15
BRASIL. Discurso de Jair Martins. Diário da Oficial, Brasília, DF, 22/06/1960. Seção II, p.510.
16
BRASIL. Discurso de Jair Martins. Diário da Oficial, Brasília, DF, 22/06/1960. Seção II, p.510.
17
Diário de Notícias, “Captura de Eichmann”, 07/06/1960, p.4.

241
CAPÍTULO 4
!

Última Hora, citando Eichmann, Cukurs, Göring e Bormann, fez uma matéria denun-
ciando a transferência de dinheiro de personalidades nazistas famosas para bancos
sul-americanos, embora não apresentasse qualquer evidência desta operação.18

Imagem&50.!A!suposta!relação!de!Cukurs!com!Martin!Bormann.!Diário!da!Noite,!03/06/1960,!p.13.

Alguns veículos voltaram a acusar as autoridades brasileiras de colaboração com


nazistas. O jornal Novos Rumos foi taxativo ao publicar em sua primeira página que o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Última Hora, “Personalidades Nazistas depositaram dinheiro em bancos...”, 13/06/1960, p.8 (2.Cad.)

242
CAPÍTULO 4
!

“facínora Herberts Cukurs” era protegido pelo governo brasileiro.19 Em entrevista ao


Correio da Manhã, Marcos Constantino, ainda membro excetivo da Federação das
Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, declarou que “forças poderosas” agiam no
avanço do processo de naturalização de Cukurs.20 Mas foi um editorial de O Estado
de S. Paulo que provocou, talvez, a maior polêmica em relação ao posicionamento do
governo. Intitulado “Asilo” a criminoso, o jornal afirmou que o Itamaraty, nas “mãos
incompetentes de seu atual Ministro”, Horácio Lafer, teria perdido aquele “senso de
julgamento” que durante tanto tempo fora um dos seus principais atributos. A irrita-
ção do editorial de O Estado de S. Paulo tinha origem na decisão do Ministério das
Relações Exteriores em negar asilo a 17 refugiados dominicanos foragidos do regime
ditatorial do Presidente da República Dominicana, Rafael Trujillo, ao passo que con-
feria a Cukurs “todas as regalias, estando prestes, inclusive, a outorgar-lhe a cidadania
brasileira.” No longo ataque feito a Lafer, o jornal não se deu conta de que o ministro,
na época em que ainda era deputado federal, tinha sido um nome de peso contra Cu-
kurs uma década atrás. O jornal também ignorou uma informação básica sobre as atri-
buições ministeriais: não cabia ao Itamaraty avaliar pedidos de naturalização e sim ao
Ministério da Justiça. No trecho abaixo, podemos conferir o tom do editorial:

Cukurs está no nosso país há muitos anos já e não nos cabe o direito
de o julgar ou de o condenar fora dos limites que as normas de moral
nos condenem. O que, no entanto, se torna inadmissível é encararmos
a sério a possibilidade de vir esse indivíduo a usufruir o privilégio
conferido pela cidadania brasileira. É o mínimo que se pode fazer em
defesa da nossa sociedade e o mínimo que podemos apresentar ao
mundo como garantia de repúdio aos crimes cometidos pelos nazis
durante o último conflito mundial. Seria, igualmente, legítimo pedir,
exigir, do Itamaraty a expulsão de Cukurs do território nacional –
mas encararmos sequer a hipótese de vermos ao nosso lado, cidadão
do Brasil, um criminoso nazista como Cukurs, nunca. Aos persegui-
dos de um regime brutal como o de Trujillo, acusados de revolucio-
nários, concede o Sr. Lafer passaporte de criminosos comuns sujeitos
à extradição. A um opressor, a um homem que está provado ter morto
– pelas próprias mãos ou por ordens de aniquilamento coletivo – mi-
lhares de cidadãos indefesos, dá-lhe o direito de viver no Brasil e co-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Novos Rumos, “Governo protege assassino nazista que vive em S. Paulo”, 17-23/06/1960, p.1.
20
Correio da Manhã, “Em São Paulo”, 02/06/1960, p.4.

243
CAPÍTULO 4
!
gita a possibilidade de lhe conferir cidadania brasileira. Por este ca-
minho, onde irá parar a dignidade nacional?21

De sequestros clandestinos a caçadas de nazistas no Brasil. Da publicidade da re-


novação do pedido de naturalização ao retorno das acusações de crimes de guerra no
noticiário. Tudo isso pegou Cukurs completamente desprevenido. Depois de residir
em Santos, o antigo proprietário dos pedalinhos da Lagoa vivia há dois anos com a
família no bairro de Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo. Juntos, trabalhavam fazen-
do táxi-aéreo na Represa de Guarapiranga. Ao se deparar com todas essas notícias,
publicadas no espaço de apenas alguns dias, Cukurs tomou uma decisão que não deixa
de ser surpreendente: no dia três de junho de 1960, apresentou-se espontaneamente ao
Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP).

4.2. Herberts Cukurs no DEOPS-SP

Cukurs foi recebido no DEOPS-SP pelo delegado de plantão, Ítalo Ferrigno. Ao


policial, o letão contou que fora surpreendido naquela manhã ao abrir os jornais e en-
contrar seu nome associado a crimes de guerra. Essas acusações, disse, tinham um
duplo propósito: execrá-lo publicamente e transformá-lo em “alvo da vindicta de
membros da colônia israelita de São Paulo”.22 Cukurs poderia realmente estar preocu-
pado com a sua imagem pública. Porém, o segundo motivo de sua ida à polícia pare-
cia mais importante. Ele temia que agentes israelenses pudessem tramar contra ele
uma operação semelhante àquela que capturou Eichmann. Se a caçada aos nazistas
que os jornais tanto vinham anunciando fosse mesmo real, ele poderia ser o próximo
alvo. O que aconteceu em seguida nesta sua visita à polícia reforça essa suspeita: Cu-
kurs solicitou a Ferrigno que abrisse uma sindicância para apurar as acusações arrola-
das contra ele e que fosse providenciada proteção policial para si e seus familiares. 23

Nas duas semanas seguintes, Cukurs retornou três vezes à delegacia. Seu principal
intuito nestas visitas foi registrar em depoimentos aquilo que ele acreditava ser a sua
versão da história. O primeiro desses depoimentos foi tomado na segunda ida ao DE-
OPS-SP no dia seis de junho de 1960, portanto três dias depois da primeira visita.
Nesta ocasião, ele fez um resumo de sua vida durante a ocupação nazista da Letônia:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Estado de S.Paulo, “Asilo a criminoso”, 02/06/1960, p.3.
22
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.50.
23
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.50.

244
CAPÍTULO 4
!

o que fez, por que fez, onde esteve e com quem esteve. Embora todas as acusações da
polêmica envolvendo seu nome na década anterior e as entrevistas que concedera, era
a primeira vez que ele entrava em detalhes sobre sua colaboração com os nazistas.
Cukurs afirmou que durante boa parte da ocupação da Letônia trabalhou como admi-
nistrador de garagens e das oficinas de reparação das unidades letãs. Esse trabalho
teria começado em 25 de julho de 1941, portanto, logo no início da ocupação, e ter-
minado no dia primeiro de abril de 1942, quando aceitou ser o 1o Comandante da 1a
Unidade Voluntária Letã. Cukurs se remete a essa segunda atividade com algum orgu-
lho: seu desempenho como comandante – na luta contra os soviéticos, como ele pro-
cura enfatizar – teria sido tão bom que os nazistas o chamaram de volta a Riga para
organizar e treinar novas unidades, convite este, no entanto, que ele recusou, uma vez
que os alemães, segundo explica, consideravam os soldados letões como mercenários
e não pareciam inclinados a reestabelecer a independência do país. Sua demissão teria
sido pedida em 12 de julho de 1942.24

A visão depreciativa que os alemães tinham dos soldados letões não impediu, con-
tudo, que Cukurs voltasse a trabalhar com os nazistas. Segundo conta, logo depois da
Batalha de Stalingrado, encerrada com derrota alemã em dois de fevereiro de 1943,
ele se tornou parte da “Voluntários da SS”, sendo enviado novamente ao front de ba-
talha, desta vez como Chefe de Observações Aéreas. Cukurs tomou cuidado para ex-
plicar sua adesão como legionário, termo utilizado parar designar os letões que inte-
graram as fileiras estrangeiras da SS nos dois últimos anos da Segunda Guerra Mun-
dial. Segundo disse, ele só aceitou esta função porque não queria se desentender com
o Alto Comando Alemão e, principalmente, com o governo de sua pátria. Neste posto,
combatendo os soviéticos, Cukurs permaneceu até o 25 de junho de 1944, poucas se-
manas antes de deixar para sempre a Letônia e imigrar com a família para Berlim.25
Ao falar da ocupação nazista e de sua colaboração em termos de combate ao comu-
nismo, ele não trata da perseguição aos judeus que acompanhava todas as ocupações
alemãs e que, na Letônia, foi responsável pela morte de XX mil judeus.

Outros três dias se passaram e, no dia nove de junho de 1960, Cukurs forneceu seu
segundo depoimento ao DEOPS-SP. Desta vez, ele não falou de suas atividades na
Letônia, mas sim dos crimes que os judeus da Letônia teriam cometido durante os 13
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.43-44.
25
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.42-43.

245
CAPÍTULO 4
!

meses de ocupação soviética. Cukurs começa sua narrativa contando o que suposta-
mente fora a Letônia antes da chegada do Exército Vermelho: um país democrático,
representativo, sem discriminação de raça ou religião, que dera segurança e cidadania
a todos os “estrangeiros” que viviam no país, inclusive os judeus. Essa idílica Letônia
– que ignora, por exemplo, a ditadura de Ulmanis, em vigor desde 1934, e a existência
de grupos de extrema-direita – foi interrompida, segundo Cukurs, com a chegada dos
soviéticos. Os judeus-letões, afirma, tiveram uma grande participação no triunfo da
URSS sobre a Letônia. A respeito da chegada dos tanques soviéticos a Riga, ele diz:

(...) a colônia judaica provocou tumultos em sinal de regozijo, o que


deu margem a atritos com o povo que também assistia, mas impassí-
vel, à chegada das tropas russas; que os judeus, que se achavam nas
praças públicas, regozijavam e manifestavam abertamente sua satis-
fação com a invasão do Exército Vermelho e muitos soldados letões
aproveitaram a oportunidade para arrancarem as insígnias do Exérci-
to da Letônia, substituindo-as pelas do Exército Russo, fato que se
estranhou nesse dia, pois, não se sabe como, essas insígnias do Exér-
cito Russo conseguiram penetrar nos quartéis do exército letoniano;
que os soldados, que tiveram esse procedimento, eram todos de ori-
gem judaica e, por conseguinte, causou estranheza, ao povo letão, ob-
servar a alegria da colônia judaica em Riga, em decorrência da che-
gada do Exército Soviético; que os membros da colônia judaica, por
ocasião da entrada da força blindada – tanques – nas principais vias
da Capital, atiravam flores e, para espanto geral, cantavam a “Inter-
nacional”. (...) que essa manifestação não só surpreendeu o governo
da Letônia, como, também a população, pois não se esperava conduta
dessa natureza por parte da colônia judaica radicada em Riga.26

Cukurs constrói, assim, a ideia de que se alguém tinha cometido crimes na Letônia,
esse alguém não tinha sido ele, mas sim os judeus, logo eles, que tinham sido tão bem
acolhidos. Para Cukurs, os judeus foram os verdadeiros carrascos do povo letão. Du-
rante a ocupação soviética, ele prossegue explicando, a colônia judaica teria gozado
de privilégios, autonomia e de um enorme desenvolvimento cultural. Vários de seus
membros foram nomeados para postos de grande responsabilidade. Ele cita dois ju-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.38-40.

246
CAPÍTULO 4
!

deus como exemplo: um tal Comissário Sustin, que teria sido Ministro da Justiça e
Chefe da Segurança do Estado, e um tal Novyk, Chefe da Polícia Secreta.27

Imagem&51.&!Ida!de!Cukurs!ao!DEOPS/SP!na!imprensa.!Fonte:!O!Estado!de!S.!Paulo,!10/06/1960,!p.9.

A lista de acusações de Cukurs vai longe. Ele atribuiu à colônia judaica: incitação à
violência, comícios, doutrinação comunista de cidadãos e distúrbios contra policiais.
Joffe, apontado como Ministro da Educação da Letônia, e Sustin, o referido Ministro
da Justiça e Chefe da Segurança do Estado, teriam tido grande poder durante a ocupa-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.38-40.

247
CAPÍTULO 4
!

ção, ao passo que outros tantos judeus, ocupando altos cargos na NKVD e em outros
órgãos soviéticos de repressão, teriam iniciado “um período de horrorosas persegui-
ções, prisões e torturas contra os patriotas da Letônia.”28 Nas palavras de Cukurs, em
resumo, “a liquidação da Letônia foi recebida com regozijo pela colônia israelita”. 29

Se Cukurs acreditava no que dizia ou se estaria apenas construindo uma imagem


conveniente para a sua defesa, não sabemos. É certo, porém, que suas palavras refleti-
am o que parte dos letões ufanistas de sua geração pensava. Para entendermos essa
afirmação, precisamos levar em conta duas dimensões, uma no âmbito geral e a outra,
no âmbito particular. A geral nos remete ao antissemitismo que surgiu no final do sé-
culo XIX e que se consolidou na primeira metade do século seguinte. Temos aí a pro-
pagação da imagem do judeu como o estrangeiro, deslocado, ganancioso, suspeito,
estranho à nação, oportunista, traidor, ocupando postos-chave do governo, associado
ao comunismo, envolvido com conspirações milenares e incapaz de ser leal à uma
bandeira nacional. A imagem que Cukurs descreve dos judeus letões está embebida
destes estereótipos e arquétipos que tão ferozmente circularam pela Europa, com re-
forço das próprias propagandas nazistas. Já a dimensão particular, complementar a
esta, nos remete à realidade da Letônia no período da Segunda Guerra Mundial. Aqui,
Andrew Ezergailis pode nos ajudar bastante. Ao falar deste momento da história letã,
o historiador nos oferece um panorama bastante diferente daquele montado por Cu-
kurs: os judeus letões não receberam nenhum tratamento diferenciado durante a ocu-
pação comunista; na verdade, sublinha o autor, esse período significou o fim da vida
religiosa e cultural judaica na Letônia. Várias escolas e numerosas instituições sociais
judaicas foram fechadas ou nacionalizadas após a chegada dos soviéticos. As autori-
dades moscovitas eliminaram ainda diversos ativistas judeus que militavam no campo
político-cultural e realizaram a deportação de aproximadamente cinco mil judeus-
letões para a Sibéria, um número que, se correto, superaria em muito a taxa dos não-
judeus vítimas de perseguições pelos soviéticos.30 Se os letões nacionalistas, durante
ou depois da guerra, reproduziram histórias em que os judeus aparecem como aliados
dos comunistas, isso se deve fundamentalmente à propaganda antissemita de Hein-
rich. Segundo Ezergailis, essa propaganda não foi uma particularidade da Letônia.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.39.
29
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.39.
30
EZERHAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. The United States
Memorial Museum: Washington, 1996, pp.69-70.

248
CAPÍTULO 4
!

Outros países ocupados – além da própria Alemanha – também sofreram seus efeitos
perniciosos. Porém, no caso da Letônia, ela produziu algumas mitologias específicas.
O historiador enumera quatro desses mitos, todos, sem exceção, presentes no depoi-
mento de Cukurs ao DEOPS-SP: 1) Os judeus deram boas-vindas aos tanques do
Exército Vermelho no início da invasão; 2) os judeus estiveram no controle do apara-
to administrativo e legal da Letônia durante a ocupação soviética; 3) Os judeus tive-
ram um papel especialmente ativo na deportação dos letões ocorridas no dia 14 de ju-
nho de 1941; 4) Os judeus controlaram a Cheka na Letônia, isto é, a polícia política (e
secreta) soviética.31

Imagem&52.&Propaganda!antissemita!na!Letônia!ocupada!pelos!nazistas.!Fonte:!The!Holocaust!in!Latvia,!p.85!

Os depoimentos dados por Cukurs ao DEOPS-SP tiveram uma repercussão bastan-


te negativa na imprensa. Primeiro, porque a polícia forneceu a escolta policial que
Cukurs requisitou. Dois guardas foram destacados para fazer a vigilância dos arreado-
res da sua casa, em Santo Amaro. Em segundo lugar, porque Cukurs, ao acusar os ju-
deus da Letônia de terem cometido crimes contra aquele país e sua população, inver-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
EZERHAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. The United States
Memorial Museum: Washington, 1996, pp.70-72.

249
CAPÍTULO 4
!

teu os papéis: o letão passou de algoz à vítima. No dia seguinte ao terceiro depoimen-
to, O Globo fez uma provocação: “Os judeus massacraram o povo letão”.32

Essa repercussão negativa talvez explique o tom contemporizador do terceiro e úl-


timo depoimento de Cukurs à polícia paulista, registrado no dia 14 de junho de 1960,
cinco dias após o anterior. Na primeira parte deste depoimento, Cukurs acrescentou
detalhes ao que já tinha declarado e retificou algumas datas e nomes. Ele se apressou,
por exemplo, em esclarecer que não entrou para a Legião da SS, diferentemente do
que tinha dito dias antes. 33 Na segunda parte, aquela mais longa e que considero a
mais importante, Cukurs tenta desfazer a imagem de que ele foi adepto do nacional-
socialismo e que compactuou com os seus crimes. De acordo com Cukurs, os ale-
mães, assim que chegaram ao país, desarmaram a população, perpetraram castigos,
fuzilamentos e escravizaram mulheres. Desde o primeiro dia de ocupação, ele conta,
os judeus foram maltratados e massacrados, colocados em “triste existência”. Ele
menciona estupros, desapropriações, fuzilamentos e a dura vida no gueto. Na sua opi-
nião, embora os judeus tivessem traído a Letônia, os letões não concordavam com o
tratamento que os nazistas deram a eles. 34

Cukurs disse ainda que nunca manifestou qualquer tendência antissemita, que não
foi oficial da Gestapo e que nem pertenceu a SS nazista. Se colaborou indireta e even-
tualmente com as autoridades alemãs foi porque estava pensando na independência da
Letônia e em sua libertação do julgo soviético.35 Seguindo esta linha de defesa, voltou
a falar da situação dos legionários: “não era e jamais fora organização nazista. Era,
isto sim, uma organização de letões, preparada para combater pela sobrevivência da
Letônia livre, pela independência, e com este objetivo lutou contra os comunistas,
como por igual lutaria mais tarde contra os alemães”.36 Este último ponto é particu-
larmente interessante. Em um depoimento, Cukurs admite que fez parte da Legião da
SS. Em outro, desmente-se, dizendo que não. Porém, ao mesmo tempo, vê a si mesmo
como legionário. O que aparece num primeiro momento como contradição, na verda-
de, é apenas a maneira como Cukurs constrói a sua identidade enquanto combatente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
O Globo, “Cukurs diz na polícia que os judeus massacraram o povo letão”, 10/06/1960, p.6.
33
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.37.
34
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.32-34.
35
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.32
36
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.32.

250
CAPÍTULO 4
!

letão da Segunda Guerra Mundial. Para entender isso, precisamos fazer uma rápida
contextualização. A Waffen-SS era uma força de elite nazista formada exclusivamente
por “alemães puros”. Nenhum estrangeiro podia fazer parte dela. Mesmo os alemães
que se candidatavam a ela tinham que passar por rigorosos testes de genealogia. Em
fevereiro de 1943, porém, após a derrota alemã na Batalha de Stalingrado, Hitler or-
denou ao chefe da SS, Heinrich Himmler, que criasse legiões estrangeiras de soldados
e que as colocasse sob a supervisão direta da Waffen-SS. Indivíduos de diferentes paí-
ses da Europa, incluindo a Letônia, participaram dessas legiões. No início, a partici-
pação foi voluntária. Cartazes, anúncios e cartas enviadas pelo correio conclamavam
os homens da Letônia para ingressarem na Legião.37 Contudo, o resultado foi frustran-
te. Um número bem abaixo das expectativas tinha atendido à chamada. Himmler, en-
tão, conferiu um caráter quase compulsório ao alistamento. Os letões se alistariam
“voluntariamente” ou seriam enviados para fábricas na Alemanha, para campos de
trabalho forçado ou enviados à prisão.38 A partir daí o número de “voluntários” cres-
ceu significativamente. Isso não significa, no entanto, que os letões conscritos na Le-
gião de Voluntários da SS eram os típicos SS. Segundo Jukka Rislakki, “a Legião Le-
tã era uma unidade SS apenas no nome”.39 Seus soldados não atuaram em campos de
concentração ou em guetos. Somente no front.40 Não tiveram o mesmo treinamento e
nem os mesmos equipamentos que os alemães da Waffen-SS. Também não tinham os
mesmos privilégios, organização, patentes ou emblemas. No campo de batalha eram
quase sempre vistos com desconfiança pelos oficiais alemães.41

Feita esta intervenção, fica mais claro compreender a maneira um tanto ambígua e
contraditória pela qual Cukurs se definia. Essa indefinição, verdade, persiste até os
dias de hoje. Boa parte dos veteranos da Legião Letã não se reconhecem como “ho-
mens da SS”, o que, de fato, está correto. Falar em Legião Voluntária da SS envolve
dois problemas para esses ex-combatentes: a conscrição não foi, na maior parte dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
EZERHAILIS, Andrew. The Holocaust in Latvia, 1941-1944: the missing center. The United States
Memorial Museum: Washington, 1996. pp.42-43.
38
A noção de voluntariado era uma estratégia dos nazistas para burlarem a Convenção de Haia, de
1907, que proibia o recrutamento de estrangeiros para combate.
39
RISALAKKI, Jukka. The Case for Latvia – Disinformation Campaigns against a small nation. Four-
teen hard questions and Straight answers about a Baltic Country. Amsterdam/New York, 2008. p.129.
40
EZERHAILIS, op.cit. p.42.
41
Batalhões de Polícia Letã e membros do Comando Arājs, nos momentos finais da guerra, também
foram incorporados à Legião Letã, o que ajudou a tornar a imagem dos legionários menos simpática e
mais confusa, já que estes dois grupos colaboracionistas se envolveram com crimes de guerra.

251
CAPÍTULO 4
!

casos, voluntária, e a palavra “SS” remete diretamente à SS alemã, considerada crimi-


nosa pelo Tribunal de Nuremberg. A denominação “Legião Voluntária da SS” é muito
mais negativa do que “Legião Letã”. A primeira está associada a crimes de guerra,
enquanto que a segunda está associada à resistência aos soviéticos.42

Em suas falas, Cukurs não menciona Viktor Arājs, comandante condenado pelo
Tribunal de Hamburgo, em 1979, ou explicitamente sobre o Comando Arajs, organi-
zação colaboracionista da qual participou e que foi decisiva no extermínio dos judeus
da Let6onia. Embora Cukurs mencione atos violentos praticados “por alemães contra
judeus”, ele também não explica os letões colaboracionistas e suas milícias também
tomavam parte das rondas e batidas que os nazistas realizavam. Em seus depoimentos,
Cukurs fez questão de separar o comportamento dos alemães do dos letões.

4.3. Judeus também depõem no DEOPS-SP e proteção policial

No dia sete de julho de 1960, o delegado Alcides Cintra Bueno Filho intimou dois
judeus sobreviventes do Holocausto na Letônia que residiam na cidade de São Paulo.
A intimação fazia parte dos trâmites de investigação iniciados com os depoimentos de
Cukurs. A primeira pessoa a depor foi Frida Schmuskovits, de 37 anos, nascida em
Liepāja, na Letônia, vivendo no Brasil desde 1953. Schmuskovits disse que Cukurs
tivera atuação destacada na Pērkonkrusts, organização de extrema direita letã, e que
tomou parte nas ações de fuzilamentos em massa de judeus, além de participar do
confisco de propriedades e de objetos de valor. Segundo relatou, as ordens de fuzila-
mento eram dadas por Viktor Arājs e por Cukurs. Schmuskovits, no entanto, declarou
que “a bem da verdade” não assistiu a nenhum ato de fuzilamento, embora, naquela

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Todo o ano, desde a retomada da independência da Letônia, em 1991, os legionários veteranos saem
em marcha pelas ruas de Riga em homenagem aos colegas mortos em combate. O assunto divide os
letões: para alguns, esses veteranos são heróis por combater os soviéticos. Para outros, são vilões por-
que colaboraram para a ocupação nazista. Para organizações judaicas e russos, a marcha é uma afronta
à democracia e fascista. Em 1950, o presidente da Comissão de Deslocados de Guerra dos Estados
Unidos, Harry N. Rosenfield, aprovou uma moção que determinava que os letões que combateram pela
SS deveriam ser diferenciados em termos de propósito, ideologia, atividades e qualificações de seus
membros em relação a SS alemã. Porém, no pós-guerra, a URSS, insistiu no paralelo entre a Legião
Letã e a SS alemã, chegando a produzir panfletos para este fim, distribuídos no exterior, como o famo-
so Daugavas Vanagi – Who Are they?, de autoria da KGB, distribuído nos Estados Unidos. Este pan-
fleto dizia que os antigos legionários, muitos dos quais exilados nos EUA, eram criminosos de guerra.
A ideia foi reproduzida em diversas publicações e ainda hoje molda o imaginário sobre o grupo.

252
CAPÍTULO 4
!

época, fosse “público e notório”, em toda a Letônia, que o extermínio de judeus era
liderado pela Pērkonkrusts, chefiada por Arājs e Cukurs.43

Imagem&53:&Policiais!fazem!a!proteção!da!Casa!de!Cukurs.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo,!06/08/2006,!p.C4.

A outra testemunha ouvida naquele dia foi Josef Gavrowski, de 55 anos, nascido
em Riga. Gavrowski disse que conheceu Cukurs pessoalmente na Sociedade dos Ati-
radores da Letônia. Cukurs tinha ido àquela instituição falar sobre os dois raides que
tinha acabado de fazer. Para o depoente, a história de que os judeus perseguiram a po-
pulação não judaica da Letônia, como Cukurs havia registrado, era “completamente
destituída de fundamento”. Os judeus que fizeram isso, explica, constituíam uma “ab-
soluta minoria”. Os russos, completou, perseguiam, indistintamente, letões e judeus.
Quanto à ocupação nazista, Gavrowski contou que foi um período bastante difícil para
os judeus. Ele mesmo perdeu quase toda a família no Gueto de Riga. Cukurs, nas suas
palavras, teria participado ativamente desses massacres. Tal como Schmuskovits dis-
sera, Gavrowski também diz que o aviador pertenceu a Pērkonkrusts e que vários atos
criminosos cometidos por esta organização tinham sido ordenados por ele. 44

Gavrowski não deixa claro se foi ou não testemunha ocular dos crimes de Cukurs.
Porém, disse que gostaria de deixar bem claro que Cukurs “é o responsável direto pe-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.16.
44
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.13-15.

253
CAPÍTULO 4
!

las matanças e atrocidades praticadas contra os judeus da Letônia”, fato que o faria
acreditar que “as autoridades brasileiras não poderão, de espécie alguma, conferir a
esse grande criminoso de guerra um prêmio, que seria a cidadania brasileira”.45

Tanto o depoimento de Cukurs quanto os de Gavrowski e Schmuskovits foram ob-


jeto de uma reportagem especial publicada pela Folha de S. Paulo no dia seis de agos-
to de 2006. O interesse surgiu depois que um estudante de pós-graduação da Univer-
sidade de São Paulo, Erick Godliauskas Zen, encontrou o dossiê que o DEOPS-SP
produziu sobre Cukurs. Essa reportagem é um bom exemplo de como o olhar da im-
prensa para o Caso Cukurs, passados 50 anos de sua morte, ainda é bastante marcado
por distorções provenientes não apenas de informações mal apuradas, como também
pelos clichês e estereótipos sobre criminosos nazistas que se difundiram livremente no
pós-guerra. Toda a reportagem da Folha de S. Paulo gira em torno de uma única tese:
as autoridades brasileiras, coniventes com criminosos de guerra nazistas, favoreceram
Cukurs em detrimento de suas vítimas judaicas. Para provar isso, o jornal diz, por
exemplo, que a “documentação mostra que a polícia não moveu uma palha para inves-
tigar a veracidade das acusações”. E lança a sua explicação para isso:

As amizades de Cukurs no Brasil talvez ajudem a entender por que a


polícia não o investiga em nenhum momento. O ex-capitão frequen-
tava os círculos da Aeronáutica no Rio, cidade onde desembarcou
com um emprego na FAV (Fábrica Brasileira de Aviões), que conse-
guira quando estava na França. Militares do governo de Eurico Gas-
par Dutra ficaram ao lado de Cukurs quando judeus escreveram pi-
chações nas casas em que eles alugavam pedalinhos no Rio em 1950,
segundo seu filho Gunnars. “Um grupo de generais e brigadeiros foi
até a minha casa e disse para meu pai: ‘Você cometeu um único er-
ro’. Meu pai quis saber qual era o erro e um general disse: ‘você de-
veria ter matado todos’.”46

A Folha de S. Paulo também situa a proteção policial recebida por Cukurs dentro
desta perspectiva. De acordo com o jornal, a polícia política de São Paulo só tinha fei-
to o referido dossiê porque Cukurs havia sido apontado como criminoso de guerra por
dois sobreviventes letões dos Holocausto, os já mencionados Frida Schmuskovits e
Josef Gavrowski. Porém, conforme aponta o jornal, a linha de tempo deste documento
mostra como a polícia paulista estava do lado de Cukurs, beneficiando-o: “o depoi-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.15.
46
Folha de S.Paulo, “Matador de Riga passou pelo Rio e por SP”, 06/08/2006, p.C4.

254
CAPÍTULO 4
!

mento do acusado é tomado antes mesmo de a polícia saber quais eram as acusações
que pesavam contra ele. O DEOPS-SP teria ouvido Cukurs no dia 6 de junho de 1960
e só no dia seguinte teria tomado o depoimento de Frida e Josef.”47 No sentido de le-
gitimar a tese de que Cukurs e outros criminosos nazistas foram amparados pelo Esta-
do brasileiro, o jornal encerra a reportagem com a fala de uma historiadora:

A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da USP que


escreveu o clássico “O Antissemitismo na Era Vargas”, afirma que os
documentos encontrados no arquivo do Deops são importantes por
causa desses depoimentos. “Os sobreviventes relatam os crimes e a
polícia não faz nada. Houve um acobertamento do governo brasileiro
em relação aos nazistas que durou de 1946 até o fim da ditadura mili-
tar, em 1985.”48

O que temos visto até agora neste trabalho é a desconstrução da tese sustentada em
reportagens como esta. Há uma série de incongruências nos trechos que acabamos de
ler. Não é verdade, por exemplo, que a polícia política não fez nada a respeito da en-
trada e permanência de Cukurs no Brasil. Como vimos, as sindicâncias em torno de
seu nome começaram ainda em julho de 1950, logo depois que a Federação das Soci-
edades Israelitas do Rio de Janeiro acusou Cukurs de cometer crimes nazistas. O De-
partamento Federal de Segurança Pública levantou sua ficha e uma vez carecendo de
mais informações sobre suas atividades na Letônia, orientou o Ministério das Rela-
ções Exteriores a averiguar dados sobre a vida pregressa naquele país. Da mesma
forma, a polícia política de São Paulo também tomou providências no sentido de es-
clarecer os crimes atribuídos a Cukurs, mesmo estando esta matéria já há muito tempo
nas mãos do Ministério da Justiça. Na ocasião, o delegado Alcides Cintra Bueno Filho
pediu a ajuda do delegado chefe da Interpol em São Paulo para checar os depoimentos
contra Cukurs junto a The Wiener Library, em Londres.49 O DEOPS-SP trocou tam-
bém diversas correspondências com setores do Ministério da Justiça, que o atualiza-
ram sobre as investigações em curso e as decisões ministeriais quanto ao caso.50 Em
relação à mencionada “proteção militar” recebida por Cukurs, esta informação não
possui qualquer tipo de sustentação empírica. Para concluir isso, a Folha de S. Paulo
utiliza tão somente uma fala do filho de Cukurs e que, ainda assim, refere-se a “um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Folha de S.Paulo, “Polícia de SP protegeu carrasco”, 06/08/2006, p.C1.
48
Folha de, “Polícia de SP protegeu carrasco nazista”, 06/08/2006, p.C1.
49
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.17-18.
50
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fls.2-6.

255
CAPÍTULO 4
!

grupo de generais e brigadeiros”. Mesmo que isso fosse comprovado, tal fato não po-
deria se confundido com a posição do Estado no caso. Finalmente, sobre a cronologia
do dossiê, a documentação mostra algo bem diferente. Cukurs, como já sabemos,
compareceu pela primeira vez à polícia paulista no dia três de junho de 1960. E, se-
gundo consta nos autos de seu depoimento, ele só foi à delegacia porque queria prote-
ção. Schmuskovits e Gavrowski, por sua vez, só compareceram a delegacia no dia se-
te de julho e não no dia seis de junho, conforme diz a reportagem. O depoimento de
Gavrowski explica, inclusive, as razões que o fizeram procurar a polícia naquela data:

(...) que o depoente comparece a esta delegacia, por sua livre e espon-
tânea iniciativa, por não se conformar com as mentiras que Cukurs
proclama, em nome de sua defesa; que tem acompanhado, através
dos jornais, a forma aleivosa, decorrente das declarações de Cukurs
nesta especializada, querendo o mesmo, desta forma, embair a boa-fé
do generoso povo brasileiro; que, há poucos dias, numa das estações
de televisão de São Paulo, vendo Cukurs apresentar-se perante os
brasileiros desta capital, ficou o depoente profundamente revoltado,
motivo pelo qual resolveu procurar a digna autoridade que este presi-
de, a fim de esclarecer o que realmente passou-se na Letônia naque-
les negros dias, sob as ordens diretas de Herberts Cukurs.51

É importante que se diga ainda que os guardas que a polícia paulista destacou para
a proteção de Cukurs estavam longe de ser a prova cabal de que o governo brasileiro
protegia ou acobertava criminosos nazistas. Essa proteção policial, na verdade, refle-
tia a preocupação das autoridades brasileiras em evitar que Cukurs, tal como Eich-
mann, fosse sequestrado. Não que necessariamente o governo se importasse com o
bem-estar de Cukurs, mas porque o sequestro de Eichmann tinha tocado em questões
nacionalistas bastante sensíveis para o governo brasileiro. Quando a notícia do se-
questro de espalhou pelo mundo, houve um princípio de crise diplomática entre Israel
e Argentina. O governo argentino ficou tão indignado com a violação de sua sobera-
nia que chegou a dar um ultimato ao governo israelense para que devolvesse Eich-
mann ao país, além de exigir a punição dos responsáveis pelo sequestro, o que sequer
foi cogitado pelo governo de Israel. O assunto chegou a ser levado às Nações Unidas
e, ainda assim, não se solucionou a crise. O clima entre os dois países se deteriorou
rapidamente. Na imprensa israelense, isso era bastante visível. “Os veículos se enche-
ram de referências à Argentina como país que concedeu asilo a numerosos criminosos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
51
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.13.

256
CAPÍTULO 4
!

nazistas e onde fatores da extrema direita logravam impor seus pontos de vista ao Pre-
sidente Frondizi”. 52 Nessa época, a Embaixada Argentina em Tel Aviv recebeu várias
ameaças telefônicas anônimas ameaçando explodir o edifício.53 No final de julho, a
Argentina declarou Arie Levavi, embaixador de Israel no país, persona non grata e o
expulsou da Argentina. 54 Somente em agosto de 1960, os dois governos encerraram a
crise.55 O governo brasileiro acompanhou toda essa movimentação bem de perto. A
Embaixada do Brasil na Argentina manteve Brasília regularmente informada sobre o
desenrolar dos acontecimentos. Tudo que as nossas autoridades queriam evitar na
época era que algo do gênero se repetisse no Brasil.

Imagem&54:&Cukurs!em!destaque!na!Folha!de!S.!Paulo.!Fonte:!Folha!de!S.!Paulo,!06/08/2006.!p.1!

Um comunicado enviado ao Itamaraty logo depois de Frondizi chamar seu embai-


xador em Israel de volta ao país para consulta, revela que os funcionários diplomáti-
cos brasileiros naquele país tinham ouvido de um “alto funcionário da Chancelaria
[argentina]” que o momento parecia “oportuno para uma demonstração de solidarie-
dade dos governos latino-americanos à atitude que o governo argentino foi forçado a
tomar em face da nota de Israel”.56 Eichmann, além disso, foi o assunto predominante
no relatório político mensal enviado à Secretaria de Relações Exteriores no início de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
REIN, Raanan. Argentina, Israel y los judíos: de la partición de Palestina al caso Eichmann: 1947-
1962. Buenos Aires: Lumiere, 2007, p.228.
53
Ibidem.
54
Ibidem.
55
Ibidem, pp. 228-234.
56
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Cartas-telegramas recebidas: 1960-1962.
Caso Eichmann [Confidencial-Urgente], CT.327. 09/06/1960.

257
CAPÍTULO 4
!

julho de 1960. Neste documento, a Embaixada Brasileira reconhecia a posição difícil


do governo argentino ao mesmo tempo em que se elogiava a postura de Frondizi:

O reconhecimento do atentado à soberania do país por parte do go-


verno de Israel em nota talvez sem precedentes na história diplomáti-
ca, as circunstâncias “morais” que o assunto envolve pelo fato de se
tratar de criminoso de guerra acusado de genocídio ao qual se atribui
o extermínio de 6 milhões de judeus e a repercussão interna e inter-
nacional do caso, colocaram em difícil situação o governo argentino.
Este, contudo, agiu com extrema firmeza ao repudiar a solidariedade
do governo israelense à ação dos comandos “voluntários” em seu ter-
ritório, bem como a habilidade ao submeter o julgamento do ato às
Nações Unidas desobrigando-se, dessa forma, de tomar medidas dire-
tas de represálias contra Israel.57

Mesmo quando a matéria parecia caminhar para um desfecho amistoso entre Ar-
gentina e Israel, os diplomatas brasileiros alocados em Buenos Aires ainda achavam
que o governo argentino deveria ser mais enérgico diante das pressões israelenses. A
Embaixada brasileira naquele país avaliou que a resposta dada pelas autoridades ar-
gentinas no âmbito da ONU tinha sido formulada “em termos extremamente modera-
dos”. 58 A restituição de Eichmann, diziam no relatório enviado a Secretaria de Estado
do Itamaraty era a “única reparação satisfatória em face da violência cometida”. 59

Cukurs foi bastante inteligente ao perceber esse tipo de temor e passou ele próprio
a alimentar a ideia de que um sequestro semelhante ao de Eichmann também poderia
ocorrer no Brasil. Em diversas entrevistas à imprensa, Cukurs declarou que temia ser
raptado por judeus. “Tenho motivos para recear a realização, contra mim, de um ato
do gênero daquele praticado contra Eichmann, em Buenos Aires”, disse a O Estado de
S. Paulo.60 Conversando com a reportagem de O Mundo Ilustrado, mostrou-se fatalis-
ta: “talvez tentem me apanhar. À noite isto aqui é escuro e fácil interceptar o caminho.
Mas lutarei com todos os meus recursos. Quem é inocente, tem força moral. Daqui
ninguém me tira. Só sairei morto. Vou morrer aqui. Pedi segurança porque de maneira
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
57
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.5.
58
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.5.
59
AHI-DF. Missão Diplomática Brasileira em Buenos Aires. Ofícios Recebidos. Julho a Setembro de
1960. Informação política – Junho 1960. fl.6.
60
O Estado de S. Paulo, “Policiais vigiam a casa de Cukurs”, 05/06/1960, p.21.

258
CAPÍTULO 4
!

alguma vou deixar que me levem para Israel”. Nas palavras de O Globo, Cukurs esta-
va “apavorado” com a possibilidade do sequestro.61 No dia 10 de junho de 1960, o
Última Hora publicou na primeira página que Cukurs já tinha, inclusive, recebido
uma ameaça de morte. A revelação teria sido feita ao delegado Ítalo Ferrigno pouco
antes de Cukurs dar o seu terceiro depoimento ao DEOPS-SP:

Segundo o carrasco nazista afirmou àquela autoridade, um caboclo


contou-lhe ter ouvido uma conversa em que o caseiro José Leitem, de
uma família judaica, residente daquelas imediações, dissera que “ele
– Cukurs – não podia mais continuar vivo. É meu dever suicidá-lo.
(...) A despeito dos últimos acontecimentos, o ex-nazista declarou-
nos que “não adianta policiamento, porque a perseguição continuará
indefinidamente. Com judeu é assim” – acentuou – “olho por olho,
dente por dente”.62

As declarações de Cukurs sobre seu possível rapto não tiveram musculatura sufici-
ente para colocar a opinião pública do seu lado, porém, havia uma atmosfera contra a
violação de soberania nacional que estava a seu favor. O Diário de Notícias anunciou
que um “alto funcionário do Itamaraty” teria revelado à sua equipe de reportagem que
“em hipótese alguma repetir-se-á no Brasil o que houve na Argentina.63 Em editorial,
a Folha de S. Paulo disse que o Brasil era uma terra “isenta de ódios” e que os acusa-
dos como Cukurs, enquanto permanecessem em território brasileiro, mereceriam “ca-
bal proteção, por força de dispositivo constitucional que assegura aos estrangeiros a
mesma segurança pessoal que merecem os brasileiros”.64 Em outro editorial, intitula-
do “Justiça perigosa”, O Globo defendeu ideia semelhante. Também se apoiando no
fato de que no país nunca se medraram ódios, o jornal carioca disse de maneira bas-
tante exagerada que eclodiria uma revolta da população brasileira caso o “sistema de
fazer justiça” do Caso Eichmann fosse aplicado também a Cukurs. O Brasil não admi-
tiria, escreveu, qualquer atentado de tal ordem à sua soberania. “As autoridades estão
no dever de proteger por todos os meios Cukurs e todos os ex-nazistas que estejam no

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
O Globo, “Cukurs teme ser sequestrado”, 04/06/1960, p.6.
62
Última Hora (PR), “Cukurs no DOPS revela ameaça de morte: 4 horas...”, 10/06/1960, p.7.
63
Diário do Paraná, “Brasil não permitirá rapto de Herberts Cukurs”, 10/06/1960, p.2.
64
Folha de S. Paulo, “O Caso Cukurs”, 08/06/1960, p.3.

259
CAPÍTULO 4
!

Brasil e invoquem a proteção das nossas leis, decerto feitas para salvaguardar o que o
Brasil tem de mais caro, o seu espírito cristão de humanidade e de concórdia” 65

4.4. MJNI e MRE se posicionam

À luz da repercussão provocada pela captura de Eichmann, o Ministério da Justiça


e o Ministério das Relações Exteriores emitiram os seus primeiros posicionamentos
nesta segunda etapa do Caso Cukurs. O primeiro posicionamento, ainda que extraofi-
cialmente, ocorreu no dia cinco de junho de 1960. Horácio Lafer publicou uma nota
pública contestando as duras críticas que O Estado de S. Paulo lhe fizera no editorial
“Asilo a criminoso”. Segundo o Ministro das Relações Exteriores, o texto do jornal
paulista era uma “integral inverdade”. Lafer explicou que seu ministério não concedeu
e nem poderia conceder a naturalização de Cukurs ou de quem quer que fosse, haja
vista que esta decisão caberia exclusivamente ao Ministério da Justiça.

As acusações que me são feitas sem qualquer fundamento, só podem


ter partido de espíritos menos avisados, uma vez que em toda a mi-
nha vida pública jamais alguém poderá apontar qualquer gesto ou ato
meu que venha a beneficiar, mesmo de longe, sequer, a qualquer cri-
minoso ou atentar contra os princípios da defesa da dignidade huma-
na.66

Lafer lembrou ainda que, quando era deputado em 1950, foi ele o primeiro a levan-
tar-se, na Câmara dos Deputados, contra o processo de naturalização de Cukurs.67

A tréplica de O Estado de S. Paulo a Lafer foi igualmente dura. O jornal disse que
o ministro tinha optado apenas por uma defesa pessoal em meio a um episódio que
vinha indignando a opinião pública. Lafer, afirmou o jornal, permanecera “surdo e
mudo” em relação às críticas feitas à sua gestão no Ministério das Relações Exterio-
res. Suas repostas, além disso, teriam sido incompletas e nebulosas. Lafer teria agido
como Pilatos, lavando suas mãos e transferindo as responsabilidades à outra autarquia
do governo. Além de conclamar o Ministro a Justiça a prestar informações sobre o
Caso Cukurs, O Estado de S. Paulo completou sua condenação dizendo que “as reti-
cências do Sr. Lafer são denunciadoras da existência, nisso tudo, de algo inconfessá-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
65
O Globo, “Justiça perigosa”, 07/06/1960, p.1.
66
Correio da Manhã, “Lafer não apoiou a cidadania a Cukurs”, 04/06/1960, p.2.
67
Correio da Manhã, “Lafer não apoiou a cidadania a Cukurs”, 04/06/1960, p.2.

260
CAPÍTULO 4
!

vel. Algo que – assegura o Sr. Lafer – não foi ele quem praticou, mesmo porque as
responsabilidades cabem à pasta política do governo federal...”68

Por parte do Ministério da Justiça, quem primeiro se manifestou, também extraofi-


cialmente, foi José Vieira Coelho, antigo chefe do Departamento de Interior e Justiça
(DIJ), agora à frente do gabinete daquele ministério. Falando ao Correio da Manhã,
Coelho lembrou que em 1950, quando chefiava o DIJ, deu parecer contrário à natura-
lização de Cukurs e favorável à sua permanência. Dez anos depois, contudo, sua res-
posta sobre o caso era evasiva. Sem se comprometer muito com o jornal, Coelho de-
clarou apenas que o poder público tinha “a obrigação de ouvir e sentir a opinião pú-
blica”. Alcirio Dardeau de Carvalho, jurista, especialista em assuntos ligados à situa-
ção de estrangeiros no Brasil, à época diretor geral do DIJ, limitou-se, por sua vez, a
dizer à imprensa que só examinaria o processo depois que fossem atendidas todas as
exigências por parte do naturalizando, cabendo, em seguida, aguardar o parecer das
autoridades superiores. Elas sim decidiram pela naturalização ou não de Cukurs.69

Oficialmente, o assunto começou a ser definido no dia 22 de junho de 1960. Nesta


data, Adhemar Silva, então chefe da Seção de Nacionalidade do Ministério da Justiça,
primeira instância daquele ministério em assuntos de aquisição de nacionalidade, ela-
borou um parecer sobre o novo pedido de naturalização de Cukurs. Silva revelou ter
uma visão bastante favorável de Cukurs. O funcionário sublinhou que Cukurs encon-
trava-se há 14 anos vivendo no Brasil e que durante esse tempo “sempre se portou
irrepreensivelmente; aqui vive dedicando-se à profissão definida; aqui viu um filho
seu nascer; aqui a sua filha contraiu matrimônio com brasileiro nato. Nenhuma articu-
lação se faz ou se ergue capaz de encará-lo como nocivo à terra que o acolheu”.70

Se o chefe da Seção de Nacionalidade tinha Cukurs em bons termos, sua opinião


sobre a comunidade judaica brasileira era bem diferente. Silva disse estar surpreso
com o fato de que Cukurs, mesmo depois de tanto tempo vivendo no Brasil, ainda era
“perseguido” no país. Não pelo Estado brasileiro, pontuou, mas por uma “comunidade
estranha aos interesses nacionais”. No trecho abaixo, podemos ver outros estereótipos
e generalizações notoriamente antissemitas contidas no parecer de Adhemar Silva:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
68
O Estado de S.Paulo, “Caso H. Cukurs: um pronunciamento ainda incompleto”, 04/06/1960, p.6.
69
Correio da Manhã, “Está na dependência de JK a naturalização do genocida”, 03/06/1960, p.7.
70
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.330.

261
CAPÍTULO 4
!
O que não se compreende é que Herberts Cukurs continue persegui-
do, não pelo Estado brasileiro, caso tivesse razões para fazê-lo, mas
por uma comunidade estranha aos interesses nacionais, que não reluta
em trazer para a terra brasileira os seus ódios milenares e raciais, dos
quais sempre viveram e se alimentaram através das épocas. Aqui pe-
ço vênia, para alertar a quem de direito sobre o que isso representa
para o Brasil. Ainda recentemente, a nossa vizinha Argentina, foi ví-
tima dessa comunidade israelense, que não teve escrúpulo em violar
a soberania daquele país, para capturar em sua terra, um pretenso
criminoso de guerra, levando-o à força, para ser julgado em Israel. É
preciso que as autoridades brasileiras estejam alertas para que tal coi-
sa não se verifique no país. O Brasil, que acolhe em seu seio estran-
geiros de toda natureza, tem obrigação de protegê-los, desde que não
sejam nocivos aos interesses nacionais. Da mesma forma, não pode
tolerar que sociedades desvinculadas de seus objetivos deem vazão
aos seus ódios, agitando com falsos pretextos, a tranquilidade soci-
al.71

O antissemitismo do parecer é evidente. Silva enxergava os judeus como uma enti-


dade estrangeira, estranha aos interesses nacionais, desagregadores, difusores de ódios
milenares e perturbadores da paz. A violação da soberania argentina no Caso Eich-
mann é outro elemento importante presente no trecho. Ele evidencia o peso que essa
questão tinha adquirido nos meios oficiais. “É preciso que as autoridades brasileiras
estejam alertas para que tal coisa não se verifique no país”, ele disse. Para Silva, a
violação da soberania argentina para capturar Eichmann não passava de um “falso
pretexto”. Em face disso tudo, ele propôs duas medidas aos seus superiores: em pri-
meiro lugar – e mais uma vez – que se abrisse uma sindicância para apuração dos “ob-
jetivos da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro”. Em segundo lugar,
que se desse andamento ao processo de naturalização de Cukurs, haja visto que estaria
“comprovado ser ele elemento perfeitamente integrado ao meio nacional, quer pela
sua conduta, quer pelos anos de residência no país, quer pelos laços de família”.72

Enquanto a maquinaria burocrática do Estado dava sequência ao processo, o nome


de Cukurs continuava em alta na esfera pública. No Senado Federal, Jair Martins con-
seguiu a aprovação, por unanimidade e “em nome do povo carioca”, de um requeri-
mento que solicitava ao Ministro da Justiça que não concedesse a naturalização brasi-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
71
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.330.
72
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.330-331.

262
CAPÍTULO 4
!

leira para Cukurs.73 Na imprensa, as autoridades brasileiras continuavam sob fogo


cerrado. Edmar Morel, atuante desde o início do caso, em 1950, continuava firme em
suas convicções. Sua opinião no assunto não mudara em nada: “o governo brasileiro
protege o monstro”. O jornalista escreveu que nenhuma atitude tinha sido tomada por
parte do governo brasileiro. Ele explica que Cukurs, pelo contrário, desde que chegara
ao Brasil, montou um negócio na Lagoa Rodrigo de Freitas, obteve autorização do
Ministério da Aeronáutica para sobrevoar o Rio de Janeiro e ganhou ostensiva prote-
ção policial em São Paulo, mantendo-se naqueles últimos anos “sempre próspero,
com a conivência das autoridades brasileiras”. Ainda segundo Morel, o “monstro”
gozava de “escandalosa” proteção das autoridades brasileiras. “Com as costas quen-
tes, passou a ser comensal do rebotalho do integralismo, seus comparsas de luta antis-
semita”.74

Cukurs, por sua vez, continuava se defendendo. E fazia isso de forma bem mais in-
cisiva do que há dez anos. Talvez porque os anos passavam e não surgiam evidências
capazes de convencer o Ministério da Justiça e nem o atingissem de forma incontestá-
vel. Para assegurar o seu direito à nacionalidade brasileira, contratou os serviços do
advogado Lavi Ibsen de Moura. A atuação de Moura no caso seria bastante ativa no
caso naqueles anos. Moura deu entrevistas, redigiu longas cartas de direito de resposta
e desmentiu diversas informações veiculadas na imprensa. No início de julho de 1960,
por exemplo, a Folha de S. Paulo, seguida de outros jornais, noticiou que Cukurs es-
tava foragido de sua casa em Santos. Moura imediatamente pediu um direito de repos-
ta. Em carta enviada ao jornal, informou que a notícia era falsa. Seu cliente apenas
tinha ido ao Rio de Janeiro resolver questões relacionadas ao seu processo de natura-
lização. De acordo com Moura, quem tinha fugido, na verdade, era Marcos Constanti-
no, da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, que não comparecera à
mesa-redonda programada pela TV Tupi para discutir o Caso Cukurs. “Diante de tais
fatos indiscutíveis e incontroversos, qual de nós fala sofisma? Qual de nós faz pilhe-
ria? Qual de nós incide no triste terreno do ridículo? A opinião pública, inteligente-
mente, saberá responder acertadamente, não tenhamos dúvidas”. Moura, no final desta
carta afirmou ainda, capciosamente, que tinha certeza de que “dentro das normas rígi-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
Diário do Paraná, “Legislativo do Estado”, 23/06/1960, p.7.
74
O Semanário, “Carrasco de Hitler que matou 300.000 judeus, quer ser...”, 02-08/07/1960. p.12.

263
CAPÍTULO 4
!

das do Direito e à mercê de Deus não se repetirá no Brasil o tremendo ocorrido no


caso Dreyfus.”75

Mesmo tendo a combatividade de Moura a seu lado, Cukurs não deixou de atender
diretamente a imprensa. E isso ocasionava alguns deslizes de sua parte. Em uma de
suas declarações, publicada pelo O Mundo Ilustrado, Cukurs declarou que os judeus
foram “responsáveis pelo massacre de 34.200 letões de todas as classes” durante a
ocupação soviética da Letônia. Em seguida, acaba deixando escapar sua participação
na repressão contra os judeus: “Quando os alemães chegaram, os responsáveis pelos
massacres foram julgados e condenados. Dessa condenação, eu me sinto corresponsá-
vel.” 76 Esta declaração é, no mínimo, reveladora. Cukurs não a faz oficialmente, pe-
rante uma autoridade legal. Mas, pela primeira vez, em entrevista à imprensa, ele re-
conhece ser responsável, ainda que em parte, pela repressão nazista aos judeus que se
encontravam na Letônia. Essa sua fala revela uma espécie de confissão.

Imagem&55.&Notícia!sobre!a!ida!de!Cukurs!em!programa!de!TV.!Fonte:!Diário!da!Noite,!08/09/1960,!p.14.&

A defesa de Cukurs procurava quase sempre se valer do apelo que o anticomunis-


mo tinha naqueles tempos de Guerra Fria. O letão sempre tentou deixar muito claro,
fosse em entrevistas à imprensa ou em seus depoimentos à polícia, que só tinha cola-
borado com a ocupação alemã porque desejava impedir o retorno do Exército Verme-
lho a Letônia. Ele claramente apostava que, mobilizando sentimentos anticomunistas
em vigor na época, justificaria suas ações – talvez fossem até mesmo perdoadas. Sua
estratégia fazia sentido. Embora a “ameaça comunista” no Brasil alcance seu ápice
somente a partir da chegada de João Goulart ao poder, o imaginário anticomunista já
se encontrava bastante maduro no final da gestão de Juscelino Kubitschek. Segundo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
75
Folha de S.Paulo, “Advogado de Cukurs contesta acusações a seu constituinte”, 15/09/1960, p. 4.
76
O Mundo Ilustrado, “A Morte Ronda Cukurs”, 23/07/1960, p.13.

264
CAPÍTULO 4
!

Carla Simone Rodeghero, “o fenômeno do anticomunismo diz respeito a uma postura


de oposição sistemática ao comunismo ou àquilo que é a ele identificado, uma oposi-
ção que se adapta a diferentes realidades e se manifesta por meio de representações e
práticas diversas”.77 Ser anticomunista no Brasil dos anos 1960 era estar do lado “cer-
to” da sociedade, do lado dos valores cristãos, da família, da ordem, das leis e da pá-
tria. Como condenar um estrangeiro que havia lutado tanto contra os comunistas?
Como condenar um estrangeiro que procurara o Brasil fugindo dos horrores impetra-
do pelo regime soviético a pequenos países como a Letônia? Cukurs soube jogar mui-
to bem com essa dimensão vitimizadora. Esse discurso, mais intencional ou menos,
visava sensibilizar a imprensa, a opinião pública e, sobretudo, os setores mais conser-
vadores do governo brasileiro, muitos dos quais, como vimos, eram antigos integralis-
tas e católicos fervorosos. Além disso, o discurso anticomunista, claro, ia ao encontro
da perspectiva daqueles que faziam parte do aparato policial do Estado.

Mas voltemos ao posicionamento das autoridades brasileiras. No dia 21 de julho de


1960, foi a vez de José Vieira Coelho emitir o seu parecer sobre a naturalização de
Cukurs. O então Chefe de Gabinete do Ministério da Justiça propôs uma decisão bas-
tante diferente daquela sugerida por Adhemar Silva, chefe do Setor de Nacionalida-
des, mas idêntica à que o próprio Coelho dera anos antes, quando era diretor geral do
DIJ. Coelho pontuou que o arquivamento do processo de expulsão de Cukurs, ocorri-
do no final de 1956, teve por fundamento a “falta de autenticidade das provas estran-
geiras”, fato que fez com que as acusações trazidas pela Federação das Sociedades
Israelitas do Rio de Janeiro permanecessem no “domínio da dúvida”. Essa mesma dú-
vida, na avaliação de Coelho, também seria motivo suficiente para que o governo bra-
sileiro não concedesse a naturalização a Cukurs:

A dúvida sobre o procedimento do estrangeiro, ao nosso ver, basta


para excluir a concessão da naturalização, máximo quando se trata de
dúvida sobre acusações gravíssimas, isto é, sobre acusações de cri-
mes que representam a ausência de quaisquer sentimentos de piedade
e humanidade e que só não foram aceitas como verdade pela inexis-
tência de um elemento formal. A naturalização de Herberts Cukurs se
nos afigura deveras inconveniente ante os protestos de inúmeros bra-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
RODEGHERO, Carla Simone. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos
e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, pp.463-488.

265
CAPÍTULO 4
!
sileiros, que têm o direito de fazê-lo, em face do disposto no art.17 da
Lei 818, de 18 de setembro de 1949.78

Coelho, desta forma, mantendo-se fiel à sua antiga avaliação do caso, continuava
contrário à naturalização. Seu parecer foi remetido cinco dias depois ao Ministro da
Justiça, Armando Falcão, que concordou com tal exposição dos fatos. Falcão, por sua
vez, escrevendo à consideração do Presidente da República, reforçou que o mérito
sobre as acusações levantadas contra Cukurs permaneciam ainda no “domínio da dú-
vida”. E a dúvida, disse Falcão, “basta, por si só, para negar-lhe a nacionalidade, má-
ximo quando, no caso em tela, a vida pregressa do naturalizando vem sendo suspeita-
da dos mais abomináveis crimes”. O Ministro da Justiça sugeriu a Kubitschek que ne-
gasse a naturalização de Cukurs, de sua esposa e filha, sem tirar, no entanto, o direito
à proteção que a constituição assegurava a qualquer estrangeiro residente no país.79

A determinação de Falcão provocou reações antagônicas. Aarão Steinbruch, em


nome da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e dizendo interpretar a
“unanimidade das comunidades israelitas, desde o norte ao extremo sul de nossa pá-
tria”, enviou um telegrama a Ministro da Justiça congratulando-o pela exposição de
motivos que este tinha sugerido ao Presidente da República visando o indeferimento
do pedido de naturalização de Cukurs.80 Já Ibsen de Moura, advogado de Cukurs,
também em telegrama a Armando Falcão, clamou pelo “elevado espírito de justiça” e
a “alta cultura jurídica do Ministro” para lhe permitir exibir “provas insuspeitas” da
inocência de seu cliente. De acordo com Moura, a indicação desta inocência teria sido
implicitamente reconhecida por Falcão quando este afirmou haver “falta de autentici-
dade” das provas contra Cukurs, “assecadas [sic] por pequeno grupo mal informado
enganando sua boa-fé”.81 Insistente, Moura enviaria ainda nas semanas seguintes vá-
rios outros telegramas na esperança de demover Armando Falcão de sua decisão. Em
certa ocasião, apelou para o seu “espírito cristão”, alertando de novo para que não se
repetisse em Brasília o Caso Dreyfus, “manchando nossa tradição democrática”.82

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.335.
79
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.337-338.
80
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.351.
81
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.352.
82
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.354.

266
CAPÍTULO 4
!

Os apelos do advogado de Cukurs, no entanto, de nada adiantaram. O Ministro da


Justiça permaneceu firme em sua posição e despachou, finalmente, o ofício à Presi-
dência da República. Na primeira semana de outubro de 1960, Juscelino Kubistchek,
exercendo o direito que lhe determinava a lei, aceitou a exposição de seu Ministro e
indeferiu o pedido de Cukurs, de sua esposa e de sua filha. Pela terceira vez, em ad-
ministrações diferentes, o mesmo processo de naturalização era rejeitado.

O indeferimento de Kubistchek suscitou alguns protestos antissemitas. Em dez de


outubro de 1960, dias depois da decisão presidencial, muros no bairro de Santa Cecí-
lia, em São Paulo, amanheceram pichadas com suásticas e slogans de Viva Hitler! e
Viva Eichmann! Segundo a apuração do Última Hora, o ato tinha a ver com a decisão
do governo em não conceder a naturalização a Cukurs.83 O delegado adjunto do DE-
OPS-SP, Alcides Cintra Bueno Filho, ciente das animosidades que ocorriam na cida-
de, decidiu manter o policiamento na residência de Cukurs, pelo menos, segundo dis-
se, até que os ânimos se acalmassem. Filho também elogiou o comportamento da co-
munidade judaica paulista, que durante os trabalhos realizados por sua delegacia tinha
mantido uma “atitude serena, digna dos maiores encômios, diante da decisão a ser
tomada pelo governo brasileiro”.84 Cukurs, contudo, mesmo contando com proteção
policial, continuava se sentindo inseguro, temendo ser ainda um potencial alvo de al-
guma investida no “estilo Eichmann”. Sinal disso foi que em novembro daquele
mesmo ano, o letão buscou o DEOPS-SP para requerer porte de arma de defesa.85

4.5. Exposição internacional

No final de 1960, o Caso Cukurs conheceu sua internacionalização. Sua exposição


fora do Brasil era maior agora, nesta fase, do que fora na fase anterior, no início dos
anos 1950. O cenário internacional, como vimos, era outro. A consciência histórica do
Holocausto encontrava-se mais fortalecida. O tema dos crimes nazistas tinha adquiri-
do mais consistência e encontrado seu lugar na esfera pública. Um exemplo dessa in-
ternacionalização é a reportagem Criminosos de Guerra Nazistas nas América do Sul,
do jornalista norte-americano Jack Anderson, publicada na edição de 13 de novembro
de 1960 da revista norte-americana Parade. Com uma foto de Cukurs ocupando me-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83
Última Hora, “Nazistas desencadeiam terro em São Paulo: vivas a Hitler”, 10/10/1960, p.2.
84
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.6.
85
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.55.

267
CAPÍTULO 4
!

tade da primeira página, o texto narra a saga de Anderson em busca do paradeiro de


antigos nazistas que, assim como Adolf Eichmann, também haviam escapado da justi-
ça e imigrado para países sul-americanos.86 O texto da reportagem é já um reflexo da
vasta literatura sobre criminosos nazistas que corria o mundo naquele momento. Re-
pleto de literatices e clichês jornalísticos, Anderson convidava o leitor a conhecer os
meandros de “um dos mais secretos e sinistros círculos do mundo: a sociedade dos
assassinos em massa”. Essa sociedade, que o jornalista afirmava ter conseguido pene-
trar, seria formada por homens que posam de “cidadãos comuns”, mas que “por den-
tro permanecem monstros”. Esses “artistas da atrocidade, do massacre e do genocí-
dio” estariam em contato uns com os outros, formando uma rede que se espalha por
toda a América do Sul, “alcançando os mais remotos pampas e selvas” do continen-
te.87 O que o Anderson oferece, no entanto, é muito pouco concreto. O jornalista narra
a história de Eichmann na Argentina, cita algumas possíveis trajetórias de Josef Men-
gele no continente e reúne um punhado de pistas pouco críveis sobre outros antigos
homens de Hitler que viveriam escondidos no Uruguai, como Heinrich Mueller e Eu-
gene Dollman. “O sequestro de Eichmann assustou esses nazistas e fez com que fos-
sem ainda mais longe na clandestinidade”, justifica. O “último” desses homens seria
Herberts Cukurs.88 O encontro entre os dois teria ocorrido em maio de 1960, graças a
um dito ex-membro da SS que trabalhava no aeroporto de São Paulo, supostamente
ajudando nazistas em fuga a conseguirem identidades falsas no país. Essa fonte, “Má-
rio”, levou Anderson até o local de trabalho de Cukurs, na Riviera paulista.89

O jornalista descreve Cukurs como “um homem robusto e musculoso”, que ainda
trajava sua jaqueta de couro e portava sua pistola. Anderson sugere que esses dois
acessórios eram os mesmos que Cukurs usava durante a ocupação nazista da Letônia.
Na conversa que teriam tido, à beira da represa de Guarapiranga, Cukurs teria alegado
inocência, além de lhe apresentar documentos e desmentir sua alegada participação na
Pērkonkrusts. “Eu estava muito ocupado para política e matança de judeus (...) Não
tenho sangue de judeus em minhas mãos”, teria dito.90 Anderson, porém, admite não
acreditar em nada disso. Para ele, Cukurs, assim como muitos outros nazistas, era um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
87
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
88
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
89
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.
90
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960.

268
CAPÍTULO 4
!

homem muito assustado e ardiloso. O jornalista lista uma série de suspeitas que teria
levantado sobre Cukurs. Seus hidroaviões, por exemplo, não levavam apenas turistas
para passeios, mas também transportavam nazistas em fuga para o interior, onde Cu-
kurs tinha duas pequenas fazendas. O jornalista também sugeriu que o filho mais novo
de Cukurs, Richard, nascido em 1955, não era seu filho biológico:

Ele e sua esposa, ambos na casa dos sessenta anos, tiveram um filho brasilei-
ro após os seus outros filhos (dois homens e uma mulher) já estarem cresci-
dos. A suspeita é que Cukurs possa ter tirado esse menino de moradores de
ruas e proclamado que era seu próprio filho. Os brasileiros são muito senti-
mentais e provavelmente se tornariam menos inclinados a extraditar Cukurs
se ele declarasse ter um filho nascido no Brasil.91

O sensacionalismo de Anderson talvez não tivesse tanta relevância e repercussão


caso viesse de um jornalista desconhecido ou fosse publicado em um veículo de pe-
queno porte. No entanto, isso era tudo o que Jack Anderson e a revista Parade não
eram. Nascido em 1922, Jack Northman Anderson foi um dos colunistas mais temidos
e respeitados dos Estados Unidos no século XX. Considerado por Patrícia Sulivan
como o fundador do jornalismo investigativo moderno, Anderson manifestou ao lon-
go da carreira um especial apreço por estórias de conspirações governamentais. 92 Es-
creveu sobre uma suposta ligação de J. Edgar Hoover com a máfia e sobre os supostos
planos da CIA para assassinar Fidel Castro. Cobriu o Caso Watergate e “investigou” o
submundo da política americana no caso do assassinato de John Kennedy. Todas es-
sas pautas lhe renderam inúmeros prêmios, entre os quais um Pulitzer, em 1972.93 Foi
ainda durante nove anos comentarista do popular programa Good Morning America!,
da rede ABC, e estampou a capa da revista Time em abril de 1972.94 Trabalhou até
julho de 2004, quando precisou se afastar do jornalismo devido a problemas de saú-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
Parade, “Nazi War Criminals in South America”, 13/11/1960. [Original: “He and his wife, both in
their sixties, suddenly produces a Brazilian born child after their other children (two sons and a daugh-
ter) were grown. The suspicion is that Cukurs may have picked up the boy from among Brazil’s home-
less waifs and claimed him as his own. The Brazilians are very sentimental and would be less likely to
extradite Cukurs if he could claim a son born in the country.”] Vale lembrar que Cukurs tinha 55 anos e
sua esposa tinha 46 anos em 1955 quando o casal teve o filho mais novo, Richard Cukurs.
92
The Washington Post, “Investigative Columnist Jack Anderson Dies”, 18/12/2005. Disponível em:
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2005/12/17/AR2005121701112.html. Acesso
em: 12/02/2011.
93
Ibidem.
94
Disponível em: <http://www.time.com/time/covers/0,16641,19720403,00.html> Acesso em:
12/02/2011.

269
CAPÍTULO 4
!

de.95 Já a revista Parade era o que se pode chamar de um veículo provedor de infor-
mações. Existente até hoje, a Parade já naquela época possuía um acordo de forneci-
mento de matérias e colunas a dezenas de jornais americanos, especialmente aos do-
mingos. Textos como Criminosos Nazistas na América do Sul eram reproduzidos por
diferentes veículos de todos os Estados Unidos, de costa a costa, acumulando um pú-
blico leitor na casa de dezenas de milhões de pessoas. Alguns jornais da Europa e do
Canadá chegavam a comprar os direitos de reprodução dos textos da revista.

4.6. Autoridades judaicas e a possibilidade de extradição para a Alemanha

No decorrer da década de 1950, Israel esteve bastante focado em questões ligadas à


segurança nacional, sobrando muito pouco tempo para ir em busca de criminosos na-
zistas. Quando a captura de Eichmann foi anunciado pelo Knesset, o parlamento da-
quele país, muitos acreditaram que a atitude do governo israelense iria mudar, que
Israel passaria sistematicamente a acertar contas com os perpetradores do nazismo,
fazendo o que fosse possível para buscá-los nos mais difíceis recônditos do planeta.
Não foi exatamente o que se viu. Caçar criminosos de guerra não se tornou uma prio-
ridade daquele Estado. Por outro lado, havia um maior interesse no assunto, tanto por
parte da opinião pública quanto por parte do governo. Cukurs entra nessa conta. Ele
não tinha a mesma importância de Eichmann, mas a internacionalização de seu nome,
em 1960, fez com que autoridades israelenses passassem a se preocupar com o seu
caso. Foi um envolvimento discreto, mas que produziria consequências de relevo.

Em 10 junho de 1960, em meio à repercussão das declarações de Cukurs ao DE-


OPS-SP, Alexander Dothan, primeiro-secretário da Embaixada de Israel no Brasil,
enviou um comunicado reservado para Pinchas Sapir, então Ministro do Comércio e
Indústria daquele país, e para Yaakov Lanir, Ministro do Escritório de Segurança.
Nesse comunicado, Sapir explicou que há dez anos vários grupos judaicos vinham
pressionando o governo brasileiro contra a naturalização de Cukurs. Agora, após a
descoberta de Eichmann e do possível deferimento de seu pedido de nacionalidade, o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
Em 2005, um ano depois da morte de Jack Anderson, o FBI passou a investigar o arquivo deixado
pelo jornalista, justificando que alguns documentos poderiam ferir os interesses dos Estados Unidos.
Na ocasião, William Carter, porta-voz do FBI, disse que os agentes estavam procurando arquivos rela-
cionados ao caso "AIPAC" (American Israel Public Affairs Committee), sobre lobby israelense na polí-
tica americana. Informações sobre a investigação em:
http://www.democracynow.org/2006/4/26/fbi_seeks_to_seize_control_of. Acesso em: 12/02/2011.

270
CAPÍTULO 4
!

tema tinha voltado às páginas dos jornais e novas manifestações contra aquela situa-
ção tomavam corpo no Brasil. Dothan mencionou que Cukurs tinha medo de ser se-
questrado e que o governo brasileiro, neste sentido, tinha lhe ofertado proteção.96 Da
documentação analisada nesta pesquisa, esta é a primeira vez que o governo israelen-
se menciona o nome de Herberts Cukurs.

Pinchas Lapid, historiador e diplomata, então alocado no Departamento de Comu-


nicação do Ministério do Exterior de Israel, foi outro membro do governo israelense a
se manifestar sobre Cukurs. No dia 11 de junho de 1960, Lapid enviou um comunica-
do ao Instituto Yad Vashem, em Jerusalém, dizendo que Cukurs estava no Brasil. La-
pid pediu a colaboração do principal centro de estudos sobre o Holocausto de Israel:
todo detalhe que o Yad Vashem pudesse acrescentar sobre Bormann e Cukurs deveria
ser enviado à Embaixada de Israel no Brasil. “O mais rápido possível”, frisou.97

Nos dois meses seguintes, o Ministério do Exterior de Israel, Lapid e o Instituto


Yad Vashem trocaram vários documentos sobre Cukurs, incluindo os depoimentos de
Shapiro, Fiszkin, Gertsein, Tukacier e Schub.98 No início de julho, o parlamentar isra-
elense Mordechai Nurok, antigo deputado na Letônia e delegado no Congresso Judai-
co Mundial se juntou a esses grupos na campanha contra Cukurs. Nurok, que conhe-
cia bem o Brasil, já tendo uma passagem pelo país alguns anos antes, declarou que
Bruno Kalniņš, Mitold Čakste e Andris Ogriņš, todos antigos políticos de influência
na Letônia independente, tinham lhe confidenciado, em agosto de 1959, em Estocol-
mo, que estavam presentes em Riga nos dias da ocupação nazista e que Herberts Cu-
kurs tinha participado com intensa crueldade do extermínio dos judeus, entre homens,
mulheres e crianças. “Estes senhores (pode-se chegar até eles através do senhor Kal-
niņš) estão dispostos a testemunhar frente a uma instituição autorizada”, afirmou Nu-
rok em carta oficial remetida a Embaixada Israelense no Brasil. 99

A movimentação em Israel logo acabou mobilizando autoridades judaicas que ti-


nham sido importantes na primeira fase do Caso Cukurs, como o Congresso Judaico
Mundial. Brassloff, do escritório Londrino desta entidade, tomou mais uma vez parte
no caso e recorreu à ajuda de Simon Wiesenthal. Seu intuito era conseguir mais evi-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG:O.4/FN:467. fl.60.
97
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG:O.4/FN:467. fls.56.
98
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG:O.4/FN:467. fls.50-57.
99
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:154. fl.57.

271
CAPÍTULO 4
!

dências contra Cukurs. A resposta de Wiesenthal teve um tom de surpresa: “acabei de


ficar sabendo da solicitação do material para envio e tenho que rir.” Wiesenthal expli-
cou que há muito tempo ele tinha compilado um material incriminatório sobre Cukurs
e enviado ao Rio de Janeiro. Agora, 20 anos depois, vinham novamente a ele pedir a
mesma coisa. A consternação era compreensível. Sem saber o desfecho do Caso Cu-
kurs, Wiesenthal tinha a sensação de que o material que ele organizara e enviara ao
Brasil não tinha servido para nada.100 De qualquer forma, Wiesenthal explicou a Bras-
sloff que seu arquivo tinha sido remetido ao Yad Vashem em 1955. O austríaco ter-
minou sua carta com uma advertência a seu colega: Cukurs não deveria ser tratado
como um caso isolado, mas sim como parte de um amplo conjunto de algozes que
participaram do extermínio em massa dos judeus na Letônia.101

Vojtech Winterstein, ainda na função de representante do Congresso Judaico Mun-


dial no Rio de Janeiro, foi de novo o encarregado de fazer a ligação entre Europa e
Brasil. Foi ele, por exemplo, quem repassou informações e materiais de pesquisa do
Yad Vashem para a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro102. Foi
Winterstein também quem compilou uma nova lista de nomes que poderiam testemu-
nhar contra Cukurs, além de novos testemunhos que tinham surgido em diversos pon-
tos do planeta, principalmente na imprensa, graças à fama internacional que o caso
alcançara.103 É o caso de Moshe Beillinson, sobrevivente do Gueto de Riga, residente
naquela época em Montreal, no Canadá. Beillinson enviou uma carta para O Jornal
narrando a participação de Cukurs no extermínio dos judeus letões. “O sangue judeu
inocentemente derramado, clama pela punição deste desalmado criminoso de guerra,
o chamado Eichmann Letão, o capitão da SS, Herberts Cukurs”. Segundo Beillinson,
os judeus da Letônia fariam o impossível para que Cukurs fosse levado à justiça.104

O que era possível fazer para levar Cukurs à justiça era uma questão bastante im-
portante e Winterstein não se furtou a pensá-la. Em carta endereçada a um membro da
coletividade judaica de São Paulo que havia indagado sobre providências que estavam
sendo tomadas contra Cukurs, o representante do Congresso Judaico Mundial no Bra-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
100
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fl.48.
101
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fl.48.
102
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.26/56.
103
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:154. fl.6-7/74-81
104
O Jornal, “Sobrevivente do massacre de Riga narra as atrocidades...”, 12/08/1960, p.6.

272
CAPÍTULO 4
!

sil disse que restava muito pouco a fazer pela expulsão, uma vez que Cukurs tinha um
filho brasileiro. Porém, em relação à extradição, Winterstein disse que ainda estava
tentando uma possibilidade, embora difícil: obter o pedido de extradição de Cukurs
por parte da Alemanha Federal. 105

Winterstein foi se tornando cada vez mais convicto desta estratégia. No dia quatro
de novembro de 1960, menos de um mês após Juscelino Kubitschek indeferir o pedi-
do de naturalização de Cukurs, ele enviou uma carta a Nehemiah Robinson, judeu li-
tuano que dirigia o escritório do Congresso Judaico Mundial em Nova York. Nela,
Winterstein comentou que a decisão do Presidente brasileiro em prejuízo da naturali-
zação de Cukurs poderia ser apenas parte da resolução do caso. Na sua avaliação, ne-
gar a cidadania de Cukurs apenas significava que ele não era digno da mesma, mas
em nada reparava os crimes que ele teria cometido. Winterstein manifestou, então, sua
vontade de ir além: “não podemos e nem devemos nos dar por satisfeitos. (...) É ne-
cessário fazer algo que não apenas atrapalhe em seu processo de naturalização”. Ele
explicou pacientemente as possibilidades do caso: expulsão do Brasil, denunciá-lo a
um tribunal brasileiro ou a outros tribunais.106 A primeira possibilidade, comentou,
não seria possível porque agora Cukurs tinha um filho brasileiro. A segunda, por sua
vez, seria igualmente inviável, haja vista que nenhum crime foi cometido em território
brasileiro e nem havia Cukurs nascido naquele país. A única saída possível seria a sua
extradição. E mesmo assim, somente um país poderia fazê-lo do ponto de vista jurídi-
co: a Alemanha. De acordo com Winterstein, a extradição pela justiça alemã não era
“totalmente fora de mão”. Cukurs, afinal de contas, tinha cometido crimes de guerra
em um momento em que a Letônia era controlada pela Alemanha. Winterstein revelou
que estava tentando acionar as autoridades alemães para o caso. Os primeiros conta-
tos, inclusive, já teriam sido travados. Em agosto de 1960, Winterstein tinha pedido a
Brassloff que se dirigisse à promotoria alemã. No dia 14 de dezembro, em resposta, o
Procurador Geral Executivo da Alemanha enviou uma carta para Brassloff que dizia:

A respeito de sua valiosa carta de 26/08 deste ano comento o seguin-


te: já em 1949, o juiz de inquérito do Tribunal Regional de Hambur-
go conduziu um pré-inquérito contra 24 acusados de fuzilamento em
massa dos cidadãos judeus de Riga. O processo terminou com a con-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
105
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:153. fls.31-32.
106
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.37-38.

273
CAPÍTULO 4
!
denação de dois acusados – SECK e MIGGE – à prisão perpétua. A
grande parte dos acusados não pôde mais ser investigada. Entre ou-
tros, encontrava-se também CUKURS e ARĀJS. De CUKURS, sa-
bia-se somente que este encontrava-se na América do Sul. Posto que
uma extradição, àquela altura, não era mais possível, o juiz de inqué-
rito não reuniu mais provas. Posto que agora o paradeiro de CU-
KURS é conhecido, solicitei a reabertura do inquérito no Tribunal
Regional de Hamburgo. Dado que, pelas razões acima, as provas dis-
poníveis não são suficientes, ficaria muito grato caso o senhor pudes-
se apontar ao juiz de inquérito as testemunhas de acusação. Só então
poderá o mesmo expedir um eventual pedido de extradição.107

O promotor alemão citado nesta correspondência se referia ao chamado “Caso do


Gueto de Riga”, cujas evidências começaram a ser reunidas ainda em 1948, sob os
auspícios das forças britânicas de ocupação. Nesta época, Joseph Berman, diretor do
Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos, esforçou-se para
reunir evidências contra indivíduos que tinham participado de crimes de guerra no
Gueto de Riga – num período ainda muito conturbado de reconstrução que foram os
primeiros anos de pós-guerra. Em novembro de 1948, Berman tornou pública uma
lista de 79 réus. Cukurs estava nesta lista, bem como outros colaboracionistas famo-
sos, como Viktor Arājs. Em 1951, o Tribunal de Hamburgo deu início aos trabalhos.
No entanto, Berman esbarrou em uma série de problemas. Em primeiro lugar, muitos
dos indivíduos em sua lista se encontravam foragidos ou simplesmente desaparece-
ram. Além disso, vários depoimentos levantados pelo referido comitê não puderam
ser utilizados pela promotoria porque eles não atendiam aos critérios formais exigidos
pelas cortes alemãs – o governo brasileiro, portanto, não tinha sido o único a não re-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals: RG-O.4/FN:467. fls.37-38.
[Original: Auf Ihr wertes Schreiben von 26.8.ds.Jrs. teile ich Ihnen folgendes mit: Bereits im Jahre
1949 führte der Untersuchungsrichter bei dem Landgericht Hamburg eine Voruntersuchung gegen
vierundvierzig Angeschuldigte wegen der Massenerschiessung jüdischer Bürger in Riga. Das Verfah-
ren endete mit der Verurteilung von zwei Angeklagten / SECK und MIGGE / zu lebenslangen Zucht-
haus. Der größte Teil der Angeschuldigten kennte damals nicht ermittelt werden. Unter diesen befan-
den sich auch Cukurs und Arajs. Ven Cukurs war damals lediglich bekannt, dass er sich in Südamerika
aufhielt. Da eine Auslieferung zu dem damaligen Zeitpunkt nicht uoeglicht (sic) war, hat der Untersu-
chungsrichter weiteres Beweismaterial nicht gesammelt. Nachdem nunmehr der Aufenthalt Cukurs
bekannt ist, habe ich am 17.8.1960 bei dem Landgericht Hamburg die Wiedereröffnung der Versunter-
suchung beantragt. Da aus den eben genannten Gründen jedoch ein ausreichendes Beweismaterial noch
nicht vorhanden ist, wäre ich Ihnen sehr dankbar, wenn Sie dem Untersuchungsrichter über die Frags
einer eventuellen Auslieferung entscheiden.]

274
CAPÍTULO 4
!

conhecer os mesmos.108 No fim, os resultados alcançados pelo Tribunal de Hamburgo


foram pífios. Apenas cinco pessoas foram julgadas em Hamburgo.109

Imagem&56.!Lista!de!criminoso!de!guerra!que!atuaram!no!Gueto!de!Riga!elaborada!por!Berman:!Cukurs!está!
nela.!Fonte:!Wiener!Library!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
108
Cf. Wiener Library: Document Collections – Committee for the Investigations of Nazi Crimes in
Baltic Countries: Paper, 1948-1971. Disponível em: <www.wienerlibrary.co.uk>. Acesso em:
04/06/2015.
109
Justiz und NS-Verbrechen. Disponível em:
<http://www1.jur.uva.nl/junsv/JuNSVEng/GDRddv05.htm>. Acesso em: 04/06/2015.

275
CAPÍTULO 4
!

O “Caso do Gueto de Riga” foi apenas um dos vários julgamentos referentes aos
crimes de guerra cometidos na Letônia no imediato pós-guerra. Neste período, ocorre-
ram outros quatro na Alemanha Ocidental (todos no Tribunal de Hamburgo) e um na
Alemanha Oriental (no Tribunal de Potsdam). Nestes cinco julgamentos, apenas sete
pessoas foram julgadas, das quais quatro foram condenadas a penas que variavam de
três anos e meio à prisão perpétua. 110 A morosidade nos julgamentos e os severos cri-
térios estatutários adotados pelas cortes alemãs naquele início dos anos 1950 permiti-
ram que vários suspeitos fossem libertados, entre eles Viktor Arājs, somente indicia-
do, capturado (novamente) e condenado no final dos anos 1970. Quando Wiesenthal
alertou Winterstein para que Cukurs não fosse tomado individualmente, ele muito
provavelmente se referia aos esforços de Berman e a outros que, anos antes, tinham se
empenhado para levar diversos colaboracionistas à justiça e fracassaram.111

Winterstein e Brassloff tinham agora essa perspectiva histórica em vista e queriam


fazer de tudo para aproveitar o momento, que era muito mais receptivo ao julgamento
de criminosos de guerra nazistas que aqueles primeiros anos do pós-guerra. Desde a
captura de Eichmann, em 1960, a justiça da Alemanha Federal tinha se tornado bem
mais sensível ao tema. Assim, acreditaram que era realmente o momento para abordar
os alemães sobre o Caso Cukurs.

4.7. Apelo e decisão final

No início de 1961, Cukurs desapareceu novamente da mídia. Apenas alguns pou-


cos veículos judaicos ainda falavam sobre o caso, como o Aonde Vamos? e o Nossa
Voz. No meio burocrático, diferentemente, a batalha jurídica continuou. No dia três de
março daquele ano, o advogado de Cukurs tentou fomentar uma animosidade entre o
Ministro da Justiça, Armando Falcão, e algumas instituições judaicas. Em um tele-
grama enviado a Falcão, Lavi Ibsen de Moura pediu ao ministro que repelisse as “in-
sinuações desprimorosas” feitas pela imprensa judaica do Rio de Janeiro, que se refe-
riam ao Ministério da Justiça e ao próprio Falcão como desfavoráveis em relação aos
judeus no Brasil. Moura falou em “flagrante desrespeito” e “ódio contrário à forma-
ção cristã do Brasil” para se referir aos protestos de jornalistas judeus contra a decisão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
Justiz und NS-Verbrechen. Disponível em:
<http://www1.jur.uva.nl/junsv/JuNSVEng/GDRddv05.htm>. Acesso em: 04/06/2015.
111
Cf. ANGRICK, Andrej; KLEIN, Peter; BRANDON, Ray. The ‘Final Solution' in Riga: Exploitation
and Annihilation, 1941-1944. Nova York: Berghahn Books, 2012.

276
CAPÍTULO 4
!

do governo de não expulsar Cukurs do país.112 O pedido de Moura, não obstante, não
resultou em nada, sendo ignorado pelo chefe da pasta ministerial.

Ironicamente, dois meses depois, as críticas da imprensa judaica pareciam ter sido
escutadas pelo Presidente da República. Em 18 de maio de 1961, o recém-empossado
Jânio Quadros encaminhou um pedido urgente ao Ministério da Justiça para que este
reexaminasse o processo 27.996/1950.113 Não fica claro o porquê de Quadros tomar
essa atitude, mas é provável que a medida tenha surgido pela articulação de forças
entre a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro e o Congresso Judaico
Mundial, especialmente através de Winterstein, que apenas alguns meses antes havia
revelado, conforme vimos, a intenção de se conseguir “algo mais” do que o indeferi-
mento da naturalização de Cukurs. Seja como for, o caso estava reaberto e isso mos-
trava mais uma vez como os debates políticos tinham força o bastante para interferir
em seus trâmites. E novamente também, essa força ia contra Cukurs. Chegou-se ao
ponto de se rever a possibilidade de expulsão de Cukurs quando a própria expulsão
tinha deixado de ser juridicamente viável, já que este era pai de filho brasileiro.

No dia 24 de maio de 1961, uma oficial permanente do Ministério da Justiça, Ma-


ria de Lourdes Rocha, atendendo ao pedido urgente de Quadros, elaborou um longo
parecer sobre o caso. Rocha fez um resumo de todas as idas e vindas do mesmo na-
queles 11 anos. Com base neste histórico, Rocha deu, então, o seguinte parecer:

Conforme se verifica do processo, nada se provou contra a pessoa de


Herberts Cukurs no exterior. Não nos chegou nenhum pedido de ex-
tradição por parte de qualquer tribunal estrangeiro, notadamente dos
lugares onde os crimes teriam sido praticados. Nosso país honra-se
por sua hospitalidade e justiça. Não há no Brasil perseguição por pre-
conceito de raça ou religião. O brasileiro, por sua formação cristã, é
humano. A impermeabilidade do povo judeu à assimilação dos cos-
tumes e das raças em todos os países do mundo tira-lhe muito das ra-
zões que invoca contra sua perseguição. Sabemos que um erro não
justifica outro. É essa a razão do clamor do povo brasileiro contra o
horror dos crimes que os judeus desta capital imputavam a Cukurs.
Foi o lado humano da questão que despertou a generosidade do povo
brasileiro. Por isso mesmo, não se justifica a exploração que a Fede-
ração das Sociedades Israelitas [do Rio de Janeiro] fez em torno do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.363.
113
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.370.

277
CAPÍTULO 4
!
nome de Cukurs, sabendo-se que não conseguiu provar suas acusa-
ções. A denúncia que fez a ele se aplica, mudando o nome, a qual-
quer funcionário da Gestapo que ouse alcançar para punir a persegui-
ção sofrida. Não encontramos razão nas acusações para um julga-
mento sério. O referido cidadão não ingressou no país com documen-
to da Organização Internacional de Refugiados, mas com passaporte
regular. Sua entrada no país foi legal e da Espanha não nos chegou
nada contra ele. Todavia, a naturalização é um ato de graça e só o
Presidente da República pode julgar da sua conveniência. Parecendo-
me, portanto, carecer de fundamento as razões apresentadas pela Fe-
deração das Sociedades Israelitas [do Rio de Janeiro], opino pelo ar-
quivamento do pedido de expulsão. Cukurs é inexpulsável por ter fi-
lho brasileiro menor. Parece-me também, deva ser advertida essa Fe-
deração contra o tumulto que vem causando ao processo e na impren-
sa do país.114

O discurso da funcionária do Ministério da Justiça era mais um que estava permea-


do pelos velhos estereótipos do antissemitismo moderno. Rocha compreendia o judeu
como inassimilável, explorador, agitador, subversivo e culpado pela própria persegui-
ção a que é submetido. Essas características, por sua vez, contrastavam com as quali-
dades observadas entre o “povo brasileiro”, cuja formação cristã emanava tudo o que
era bom e justo. Neste aspecto, tal parecer está em perfeita sintonia com aquele emiti-
do um ano antes por Adhemar da Silva, confirmando que muitas das ideias antissemi-
tas presente nos círculos oficiais e intelectuais brasileiros nas décadas de 1930 e 1940
tinham sobrevivido à guerra e continuavam vivas nos meios oficiais. A questão cen-
tral com a qual nos deparamos aqui, no entanto, continua sendo a mesma que vimos
em páginas anteriores: até que ponto esse tipo de perspectiva, manifestada por um
funcionário do Ministério da Justiça, seria decisiva para o desfecho do caso? A res-
posta, para todos os efeitos, continua a mesma: os estereótipos antissemitas não foram
determinantes. A situação de Cukurs no Brasil não tinha sofrido alterações significati-
vas desde os anos 1950. A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro não
tinha conseguido adicionar novos elementos ao caso. Os danos decorrentes da postura
antiproducente das autoridades inglesas e da incapacidade do Congresso Judaico
Mundial em dar liga jurídica formal às evidências contra Cukurs continuavam sendo
os fatores preponderantes. Também continuava não havendo qualquer pedido de ex-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
114
AN-RJ Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.372-376. Obs. Nota-se que Rocha
parece ter confundido França (Marselha) com a Espanha.

278
CAPÍTULO 4
!

tradição. Nenhum pais tinha se manifestado. A decisão, no fundo, era agora até mais
simples: Cukurs não poderia ser expulso porque era pai de filho brasileiro, mas ainda
assim, o caso se mantinha em discussão.

No dia 25 de maio de 1961, Miriam Aranha Figueira de Farias, chefe substituta da


Seção de Permanência e Expulsão de Estrangeiros, concordou com o parecer de Ro-
cha e encaminhou a questão novamente à consideração superior.115 O diretor do DIJ,
por sua vez, quatro dias depois, explicava que Cukurs não poderia ser expulso porque
tinha um filho brasileiro. Era um motivo, portanto técnico. Quanto a sua não-
naturalização, o motivo era político: “nem todo estrangeiro que reside no Brasil está
em condições de obter a naturalização, matéria de conveniência política”.116 No dia 20
de julho de 1961, Oscar Pedrosa Horta, Ministro da Justiça, determinou que, tendo em
vista que Cukurs era pai de filho brasileiro, o caso deveria ser arquivado.117 Deste des-
fecho, podemos inferir que a força política – como toda força política – tinha, natu-
ralmente, um limite. Ela tinha sido capaz de desarquivar o caso e reconsiderar a pos-
sibilidade de expulsão ou extradição de Cukurs, mesmo quando a primeira possibili-
dade já tinha sido juridicamente inviabilizada. Por outro lado, ela não conseguiu pas-
sar por cima das determinações da legislação brasileira ou da informalidade das evi-
dências apresentadas pela Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. No-
vamente, a vitória dos grupos de pressão era parcial. Mas, ainda assim, era uma vitó-
ria maior do que poderia ter sido caso se levasse em conta apenas a questão técnica.

O trabalho do Ministério da Justiça, contudo, ainda não estava plenamente conclu-


ído. Alguns dias antes da aprovação de Horta, o advogado de Cukurs, Ibsen de Moura,
enviou um apelo a Jânio Quadros afirmando que seu cliente não se conformava com o
indeferimento de sua naturalização. Cukurs, sublinhou o advogado, era vítima de ca-
lúnias e perseguições sistemáticas por parte da comunidade judaica. O próprio gover-
no brasileiro, ele explicava, tinha conduzido uma série de investigações e nada ficara
provado contra Cukurs. Pedia, assim, a reconsideração de seu pedido de naturaliza-
ção.118 A matéria foi examinada pela oficial administrativa Maria José de Wanderley.
Segundo suas palavras, os pedidos de naturalização de Herberts Cukurs, esposa e filha

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.376.
116
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.377.
117
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.378.
118
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.393.

279
CAPÍTULO 4
!

não tinham sido concedidos por pairarem suspeitas de que o requerente tinha sido
criminoso de guerra. Além disso, “pode, entretanto, o governo denegar a cidadania
brasileira, mesmo sem basear-se em provas concretas”. Fazendo menção ao que disse
o diretor geral do DIJ, Wanderley lembrou que a cidadania brasileira é “matéria de
conveniência política”. Sua avaliação, no entanto, trouxe uma proposição nova:

De justiça essa medida só poderia atingir a Herberts Cukurs. Quanto


à filha, casada com brasileiro nato, e à esposa, mãe de brasileiro, avó
de brasileiro, parece-me que poderão obter a nacionalidade brasileira.
Não podem responder pelos atos do pai ou do marido, tanto que pela
lei cada qual é responsável pelos atos próprios.119

A sugestão foi aprovada pela Seção de Nacionalidade e, em seguida, pelo DIJ.120


Em parecer jurídico de 10 de novembro de 1961, o Consultor Jurídico do Ministério
da Justiça, ainda Anor Butler Maciel, figura importante do governo desde o início do
Caso Cukurs, também concordou com a medida, isto é, que se concedesse a naturali-
zação apenas à Dolores Cukurs Rizzotto e à Milda Cukurs. Quanto a Herberts Cukurs,
Maciel escreveu que “bem estudado está o processo e a inconveniência de conceder-
lhe a naturalização subsiste, dadas as dúvidas sobre o seu passado”.121 Neste caso, fi-
cou patente, novamente, a atuação do elemento político no desfecho do caso, tanto
quanto aquele de ordem jurídica. Quando Maria José de Wanderley afirma que a na-
cionalidade brasileira, em última instância, é matéria de conveniência política, isso
significa dizer que o elemento técnico aqui, na verdade, é ele mesmo, inequivocamen-
te, político. O governo brasileiro poderia alegar não haver evidências concretas ou
definitivas contra Cukurs e conceder-lhe a nacionalidade brasileira. Mas sua escolha
não foi essa. Foi o contrário. O governo, assim, fez também uma escolha política. Im-
portante ressaltar que não se trata de uma mera questão de arbitrariedade. As leis exis-
tiam. Os trâmites burocráticos foram observados. As formalidades, objetivadas. Po-
rém, o elemento político também incidia na porosidade desse sistema.

Em 19 de novembro de 1961, Alfredo Nasser, Ministro da Justiça, aprovou o pare-


cer de Anor Butler Maciel. Em 28 de fevereiro de 1962, por sua vez, Nasser encami-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
119
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.395.
120
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fl.395.
121
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.396-397.

280
CAPÍTULO 4
!

nhou ao Presidente João Goulart, que o aprovou em março de 1962.122 Pela quarta e
última vez Cukurs teve seu pedido de naturalização indeferido. Novamente, voltava-
se a mesma situação do início dos anos 1950: o governo brasileiro não abriu o proces-
so de expulsão contra Cukurs, mas também não lhe concedeu a nacionalidade brasilei-
ra. Cukurs, assim, continuava desprotegido:, a extradição continuava sendo possível,
dependendo principalmente do pedido de um país com jurisdição para tal.

4.8. Interlúdio: as autoridades alemãs e a extradição

Entre março de 1962 e março de 1965, muito pouco se falou no Caso Cukurs. No
âmbito judicial, o processo 27.996/1950 encontrava-se arquivado. Nenhuma das par-
tes fez qualquer nova solicitação neste período, nem pela naturalização, nem pela ex-
pulsão. Tampouco chegou ao governo brasileiro qualquer pedido de extradição. No
âmbito policial, Cukurs fez apenas uma nova visita ao DEOPS-SP: em fevereiro de
1963, ele solicitou a renovação do seu porte de arma.123 Motivos para continuar se
sentindo ameaçado não lhe faltavam. Além de não conseguir a cidadania brasileira,
estando sujeito, assim, à extradição, Eichmann fora julgado e condenado à morte em
1961. Não houve qualquer tipo de clemência. No dia primeiro de junho de 1962, na
prisão de Ramala, perto de Tel Aviv, foi morto por enforcamento, sendo a única apli-
cação da pena de morte até hoje na história do país. Ademais, circulavam boatos de
que Cukurs seria o próximo alvo dos israelenses. Em fevereiro de 1962, o Diário da
Noite publicou uma reportagem intitulada “Recomeçou a caça ao nazista Cukurs”. De
acordo com o jornal, agentes internacionais já estariam no Brasil à procura de Cukurs
visando sua captura. Esses agentes, revelou o jornal, estavam procurando Cukurs –
“condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg” – “para que ele, a exemplo do que
ocorreu com Adolf Eichmann, responda pelos crimes que cometeu”.124

Fora do Brasil, a ideia da extradição para a Alemanha parecia ainda plenamente de


pé. O Yad Vashem trocou várias correspondências sobre o assunto com autoridades
do judiciário alemão. Em uma dessas correspondências, o Promotor Geral Executivo
da República Federal, alocado no Tribunal de Hamburgo, enviou ao Yad Vashem o
processo criminal contra Joachim Seck, que havia, então, sido condenado à prisão

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
AN-RJ. Processo MJNI 27.996/1950. Caixa 597, DEP.712. fls.396-406.
123
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Prontuário 135277, DEOPS-SP, fl.58.
124
Diário de Noite, “Recomeçou a caça ao nazista Cukurs”, 13/02/19062, p.4.

281
CAPÍTULO 4
!

perpétua, para que este pudesse servir de parâmetros para futuras ações contra Cukurs.
A instrução criminal naquele momento, ele pontuou, se concentrava em outros nomes,
que já se encontravam em prisão preventiva, porém: “Estou desde já bastante disposto
a apoiar o trabalho de vossa instituição”, terminou dizendo o promotor alemão em
uma demonstração de boa vontade com o Yad Vashem.125

Imagem&57.!Cukurs!é!“caçado”!segundo!a!imprensa!carioca.!Fonte:!Diário!de!Noite.!13/02/1962,!p.4.!!

A boa-vontade da Alemanha Federal, conforme vimos, refletia um momento pós-


Eichmann, isto é, de maior vontade política do governo no enfrentamento da questão
dos crimes cometidos pelo nacional-socialismo. Mas nem sempre tinha sido assim.
Em 1950, quando os tribunais alemães assumiram a responsabilidade pelo julgamento
dos crimes nazistas, houve uma espécie de relaxamento. O governo de Konrad Ade-
nauer (1949-1963) acreditava que o nazismo tinha ficado para trás e que a recupera-
ção alemã passava pela superação do passado e pela união de seu povo.126

No imediato pós-guerra, tornou-se bastante difundida a ideia de que os tribunais de


guerra erigidos no país eram parciais – presididos apenas pelos “vencedores” – e ope-
ravam ex post facto law, isto é, os réus respondiam por crimes que só seriam previstos
a posteriori pelo código jurídico. Assim, criou-se entre alguns setores da política e do
direito alemão – formado, em parte, por antigos nazistas – a noção de que muitas pe-
nas eram duras demais. As autoridades alemãs não estavam sozinhas nesse pensamen-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
125
Yad Vashem Archives, Documentation about Trials of War Criminals, RG: O.4, FN: 467, fl.23.
126
Cf. FREI, Norbert. Adenauer's Germany and the Nazi past: the politics of amnesty and integration.
Columbia University Press, 2002; NIVEN, Bill. Facing the Nazi past: United Germany and the legacy
of the Third Reich. Routledge, 2003.

282
CAPÍTULO 4
!

to. Elas contaram com a anuência das forças aliadas. Diversas penas imputadas a réus
dos chamados tribunais subsequentes de Nuremberg, ocorridos entre 1945 e 1951,
foram comutadas para outras mais brandas nos anos 1950. O “Caso 9” (Caso Ein-
satzgruppen) é um bom exemplo disso. Vinte réus foram condenados em 1948. Des-
tes, 15 tiveram as penas diminuídas posteriormente. De 13 condenados à morte, ape-
nas três foram executados.127 Robert Kemper chamou isso de “febre de anistia”. 128

Hillary Earl explica que dois motivos foram preponderantes para que isso ocorres-
se. Em primeiro lugar, está a questão da Guerra Fria. A relação entre Estados Unidos
e União Soviética se deteriorou rapidamente e nenhum dos dois lados queria se indis-
por com os alemães. Portanto, a questão dos crimes de guerra se tornou um assunto
cada vez mais evitado. Em segundo lugar, Earl cita o fortalecimento dos grupos naci-
onalistas alemães. Esses grupos eram formados, em geral, por autoridades católicas,
protestantes e advogados de criminosos nazistas. Apoiados em parte pela direita ale-
mã, defendiam que os julgamentos aliados não tinham sido justos, e que aqueles ho-
mens e mulheres condenados não eram criminosos nazistas, mas soldados que haviam
servido ao país. Na década de 1950, esses grupos exerceram forte pressão política na
Alemanha. Escreveram cartas, organizaram manifestações e fizeram até lobby no
Congresso Americano. Tentaram sensibilizar a opinião pública dizendo que a rigidez
das penas poderia minar a soberania alemã e produzir instabilidade política.129

Devin O. Pendas faz um levantamento quantitativo que nos ajuda a visualizar a


“política de esquecimento” então observada na Alemanha: em 1948, as cortes alemãs
deram 1.819 vereditos referentes a crimes de guerra nazistas. Em 1949, esse número
foi de 1.523. Em 1950, foram somente 809 sentenças, número que cai dramaticamente
para 259 no ano seguinte. Em 1955, as sentenças chegaram ao número irrisório de 21
condenações. Declínio semelhante ocorreu com as investigações. Se em 1950 elas to-
talizavam 2.495, sete anos depois eram apenas 183.130 A ideia de que os crimes do
nacional-socialismo eram “coisas do passado” foi se tornando, assim, cada vez mais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
EARL, Hilary. The Nuremberg SS-Einsatzgruppen Trial, 1945-1958. Atrocity, Law, and History.
New York: Cambridge, 2009. p.243.
128
Ibidem, p.13.
129
Ibidem, pp.265-266.
130
PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History, and the Limits
of the Law. New York: Cambridge, 2006. p.15.

283
CAPÍTULO 4
!

aceita diante da força imperativa do “é preciso seguir em frente”, tão preconizado por
Adenauer. Jeffrey Herf chamou essa estratégia de “democratização via integração”.131

Somente no início dos anos 1960, segundo Pendas, “a estratégia de democratização


via integração começou a se deteriorar em face de uma série de escândalos a propósito
da presença de nazistas em posições proeminentes no governo”. 132 Esses escândalos
ganharam uma proporção ainda maior porque a Alemanha Democrática, particular-
mente após a construção do Muro de Berlim, passou a alimentar o mito de que ela era
a única Alemanha realmente antifascista. A descoberta e a repercussão de novas di-
mensões do extermínio dos judeus, trazidas a público graças a novos julgamentos,
como o de Eichmann, também foram essenciais, uma vez que apontaram “falhas mo-
rais” no tratamento que as autoridades alemãs vinham dispensando aos antigos nazis-
tas, conforme destaca o autor.

A partir daí a Alemanha Federal começou a agir de forma bastante diferente. Co-
meçava “um período dominado por diversos e grandes julgamentos públicos, que vie-
ram formar a imagem pública do nazismo e do Holocausto”.133 O maior desses julga-
mentos começou em 1963: o Tribunal de Auschwitz, realizado em Frankfurt. Desta
vez, não eram as altas figuras do Terceiro Reich que eram julgadas; mas sim guardas
de prisão, vigias, homens e mulheres que tinham ocupado posições baixas na hierar-
quia do Terceiro Reich, mas que contribuíram de alguma forma para a “Solução Fi-
nal”. Os julgamentos de Auschwitz ganharam enorme fama internacional, expondo
com grande intensidade e choque os horrores dos campos de concentração e extermí-
nio. Talvez não coincidentemente, este julgamento começou no mesmo ano em que
Konrad Adenauer deixa o governo alemão, dando lugar a Ludwig Erhard (1963-66).

Tendo em vista este pano de fundo histórico, podemos admitir que o Congresso
Judaico Mundial abordou a justiça alemã em um momento de transição favorável. Ju-
ridicamente, a Alemanha Federal tinha todas as condições necessárias para requisitar
a extradição de Cukurs. A população estava mais sensibilizada, as autoridades públi-
cas constrangidas, a mídia estava ansiosa por acertos de contas do tipo e juridicamente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
HERF apud PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History,
and the Limits of the Law. New York: Cambridge, 2006. p.16.
132
PENDAS, Devin. O. The Frankfurt Auschwitz Trial, 1963-1965. Genocide, History, and the Limits
of the Law. New York: Cambridge, 2006. pp.18-20.
133
Ibidem, p.21.

284
CAPÍTULO 4
!

a medida era justificável. Esse pedido, no entanto, nunca aconteceu. O motivo disso
não ter acontecido não é claro. A documentação aqui analisada – que se encerra em
1963 – não oferece dicas neste sentido. Indica apenas que Cukurs fora investigado e
que seu paradeiro foi informado às autoridades alemã. Isso talvez tenha a ver com o
início do julgamento dos guardas de Auschwitz, que mobilizou imprensa, opinião pú-
blica e o judiciário alemão. Talvez, a justiça alemã estivesse encontrando dificuldades
em montar a instrução jurídica contra Cukurs. Somente pesquisas futuras, porém, po-
derão lançar mais luz sobre tal questão. Ali, contudo, a oportunidade não voltaria.

4.9. “Deixem-me falar”: a morte de Cukurs

No dia seis de março de 1965, o então comissário de polícia de Montevidéu, Ale-


jandro Otero, recebeu um inusitado comunicado do escritório alemão da agência de
notícias Reuters: um criminoso de guerra nazista teria sido executado e abandonado
dentro de uma casa no balneário Shangrilá, a cerca de 18 km do centro da capital uru-
guaia. A informação, tratada inicialmente com uma boa dose de desconfiança, acabou
se revelando verdadeira. Na tal casa, localizada na rua Colômbia, número 2357, a du-
as quadras da praia, o comissário Otero encontrou dentro de um volumoso baú de ma-
deira o corpo de um homem de meia idade já em avançado estado de decomposição.
Sob o peito do cadáver havia uma nota esclarecendo que aquele era o cumprimento da
sentença de morte de um criminoso nazista responsável pela morte de mais de 30 mil
judeus durante a Segunda Guerra Mundial. “Aqueles que nunca esquecerão” assina-
vam a nota. O corpo dentro do baú era de Herberts Cukurs, então com 64 anos.

Em 2004, quase quarenta anos depois de Otero entrar na casa da rua Colômbia, o
livro The Execution of the Hangman of Riga foi publicado com o intuito de contar a
história por trás do assassinato de Cukurs. Nele, os autores confirmaram o que sempre
se desconfiou, isto é, que Cukurs foi executado por um comando do Mossad, o servi-
ço secreto israelense. Rompendo com a discrição que é tão comum às agências de in-
teligência, o Mossad tinha permitido, surpreendentemente, que um de seus antigos
agentes secretos publicasse suas memórias. O livro, publicado em inglês e hebraico,
foi escrito pelo jornalista israelense Gad Shimron e pelo o ex-agente do Mossad, res-

285
CAPÍTULO 4
!

ponsável em campo pela operação que levou Cukurs à morte, Anton Kuenzle, contan-
do ainda com o prefácio de Meir Amit, chefe do Mossad entre 1963 e 1968. 134

The Execution of the Hangman of Riga é narrado em primeira pessoa por Anton
Kuenzle. Este, a propósito, como se descobriu alguns anos após o lançamento do li-
vro, era o codinome usado pelo agente Yaakov Meidad, nascido em 1919, em Bres-
lau, Alemanha (hoje, Polônia). A revelação de seu nome surgiu ao mesmo tempo que
também se conheceu mais de sua biografia. Sua mãe era professora. Seu pai, um mé-
dico veterano da Primeira Guerra Mundial. Em 1934, Meidad, aos 15 anos de idade,
imigrou sozinho para a Palestina, então sob protetorado Britânico. Estudou hebraico
em Haifa e, quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, foi o primeiro do Yishuv a se
voluntariar para servir no Exército Britânico. Seus pais, que nunca abandonaram a
Alemanha, acabaram se tornando vítimas do Holocausto: sua mãe morreu em Aus-
chwitz, enquanto seu pai, em Theresienstadt. No pós-guerra, Meidad não deixou de
ser soldado. Lutou na Guerra de Independência de Israel, em 1948, e foi galgando po-
sições na Israeli Defenses Forces até ser convidado a se unir ao Mossad, em 1955.135

Sholomo Shpiro, especialista em agências de inteligência, autor da introdução de


The Execution of the Hangman of Riga, diz que Meidad era uma “pessoa notável”.
Porém, em nada se parecia com o que se via em filmes do espião inglês James Bond.
Segundo Shpiro, Meidad não atraía atenções. Ele era uma pessoa que passava desper-
cebida no meio da massa. Tinha uma capacidade única para criar disfarces e acreditar
em seus personagens. Era conhecido por muitos como “o homem de centenas de iden-
tidades”. Shpiro explica: “uma vez ele tivesse obtido falsos papéis declarando ser ele
uma outra pessoa, era como se sofresse uma completa transformação, sendo comple-
tamente absorvido por essa nova identidade”.136 A primeira grande operação de Mei-
dad foi a captura de Eichmann. Foi ele o encarregado por alugar os carros e os apar-
tamentos usados na operação, além de ter sido um dos agentes que vigiaram Eich-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
134
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004.
135
Haaretz, “Mossad agent who helped abduct Eichmann dies at 93”, 01/07/2012. Disponível em:
http://www.haaretz.com/news/israel/mossad-agent-who-helped-abduct-eichmann-dies-at-93.premium-
1.448068. Acesso: 09/06/2015.
136
KUENZLE, op.cit., p.XIV.

286
CAPÍTULO 4
!

mann no apartamento em que este foi mantido até seguir para Israel.137 O sucesso nes-
ta operação e a sua habilidade para criar disfarces, afora do fato de ter o alemão como
língua nativa, levaram as autoridades do Mossad a colocá-lo na dianteira de uma nova
missão, que também deveria ser realizada na América do Sul e envolvia os tempos de
nazismo: ganhar a confiança de Cukurs e leva-lo até o Uruguai para ser executado.

The Execution of the Hangman of Riga começa narrando como Meidad foi infor-
mado pela primeira vez da operação. Era o dia primeiro de setembro de 1964. Ele ti-
nha sido chamado para uma reunião em um apartamento em Paris por um conhecido
seu chamado “Yoav”, um antigo membro da Palmach, a força de elite da Hagana,
organização judaica paramilitar na Palestina britânica.138 Yoav abriu a reunião dizen-
do: “bom, isso tudo começa com a confirmação final que recebemos sobre um crimi-
noso de guerra que vive em um país sul-americano, com o seu nome real, com a famí-
lia e sob proteção dos serviços de segurança daquele país.”139 No encontro, Yoav não
revelou quando as autoridades israelenses decidiram utilizar o Mossad para resolver o
Caso Cukurs. Entretanto, ele deixa bem claro o porquê:

Em poucos meses, no dia oito de maio de 1965 para ser mais preciso,
o mundo irá celebrar os vinte anos desde a vitória sobre a Alemanha
nazista, que aniquilou quase todos os judeus da Europa. Já há vozes,
não somente na Alemanha, que dizem que chegou o momento para
olhar adiante, que é chegada a hora de riscar os eventos do passado,
de apagar as memórias de todos os horrores, de esquecer os nazistas,
e de aplicar a Lei de Prescrição Penal aos seus crimes.140

Yoav referia-se à prescrição dos crimes de guerra na Alemanha, que aconteceria a


partir do dia oito de maio de 1965, data do fim do Terceiro Reich. Dede os anos 1980,
os crimes do nacional-socialismo são imprescritíveis. Em 1965, entretanto, eles ainda
eram regulados pelo direito comum em vários países da Europa, entre eles a Alema-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
137
Haaretz, “Mossad agent who helped abduct Eichmann dies at 93”, 01/07/2012. Disponível em:
http://www.haaretz.com/news/israel/mossad-agent-who-helped-abduct-eichmann-dies-at-93.premium-
1.448068. Acesso: 09/06/2015.
138
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. p.4.
139
Ibidem, p.5.
140
Ibidem, p.6. [Original: “In a few months, on 8 May 1965 to be precise, the world will mark 20 years
since the victory over Nazi Germany which annihilated most of the Jews in Europe. There are already
voices, and not in Germany alone, which say that it is time to look forward. To draw a line under the
events of the past, to erase the memories of all horrors, to forget the Nazis, and to apply the Statute of
Limitations to their crimes.”]

287
CAPÍTULO 4
!

nha. O tema era bastante complexo. A lei alemã de prescrição de crimes, criada por
Otto von Bismarck, não tinha sofrido alterações desde o seu aparecimento, no final do
século XIX. Ela não discernia, deste modo, um crime de homicídio comum de um
homicídio nazista. Se essa lei de prescrição fosse realmente aplicada em relação aos
crimes do nacional-socialismo, como estava prevista para acontecer, milhares de in-
vestigações caducariam, ao passo que outras tantas, incontáveis, nunca sequer seriam
iniciadas. Cukurs encaixava-se nesse contexto. A única forma de interromper a pres-
crição de um crime, nazista ou não, de acordo com a lei, era a emissão de um manda-
do de prisão ou a abertura de um pedido de extradição, algo que, por sinal, também
não tinha ocorrido naqueles últimos anos. O Tribunal de Hamburgo, vale lembrar, não
fora capaz de formular um pedido de extradição visando o julgamento de Cukurs.

Todo o debate em torno da prescrição dos crimes nazistas tinha dominado a esfera
pública nos anos 1960. Embora a Alemanha Federal tivesse se tornado mais sensível
quanto à necessidade de indiciar, prender, julgar e punir criminosos de guerra nazis-
tas, essa mudança de perspectiva não se deu de uma hora para outra, mas era um pro-
cesso. O governo de Bonn ainda mantinha certas reticências que obstruíam ou pelo
menos limitavam o “acerto de contas” com o passado nazista. Os investigadores ale-
mães, por exemplo, não tinham nem mesmo permissão para requisitar o mais simples
documento em posse da Alemanha Democrática ou de qualquer outro país da esfera
da URSS, o que era um grande problema, de acordo com Hannfried von Hindernburg:

A maioria dos campos de extermínio do nacional-socialismo estive-


ram localizados na Europa Oriental; portanto, um mergulho profundo
no passado criminal da Alemanha significava ter que acessar docu-
mentos em arquivos localizados na Polônia, na Tchecoslováquia,
União Soviética, entre outros lugares. No entanto, o governo alemão
impediu o Ludwigsburg Office [N.T. escritório de investigação de
crimes nazistas] de investigar crimes que demandassem examinar do-
cumentos guardados na Europa Comunista. O Ministro de Justiça de
Bonn e o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha Federal se
esquivaram de aceitar ofertas de países do Leste Europeu em dispo-
nibilizar os seus arquivos por temer que intercâmbio como este pode-
ria ser visto como um endosso político implícito destes países. Trocas
de documentos oficiais insinuariam a existência de atos mútuos de

288
CAPÍTULO 4
!
reconhecimento entre os Estados, argumentou o Ministro da Justi-
ça.141

A Alemanha Federal, desta forma, deixou de investigar, indiciar e julgar centenas


de indivíduos que cometeram crimes em territórios controlados pelo Terceiro Reich
simplesmente porque estava fora de cogitação expressar qualquer forma de reconhe-
cimento dos países do bloco socialista da Europa. A decisão, portanto, era estritamen-
te política. Isso nos ajuda a entender – pelo menos em parte – porque em cinco anos
não se formulou qualquer pedido de extradição de Cukurs. Uma vez que tendo come-
tido seus crimes na Letônia, agora uma República Soviética, Cukurs era um exemplo
da procrastinação ideológica da Alemanha Federal na conjuntura da Guerra Fria.

A aproximação do oito de maio de 1965 vinha gerando debates intensos. Simon


Wiesenthal procurou mobilizar intelectuais, escritores e acadêmicos em prol da alte-
ração da lei de prescrição.142 O American Jewish Congress (AJC) também realizou
um grande lobby junto ao governo americano, procurando fazer com que a adminis-
tração do Presidente Lyndon Johnson demovesse a Alemanha Federal de sua decisão
de implementar a lei em relação aos crimes nazistas.143 Em Varsóvia, na Polônia, en-
tre cinco e sete de junho de 1964, juristas de diversos países europeus se reuniram no
Colóquio Internacional de Varsóvia com o intuito de estudar códigos jurídicos e a sua
aplicação, visando decidir o que fazer a respeito. No final do encontro, foi assinada
uma resolução defendendo a imprescritibilidade dos crimes nazistas.144 Na Alemanha,
essa pressão ficou por conta principalmente de alguns partidos de oposição, especial-
mente o Partido Social Democrata.145 Apesar de tudo, uma parcela da população ale-
mã parecia dividida quanto a julgamentos de criminosos nazistas. Em 1962, uma pes-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
VON HINDENBURG, Hannfried. Demonstrating Reconciliation: State and Society in West Ger-
man Foreign Policy Toward Israel, 1952-1965. Berghahn Books, 2007. p.79. [Original: “The majority
of NS death camps were located in Eastern Europe; hence a thorough probe into Germany’s criminal
past required tapping archival sources in Poland, Czechoslovakia, the Soviet Union, and elsewhere. Yet
the German government barred its Ludwigsburg office for the prosecution of NS crimes from accessing
documents stored in Communist Europe. Bonn’s Justice Ministry and the Foreign office shied away
from taking up Eastern European countries’ offers to make their records available to West German
prosecutors, since it was feared that an official exchange on the matter would be seen as an implicit
political endorsement of these countries. Exchanging legal documents would have insinuated the exist-
ence of mutually agreed state-certified acts, the Justice Ministry argued ins a expertise.”]
142
Ibidem, p.80.
143
Ibidem, p.82.
144
VELLOSO, Ana Flávia. A imprescritibilidade dos crimes internacionais. Revista de Direito Inter-
nacional, 2008. p.3.
145
Ibidem, p.79.

289
CAPÍTULO 4
!

quisa revelou que somente 14% dos respondentes pensavam que seria melhor não ter
levado Eichmann à julgamento, enquanto que durante o julgamento de Auschwitz,
esse percentual, em apenas um ano, já tinha subido para 39%.146

Quando Yoav se reuniu com os agentes do Mossad em Paris, ele estava, portanto,
bastante pessimista em relação à decisão das autoridades alemãs, apesar de toda pres-
são existente pela revisão da lei de prescrição. Ele disse a Meidad e aos demais agen-
tes em Paris: “parece que o forte impacto do sequestro de Eichmann e os terríveis tes-
temunhos que foram ouvidos naquele tribunal estão perdendo o efeito”.147 Yoav acre-
ditava que se a Alemanha não modificasse os termos de suas leis, os demais países
europeus não se sentiriam inclinados a também mudar os seus respectivos termos.

Para o chefe da operação, segundo conta Meidad, seria inconcebível imaginar um


mundo onde milhares de criminosos de guerra nazistas não pagariam por seus crimes
e “que passariam o resto de suas vidas em paz e tranquilamente, seguros e imunes a
investigações e prisões”.148 Executar Cukurs, então, surgiu com um duplo significado:

Se nós formos bem-sucedidos na operação que estamos preparando,


nós vamos novamente instalar o medo no coração de milhares de
criminosos de guerra nazistas. Nós faremos tudo o que estiver ao
nosso alcance para fazer o resto da vida deles miserável. Eles vão
sentir medo da própria sombra. Eles não ousarão sair de suas casas, e
vão ter continuamente pesadelos de assassinos anônimos, os descen-
dentes das inocentes vítimas que eles fizeram, procurando a sua vin-
gança. Eles não devem ter um único momento de paz e tranquilidade
até o seu último dia na Terra! (...) E nós vamos nos certificar que a
execução dele [Cukurs], tal como o inventário de seus crimes, vão es-
tar nas manchetes de cada jornal do mundo. Isso não só vai instalar o
medo em criminosos que escaparam e que agora se escondem, mas,
mais importante, isso vai influenciar a opinião pública fortemente a
se opor à deplorável ideia de aplicar a Lei de Prescrição a crimes de
guerra.149

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
BERGMANN, Werner; ERB, Rainer. Anti-Semitism in Germany: The Post-Nazi Epoch Since 1945.
Transaction Publishers, 1997. p.17.
147
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. p.8.
148
Ibidem.
149
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.8-9. [Original: If we
!

290
CAPÍTULO 4
!

Segundo constava no briefing da missão, Meidad deveria tornar-se um homem de


negócios austríaco chamado Anton Kuenzle. Depois de forjada essa nova identidade,
Kuenzle – como nos referiremos a Meidad partir de agora – deveria viajar para o Bra-
sil, encontrar-se com Cukurs, ganhar sua confiança e atrai-lo para fora do país, onde
seria executado. A decisão de matá-lo fora do Brasil tinha duas justificativas: em pri-
meiro lugar, proteger os judeus brasileiros de qualquer atentado nazista ou antissemi-
ta; em segundo lugar, o Brasil ainda não tinha abolido a pena de morte (informação
que estava equivocada). O Uruguai foi, então, apontado neste primeiro encontro ope-
racional como o lugar mais indicado para o assassinato de Cukurs. Os agentes israe-
lenses acreditavam que o país era mais liberal, o que ajudaria alguma coisa desse er-
rada: “a polícia é mais respeitadora dos direitos dos prisioneiros”.150

Depois de montar o seu disfarce em Roterdã, na Holanda, Kuenzle chegou ao Bra-


sil no dia 12 de setembro de 1964. Ele se apresentou a Cukurs como um homem de
negócios procurando oportunidades de investimentos no segmento turístico da Améri-
ca Latina.151 Cukurs teria aos poucos se interessando pela história e, principalmente,
pela chance de tomar parte naquela sociedade. Conforme explica Kuenzle, o aviador
letão passava naquela época por dificuldades financeiras. Os dois tiveram vários en-
contros, inclusive dentro da própria casa de Cukurs, na presença de sua família. 152

Conforme relata o agente do Mossad, Cukurs demorou para ganhar sua confiança.
Certa vez, durante uma viagem a Porto Alegre, em outubro de 1964, ele conta que
Cukurs lhe mostrou uma arma que tinha levado na bagagem. Espantado com aquilo,
Kuenzle disse ter perguntado a Cukurs se ele o temia, ao que Cukurs teria respondido:
“Se você tivesse um nariz grande, então eu teria uma boa razão para ter medo. De
qualquer forma, deve-se estar sempre em alerta”. Essas desconfianças eram frequen-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
succeed in the operation we are now preparing, we’ll once again put the fear of death into the hearts of
tens of thousands Nazis war criminals. We’ll do everything in our capacity to make the rest of their
lives miserable. They will fear their own shadow. They will not dare to leave their homes, and will
have continuous nightmares of anonymous assassins, the offspring of their innocent victims, seeking
their revenge, They must not have one single moment of peace and tranquility until their last dying day
one earth! (…) And we’ll make sure that his execution, as well as the record of his past crimes, will
make the headlines of every newspaper in the world. This will not only instill fear in the escaped crim-
inals in hiding but, more importantly, it will sway public opinion to strongly oppose this deplorable
ideia of applying the Statue of Limitation to Nazi war crimes”.]
150
Ibidem, pp.9-11.
151
Ibidem, pp.48-57.
152
Ibidem, pp.76-85.

291
CAPÍTULO 4
!

tas. Certa vez, ambos estavam dentro de uma casa noturna em São Paulo. Ao longo da
conversa, o agente disse ter notado que Cukurs bebia lentamente. Kuenzle acredita
que o letão temia ser dopado ou envenenado. “Ao meu ver”, relatou, “Cukurs estava
sofrendo de um avançado estado de paranoia, o que só aumentava a sua cautela”.153

No dia 16 de outubro de 1964, segue o relato, os dois se encontraram em Montevi-


déu. A ideia era procurar juntos uma casa que pudesse servir para ser o escritório da
sede da empresa de turismo que estavam supostamente iniciando. Cukurs não era bra-
sileiro e, por isso, não tinha passaporte. Mas disse que poderia adquirir um facilmente
ao custo de 30 dólares. Kuenzle assentiu com a ideia e foi assim que Cukurs conse-
guiu deixar o país, a primeira viagem internacional desde sua chegada ao Rio de Ja-
neiro, quase 20 anos antes. Os dois acabaram não encontraram a casa correta, mas fi-
caram de fazer uma nova procura. No final deste encontro, Kuenzle disse que precisa-
ria voltar para a Europa para resolver algumas questões e queria saber se Cukurs gos-
taria de ser parte do empreendimento. Cukurs disse sim. Antes de seguirem seus des-
tinos, os dois se despediram, segundo Kuenzle, como se fossem dois bons amigos.154

Nos últimos dois meses de 1964, o agente do Mossad diz ter preparado um longo
relatório. Neste, diz ter recomendado aos seus superiores que Cukurs fosse levado pa-
ra dentro de uma das casas que eles estariam avaliando como possível sede. Uma vez
dentro da casa, uma unidade tática estaria lá dentro, preparada. Depois de imobiliza-
do, leriam um veredito e o executariam. A proposta foi aprovada. Yoav informou que
a unidade teria cinco pessoas. Além de Meidad, encarregado de fazer Cukurs entrar na
casa, seriam os outros agentes escondidos dentro da casa: o próprio Yoav, Oswald
Taussing, Ariel e Dova’le. Além disso, outros dois agentes – Michael e Adi – cuidari-
am da parte mais operacional da missão.155 No dia 31 de dezembro de 1964, Kuenzle
preparou os últimos detalhes. Pediu a Cukurs que tirasse vistos de entrada para Mon-
tevidéu e Chile, os próximos países que visitariam para avançar nos negócios.156

Kuenzle retornou a São Paulo no dia 28 de janeiro de 1965. Assim que saiu da ae-
ronave, foi surpreendido: Cukurs estava no hangar na pista, sorridente, acenando para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
153
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.86-97.
154
Ibidem, pp.86-98.
155
Ibidem, pp.99-108.
156
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.99-108.

292
CAPÍTULO 4
!

o amigo austríaco que descia das escadas acopladas ao avião. Em sua mão, Cukurs
carregava uma câmera filmadora 8mm bastante comum na época. O objeto deixou
Kuenzle desorientado: “Eu estava totalmente convencido de que aquele era um outro
mecanismo de segurança de Cukurs, cujo objetivo era testar minhas mais honráveis
intenções”.157 Isso, no entanto, não comprometeu a operação e as coisas prosseguiram
conforme planejadas. Cukurs ainda acabou demorando para conseguiu os vistos de
turista. Mas no final de fevereiro tudo estava pronto para a viagem a Montevidéu.

No dia 23 de fevereiro de 1965, ainda pela manhã, Cukurs chegou ao Uruguai. Ku-
enzle o pegou de carro no aeroporto e fez uma rápida parada no hotel, onde o letão
deixou suas coisas. Depois, ambos seguiram rumo a casa em que supostamente seria
instalado o escritório do grupo. Essa casa ficava em um discreto bairro de Montevi-
déu, conhecido como Shangrilá. Tão logo chegou ao endereço, Kuenzle foi o primei-
ro a deixar o carro. Ele abriu a porta da casa, entrou e deixou que Cukurs fizesse o
mesmo. O agente do Mossad conta, então, o que se passou nos minutos seguintes:

Levou uma fração de segundos para ele se acostumar com a penum-


bra dentro do ambiente. Uma fração de segundo muito longa. Eu bati
a porta atrás dele fazendo barulho. Os membros do time pularam em
Cukurs. Um deles o pegou pelas costas, para aplicar-lhe um golpe
que tinha praticado por muito tempo. Os outros pularam em seus la-
dos. Cukurs reagiu muito rápido. Embora ele tivesse próximo de
completar 65 anos, ele estava em boa forma, e sabendo que se tratava
de uma luta de vida ou morte, obviamente ele dobrou sua força. Ele
estava lutando por sua vida. A despeito de estar em minoria, Cukurs
fez um movimento ligeiro e tentou livrar-se de seus agressores e ir
para a porta. Ele lutou como um animal selvagem e ferido. Ele liber-
tou uma de suas mãos e agarrou a maçaneta da porta, tentando abri-
la. Nós nos jogamos contra a porta, tentando puxar ele para o centro
do cômodo. O medo da morte deu a ele uma incrível força. Durante a
luta, ele rompeu o trinco direito da porta. “Deixe-me falar”, ele gri-
tou. E desde este dia eu adoraria saber porque ele gritou em alemão,
não em letão ou em português. Foram as únicas palavras que reverbe-
raram dentro no ambiente. Diferentemente, nós lutamos silenciosa-
mente, sem palavras. Os óculos de aros grossos de Cukurs caíram no
chão, no mêlée. Apesar de quatro de nós tentarmos segurá-lo, Cukurs
quase conseguiu pegar a arma que ele tinha no bolso. Mas nós o im-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
157
Ibidem, pp.108-109.

293
CAPÍTULO 4
!
pedimos de fazer isso. Nós nos jogamos contra ele. Yoav deixou es-
capar um silencioso gemido de dor. De repente, alguém que tinha um
martelo de construção e com ele acertou o lado direito da cabeça de
Cukurs. O sangue espirrou para todos os lados. O plano original era
imobilizar Cukurs, não matá-lo imediatamente. (...) Mas a tentativa
dele de alcançar sua arma encurtou nosso planejamento. Um de nós
colocou a arma na cabeça de Cukurs e atirou duas vezes. O silencia-
dor e o barulho de nossa luta abafaram completamente o som dos
disparos. As duas balas acabaram com a vida de Cukurs. Era terça-
feira, 23 de fevereiro de 1965, 12h30. 158

De acordo com Meidad, Yoav foi o único agente ferido na luta. Na tentativa de
impedir que Cukurs gritasse, colocou a mão em sua boca e foi fortemente mordido.
Segundo Meidad a mordida foi tão forte que comprometeu o movimento de um dos
dedos do agente de forma permanente. Dentro da jaqueta de Cukurs, os agentes en-
contraram o seu passaporte comparado e uma pistola italiana Beretta, 6.35mm. Seu
corpo foi colocado dentro de um baú de madeira, tendo afixado sob seu peito um pe-
daço de papel com o veredito que seria lido, conforme o plano original. O texto dizia:

Veredito: Considerando a gravidade dos crimes que é acusado Her-


berts Cukurs, especialmente a sua responsabilidade pessoal no assas-
sinato de 30 mil homens, mulheres e crianças, e considerando a terrí-
vel crueldade mostrada por Herberts Cukurs na execução de seus

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
158
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.125-126. [Original: “It
took him a fraction of a second to become accustomed to the semidarkness in the room behind him
with a bang. The members of the team jumped Cukurs. One of them caught him from behind, in order
to execute the single downward blow he had practiced for so long. The others leapt at his sides. Cukurs
reacted very fast. Although he was nearly 65, he was in good shape, and the knowledge that this was a
life-or-death struggle obviously doubled his strength. He was fighting for his life. Despite being out-
numbered, Cukurs made a few swift movements and managed to shake off his attackers and go for the
door. He fought like a wild and wounded animal. He freed one hand, grabbed the door handle, and tried
to pull it open. We leaned against the door, trying to push him into the center of the room. The fear of
death gave him incredible strength. During the struggle, he tore the handle right off the door. ‘Let me
speak’, he yelled. And to this day I wonder why he yelled in German, and not in Latvian or Portuguesa.
These were the only words that reverberated in the room. Otherwise we fought silently, without words.
Cukurs’ thick-rimmed glasses fell on the floor in the mêlée. Despite the four of us trying to hold him
down, Cukurs almost managed to pull the gun out of his pocket. Bu we bet him to it. We threw our-
selves at him, and Yoav let out a quiet cry of pain. Suddenly someone had a builder’s hammer in his
hand, and with it hit the Nazi criminal right on his hand. Blood spurted everywhere. The original plan
had been to overpower Cukurs, but not kill him instantly. (…) But his attempt to reach for his gun
shortened the proceedings. One of us put a gun to Cukurs’ head, and pulled the trigger twice. The si-
lencer and the noise of our struggle completely swallowed the sound of the shots. The two bullets end-
ed Cukurs’s life. It was Tuesday, 23 February, 1965, 12:30 p.m.”]

294
CAPÍTULO 4
!
crimes, nós o condenamos a morte. Ele foi executado no dia 23 de
fevereiro de 1965 por “Aqueles que não esquecerão”.159

Depois disso, explica Meidad, os agentes limparam toda a cena do crime e fecha-
ram a casa. Os cinco deixaram Montevidéu em dois voos diferentes. Uma vez em se-
gurança, Adi fez uma chamada telefônica para várias agências de notícias da Alema-
nha. Anonimamente, relatou que um criminoso de guerra nazista fora liquidado em
Montevidéu por Aqueles que nunca esquecerão como vingança pelos horrores come-
tidos contra os judeus durante o Holocausto.160 Os dias passaram, porém, e os agentes
não viram nenhuma notícia nos jornais. Segundo Meidad, a informação não deve ter
sido levada a sério. Naquela época, afinal, muitos trotes do tipo eram passados rotinei-
ramente aos jornalistas alemães. Eles, então, escreveram um resumo da operação que
matou Cukurs e enviaram para agências de notícias de Düsseldorf, Bonn e Frankfurt.
Para reforçar a mensagem, fizeram ainda novos telefonemas. Desta vez, um editor
alemão da Reuters em Frankfurt levou a informação a sério e notificou um de seus
correspondentes em Montevidéu, no Uruguai. No dia seis de março, a polícia uru-
guaia, liderada pelo Comissário Otero, encontrou o corpo de Cukurs. Assim que en-
traram na casa, os policiais sentiram o cheiro do corpo em decomposição.161

4.10. Caso encerrado

O assassinato de Cukurs ecoou em praticamente todos os jornais brasileiros e tam-


bém internacionalmente, exatamente como Yoav desejava. O jornal norte-americano
The New York Times disse que o aviador letão era um dos principais nomes na lista da
Agência Central da Alemanha Ocidental de investigações de crimes nazistas.162 O in-
glês The Guardian enfatizou que organizações judaicas tinham tentado várias vezes a
extradição de Cukurs.163 O espanhol Diario de Avisos anunciou que nazistas e judeus

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
159
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Mitchell Vallentine & Company, 2004. pp.125-126. [Original:
“VEREDICT: Considering the gravity of the crimes of which HERBERTS CUKURS is accused, nota-
bly his personal responsibility in the murder of 30.000 men, women and children, and considering the
terrible cruelty shown by HERBERTS CUKURS in carrying out his crimes, we executed him on 23
February 1965. By: “Those Who Will Never Forget”].
160
Ibidem, p.133.
161
Ibidem, pp. 133-134.
162
The New York Times, “Reports from Abroad”, 14/03/1965.
163
The Guardian, “Wanted war criminal’s body found”, 08/03/1965, p. 11.

295
CAPÍTULO 4
!

se chocavam em Montevidéu.164 O canadense L’Express, fazendo um jogo de palavras


com a assinatura dos executores de Cukurs, publicou ao lado de uma foto de Cukurs:
“aquele que pagou por seus crimes”.165 No Uruguai, finalmente, o El País chamou a
descoberta no balneário de Shangrilá de “macabra”.166

No início das investigações, havia mais perguntas do que repostas: quem assassina-
ra Cukurs? O corpo encontrado em Montevidéu era mesmo do aviador letão? Quando
tinha ocorrido a execução? O governo israelense estava por trás? Por que mataram
Cukurs? A falta de repostas logo levou a um sem número de especulações, especial-
mente por parte da imprensa. Muitos jornais, por exemplo, assumiram que Aqueles
que nunca esquecerão era o nome de uma organização antinazista e que a intenção de
seus agentes não era assassinar Cukurs, mas sequestrá-lo.167 Essa ideia foi defendida,
inclusive, pelo Comissário de Polícia de Montevidéu, Alejandro Otero, encarregado
das investigações no país. Otero tinha certeza de que se Cukurs não tivesse resistido
aos agentes, seria levado para Israel, da mesma forma que Eichmann.168 Essa possibi-
lidade, porém, é muito pouco provável. Os agentes que o mataram, como vimos, são
categóricos em afirmar que a execução estava programada desde o princípio. E há bo-
as razões para acreditaram que falavam a verdade. Não só pelo bilhete que foi encon-
trado na cena do crime, como também por todo o contexto histórico em que o caso
está inserido. Embora vários fossem os relatos contra Cukurs, a fragilidade ou a insu-
ficiência dessas evidências, que tanto tinha dificultado a expulsão/extradição de Cu-
kurs, poderia culminar em uma absolvição em caso de se fazer um julgamento. Eich-
mann era alemão e oficial da SS, um burocrata que trabalhou durante anos no seio do
Terceiro Reich. Seu nome estava em incontáveis documentos. Sua condenação era
certa. Com Cukurs, um cidadão letão, as coisas eram completamente diferentes. Ele
era um colaboracionista. Não era o homem que dava as ordens dentro do gueto ou que
assinava documentos. Para além das testemunhas, seria difícil reunir outro tipo de ma-
terial, especialmente pela dificuldade de acesso aos arquivos dos países comunistas.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
164
Diario de Avisos, “Nazis y judíos si chocan en Montevideo”, 11/03/1965, p. 1.
165
L’Express, “Celui qui a payé ses crimes“, 11/03/1965, p. 1.
166
El País, “Hallazgo macabro en el balneario de Shangrilá”, 07/03/1965, p. 1.
167
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p. 6.
168
Em 2012, com a ajuda do pesquisador Marcelo Silva, pude conversar pessoalmente com Otero, em
seu apartamento no bairro de Pocitos, em Montevidéu. Otero, uma figura emblemática da história re-
cente do Uruguai, sustenta a ideia de que havia, inclusive, um navio israelense aguardando o baú com
Cukurs.

296
CAPÍTULO 4
!

O filho mais velho de Cukurs, Gunnars, acreditava em vários suspeitos. Primeiro,


disse acreditar que agentes soviéticos estavam por trás do assassinato de seu pai.169
Depois, sugeriu que Alfred Gartenberg e Israel Scolnicov, antigos membros da Fede-
ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, poderiam ter sido os mandantes do
crime.170 Surgiu também nessa época a informação de que havia uma ligação direta
entre Cukurs e Mengele. Segundo o Última Hora, Cukurs tinha sido eliminado por
nazistas. Ele pretenderia entregar Mengele para as autoridades e se reabilitar, sendo
morto assim que seu plano foi descoberto.171 Marcos Constantino concordava com
essa tese conspiratória: “os próprios nazistas massacraram Cukurs e assim o fizeram
tentando influenciar o Parlamento da Alemanha Federal no julgamento da prescrição
dos crimes de guerra. Quiseram mostrar o espírito de vingança dos judeus.”172

Com a morte de Cukurs, o imaginário político de uma rede nazista que conectava
Eichmann, Mengele, Cukurs, Bormann, entre outros, expandiu-se ainda mais. De to-
dos os grandes jornais, o Última Hora teve um papel de destaque na mitigação desta
imagem, escrevendo que Cukurs, ‘forçosamente, manteria contatos com grupos rema-
nescentes nazistas, atuando em diversos países, principalmente na Argentina, com o
grupo Taquara, responsável por atentados terroristas contra judeus”.173 Pinheiro Jú-
nior, também escrevendo pelo Última Hora, escreveu nessa mesma linha:

Cukurs era apontado como o homem-chave para a descoberta do paradeiro


de outros monstros de guerra. Ele sabia onde estavam Joseph Mengele e
Martin Bormann. Talvez mantivesse contato com o médico da morte e o
lugar-tenente de Hitler, por certo ainda escondido na América do Sul. As-
sim, com a mesma intensidade com que os judeus e pacifistas o odiavam,
os loucos revanchistas do nazismo o amavam e protegiam. Para os antis-
semitas, Cukurs era um herói nacional da Letônia. E, com a prevista pres-
crição dos crimes de guerra, em maio próximo, talvez pudesse voltar à
Alemanha Federal.174

No dia 26 de março de 1965, três semanas após o corpo de Cukurs ter sido encon-
trado em Montevidéu, e cerca de dois meses antes da data de prescrição, o Bundestag

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
Jornal do Brasil, “Filho de Cukurs vê na trama agentes da URSS”, 09/03/1965, p. 8.
170
Jornal do Brasil, “Advogado do Rio nega que esteja envolvido”, 09/03/1965, p. 8.
171
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p. 6.
172
Última Hora, "Desaparecido outro oficial nazista", 12/03/1965, p. 7.
173
Última Hora, "Mataram Cukurs", 08/03/1965, p. 10.
174
Última Hora, "Até a consumação dos séculos", 11/03/1965, p.8.

297
CAPÍTULO 4
!

aprovou por 364 contra 96 votos o projeto de lei que estendia até 31 de dezembro de
1969 o prazo dentro do qual poderiam ser instaurados processos contra criminosos
nazistas.175 Era uma mudança parcial, mas real. O assassinato de Cukurs não foi cer-
tamente a principal força por trás da decisão das autoridades alemãs, mas também não
podemos descartar a possibilidade de que ele tenha sido levado em consideração. Em
suas memórias, Meidad, por sua vez, tem certeza do peso de sua operação:

A fotografia do corpo de Cukurs, coberto de sangue e enfiado dentro de


um baú, com o veredito “Aqueles que nunca esquecerão” presa em seu
peito, estava impressa na mente dos participantes. Eu não tenho dúvidas
que isso persuadiu parte dos indecisos a fecharem com o lado daqueles
que se opunham à implementação da lei de prescrição. (...) O mundo deci-
diu, em parte devido à operação de “aqueles que nunca se esquecerão”,
que não pode haver lei de prescrição e clemência para criminosos como
Cukurs.176

As autoridades alemãs não permaneceram indiferentes quanto à execução de Cu-


kurs, afinal de contas uma das perguntas mais comuns naqueles dias era por que a
Alemanha Federal nunca solicitou a extradição do letão, já que ela já tinha julgado
outros casos envolvendo crimes cometidos na Letônia ocupada. O Promotor de Justiça
de Hamburgo, Walter Bon-Schmidt, disse à imprensa que a justiça alemã estava estu-
dando uma forma de pedir a extradição de Cukurs ao Brasil.177 Schmidt informou aos
repórteres que “havia fortes indícios de que Cukurs era dirigente do Partido Nazista
da Letônia e possivelmente foi responsável pelas execuções em massa de judeus”.178
Se estava dizendo a verdade ou não, isso pouco importava àquela altura. A Alemanha
tinha perdido a oportunidade de solicitar a extradição de Cukurs à justiça brasileira.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
Estado de S.Paulo, “Bonn: extensão do prazo de prescrição dos crimes nazistas”, 27/03/1965, p. 8.
176
KUENZLE, Anton; SHIMRON, Gad. The execution of the Hangman of Riga: the only execution of
a Nazi war criminal by the Mossad. Londres: Mitchell Vallentine & Company, 2004. p.141. [Original:
“The photograph of Cukurs’ corpse, cover in blood and stuck inside a trunk, with the verdict of ‘Those
Who Will Never Forget’ stuck to its chest, was imprinted in the minds of the participants. I have no
doubt that it persuaded some of the floating votes to come down on the side of those who opposed the
implementation of the Statue of Limitations. (…) The world decided, and not least due to the operation
of ‘Those Who Will Never Forget’, that there can be no Statute of Limitation and no clemency for
criminals like Cukurs”.]
177
Jornal do Brasil, “Polícia uruguaia ignora se o corpo achado é de Cukurs, 09/03/1965, p.8.
178
Última Hora, "Cukurs assassinado na hora do castigo", 09/03/1965, p.6.

298
CAPÍTULO 4
!

Quanto ao Estado brasileiro, restava quase nada a ser feito a respeito. Cukurs não
tinha conseguido a nacionalidade brasileira e seus crimes não tinham sido cometidos
no Brasil. Seu assassinato havia ocorrido em um país estrangeiro, ele viajara esponta-
neamente e com um passaporte falso. Se o maior medo das autoridades brasileiras era
que uma ação como aquela ocorresse dentro de seu território, não havia motivos para
se preocupar a partir daquele momento. Sua soberania continuava intacta. Cabia ape-
nas ao Uruguai conduzir as investigações. Na época, nem o Ministério da Justiça,
nem o Ministério das Relações Exteriores receberam qualquer pedido de informação.

Imagem&58:&Baú!no!qual!o!corpo!de!Cukurs!foi!deixado,!em!Montevidéu.!Fonte:!acervo!pessoal!do!autor.!

Em março de 1965, o Itamaraty e os serviços de inteligência tinham em perspecti-


va outro tema bem diferente quando o assunto era o Uruguai: o monitoramento dos
passos de João Goulart e de outros membros do governo brasileiro deposto. Após o
golpe civil-militar de primeiro de abril de 1964, muitos integrantes do governo Jango,
além de um grande número de seus aliados políticos, exilaram-se em Montevidéu.
Desde então, os militares temiam que eles pudessem se passar por um “governo no
exílio” ou, quem sabe, articular até mesmo uma oposição ou movimento de resistência
armada. As correspondências da Embaixada Brasileira no Uruguai não fazem qual-

299
CAPÍTULO 4
!

quer menção ao assassinato de Herberts Cukurs. Por outro lado, havia uma quase ob-
sessão em saber o que faziam Goulart e seu principal aliado, Leonel Brizola.179

O que houve ainda em termos oficiais nos dias e semanas seguintes à descoberta da
morte de Cukurs foi a colaboração entre a polícia uruguaia e a brasileira. Como o cri-
me envolvia mais de um país, com repercussão internacional, a Interpol também aca-
bou se envolvendo no caso. A pressão por respostas era grande na época, principal-
mente depois que passaram a circular rumores de que um funcionário da embaixada
israelense no Uruguai, Menahem Barbasch, estava envolvido no crime. Se aquele tipo
de especulação se confirmasse, um incidente diplomático muito mais grave do que o
observado entre Argentina e Israel poderia acontecer agora entre Israel e Uruguai.

Um dos primeiros interrogados pelas autoridades policiais foi o uruguaio Antonio


Giménez Vidal, proprietário do imóvel onde Cukurs foi morto. Vidal informou à polí-
cia que um estrangeiro de origem austríaca chamado Oswald Heinz Taussig tinha alu-
gado a casa. Taussing, disse o homem, pagou dois meses de aluguel adiantado e, co-
mo garantia do contrato, apresentou como fiador Denis Mavrydis Kalogeropulu, de
nacionalidade grega. Com Taussig desaparecido, a polícia foi atrás de Kalogeropulu,
mas logo descobriu que ele nada tinha a ver com a ação. A Interpol também deteve
dois franceses em El Salvador, libertados após se descartar o envolvimento deles.180

No Brasil, os policiais registraram o depoimento de Milda, esposa de Cukurs. No


dia 12 de março de 1965, diante de investigadores da Interpol e de agentes policiais
das polícias brasileiras e uruguaias, Milda respondeu a 36 perguntas. Em uma delas,
os agentes pediram que Milda narrasse a participação de seu marido na primeira e se-
gunda guerras mundiais: onde prestou serviço, sob ordens de quem, com qual patente,
em que ações importantes tomou parte, se foi ferido ou feito prisioneiro. Suas repostas
eram semelhantes ao que Cukurs já tinha dito cinco anos antes no DEOPS-SP. Milda
disse que seu marido foi legionário, que lutou contra a ocupação soviética da Letônia
e que colaborou com os alemães. Cukurs, ela disse, nunca tomou parte na execução de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
Cf. FERNANDES, Ananda Simões. A ditadura brasileira e a vigilância sobre seu “inimigo interno”
no Uruguai (1964-1967): os órgãos de repressão e de espionagem. IX Encontro Estadual de História.
Associação Nacional de História. Seção Rio Grande do Sul - ANPUH-RS. Vestígios do Passado - a
história e suas fontes. 2008.
180
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Carlos Alvarez Editor, 2010. pp.155-160.

300
CAPÍTULO 4
!

judeus. Porém, disse, tomou parte na morte de traidores, entre os quais encontravam-
se muitos judeus. 181

Imagem 59: Agentes da Interpol no Brasil entrevistam a família Cukurs. Fonte: Última Hora, 1965.

O nome de Anton Kuenzle não demorou a aparecer nos jornais. Quando as autori-
dades policiais conversaram com a família de Cukurs, Kuenzle foi apontado como o
provável executor do crime. Foi questão de pouco tempo para que uma foto de seu
rosto corresse o mundo. Esta foto foi retirada da filmagem em Super 8 que Cukurs
fizera de Kuenzle ao descer do avião, em outubro de 1964. Cukurs entregou o rolo do
filme a Gunnars. Se algo lhe acontecesse! em alguma das viagens, Gunnars deveria
entregar o material à mídia, pois ele acreditava que Kuenzle seria o culpado. Posteri-
ormente, em seu livro Meidad descreveria a desconfiança permanente de Cukurs, que
teria feito o registro propositalmente como forma de se proteger ou de deixar provas
do provável autor se houvesse crime. Assim que a notícia da morte de Cukurs chegou
ao Brasil, Gunnars entregou o filme ao repórter Orlando Criscuolo, do Diário de No-
tícias, de São Paulo. Criscuolo, por sua vez, recorreu a colegas repórteres de O Cru-
zeiro, a fim de que fosse revelado. O laboratório da revista fez a revelação e O Cru-
zeiro, em parceria com o jornal, deu em primeira mão o rosto rechonchudo, calvo e
com óculos de armações pretas que pertenciam ao agente Anton Kuenzle182

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
181
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Carlos Alvarez Editor, 2010. p.168.
182
O Cruzeiro, “Cukurs filma seu assassino”, 20/03/1965 pp-20-33.

301
CAPÍTULO 4
!

Enquanto as investigações eram realizadas, a morte de Cukurs chegou a gerar al-


gumas ações antissemitas no Brasil. Em Pernambuco, poucos dias depois da divulga-
ção da execução no Uruguai, muros da cidade amanheceram com inscrições acusando
os judeus de “Inimigos do Brasil” e “Contra Cristo”.183 Em vários bairros de São Pau-
lo foram também pichadas saudações nazistas, cruzes suásticas e vivas a Hitler, Goe-
bels, Cukurs e outros. Houve até mesmo um caso mais grave de violência na capital
paulista. Na Rua Bartira, no bairro de Perdizes, a casa do radialista judeu Jacob Ro-
semblat foi pintada com tinta vermelha e foi ateado fogo em seu automóvel.184 Em
Montevidéu, no Uruguai, atos semelhantes foram registrados. Diversas estações de
rádio e jornais da cidade receberam telefonemas anônimos ameaçando com represá-
lias de bombas se continuassem a acusar Cukurs de crimes de guerra ou defender seus
assassinos. Os muros de várias casas na capital uruguaia também foram pintados com
suásticas e lemas antissemitas.185

Kuenzle, Taussing e nenhum dos outros agentes envolvidos foram presos. Com o
tempo, o assunto foi deixando o noticiário diário. Somente em 2004, com a publica-
ção de The Execution of the Hangman of Riga se soube dos detalhes da operação. O
livro é uma versão oficial do Mossad. Porém, nem tudo foi contado na obra. Mena-
hem Barbasch, funcionário da Embaixada israelense em Montevidéu, por exemplo,
realmente participou da operação, como revela Marcelo Silva. Em 1991, Barbasch
declarou sua participação ao jornal israelense Maariv, afirmando: “O povo judeu de-
cidiu matar esse nazista e para mim foi uma ordem divina. (...) Sua morte não me cus-
tou nenhum problema espiritual e dormi tranquilo depois disso”.186

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
183
Correio da Manhã, “Manifestações antissemitas por Cukurs”, 14/03/1965, p.3
184
Última Hora, "Nazismo renasce firme no Brasil", 02/04/1965, p.1.
185
Jornal do Brasil, “Médicos dizem que Cukurs foi morto a pancadas de martelo”, 10/03/1965,..8
186
SILVA, Marcelo. El Baúl de Yahvé – El Mossad y la ejecución de Herberts Cukurs en Uruguay.
Montevidéu: Carlos Alvarez Editor, 2010, p.168.

302
CONCLUSÃO
O objetivo principal deste trabalho foi compreender como as autoridades governa-
mentais brasileiras se posicionaram diante do Caso Cukurs. O caso foi emblemático,
pois, pela primeira vez no pós-guerra, colocou-se em tela de juízo a capacidade do
Estado brasileiro de tratar uma questão que, mesmo no cenário internacional, engati-
nhava: o desvelamento dos crimes contra a humanidade e o cerco a seus perpetrado-
res.

Após examinar um conjunto volumoso, inédito e diversificado de fontes primárias,


pude verificar que este posicionamento levou em consideração múltiplos aspectos.
Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar a importância daquilo que chamo de “grupos
de pressão”, a saber: imprensa, organizações da sociedade civil, entidades judaicas e
parlamentares. Esses grupos de pressão nem sempre foram homogêneos em suas pro-
posições e críticas. Alguns, exigiram que as autoridades expulsassem Herberts Cukurs
do Brasil, enquanto outros exigiram a sua extradição. Em algumas situações, pressio-
naram o governo para que não lhe concedesse a naturalização; em outras, limitaram-
se a pedir esclarecimentos. A despeito da falta de alinhamento, tais grupos se fizeram
presentes e conseguiram ser ouvidos. Basta lembrar que a primeira investigação ofici-
al do Ministério da Justiça sobre a presença de Cukurs no Brasil ocorreu em decor-
rência de um requerimento do então deputado federal Horácio Lafer, em 25 de julho
de 1950. E dez anos depois, quando Cukurs esteve bem próximo de conseguir a naci-
onalidade brasileira, sua sorte mudou graças à repercussão midiática em torno da cap-
tura de Adolf Eichmann e à pressão exercida pela Federação das Sociedades Israelitas
do Rio de Janeiro, por intermédio de seu presidente, Aarão Steinbruch. Portanto, o
Estado brasileiro foi sensível à mobilização política de diferentes atores sociais.

Em segundo lugar, a posição das autoridades governamentais brasileiras no imbró-


glio foi predominantemente pautada por elementos técnicos e políticos. O lado técni-
co está relacionado principalmente ao material acusatório produzido pelo Comitê de
Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos. Os cinco depoimentos origi-
nais que atribuem crimes de guerra a Cukurs careciam, como vimos, de formalidade
jurídica. O material era indubitavelmente valioso e impactante, porém, não foram
cumpridas as formalidades necessárias em relação à sua obtenção. Um deles fora re-
gistrado em ídiche e em uma folha de caderno escolar. O estado deste material surpre-

303
endeu até mesmo a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. A vulnera-
bilidade jurídica de tais materiais no caso – reconhecida pela própria federação e pelo
Congresso Judaico Mundial – fez com que a entidade judaica carioca optasse por não
enviar o material original ao Ministro da Justiça, conforme este havia previamente
solicitado. E este foi apenas um exemplo das muitas dificuldades encontradas pela
Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro. Seus representantes, apesar de
demonstrarem enorme dedicação, também não conseguiram obter do Foreign Office a
validação do Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos. Mais
tarde, em outro episódio que geraria enorme frustração para os dirigentes da Federa-
ção, Friedrich Brassloff, assessor jurídico do Congresso Judaico Mundial em Londres,
informou-lhes que o mencionado comitê tinha durado apenas seis meses, que não fora
um órgão oficial e que não fora tão importante no cenário europeu daquele momento.

Todos esses elementos somados diminuíram sensivelmente o impacto das acusa-


ções contra Cukurs. A Federação da Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, bem co-
mo as várias entidades judaicas que participaram daquela mobilização, nunca duvidou
– e nem tinham razão para tal – da palavra dos sobreviventes ou da autenticidade de
seus relatos. Nem eu aqui duvido também, importante que se diga. Como pontuei no
terceiro capítulo, em várias localidades durante a guerra, especialmente em territórios
ocupados pelo Terceiro Reich, a única evidência a respeito das atrocidades nazistas,
dependia única e exclusivamente de relatos dos sobreviventes. O problema no Caso
Cukurs era a formatação jurídica em que esses depoimentos foram registrados. A pre-
cariedade técnica dessas evidências deixaram o Ministério da Justiça em uma situação
delicada quanto ao passado criminoso de Cukurs. O Estado brasileiro, desta forma,
jamais abriu um pedido de expulsão. Por outro lado, esse mesmo Estado também nun-
ca deferiu os vários pedidos de naturalização feitos por Cukurs. Isso mostra que o
empenho das instituições judaicas, combinado com aquele de setores da imprensa,
parlamentares e organizações não governamentais, teve expressividade suficiente para
colocar o governo brasileiro em uma situação de dúvida quanto às graves acusações,
ainda que não tenham sido de fato julgadas. E o que é mais importante aqui – e aí en-
tra em cena o lado político ao qual me refiro: o Ministério da Justiça poderia ter en-
cerrado as investigações e dado fim ao Caso Cukurs nos vários momentos em que se
revelou patente a inconsistência formal das evidências sustentadas pela Federação Is-
raelita do Rio de Janeiro. Isso, no entanto, não aconteceu. Tomando uma decisão fun-

304
damentalmente política, o Ministério da Justiça deu procedimento a suas sindicâncias
e contrariou a tese, demasiadamente simples e esquemática, mas ainda hoje muito ar-
rolada, de que Cukurs foi arbitraria e imoralmente protegido pelo governo brasileiro.

Em terceiro lugar, ressalto um outro fator que foi decisivo para deixar as autorida-
des brasileiras ainda mais em dúvida quanto ao passado criminoso de Cukurs: o resul-
to das diligências empreendidas pelo Ministério das Relações Exteriores. Com essas
diligências, o governo brasileiro desejava confirmar o conteúdo das acusações que
eram feitas a Cukurs no Brasil. O resultado, no entanto, foi inconclusivo. As autorida-
des consulares brasileiras no exterior informaram que Cukurs tinha imigrado para o
Brasil legalmente. Tinha seus documentos em ordem e utilizava seu nome verdadeiro
e este não constava em listas oficiais de crimes de guerra. O diálogo com as autorida-
des governamentais estrangeiras é um dado realmente fundamental para a compreen-
são do caso – que foi confuso, sem respostas ou com recebimento de informações
equivocadas. A consulta feita às autoridades francesas, americanas e alemães também
não demonstraram que Cukurs fora criminoso de guerra nazista. No entanto, os ame-
ricanos forneceram informações incompletas, erradas ou não checadas ao governo
brasileiro, o que tornou a apuração brasileira confusa e muito mais lenta. Mais pro-
blemático e decisivo ainda foi o diálogo estabelecido com o Foreign Office. As auto-
ridades britânicas confirmaram que o Comitê de Investigações dos Crimes Nazistas
nos Países Bálticos tivera um status não oficial e que nada tinha sido encontrado neste
comitê sobre Herberts Cukurs – o que não era verdade. Além disso, os britânicos ava-
liaram que um comandante de gueto não poderia ser considerado um criminosos de
guerra a priori – coisa que Cukurs nem mesmo tinha sido. Tudo isso fez com que as
autoridades brasileiras redobrassem sua desconfiança frente aos depoimentos contra
Cukurs e frente à própria intenção da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de
Janeiro. Para encerrar a participação britânica no caso, o Foreign Office deixou de
responder, de forma deliberada, o pedido formal de informação do governo brasileiro
sobre Cukurs. O órgão britânico usou, como vimos, uma estratégia chamada wait and
see. Vale destacar, contudo, que tal posicionamento do governo britânico nada têm a
ver com uma estratégia ardilosa para favorecer nazistas, mas espelhava o pouco caso
que este fez quanto ao pedido do Brasil e a sua prioridade naqueles tempos de Guerra
Fria, estando bem mais centrado no combate ao comunismo do que em criminosos
nazistas, em especial, dos países bálticos agora pertencentes à União Soviética.

305
Sobre tal aspecto, devemos ter em mente que a questão dos crimes de guerra e dos
perpetradores nunca foi prioridade na agenda de qualquer governo, principalmente no
imediato pós-guerra. O governo brasileiro não fugiu à regra. Isso tornou o processo de
investigação por vezes demorado e bastante burocratizado, o que talvez explique o
fato do Ministério das Relações Exteriores nunca ter tentado contatar os sobreviventes
do Holocausto que testemunharam contra Cukurs. Atualmente, esta possibilidade cer-
tamente seria cogitada e provavelmente levada à cabo. Mas estamos falando de épo-
cas bastante distintas. Ainda assim, tais investigações ocorreram e não foram arbitrá-
rias. Basearam-se, via de regra, nos limites dos elementos técnicos e políticos.

Altos cargos do governo e passado antissemita

Aliada a esse aspecto – da não prioridade dos governos com relação à situação dos
criminosos nazistas – analisei ainda a persistência de ideias antissemitas nos pareceres
do Ministério da Justiça. No cargo de Consultor Jurídico, por exemplo, encontramos
Anor Butler Maciel, que na juventude tinha se destacado pela militância católica con-
servadora, integralista e antissemita. Além dele, vimos também o antissemitismo nos
discursos de vários outros funcionários da pasta da justiça. Uma análise pouco cuida-
dosa, feita a partir de documentos isolados ou de trechos “estrategicamente” selecio-
nados de pareceres jurídicos, nos levaria a crer que o antissemitismo foi a força orga-
nizativa e preponderante na entrada e na permanência de Cukurs no Brasil. Contudo,
não podemos dizer que esses fatores foram responsáveis pelo posicionamento do Es-
tado brasileiro no caso em questão. Em primeiro lugar, porque, agora, sabemos o peso
que tiveram os problemas relacionados à construção da instrução jurídica contra Cu-
kurs e do ruído existente na comunicação com autoridades governamentais de outros
países. Em segundo lugar, porque precisamos reconhecer a ambivalência daqueles
funcionários do Ministério da Justiça. O ex-integralista Anor Butler Maciel, por
exemplo, foi responsável em um momento por solicitar uma investigação sobre a situ-
ação da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro (até onde pude apurar,
nunca realizada) quando os retornos do exterior apontavam para a não criminalização
de Cukurs. Em outro, quando o resultado das investigações poderia justificar o arqui-
vamento do caso, orientou seu ministério a prosseguir. Neste sentido, vale mencionar
o que Jeffrey Lesser chama de uma “identidade essencialista”:

Há algumas pessoas – não eu – que trabalham com a ideia de uma


identidade que podemos chamar de “essencialista”. Isso é, se alguém

306
fala uma coisa racista, preconceituosa, antissemita, então, a pessoa é
racista, preconceituosa, antissemita. Eu, em todos os meus trabalhos,
tenho uma ideia diferente de identidade. Eu não sou “essencialista”.
Em minhas pesquisas, os meus sujeitos sempre possuem muitas iden-
tidades. São filhos em um momento, pais em outro. São estudantes
em um momento, trabalhadores em outro. Eu acho isso supernormal,
super-humano. Então, o fato de alguém falar uma coisa não quer di-
zer que ele é essa coisa. (...) Perguntas como “o governo Vargas é an-
tissemita ou não” é uma pergunta que não funciona. O que quer dizer
o “Governo Vargas”? Se eu definir todo o Governo Vargas como an-
tissemita, quer dizer que até os judeus que nele trabalharam eram an-
tissemitas? Qualquer pessoa, em qualquer setor do governo também
foi? Para mim, esta não é uma pergunta sofisticada.1

Lesser nos faz refletir sobre a grande armadilha que é explicar as ações dos indiví-
duos e das instituições que representam – em nosso caso o Estado ou suas autarquias
– a partir de um conceito de identidade monolítica, inflexível, absoluta, coerente ou
essencialista, como ele próprio denomina. As pessoas, o autor nos lembra, são contra-
ditórias, multifacetadas, nem sempre coerentes. Por isso, aqueles que operam com es-
te conceito de identidade talvez se surpreendam com a decisão final do Ministério da
Justiça em não ter concedido a naturalização de Cukurs. Se a decisão de conceder a
nacionalidade brasileira a um estrangeiro é uma decisão em última instância política,
como um dos funcionários daquele ministério em certo ponto do caso indicou, essa
decisão política certamente não favoreceu Cukurs. E a importância de tal decisão es-
teve em permitir que até o final de sua vida no Brasil o letão estivesse sujeito à um
pedido de extradição, pedido este que nunca chegou, fosse por falta de vontade políti-
ca de representante da União Soviética ou da Alemanha Federal, cujas decisões neste
terreno durante muito tempo foram morosas e submissas à lógica da Guerra Fria.

Um caso que abre perspectivas

Mais do que iluminar o próprio caso, acredito que os resultados aqui alcançados
nos permitem reflexões um pouco mais dilatadas. Nas últimas décadas, desde o final
da Segunda Guerra Mundial, se tornou dominante na imprensa, na cultura de massa e
até mesmo em alguns círculos historiográficos a ideia de que o Brasil acobertou indis-
criminadamente criminosos nazistas. O país teria se tornado, logo depois da Argenti-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Entrevista ao Café História. Disponível em: <http://cafehistoria.ning.com/page/entrevista-com-
jeffrey-lesser-identidades-negociadas>. Data: 12/11/2013. Acesso em: 20/07/2015.

307
na, um privilegiado paraíso para esses foragidos da justiça internacional. Essa fórmula
explicativa, que até agora se baseou muito mais em especulações do que em pesquisa,
não dá conta de explicar o Caso Cukurs. E logo aquele que foi o primeiro caso do gê-
nero no Brasil, aquele que mais gerou críticas ao governo e o que mais tempo perma-
neceu na esfera pública. Neste caso, a fórmula simplória, reducionista, denuncista e,
não raro, militante com a qual nos habituamos a pensar o tema no Brasil contrasta
com uma realidade altamente complexa, repleta de nuances, contradições. O Caso
Cukurs é, por fim, exemplar na quantidade de ambuiguidades e forças atuantes. Não
vemos aqui a “proteção” ou “conivência” do governo esquemática e absoluta de que
nos falam jornalistas, cineastas, escritores e historiadores. O Caso Cukurs, em outras
palavras, nos faz desconfiar, questionar e desafiar tal perspectiva. Sua análise sinaliza
para o risco de interpretações generalistas, não raro míticas, além de revelar atores e
contextos geralmente esquecidos ou subestimados deste universo.

A análise do Caso Cukurs não é capaz, isoladamente, de explicar como o Estado


brasileiro se posicionou diante de outros episódios do gênero. Nem outros casos, por
seu turno, explicam o Caso Cukurs. Não existe neste campo uma “chave-mestra” que
abra todas as portas. Tomar, neste âmbito, o particular para explicar o geral é um ris-
co. Aqui, as partes não necessariamente se equivalem. Esse é um cuidado que deve-
mos encarar com atenção, haja vista a profusão de narrativas criadas por jornais, ro-
mances, filmes e tantas outras obras de “especialistas”. Estas, em linhas gerais, mais
têm contribuído para a espetacularização do tema do que para o seu esclarecimento.

Ressaltar as especificidades do Caso Cukurs não equivale a dizer que o mesmo é


um fenômeno isolado na história. Durante muito tempo, casos circunscritos dentro de
uma temporalidade limitada foram tratados como objetos dotados de pouca relevância
frente a uma narrativa histórica mais ampla, que privilegia os “grandes movimentos”
da história. A renovação da história política mostra, no entanto, que esta percepção é
enganosa. Segundo afirma Marieta de Moraes Ferreira, esse recente movimento histo-
riográfico rebate a ideia de que os objetos da história política são “fatos efêmeros e
superficiais (...) incapazes de fazer perceber os movimentos profundos das socieda-
des”.2 O Caso Cukurs confirma esse diagnóstico da renovação. Ele nos permite per-
ceber a relação entre Estado e sociedade como um domínio privilegiado do político,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2003. pp. 6-7.

308
que valoriza o sujeito, as instituições e o acontecimento como parte da tessitura da
historiografia.

Por fim, gostaria de registrar que este trabalho é uma contribuição que se insere
dento de um campo historiográfico que ainda dá seus primeiros passos. Sabemos ain-
da muito pouco sobre a relação entre o Brasil e criminosos nazistas, entre o Brasil e a
questão dos crimes de guerra. Como vimos, os historiadores permaneceram afastados
durante muito tempo deste tema e deste problema. Assim, encaro o Caso Cukurs co-
mo uma abertura para um campo valioso da história do tempo presente, cujas conclu-
sões ainda são, naturalmente, limitadas. Mas não há como ser diferente neste momen-
to. Em muitos aspectos, esse é um trabalho de mapeamento, de construção de bases,
de levantamento de dados e referências que podem e devem ser confrontados, a fim
de se buscar padrões, tendências, diferenciações. É assim, afinal de contas, que a his-
toriografia se constitui. Acredito que este trabalho, enfim, sirva como um ponto de
partida para novas teses e para despertar o interesse do público em geral pelo tema.

309
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! MF DOC54/REEL14, FRAMES 25

1.8. American Jewish Archives

! War Criminals, Herberts Cukurs, 1951, Box B44, File16. WJC

1.9. National Archives – Reino Unido

! DF: FO 371/104151 CW:1661/201

! DF: FO 371/104151 CW:1661/202

! DF: FO 371/104151 CW:1661/183

1.10. National Archives – Estados Unidos

! RG263, CIA First Release Name Files, Herberts Cukurs, BOX10 230/902/64/3

2. DOCUMENTOS INSTITUCIONAIS

2.1. World Jewish Congress

! Report of the World Jewish Congress Organization Department. August 1949-


August 1951. New York: 1951.

2.2. Federação Israelita do Rio de Janeiro

320
! Ata de Reunião Junta Executiva | 1950
! Ata de Reunião Junta Executiva | 1951

2.3. Central Intelligence Agency

! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a80


! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a84
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a83
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a88
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a8a
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a89
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a87
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a86
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a85
! Robert Stiglics: DN: 519bded2993294098d514a82
! Robert Stiglics DN: 519bded2993294098d514a81

2.4. United Nations

! Convention on the Prevention and Punishment of the Crimes of Genocide - 1950

3. IMPRENSA NACIONAL

3.1. Diário do Congresso Nacional

3.2. Diário Oficial da União

3.3. Dário da Assembleia Nacional

3.4. Diário Oficial de la Nación (Argentina)

4. LIVROS

4.1. CUKURS, Herberts. Mans Lidojums uz Gambiju. Riga: Edição do Autor, 1934.

4.2. SANTANDER, Silvano. Técnica de una traición. Juan D. Perón y Eva Duarte,
agentes del nazismo en la Argentina. Buenos Aires: Edición del autor, 1955.

4.3. TABORDA, Raúl Damonte. O Caso Perón: uma conspiração continental. Porto
Alegre: Globo, 1954.

4.4. BRUCKNER, Michael. Eles estão de volta. Rio de Janeiro: Record, 1979.

4.5. GREENE, Harris. Contas a ajustar. Rio de Janeiro: Record, 1984.

321
4.6. LEVIN, Ira. Meninos do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. 1978.

4.7. FARAGO, Ladislas. Aftermath: Martin Bormann and the Fourth Reich. Simon and
Schuster, 1974;

4.8. STEVENSON, William. The Bormann Brotherhood. Barker, 1973;

4.9. WHITING, Charles. The Hunt for Martin Bormann. Ballantine Books, 1973;

4.11. ABRAHAM, Ben. O Anjo da Morte – O Dossiê Mengele. Sherit Hapleita, 1985.

4.12. COSTA, Flávio Moreira da. Os mortos estão vivos. Rio de Janeiro: Record, 1984.

4.13. PINTO, José Nêumanne. Mengele: a natureza do mal. São Paulo: EMX Editores,
1985.

4.14. ERDSTEIN, Erich; BEAN, Barbara. Inside the Fourth Reich. St. Martin's Press,
1977.

4.15. BOTACINI, Roberto. Onde estará Hitler? São Paulo: Livraria Exposição do
Livro, 1964;

4.16. BOTACINI, Roberto. Nazistas na América. São Paulo: Livraria Exposição do


Livro, 1964;

4.17. BOTACINI, Roberto. A Fuga de Hitler. São Paulo: Livraria Exposição do Livro,
1965;

4.18. BOTACINI, Roberto. Perón, a volta do Nazismo. Ribeirão Pires: Editora


Combrig, 1973;

4.19. BOTACINI, Roberto. O Nazismo sobrevive ao Terceiro Reich. Ribeirão Pires:


Editora Combrig, 1977.

4.20. CAMARASA, Jorge. Odessa al Sur: la Argentina como refúgio de nazis y


criminales de guerra. Buenos Aires: Aguilar, Taurus, Alfaguara, 2012.

4.21. DE NAPOLI, Carlos; SALINA, Juan. Ultramar Sul: a última operação secreta do

Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

4.22. GOÑI, Uki. A Verdadeira Odessa – O contrabando de nazistas para a Argentina


de Perón. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 132.

4.23. MACIEL, Anor Butler. O Estado Corporativo. Edição da Livraria do Globo: Rio
de Janeiro, 1936.

322
4.24. MACIEL, Anor, Butler. Nacionalismo – o problema judaico no mundo e no
Brasil. O nacional-socialismo. Porto Alegre: O Globo, 1937.

5. SITES E BLOGS

5.1. Latvian History - http://latvianhistory.com

5.2. Latvian Aviation - http://latvianaviation.com

5.3. Jaunaus Vestnesis - http://jvestnesis.lv

5.4. Family Search - https://familysearch.org

5.5. A Águia do Báltico - http://herbertscukurs.blogspot.com.br

5.6. Rumbula - http://www.rumbula.org

5.7. Yad Vashem – www.yadvashem.org

5.8. Senado Federal - http://legis.senado.gov.br

5.9. Kasjauns – http://www.kasjauns.lv

5.10. CPDOC/FGV: http://cpdoc.fgv.br/

5.11. Folha Online – http://www.folha.uol.com.br/

5.12. Estadão Online – http://www.estadao.com.br/

5.13. Justiz und NS-Verbrechen - http://www1.jur.uva.nl

5.14. The New York Times – http://www.nytimes.com/

5.15. Haaretz – http://www.haaretz.com/

5.16. United States Holocaust Memorial Museum – http://www.ushmm.org/

5.17. Cinemateca Brasileira – http://www.cinemateca.gov.br/

5.18. Cancilleria Argentina – http://www.mrecic.gov.ar

5.19. The Global Jewish News Source Jewish – http://www.jtz.org

5.20. Café História – http://cafehistoria.ning.com

6. REVISTAS

6.1. Flight Magazine

6.2. O Cruzeiro

323
6.3. Revista Copacabana

6.4. Aonde Vamos?

6.5. Rolling Stones Brasil

6.6. Aventuras na História

6.7. Politika

6.8 Veja

6.9. Revista da Semana

6.10. Novos Rumos

6.11. Periodika (Letônia)

6.12. Atputa (Letônia)

7. JORNAIS

7.1. A Manhã

7.2. A Noite

7.3. A Notícia

7.4. A Vanguarda

7.5. Correio da Manhã

7.6. Correio do Paraná

7.7. Diario de Avisos (Espanha)

7.8. Diário Carioca

7.9. Diário da Noite

7.10. Diário de Notícias

7.11. Diário de Pernambuco

7.12. Diário do Paraná

7.13. El País (Uruguai)

7.14. Folha de S.Paulo

7.15. Folha do Rio

324
7.16. Gazeta de Notícias

7.17. Imprensa Popular

7.18. Jornal do Brasil

7.19. Jornal Pequeno

7.20. L’Express (França)

7.21. Luta Democrática

7.22. Nossa Voz

7.23. O Estado de S.Paulo

7.24. O Globo

7.25. O Jornal

7.26. O Mundo Ilustrado

7.27. O Radical

7.28. O Semanário

7.29. The Guardian (Inglaterra)

7.30. Tribuna da Imprensa

7.31. Tribuna Popular

7.32. Última Hora

8. ENTREVISTAS

8.1. Sylvio Kelner ao autor da tese, Rio de Janeiro, 03/05/2013.

8.2. Molka Waimberg ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 08/05/2013.

8.4. Marcos Waimberg ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 08/05/2013.

8.4. Aleksander Laks ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 14/06/2011.

8.5. Marcus Shorr ao autor desta tese. Rio de Janeiro, 03/01/2012.

9. OUTROS

9.1. Documentos familiares de Helga Fisher (NY/EUA)

9.2. Biblioteca da Presidência da República.

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